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Capítulo 1

Fluidos Estáticos

Começamos considerando fluidos estáticos em equilíbrio. Sobretudo fluidos


incompressíveis, o que significa líquidos, mas aqui e ali algumas propriedades
importantes dos gases serão abordadas. Muitos dos assuntos neste capítulo
serão certamente uma revisão de conhecimentos, que não é uma má forma
de começar.

1.1 Densidade e Pressão


Densidade
A densidade de uma porção qualquer de matéria é a razão entre a sua massa
e o seu volume:
m
ρ= (1.1)
V
A letra grega ρ (ró, que corresponde ao nosso r), é frequentemente usada
para representar a densidade. Muito importante é considerarmos as unida-
des. É claro que no Sistema Internacional de unidades (a partir de agora SI)
esta grandeza se exprime em kg/m3 . É muito comum usar também g/cm3 ,
onde a densidade da água tem o valor de 1 g/cm3 . É muito importante notar
que na maior parte das situações são as unidades SI que é conveniente usar.
Em qualquer cálculo envolvendo outras grandezas expressas em unidades SI
temos de usar o valor da densidade expressa em kg/m3 . Desde já recomendo
que simplesmente decorem o facto elementar que 1 g/cm3 = 1000 kg/m3 .
Assim o valor normal a usar para a densidade da água neste texto é 1000.
Prometo que evitarão cometer muitos erros graves se fixarem já isto. Resul-
tados que diferem de um factor de mil da verdade são erros graves. Não se
admirem se houver pessoas que fiquem verdadeiramente indignadas com a
ideia de um elefante com 4 kg ou um ecrã de computador com 300 m. Dispa-
rates equivalentes resultam de usar 1 para uma densidade que vale 1000, ou
vice versa. É mesmo importante ser coerente nas unidades. Devemos usar o
valor 1 apenas se tudo o mais está em cm e gramas. Outro conceito talvez já

1
conhecido e relacionado é a massa específica, que é na mesma a razão entre
a massa e o volume duma determinada substância. Este conceito aplica-se
correctamente apenas a porções homogéneas de matéria, mais comummente
a uma substância específica. Por exemplo, uma esfera de ferro sólida tem
uma densidade idêntica à massa específica do ferro, mas uma esfera oca de
ferro tem uma densidade inferior à massa específica do ferro. Como densi-
dade serve para todas as situações, só por distracção é que tornarei a falar
de massa específica.

Pressão
Para considerar as forças e as suas consequências quando estamos a tratar de
fluidos, é fundamental o conceito de pressão. Nos sólidos podemos considerar
as forças aplicadas num ponto. Nos fluidos as forças estão distribuídas sobre
superfícies. Por isso temos de pensar em termos de pressão, que como sabem,
é “qualquer coisa como força por unidade de área”. Vamos ver isto com um
pouco de cuidado.
Imaginem um recipiente com água. Para tornar o exercício mais efi-
caz, façam-no bonito. Pode ser um aquário, mas como ainda só estamos
a considerar fluidos estáticos, tirem de lá os peixes e desliguem os filtros,
etc. Agora imaginem um ponto onde a água encontra o vidro, pode ser a
meia altura, mas só se quiserem. Agora imaginem uma pequena área da
superfície vertical do vidro em contacto com a água em torno do ponto que
ainda estão a imaginar. A água em contacto com esta pequena área está a
exercer uma pequena força sobre a parede de vidro.1 A pressão que a água
exerce sobre o vidro na área em torno do ponto que ainda estão a imaginar
é a razão entre a valor da força que a água exerce sobre esta área de vidro
e o valor da própria área.
|F� |
p= (1.2)
A
A força de pressão é perpendicular à superfície de contacto. Sempre.
Nesta altura pode ser útil olhar para a Figura 1.1.
Agora vamos levar o argumento uns pontos mais adiante, pois todo este
trabalho de imaginação não foi para ficar só por aqui.
O vidro exerce uma força igual, mas oposta, sobre a água,2 (por isso é
que o aquário é um recipiente). Assim falamos também da pressão exer-
cida pelo vidro sobre a água, que tem certamente o mesmo valor. Agora
podemos deixar a superfície da água e mergulhar no interior. Apaguem da
mente o ponto na superfície, para poderem imaginar um ponto no meio da
água. Agora imaginem uma qualquer pequena superfície plana que contém
1
A palavra pequena aqui significa que podemos sempre considerar uma porção de
área aproximadamente plana, mesmo para superfícies menos regulares que a parede dum
aquário.
2
Isto é a terceira lei de Newton em acção, mas isso agora não interessa.

2
F
p ⇐⇒

Figura 1.1: A pressão p exercida por um fluido sobre a superfície A resulta


na força de valor |F� | = pA, perpendicular à superfície.

Figura 1.2: No interior dum fluido, sobre superfícies com orientações dife-
rentes as forças de pressão exercidas têm orientações diferentes, mas sempre
o valor |F� | = pA.

o ponto, como na figura. A água que está do lado esquerdo da superfície


exerce uma força sobre a água que está do lado direito (e vice-versa). O
valor da pressão na água no ponto que estamos a considerar é o valor dessa
força dividida pelo valor da área da superfície considerada. Novamente, esta
força é perpendicular à superfície que imaginamos. Se considerarmos ou-
tra superfície passando pelo mesmo ponto, com a mesma área, mas outra
orientação, o valor da força que a água dum lado exerce sobre a água do
outro lado será a mesma, pois a pressão no ponto só tem um valor. É uma
grandeza escalar. No entanto a direcção da força será outra, pois é perpen-
dicular à nova superfície considerada.3 Agora já podemos falar da pressão
da água percebendo como será a força exercida por essa água sobre qualquer
superfície no seu interior ou na sua fronteira. Figura 1.2.
Temos de enfrentar a negra realidade das unidades da grandeza pressão.
No SI é evidente que temos (newton)/(metro)2 . Na realidade isto tem nome
próprio, é o pascal:
N
Pa = 2 .
m
No entanto este Pa provavelmente não é a unidade mais comum que en-
3
A força é vectorial, assim com o mesmo valor, no mesmo ponto, existem inúmeras
possibilidades correspondendo a diferentes direcções, ao contrário do que se passa com o
escalar pressão.

3
contramos para a pressão. Outros conhecidos são a atmosfera (atm), o bar
(bar), o torr (Torr), o milímetro de mercúrio (mmHg), e vou parar por aqui.
Temos de saber o que são estas coisas, porque aparecem na vida real. Não
quer isto dizer que temos de saber de cor todas as conversões entre estas
unidades e o pascal, mas quer dizer que não é má ideia.
Uma noção importante a reter é que o pascal é uma unidade pequena. Na
realidade, uma atmosfera é pouco mais de 100 000 Pa. O bar é exactamente
100 000 Pa, pelo que os valores duma pressão expressa em bar e em atm
diferem pouco mais de 1%. A lista seguinte resume a situação.

• 1 atm = 101 325 Pa

• 1 bar = 100 000 Pa (105 Pa)

• 1 atm = 760 mmHg

• 1 atm = 760 torr

O problema, por assim dizer, é que estas unidades são todas usadas
na vida real, dia-a-dia. Se estiver a tratar da pressão dos pneus do carro,
usará o bar, se referir o valor da tensão arterial, será em mmHg, e quantas
vezes não usou já atmosferas? Os meteorologistas normalmente exprimem
a pressão do ar em hPa, que antigamente chamavam de mbar. . . Veja-se o
mapa meteorológico da Figura 1.3. Notemos também que torr e mmHg
parecem também ser a mesma coisa.4
Vale mesmo a pena pensar no que significa o pascal ser uma unidade
pequena. Em comparação com o quê ao certo? Se a pressão atmosférica
é da ordem de 105 Pa, então sobre 1 m2 duma tampa de mesa o ar está a
exercer uma força de 100 000 N. Será possível? E sobre uma pessoa? A
área superficial de um ser humano varia muito de pessoa para pessoa claro,
mas 1,75 m2 é um bom valor indicativo. Então sobre uma imaginária pessoa
média, o ar estaria exercendo uma força de pressão de 175 000 N. Isto é o peso
de 12 automóveis relativamente grandes. Talvez é a pressão atmosférica que
afinal é bastante grande, ou talvez estes números sejam absurdos e é melhor
pensar mais no caso. Se fosse assim eu não seria esmagado? E de onde
poderia vir uma força tão grande?

1.2 Lei de Stevin


A Lei de Stevin quantifica a trivial observação de que a pressão aumenta com
a profundidade num líquido. O resultado é simples, importante, e fácil de
deduzir, por isso vale a pena fazê-lo agora mesmo. No texto principal apenas
4
Apesar de serem coisas ligeiramente diferentes, poderão nesta fase da vida ignorar
essa diferença. Também podem optar por investigar este assunto.

4
Figura 1.3: Mapa meteorológico com indicação da pressão do ar, em hPa
(mbar)[1].

haverá lugar para algumas deduções simples, algumas outras deduções teóri-
cas mais sofisticadas, ou menos importantes, serão relegadas para apêndice,
onde podem seguramente ser ignoradas sem prejuízo para a continuidade da
leitura.
Ao mergulharmos alguns metros abaixo da superfície da água rapida-
mente notamos os efeitos do aumento da pressão, nomeadamente nos nossos
ouvidos. Suponham então que temos um líquido em equilíbrio estático.
Pode ser a mesma água do mesmo aquário que já usamos antes. Conside-
rem uma porção do interior desse líquido, que tem um formato cilíndrico,
porque dá jeito e é fácil de desenhar, como na Figura 1.4. Sobre este cilindro
de fluido actuam as forças devido à pressão da água circundante, e ainda o
seu peso, a atracção gravitacional da Terra. As forças de pressão exercidas
sobre os lados do cilindro anulam-se por simetria evidente, e por isso na
água não surgem espontaneamente correntes horizontais ou remoinhos, que
seriam contrárias à hipótese de equilíbrio estático. Podemos seguramente
considerá-las interessantes por existirem, mas irrelevantes para o que preten-
demos analisar, que é a variação da pressão com a profundidade. Realmente
o que tem interesse são as forças verticais, portanto. O peso, F�g , e as forças
de pressão exercidas sobre o topo, F�t e sobre a base, F�b , do cilindro. É claro
que tendo em conta os sentidos destas forças verticais, o equilíbrio significa
que
Ft + Fg = Fb
Sendo A a área comum do topo e da base do cilindro, e designando por pt
e por pb os valores da pressão da água no topo e na base do cilindro, os

5
valores das forças de pressão são Ft = pt A e Fb = pb A. Quanto ao peso, é
a massa da água contida no cilindro multiplicado pela aceleração gravítica,
Fg = mg.5 Mas a massa da referida água é o volume do cilindro, V = Ah
multiplicado pela densidade da água: m = ρhA. Então chegamos até

pt A + ρhAg = pb A

ou seja:
pb = pt + ρgh (1.3)
que já é a Lei de Stevin: A pressão aumenta duma quantidade Δp = ρgh
quando descemos h metros num líquido de densidade ρ.
É importante notar que a pressão depende apenas do nível, não varia
na horizontal num fluido em repouso. A razão pela qual esta lei de Stevin
não é verdadeira para gases, é que pressupõe que a densidade do fluido é
constante, não variando com a pressão. Ora este é o caso apenas para fluidos
incompressíveis - leia-se líquidos. No caso, muito comum, em que usamos
esta lei para considerar a pressão h metros abaixo da superfície da água,
ou outro líquido, podemos tomar a pressão no topo como sendo a pressão
atmosférica, p0 , e é habitual escrever

p = p0 + ρgh (1.4)

Vemos nesta Lei de Stevin, de forma clara, que o aumento da pressão com
a profundidade resulta do peso do fluido que está por cima. Na realidade,
é também esta a origem da pressão atmosférica: resulta do peso do ar que
está por cima de nós. São km de altura de ar. Embora não seja denso como
a água, o valor de 105 Pa significa que por cima de 1 m2 da Terra está uma
coluna de ar com vários km de altura e com 10 toneladas de massa (portanto
105 N de peso). Como disse Torricelli:

vivemos submersos no fundo de um oceano de ar elementar, que


se sabe, através de incontestáveis experiências, que tem peso. . .

Assim talvez seja menos difícil acreditar nos tais 12 automóveis grandes
que temos em cima de nós.

1.3 Equação Barométrica


Todos sabemos que o ar torna-se rarefeito nas grandes alturas. A pressão
diminui, a densidade diminui. Já percebemos que a simples Lei de Stevin
não nos permitirá saber como será a variação da pressão com a altitude, pois
não entra em linha de conta com a variação da densidade do gás. A resposta
a esta questão é dada pela equação barométrica. A sua dedução necessita
5
Recordemos que em unidades SI esta aceleração de queda livre é g = 9,8 m/s2 .

6
Ft

A
h

Fg

Fb

Figura 1.4: Forças verticais sobre uma porção de fluido

da aplicação do cálculo infinitesimal, e fica relegada para apêndice. No final


do semestre poderá constituir um interessante exercício de aplicação destes
conceitos entretanto lecionados na matemática. Ou não. Seja lá como for,
a equação escreve-se:
Mg
p = p0 e− RT (y−y0 ) (1.5)
Aqui p é a pressão do gás à altitude y, sendo p0 a pressão à altitude y0 . M
é a massa molar do gás, T é a temperatura absoluta (em kelvin), enquanto
g é a aceleração gravítica e R é a constante dos gases ideais, bem conhecida
da equação de estado do gás ideal

pV = nRT (1.6)

(R = 8,314 J/mol·K, em unidades SI). Uma consequência directa e assi-


nalável da eq.(1.6) é que a densidade do gás com massa molar M (que se
exprime em kg/mol no SI) à pressão p e à temperatura T vale
Mp
ρ=
RT
Devo fazer notar que a dedução da equação barométrica (apêndice A.1)
supõe que a temperatura, constante, não varia com a altitude, o que com-
promete pelo menos um pouco a precisão dos resultados, mas como primeira
aproximação é certamente muito útil.

1.4 O Princípio de Pascal


O Princípio de Pascal afirma que:
Uma variação na pressão aplicada a um fluido incompressível
confinado é transmitida de forma idêntica a todo o fluido e às
paredes do recipiente.

7
m
����� ���������������
M

���������������
a
���������������
A

Figura 1.5: Balança hidráulica. Uma pequena massa m assente sobre um


êmbolo de pequena área a equilibra a grande massa M cujo peso é distribuído
sobre uma grande área A do fluido.

Este princípio está na base da compreensão da prensa hidráulica, que


eleva automóveis do chão em oficinas, e cadeiras em consultórios de dentistas.
Considere a balança hidráulica da Figura 1.5. O fluido, e consequentemente
as massas, estão em equilíbrio estático. Uma vez que a altura da superfície do
líquido é igual dos dois lados, a lei de Stevin garante que a pressão é idêntica
nos dois êmbolos. Essa pressão é a atmosférica, p0 , acrescida do aumento
devido ao peso das massas. Considerando o “braço” esquerdo temos:
mg
p = p0 +
a
e considerando o lado direito:
Mg
p = p0 +
A
Sendo iguais as pressões, concluimos que:
m M
=
a A
Se a << A, então m << M na mesma razão. Uma pequena força distribuída
sobre uma pequena área equilibra uma grande força distribuída sobre uma
grande área - pois a igualdade é entre as pressões. Se a razão entre as áreas
for suficiente, um rato pode equilibrar um elefante, e uma força pequena
elevar um automóvel. . .
Vemos com este exmplo que existe uma grande vantagem mecânica em
termos da força aplicada, mas não podemos ganhar energia com isso. Com
esta “alavanca” hidráulica, uma pequena força actuando ao longo de uma
grande distância é transformada numa grande força que actua sobre uma
pequena distância, tal como numa alavanca mecânica comum.

8
1.5 O Princípio de Arquimedes
Um corpo totalmente ou parcialmente submergido é actuado por
uma impulsão, dirigida verticalmente para cima, de valor igual
ao peso do fluido deslocado.

É este o princípio de Arquimedes, supostamente descoberto enquanto o


sábio tomava banho, com consequências curiosas. . .
Na realidade isto é mais ou menos trivial de compreender, uma vez en-
tendido que impulsão é uma palavra pomposa para a força com que, por
exemplo, a água empurra as pessoas e os barcos para cima.
Primeiro examinamos um cubo submerso para entendermos a origem
desta força. Depois será fácil entendermos o caso geral (acho). Vamos
enumerar as forças exercidas sobre este cubo, de aresta l, mergulhado num
líquido de densidade ρ. Recomendo que faça um desenho para acompanhar
as etapas da demonstração que segue:

• As forças devidas à pressão do fluido sobre as quatro faces laterais do


cubo, que claramente anulam-se dois a dois, e que não tornam a ter
papel de relevo nesta parte da história.

• O peso do cubo, de valor mg, vertical para baixo, claro. Este pode
parecer importante, por ser vertical, mas na realidade para efeitos da
análise da impulsão exercida pelo fluido sobre o cubo também não
interessa. Podemos esquecer isto até termos de considerar se o cubo
vai para o fundo ou se vai boiar.

• As forças devidas à pressão exercida pelo fluido nas faces superior


(topo) e inferior (base) do cubo. Estas é que realmente interressam
neste momento.

