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Jornalismo pós-industrial: adaptação aos novos tempos.

Introdução

Transformação do jornalismo norte-americano é inevitável

Parte pesquisa e parte manifesto, o presente dossiê trata do exercício do


jornalismo e de práticas de jornalistas nos Estados Unidos. Não é, contudo,
um documento sobre o “futuro da indústria jornalística”. Primeiro, porque
boa parte desse futuro já chegou. E, segundo, porque já não há mais uma
indústria jornalística, por assim dizer.

Antigamente, havia uma. Era uma indústria que se mantinha em pé por


coisas que em geral mantêm um setor em pé: a similitude de métodos entre
um grupo relativamente pequeno e uniforme de empresas e a incapacidade
de alguém de fora desse grupo de criar um produto competitivo. Essas
condições não se cumprem mais.

Se quisesse resumir em uma sentença a última década no ecossistema


jornalístico, a frase poderia ser a seguinte: de uma hora para outra, todo
mundo passou a ter muito mais liberdade. Produtores de notícias,
anunciantes, novos atores e, sobretudo, a turma anteriormente conhecida
como audiência gozam hoje de liberdade inédita para se comunicar, de
forma restrita ou ampla, sem as velhas limitações de modelos de
radiodifusão e da imprensa escrita. Nos últimos 15 anos houve uma explosão
de técnicas e ferramentas. E, mais ainda, de premissas e expectativas. Tudo
isso lançou por terra a velha ordem.

Não há como olhar para organizações distintas como Texas Tribune,


SCOTUSblog e Front Porch Forum, ou mesmo plataformas como Facebook,
YouTube e Storify, e notar qualquer coerência. Não há como olhar para
novas experiências no jornalismo sem fins lucrativos, como o trabalho de
Andy Carvin na National Public Radio (NPR) durante a Primavera Árabe, e
acreditar que o jornalismo está seguro nas mãos de empresas voltadas ao
lucro. E não há como olhar para experiências de financiamento coletivo de
jornalismo pelo site de crowdfunding Kickstarter, ou para a cobertura de
manifestações de protesto via celular, e acreditar que só profissionais e
instituições da imprensa podem tornar a informação pública.

Muitas das mudanças discutidas na última década como parte da futura


realidade do jornalismo já ocorreram; boa parte do futuro vislumbrado para
o jornalismo já se converteu em presente (é como disse o escritor William
Gibson lá atrás: “O futuro já chegou, só não está uniformemente
distribuído”). Nossa meta, em vez de ficar tecendo conjecturas, é escrever
sobre o que já ocorreu, o que está acontecendo neste instante e que lições é
possível tirar disso tudo.

As transformações em curso no ecossistema jornalístico já tiveram o efeito


de derrubar a qualidade da cobertura jornalística nos Estados Unidos.
Estamos convencidos de que, antes de melhorar, a situação do jornalismo
em solo norte-americano irá piorar ainda mais – e, em certos lugares
(sobretudo em cidades de médio e pequeno porte, sem um jornal diário),
piorar muito. Nossa esperança é limitar o alcance, a profundidade e a
duração dessa derrocada. Como? Sugerindo saídas para a produção de um
jornalismo de utilidade pública, com a adoção de ferramentas, técnicas e
premissas nem sequer imagináveis dez anos atrás.

Também mostramos que novas possibilidades para o jornalismo exigem


novas formas de organização. Até aqui, a tendência de veículos de
comunicação tradicionais foi a de preservar tanto métodos de trabalho como
hierarquias, mesmo com o colapso de velhos modelos de negócios e a
incompatibilidade de novas oportunidades com velhos padrões. Em
entrevista após entrevista com representantes da imprensa tradicional
focados no digital, constatamos a frustração causada por velhos processos. A
adaptação a um mundo no qual o povo até então chamado de “audiência” já
não é mero leitor e telespectador, mas sim usuário e editor, vai exigir
mudanças não só em táticas, mas também na concepção que o jornalismo
tem de si. Incorporar um punhado de técnicas novas não será suficiente para
a adaptação ao novo ecossistema; para tirar proveito do acesso a indivíduos,
multidões e máquinas, também será preciso mudar radicalmente a estrutura
organizacional de veículos de comunicação (estamos cientes de que muitas
das organizações de hoje verão nessas recomendações um despautério).

Este dossiê é dirigido a diversos públicos – a veículos de comunicação


tradicionais que queiram se adaptar, a novos atores (sejam eles jornalistas
independentes, novos projetos de jornalismo ou até organizações que não
pertenciam ao ecossistema jornalístico) – e a organizações e entidades que
afetam o ecossistema da notícia, sobretudo governos e faculdades de
jornalismo, além de empresas e instituições sem fins lucrativos.

Partimos de cinco grandes convicções:

1. O jornalismo é essencial.

2. O bom jornalismo sempre foi subsidiado.

3. A internet acaba com o subsídio da publicidade.

4. A reestruturação se faz, portanto, obrigatória.

5. Há muitas oportunidades de fazer um bom trabalho de novas maneiras.


O jornalismo é essencial

O jornalismo expõe a corrupção, chama a atenção para a injustiça, cobra


políticos e empresas por promessas e obrigações assumidas. Informa
cidadãos e consumidores, ajuda a organizar a opinião pública, explica temas
complexos e esclarece divergências fundamentais. O jornalismo exerce um
papel insubstituível tanto em regimes democráticos como em economias de
mercado.

