Você está na página 1de 7

INSTITUTO SUPERIOR DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO

ISCED-HUÍLA

MESTRADO EM ENSINO DA HISTÓRIA DE ÁFRICA

MÓDULO 3: SOCIOLOGIA DAS SOCIEDADES AFRICANAS

RECENSÃO CRÍTICA DA SECÇÃO 6 DO RELATÓRIO “PRIORITIES FOR


PEACE-BUILDING IN ANGOLA” DA ORGANIZAÇÃO NÃO-
GOVERNAMENTAL “VOICES FOR PEACE PROJECT” (OUTUBRO, 2003)

GRUPO Nº 10

Docente: Prof. Narciso Félix José Nhulilivali, Ph.D

Estudantes: Felisberto Victor Chiumba Luciano e Teresa Maliengue

Lubango, aos 21 de Janeiro de 2022


Recensão Crítica

Report on Research in Huambo Province, November 2002- March 2003. (2003,


October). Priorities for Peace-building in Angola, Luanda: Voices for Peace
Project, pp. 14-26.

Por: Felisberto Victor Chiumba Luciano1

Teresa Maliengue2

“Cohesion and tensions within communities in Huambo province” configura a


sexta secção do relatório de 33 páginas, de uma pesquisa realizada em
comunidades rurais e periurbanas da província do Huambo, pela organização não
governamental Voices for Peace Project, entre Novembro de 2002 a Março de
2003. Em relação à metodologia adoptada, a pesquisa combinou abordagens
quantitativas e qualitativas, mediante aplicação de questionários estruturados,
realização de entrevistas semiestruturadas, discussões em grupos focais e
histórias de vida, com o fito de ver o conflito e a construção da paz a partir das
perspectivas daquelas comunidades.

Este relatório apresenta as conclusões de um Workshop de Desenvolvimento


conjunto do Centro Common Ground e do “projecto Pesquisa-Ação sobre
Prioridades para a Construção da Paz em Angola3”. O objectivo geral deste
projecto visou identificar as oportunidades e ameaças ao processo de paz em
Angola, e da província do Huambo em particular, no curto e médio prazo, após o

1
Mestrando em Ensino da História de África pelo Instituto Superior de Ciências da Educação da Huíla
(ISCED-Huíla). Em 2021, frequentou o Curso de Formação Avançada “Desarmar as opressões atuais a
partir das epistemologias do sul: o capitalismo, colonialismo e patriarcado”, realizado em estreita
colaboração da Universidade de Sevilha, do Programa em Epistemologias do Sul do Centro de Estudos
Sociais da Universidade de Coimbra e do Programa Sur-Sur do Conselho Latino Americano de Ciências
Sociais (CLACSO). É Professor de História do II Ciclo do Ensino Secundário desde 2006. Desde 2017 exerce
o cargo de Subdirector Pedagógico no Colégio 1773-IESA. E-mail: felisbertoluciano9@gmail.com.
2
Mestranda em Ensino da História de África pelo ISCED-Huíla. Directora Geral do Complexo Escolar “Paula
Franssinetti”, no Lubango. E-mail: tmaliengue@gmail.com.
3
Em inglês, Action Research Project on Priorities for Peace-building in Angola.

1
fim da guerra civil, que durou 27 anos, cuja paz foi alcançada em Abril de 2002. A
necessidade desta investigação baseou-se no reconhecimento dos vastos
desafios e riscos que Angola enfrenta no reforço do processo de paz, na garantia
da estabilidade do país e no desejo de contribuir positivamente para esse
processo.

Em bom rigor, na sexta secção deste relatório, que de resto constitui o centro
nevrálgico desta recensão crítica, com título “Coesão e tensões no seio das
comunidades na província do Huambo” começou-se, precisamente, por
explorar as tensões subjacentes às referidas comunidades conforme expresso
pelos entrevistados, concluindo com uma análise da organização das
comunidades e níveis de solidariedade no período pós-conflito armado na
província do Huambo.

Entre as causas mais relevantes das respectivas tensões apresentadas no


relatório, estão fundamentalmente, o impacto da violência intra e intercomunitária
imposta pelos anos de guerra civil, desde logo, corporizada pela divisão nas
comunidades e em alguns casos no seio das famílias, entre os pró- MPLA
(Movimento Popular de Libertação de Angola) e os pró-UNITA (União Nacional
para Independência Total de Angola), o papel exterminador de algumas
confissões religiosas que buscavam eliminar algumas normas sociais e culturais
das comunidades rurais e periurbanas mediante proibição da celebração
dalgumas festividades locais e ancestrais, elevados índices de pobreza
decorrentes da má distribuição das riquezas, a dificuldade de acesso à terra para
a prática da agricultura e construção de habitações, a insegurança política, mau
estado das infraestruturas físicas e serviços sociais precários, subordinação, bem
como a partidarização e instrumentalização das autoridades tradicionais.