– sobre o topo - Ft :
Ft = pt A,
onde pt é a pressão no fluido ao nível do topo do cubo, e A = l2
é a área duma face do cubo.
– sobre a base - Fb :
Fb = pb A,
sendo pb a pressão ao nível da base do cubo.

Pela lei de Stevin sabemos que pb = pt + ρgl, assim Fb é superior em módulo


a Ft e a resultante destas forças verticais de pressão aponta para cima.
Vejamos o seu valor exacto: que é o peso do fluido deslocado pelo volume l3
do cubo:
Fb − Ft = (pb − pt )A = ρgl · l2 = mg

9
I

⇐⇒

Fg Fg

Figura 1.6: A resultante de todas as forças de pressão exercidas sobre um


volume arbitrário no seio dum fluido é a impulsão, de valor igual ao peso do
fluido deslocado, vertical para cima, e aplicado no centro de massa do fluido
deslocado.

pois ρl3 é a massa do cubo.


Vemos aqui o resultado anunciado pelo princípio de Arquimedes, e mais,
vemos que a origem desta força designada impulsão é o aumento da pressão
com a profundidade no seio do líquido.
Agora podemos confirmar rapidamente (e sem contas!) que o resultado
terá de ser válido para objectos um pouco menos regulares do que cubos.
Consideremos para esse fim um fluido em equilíbrio estático (de volta ao
aquário). Imaginemos no interior desse fluido um volume com forma ar-
bitrária (por exemplo semelhante a um amendoim). Estando o fluido em
equilíbrio, não havendo correntes ou deslocamentos, a força total sobre o
nosso volume arbitrário é nula. Isto significa muito claramente que a resul-
tante de todas as forças de pressão exercidas pelo fluido circundante sobre
o volume considerado equilibram, de forma exacta, o peso do fluido contido
nesse mesmo volume.
O fluido circundante exerce uma força vertical para cima, de valor igual
ao peso do fluido do volume considerado. Mas é claro que quer esse volume
esteja ocupado pelo próprio fluido, ou por outro objecto qualquer com a
mesma forma, (por exemplo um amendoim de verdade), a pressão no fluido
circundante em contacto com a superfície desse volume é a mesma, e a força
resultante dessa pressão exercida é a mesma, e já concluímos que essa força
é simétrica ao peso do fluido correspondente a esse volume. Eis o princípio
de Arquimedes. Mais ainda, podemos concluir que o ponto de aplicação da
impulsão é o centro de gravidade do fluido deslocado, que poderá ou não
ser o centro de gravidade dum objecto que desloca o fluido, conforme esse
objecto tenha ou não densidade uniforme.

10
Capítulo 2

Fluidos em Movimento

Até aqui o nosso fluido esteve sempre estático. Ora a propriedade determi-
nante dum fluido é que pode fluir. . .

2.1 Equação de continuidade


Como estamos a considerar fluidos incompressíveis, a densidade é constante
(para uma dada temperatura), a mesma massa ocupa sempre o mesmo vo-
lume. Isto significa que fluxo de massa e fluxo de volume são equivalentes.
Uma consequência importante é a equação de continuidade.
Consideremos um cano horizontal com uma constrição na qual flui um
líquido, como na Figura 2.1.
Na secção mais larga, de área A1 , o líquido flui com velocidade v1 , en-
quanto na secção de área A2 flui com velocidade v2 . Num dado intervalo
de tempo Δt, o mesmo volume de fluido deve passar em qualquer secção do
cano: basta considerar as consequências de passar mais fluido pela área A1
do que por A2 - dado que o fluido é incompressível o cano terá de se defor-
mar, ou rebentar, e teremos de pagar ao canalizador. Se durante um tempo
Δt passou por A1 o volume de líquido correspondente ao cilindro sombre-

A1
A2
V
v1 V v2

Δ x2
Δ x1

Figura 2.1: Um líquido flui com velocidade v1 na secção de área A1 e com


velocidade v2 na secção de área A2 .

11
ado, isto é V = A1 v1 Δt, o mesmo volume passou por A2 , correspondendo
ao cilindro com V = A2 v2 Δt. Assim:

A1 v1 Δt = A2 v2 Δt,

o que nos leva à equação de continuidade:

A1 v1 = A2 v2 (2.1)

O líquido flui com maior velocidade na secção mais fina do cano. Por isso
é que tapamos parte da saída duma mangueira com o dedo quando queremos
que a água saia num jacto veloz.
Deve ser claro que o produto Q = Av representa o volume de fluido
que atravessa uma secção na unidade de tempo, o que se pode chamar
de fluxo de volume, taxa de escoamento, ou em linguagem mais dia-a-dia,
caudal. Notar que as unidades mostram de forma clara o significado físico:
A · v → m2 · m/s = m3 /s. Outras unidades óbvias são L/min, cm3 /s, etc.

2.2 Equação de Bernoulli


A equação de Bernoulli relaciona a pressão num fluido perfeito incompres-
sível com a altura e a velocidade a que flui. Na realidade é um reflexo da
conservação da energia. Podemos fornecer ou retirar energia ao fluido atra-
vés do trabalho mecânico.1 A consequente variação da energia do fluido
será na forma de energia potencial gravítica e energia cinética, uma vez que
pomos de parte dissipação de energia mecânica (um fluido perfeito, ou ideal,
flui sem resistência, sem atritos; não tem viscosidade - conceito que será
desenvolvido na secção 2.3).
Vamos considerar um cano que tem uma secção larga, e outra mais
fina, que está a um nível mais elevado, como na Figura 2.2. A situação é
semelhante àquela que consideramos quando deduzimos a equação de conti-
nuidade, mas agora existe um desnível entre as secções do cano que estamos
a destacar. As condições para a continuidade continuam válidas, e num
certo intervalo de tempo, Δt, o volume de fluido que atravessa as secções de
áreas A1 e A2 é ainda o dos cilindros sombreados na figura. As velocidades
e pressões do fluido nos níveis y1 e y2 valem v1 , p1 e v2 , p2 , respectiva-
mente. Podemos calcular a energia fornecida ao líquido nesse intervalo de
tempo calculando o trabalho correspondente ao “empurrão” que leva do lado
esquerdo, onde uma força F1 actua ao longo do deslocamento Δx1 :

W1 = F1 Δx1 .
1
Recorde que o trabalho realizado por uma força que actua sobre um objecto (o nosso
fluido neste caso) traduz-se em energia mecânica transferida para o objecto. Trabalho
realizado por uma força que um objecto exerce, é energia mecânica que o objecto cede.

12
Esta força F1 corresponde à pressão p1 exercida sobre a área A1 , pelo que
F1 = p1 A1 , e o volume é V = A1 Δx1 . Assim

W1 = p1 A1 Δx1 = p1 V

Da mesma forma podemos concluir que o trabalho realizado pelo fluido ao


“empurrar” no lado direito durante o mesmo Δt vale

W2 = p2 V

Assim a variação da energia mecânica do fluido foi de

ΔE = W1 − W2 = p1 V − p2 V.

Como referido acima, esta energia tem correspondência com as variações nas
energias potencial e cinética do fluido, facilmente calculáveis (pois).
A energia potencial gravítica dum peso mg a uma elevação y é simples-
mente
U = mgy.
Como apenas variações nesta energia potencial têm significado físico, a esco-
lha do zero para a coordenada altura é indiferente. A energia cinética duma
massa m com velocidade v é
1
K = mv 2 .
2
O que mudou no nosso fluido durante o intervalo Δt correspondente aos
deslocamentos Δx1 e Δx2 foi:

• Uma massa de fluido m, correspondente ao volume V , aumentou de


altura de y1 para y2 , causando uma variaçõ na energia potencial:

ΔU = mgy2 − mgy1 = ρV gy2 − ρV gy1 ,

uma vez que m = ρV .

• A mesma massa de fluido passou da velocidade v1 para a velocidade


v2 , causando uma variação da energia cinética:
1 1
ΔK = ρV v22 − ρV v12 .
2 2

Devemos igualar a soma das variações das energias potencial e cinética com
o balanço dos trabalhos:

W1 − W2 = ΔU + ΔK ⇐⇒ (2.2)
1 1
p1 V − p2 V = ρV gy2 − ρV gy1 + ρV v22 − ρV v12 (2.3)
2 2

13
p2 A2
y2 V
v2

Δx2

p1 A1
V
y1
v1

Δx1

Figura 2.2: O líquido flui duma secção larga para outra, mais estreita, a uma
elevação superior. A equação de Bernoulli relaciona as grandezas pertinentes
em diferentes secções do fluir

O que nos leva à equação de Bernoulli:


1 1
p1 + ρgy1 + ρv12 = p2 + ρgy2 + ρv22 (2.4)
2 2
Concluindo que o raciocínio é válido para dois quaisquer pontos ao longo do
fluido, vemos que também podemos escrever:
1
p + ρgy + ρv 2 = cte (2.5)
2
ao longo dum líquido que flui.
Uma primeira observação importante é que se o fluido é estático, i.e.
v1 = v2 = 0, então a equação de Bernoulli reproduz a Lei de Stevin, como é
necessário. Uma segunda observação importante é que, para alturas iguais,
a pressão é mais alta nas secções largas, onde a velocidade é menor, e mais
baixa nas secções estreitas onde o fluido corre mais depressa. É um exercício
importante explicar de forma simples este facto.

2.3 Viscosidade
Os fluidos reais não são perfeitos. Têm atritos internos - viscosidade - e por
isso oferecem resistência aos movimentos no seu interior, e também resistem

14
(a) (b)

Figura 2.3: Escoamento (a) laminar e (b) turbulento dum fluido.

em maior ou menor grau ao fluir. O ar e os gases em geral são muito pouco


viscosos. No caso dos líquidos a viscosidade é maior, e varia muito, desde
os valores baixos da acetona e gasolina, até aos elevados da glicerina ou do
mel.
Primeiro vamos considerar a resistência ao fluir, concretamente as mo-
dificações causadas no caso dum líquido que corre num tubo, e depois con-
sideraremos as forças que os fluidos opõem aos movimentos no seu interior.

2.3.1 Regime laminar e regime turbulento


O escoamentos dos fluidos pode ocorrer de forma serena, sem turbilhões
nem confusões, que é o caso para velocidades baixas, ou pode ocorrer com
desordem aparente, como sucede a velocidades mais altas. Na primeira si-
tuação o escoamento é laminar, e no segundo caso é turbulento. Vamos
precisar um pouco melhor. No regime laminar camadas adjacentes do fluido
podem correr com velocidades de valor diferente, mas correm na mesma di-
recção, sem se misturarem. As porções do fluido deslocam-se na direcção
do movimento geral deste, sem velocidades transversais. No regime turbu-
lento poderá haver fortes movimentos transversais ao escoamento geral do
fluido, as camadas em movimento misturam-se, e a simplicidade e sereni-
dade do regime laminar perdem-se. No regime turbulento a velocidade do
fluido num local pode variar de forma essencialmente arbitrária ao longo do
tempo. Figuras 2.3 e 2.4.

2.3.2 Coeficiente de viscosidade


Uma definição quantitativa da viscosidade dum fluido é dado pelo coeficiente
de viscosidade para o escoamento laminar. Consideremos duas placas planas
paralelas, e entre elas um porção de fluido, como nas Figuras 2.5 e 2.6. A
distância entre as placas é D, e a sua área vale A. Pode imaginar que sejam
duas peças metálicas com óleo de lubrificação entre elas, por exemplo. A
placa de baixo, em y = 0, está fixa, e a de cima, em y = D, é movida
com velocidade constante v0 , sob acção de uma força F . Nestas condições
constata-se experimentalmente que:

1. A camada de fluido em contacto com a placa de baixo não se move.

15
Figura 2.4: Inicialmente laminar, o fluir do fumo do cigarro torna-se clara-
mente turbulento.

2. A camada de fluido em contacto com a placa de cima move-se solidária


com esta.

3. As camadas intermédias do fluido têm velocidades que variam linear-


mente de acordo com a sua posição entre as placas.

4. A força é proporcional à área A das placas e à velocidade v0 , e inver-


samente proporcional à distância D entre as placas.

Ao coeficiente de proporcionalidade que entra na expressão matemática


correspondente à observação 4 acima chamamos coeficiente de viscosidade.
Concluímos então que:
v0
F = ηA . (2.6)
D
sendo η (a letra grega “eta”) o coeficiente de viscosidade do fluido. É impor-
tante sabermos em que unidades se exprime, e que género de valores toma
para diferentes fluidos. É um exercício fácil (mas obrigatório) verificar que
o coeficiente de viscosidade tem dimensões de pressão×tempo, e portanto
no SI virá expresso em Pa·s. Para além desta unidade SI, é muito utilizado
a unidade cgs correspondente, que se chama Poise. Outro exercício fácil (e
obrigatório) é constatar que

1 Pa · s = 10 Poise.

Na tabela 2.1 estão valores da viscosidade de alguns gases e líquidos para


as temperaturas indicadas. Na realidade a viscosidade duma substância
pode variar fortemente com a temperatura, conforme se constata na tabela
2.2. Não irei desenvolver este assunto da variação da viscosidade com a
temperatura, mas é pertinente notar o comportamento oposto de gases e
líquidos: Os gases tornam-se mais viscosos com o aumento da temperatura,
enquanto os líquidos tornam-se mais fluidos.

16
y F
D v0

v=0 x

Figura 2.5: A placa de cima é movida à velocidade constante v0 sob acção


da força F� . A placa de baixo está imóvel. As camadas de fluido entre as
placas têm velocidades que crescem de 0 a v0 à medida que y varia de 0 a
D.

A
D

Figura 2.6: As placas da figura anterior têm área A e estão separadas por
uma distância D.

líquido η (mPa·s)
acetona 0.32
gás η (10−4 Pa·s)
gasolina 0.6
ar 0.18
água 1.0
hélio 0.19
álcool etílico 1.2
metano 0.20
sangue (37o C) 4
azoto 0.18
óleos 50 - 700
oxigénio 0.20
glicerina 1490
ketchup ≈ 50000

Tabela 2.1: Viscosidades de alguns gases e líquidos à temperatura de 20o C,


excepto o sangue, para o qual apresenta-se o valor a 37o C.

17
água glicerina
T (o C) η (mPa· s) T (o C) η (mPa· s)
0 1.8 0 10000
20 1.00 20 1490
60 0.65 60 81

Tabela 2.2: Variação da viscosidade com a temperatura da água e da glice-


rina.

2.4 Lei de Poiseuille


De acordo com a equação de Bernoulli, que se aplica para o escoamento de
fluidos perfeitos, num cano horizontal de secção uniforme a pressão no fluido
em movimento será constante. Na realidade, porém, podemos constatar que
a pressão diminui ao longo da corrente. Dito de outra forma o líquido vai
fluir de uma pressão mais alta em direcção a outra mais baixa. Precisa dum
empurrão. Isto é um resultado da viscosidade, e o efeito é quantificado pela
lei de Poiseuille, para o caso do escoamento laminar.
Num tubo de raio interno R, em que o volume total que flui através de
uma secção na unidade de tempo (o caudal, pois) é Q, a diferença de pressão
entre dois pontos que distam L um do outro ao longo do tubo vale:
8ηL
p1 − p2 = Q (2.7)
πR4
que é a Lei de Poiseuille. A sua demonstração ficará para apêndice, não
sendo parte necessária do texto. Esta equação afirma-nos que:

• Se quisermos duplicar a taxa de escoamento devemos duplicar a dife-


rença de pressão.

• Um fluido com o dobro da viscosidade tem de ser empurrado usando


o dobro da pressão (para uma mesma taxa de escoamento).

• Se duplicarmos o raio do tubo, mantendo tudo o resto igual, passa 16


vezes mais fluido por unidade de tempo, (é o que resulta do factor R4
no denominador): O diâmetro do tubo tem uma tremenda importância
ao considerar os efeitos da viscosidade.

A taxa de escoamento é o volume por unidade de tempo, portanto medido


em m3 /s, e é o produto da área duma secção do cano com a velocidade do
líquido:
Q = Avef (2.8)
Isto já sabemos desde a análise da equação de continuidade. A novidade
no caso de considerarmos a viscosidade é que nem todo o líquido corre com

18
v=0

vmax

v=0

Figura 2.7: O perfil da distribuição da velocidade da corrente dum líquido


viscoso num tubo em regime laminar é parabólico.

a mesma velocidade. Pela descrição do movimento do fluido entre as pla-


cas acima considerada, poderemos esperar que no centro do cano flui mais
depressa, e nas bordas, em contacto com as paredes do cano, está essencial-
mente parado. É exactamente o que acontece. Assim para a equação (2.8) a
velocidade que consideramos é uma velocidade efectiva, definida de forma a
tornar a relação verdadeira. Na realidade é uma velocidade intermédia entre
a do fluido mais veloz no centro e o fluido parado na borda, como veremos
de seguida.