A atual crise de instituições norte-americanas de jornalismo nos convence de


duas coisas. A primeira é que não há como preservar ou restaurar o
jornalismo no formato praticado ao longo dos últimos 50 anos. E a segunda é
que é mister que busquemos, de modo conjunto, novas saídas para o
exercício de um jornalismo capaz de evitar que os Estados Unidos
descambem para a venalidade e a pura defesa de interesses pessoais.

É óbvio que nem todo jornalismo é essencial. Muito do que se produz hoje
não passa de entretenimento ou diversão. Aqui, no entanto, iremos lidar
apenas com o lado sério do jornalismo – o que alguns chamam de hard
news, accountability journalism ou o “núcleo duro da notícia”. Na crise atual,
a notícia séria é o que importa. Em vez de tentar enumerar ou definir tudo
aquilo que distingue a notícia séria da futilidade, decidimos adotar a célebre
prova dos noves de Lord Northcliffe: “Notícia é algo que alguém, em algum
lugar, não quer ver publicado. Todo o resto é publicidade”.

Isso não significa que o material produzido por veículos de comunicação


possa ser precisamente dividido em duas categorias, a de notícias sérias e a
de futilidades. Às vezes, o caderno de economia vai dar uma matéria sobre
estampas de gravatas; em outras, o caderno de moda trará uma reportagem
sobre algum negócio realizado no mundo da moda. No momento em que
escrevo, o site do New York Daily News traz um texto sobre o novo corte de
cabelo da cantora Miley Cyrus e um sobre a persistente e elevada taxa de
desemprego em Nova York.

Mesmo cientes dessa diversidade, o hard news é o que distingue o


jornalismo de outra atividade comercial qualquer. Sempre haverá público
para a cobertura de esportes, de celebridades, de jardinagem, de culinária –
mas não haveria grande impacto para o país se toda essa atividade fosse
feita por amadores ou máquinas. O que tem impacto, sim, é a cobertura de
fatos importantes e reais capazes de mudar os rumos da sociedade. A
cobertura do insistente abrigo de pedófilos no seio da Igreja Católica, da
contabilidade fraudulenta da norte-americana Enron e do escândalo
envolvendo uma operação do Departamento de Justiça norte-americano, a
Fast and Furious [operação Velozes e Furiosos, ligada ao tráfico de armas a
cartéis de drogas mexicanos] se encaixa nessa definição.

Já que narrar fatos reais é vital, o valor do jornalismo não pode ser reduzido
a outras necessidades, secundárias. Embora o jornalismo desempenhe várias
funções que se sobrepõem, nunca houve muita urgência em defini-las. Na
época em que o discurso público era escasso (ou seja, durante toda a história
até hoje), o jornalismo era simplesmente aquilo que jornalistas faziam;
jornalistas eram simplesmente gente contratada por empresários da
comunicação, que constituíam o grupo relativamente pequeno de indivíduos
com acesso aos meios para tornar público esse discurso.

Acreditamos que o papel do jornalista – como porta-voz da verdade,


formador de opinião e intérprete – não pode ser reduzido a uma peça
substituível para outro sistema social; jornalistas não são meros narradores
de fatos. Precisamos, hoje e num futuro próximo, de um exército de
profissionais que se dedique em tempo integral a relatar fatos que alguém,
em algum lugar, não deseja ver divulgados, e que não se limite apenas a
tornar disponível a informação (mercadoria pela qual somos hoje
inundados), mas que contextualize a informação de modo que chegue ao
público e nele repercuta.

Um crescente volume de informação obtida em primeira mão é fornecido


por cidadãos – muito do que sabemos sobre o desastre nuclear de
Fukushima Daiichi, no Japão, e do massacre de Pearl Roundabout, no
Bahrein, veio de indivíduos que se encontravam na cena do ocorrido. Mas
isso não significa que todo jornalista profissional vá ser substituído, nem que
possa ou deva sê-lo. Significa, isso sim, que seu papel vai mudar, que vai se
sobrepor ao do indivíduo (ao da multidão, ao da máquina) cuja presença
caracteriza o novo cenário jornalístico.

O bom jornalismo sempre foi subsidiado

A questão do subsídio à atividade jornalística vem gerando polêmica há


algum tempo. Observadores do meio jornalístico como Steve Coll, David
Swensen e Michael Schmidt, além de Michael Schudson e Len Downie, já
sugeriram a migração da imprensa norte-americana para um modelo de
subsídio mais explícito. A sugestão provocou respostas acaloradas de outros
analistas – Jeff Jarvis, Jack Shafer, Alan Mutter –, para quem somente
veículos comerciais teriam como garantir os recursos e a liberdade que a
imprensa norte-americana exigiria.
A nosso ver, é uma falsa dicotomia. Subsídios volta e meia são vistos como
sinônimo de aporte direto pelo Estado, o que levantaria óbvios e sérios
temores. Mas o subsídio, no sentido do apoio dado a uma atividade
considerada de interesse público, pode assumir várias formas. Pode ser
direto ou indireto, pode vir de fontes públicas ou privadas. Doações de
cidadãos são subsídio – tanto quanto um concedido pelo Estado.

O bom jornalismo sempre foi subsidiado; o mercado nunca foi capaz de


suprir o volume de informação que uma democracia exige. A forma mais
óbvia é o subsídio público indireto: em troca do acesso gratuito ao espectro
eletromagnético, emissoras de rádio e TV precisam (ou precisavam) montar
uma operação jornalística de credibilidade. Empresas são obrigadas a pagar
pela inserção de publicidade legal em jornais. Publicações impressas
recebem tarifas postais favoráveis.

