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LIBERDADE DE IMPRENSA E

LIBERDADE DE EMPRESA[1]

Venício A. de Lima
Professor Titular (aposentado) e Pesquisador Senior do Núcleo de Estudos
Sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília – UNB.

Em decisão tomada na segunda-feira (22/8/2005), o ministro Celso de Mello,


do Supremo Tribunal Federal, arquivou o pedido (Petição 3486-4) do advogado Celso
Marques Araújo para que fosse instaurado procedimento penal contra os jornalistas
Marcelo Carneiro e Diogo Mainardi, da revista Veja, por matérias publicadas na sua
edição nº 1916 (de 3/8/2005).

Desde então, a sentença tem sido saudada pela grande imprensa como "aula
de liberdade de expressão", "admirável", "impecável", "exemplar" e "parâmetro para o
Supremo no julgamento de novas ações criminais contra jornalistas". Os editoriais
trazem títulos como "Decisão histórica" (Veja), "Voto pró-liberdade" (O Globo) e
"Vitória da imprensa" (O Estado de S.Paulo).

Independente do seu mérito, no entanto, a decisão recoloca para os


observadores da mídia – sobretudo para os não advogados, leigos como eu próprio –
uma questão fundamental. Trata-se de esclarecer qual a relação que existe entre a
liberdade de expressão, referida ao indivíduo, e a liberdade de imprensa, referida às
instituições e empresas de mídia que disputam o mercado das chamadas indústrias de
comunicação.

Em outras palavras: a liberdade que você, leitor, tem de expressar seu ponto
de vista publicamente guarda alguma equivalência com a liberdade (de imprensa) que
tem um grupo privado multimídia como, por exemplo, a Editora Abril?

Atores poderosos

Ao longo de sua decisão, o ministro afirma que "a liberdade de imprensa,


enquanto projeção da liberdade de manifestação de pensamento e de comunicação,
reveste-se de conteúdo abrangente, por compreender, dentre outras prerrogativas
relevantes que lhe são inerentes, (a) o direito de informar, (b) o direito de buscar a
informação, (c) o direito de opinar e (d) o direito de criticar".

A partir dessa definição, o ministro usa indistintamente em seu argumento as


expressões "liberdade de imprensa"; "crítica jornalística"; "crítica que os meios de
comunicação social dirigem às pessoas públicas"; "liberdade de informação";
"liberdade de expressão e de comunicação de idéias e de pensamento"; "direito de
pensar, falar e escrever livremente, sem censura, sem restrições ou sem interferência
governamental"; "conduta do jornal e opiniões jornalísticas".

Dada a máxima vênia, pondero que as transformações históricas que envolvem


a "imprensa" nos últimos quatro séculos tornaram extremamente questionável o
argumento de que a liberdade de imprensa seja uma "projeção" da liberdade de
expressão.

Ambas as liberdades têm suas histórias vinculadas à chamada liberdade


negativa (negative freedom), isto é, à liberdade de indivíduos ou grupos de indivíduos
de expressar suas opiniões sem interferência externa. Em sua origem, ambas se
referiam à ausência de restrições exercidas pelo poder do Estado absolutista,
autoritário, não-democrático.

Muita coisa mudou, porém, desde os tempos em que os indivíduos se reuniam


face-a-face nas suas aldeias e pequenas comunidades para discutir e decidir sobre
seus problemas comuns e em que liberdade de "imprensa" (press) significava o direito
individual de imprimir.

O desenvolvimento tecnológico e a conformação dos sistemas econômicos


fizeram com que as sociedades se tornassem muito mais complexas e grande parte
da comunicação humana fosse, aos poucos, sendo intermediada por tecnologias e
instituições ou empresas privadas que estão longe de ser meros condutores através
dos quais a informação circula livremente. Hoje, as empresas de mídia se constituem,
elas próprias, em importantes e poderosos atores, tanto econômicos quanto políticos,
mas sobretudo atores determinantes na construção da opinião pública em todo o
mundo.

"Direito natural"

Não é segredo para ninguém que a indústria das comunicações, apesar de


crises financeiras localizadas, transformou-se num dos principais negócios das últimas
décadas, e exemplo de concentração da propriedade no mundo globalizado. Reduzida
a alguns megagrupos privados, tendem cada vez mais a controlar o que vemos,
ouvimos e lemos. Basta olhar ao redor: uns poucos grupos familiares-empresariais,
alguns associados a conglomerados multinacionais, praticamente controlam todo o
fluxo das comunicações no Brasil.