Perfil da velocidade do fluido


Deixando a demonstração para apêndice, aqui apresento os resultados im-
portantes referentes à velocidade de escoamento dum líquido viscoso num
tubo em regime laminar. Sendo R o raio do tubo, e r a distância radial ao
centro, a velocidade varia com essa distância de acordo com a lei:
� �
r2
v(r) = vmax 1− 2 , (2.9)
R

sendo vmax a velocidade máxima a que corre o fluido, justamente o valor


para r = 0, isto é, no centro do tubo. À medida que nos afastamos do
centro em direcção à borda, a velocidade cai de forma quadrática, significa
isto que o perfil das velocidades é parabólico, conforme a Figura 2.7. Na
borda, r = R e v = 0.
A velocidade efectiva que intervém na equação (2.8) tem uma relação
muito simples com a velocidade máxima do fluido no centro do escoamento:
1
vef = vmax (2.10)
2
conforme se demonstra também em apêndice. Por outro lado é imediato
deduzir das equações (2.7), (2.8) e (2.10) que a velocidade máxima vale:
Δp 2
vmax = R (2.11)
4ηL

19
2.5 Número de Reynolds
Uma vez que os resultados anteriores apenas são válidos quando o regime
do escoamento é laminar, parece boa ideia termos um critério para deter-
minar quando é que este é o caso. Este é obtido considerando o número de
Reynolds:
2Rρvef
NR = (2.12)
η
Aqui ρ é a densidade do fluido, de viscosidade η, que flui num tubo de
raio R com uma velocidade efectiva vef . Outro exercício fácil e obrigatório:
constatar que é um número adimensional, sem unidades portanto. Para
a situação de escoamento num tubo que estamos a considerar se NR <
2000 o escoamento é seguramente laminar; se NR > 3000 o escoamento
é seguramente turbulento. Se 2000 < NR < 3000 a situação não é bem
determinada - está-se então num regime instável em que o escoamento pode
ser laminar ou turbulento, e pode variar de forma regular ou irregular entre
uma situação ou outra.
Se o regime for turbulento, não podemos aplicar a Lei de Poiseuille,
podemos sim concluir em geral que a diferença de pressão será superior
àquela prevista pela Lei de Poiseuille. Para fluidos não Newtonianos, que
se definem de seguida, este poderá não ser o caso, mas em quase todas
as situações de turbulência o valor de Δp será maior do que na situação
laminar.

2.6 Fluidos não Newtonianos


Fluidos para os quais a viscosidade é independente da pressão dizem-se flui-
dos Newtonianos. O escoamento de fluidos Newtonianos em regime laminar
é bem descrito pela Lei de Poiseuille. Para os fluidos não Newtonianos, a
viscosidade pode variar com a pressão ou com a velocidade de escoamento,
e os desvios da Lei de Poiseuille podem ser acentuados.
O fluido sinovial em articulações como o joelho demonstra um decrés-
cimo na viscosidade com um aumento da pressão, o que ajuda a lubrificar o
movimentos das articulações.
O sangue é um fluido complicado com muitos materiais diversos em sus-
pensão, e desvia-se da Lei de Poiseuille em vasos sanguíneos estreitos. Uma
explicação possível é que em vasos pequenos os glóbulos vermelhos - grandes
- tendem a acumular no centro e não nas bordas, diminuindo a resistência ao
escoamento. Outra hipótese é que os glóbulos vermelhos - que têm a forma
de discos - estão orientados de forma arbitrária a baixas velocidades, mas
tendem a orientar-se quando a velocidade é maior, facilitando o escoamento.
Na maioria dos vasos, sob pressões sanguíneas normais, o escoamento é bem
descrito pela lei de Poiseuille.

20
2.7 Força de Arrasto. Velocidade Terminal
Devido à sua viscosidade os fluidos resistem aos movimentos no seu interior
com forças ditas forças de arrasto. O deslocamento dum objecto no interior
do fluido pode causar ou não turbulência. Novamente o critério simples que
se pode aplicar para distinguir as duas situações tem como base o número
de Reynolds, que pode ser definida para esta situação como:
vρD
NR =
η
onde ρ e η são a densidade e a viscosidade do fluido, respectivamente, v
é a velocidade do objecto (relativo ao fluido na qual se move, claro), e D
é uma dimensão característica do objecto. D é uma medida do tamanho
do objecto, por exemplo a aresta dum paralelepípedo, o comprimento ou o
diâmetro dum cilindro, etc. No caso mais exemplar, o de uma esfera, D é
o diâmetro, e resulta uma expressão idêntica para o número Reynolds à da
eq. (2.12):
2Rρv
NR = , (2.13)
η
mas note-se que o contexto é completamente diferente. Os valores a con-
siderar para determinar se estamos em regime laminar ou turbulento são
também muito diferentes: Se NR < 1 não há turbulência. Se NR > 1000,
o regime é puramente turbulento. Se 1 < NR < 1000 o regime é instável.
Para um dado objecto e um dado fluido torna-se claro que altas velocidades
implicam turbulência, ao contrário das baixas velocidades.
Numa primeira aproximação, podemos considerar que a força de arrasto
é proporcional ao quadrado da velocidade no caso da turbulência, e propor-
cional à velocidade no regime não turbulento.

2.7.1 Resistência do ar
Omisso nesta versão. Não vai ser preciso agora. . .

2.7.2 Sedimentação de partículas em meios líquidos


Nesta secção vamos considerar a velocidade de “queda livre” de objectos
através de líquidos em regime não turbulento. Veremos que esta última
condição é muito restritiva quanto às dimensões dos objectos que estamos
a considerar, e portanto o contexto em que são válidos os resultados é o de
uma lenta sedimentação das pequenas partículas de uma suspensão.
As forças que actuam sobre uma partícula que se afunda dentro dum
líquido são: o peso da partícula, a impulsão exercida pelo fluido sobre a
partícula, e a força de arrasto. Na condição de não haver turbulência o
arrasto é proporcional à velocidade, e o seu valor (módulo) será |fa | = bv

21
sendo b uma constante dependente de vários factores, como a viscosidade do
fluido e as dimensões e forma da partícula. No caso duma partícula esférica
de raio R temos b = 6πηR, e portanto podemos usar:

fa = 6πηRv (2.14)

resultado conhecido como lei de Stokes. Então temos o peso, mg, a puxar
para baixo, a impulsão, I, e o arrasto fa a empurrar para cima. Desta foram
a força resultante, por hipótese para baixo será:

F = mg − I − fa (2.15)

Com a partícula no início da sua queda, a baixa velocidade, a força de


arrasto terá um valor muito reduzido, e a partícula acelera sob acção desta
força resultante, afundando-se cada vez mais rapidamente.2 À medida que a
velocidade da partícula aumenta, a força de arrasto aumenta, mas o peso e a
impulsão não mudam de valor: Assim a força resultante, e consequentemente
a aceleração da partícula diminuem com o passar do tempo. Este processo
continua até que a velocidade da partícula atinja um valor para a qual
a força de arrasto cresceu tanto que a partícula já não acelera mais: A
força resultante é nula. A esta velocidade chamamos velocidade terminal
ou velocidade limite. Uma vez atingida a velocidade terminal a partícula
desce com velocidade constante. Podemos facilmente deduzir o seu valor
para o caso da partícula esférica em regime não turbulento, considerando
que ocorre quando
F = mg − I − fa = 0 (2.16)
Isto é, quando a força resultante sobre a partícula é nula, e consequentemente
já não há aceleração. O peso da partícula, suposta esférica, de volume 43 πR3
e densidade ρs vale
4
mg = πR3 ρs g (2.17)
3
A impulsão tem o valor do peso do líquido deslocado, e portanto é o peso
dum volume de líquido idêntico ao volume da partícula, e vale
4
I = πR3 ρl g (2.18)
3
onde ρl é a densidade do líquido. Juntando as equações (2.14, 2.16, 2.17
e 2.18) concluimos, com um mínimo de álgebra, que a velocidade terminal
será:
2R2 g(ρs − ρl )
vT = (2.19)

Na tabela 2.3 estão indicados valores para a velocidade terminal dadas
pela equação (2.19) para partículas esféricas de densidade ρs = 1,5 g/cm3
2
É claro que nesta conversa estou a supor que a partícula é mais densa que o líquido.

22
R (m) m (kg) vT (m/s) NR d em t = 1 s (m)

10−3 6,2 × 10−6 1,09 2180 0,74


10−4 6,2 × 10−9 1,09 × 10−2 2,18 0,011
10−5 6,2 × 10−12 1,09 × 10−4 2,18 × 10−3 1,09 × 10−4
10−6 6,2 × 10−15 1,09 × 10−6 2,18 × 10−6 1,09 × 10−6
10−7 6,2 × 10−18 1,09 × 10−8 2,18 × 10−9 1,09 × 10−8

Tabela 2.3: Valores da velocidade terminal.

de diferentes dimensões (é indicado o raio e a massa correspondente da par-


tícula). Indica-se também o Número de Reynolds, e a distância percorrida
pela partícula a partir do repouso durante o primeiro segundo. O líquido é
água, com densidade ρl = 1,0 g/cm3 e viscosidade η = 10−3 Pa·s.
Isto é muito instrutivo. Considerando o número de Reynolds vemos que
para a partícula com 1 mm de raio esta análise vale pouco, pois ele es-
tará em regime turbulento. A primeira linha não é para acreditar muito,
portanto. Para a segunda linha o valor do número de Reynolds é apenas
um pouco acima de 1, e portanto ainda será aceitável. Nos restantes casos
não há qualquer dúvida de que os resultados devem ser bastante correctos.3
Considerando agora a distância da “queda” durante o primeiro segundo,
comparando com o valor da velocidade terminal, constatamos que essa ve-
locidade é atingida de imediato. A conclusão, importante, é que para estas
partículas pequenas a velocidade é, para todos os efeitos, constante, de valor
igual à terminal. Concluímos então que a nossa análise é válida, em meio
aquoso, apenas para objectos muito diminutos que sedimentam lentamente.

3
Na verdade o movimento das partículas mais pequenas é perturbado pelo movimento
Browniano, mas por agora podemos avançar sem considerar este assunto, a ser abordado
em capítulo posterior.

23
Capítulo 3

Centrifugação

3.1 Velocidade Angular


A velocidade de rotação dum objecto é vulgarmente expressa, no dia-a-dia
em rotações por minuto - RPM. Como exemplo temos os valores indicados
no conta rotações no tablier dum automóvel, ou a possível recordação dos
velhos discos musicais “33”, assim designados porque efectuavam 33 rota-
ções num minuto. Para efeitos de cálculos é geralmente melhor usar uma
medida de velocidade de rotação expressa em radianos por segundo - rad/s,
e geralmente referimo-nos à velocidade angular. É trivial fazer a correspon-
dência entre o RPM e o rad/s: Uma rotação completa vale 2π rad, e um
minuto são 60 s, pelo que:

1 RPM = rad/s ≈ 0,105 rad/s.
60
A velocidade angular representa-se normalmente com a letra grega omega:
ω.

3.2 Velocidade de Sedimentação


3.2.1 Força Centrífuga. Factor RCF.
Considerado no referencial em rotação, uma massa m que efectua um movi-
mento circular de raio r com velocidade de rotação ω fica submetida a uma
força radial, dirigida para o exterior (causando afastamento do eixo/centro
de rotação), de valor:
Fc = mω 2 r (3.1)
designada por força centrífuga. À razão entre esta força centrífuga e o peso
da massa, mg, chama-se normalmente RCF, do inglês “relative centrifugal
force”:
mω 2 r ω2r
RCF = = (3.2)
mg g

24
Vemos que o RCF é também a razão entre os valores da aceleração cen-
trífuga, ω 2 r e a aceleração gravítica, g. Se uma partícula estiver sujeito a
uma rotação muito rápida, o RCF pode tomar valores muito elevados. Em
centrifugadoras comerciais usam-se valores da ordem de 104 − 106 . Numa
situação destas deve ser claro que o peso deixa de ter qualquer influência
real no movimento: a força centrífuga é o que interessa.
Uma consequência desta consideração, não trivial, mas muito impor-
tante, é que análise que fizemos sobre velocidade terminal no capítulo an-
terior pode ser aproveitada substituindo a aceleração g - associada à força
peso, pela aceleração ω 2 r, associada à força centrífuga. As forças que im-
porta considerar serão a força centrífuga, a impulsão, e a força de arrasto.
Mas para a força de impulsão não é agora relevante o peso do fluído deslo-
cado, mas sim a força centrífuga sobre o fluído deslocado. Como resultado,
repetindo a dedução que fizemos usando as equações (2.14, 2.16, 2.17 e 2.18),
mas substituindo sempre g → ω 2 r, concluiremos que a velocidade terminal,
ou seja a velocidade de sedimentação em centrifugadora, obtém-se com a
mesma substituição na eq.(2.19):
2R2 ω 2 r(ρs − ρl )
vT = (3.3)

Vale a pena insistir que a impulsão neste contexto é uma força dirigida para
o centro da rotação e que vale:

Ic = ρl Vs ω 2 r (3.4)

onde ρl é a densidade do líquido, e Vs o volume do sólido, de forma que a


massa de líquido deslocado é o produto ρl Vs , e esta massa ficaria sujeito a
uma força centrífuga de valor dado pela eq.(3.4).
Vemos ainda pela eq.(3.3) que no caso da partícula ser mais densa que
o líquido, irá viajar para fora, mas no caso de ser da mesma densidade não
se desloca, e se for menos densa do que o líquido irá migrar em direcção ao
centro - que é o equivalente a “boiar”.1
Por esta altura deve ser relativamente óbvio que um RCF muito elevado
poderá ser muito útil. Vale a pena consultar novamente a tabela 2.3. Se
aumentarmos 105 vezes o valor da velocidade terminal, usando uma centri-
fugação com esse valor RCF ,2 a sedimentação ocorre em tempo útil, e não
entramos em regime turbulento se as nossas partículas forem de dimensões
celulares ou subcelulares. Mais ainda, a expressão eq.(3.3) mostra que tanto
objectos com dimensões diferentes como materiais com densidades diferentes
poderão ser separadas, o que desenvolvemos um pouco mais adiante.
1
Devido à força gravítica (peso) as coisas ‘caem’ para baixo e ‘bóiam’ para cima. Numa
centrifugção, devido à força centrífuga, as coisas ‘caem’ para fora e ‘bóiam’ para dentro.
2
Deve ser claro que o factor RCF é também a razão entre as velocidades terminais
numa centrifugadora e numa sedimentação gravítica, basta comparar as equações (3.3) e
(2.19).

25
Figura 3.1: PMS 405 C Milk Separator... [2]

3.2.2 Coeficiente de Sedimentação


Define-se o coeficiente de sedimentação como:
vT
S= (3.5)
ω2r
que representa a velocidade de sedimentação por unidade de aceleração. As
suas dimensões são de tempo, mas os seus valores muito pequenos, pelo que
se adoptou uma unidade de tempo muito curto, o svedberg - S, para os seus
valores. Este define-se como 1S = 10−13 s.3

3.3 Separação
Para além de poder aumentar drasticamente a velocidade de precipitação
de substâncias em suspensão, a centrifugação tem a aplicação óbvia e im-
portante de separar componentes de misturas.
Como primeiro exemplo consideramos a separação de dois líquidos: Ao
centrifugar leite gordo, a nata (cerca de 3,5% do leite natural), menos densa
que a componente aquosa, irá migrar em direcção ao eixo de rotação (o
equivalente a ’boiar’). Na realidade este é o processo usado industrialmente,
com recurso a centrifugadoras como o da Figura 3.1, para “fabricar” leite
magro e natas.
3
Por vezes utiliza-se Sv como símbolo para o svedberg, o que considero pouco aconse-
lhável, porque este símbolo mais vulgarmente representa o sievert, uma unidade SI para
doses de radiação ionizante.

26
Figura 3.2: Separação de componentes de estrutura celular conseguida por
centrifugação diferencial. [3]
27
.
����� partículas de
�����
����� baixa densidade
azeite
partículas sólidas
�����
����� de densidade
intermédia
água

��������� sólidos mais densos


��������� que a água

Figura 3.3: A distribuição final de componentes inicialmente misturados,


por ordem de densidades, é atingida rapidamente pela centrifugação.

A separação de componentes sólidos poderá basear-se em diferentes ve-


locidades de sedimentação, conforme a eq.(3.3), conseguindo-se resultados
importantes ajustando as velocidades e tempos de rotação. É a centrifuga-
ção diferencial, veja-se o exemplo da Figura 3.2. Outra forma de separação
recorre a diferentes posições finais de componentes inicialmente misturados,
de acordo com as suas densidades. A ideia é bastante simples. Considerem
um tubo com 2 líquidos imiscíveis de densidades diferentes (que ainda não
colocamos em centrifugação). É claro que o líquido menos denso forma uma
camada por cima do mais denso. Azeite a boiar sobre água ou vinagre.
Agora imaginem que nesta amostra de dois líquidos existem também resí-
duos sólidos de três espécies: uns menos densos que o azeite, outros com
densidade intermédia entre as densidades do azeite e da água, e finalmente
outros mais densos que a água. É óbvio que a disposição final das diversas
substâncias no tubo será o da Figura 3.3. É uma questão de tempo. . . Mas
pode ser realmente muito tempo se esperarmos por sedimentação gravítica.
Contudo, é manifesto que a mesma distribuição de componentes resultará
de centrifugar a mistura inicial, e em muito menos tempo.
A mesma ideia é também aplicada usando um único meio líquido com
uma densidade graduada: Imaginemos que a densidade do meio líquido
aumenta de forma contínua desde um valor menor mais perto do eixo de
rotação, até um valor máximo, na zona mais afastada do centro, conforme
a Figura 3.4
Conforme o raciocínio do caso anterior com azeite e água, e como se vê
facilmente com a própria eq.(3.3), a posição final de partículas em suspensão
será a da camada líquida com a mesma densidade que as partículas.
Estes processos de separação baseados na densidade variável dizem-se de

28
densidade
crescente

Figura 3.4: Meio líquido de centrifugação com gradiente de densidade.

centrifugação isopícnica.4 Quanto ao líquido com gradiente de densidade,


há várias formas de o conseguir, essencialmente recorrendo ao aumento da
densidade de uma solução com o aumento da concentração. Um exemplo
especialmente doce e importante na prática é solução de açucar. Na reali-
dade há numerosos preparados específicos para diferentes aplicações. Vejam
os exemplos das Figuras 3.5 e 3.6. Para além de introduzir escalas ou gra-
dientes na densidade do meio, também se recorre à variação da viscosidade.
Aqui não vou considerar nenhum exemplo, mas novamente a eq.(3.3) mos-
tra claramente como este pode ser outra forma de afectar as velocidades de
sedimentação.
As aplicações da centrifugação são vastas. Aqui o objectivo é entender
os princípios físicos deste método. Os exemplos pretendem apenas ilustrar
esses princípios com casos concretos de aplicação.