Há desdobramentos alentadores envolvendo a cobrança direta do leitor pelo


consumo de conteúdo digital. No caso, o modelo usado é o da cobrança após
ultrapassado certo número de artigos. Esses fundos obviamente são bem-
vindos. Contudo, apenas alguns dos grandes veículos de comunicação que
adotaram o sistema conseguiram obter 5% que seja de adesão de usuários
na versão digital, e a liberação de certo número de artigos praticamente
garante que a maioria dos usuários jamais terá de pagar. O resultado é que,
embora sirva para retardar a queda no faturamento, a nova receita não
impede o declínio, e muito menos o reverte.

A maior fonte de subsídio no meio jornalístico sempre foi indireta e privada,


vinda de anunciantes. É como disse o jornalista norte-americano Henry Luce
75 anos atrás: “Se tivermos de ser subsidiados por alguém, creio que o
anunciante apresenta possibilidades extremamente interessantes”.
Há, no meio jornalístico, um punhado de publicações cujos leitores pagam
diretamente pelo trabalho da redação. Mas são uma parcela ínfima do
ecossistema jornalístico e se concentram em áreas de especialização
profissional (finanças, direito, medicina), com um punhado de casos
excepcionais, como o da revista norte-americana Ms., cuja promessa é
libertar o leitor da publicidade. A maioria dos veículos de notícias não atua
no mercado jornalístico, mas no mercado da publicidade.

O mais importante na relação entre a publicidade e o jornalismo é que não


há relação. A ligação entre anunciante e meio de comunicação não é uma
parceria – é uma operação comercial na qual o meio tem (ou tinha) a
primazia. A fonte básica do subsídio publicitário é a falta de opção; enquanto
o anunciante tiver de contar com o meio de comunicação para aparecer,
esse meio vai poder usar os fundos obtidos para bancar o jornalismo,
independentemente da preferência do anunciante. A Nine West não está
interessada em manter aberta uma sucursal em Washington. O que quer é
vender sapatos. Mas, para chegar a potenciais consumidores, a Nine West
precisa pagar a uma organização que se interessa, sim, com o destino da tal
sucursal em Washington.

Além da publicidade, há muitas outras formas de subsídio privado. Durante


boa parte da história norte-americana, certos empresários aceitaram
publicar jornais e revistas mesmo com prejuízo. Em troca, buscavam
prestígio ou influência. Tanto a revista The New Yorker como o jornal New
York Post operam no vermelho. Esses veículos sobrevivem no formato atual
porque seus abastados proprietários decidiram que não deveriam deixá-los
totalmente expostos às forças do mercado. Na prática, uma publicação
dessas é uma entidade sem fins lucrativos.
Na mesma linha, o controle de um jornal por uma família era uma proteção
contra o imperativo do lucro imediatista, em parte porque o empresário em
geral se dispunha a receber alguma remuneração na forma de prestígio
(salário à parte, era bom ser o dono de um jornal local) e em parte porque o
controle familiar significava administrar de olho na viabilidade a longo prazo,
não na extração imediata de receita, outra forma de estar no mercado mas
sem se submeter a ele.

Embora a recente discussão do subsídio ao jornalismo tenha se concentrado


no aporte público, e não no privado, o fato é que distintas modalidades de
subsídio são bastante emaranhadas. Todo ano, General Motors e Diageo
gastam somas consideráveis em spots de 30 segundos na TV ou anúncios de
página inteira por estarem legalmente obrigadas a fazer publicidade da
marca. A GM até que gostaria de vender diretamente da fábrica, como faz a
Dell, e a Diageo adoraria vender a um clicar do mouse, como faz a grife de
chocolates Ghirardelli em seu site. Só que, em seu caso, leis estaduais
proíbem o uso do marketing direto. A publicidade de carros, caminhões,
cerveja e destilados é sustentada por um subsídio, imposto pelo governo,
que impede certas empresas de investir em outras alternativas.

O público norte-americano nunca pagou integralmente pela cobertura


jornalística feita em seu nome. A atividade sempre foi bancada por outras
fontes, não por leitores, ouvintes ou telespectadores. Neste dossiê, não
vamos explorar de onde poderia ou deveria vir esse subsídio no futuro, e
nem mesmo como deveria ser direcionado. Essa receita pode vir de
anunciantes, patrocinadores, usuários, doadores, mecenas ou filantropos; a
redução de custo pode se dar com parcerias, terceirização, crowdsourcing ou
automação. Não há uma solução universal: qualquer saída para ter mais
receita do que custo é uma boa saída, seja a organização grande ou pequena,
de nicho ou generalista, voltada ou não ao lucro. O que está patente é que o
modelo há muito adotado pela maioria dos meios de comunicação – uma
entidade comercial que subsidia a redação com receita da publicidade – está
em risco.

A internet acaba com o subsídio da publicidade

O foco deste relatório é o modo como jornalistas exercem sua função, e não
práticas comerciais de instituições que abrigam esses profissionais. Há,
contudo, um ponto crucial de interseção de práticas comerciais e práticas
jornalísticas: o apoio da publicidade, principal fonte de subsídio do
jornalismo norte-americano desde a década de 1830, está desaparecendo
(no caso de jornais, grande parte dessa receita já evaporou; e há mais má
notícia a caminho para jornais, revistas e emissoras de rádio e TV).

