Você está na página 1de 5

INSTITUTO SUPERIOR DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO

ISCED- HUÍLA

MESTRADO EM ENSINO DA HISTÓRIA DE ÁFRICA

MÓDULO: HISTORIOGRAFIA AFRICANA: OBSTÁCULOS E ESTRATÉGIAS

A PROBLEMÁTICA DO TRABALHO INFANTIL NA CIDADE DO LUBANGO:


O CASO DAS CRIANÇAS ENGRAXADORAS DE SAPATOS

Professor: Washington Santos Nascimento, Ph.D

Estudante: Felisberto Victor Chiumba Luciano

Lubango, Julho de 2022


É na rua, onde Adriano Jamba “Evenilson”, um menino de 11 anos, natural do
municipio do Chipindo, passa boa parte do seu tempo. Diferente de outras
crianças da sua idade, ele não vê as horas sumirem na brincadeira, mas usa as
ruelas e avenidas da cidade do Lubango, província da Huíla, para engraxar
sapatos.

A rotina de Evenilson começa às primeiras horas do dia, quando abandona a sua


residência às 7 horas, no bairro da Nosa Senhora do Monte, na zona Oeste da
cidade do Lubango, onde vive com sua mãe e seus irmãos menores. Daí parte
para o centro da cidade, num percurso de quase 4 quilómetros feitos à pé, com o
objectivo de ganhar alguns tostões para ajudar nas despesas de casa. Sua
actividade laboral começa às 8 horas, e num movimento de sobe e desce, vai
polindo os sapatos dos transeuntes à troco de 100 a 50 kwanzas. E no final do
dia, o garoto embolsa valores que variam entre 1.000 a 1.500 kwanzas, um valor
ligeiramente mais alto, quando comparado aos 400 e 500 kwanzas, que segundo
ele, consegue nos dias menos produtivos. 

Vivendo apenas com a mãe e mais três irmãos mais novos, em virtude de seu pai
e o irmão mais velho terem ido ao “mato 1” cultivar, conforme referiu Evenilson,
apesar do cansaço físico decorrente da actividade que realiza diariamente, não
deixou de frequentar a Escola, tendo transitado este ano para a 3ª classe, numa
instituição de ensino público, localizada num bairro muito distante da sua casa.

Importa destacar que, à semelhança de Evenilson, quase todas as crianças


lubanguensses que vêm-se obrigadas a ingressar precocemente à vida laboral,
por causa da vulnerabilidade social e económica em que suas famílias
encontram-se, registam um elevado índice de atraso escolar em relação a sua
idade. Se não vejamos, de acordo o número 2, do artigo 27º da Lei de Bases do
Sistema de Educação e Ensino (LBSEE), lei nº 17/16, de 7 de Outubro, que
estabelece os princípios e as bases em que assenta o Sistema de Educação e
Ensino de Angola, têm acesso ao ensino primário crianças que tenham

1
Designação equivalente à localidade do interior ou campo, onde a actividade económica principal é a
agricultura e pastorícia.

1
completado 6 anos, sendo que, aquelas cujas idades estão compreendidas entre
os 12 e 14 anos, e que não tenham concluído o ensino primário, beneficiam de
programas específicos de apoio pedagógico para permitir a sua conclusão.

E tendo Evenilson, aos 11 anos, concluído apenas a 2ª classe, isto configura um


claro exemplo de atraso escolar, pois com essa idade, segundo a LBSEE, estaria
a ingressar ao nível de ensino subsequente, ou seja, ao primeiro ciclo do ensino
secundário. Portanto, o exemplo de Evenilson é paradigmático para a grande
maioria dos alunos pertencentes às famílias financeiramente mais pobres. Porém,
vale dar nota que, apesar das dificuldades e do atraso escolar em relação à sua
idade, Evenilson jamais ponderou a possibilidade de abandonar a Escola, um
fenómeno que, infelizmente, afecta grande parte das crianças vulneráveis da
cidade do Lubango, e extensivamente do país, que vêm-se forçadas a abandonar
a Escola para realizar uma actividade que lhe garanta no imediato alguma renda
para ajudar no sustento da família.

“A minha mãe lava a louça, limpa o chão e cozinha para os cães 2”. É desta forma
que Evenilson descreve as funções de sua mãe, trabalhadora doméstica à dois
anos, numa residência no bairro Casa Verde. É interessante notar que, um dos
traços partilhados das famílias lubanguensses em situação de vulnerabilidade, é o
facto de o seu sustento ser suportado fundamentalmente pelas mulheres, sendo
que, os homens (maridos), sob pretestos vários, entre os quais, a prática da
agricultura nas localidades do interior, acabam deixando aos ombros das
mulheres este pesado encargo.