4
isopícnico significa igual densidade.

29
Figura 3.5: Representação esquemática duma separação de organelas [4].

Figura 3.6: Aplicação à separação em DNA, usando um gradiente de den-


sidade de CsCl, estabelecido pela própria rotação da solução inicialmente
homogénea [5].

30
Capítulo 4

Tensão superficial

4.1 Coesão e adesão


À força de atracção entre moléculas da mesma substância chamamos coesão.
É elevada nos sólidos, geralmente menor nos líquidos, e sempre muito menor
nos gases. A adesão é a força atractiva entre as moléculas das superfícies de
contacto entre substâncias diferentes.
Quando vertemos água num copo de vidro, a superfície livre da água
será plana, a não ser na zona de contacto com a parede do copo, onde a
superfície irá curvar para cima formando o menisco. Isto sucede porque a
adesão da água ao vidro é superior à sua coesão. Por isso a água molha o
vidro. Ao contrário, no caso do vidro conter mercúrio, o menisco é curvado
para baixo, porque a coesão do mercúrio é muito elevada, sobrepondo-se à
adesão. O mercúrio não molha vidro.
O ângulo entre o líquido e o sólido na região do contacto é uma indicação
da importância relativa da adesão e coesão. De forma geral designa-se por
ângulo de contacto ao ângulo de encontro entre uma interface líquido-gás e
um sólido. Figura 4.1
O termo usa-se também para referir o ângulo duma gota de líquido co-
locado numa superfície horizontal. A capacidade do líquido molhar o sólido

Ar
Ar Ar
Vidro

Vidro
Vidro

θ
´
Agua θ
´
Liquido ´
Mercurio

Figura 4.1: Ângulos de contacto - θ. O ângulo água-vidro é perto de 0o ,


para o mercúrio-vidro vale θ = 140o .

31
θ
θ

1 2

Figura 4.2: Ângulos de contacto. No caso 1 a adesão é forte, o líquido molha


o sólido e θ < 90o . No caso 2 a coesão é mais forte e θ > 90o .

Figura 4.3: As moléculas da camada superficial estão sujeitas a menos forças


de coesão.

prende-se claramente com o valor do ângulo de contacto. Impermeabilizar


um tecido é, obviamente, passar duma situação como a da Figura 4.2-1 para
a situação da Figura 4.2-2.

4.2 Tensão superficial


As moléculas no interior duma substância são sujeitas à mesma força média
de atracção em todas as direcções por parte das moléculas vizinhas. Já as
moléculas da camada superficial estão sujeitas a forças de atracção distintas
nas direcções interior e exterior da amostra - Figura 4.3. Assim numa in-
terface ar-água, por exemplo, as moléculas na camada superficial são mais
fortemente atraídas pelas moléculas das camadas inferiores do líquido do
que pela camada de ar por cima. Por esta razão, as propriedades da camada
superficial são diferentes das do volume. Este efeito é de pouca importância
se a fase tem uma superfície pequena, mas à medida que o grau de dispersão,
e consequentemente a área total da interface, aumenta, as propriedades da
superfície tornam-se mais importantes para o sistema. Para compreender os
fenómenos associados às superfícies/interfaces temos de considerar a tensão
superficial.
É conhecido que a superfície de água em contacto com o ar comporta-se
como se de uma fina película flexível se tratasse. Os exemplos são muitos:
vejam-se as imagens da Figura 4.4.
A tendência de pequenos objectos molhados que bóiam têm de se agre-

32
Figura 4.4: A tensão superficial da água em contacto com o ar.

garem na superfície do líquido, chamado efeito cheerios, e que podemos


observar ao pequeno almoço, também é uma consequência da tensão super-
ficial [6].
Qualquer linha numa superfície está sujeito a forças de tensão como na
Figura 4.5. A linha é puxada para cada lado pelo líquido à superfície desse
lado da linha. O valor dessa força, F , por unidade de comprimento, L, é a
tensão superficial, γ:
F
γ= . (4.1)
L
As unidades SI são N/m. Aumentar a área superficial significa levar molé-
culas do volume para a superfície. Isto significa quebrar um maior número
de ligações atractivas do que as que se formam em torno da molécula na

33

→ F
F

Figura 4.5: Devido à tensão superficial uma linha na superfície é puxada


(com a mesma força) para ambos os lados.

ΔΣ →
F
l


Δx

Figura 4.6: É necessário trabalho para aumentar a superfície.

sua nova posição. Este processo só pode ocorrer à custa de fornecer energia
a uma fase cuja superfície aumenta. Criar superfície requer trabalho. A
razão entre o trabalho, W , e o aumento da área da superfície, ΔA, é exac-
W
tamente esta mesma tensão superficial: γ = ΔA . É fácil concluir que assim
é considerando o processo da Figura 4.6. Uma armação com um arame mó-
vel contém uma película de fluído (tipo água com detergente). Devido à
tensão superficial, a peça móvel é puxada para a esquerda com uma certa
força de valor F = 2γl (o factor de 2 vem do simples facto de a película
ter duas superfícies, tal como esta folha de papel tem frente e verso). Uma
força do mesmo valor é aplicada ao arame móvel, que se desloca Δ�x, sempre
em equilíbrio. O trabalho realizado sobre o sistema ‘película’ foi obviamente
W = F Δx. Com este trabalho aumentou-se a área superficial em 2ΔΣ (pois
a película tem duas superfícies). Então

W F Δx 2γΔΣ
= = =γ
ΔA 2ΔΣ 2ΔΣ
Uma vez que ΔΣ = lΔx.
Como o processo realiza trabalho positivo sobre o sistema, concluímos
que ao aumento da superfície do sistema corresponde um aumento da sua
energia interna. (Isto tem alguma analogia com a compressão dum gás, que
também causa um aumento da sua energia interna).
Torna-se assim claro que devido à tensão superficial as fases líquidas
tendem a minimizar a sua área superficial, pois trata-se de minimizar a
sua energia. Por isso as gotas são redondas, as bolhas de gás na água são
redondas, as bolas de sabão são redondas, etc. É que a configuração com

34
líquido γ líquido γ
BCl3 16.7 C 6 H6 28.88
C2 H5 OH 22.03 AlCl3 39.5
(CO3 )2 CO 23.7 H2 O 72.583
C6 H12 26.54 Hg 471.6
CHCl3 27.1

Tabela 4.1: Tensão superficial γ (mN/m) de alguns líquidos à temperatura


de 20o C.

menor superfície para um dado volume é a esfera. A área superficial de um


cubo com 1 cm3 de volume é de 6 cm2 . O mesmo volume em forma esférica
tem apenas 4,8 cm2 de área superficial.
A tabela 4.1 indica alguns valores de tensão superficial. Vemos que são
típicos valores de dezenas de mN/m. É de notar o elevado valor no caso
do mercúrio. Os metais quando em estado líquido mantêm forças de coesão
elevadas, e consequentemente tensões superficiais também altas.

4.2.1 Tensão superficial e temperatura


Ao aquecermos uma substância a tendência é para ela expandir e haver
um enfraquecimento das ligações intermoleculares no seu interior - diminui
a coesão, e consequentemente diminui a tensão superficial.1 A representa-
ção gráfica da tensão superficial em função da temperatura mostra, para a
grande maioria das substâncias, uma diminuição muito aproximadamente
linear, até perto da temperatura crítica,2 como se vê na Figura 4.7. À tem-
peratura crítica a tensão superficial será certamente zero, pois a distinção
entre o líquido e o vapor desaparece. (Já em 1860 Mendeleev descobriu o
que apelidou de “ponto de ebulição absoluta”, precisamente como a tempe-
ratura a que desaparecia a interface líquido-vapor. Hoje dita temperatura
crítica).
Em 1886, Eötvös propôs uma relação entre a energia superficial molar
e a temperatura para uma substância pura. Seja v o volume específico do
líquido.3 Se M representa a sua massa molecular, então M v é o volume
molar - o volume ocupado por uma mole do líquido. Supondo uma forma
esférica (que minimiza a energia de superfície), a área superficial será ob-
viamente4 proporcional a (M v)2/3 , e portanto a energia livre da superfície
de uma mole da substância será proporcional a γ(M v)2/3 . De acordo com
1
Para temperaturas acima do ponto de ebulição normal do líquido a tensão superficial
deve ser medida à pressão de vapor saturado do líquido a essa temperatura.
2
Ver Apêndice B. Necessariamente.
3
O volume específico é o inverso da densidade, as unidades cgs de v são então cm3 /g.
4
Se quiser poderá verificar que a superfície duma esfera de volume V tem área dada
por A = (36πV 2 )1/3 .

35
Figura 4.7: Variação da tensão superficial com a temperatura para alguns
líquidos. [7]

a proposta de Eötvös, esta energia diminui linearmente com a temperatura,


o que em matematiquês é

γ(M v)2/3 = a − kT,

onde a e k são constantes, e T é a temperatura. Notando que a energia su-


perficial deverá desaparecer ao ser atingida a temperatura crítica, Tc , resulta
que a = kTc , e fica
γ(M v)2/3 = k(Tc − T ).
Entretanto Ramsay e Shields efectuaram um estudo experimental e conclui-
ram que, na realidade, esta relação empírica fornece melhores resultados se
o valor da tensão superficial era já nula um pouco antes de desaparecer a
interface líquido-vapor no ponto crítico. Assim uma forma mais correcta
da relação entre tensão superficial e temperatura, dita de Ramsay-Shields-
Eötvös é5 :
γ(M v)2/3 = k(Tc − 6 − T ). (4.2)
Note-se que em unidades SI k vem expresso em J/K·mol2/3 . Para muitos
líquidos o seu valor é pouco superior a 2 × 10−7 J/K·mol2/3 .
Outra equação, também empírica, relacinando a tensão superficial e a
temperatura é devida a Guggenheim e Katayama, mas não aprofundaremos
mais o assunto.
5
O significado de mudar Tc para Tc − 6 deve ser claro - em geral a tensão superficial
desaparece cerca de 6o C abaixo da temperatura crítica.

36
H2 O Hg

Figura 4.8: Ascensão capilar da água e depressão capilar do mercúrio.

4.2.2 Capilaridade
Num tubo de vidro de raio interno pequeno (tubo capilar) com um extremo
mergulhado numa tina, a água sobe para um nível mais alto do que na tina.
Pelo contrário, o mercúrio ficará a um nível mais baixo no tubo capilar de
vidro do que numa tina. Figura 4.8. Este é o fenómeno da capilaridade,
e está directamente relacionado com a tensão superficial. Consideremos o
caso dum líquido com ângulo de contacto θ, densidade ρ e tensão superficial
γ, que sobe até uma altura h num tubo capilar de raio r. Figura 4.9. A
tensão superficial deve fornecer a força capaz de aguentar o peso do fluído
que sobe no tubo. O perímetro da superfície do líquido está em contacto
com o vidro. O líquido exerce forças de tensão superficial sobre o vidro,
ao longo deste perímetro, forças que são tangenciais à superfície do líquido.
Nesta situação, o vidro exerce forças iguais mas opostas (terceira lei de
Newton, pois) sobre o perímetro da superfície do líquido, que são as forças
ilustradas na Figura 4.10. Sobre cada comprimento Δ� é exercida uma força
de magnitude |f�| = γΔ�, fazendo um ângulo θ, igual ao ângulo de contacto,
com a vertical. Deve ser claro que as componentes horizontais dessas forças
f� se anulam mutuamente, e portanto a resultante da força que o vidro exerce
para sustentar a subida da água no tubo é |F� | = 2πrγ cos θ. O factor cos θ
projecta a componente vertical das forças, e 2πr é o perímetro em contacto
com o vidro (o comprimento da soma dos Δ� da Figura 4.10). Por outro
lado o fluído que subiu no tubo capilar pesa ρπr2 hg. Logo

2γ cos θ
2πrγ cos θ = ρπr2 hg ⇒ h = (4.3)
ρgr
Esta última igualdade é conhecida como a lei de Jurin.

4.2.3 Pressão e superfícies curvas


A pressão dos dois lados duma interface curva é diferente. Comparemos as
pressões na base e o no topo dum líquido que ascende num tubo capilar -

37

F
r θ → r θ → θ
f f
r

h h h


P

a) b) c)

Figura 4.9: a) Subida dum líquido num tubo capilar. b) As forças de ten-
são superficial, f�, devem equilibrar o peso do da coluna de líquido. c) A
resultante vertical das forças de tensão ao longo do perímetro do tubo vale
|F� | = 2πrγ cos θ. O peso vale |P� | = πr2 hρg. |P� | = |F� | na situação de
equilíbrio.

θ
f�

Δ�

Figura 4.10: Forças de tensão superficial que o vidro exerce sobre o perímetro
da superfície da água em contacto com o vidro, que são iguais e opostas às
forças de tensão superficial que a água exerce sobre o vidro.

38
θ
R
θ
r
A
h
C
B

Figura 4.11: A pressão é descontínua numa interface curva.

Figura 4.11. A lei de Stevin garante que a pressão no líquido em B e C é a


mesma, que é a pressão atmosférica, p0 . Mas também pela lei de Stevin
pB − pA = ρgh
sendo A um ponto no interior do líquido, imediatamente abaixo da interface,
que por simplicidade iremos considerar que tem forma de calota esférica (o
que em muitos casos até é verdade). Pela lei de Jurin:
2γ cos θ
ρgh = (4.4)
r
onde r é o raio interior da capilar, que por sua vez relaciona-se com o raio
da curvatura esférica da superfície do líquido R: vemos pela Figura 4.11 que
r = R cos θ. Então concuimos que

p0 − pA = (4.5)
R
Esta é a equação de Young - Laplace.6 A pressão é menor do lado convexo
duma interface curva e mais alta do lado côncavo. Se causarmos uma bolha
de ar dentro de água, a pressão do ar no interior da bolha supera a pressão da
água circundante pelo valor de 2γ/R. Outra consequência é que no interior
duma bola de sabão a pressão é superior à do exterior pelo valor de 4γ/R.
O valor é a dobrar, porque a bola de sabão tem duas superfícies. Quanto
mais pequena for uma bolha, ou uma gota, maior a pressão no seu interior.

4.3 Interfaces
4.3.1 Tensão interfacial
É habitual usar o termo tensão superficial quando estamos a tratar dum lí-
quido exposto ao ar, ou em equilíbrio com o seu vapor (as duas coisas podem
6
Pela forma que foi deduzida, conclui-se que esta relação é válida se a superfície tem
uma curvatura esférica. No caso de outras superfícies curvas a relação entre as pressões
dos dois lados da interface é modificada, mas o lado côncavo tem sempre a pressão mais
alta.

39
A A

α α
WCα
A

Figura 4.12: Fornecendo o trabalho de coesão criamos mais superfície. Com


A = 1, WCα = 2γ α

não coincidir, sendo conveniente especificar se houver dúvidas de contexto).


Mas, na realidade, esta tensão surge naturalmente entre fases líquidas imis-
cíveis distintas, e também nas camadas de contacto entre fluídos e sólidos.
Nestes casos mais gerais é habitual designar-se de tensão interfacial. A ten-
são na camada de contacto das fases α e β representa-se habitualmente por
γ αβ . Vale a pena notar que no caso duma interface entre dois líquidos de
densidades distintas, ρ e ρ� , com ρ� < ρ, devemos concluir sem dificuldade
que a equação (4.4) deve ser modificada para

2γ cos θ
(ρ − ρ� )gh =
r
Enquanto que a eq (4.5) mantém se.

4.3.2 Trabalho de coesão e trabalho de adesão. Espalha-


mento
O trabalho de coesão duma substância pura α (líquida ou sólida), WCα , é
definido simplesmente como sendo o trabalho necessário para dividir em dois
uma coluna dessa substância cuja secção tem uma unidade de área, como
esquematizado na Figura 4.12. Como o processo consiste em aumentar em
duas unidades a área superficial, sabemos que este trabalho vale

WCα = 2γ α (4.6)

onde γ α é a tensão superficial da substância α.