Anunciantes nunca tiveram interesse no patrocínio propriamente dito de


meios de comunicação; o elo entre receita publicitária e salário de jornalistas
sempre foi uma função da capacidade do veículo de comunicação de atrair
essa receita. Até deu certo no século 20, quando o poder de barganha no
mercado de mídia estava nas mãos de quem vendia, no caso os meios. Hoje,
esse modelo já não serve.

Embora tenha começado para valer com a chegada da internet comercial na


década de 1990, a ruptura foi camuflada durante uma década pelo aumento
da receita publicitária de veículos de comunicação tradicionais e pelo estouro
da bolha pontocom, o que levou muitos veículos a crerem que a ameaça da
internet fora superestimada. Embora a receita trazida pela publicidade
tradicional tenha começado a cair em 2006, a transformação do mercado
publicitário subjacente já estava, àquela altura, bastante avançada. A perda
da receita era um indicador tardio de um cenário já transformado.

Meios de comunicação tradicionais não vendem conteúdo como se fosse um


produto. Seu negócio é a prestação de serviços, com a integração vertical de
conteúdo, reprodução e distribuição. Uma emissora de TV também mantém
recursos para a difusão de conteúdo via satélite ou cabo; uma revista opera
ou contrata serviços tanto de impressão como de distribuição do material.
Na integração vertical, o custo de capital é elevado, reduzindo a concorrência
e, às vezes, criando um gargalo no qual o público poderia ser induzido a
pagar.

A internet acaba com essa integração vertical, pois todo mundo paga pela
infraestrutura – que é, então, usada por todos. O público segue mais do que
disposto a pagar pela reprodução e pela distribuição, embora hoje paguemos
à Dell por computadores, à Canon por impressoras e à operadora Verizon
pela entrega, em vez de pagar à Conde Nast, à Hearst ou à Tribune Co. por
um pacote com todos esses serviços.

Quando queremos ler algo no papel, é cada vez mais comum imprimirmos o
material em uma pequena impressora a poucos passos de nós, quando bem
entendermos, em vez de pagar alguém situado a quilômetros de distância
para imprimir algo que vai chegar com um dia de atraso. Quando queremos
ouvir algo ou assistir a um vídeo, usamos cada vez mais a infraestrutura
genérica da internet, e não a infraestrutura especializada (e financiada) de
torres de transmissão e redes de cabo.

Meios de comunicação também costumam promover uma integração


horizontal, juntando num mesmo saco notícias relevantes e horóscopo,
colunas sociais, receitas e esportes. No passado, quem sintonizava um
determinado canal ou comprava uma publicação para ler um artigo
específico seguia vendo ou lendo o que mais houvesse nesse pacote por pura
inércia. Embora o fenômeno volta e meia fosse chamado de fidelidade, na
maioria das vezes era pura preguiça – ler outro artigo bom o bastante no
mesmo jornal era mais fácil e cômodo do que buscar uma excelente
reportagem em outra publicação.

A internet acaba com a integração horizontal. Antes dela, reunir uma dezena
de textos bons – ainda que não excelentes – num pacote só costumava ser o
suficiente para impedir que alguém saísse à cata dos dez melhores textos em
uma dezena de publicações distintas. Num mundo de links e feeds, no
entanto, em geral é mais fácil achar a próxima coisa a ser lida, vista ou
ouvida por indicação de amigos do que pela fidelidade inabalável a uma
determinada publicação. Hoje, a preguiça favorece a dispersão; em muitos
sites jornalísticos de interesse geral, a categoria mais comum de leitor é
aquela formada por gente que confere um único artigo por mês.

Como se não bastasse, a competição está mais acirrada. Como observou o


jornalista Nicholas Carr em 2009, uma busca no Google por informações
sobre o resgate pela Marinha norte-americana do capitão de um cargueiro
de bandeira dos Estados Unidos sequestrado por piratas na Somália rendeu
11.264 fontes possíveis de matérias sobre o episódio – a maioria meramente
reproduzindo um mesmo conteúdo sindicalizado. A internet derruba o valor
de publicar um mesmo artigo de agências de notícias em St. Louis e em San
Luis Obispo.

Além das mudanças trazidas pela tecnologia, a popularização de redes sociais


fez surgir uma nova categoria de anúncios que, embora vinculada à mídia,
não subsidia a criação de conteúdo. Na década de 1990, muitos sites tinham
fóruns de discussão que geravam enorme interesse entre internautas – mas
pouca receita, já que anunciantes temiam que o material produzido por
usuários não fosse seguro para sua marca.

O MySpace foi o primeiro grande site a transpor esse obstáculo. Assim como
na revolução dos junk bonds na década de 1980, o MySpace usou o
argumento de que um inventário de anúncios de baixa qualidade poderia ser
um bom investimento para o anunciante se agregado em volume suficiente e
vendido a um valor baixo o bastante. O discurso feito era basicamente o
seguinte: “Dependendo do preço pago, os page views do MySpace podem
ter valor para sua empresa mesmo com taxas de clique [click-through rates]
minúsculas”.

Com isso, abriram-se as comportas. Quando um número satisfatório de


empresas decidiu que redes sociais eram um meio aceitável, o estoque
disponível de anúncios passou a ser função do (ilimitado) interesse das
pessoas umas nas outras, e não da capacidade do veículo de comunicação de
criar conteúdo ou manter a audiência. Quando a demanda gera oferta a um
custo pouco acima de zero, o efeito nos preços é previsível.