Apesar de estarmos no século 21, diante de uma realidade radicalmente


diversa daquela em que viveram os que primeiro teorizaram sobre a liberdade de
expressão e a liberdade de "imprensa" (press), os grandes grupos de mídia brasileira
continuam a evocar os clássicos liberais em defesa de suas posições e contra tudo o
que consideram ameaçar os seus interesses privados.

Um exemplo: quando se discutia no país um pré-anteprojeto de lei que criaria a


Agência Nacional de Cinema e Audiovisual (Ancinav), a própria revista Veja (edição
1872, de 22/9/2004) publicou matéria sob o título "Pequeno dicionário das (re)criações
políticas", anunciando a intenção de "contribuir para a exatidão do uso do vernáculo,
tão vilipendiado no debate político".

Neste "pequeno dicionário" de apenas seis verbetes – Gestapo, Fascista,


Liberdade de Expressão, Democracia, Modernidade e Stalinismo –, a descrição do "o
que é" é contraposta a um "novo significado" que estaria sendo introduzido no debate
político brasileiro.

O significado original de "liberdade de expressão" é recuperado em John Milton


(1608-1674) e considerado "sempre um direito natural" seguido de um comentário que
"estende", sem mais, a liberdade de expressão aos meios de comunicação. Escreve a
revista:

2
"O cerceamento da liberdade de expressão é fato comum, especialmente nos
regimes totalitários do século XX, como o comunista e o nazista. Goebbels defendia o
controle dos meios de comunicação".

Na parte do verbete que descreve o "novo significado" se lê: "No Brasil


moderno, a ‘liberdade de expressão’ deixou de ser um direito natural e absoluto,
passando a ser encarada como algo que – na avaliação de ministros do governo e de
tribunais superiores [sic] – ‘é relativo’ ou exige ‘precondições para ser exercido’".

Ora, nem mesmo na Inglaterra de John Milton a liberdade de expressão – e a


liberdade de imprensa/imprimir (press) – era considerada um direito absoluto. Aos
católicos, por exemplo, esse direito era negado.

Por outro lado, faz tempo que a justificativa para a liberdade de imprensa não é
mais a idéia miltoniana de um direito natural (individualista) originado em Deus ou na
Natureza. J. Stuart Mill, no século 19, já se valia da justificativa utilitarista. E depois do
relatório final da Hutchins Commission (1947), nos Estados Unidos, a justificativa
passou a ser o compromisso moral defendido por W. E. Hocking (1873-1966). Voltado
para o bem comum, é ele que fundamenta a teoria da responsabilidade social da
imprensa.

Reflexão crítica

Dentro da realidade histórica globalizada do nosso tempo, a censura foi em


parte privatizada e a origem do cerceamento da liberdade de expressão não pode
mais ser atribuída somente ao Estado. Muitas vezes ela tem sua origem no poder
econômico privado ou é autocensura.

Em resumo: liberdade de expressão e liberdade de imprensa são liberdades


distintas. Já eram distintas no século 17 de John Milton, que defendia o direito
individual de impressão (press) sem a necessidade de uma licença prévia da igreja e
do Estado. Com muito mais razão, o são hoje quando liberdade de imprensa não se
refere mais à liberdade individual de imprimir, mas sim à liberdade de empresas cujos
principais objetivos são conferir lucratividade aos seus controladores e viabilizar sua
própria permanência no mercado.

Neste contexto, é com uma razoável dose de desânimo que tomamos


conhecimento dos argumentos desenvolvidos na decisão do ministro Celso de Mello.
Eles revelam um incrível descolamento entre as normas legais e o pensamento
jurídico vis-à-vis a reflexão crítica contemporânea, não só na academia e nos
observatórios de mídia, mas também entre profissionais experientes que pensam com
seriedade o jornalismo. No Brasil e no exterior[2].

Infelizmente, para a mais alta instância de justiça do nosso país – assim como
para a grande mídia privada – a liberdade de imprensa (ou das empresas de mídia)
continua sendo uma "projeção" da liberdade de expressão.

[1] Este texto foi originalmente publicado no Observatório da Imprensa n. 345:


[ http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=345IPB001 ].

[2] Uma importante exceção é o jurista Fábio Konder Comparato. Cf. “A


Democratização dos Meios de Comunicação de Massa” in Eros R. Grau e Willis S.
Guerra Filho (orgs.); Direito Constitucional – Estudos em Homenagem a Paulo
Benevides. São Paulo: Malheiros Editores, 2001. pp. 149-166.

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