Imaginemos agora que a nossa coluna consiste em duas substâncias, dis-
tintas, α e β, imiscíveis, e que as separamos. Figura 4.13. O trabalho que
necessitamos de realizar é o trabalho de adesão entre α e β, WAαβ . Como o
processo consiste em aumentar em uma unidade as superfícies das substân-
cias puras α e β, temos de dar γ α + γ β energia ao sistema, mas ao mesmo
tempo diminui de uma unidade a área da interface entre α e β (que deixaram

40
A A

β β
WAαβ
A

α α

Figura 4.13: Fornecendo o trabalho de adesão, separamos as fases das subs-


tâncias α e β.

de estar em conacto), assim o sistema devolve-nos γ αβ energia, sendo γ αβ o


valor da tensão na interface de contacto entre α e β. A contabilidade rende,
muito simplesmente:
WAαβ = γ α + γ β − γ αβ (4.7)
Devemos notar que formalmente as equações (4.6) e (4.7) fornecem os valores
numéricos de WCα e WAαβ em unidades de trabalho, J, embora as unidades
das tensões superficiais sejam J/m2 . Isto porque estes trabalhos de coesão e
adesão são definidos como os valores para uma unidade de área. No entanto
não é raro ver WCα e WAαβ expressas em J/m2 . Embora formalmente inexacto,
isto não é problema dado a prática corrente.
Estamos agora em condições de fazer previsões sobre o comportamento
dum líquido, β, vertido sobre outro líquido, α. Será que se espalhará, ou
não? É tudo uma questão de ver qual a configuração que minimiza a energia
livre. Ora já vimos que a energia associada ao aumento duma superfície é o
trabalho necessário para a criar, determinado pelas tensões interfaciais. Se
o líquido β se espalhar até cobrir uma área A, como na Figura 4.14, então:
1. Desaparecem A m2 da superfície de α que estavam em contacto com o ar
(ficaram cobertos pelo β). 2. Aparecem A m2 de interface entre β e o ar,
e 3. Aparecem também A m2 de interface entre α e β. A energia livre das
superfícies, G, diminui γ α A, e aumenta γ β A + γ αβ A. A contabilidade dá

ΔG = (γ β + γ αβ − γ α )A

para a variação da energia livre. O líquido espalha-se se isso levar a uma


diminuição da energia livre, isto é se a quantidade

S = γ α − γ β − γ αβ (4.8)

for positiva. Isto também é fácil de entender considerando as forças devido


às tensões interfaciais em jogo: Na Figura 4.15 uma parte da linha fronteira
entre os líquidos é puxada para fora pela força F�α devido à tensão superficial

41
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A
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β







β






α α
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Figura 4.14: O líquido β espalha-se sobre a superfície do substrato α, até


ocupar a área A. Neste caso S > 0.


Fαβ →
β


α Fβ

Figura 4.15: As forças são proporcionais às tensões interfaciais.

γα , e puxada para dentro pelas forças F�β e F�αβ , devido às tensões das
interfaces β-ar e β-α. O líquido β espalhar-se-á sse Fα > Fβ + Fαβ . Dada a
relação entre tensão superficial e força, eq.(4.1), esta condição é equivalente
a S > 0.
S é o coeficiente de espalhamento. Na situação descrita α designa-se por
substrato.
É evidente que maiores e menores valores de coesão e adesão vêm reflec-
tidas nos valores das tensões interfaciais.
Valores de tensões e coeficientes de espalhamento para vários líquidos
sobre água estão na Tabela 4.2.
Por vezes surgem situações um pouco mais complicadas, um bom exem-
plo é dado pela evolução duma gota de benzeno colocada sobre água. Os va-
lores das tensões superficiais para água e benzeno puros são γ α = 72,5 mN/m
e γ β = 28,9 mN/m, respectivamente. A tensão interfacial é γ αβ = 35,0 mN/m.
Desta forma o coeficiente de espalhamento será:

S = γ α − γ β − γ αβ = 8,6 mN/m.

O benzeno espalha-se sobre a água. Sucede porém, que água é ligeiramente

Líquido β γ β (mN m−1 ) γ αβ (mN m−1 ) S (mN m−1 )


Álcool Octilico 27.5 8.5 36.5
Ácido Oleico 32.5 15.5 24.5
Bromofórmio 41.5 40.8 −9.8
Parafina Líquida 31.8 57.2 −16.8

Tabela 4.2: Tensões superficiais e coeficientes de espalhamento de alguns


líquidos sobre água, γ α = 72.5 mN/m, para T = 20o C.

42



θ → θ Fα
β Fαβ
α

Figura 4.16: O líquido β sobre o substrato sólido α tem ângulo de contacto


θ. As tensões interfaciais originam as forças ilustradas.

θ Δ A cos θ
α ΔA

Figura 4.17: O líquido β avança sobre o sólido α e cobre uma área adicional
ΔA. Ao mesmo tempo a área da superfície β-ar apenas aumenta ΔA cos θ.

solúvel em benzeno, e benzeno é ligeiramente solúvel em água. Assim, pas-


sado algum tempo, a gota de benzeno terá absorvido alguma água, um
processo relativamente rápido, o que lhe vai modificar a tensão superficial
para γ �β = 28,8 mN/m. O coeficiente de espalhamento aaumenta ligeira-
mente, para 8,7. Mais lenta, a dissolução dum pouco do benzeno na água
fará diminuir a tensão superficial desta para γ �α = 62,2 mN/m, resultando
numa modificação do coeficiente de espalhamento para S � = −1,7 mN/m,
negativo: Inicialmente o benzeno espalha-se sobre a superfície da água, mas
passado algum tempo volta a juntar-se numa gota! (Falta referir que a
tensão interfacial γ αβ mantém-se inalterada).
Consideremos agora o caso em que um líquido, β, é colocado sobre um
substrato sólido, α. Agora o ângulo de contacto (segunda definição, ver
Figura 4.2) passa a intervir no coeficiente de espalhamento. Vemos na Figura
4.16 que a gota se espalhará se

Fα > Fαβ + Fβ cos θ,

isto é, se for positivo o coeficiente de espalhamento, agora modificado para:

S = γ α − γ αβ − γ β cos θ. (4.9)

Podemos reproduzir o resultado considerando a variação da energia livre.


Se a fronteira do líquido avançar um pouco como na Figura 4.17, então
enquanto a área do substrato coberto pelo líquido aumenta ΔA, a área da
interface líquido-ar aumenta apenas ΔA cos θ. Então vemos facilmente que
a variação da energia livre devido a este processo foi:

ΔG = SΔA,

43
onde S é o coeficiente na eq.(4.9).
Na realidade, se a tensão superficial dum líquido em contacto com um
gás é relativamente fácil de medir, já o mesmo não se passa para as tensões
das superfícies dos sólidos. Quer dizer, na expressão (4.9), a tensão γ β é
a única facilmente determinável por medição directa. Por outro lado, no
caso de se verificar um equilíbrio estático, i.e ser S = 0, uma vez conhecidas
a tensão γ β e o valor do ângulo θ, podemos então determinar o valor da
diferença γ α − γ αβ , pois nessa situação

γ α − γ αβ = γ β cos θ

Deve ser notado que estes resultados serão aplicáveis quando a gota
líquida é pequena, de modo a podermos desprezar o efeito do seu peso (como
fizemos).

44
Capítulo 5

Adsorção

A adsorção consiste numa diferença entre a concentração duma substância


no volume duma fase e a sua concentração numa camada superficial da fase.

5.1 Soluções. Isotérmica de Gibbs


Um exemplo elucidativo é o caso da adsorção na superfície duma solução.
O ácido acético é totalmente miscível com água, e, a 20o C tem uma tensão
superficial de γ = 27,6 mN/m, bastante inferior aos 72,6 mN/m da água.
Ao misturarmos os dois líquidos, é natural esperarmos uma tensão super-
ficial intermédia para a mistura, tensão essa que deve ir diminuindo com
o aumento da concentração do ácido acético. As nossas expectativas serão
realizadas. A Figura 5.1 mostra a variação da tensão superficial da mis-
tura com a concentração de ácido acético. Ora, podemos ter a certeza do
seguinte: a concentração de ácido acético na camada superficial é superior
à sua concentração no volume da solução. É muito simples chegar a esta
conclusão. Dado que o ácido acético diminui a tensão superficial, um pe-
queno aumento da sua concentração na superfície diminuirá ainda mais a
energia superficial. Assim dá-se uma adsorção positiva - uma concentração
superior do ácido acético na superfície em relação ao volume da mistura. (É
igualmente lícito dizer que temos uma adsorção negativa da água, pois este
tem menor concentração na superfície).
É claro que existe um equilíbrio entre a tendência de minimizar a tensão
superficial e a tendência para a mistura ser uniforme, assim a adsorção será
modesta neste caso.1
Podemos agora considerar uma situação oposta. Se dissolvermos sal em
água, naturalmente aumentamos a coesão - a presençaa dos iões Na+ e Cl−
no meio das moléculas fortemente polares da água implicam um aumento
1
Diminuir a tensão superficial é minimizar a energia, uniformizar a mistura é maximizar
a entropia. O estado de equilíbrio de um sistema reflecte sempre o jogo entre estas duas
necessidades.

45
90
80

tensão superficial (mN/m)


70
60
50
40
30
20
10
0
0 20 40 60 80 100
% de ácido acético (por massa)

Figura 5.1: variação da tensão superficial numa mistura de água e ácido


acético.

das energias de ligação eléctricas. Isto contribui para fenómenos como o


aumento da temperatura de ebulição (é mais difícil para as moléculas de
água escaparem ao estado líquido, pois a presença dos iões carregados ajuda
a segurá-las lá), ou a diminuição do ponto de fusão (os icebergues são água
doce a flutuar no oceano salgado). Para nós é, nesta altura, bem evidente
que a presença do sal irá provocar um aumento da tensão superficial.2 As-
sim esperamos sem dúvida que haja alguma adsorção negativa do sal na
superfície da água, e com razão.
A regra geral é que as substâncias que diminuem uma tensão interfa-
cial terão adsorção positiva na interface. Ao contrário, uma substância que
aumente a tensão duma interface terá aí adsorção negativa.
No caso das soluções foi o próprio Gibbs, em 1876, quem notou este
facto. Ele deduziu uma relação entre a variação da tensão superficial causado
por um aumento na concentração dum soluto e o excesso de concentração
do soluto na superfície. Deve-se notar que este excesso de concentração é
exactamente a adsorção. Podemos escrever a equação de Gibbs como:

c Δγ
Γ=− (5.1)
RT Δc

Aqui Γ é a adsorção (excesso de concentração) do soluto de concentração


c. R é a constante dos gases ideais enquanto T é a temperatura absoluta.
A fracção ΔγΔc é a variação da tensão superficial com a concentração do
soluto, variação essa que supomos constante para pequenas variações da
concentração.3 Como exercício confirme que as unidades de Γ na expressão
(5.1) são mol/m2 . A equação (5.1) pressupõe que a temperatura não varia
2
O aumento é modesto: Numa solução em que 10% da massa seja NaCl a tensão
superficial é cerca de 4,5% superior à da água pura (à temperatura ambiente).
3
Quer dizer que em rigor será a derivada dγ
dc
que intervém na equação.

46
(o que já vimos teria também efeito sobre a tensão superficial). É por isso
conhecida como a isotérmica de Gibbs.
O sinal negativo em (5.1) confirma o que sabemos: Se a tensão superficial
diminui com o aumento da concentração, então a fracção Δγ Δc é negativa.
Assim a adsorção Γ é, neste caso, positiva, e vice-versa.
No caso de soluções aquosas vimos até aqui dois casos bem distintos:
um electrólito (sal) que aumenta (um pouco) a tensão superficial em relação
à água pura, e um caso típico duma molécula orgânica polar, solúvel em
água (ácido acético), onde a tensão superficial diminui, de forma moderada,
com a concentração do soluto. Existe uma terceira categoria de substância
no que diz respeito à sua acção sobre a tensão superficial da água. São
substâncias que, a serem adicionadas à água, ainda que em pequena concen-
tração, fazem diminuir drasticamente a tensão superficial. São denominados
de agentes tensoiactivos, (também escrito como tensoativos), ou surfactan-
tes (surface active agents = surfactants). Estes serão tema dum capítulo
próprio dedicado.

5.2 Adsorção em sólidos


O fenómeno da adsorção pode se apresentar na interface entre dois quaisquer
fases - sejam de estados físicos diferentes ou não. São de particular impor-
tância os fenómenos de adsorção dos gases nas superfícies de alguns sólidos.
Trata-se, claro está, de moléculas do gás a fixarem-se à camada superficial
do sólido. (Distingue-se da absorção, pois este último envolve penetração do
gás para o interior do sólido). Também é importante a adsorção de substân-
cias em solução sobre sólidos. Já em 1785 Lovits notou que o carvão podia
adsorver substâncias duma solução.
Ao sólido chamamos de adsorvente, enquanto que referimo-nos à subs-
tância adsorvida como o adsorvato.

5.2.1 Adsorção de gases em sólidos


Características gerais
Nas embalagens de muitos objectos que podemos encontrar estão colocados
pequenos saquinhos fechados contendo uns grãos de sílica gel. Figura 5.2. A
composição deste adsorvente é idêntica à do quartzo ou da opala - é sílica:
SiO2 . Este mineral tem 17 formas cristalinas, mas neste caso é um gel (o
que isto significa com exactidão será visto quando tratarmos de colóides mais
adiante). A sua propriedade mais extraordinária é que é muito poroso - tem
então muita superfície (pensem numa esponja). Na realidade, um grama de
sílica gel pode ter cerca de 800 m2 de superfície livre [8]! A sua utilidade
advém do facto das moléculas de vapor de água gostarem de se aderir às da

47
Figura 5.2: Silica gel [8].

superfície da sílica. Resulta então desta grande área superficial uma grande
capacidade para secar o ar - daí a sua utilidade comum como dessecante.
Bons adsorventes sólidos devem então ter grandes áreas de superfície.
Destacam-se, para além da sílica gel, os zeólitos - silicatos de alumúnio,
naturais ou sintéticos, e diversas formas de carbono activado - carvão tratado
por forma a maximizar a sua área superficial/capacidade de adsorção. A
figura 5.3 é uma imagem dum zeólito obtida num microscópio electrónico.
Ilustra bem como a superfície é grande.
Aumentar a pressão, e/ou diminuir a temperatura, aumenta a quanti-
dade de gás adsorvido. A Figura 5.4 representa o volume de azoto adsorvido
por 1 g de carvão como função da pressão. Cada curva corresponde a uma
temperatura diferente. Estas curvas denominam-se isotérmicas de adsorção.
O aumento da adsorção com a diminuição da temperatura indica-nos,
através do princípio de Le Châtelier - Braun, que trata-se dum processo
exotérmico (o contrário seria absurdo, pois. . . ) O calor libertado diz-se
calor de adsorção (pois claro). Com base nos valores desta energia libertada
no processo distinguimos dois mecanismos distintos de adsorção.

Adsorção física e adsorção química


A adsorção física caracteriza-se por valores baixos de calor de adsorção, da
ordem de 5–40 kJ por cada mole de gás adsorvido. Estes valores são da
mesma ordem que o calor libertado na condensação gás → líquido. É de
inferir que as forças que ligam as moléculas do gás à superfície do sólido são
da mesma natureza que as forças de coesão dentro do líquido - forças de Van
der Waals. Assim a adsorção física também é denominada adsorção de Van
der Waals. Não ocorre reacção química entre gás e sólido.

48
Figura 5.3: Zeólito ao microscópio electrónico [9].

Figura 5.4: Isotérmicas de adsorção: O volume de N2 adsorvido (cm3 ) por


1 g de carvão vs. pressão (cm Hg), para várias temperaturas [10].
.

49
gás Volume Ponto de
adsorvido ebulição (K)
SO2 380 263,1
NH3 181 239,7
HCl 72 188,1
CH4 16,2 111,7
O2 8,2 90,2
H2 4,7 20,3

Tabela 5.1: Volume (em ml) de adsorção física de gases por 1 g de carvão a
15o C e 1 atm, e respectivos pontos normais de ebulição [10].

Uma vez que as forças envolvidas são de Van Der Waals, não surpreende
que, sendo iguais a temperatura, pressão e adsorvente, são mais adsorvidos
os gases que mais facilmente são liquefeitos. Este facto é verificado nos
dados da Tabela 5.1. Vemos que os gases mais facilmente liquefeitos, isto é
com as maiores forças de coesão de Van der Waals entre as moléculas, são
os mais fortemente adsorvidos. A adsorção física é geralmente um processo
reversível - se reduzirmos a pressão dar-se-á a desorção percorrendo a mesma
curva isotérmica, agora em sentido inverso.
Na adsorção química, a energia libertada é superior, da ordem de 40 -
500 kJ, e até mais, por mole de gás adsorvido, correspondendo ao estabele-
cimento de ligações químicas entre gás e sólido. Assim não se observa senão
em gases e sólidos capazes de reagir, e a temperaturas suficientemente altas
para activar a reacção. Este processo não é reversível.