Os últimos 15 anos também testemunharam o surgimento da publicidade


como um serviço independente. A perda de anúncios classificados para
concorrentes superiores como Craigslist, HotJobs e OkCupid já foi
exaustivamente dissecada. Menos discutida é a popularização de indicações
de usuário para usuário em ambientes comerciais, como o da Salesforce e o
da Amazon. Uma recomendação dessas assume parte das funções da
publicidade B2B (empresa a empresa) ou B2C (empresa a consumidor), mas
sem nenhum subsídio do conteúdo (ou nem mesmo o pagamento a qualquer
ator que se assemelhe a um veículo de comunicação). E um serviço desses dá
pouco ou nenhum subsídio a meios de comunicação. Durante 15 meses, a
Amazon testou comerciais de TV – mas desistiu da ideia para a maioria de
seus produtos, pois concluiu que um anúncio desses teria menos impacto nas
vendas do que gastar a mesma verba para oferecer frete grátis.

Até veículos que entendem que a receita perdida não será reposta, e que a
receita trazida pelo impresso (e a produção) vai continuar caindo, seguem
com esperança de que a mudança no subsídio publicitário possa, de algum
modo, ser revertida.

O fato de que a internet, mesmo sendo um meio visualmente flexível, tenha


se adaptado mais depressa ao marketing direto do que à publicidade
convencional foi uma decepção para veículos de comunicação, que sempre
tiveram um ganho desproporcional com a velha publicidade. Na última
década, volta e meia se afirmou que o marketing direto como forma de
publicidade na internet seria só uma fase – e que alguém iria reinventar a
publicidade convencional no meio digital. É, basicamente, afirmar que
anunciantes vão começar a investir cifras volumosas em anúncios gráficos
com animação e em transmissão de vídeo com pouca expectativa de retorno
além da certeza de que a marca terá conquistado mais visibilidade.

Parece pouco provável. A migração da lógica da propaganda convencional


para a lógica do marketing direto é só um sintoma da mudança maior
promovida pela internet, que representa a vitória, em todos os lugares, da
mensuração. A publicidade tradicional era rentável porque ninguém sabia ao
certo como funcionava, de modo que tampouco se sabia como otimizá-la.
Produzir um comercial de TV era mais como rodar um pequenino filme para
o cinema do que conduzir um grande experimento psicológico.

Hoje, na internet, o anunciante espera, cada vez mais, que até a publicidade
tradicional tenha resultados mensuráveis – e a aposta na publicidade
mensurável derruba as altas margens da fase áurea. A célebre dúvida do
criador do conceito da loja de departamentos, o empresário norte-
americano John Wanamaker – a de não saber exatamente qual metade da
verba de publicidade era dinheiro jogado fora –, explica por que a
mensurabilidade na publicidade põe ainda mais pressão sobre a receita.

Outra fonte de esperança para o restabelecimento da receita publicitária era


a especificidade maior que a internet permitiria. (“É possível dirigir o anúncio
exclusivamente a advogados tributaristas no Estado de Montana!”) Todo
mundo achava que essa segmentação precisa justificaria a cobrança de
preços mais altos pela publicidade, pelo menos em certos sites; uma
segmentação melhor traria melhores resultados, o que faria compensar o
custo maior.

Só que a migração para a publicidade de baixo custo com resultados


mensuráveis também derruba boa parte da lógica da segmentação. Vejamos
um exemplo simplificado: atingir mil pessoas com publicidade online não
segmentada custa cerca de US$ 0,60. Um espaço publicitário que custe US$
12 por mil visualizações (uma estimativa muito discutida em 2010 para
certos sites de nicho) pode até ser mais eficiente em razão da segmentação,
mas para fazer sentido do ponto de vista econômico a publicidade dirigida
teria de ser 2.000% mais eficiente. Se for menos que isso, a relação custo-
benefício do estoque de baixa qualidade é melhor.

Agora que redes sociais já exibem anúncios, o extremo da curva de custos


que abriga esse inventário inferior é realmente baratíssimo, o suficiente para
exercer constante pressão sobre o preço superior de anúncios segmentados.
O que uma empresa quer não é chegar ao público com seus anúncios. O que
a empresa quer é vender o que faz. A capacidade de entender quem
realmente compra seus produtos ou serviços online significa que, hoje,
muitos anunciantes podem arbitrar anúncios caros e baratos como bem
entenderem.

Embora ainda possa haver uma fonte desconhecida de receita publicitária,


para que a saúde do jornalismo bancado por publicidade fosse restituída, o
acesso a essa pedra filosofal teria de ser exclusivo de veículos de
comunicação – e não de redes sociais ou sites só de publicidade. E, para
justificar o retorno ao custo elevado lá de trás, essa fonte teria de ser muito
mais eficaz do que qualquer outro método de publicidade atual. E, de
quebra, gerar receitas imunes à pressão que a concorrência em larga escala
exerce sobre preços.

Partindo de evidências atuais, isso tudo parece improvável. O poder de


meios de comunicação sobre anunciantes está evaporando; desde a chegada
da web, houve uma grande migração, de meios para anunciantes, do valor
líquido de cada dólar investido em publicidade. Além disso, há mais sinais
indicando uma intensificação da tendência do que sua reversão. Até veículos
dispostos a apostar todas as fichas nessa promessa de salvação deveriam
traçar um plano B para seguir produzindo um jornalismo de qualidade caso o
subsídio da publicidade continue a cair.