Sem pretender esboçar um corpo teórico demasiadamente esquemático sobre as


aludidas causas de tensão comunitária na província do Huambo, um aspecto
interessante referido no relatório, particularmente sobre a relação do governo e os
partidos políticos, que diga-se de passagem, colhe nossa plena concordância, é o
facto de algumas autoridades tradicionais, nomeadamente sobas e regedores de
algumas aldeias, ao invés de representarem todos os membros da comunidade,
independentemente da sua simpatia ou filiação político-partidária, a sua actuação

2
aproximava-se mais à um autêntico “cabo eleitoral” em vez de representante de
todos indivíduos na e da comunidade. E isso, naturamente, tem o potencial de
agudizar ainda mais os focos de tensão entre os membros da referida
comunidade, fragilizando e imperrando o processo de contrução da paz e da
realização de projectos de desenvolvimento comunitário.

E pior do que isso, é o facto de ter sido criado um sistema clientelar de fidelização
partidária entre as autoridades tradicionais que resultou numa bipolarização
politíco-partidária nas comunidades rurais e periurbanas do Huambo, tal como
asseverou num outro estudo o investigador Fernando Florêncio4 (2010: 169):

A bipolarização político-partidária no município do Bailundo,


enquanto arena política, entre o MPLA e a UNITA, contamina
igualmente a estrutura do poder tradicional do M'Balundu,
que acaba igualmente por incorporar essa bipolarização, com
a existência de um enorme conflito entre dois ossoma inene,
Utondissi II, que foi entronizado soma inene do M'Balundu em
1996, durante o período de domínio da UNITA e Ekuikui IV,
nomeado soma inene do M'Balundu, em 2002, e entronizado
em 2004.

A passagem abaixo descrita, extraída do presente relatório, é bastante elucidativa


sobre o nível de compreensão que as comunidades detêm sobre a guerra civil
angolano e afigura-se no corolário das clivagens existentes naquelas
comunidades, forjadas segundo signos de identificação político-ideológicas dos
dois contendores do conflito interno angolano, sendo que, a retórica política
dominante que visa fazer prevalecer a versão do “vencedor” sobre aquele facto da
História de Angola, tende a atribuir o ônus da responsabilidade do saldo mortal da
guerra civil angolana apenas à uma das partes beligerantes, neste caso, à UNITA.

“The two parties killed, and everyone knows this5”.

Neste contexto, com um módico de sobriedade, percebe-se claramente que a


narrativa sobre o conflito interno angolano tem sido construída de forma

4
Cf. Florêncio, F. (2010). No Reino da Toupeira. Autoridades Tradicionais do M'balundu e o Estado
Angolano, Lisboa: Editora Gerpress, p. 169. ISBN: 978-989-96094-5-7
5
Os dois partidos mataram e todos sabem disso (tradução nossa).

3
tendenciosa, ou seja, tem sido objecto de alguma manipulação política com fins
eleitoralista que visam tão-somente o reforço e a manutenção do poder da parte
do partido que governa o país. E, a referência recorrente à UNITA como a única
força política que matou os angolanos durante a guerra civil (como se o MPLA
simplesmente tivesse distribuído chocolates e bolachas), além de beirar o ridículo,
configura uma tentativa de branqueamento da história de Angola, que em nada
contribui para o processo de construção de paz ainda em curso.

Ademais, em relação ao papel dalgumas instituições religiosas, cujas práticas


fomentavam tensões nas comunidades, o relatório em análise aponta as Igrejas
Católica, Convenção Baptista em Angola (CBA) e Congregacional em Angola
(IECA), que obrigavam as comunidades abandonarem algumas práticas e rituais
que configuravam a ideossincrasia dos povos do planalto central, tais como
algumas celebrações e festivais, com realce para alguns rituais de iniciação
feminino e masculino, mormente o efiko (ritual de iniciação feminina) e ekwendje
(circuncisão masculina) e alguns rituais fúnebres.

Na perspectiva da investigadora Maria Conceição Neto6 (2001):

Em geral, os habitantes das áreas rurais ainda viam os chefes


tradicionais em vários papéis habituais: representantes da
comunidade, árbitros em conflitos e intermediários na relação
com os ancestrais. Porém, […], o avanço do cristianismo
afectou seriamente a histórica importância da liderança em
um nível simbólico e religioso. Em outras comunidades, os
líderes religiosos surgiram como resultado dessa expansão, e
as igrejas constituíram-se nos novos centros de poder.