É instrutivo este texto extraído de [11]:


“A diferença entre as adsorções física e química é exemplificada
pelo comportamento do azoto sobre o ferro. à temperatura do
azoto líquido, −190o C, o azoto é adsorvido sobre o ferro na forma
de moléculas de azoto, N2 . A quantidade de N2 adsorvida de-
cresce rapidamente com o aumento da temperatura. À tempe-
ratura ambiente, o ferro não adsorve o azoto. A temperaturas
altas, ∼ 500o C, o azoto atómico é adsorvido quimicamente na
superfície do ferro.”

Isotérmicas de Freundlich e de Langmuir - Adsorção de uma ca-


mada.
Observando a Figura 5.5 (a), em tudo semelhante às curvas da Figura 5.4,
notamos que quando a pressão é muito baixa a quantidade de O2 adsorvido
cresce rapidamente com pequenos aumentos de pressão, e que esse cresci-

50
Figura 5.5: Isotérmicas de adsorção: (a) - de O2 sobre carvão a 90 K, e (b)
- de N2 sobre sílica gel a 77 K. (De [12]).

mento é quase linear.4 Para pressões intermédias a quantidade adicional


de gás adsorvido para um dado aumento da pressão torna-se menor. Fi-
nalmente a curva torna-se essencialmente horizontal para pressões elevadas.
Isto é natural, pois a superfície do carvão fica saturado do gás, e torna-se
impossível aumentar mais o volume de gás adsorvido.
Se confrontarmos estas observações com a Figura 5.4 constatamos que
o volume de gás adsorvido correspondente à saturação é muito menor para
temperaturas mais altas.
As isotérmicas das Figuras 5.4 e 5.5 (a) são ditas de tipo I.
Existem várias expressões analíticas para a forma destas isotérmicas.
Uma conhecida por isotérmica de Freundlich é dada por:

v = kpa , (5.2)

sendo v o volume de gás adsorvido pela unidade de massa do adsorvente


(geralmente cm3 /g, mas não no SI), p é a pressão do gás, enquanto k e a são
constantes dependentes de qual o sólido, qual o gás, e qual a temperatura
(claro, curvas diferentes para temperaturas diferentes). Basta observar a Fi-
gura 5.4 para entender que 0 < a < 1. Em geral pode tomar-se a = n1 , sendo
n > 1 .5 Também vemos aí que a diminui com o aumento da temperatura.
Para pressões grandes a isotérmica de Freundlich não pode dar resultados
bons, pois não contempla a saturação da superfície do sólido. Para pressões
muito baixas a eq.(5.2) também não reproduz a quase linearidade do cres-
cimento de v com p. Todavia, na região das pressões intermédias, funciona
4
Dito de outra forma: O extremo esquerdo da curva é aproximadamente um segmento
de recta, bastante inclinado.
5
Se isto não é claro faça os gráficos de y = x1/3 e de y = x1/6 (não perca tempo, use
uma calculadora gráfica), e verá como isto funciona.

51
bem, sendo por isso muito aplicada. Tomando logaritmos à equação (5.2)
obtemos
ln v = ln k + a ln p. (5.3)
Nesta forma representa uma recta num gráfico ln v vs. ln p, bastando
dois pontos para a determinar. Veja um caso na secção 5.2.2, Figura 5.9.
Outra equação para a forma das isotérmicas do tipo I foi deduzida a
partir de algumas suposições simples por Langmuir6 em 1916, e tem a forma

bp
v=k , (5.4)
1 + bp

onde k e b são constantes dependentes das substâncias e temperatura. Esta


é a isotérmica de Langmuir. Quando as pressões são muito baixas, podemos
desprezar o termo bp no denominador, e em boa aproximação a isotérmica
de Langmuir torna-se

v � kbp (forma de (5.4) para pressões baixas)

reproduzindo assim a variação linear característica das baixas pressões.


Já para pressões elevadas, é o ‘1’ do denominador que pode ser despre-
zado, e fica

v�k (forma de (5.4 para pressões elevadas)

Assim a saturação da superfície do sólido a pressões elevadas é reproduzida


pela isotérmica de Langmuir, e k é exactamente o volume adsorvido na situ-
ação de saturação.7 na zona de pressões intermédias, onde frequentemente
funciona melhor (5.2).
Parte das suposições do Langmuir que o levaram à forma (5.4) não eram
correctas [12]. (Razão pela qual não as consideramos). Mas é certo que ele
estava a considerar exclusivamente o caso em que apenas uma camada de
moléculas do adsorvato deposita-se sobre o adsorvente, atingindo-se nessa
altura a saturação da superfície. Isto é adsorção de camada única, e é o
caso na adsorção química (pense porque!), e às vezes na adsorção física.
As isotérmicas de Freundlich e de Langmuir são adequadas à adsorção de
camada única.

Isotérmicas BET - Adsorção em múltiplas camadas


Claramente diferente é a curva da Figura 5.5 (b). Vimos que as forças de Van
der Waals intervenientes na adsorção física assemelham-se às de coesão do
6
Prémio Nobel da Química em 1932 pelo seu trabalho em química das superfícies.
7
Deve ser notado e enfatizado que vemos assim que este k que aparece na isotérmica
de Langmuir não tem absolutamente nada a ver com o k na isotérmica de Freundlich, que
é um parâmetro a ser ajustado numericamente para cada curva.

52
estado líquido do adsorvato. Assim não surpreende que na adsorção física se
possam depositar uma segunda, terceira,. . . camada sobre a primeira. Nesta
situação a forma das isotérmicas de adsorção é outra. Na Figura 5.5 (b) a
adsorção do N2 sobre sílica gel é de camada múltipla. A seguir à deposição
duma primeira camada de moléculas sobre o sólido, se aumentarmos mais
a pressão, tem lugar a deposição de mais moléculas do gás sobre a primeira
camada, e assim continua a aumentar o volume de gás adsorvido. As iso-
térmicas resultantes, ditas do tipo II, são as mais típicas para a adsorção
física.
Estas isotérmicas de adsorção em múltiplas camadas são descritas por
uma expressão analítica devido a Brunauer, Emmett e Teller8 - a isotérmica
BET [?]. A equação BET é:9
p 1 c−1 p
= + (5.5)
v(p0 − p) vm c vm c p0

Nesta equação v é o volume de gás adsorvido à pressão p, vm é o volume


correspondente à adsorção de uma única camada de moléculas do gás, p0
é a pressão necessária para a condensação do gás à temperatura conside-
rada (recordar o diagrama de fases). Para uma temperatura fixa c é uma
constante de valor:
c = e(E1 −EL )/RT
sendo E1 e EL os calores libertados nos processos de adsorção da primeira
camada de moléculas do gás e de condensação do gás para líquido, respec-
tivamente. Recordemos que ambos estes processos são exotérmicos 10 .
Se “perdermos” um minuto (ou dois ou três) do nosso tempo a pensar,
podemos antecipar um resultado interessante a propósito das isotérmicas
BET. Se a adsorção for um processo energeticamente mais favorável do que
a liquefacção, isto é, se as moléculas do gás tiverem uma adesão ao adsor-
vente que é superior à sua coesão no estado líquido, então é de esperar que
em primeiro lugar se dê a adsorção duma camada completa de moléculas
de gás a cobrir a superfície do sólido, e só depois, já com pressões mais
elevadas, é que se inicie o processo de adsorção duma segunda (e sucessivas)
camadas de moléculas do gás. Assim há um início rápido do processo de
adsorção, depois há um abrandamento, pois as moléculas não deixarão tão
facilmente o gás à medida que começa a escassear superfície livre do sólido,
e finalmente, aumentando suficientemente a pressão, dá-se a adsorção de ca-
madas suplementares, agora com moléculas do adsorvato a ligarem-se umas
às outras. Neste caso é de esperar a típica curva em “S” como o das Figuras
8
Edward Teller é famoso pelo seu trabalho no Projecto Manhattan durante a Segunda
Guerra Mundial, e por ser considerado o “Pai” da bomba H pelo trabalho que desenvolveu
após a guerra. Não é famoso por esta equação. . . [13]
9
Para uma dedução das eqs. (5.4) e (5.5) pode consultar [11]
10
Na verdade estes calores libertados são as entalpias dos respectivos processos.

53
5.5 (b) e da Figura 5.6 (a). A nossa hipótese é que E1 >EL - a adsorção
é energeticamente mais favorável do que a condensação (numa linguagem
menos científica, as moléculas do gás gostam mais do sólido do que umas
das outras). Neste caso c > 1 na eq. (5.5). Ora, quando c > 1 o gráfico v vs.
p obtido a partir da equação tem precisamente a forma em “S” característica
que acabamos de explicar.
Note-se que o aumento da pressão até valores vizinhos de p0 implica que
se passa dum processo de adsorção para um processo de condensação do gás.
é por isso que o volume do gás depositado no sólido começa a divergir. . .
Existe outra possibilidade. Se a atracçãoo das moléculas do gás umas
pelas outras for maior do que a sua atracção à superfície do adsorvente, en-
tão tenderão a convergir sobre moléculas já adsorvidas, e não tanto sobre a
superfície ainda livre do sólido. Quer dizer, não há qualquer abrandamento
no processo de adsorção devido ao esgotamento de superfície livre do adsor-
vente. Antes pelo contrário, o desparecimento dessa superfície é favorável a
uma adsorção ainda maior! Assim devemos esperar uma curva como o da
Figura 5.6 (b). Após esta explicação não deve ser surpreender que o gráfico
correspondente à eq.(5.5) tem esta forma no caso em que c < 1. Isto é
quando a condensação liberta mais calor do que a adsorção (E1 < EL ).
Novamente, ao chegarmos a p0 o gás irá-se condensar. . . (restando apenas
vapor suficiente para manter a pressão de saturação p0 , claro).
Convém resumir estes resultados em poucas palavras:

• A adsorção de camada única origina isotérmicas do tipo I. Estas são


descritas (pior ou melhor) pelas equaçãoes de Freundlich e Langmuir.
é o caso da adsorção química, e um dos casos possíveis na adsorção
física.

• A adsorção em múltiplas camadas origina isotérmicas dos tipos II e


III. Quando a interacção adsorvato - adsorvente é forte, será do tipo
II, quando essa interacção é fraca, será do tipo III. Estas isotérmicas
de adsorção são descritas pela equação BET, casos c > 1 e c < 1,
respectivamente.

Tanto no caso das isotérmicas BET como na de Langmuir, é possível


uma representação gráfica linear que facilita a determinação dos parâmetros
físicos que intervêm nas equações. Já vimos como isso pode ser feito para
as isotérmicas de Freundlich, ver eq.(5.3).
É imediato que a eq. (5.4) pode ser transformada em
p 1 1
= + p.
v kb k
Assim um gráfico de p/v vs. p será uma recta com declive k1 . Recorde que k é
o volume de gás adsorvido correspondente à saturação da superfície do sólido

54
II
Volume adsorvido

Volume adsorvido
III

vm vm

p0 p0
Pressão Pressão

(a) (b)

Figura 5.6: Isotérmicas BET. (a) Isotérmica do tipo II, aqui usei c = 25 na
eq. (5.5). (b) Isotérmica do tipo III, agora usando c = 0,25. Em qualquer dos
casos quando o gás aproxima-se das condições necessárias à sua condensação,
p = p0 para a temperatura considerada, o fenómeno de adsorção dará lugar
à condensação do líquido.

à temperatura considerada. Veja a figura 5.7 (a), onde estão isotérmicas da


adsorção de etileno sobre carvão nesta forma linear.
Já no caso da eq. (5.5) é claro um gráfico de v(p0p−p) vs. pp0 será uma recta
com declive vc−1
mc
, que intersecta o eixo vertical em vm1 c . O conhecimento da
recta permite então determinar vm e c. Ver os exercícios, e a Figura 5.7 (b).
onde estão representadas isotérmicas BET da adsorção de árgon (a), azoto
(b) e monóxido de carbono (c) sobre sílica gel a −183o C; da análise destas
rectas resulta que esta amostra de sílica gel teria 450 cm2 /g [10].
A má notícia é que só começamos a ver a superfície desta questão. . . Como
se pode adivinhar pela Figura 5.8 estão classificados seis tipos de isotérmi-
cas de adsorção caracterizando variações distintas sobre os mecanismos já
descritos. A boa notícia é que termos analisado três dos casos é já (mais
que) suficiente nesta abordagem introdutória.

5.2.2 Adsorção de solutos sobre sólidos


Recordemos a isotérmica de adsorção de Gibbs, eq. (5.1), e as considerações
a respeito. Ao introduzirmos numa solução um adsorvente sólido (como
carvão ou sílica gel, pulverizados para agirem no interior duma solução),
aumentamos muito a superfície da fase líquida. A equação de Gibbs continua
válida: simplesmente consideramos a variação da tensão superficial com a
concentração na interface líquido-sólido em vez de líquido-ar (vapor). Como

55
(a) (b)

Figura 5.7: isotérmicas de (a) Langmuir e (b) BET em representação gráfica


linear. De [10].

Figura 5.8: Os seis tipos de isotérmicas surgindo nos fenómenos de adsorção


física. (recorde-se que na adsorção química as isotérmicas são do tipo I).

56
Figura 5.9: Curvas de adsorção de ácido acético sobre carvão. I - Gráfico
v vs. c, que obedece bem à equação (5.6). II - Gráfico ln v vs. ln c, que
apresente uma forma linear. (De [10].)

foi referido a propósito do espalhamento de líquidos sobre substratos sólidos


(secção 4.3.2), a tensão na interface líquido-sólido não é fácil de conhecer. À
falta de melhor é habitual supor que a razão Δγ Δc da eq. (5.1) tem o mesmo
sinal na superfície do líquido em contacto com o sólido e em contacto com
o ar. Isto é dizer que, na maior parte das casos, uma substância adsorvida
positivamente (negativamente) na superfície livre duma solução será também
adsorvida positivamente (negativamente) na superfície do adsorvente sólido.
No caso de se dar a adsorção química duma componente em solução sobre
a superfície dum sólido, é habitual a aplicação da isotérmica de Freundlich,
substituindo a pressão pela concentração. Fica

v = kca , (5.6)

sendo c a concentração do soluto. Novamente tomando logaritmos obtém-se


uma relação linear. Figura 5.9.

57
Capítulo 6

Agentes tensioactivos

6.1 Generalidades
Considere a seguinte experiência, facilmente realizável. Deitam-se umas
gotas de azeite sobre água numa tina. O azeite irá lentamente espalhar-se
sobre a superfície da água. Já sabemos (secção 4.3.2) que isto deve-se a um
valor positivo do coeficiente de espalhamento, eq. (4.8). Neste caso os valores
das tensões são, aproximadamente, em mN/m, 73 para a superfície livre da
água, 36 para a superfície livre do azeite, e 23 para a interface água-azeite,
supondo a temperatura ambiente. Resulta S = 73 − 33 − 23 = 17 > 0, e
dá-se o espalhamento.
Mas se acrescentarmos à água uma pequena quantidade (uma gota bas-
tará) de detergente, o azeite torna a juntar-se numa pequena área da su-
perfície. O espalhamento é invertido. Devido a um grande abaixamento na
tensão superficial da água, causado pelo detergente, deixou de ser favorável
a substituição de uma superfície água-ar pelas duas superfícies azeite-ar e
azeite-água. Na realidade, a dissolução duma pequena quantidade de deter-
gente bastará para diminuir a tensão na superfície água-ar para um cerca
de 25 ou 30 mN/m. É de referir que ao mesmo tempo a tensão na interface
água azeite também vai diminuir muito - para menos de 5 mN/m. Vemos
que ainda assim o coeficiente S passa ser negativo (a tensão azeite - água
não é afectada).
Às substâncias que têm a acção de diminuir a tensão superficial de forma
importante, mesmo estando presentes em pequenas quantidades, chamamos
agentes tensioactivos,1 ou surfactantes (de surface active agents). Os agen-
tes tensioactivos por excelência são os detergentes, pelo menos enquanto
o solvente em questão é água. Suporemos ser este o caso ao longo deste
capítulo. Outro exemplo de tensioactivo são os sabões.
A sua acção sobre a tensão superficial, por contraste com as substâncias
que consideramos até agora, está ilustrada esquematicamente na Figura 6.1.
1
Também escrito como tensoativos, mas não aqui. . .

58
γ
I

II

III

Figura 6.1: Acção de substâncias tipo I, II e um tensioactivo (III) sobre a


tensão superficial como função da concentração.

Aí vemos o caso dum electrólito (tipo NaCl), duma molécula orgânica polar
típica (tipo ácido acético), e também dum agente tensioactivo. Por vezes as
substâncias com estes efeitos sobre γ classificam-se do tipo I, II e III, respec-
tivamente. Note-se que até pequenas concentrações do tensioactivo causam
uma redução importante na tensão. Por outro lado, uma vez atingido um
valor relativamente baixo de γ, aumentar a concentração do tensioactivo já
não reduz significativamente mais a tensão.