A reestruturação é obrigatória

A virada basicamente negativa na sorte de meios de comunicação


tradicionais nos leva a duas conclusões: o custo de produção de notícias
precisa cair e essa redução de custo deve ser acompanhada de uma
reestruturação de modelos e processos organizacionais.
Vários fatores sugerem que a receita publicitária seguirá caindo nos
próximos anos – e pouca coisa indica que subirá. Embora a fase mais aguda
de queda da receita tenha chegado ao fim, o fato é que no momento em que
redigimos este dossiê estamos no 23º trimestre consecutivo de declínio
anual das receitas. Os últimos três anos de queda ocorreram num período de
crescimento econômico; além do efeito cumulativo da perda de receita, a
incapacidade de elevá-la mesmo com a economia crescendo sugere que
velhas empresas de comunicação sofrerão um baque descomunal quando
tiver início a próxima recessão, o que certamente ocorrerá dentro de alguns
anos.

A receita por leitor trazida pela publicidade online nunca chegou nem perto
da tradicional – e no caso de plataformas móveis é ainda pior. Enquanto isso,
à medida que vai avançando, a publicidade no meio digital vem passando
totalmente ao largo de veículos de comunicação tradicionais. Já fontes
sonhadas de receita direta – paywalls, micropagamentos, aplicativos móveis,
assinaturas digitais – não surtiram efeito ou ficaram aquém das expectativas.

Dentre todas essas soluções, a assinatura digital nos moldes praticados por
jornais como Los Angeles Times, Minneapolis Star-Tribune e The New York
Times foi a que melhor se saiu. E, mesmo assim, o efeito líquido dessas
assinaturas não anulou as perdas no impresso. De resto, já que a assinatura
digital em geral é concebida para aumentar a circulação em papel, seu efeito
no curto prazo é aumentar ainda mais a dependência da receita oriunda do
impresso, apesar da deterioração no longo prazo do papel.

A nosso ver, o arrastado colapso da receita publicitária tradicional não será


compensado por outras plataformas num período de três a cinco anos. A
próxima fase da existência da grande maioria dos meios de comunicação vai
ser parecida com a última. Haverá uma redução obrigatória de custo, embora
de forma menos urgente (e, esperamos, mais estratégica), levando em conta
novas técnicas de cobertura jornalística e novos modelos organizacionais.

Na década de 1980, muita tinta foi gasta no meio acadêmico para discutir o
“paradoxo da produtividade”: os fracos resultados produzidos por duas
décadas de pesado investimento da iniciativa privada em tecnologia da
informação. Um punhado de empresas, contudo, registrou fortes ganhos de
produtividade em decorrência do investimento em TI lá atrás. Essas
empresas de sucesso não se limitaram a informatizar processos correntes. O
que fizeram foi alterar esses processos à medida que incorporavam
computadores às operações. Viraram outro tipo de organização. Já aquelas
que simplesmente instalaram computadores sem mexer em processos que já
existiam não registraram nenhum avanço evidente em rendimento ou
eficiência.

A nosso ver, há uma dinâmica similar nos dias de hoje – dinâmica que
resolvemos chamar de jornalismo pós-industrial, termo originalmente
empregado em 2001 pelo jornalista Doc Searls para sugerir um “jornalismo
que já não é organizado segundo as regras da proximidade do maquinário de
produção” (lá atrás, a lógica da redação não era administrativa, mas prática:
o pessoal da redação, que produzia o texto, tinha de estar perto das
máquinas que reproduziriam esse texto, em geral instaladas no subsolo).

Observadores do meio jornalístico, como David Simon, já disseram,


acertadamente, que “fazer mais com menos” é o mantra de todo veículo que
teve de demitir uma dezena de repórteres e editores. Contudo, já que nessa
equação a parte do “com menos” é obrigatória, é preciso tentar fazer com
que a parte do “fazer mais” funcione, o que significa menos tergiversação
sobre cortes de pessoal e mais reestruturação, a fim de tirar partido de novas
formas de fazer jornalismo.
O jornalismo pós-industrial parte do princípio de que instituições atuais irão
perder receita e participação de mercado e que, se quiserem manter ou
mesmo aumentar sua relevância, terão de explorar novos métodos de
trabalho e processos viabilizados pelas mídias digitais.

Nessa reestruturação, todo aspecto organizacional da produção de notícias


deverá ser repensado. Será preciso ter mais abertura a parcerias, um maior
aproveitamento de dados de caráter público; um maior recurso a indivíduos,
multidões e máquinas para a produção de informação em estado bruto; e até
um uso maior de máquinas para produzir parte do produto final.

Serão mudanças sofridas, pois irão afetar tanto a rotina diária como a
autoimagem de todos os envolvidos na produção e distribuição de notícias.
Sem isso, no entanto, a redução dos fundos disponíveis para a produção do
jornalismo fará com que no futuro a única opção seja fazer menos com
menos. Não há, na crise atual, solução capaz de preservar o velho modelo.

Há muitas oportunidades de fazer um bom trabalho de novas maneiras

Se concluirmos que o jornalismo é essencial, e que não há solução para a


crise, a única maneira de garantir a sobrevivência do jornalismo de que a
sociedade precisa no cenário atual é explorar novas possibilidades.

Graças a fenômenos como o movimento da transparência e a disseminação


de redes de detecção, um jornalista hoje em dia tem acesso a muito mais
informação do que antes. Tem novas ferramentas para transmitir a
informação de forma visual e interativa. Tem muito mais maneiras de fazer
seu trabalho chegar ao público – a ubiquidade da busca, a popularização de
fontes constantemente atualizadas (o Facebook com sua linha do tempo, o
Twitter em sua totalidade), o wiki como formato para a inserção de novas
informações. Tudo isso faz o público ter muito mais meios de obter e
processar notícias.

