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135 Campinas fev/2012

Reportagem

Analfabetismo no Brasil evidencia desigualdades sociais históricas

Por Aline Naoe


10/02/2012

As taxas de analfabetismo no Brasil, normalmente tratadas dentro do universo de


números e metas, deveriam, segundo especialistas em educação, ser também
analisadas dentro da área de política social e econômica, já que a população
considerada analfabeta é a mesma que sofre de outros problemas que afligem o
país. “Se você fizer o mapa do analfabetismo no Brasil, ele vai coincidir com o
mapa da fome, com o do desemprego, e da alienação. Não raro esse analfabeto é
o que fica doente, o que passa fome, o que vive de subemprego”, afirma a
pedagoga Silvia Colello, pesquisadora da Faculdade de Educação da Universidade
de São Paulo (USP).

Os últimos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) sobre


analfabetismo configuram um mapa de desigualdades que Alceu Ferraro, da
Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS),
atribui à concentração de terra, de renda e de oportunidades. Segundo Ferraro,
que já foi membro do Comitê de Pesquisa do Instituto Nacional de Estudos e
Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), “o país continua pagando o preço
de dois fatores conjugados. Primeiro, do descaso secular do Estado, e, segundo,
de um conjunto de fatores responsáveis pela enorme desigualdade social que
tem, desde sempre, marcado a sociedade brasileira”.

Somos 14 milhões de analfabetos, segundo o IBGE. Desses, a maior parte se


encontra na região Nordeste, em municípios com até 50 mil habitantes, na
população com mais de 15 anos, entre negros e pardos e na zona rural, ou seja,
encontra-se na população historicamente marginalizada. O censo relativo ao ano
de 2010 revela uma redução de 29% em relação aos números apresentados em
2000, mas ainda insatisfatória, especialmente, quando considerados os critérios
utilizados pelo IBGE. Hoje, é considerada alfabetizada a pessoa capaz de ler e
escrever um bilhete simples. “Esse é um conceito muito discutível. Se utilizarmos
um critério um pouco mais exigente, esses índices mudam e essa é uma das
razões pelas quais o IBGE não muda esses conceitos, porque o que está jogo é a
própria imagem do país”, diz Sérgio da Silva Leite, diretor da Faculdade de
Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e líder do Grupo de
Pesquisa ALLE – Alfabetização, Leitura e Escrita.

Desigualdades regionais. Analfabetismo no Nordeste chega a 28% na população de 15 anos ou mais de

municípios com até 50 mil habitantes, onde a proporção de idosos não alfabetizados é de aproximadamente

60%.

Para o psicólogo, o IBGE trabalha no limite de uma concepção de domínio do


código, um domínio mecânico da língua. Segundo Leite, é preciso que
simultaneamente à alfabetização, a pessoa se envolva com as práticas sociais de
leitura e escrita, ou seja, passando pelo processo de letramento. O termo, que
começou a ser utilizado no Brasil na década de 80, surgiu para diferenciar-se do
conceito de alfabetização. Silvia Colello, da USP, explica que o surgimento do
conceito de letramento faz jus a um novo momento da sociedade brasileira, que
já não mais aceita que o indivíduo saiba apenas desenhar o próprio nome. A
professora comenta a dificuldade de traduzir a palavra alfabetizado para o inglês,
já que no idioma há apenas o termo littered significando o conceito amplo de
alfabetização. “Nos países de primeiro mundo, em que a difusão dos bens
culturais é mais bem resolvida que no Brasil, ser alfabetizado é também ser
letrado. As crianças aprendem a ler e escrever e automaticamente já se tornam
usuárias da língua, é o mesmo processo”.

Embora o número de analfabetos absolutos esteja diminuindo, como aponta o


IBGE, outros índices, como o Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf) indicam
que aumenta o número de pessoas que não conseguem utilizar o conhecimento
da língua para se inserir nas práticas sociais de uso da leitura e da escrita.
Segundo a pedagoga, “os 14 milhões de analfabetos não são nada perto dessa
imensa margem da população”.

Educação de jovens e adultos

Para Colello, a concepção do que é ser ou não alfabetizado depende do contexto


e da realidade do país. Ela cita o exemplo do Movimento Brasileiro de
Alfabetização (Mobral), programa criado na década de 1970 para erradicação do
analfabetismo, mas cuja proposta pedagógica preocupava-se apenas com o uso
funcional da língua. Para o sociólogo da educação Marcos de Castro Peres, da
Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), programas como esse acabam
contribuindo para estigmatizar ainda mais os analfabetos. Peres lembra que o
Mobral acabou se tornando sinônimo de pessoa ignorante, atrasada e que o Brasil
Alfabetizado, atual programa do governo federal para alfabetização, também
tende ao fracasso. “Toda uma vida foi construída pela pessoa sem o uso da
leitura e da escrita e não é nada fácil mudar isso. Para os indivíduos que são
analfabetos até os 15 anos ou mais, definitivamente não é hábito ler e escrever e
é impossível se mudar o hábito de vida de alguém somente com oito meses de
curso de alfabetização”, defende.

Dados de analfabetismo por faixa etária. Taxa na população com mais de 15 anos caiu de 13,6% em 2000

para 9,6% em 2010, somando quase 14 milhões de pessoas.


Além da interrupção brusca, Peres aponta outros problemas nos programas de
alfabetização de jovens, ligados à condição de miséria social dessa parcela da
população e que dificultam sua entrada e permanência em tais programas, como
a falta de estrutura de transporte coletivo, falta de escolas no campo,
necessidade de trabalhar etc. A formação dos professores também é um fator
que preocupa. “Não são utilizados profissionais de educação para atuar como
alfabetizadores nesses programas, basta ter o ensino médio completo para tal.
Essa precarização acaba afetando o processo, comprometendo os resultados
esperados ou as metas pretendidas com sua implantação”, afirma Peres.

Sérgio Leite, da Unicamp, ressalta também o descaso nos cursos de magistério.


“São poucos os que têm em seus currículos a área de educação de adultos, que
exige uma postura pedagógica diferente, de profundo respeito”. Leite tem
pesquisado casos de professores que estão obtendo sucesso no trabalho com
jovens e adultos e destaca como fator comum entre eles a afetividade na relação
na sala de aula, a prática pedagógica preocupada com o sucesso do aluno e que
busca se adequar à sua condição e ainda a união da alfabetização com o processo
de letramento.

Fim do analfabetismo

Para Silvia Colello, da USP, erradicar o analfabetismo é uma meta válida, mas
que traz consigo outro fantasma maior ainda, o da exclusão social, ligado a
aspectos como a democratização dos bens culturais, o acesso à cultura, justiça,
moradia e trabalho. Reduzir os índices de analfabetismo até sua erradicação total
é um compromisso assumido pelo Brasil em diversas ocasiões e documentos. O
“fim” do analfabetismo em números, no entanto, pode não significar, em termos
reais, uma mudança efetiva. “O Brasil pode até cumprir essas metas de
alfabetização, mas esses números nunca vão representar a real situação da
exclusão educacional e do analfabetismo no país. Sempre por trás dos números
estão ocultas as atrocidades praticadas com a educação em relação aos seus
aspectos qualitativos”, pontua Marcos Peres, da UESC. “O qualitativo é sacrificado
em prol do quantitativo para se cumprir metas, para mostrar números aos
organismos internacionais que fornecem recursos para a melhoria da educação
em países subdesenvolvidos como o Brasil”, completa o sociólogo.

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