6.2 Lavagem. Adsorção.


Neste capítulo essencialmente fala-se de detergentes em água.
Um efeito da redução da tensão superficial da água é o aumento da
capacidade de molhar as superfícies sólidas. Recordemos da secção 4.3.2 a
condição de equilíbrio correspondente à situação da Figura 4.16:

γ α = γ αβ + γ β cos θ,

que pode ser reescrita como

γ α − γ αβ
cos θ = . (6.1)
γβ
Seja água a fase líquida β, e α um sólido qualquer à qual a água não
adere muito. Por isso o ângulo θ é relativamente grande. Mas torna-se claro
pela equação que uma redução do valor de γ β resultará num aumento do
cos θ, o que corresponde a uma redução do ângulo θ. Aliás, quando o lado
direito de (6.1) tender para 1, o ângulo de contacto tende para 0, e a água
espalha-se cada vez mais. Adere cada vez melhor à superfície. Molha-o cada
vez mais. É claro que quando o lado direito de (6.1) ultrapassar a unidade,
a igualdade não é mais possível. Isto é equivalente a ter θ = 0.2
2
Talvez valha a pena notar que a diminuição da tensão superficial da água dá-se também

59
Este efeito da adição dum detergente à água é tem um resultado essenci-
almente mecânico: ao permitir um melhor contacto água - objecto, facilita
a lavagem deste.

É relevante citar [14]


Por vezes a água não molha muito bem as superfícies onde é
aplicada e, por isso, não lava bem. . .
Para aumentar a eficiência da água na remoção de manchas e
sujidade de roupas, por exemplo, adicionam-se tensioactivos que,
ao diminuírem a tensão superficial, favorecem o espalhamento e
promovem um contacto maior com superfície a ser limpa. . .

Vejamos outra situação. Uma pequena mancha de gordura está sobre


uma superfície. Água não a tira de lá, porque a tensão na interface água-
sólido é superior à da interface gordura-sólido. Assim é energeticamente
desfavorável que a água tome o lugar da gordura em contacto com o sólido
(um copo de vidro se quiserem). Entra o detergente. A tensão na superfície
água-sólido desce, muito. Passa a ser energeticamente favorável a substitui-
ção da gordura pela agua na superfície. Bingo! Um copo lavado. Também
não admira que a água quente lava melhor. Já vimos que a tensão superficial
também diminui com o aumento da temperatura.
Dada a grande redução de energia na superfície causada pelos tensio-
activos, é de esperar, e correctamente, que se tratam de substâncias que
são fortemente adsorvidas à superfície da água. É esta tendência para se
agruparem à superfície que explica a forma da curva III da Figura 6.1.
A natureza das moléculas tensioactivas explica bem essa adsorção a nível
microscópico. Trata-se de moléculas longas (cadeias de carbono) com um
extremo hidrofílico (amante da água) - a “cabeça” em terminologia vulgar,
e outro extremo hidrofóbico (óbvio. . . ) - a “cauda”. Figura 6.2.(a). Então
o que estas moléculas gostam de fazer é de ter a cabeça na água e a cauda
cá fora - isto consegue-se à superfície, evidentemente. Moléculas com um
extremo hidrofílico e outro hidrofóbico denominam-se de anfipáticas. Enten-
demos então que estas substâncias tendem a juntar-se, de forma orientada,
na superfície da água. Figura 6.2.(b). Ora, sabemos já bem que as subs-
tâncias que se concentram nas interfaces são as que aí baixam a tensão
superficial. Neste caso é causado directamente pela adesão das moléculas
de água às cabeças hidrofílicas, em detrimento das ligações por pontes de
hidrogénio entre moléculas de água.
A diminuição da tensão água - óleo é também crucial na lavagem. Nor-
malmente uma superfície água - óleo é cara de se fabricar, pois a tensão
superficial não é aí baixa. Mas ao reduzir essa tensão para valores perto do
na interface α − β (como se viu no caso de água - azeite), assim não se dará o caso de θ
tender para 180o , pois numerador e denominador serão ambos positivos.

60
ar

Cabeça Cauda
´
hidrofilica hidrofobica
´ água
(a) (b)

Figura 6.2: (a) - Molécula de agente tensioactivo. (b) - Orientação na sua


adsorção à superfície da água.
������������
������������
������������
������������
agua
´
������������
������������
������������
������������
������������
������������
´
oleo
������������
������������
������������
������������
������������
água
������������
������������
������������
Figura 6.3: Solubilização duma partícula de óleo por um detergente em
água.

zero, o detergente torna essa superfície muito barata - virtualmente grátis.


Quer dizer, quebrar o óleo em gotículas minúsculas, em vez de energetica-
mente ter um preço demasiado elevado, passa a ser essencialmente de borla,
assim como mantê-lo assim nesse estado dividido3 .
A parte hidrofóbica do detergente, ao encontrar “algo” que não é água,
nomeadamente uma partícula de gordura, prefere unir-se a esta. O outro
lado, claro, gosta da água. O resultado é fácil adivinhar: uma gotícula de
gordura cercada por moléculas de detergente que estabelecem a sua ligação
com a água. Isto é solubilização (hidrolização, no caso descrito, em que o
meio é aquoso). Veja-se a Figura 6.3.

6.3 Micelas
Ao contrário do que talvez esperaríamos, os detergentes não são muito so-
lúveis em água, não no sentido habitual. Na realidade, em baixa concen-
tração dá-se a solução normal das moléculas de detergente em água, mas
quando a concentração começa a aumentar, as caudas hidrofóbicas come-
çam a encontrar-se, e preferem unir-se umas às outras do que à água. O
3
A união de gotículas pequenas reduz a superfície, e portanto é favorecida. Mas se a
tensão for muito reduzida, é muito menos favorecida.

61
Figura 6.4: Representação de micela formada por moléculas dum agente
tensioactivo (esquerda), e um nanotubo de carbono solubilizado pelo tensi-
oactivo. De [15].

resultado é começarem a formar-se bolas de moléculas de detergente, com as


caudas unidas ao centro, e as cabeças, felizes, viradas para a água. Isto são
micelas. Estas micelas têm dimensões de partículas coloidais (ver capítulo
8), e por isso forma-se uma suspensão coloidal, em substituição da solução
molecular existente nas baixas concentrações. Figura 6.4.
A figura 6.5 indica como evolui a concentração das moléculas dissolvidas
e das micelas ao adicionarmos um agente tensioactivo à agua. Para pequenas
quantidades de tensioactivo as moléculas dissolvem-se na água, e a solução
é molecular. Ao ser atingida a concentração micelar crítica - CMC, não
se dissolvem mais moléculas do surfactante, e começa sim a sua união com
a formação das micelas. Adicionar mais surfactante apenas aumentará o
número de micelas.
Usou-se o caso duma gotícula de gordura na descrição da solubilização,
mas o que interessa ao lado hidrofóbico do detergente é encontrar algo que
não seja água. Por exemplo, uma proteína. Os detergentes também solu-
bilizam de forma eficaz as proteínas. A Figura 6.4 é também elucidativa
sobre a solubilização. (No caso a partícula solubilizada é um nanotubo de
carbono).

6.4 Acção antibacteriana


Que os detergentes têm acção desinfectante não deve ser novidade para
ninguém. Duma forma geral os tensioactivos promovem a solubilização de

62
Figura 6.5: A concentração de solução molecular estabiliza, e formam-se
cada vez mais micelas, a partir da cmc. Figura de [19].

gorduras, e também de proteínas. (E até de nanotubos de carbono. . . ) Por


isso podem destruir as membranas celulares, (o que é uma eficaz maneira
de matar uma bactéria). Recorde que a membrana é sobretudo fosfolípidos
com umas proteínas à mistura. Figura 6.6.
A propósito de investigação pertinente é educativo consultar [16].
Não se tratando de acção antibacteriana, é também interessante em ter-
mos farmacêuticos a importância dum tensioactivo a nível de colírios ocula-
res, basta considerar como favorecem o espalhamento.

6.5 Surfactante Pulmonar


A necessidade de uma superfície molhada para troca de gases no processo
respiratório apresenta um desafio: Considerando a elevada tensão superfi-
cial da água e a reduzida dimensão dos alvéolos pulmonares, a equação de
Young-Laplace, eq.(4.5), mostra que é necessária uma pressão elevada para
encher um alvéolo quando está no seu tamanho mínimo - quando acabamos
a expiração. Na realidade, não teríamos força suficiente para inspirar, nem
para evitar o colapso dos alvéolos, se não fosse a acção do surfactante pul-
monar. Esta substância reveste a superfície interior dos alvéolos, reduzindo
a tensão superficial para valores próximos de zero quando estes estão mais
vazios. À medida que enchemos os alvéolos de ar, o aumento da sua área
superficial dilui a concentração do surfactante, aumentando a tensão super-
ficial, e mantemos essencialmente uma força constante (com o diafragma)
durante a inspiração.

63
Figura 6.6: Solubilização dos fosfolípidos e proteínas da membrana celular
levam à morte das bactérias. De [17].

64
Capítulo 7

Cargas nas interfaces

7.1 Dupla camada eléctrica


Nas interfaces entre duas fases, para além das questões da tensão e da ad-
sorção, é também importante considerar efeitos eléctricos. Claro que os três
assuntos estão relacionados.
Aqui estaremos essencialmente interessados em interfaces líquido-sólido
e líquido-líquido. De entre estes, o relevo vai para o caso em que um dos
líquidos é água ou uma solução aquosa.
Para começar imagine-se o contacto dum metal com uma solução elec-
trolítica. Neste caso não será surpresa que se estabelece uma diferença de
potencial (ddp) electrostático entre o metal e o volume da solução. Isto é
o fundamento dum eléctrodo duma pilha electroquímica - assunto interes-
sante, mas que não estudaremos aqui. O que nos interessa analisar é o que
se passa a nível das cargas na zona interfacial, e quais as consequências da
distribuição dessas cargas.
Para concretizar, vamos supor o metal carregado positivamente. No
total o sistema metal - solução é electricamente neutro, ou seja, a solução
terá um excesso de carga negativa com o mesmo valor absoluto que a carga
positiva no metal. Vamos considerar como essa carga negativa se distribui:
Imediatamente colada à superfície do metal estará uma camada de solução
com excesso de iões negativos. Aqui podemos levar a palavra ‘colada’ à letra.
Esta carga negativa adere ao metal e consideramo-la fixa. Diz-se camada
de Stern. Todavia, o total da carga negativa nessa camada de Stern não
é, em geral, suficiente para compensar a carga positiva do metal.1 Assim,
ainda há uma atracção electrostática sobre as cargas negativas em solução
por parte da camada interfacial. Esta atracção resulta na formação duma
zona enriquecida de iões negativas, não fixa à superfície, mas estendendo-
1
Não é particularmente importante neste contexto, mas fica a informação de que nos
metais qualquer excesso de carga é automaticamente distribuída à superfície, por efeito
da repulsão electrostática em conjunto com a mobilidade das cargas num metal.

65
+ − − + − − −
+ − − +
− + +
+
− + − − −

metal
+ −
− −
+ + + +
+ − + −
− − + +
+
− − +
+ − −
Camada ~
Soluçao
Camada difusa neutra
de Stern
´ de
Superficie
deslizamento
de carga (C/m 3)
Densidade

0
x

Figura 7.1: Distribuição de cargas numa solução em contacto com um metal


(eléctrodo. . . ) positivo. O gráfico mostra a variação da densidade de carga
(negativa neste exemplo) com a distância à interface. (Esquemático).

se para mais longe da interface, como uma nuvem com carga. Esta zona
é denominada de camada difusa. A concentração de iões negativos nesta
camada difusa vai diminuindo com o afastamento da interface, até se tornar
igual ao do volume da solução neutra.
Simultaneamente, nesta zona da camada difusa haverá um defeito de iões
positivos em solução, devido à repulsão electrostática sobre eles exercida.
Claro que, à medida que nos afastamos da interface a concentração de iões
positivos vai aumentando até se tornar igual ao do volume da solução neutra.
Se tivéssemos considerado o metal negativamente carregado, tudo se pas-
saria da mesma forma, com as óbvias trocas de sinal adequadas. Mais ainda,
uma das fases não precisa de ser metálica para a nossa descrição da distribui-
ção de cargas do lado da solução ser válida. Basta haver carga na superfície
sólida, que veremos, aparece na consequência de vários mecanismos.
Nesta altura será elucidativo consultar as Figuras 7.1. Creio que é óbvio
como se modifica a situação (e as figuras) para o caso duma substância
cuja carga superficial é negativa, com os iões positivos da solução a serem
atraídos à interface.

66
����������
�������� ����������
��������
F
����������
�������� ����������
��������
����������
��������
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�������� ����������
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��������
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����������
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����������
��
����������
�� ����������
��
+ ����������
��
����������
− − ����������
��
����������
+

Quartzo poroso Quartzo poroso


(a) (b)

Figura 7.2: (a) Electroosmose e (b) potencial de escoamento. Notar os sinais


das cargas.

Assim, na solução, a partir da interface de separação consideramos a


existência duma dupla camada eléctrica, formada pela camada de Stern, fixa,
e a camada difusa, móvel (em relação à interface, claro está). Numa interface
entre dois líquidos será de esperar que haja dupla camada eléctrica de ambos
os lados da interface, constituídas por cargas de sinal contrário, claro. Será
um exercício instrutivo desenhar esta possibilidade (experimentem).
À separação entre a camada de fixa e a camada móvel chamamos super-
fície de deslizamento.

7.2 Fenómenos electrocinéticos


Associada a esta separação de cargas existem diversos fenómenos electroci-
néticos. Estes dependem da mobilidade da camada difusa.

7.2.1 Electroosmose e potencial de escoamento


Considere o esquema da Figura 7.2. Dois volumes de água estão separadas
por quartzo poroso. Sucede que no contacto água-quartzo a parte difusa
da dupla camada no líquido está carregada positivamente, como resultado
duma adsorção de iões OH− na superfície da sílica, que fica então com carga
negativa. Se aplicarmos uma ddp aos eléctrodos, o que sucederá?
Água passará através do quartzo poroso em direcção ao cátodo (nega-
tivo). Isto porque a parte móvel da água com carga é positiva. Este é o
fenómeno da electroosmose.
A electroosmose é da maior importância na descontaminação de solos
finos e argilas.
O processo inverso da electroosmose produz o potencial de escoamento.
Com o mesmo arranjo da Figura 7.2, agora sem ddp aplicada, forçamos
água através do quartzo aumentando, isso sim, a pressão dum lado. Do
lado oposto, para onde estamos a empurrar a água, o eléctrodo ganhará um
potencial electrostático positivo devido à carga positiva móvel que é também

67
Figura 7.3: Uma partícula com carga negativa e a respectiva companhia
positiva, em camada fixa e móvel. . . De [18].

empurrada na sua direcção. A resultante carga negativa do lado da pressão


mais alta causa um potencial electrostático negativo desse lado. A ddp assim
produzida entre os eléctrodos diz-se potencial de escoamento.

7.2.2 Electroforese e potencial de sedimentação


Consideremos agora uma situação em que pequenas partículas estão suspen-
sas em água ou solução aquosa. Na zona interfacial entre estas partículas e
a solução, estabelecem-se as duplas camadas eléctricas. Figura 7.3.
Ao aplicarmos uma ddp a esta suspensão, e recordando que no global
a carga da partícula e das camadas envolventes é nula, talvez não fosse
descabido acharmos que não deve haver qualquer efeito interessante, pois o
campo eléctrico não cria força senão sobre carga resultante. Mas, estaríamos
a esquecer que existe uma camada carregada que é móvel em relação à
estrutura que é a partícula interior com a sua camada fixa.
Simplificando, o campo eléctrico move a camada difusa na direcção dum
eléctrodo, deixando para trás partículas de carga oposta, que certamente irão
migrar no sentido do outro eléctrodo. Este movimento será, com certeza,
lento face à da camada móvel, pois trata-se da migração de partículas muito
maiores que os iões da camada móvel.
O movimento de partículas em suspensão, sob a acção dum campo eléc-
trico é denominado de electroforese.2
2
A electroforese foi descoberta em 1807 por F. Reiss, ao constatar que partículas de
barro suspensas em água migravam para um eléctrodo positivo. A electroforese tem, entre
outras aplicações práticas, uso na desidratação e purificação de barros.

68
O último fenómeno electrocinético que descreveremos é o aparecimento
do potencial de sedimentação. Este é o inverso da electroforese.
No caso da suspensão que estamos a considerar, se as partículas forem
suficientemente grandes e densas, ao fim de algum tempo irão sedimentar
sob o efeito do campo gravítico. A camada difusa tende a ficar para trás, na
solução, enquanto a fase suspensa sedimenta, levando consigo a sua carga
(e a da camada fixa). O resultado é o aparecimento duma ddp entre o
sedimento e a solução, dito potencial de sedimentação.

7.3 Mecanismos originando cargas nas superfícies


Vale a pena ainda referir os mecanismos que originam o aparecimento de
cargas nas interfaces, pois isso indicará como podemos influenciar o valor, e
até o sinal dessa carga. Vamos considerar 3 mecanismos distintos.

1. Ionização de grupos ácido ou base, originando superfícies negativa-


mente ou positivamente carregadas, respectivamente. No primeiro
caso, iões H+ deixam a superfície e entram na solução. Para trás
fica uma camada superficial negativamente carregada, enquanto que
a solução passa a ter um excesso de carga positiva (a dupla camada
é positiva). No segundo caso são os iões OH− que deixam a superfí-
cie, que fica positiva, e entram na solução pelo que a dupla camada é
negativamente carregada.
Nestas situações, a carga superficial é influenciada fortemente pelo
pH da solução. Considerando o primeiro caso no parágrafo anterior,
segundo o princípio de Le Chatelier, se reduzirmos o pH, diminuiremos
a tendência de haver um defeito de iões H+ na superfície. Portanto
aumentando o grau de acidez da solução diminuiremos a carga negativa
na superfície. Pelo mesmo raciocínio, na segunda situação descrita, se
aumentarmos o pH, diminuiremos a carga positiva da superfície.