Com a superdistribuição – a propagação de conteúdo por redes sociais –, um


artigo importante de uma publicação minúscula pode chegar a um público
enorme sem custo adicional. Agora que muitos levam no bolso câmeras de
vídeo conectadas a redes, uma quantidade cada vez maior de informação
visual vem dos próprios cidadãos.

Com a proliferação de novas possibilidades de apuração, interpretação e


distribuição de informações, é possível ver organizações tirando partido de
métodos de trabalho que nem sequer existiam dez anos atrás. É o que faz a
Narrative Science ao automatizar a produção de notícias extraídas de mares
de dados. Ou a ProPublica ao disponibilizar dados e modelos para a
reprodução de notícias, como na iniciativa Dollars for Docs. Também há
quem vasculhe dados existentes para descobrir fatos novos, como fez o
caçador independente de fraudes financeiras Harry Markopolos no caso do
investidor norte-americano Bernard Madoff, que ocasionou perdas
bilionárias a instituições bancárias, grupos de investimentos, fundações,
entre outros (uma das grandes oportunidades perdidas do jornalismo norte-
americano na última década).

O que une gente digitalmente empreendedora de organizações tradicionais –


Anjali Mullany, ex-Daily News; John Keefe, da rádio WNYC; Gabriel Dance, da
sucursal do The Guardian nos Estados Unidos – e meios que já nasceram
digitais, como WyoFile, Technically Philly e Poligraft, é o fato de organizarem
suas premissas e processos em torno daquilo que agora é possível, como
incluir interatividade em gráficos, dar ao público acesso direto a bancos de
dados, solicitar imagens e informação ao público ou distribuir uma matéria
por redes sociais. Não há como saber se o Poligraft (aliás, nem se o Daily
News) ainda existirá daqui a dez anos, mas a experimentação em curso
nessas organizações é um exemplo do bom uso de novas ferramentas na
busca de objetivos jornalísticos.

O aspecto mais animador e transformador do atual cenário jornalístico é


poder explorar novas formas de colaboração, novas ferramentas de análise e
fontes de dados e novas maneiras de comunicar o que é de interesse do
público. A maioria de nossas recomendações ao longo do presente dossiê
terá a ver com essas oportunidades.

O que é “público”, o que é “audiência” – e o caso especial do New York


Times

Antes de entrarmos no relatório propriamente dito, é preciso um


esclarecimento sobre duas palavrinhas controversas – público e audiência. E,
ainda, discutir o caso especial do New York Times, que a nosso ver não serve
como símbolo do estado geral do jornalismo norte-americano.

Mas, primeiro, o público. O conceito de “público” como grupo de pessoas


para o qual se produzem notícias é o “termo divino” do jornalismo, como diz
James Carey:

…é o termo final, o termo sem o qual nada conta; por ele,


jornalistas justificam seus atos, defendem o ofício, sustentam
sua tese em termos do direito do público à informação, de seu
papel como representantes do público, de sua capacidade de
falar ao público e pelo público.

O público é o grupo cujos interesses deveriam ser servidos pelo ecossistema


jornalístico. E é um conceito de dificílima definição.

A ideia de “público” ocupa um lugar central no pensamento norte-americano


sobre o jornalismo desde uma célebre resposta de John Dewey a Walter
Lippmann na década de 1920. Lippmann duvidava de que, numa sociedade
de massas com complexas engrenagens econômicas e técnicas, o indivíduo
comum pudesse se tornar o cidadão informado que o grosso da teoria
democrática preconizava. Em resposta, Dewey alegou a existência de vários
públicos sobrepostos que poderiam ser “ativados” com o surgimento de
questões específicas. A ideia de meios de comunicação voltados a públicos
distintos, porém sobrepostos, até hoje é fundamental para a lógica
organizacional deles.

Desde o surgimento dessas duas visões da comunicação de massas e da


sociedade de massas, a conceitualização da esfera pública virou um
elemento central da obra de filósofos como Jurgen Habermas, Nancy Fraser,
James Carey, Michael Schudson e Yochai Benkler – o que enriqueceu, e
complicou, qualquer descrição de uma mídia que sirva a um (ou ao) público.

Vamos adotar a estratégia do covarde: a de expor – mas não solucionar – o


dilema. Não temos a intenção de dar uma definição mais rigorosa do que a
seguinte:

O público é o grupo de consumidores ou cidadãos que tem


interesse em forças que exercem influência sobre sua vida e que
busca alguém para monitorar tais forças e mantê-lo informado,
para que possa agir com base nessa informação.

É uma definição insatisfatória, prenhe de interrogações, mas ao menos


respeita a barafunda de opiniões sobre aquilo que realmente constitui um
“público”.

O termo “audiência” é igualmente problemático. Quando o mundo da


comunicação estava claramente dividido em meios (impresso, radiodifusão)
e comunicação (telégrafo, telefone), o conceito de audiência era igualmente
claro: significava a massa de indivíduos que recebia conteúdo produzido e
distribuído por meios. Filmes, música, jornais, livros – tudo isso tinha
audiências claras.

Um dos efeitos mais desnorteantes da internet foi combinar modelos de


meios e de comunicação num único canal. Quando alguém no Twitter
compartilha uma matéria com um grupinho de amigos, a impressão é a do
velho papo informal na sala do cafezinho. Quando essa mesma pessoa divide
o mesmo artigo com outras duas mil pessoas, a impressão é a de que está
agindo como um meio de difusão, ainda que nos dois casos a ferramenta e a
ação tenham sido as mesmas. Além disso, cada destinatário desses pode
fazer o conteúdo circular ainda mais. A posição privilegiada da fonte original
do conteúdo diminuiu drasticamente.