Um outro aspecto que o relatório faz igualmente referência, enquanto causa de


conflitos na comunidade, é a promiscuidade entre o governo e o partido que o
sustenta, isto é, o MPLA. Do ponto de vista do discurso político e da prática
governamental, a linha que separa aqueles dois entes é tão tênue que, não raras
vezes as pessoas menos avisadas da comunidade tendem a confundí-los ou
tomá-los como sinónimos, e isto faz com que a parte da comunidade que

6
Cf. NETO, M. C. (2001). Angola: The Historical Context for Reconstruction In ROBSON, P. (2001).
Communities and Reconstruction in Angola: The prospects for reconstruction in Angola from the
communities perspective, Development Workshop- Occasional paper Nº 1, Canada: Guelph, pp. 34-35.
ISBN: 0-9688768-0-1

4
identifica-se com outros partidos políticos angolanos, mormente os na oposição,
sintam-se marginalizados ou não representados pelo governo.

Destaca-se também, entre os factores de tensão, a pobreza e distribuição


desigual das riquezas, sendo que, um grupo restrito beneficiou-se dos recursos
disponíveis em detrimento duma maioria empobrecida. Sobre este assunto, não
discorreremos com mais pormenor para não extrapolarmos a economia deste
trabalho, pois o mesmo está na origem dum extenso e intenso debate sobre o
combate a corrupção ainda em curso no país. Mas não restam dúvidas que o
mesmo configura uma “pedra de obstáculo” para a construção da paz nas
comunidades ao nível de todo país.

No entanto, vale destacar que, os programas de construção da paz em


comunidades pós-conflito, como estas à que o relatório em análise aludiu,
precisam estar alinhados às dinâmicas sociais das áreas de implementação para
não incorrer-se num possível enviesamento contextual. Isso requer uma
compreensão das tensões sociais subjacentes e os factores que podem trazê-las
à tona. Dito de outra forma, tais programas precisam reflectir as causas reais e
objectivas dos conflitos existentes nas comunidades concretas de execução,
evitando-se assim a replicação de programas aplicados em outros contextos.

A abordagem metodológica participativa adoptada na realização da pesquisa que


sustentou o relatório em análise não é única, mas a leitura relacional que
privilegia a identificação da multiplicidade e interconectividade das causas que
estão na base das tensões ao nível das comunidades do planalto central é
inovadora, pois permite aos indivíduos tomar consciência de que as causas de
tais tensões não são isoladas mas sim interligadas, o que sugere uma acção
sincronizada de todos para a sua resolução.

O relatório deixa claro que, só uma comunidade coesa pode desenvolver uma
cidadania comunitária mais activa e comprometida com a paz social que habilita
os indivíduos a viverem e conviverem na diferença, fazendo do passado um
referencial para construção dum futuro baseado no perdão e reconciliação
comunitária genuína e sem laivos de ressentimentos, acusão gratuita ou
imputação de culpa unilateral sobre os erros do passado.

5
Finalmente, o relatório em análise, longe de ser uma receita acabada de pronto
consumo, mas sim uma proposta de guião orientador para o governo e demais
organizações que têm nas comunidades seu escopo de acção, o interesse que
desperta é alargado, desde logo, porque permite confrontar diferentes
perspectivas sobre as causas da coesão e tensão nas comunidades angolanas,
particularmente as do planalto central, na província do Huambo e,
simultaneamente, relacionar as causas de tais tensões, identificar factores
propulsores de coesão intra e intercomunitária, cruzar indicadores, complementar
leituras e reiventar metodologias tendentes à prossecução da almejada paz e
desenvolvimento comunitário.

Portanto, a julgar pela acessibilidade do seu conteúdo e o sentido pedagógico


com que o mesmo foi exposto, que permite ao leitor uma assimilação e reflexão
teórica e crítica profícua, recomendamos vivamente a sua leitura meticulosa, à
todos aqueles que desejam desenvolver uma visão mais realista e
despretensiosa sobre as causas das tensões comunitárias no Huambo e os
factores de fortalecimento da coesão comunitária naquela região do país, e quiça,
por extensão em todo país

Adicionalmente, recomendamos às autoridades políticas, religiosas, comunitárias


e não só, a aplicação prática e contextualizada do conteúdo deste relatório pois
as sugestões nele contidas podem efectivamente contribuir para a construção da
paz e desenvolvimento das comunidades rurais e periurbanas de Angola.

Como citar esta Recensão Crítica

LUCIANO, F.V.C & MALIENGUE, T. (2022). Recensão crítica de Report on


Research in Huambo Province, November 2002- March 2003. (2003, October).
Priorities for Peace-building in Angola, Luanda: Voices for Peace Project, pp. 14-
26.

Você também pode gostar