Evenilson, apesar de iniciar a "vida adulta” muito cedo, tem igualmente sonhos de
menino. Segundo ele, quando for adulto deseja tornar-se padre ou pastor. E tem
clara consciência de que para tal, terá de percorrer um longo caminho, que
naturalmente passará pela formação académica.

2
Conversa com Adriano Jamba “Evenilson” (2022, 3 de Julho).

2
Sem qualquer bilhete de identificação 3 que lhe outorgue direitos enquanto cidadão
nacional, Evenilson sonha um dia ter uma cédula pessoal ou bilhete de identidade
que lhe possa habilitar à plena cidadania e ao gozo dos direitos inerentes à sua
nacionalidade. Apesar de toda propaganda oficial sobre as políticas públicas do
Estado angolano sobre o direito de personalidade e identidade, cuja expressão
maior é o programa de registo à nescença, ainda há um hiato enorme entre as
intenções que tais programas anunciam e a realidade dos factos, sendo que
milhares de angolanos, entre os quais crianças, permanecem sem qualquer
documento de identificação nacional.

Em Angola, particularmente na cidade do Lubango, tal como Evenilson, existem


muitas outras milhares de crianças envolvidas no trabalho infantil, algumas com o
aval dos pais ou seus tutores legais, disse o director-geral do Instituto Nacional da
Criança (INAC), Paulo Kalesi4. Aquele responsável, asseverou ainda que, os
casos têm estado a aumentar. Por exemplo, no ano passado, a instituição
controlava mais de mil crianças envolvidas no trabalho infantil, mas, nestes seis
meses deste ano, as estatísticas do INAC ultrapassaram as três mil. 

Embora as estatísticas do INAC não reflictam a realidade, uma vez acreditar-se


existir um número maior de menores a exercer diversos tipos de trabalho, Paulo
Kalesi considerou esse facto como um dos principais problemas que a instituição
quer ver minimizado, principalmente nas zonas suburbanas do país. Diante dos
relatórios provinciais e os que chegam através da linha "SOS-Criança”, o director-
geral do INAC considera preocupante o elevado número de casos, sobretudo nas
piores formas do trabalho infantil. 

Paulo Kalesi manifestou uma certa preocupação com as províncias da Huíla,


Cunene e Luanda. Na primeira região, no município da Jamba (Mineira), existem
muitas crianças a serem exploradas nos campos de extracção de inertes,

3
Até 2019, 14 milhões de angolanos não tinham o bilhete de identidade, constituindo naquela altura, metade
da população (Jornal de Angola, edição do dia 27 de Maio de 2019).
4
Jornal de Angola. Disponível em: https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/mais-de-tres-mil-criancas-
envolvidas-em-trabalho-infantil/

3
enquanto na segunda parcela do país, a zona fronteiriça de Santa Clara regista
um número enorme de menores na mendicidade e na venda ambulante. Em
relação à Luanda, o director-geral do INAC disse que a situação é, igualmente,
preocupante, tendo em conta que se regista um grande número de crianças no
comércio ambulante, na mendicidade no centro das cidades e envolvidas no
trabalho doméstico. 

O quadro legal angolano, é bastante claro em relação ao trabalho infantil, pois


segundo a Lei nº 7/15 de 15 de Junho, Lei Geral do Trabalho, o artigo 3º, ponto 4,
estabelece que a actividade laboral pode começar aos 14 anos. No entanto, a
situação de vulnerabilidade decorrente da pobreza extrema à que grande parte
das famílias angolanas encontra-se, não deixa outra alternativa às crianças que,
apesar de vários riscos, vêm-se forçadas a procurar na actividade de engraxador
ou vendedor ambulante o seu ganha pão diário, bem como das suas famílias.

Em relação às principais causas que estão na base do trabalho infantil no


Lubango, destacam-se a fome e pobreza, a desestruturação das famílias, a
negligência da parte dos progenitores, a fuga à paternidade, violência contra o
menor, bem como a falta de políticas sustentáveis de nível local. É interessante
notar que, malgrado o Estado angolano ser signatário de vários acordos
internacionais sobre a criança, e ao nível local supostamente promover políticas
orientadas à protecção da criança e da infância, o que sucede de facto é que
Angola não cumpriu nenhum dos 11 compromissos internacionais com a criança.  

No entanto, segundo as autoridades locais, no quadro das acções para inverter


esta triste realidade, o Ministério da Acção Social, Família e Promoção da Mulher
está a liderar o Programa de Municipalização da Acção Social, no sentido de as
preocupações das crianças de nível local sejam resolvidas no município. "E as
políticas locais ainda são frágeis5”.

5
Preferimos usar a expressão frágeis para não transparecer a ideia dum quadro dramático no que concerne às
políticas locais sobre a criança, em Angola. Disponível em: https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/mais-
de-tres-mil-criancas-envolvidas-em-trabalho-infantil/

Você também pode gostar