Ao constatar que no mundo atual membros da audiência tinham se tornado


mais do que meros recipientes da informação, o acadêmico Jay Rosen, da
New York University, cunhou o termo “The People Formerly Known as the
Audience” – algo como “a turma antes conhecida por audiência” – para
descrever de que maneira grupos até então passivos de consumidores
tinham se convertido em criadores, editores, juízes e veículos da informação.
Neste dossiê, adotamos a visão que Rosen tem dessa transformação; mas
não usamos o termo (nem a sigla em inglês TPFKATA), que é rebuscado
demais.

Ao longo do dossiê iremos, portanto, falar de “audiência”. Tenha em mente


que, com isso, nos referimos à turma antes conhecida por audiência – gente
hoje dotada de um grau inédito de poder de comunicação.

Por último, uma palavrinha sobre a razão para não nos atermos muito à
situação do New York Times. Uma bela parte de tudo o que se escreveu
sobre a sorte do jornalismo norte-americano na última década girou em
torno do destino do jornal nova-iorquino. A nosso ver, essa atenção foi
contraproducente.

No decorrer da última geração, o New York Times deixou de ser um


excelente jornal diário que concorria com vários outros de igual calibre e
virou uma instituição cultural de importância única em escala mundial
(paralelamente, aqueles outros jornais – The Washington Post, Chicago
Tribune, Los Angeles Times, Miami Herald – encolhiam tanto em termos de
cobertura como de ambição). Com isso, o New York Times ficou numa
categoria só dele. Logo, qualquer frase que comece com “Peguemos o
exemplo do New York Times…” dificilmente irá explicar ou descrever muito o
resto do setor.

A redação do New York Times é fonte de muitos experimentos interessantes


– na visualização de dados, em parcerias, na integração de blogs. Fomos falar
com muitos de nossos amigos e colegas ali dentro para tentar aprender com
essas experiências e, com base nelas, dar sugestões a outras organizações
jornalísticas. Só que, por o jornal estar numa categoria só dele, decisões que
sua gestão pode tomar, e o resultado dessas escolhas, não representam nem
preveem a realidade da maioria dos demais veículos de comunicação, seja
qual for seu porte ou tempo de vida. Logo, passaremos relativamente pouco
tempo discutindo seu destino. Embora sirva de inspiração para meios de
comunicação mundo afora, o jornal é menos útil como modelo ou
termômetro para outras instituições.

Organização

Este dossiê foi redigido com diversos públicos em mente: novas empresas de
mídia, organizações tradicionais tentando se adaptar, faculdades de
jornalismo e entidades que dão apoio ou forma ao ecossistema, como o
Pulitzer Prize Board e o governo norte-americano.

A esta introdução se seguem três grandes seções: Jornalistas, Instituições e


Ecossistema.

Partimos indagando o que cada jornalista pode e deve fazer hoje, já que seu
trabalho é o mais importante – e já que a obsessão com a sobrevivência de
instituições nos últimos anos ocultou o óbvio ululante: a importância de
instituições reside no fato de que permitem o trabalho de jornalistas, e não o
contrário.

Em seguida, perguntamos o que uma instituição pode fazer para apoiar o


trabalho de jornalistas. Aqui, não usamos o termo “instituição” no sentido
coloquial de “meio de comunicação tradicional”, mas sim com a significação
sociológica de “um conjunto de pessoas e bens com padrões relativamente
estáveis de comportamento”. Nessa acepção, o Huffington Post é uma
instituição tanto quanto a Harper’s. Estamos interessados tanto na
institucionalização de novas organizações de notícias quanto na adaptação
de velhas instituições à nova realidade.

Por último, analisamos o ecossistema jornalístico, que nesse caso significa


todo o aspecto da produção de notícias que não está sob controle direto de
uma instituição. O ecossistema atual tem novos recursos, como uma
explosão de dados digitais e de capacidade de processamento. Traz, ainda,
novas oportunidades, como a capacidade de criação de parcerias e
consórcios de baixo custo. Esse ecossistema também abarca forças que
afetam organizações jornalísticas – de premissas e apoios (ou obstáculos)
criados por faculdades, empresas e o poder público.

Em nossa breve conclusão, usamos várias dessas forças atuais para traçar um
cenário para o fim da presente década e descrevemos quais, a nosso ver,
seriam algumas das principais características do cenário jornalístico em 2020.

Nem de longe imaginamos que alguma organização possa seguir todas as


recomendações aqui feitas, ou no mínimo a maioria delas, pois são coisas
muito diversas, voltadas a atores de natureza muito distinta. Tampouco
acreditamos que o que sugerimos aqui seja uma direção estratégica acabada.
Vivemos nitidamente numa era na qual é mais fácil saber o que não funciona
do que o que funciona, e na qual teorias e práticas daquilo que
costumávamos chamar de indústria jornalística estão abrindo espaço a uma
constelação muito mais diversa de entidades do que qualquer coisa que
tenhamos testemunhado no século 20.

Acreditamos, sim, (ou, no mínimo, esperamos) é que as recomendações a


seguir sejam úteis para organizações que não só queiram evitar o pior do
anacronismo entre processos tradicionais e oportunidades atuais, mas
também tirar partido das possibilidades que hoje se abrem.
https://www.observatoriodaimprensa.com.br/imprensa-em-questao/adaptacao-aos-
novos-tempos/

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