2. Diferença na dissolução de iões na superfície duma rede cristalina.


Consideremos apenas um exemplo ilustrativo. A superfície dum cristal
de AgI (muito pouco solúvel) em equilíbrio com a solução aquosa satu-
rada perde mais facilmente iões Ag+ do que os I− . Assim estabelece-se
um desequilíbrio entre o número de iões positivos e negativos à super-
fície do AgI, que fica negativamente carregada, tendo a solução um
correspondente excesso de carga positiva.
Novamente podemos influenciar a carga superficial modificando a so-
lução. Se adicionássemos AgNO3 (muito solúvel), o grande aumento
da população de iões Ag+ na solução causaria um aumento do seu
número à superfície, diminuindo (em módulo) a carga negativa desta.
Poderá dar-se mesmo o caso desta adsorção provocada (pois disso se

69
Bi +16 Au −58
Pb +18 Fe(OH)3 +44
Fe +28 As2 S3 −89
Ag −32

Tabela 7.1: Alguns valores do potencial zeta para substâncias em suspensão


aquosa, pH neutro. Valores em mV.

trata) de iões Ag+ à superfície do cristal causasse uma inversão no si-


nal da carga aí existente. Pelo contrário, adicionando uma espécie que
contribuísse iões I− para a solução teria o efeito de aumentar ainda
mais o excesso destes iões na superfície cristalina, e consequentemente
aumentar a sua carga negativa.

3. Adsorção de espécies carregadas.


Acabamos de ver um processo pelo qual podemos provocar a adsor-
ção de iões numa superfície. Outra forma é a simples utilização de
agentes tensioactivos com carácter iónico. Na verdade, os tensioacti-
vos classificam-se, entre outros, de aniónicos ou catiónicos3 , de acordo
com a carga nos iões tensioactivos em solução. Torna-se então ób-
vio que podemos depositar carga negativa ou positiva escolhendo estes
agentes tensioactivos aniónicos e catiónicos, respectivamente.

7.4 Potencial zeta


.
A chave dos fenómenos electrocinéticos que consideramos é a existência
duma carga resultante na camada móvel, ou o que é equivalente, a existência
duma carga resultante no conjunto superfície - camada fixa. Assim o valor
pertinente para estes fenómenos não é a ddp entre a interface e o volume
da solução, mas sim a ddp entre a superfície de deslizamento separando a
camada fixa da móvel, e o volume da solução. Este designa-se por potencial
electrocinético (este era óbvio. . . ) ou potencial zeta (nada óbvio). Este
último nome, mais comum, resulta de se ter generalizado representá-lo pela
letra grega zeta: ζ.
Este potencial zeta pode ser medido recorrendo precisamente aos fenó-
menos electrocinéticos, nomeadamente a electroforese.
Normalmente é da ordem de algumas dezenas de milivolts, quer seja
positivo ou negativo. Veja-se a tabela 7.1.
Tendo em conta as observações da secção 7.3, compreende-se a afirmação,
muitas vezes repetida, de que o valor do potencial zeta só tem significado
3
aos quais acresce os zwitteriónicos e os....

70
quando sabemos o pH a que corresponde. Como exemplo disto, é interes-
sante notar que nos meios ácidos as proteínas tenderão a ter ζ > 0, e nos
básicos ζ < 0. Existirá ainda uma pH para o qual ζ = 0, denominado de
ponto isoeléctrico. O ponto isoeléctrico é diferente para diferentes proteínas,
assim como a relação entre a variação do ζ e do pH. Assim torna-se um
meio valioso de identificação, e até de separação de proteínas, recorrer à
electroforese utilizando o pH como meio de controlar o potencial zeta.

71
Capítulo 8

Colóides

(versão preliminar reduzida)

8.1 Introdução.
Um sistema onde uma substância está disseminada através de todo o vo-
lume de outra, sob a forma de partículas finas, chama-se dispersão. Em
geral consiste de duas (ou mais) fases - fase dispersa e fase dispersante. As
dispersões são portanto sistemas heterogéneos. Os colóides, ou sistemas co-
loidais, são dispersões em que as partículas da fase dispersa têm dimensões
entre as 10−9 m e 10−6 m.1 De forma “coloquial”, diz-se que as dispersões
coloidais são dispersões intermédias entre as soluções verdadeiras e os sis-
temas heterogéneos, em casos onde as partículas dispersas são maiores do
que as moléculas mas não suficientemente grandes para se depositarem pela
acção da gravidade. Devido ao reduzido tamanho das partículas que com-
põem a fase dispersa, a área superficial dessa fase é muito elevada, podendo
atingir centenas e até milhares de m2 /g. É esta tremenda interface que
determina os comportamentos específicos aos sistemas coloidais; em parti-
cular é de esperar que os processos de adsorção tenham grande importância
nestes sistemas, e que as duplas camadas eléctricas sejam importantes na
compreensão das suas propriedades.
Para ter uma melhor ideia do que estamos a falar, é interessante o se-
guinte texto extraído de [20] (Ortografia original):

Colóides no dia-a-dia
Sistemas coloidais estão presentes em nosso cotidiano desde as
primeiras horas do dia, na higiene pessoal, sabonete, xampu,
pasta de dente, espuma, creme de barbear, maquiagem, cosméti-
cos, no café da manhã, no leite, café, manteiga, cremes vegetais
1
Estes limites são apenas indicativos, não absolutos.

72
e geléias de frutas. No caminho para o trabalho podemos en-
frentar neblina, poluição do ar ou ainda apreciar a cor azul do
céu, parcialmente explicada pelo espalhamento Rayleigh da luz
do Sol ao entrar na atmosfera contendo partículas de poeira cós-
mica atraídas pela Terra (Walker, 1989). No almoço, temperos,
cremes e maionese para saladas. No entardecer, ao saborear cer-
veja, refrigerante ou sorvete estamos ingerindo colóides (Jafelicci
e Varanda, 1999). Os colóides também estão presentes em diver-
sos processos de produção de bens de consumo, incluindo o da
água potável, nos processos de separação nas indústrias de bio-
tecnologia e no tratamento do meio ambiente. Os fenômenos co-
loidais são encontrados com freqüência em processos industriais
como de plásticos, borrachas, tintas, detergentes, papel, análise
do solo, produtos alimentícios, tecidos, precipitação, cromato-
grafia, troca iônica, flotação, catálise heterogênea. São também
muito importantes os colóides biológicos, tais como o sangue, o
humor vítreo e o cristalino (Licínio e Delaye, 1987). Em medi-
cina terapêutica ortomolecular, conhecimentos de propriedades
de sistemas coloidais podem auxiliar na elucidação de doenças,
como o mal de Alzheimer (Lomakin et al., 1997), o mal de Par-
kinson (Conway et al., 2000) e o mal de Huntington (Heiser et
al., 2000). Acredita-se que o processo de agregação de proteí-
nas decorrente de alguma deformação em sua estrutura, quando
ocorre na região cerebral, cause os sintomas dessas doenças de-
generativas.

Podemos concluir que os colóides gozam do dom da ubiquidade.

8.2 Classificação
Os sistemas coloidais classificam-se de acordo com os estados físicos dos
meios dispersantes e dispersos. Todas as combinações são classificadas, me-
nos o caso gás-gás, que nem faz sentido neste contexto.
Quando a fase dispersante é fluída temos um sol. Em particular, tratando-
se dum gás é um aerossol. Os nevoeiros são exemplo de líquido disperso no
ar. Já os fumos consistem de aerossóis com fase dispersa líquida e/ou sólida.
Quando ambas as fases são líquidas, o sol receb o nome emulsão, de que é
exemplo a maionese.
Também há casos onde a fase dispersante é sólida. Se a fase dispersa
for líquida tratasse dum gel. Exemplos são a gelatina (claro), o queijo, a
manteiga e as opalas (estas são SiO2 com água e outros minerais dispersos).
Quando um gás está disperso num líquido temos uma espuma. É de notar
que neste caso as dimensões das bolhas são habitualmente superiores, por
vezes muito, a 10−6 m. Todavia, a distância entre as bolhas é tipicamente

73
Sistemas Fase Dispersa
Coloidais
Gás Líquida Sólida
aerossol líquido aerossol sólido
Gás Não há (nevoeiro, (fumo)
Fase neblina)
espuma sol/emulsão sol
Líquida (chantilly) (maionese) (tinta,
Dispersante sangue)
espuma sólida gel sol sólido
Sólida (esferovite) (gelatina,
opala)

Tabela 8.1: Classificação usual de sistemas coloidais.

muito menor que isso, levando a que a área interfacial seja da ordem típica
dos colóides, justificando a classificação de espumas como sistemas coloidais.
O que se passa neste caso é que há uma grande área interfacial não tanto pela
fina divisão da fase dispersa (bolhas de gás são "grandes"), mas sim porque
a fase dispersante é, em grande parte, interface (existindo essencialmente
como paredes das bolhas). Existem também espumas sólidas, em que a fase
dispersante é sólida, como a pedra pomes e a esferovite.
Esta classificação está resumida na tabela 8.1
Isto é tudo muito interessante, mas o que queremos aqui focar são es-
sencialmente colóides onde a fase dispersante é líquida (um meio aquoso
na maior parte dos casos) e a fase dispersa é sólida ou líquida, i.e. sóis e
emulsões.

8.3 Sóis liofílicos e liofóbicos


Distinguimos entre os sóis liofílicos (onde moléculas da fase dispersa tendem
a formar ligações com a fase dispersante - "gostam do solvente"), e liofóbicos
(onde a fase suspensa "não gosta"do meio dispersante). No caso da fase
dispersante líquida ser água temos o nomes mais familiares de hidrofílicas e
hidrofóbicas.

8.3.1 Sóis liofílicos


Tratam-se, em geral, de soluções no sentido comum da palavra, mas onde
as moléculas de soluto são muito grandes - com as dimensões de partículas
coloidais. Exemplos são proteínas e polímeros solúveis em água, ou bor-
racha dissolvida em benzeno. Outro tipo de colóides liofílicos importantes

74
são as micelas dos detergentes/sabões em água: Como já vimos no capí-
tulo 6, em baixas concentrações estas moléculas, obviamente de dimensões
subcoloidais, formam uma solução normal em água. Porém, ao aumentar a
concentração para lá da concentração micelar crítica, formam-se em abun-
dância as micelas - grandes aglomerados das moléculas do tensioactivo que
já têm dimensão coloidal.
Um caso particularmente interessante é o da gelatina em água. Esta
proteína, solúvel em água, forma um sol liofílico típico a temperaturas altas.
Mas, ao arrefecer a mistura, formam-se ligações (de Van der Waals) entre
as moléculas de gelatina ao longo de todo o sistema, formando uma espécie
de rede compartimentada que retém toda a água. Nesta altura já se trata
dum gel - a água e a proteína trocaram de papel - agora é água dispersa na
gelatina sólida dispersante.
Os colóides liofílicos são termodinamicamente estáveis. A fase suspensa
gosta de estar dispersa pela fase dispersante. Neste aspecto são, como já
referi, como soluções comuns. Não há verdadeira distinção entre as fases e
consequentemente não há razão para a fase dispersa tender aglomerar para
minimizar a energia interfacial. Não se dá espontaneamente a separação.

8.3.2 Sóis liofóbicos


Quando um sólido, ou um líquido imiscível com água (como os óleos), está
muito finamente dividido em suspensão aquosa, teremos um sol liofóbico.
Nesta situação temos duas fases bem distintas com muita energia superfi-
cial. A tendência natural é de diminuir a área de separação entre as fases,
i.e. das partículas coloidais se aglomerarem - pondo fim ao colóide dando-se
a floculação e/ou precipitação. À partida um tal colóide não parece poder se
manter, mas existe a dupla camada eléctrica. Como vimos a propósito dos
fenómenos electrocinéticos - nomeadamente no exemplo da electroforese - as
partículas coloidais (juntamente com a camada de Stern que as acompanha)
não são (em geral) electricamente neutras. Assim devem repelir-se mutua-
mente através da força electrostática. Esta repulsão tende a estabilizar os
colóides liofóbicos. É vulgar tomar como condição para estabilidade dum
colóide liofóbico que o potencial zeta seja, em módulo, superior a 30 mV.
Isto um pouco arbitrário, e as excepções (que confirmam a regra) abundam.
Já vimos, no capítulo anterior, como por vezes podemos influenciar a
carga superficial adoptando um método adequado de acordo com a origem
da carga. Em termos práticos, seja para estabilizar ou para desestabilizar
colóides, isto torna-se muito importante.
Existe ainda outra forma de conferir estabilidade aos colóides liofóbicos
- misturar um colóide liofílico. As partículas coloidais liofílicas poderão ser
adsorvidas nas superfícies das partículas coloidais liofóbicas, mudando a sua
natureza e tornando-as mais liofílicas. Se pensarmos um pouco, é isto que
faz um detergente ao solubilizar gordura da forma descrita no capítulo 6.

75
É também esta a acção da albumina do ovo no fabrico da maionese. Nesta
situação a proteína é um emulsionante - permite a formação/estabilização
da emulsão maionese - que é uma mistura de água e óleo impraticável sem o
emulsionante. São inúmeros os exemplos da importância dos emulsionantes
para as indústrias alimentar e farmacêutica. Basta ler as letras pequenas
dos rótulos. . .
Estes sistemas coloidais são caracterizados pelas grandes áreas interfa-
ciais. Como sabemos, nestas interfaces interessa considerar a tensão, cargas
e adsorção. Esta última é um meio que temos de controlar as duas primeiras
propriedades, para dotarmos os colóides das propriedades que desejamos.

76
Capítulo 9

Difusão

Difusão é a tendência que uma substância tem de se espalhar uniformemente


por todo o espaço que lhe é acessível. Obviamente é muito rápido no meio
gasoso, bem menos veloz para os meios líquidos, e muito lento, quando existe,
nos sólidos. Iremos neste capítulo consuderar difusão simples, descrita pelas
leis de Fick.

9.1 1a lei de Fick. Coeficientes de difusão


9.1.1 A primeira lei de Fick
A primeira lei de Fick, em palavras, pode ser escrita como

O fluxo duma substância é proporcional ao gradiente da sua


concentração.

Precisamos de saber o que são fluxo, e gradiente, para isto significar alguma
coisa.
O fluxo é a quantidade de “algo” que passa pela unidade de área na
unidade do tempo. Não sei se esta definição ajudou. Imaginemos uma
torneira de água com uma saída de área 1 cm2 . Se ao fim de 100 s a água
saindo da torneira tiver enchido um recipiente com 10 � de volume, podemos
então calcular o fluxo:

• Quantidade de “algo” = 10 kg de água.

• Área = 1 cm2 .

• Tempo = 100 s.

10 kg de água
Fluxo =
1 cm2 de área × 100 s
= 0, 1 kg de água/cm2 · s

77
onde usamos o facto de um litro de agua ter 1 kg de massa. Neste exemplo
o “algo” foi medido em kg. O mesmo luxo poderia ter sido exprimido como
0,1 � de água/cm2 ·s O fluxo seria então encarado como um fluxo de volume
em vez dum fluxo de massa. E sem mais comentário, o mesmo fluxo pode
ser expresso na forma 5,56×105 mol/m2 ·s. Mostrar que assim é fica como
um exercício simples.
Os fluxos podem ser de matéria, como o exemplo anterior, mas outros
exemplos importantes são carga eléctrica - a intensidade da corrente resulta
proporcional ao fluxo, calor - condução de calor é fluxo de energia térmica,
e muitos outros. Como aqui estamos a considerar difusão de matéria, em
geral mediremos o “algo” em moles, e as unidades SI do fluxo são mol/m2 ·s.
Quanto ao gradiente, este significa variação espacial, isto é, como varia
dum lugar para outro. No caso que nos interessa, a concentração, vou exem-
plificar considerando uma situação um pouco idealizada. Suponhamos que
temos 2 recipientes, um com 1 � de água pura, outro com um litro de solução
de NaCl, contendo uma mole do soluto. Agora ligamos os dois por um tubo
com 1 cm de comprimento. Num extremo do tubo a concentração de sal é
nulo. No outro extremo é 1 mol/dm3 . A variação espacial da concentração
ao longo do tubo é então

Δc 1 mol/dm3
=
Δx 1 cm
(Deve ser notado que teríamos aqui mol/m4 em unidades SI). Se conside-
dc
rarmos o limite em que Δx → 0, a fracção torna-se na derivada dx . Para
problemas em que consideramos haver variação em apenas uma direcção, a
palavra “gradiente” significa derivada1 .
Claro está que a situação acima descrita não se vai manter. O sal co-
meçará a difundir para dentro da água pura a partir da solução. O que a
primeira lei de Fick nos diz é precisamente que a “velocidade” dessa migra-
ção (o fluxo) será proporcional ao gradiente da concentração. Isto é quase
óbvio. Se, na situação acima descrita, a concentração de sal na solução fosse
10 vezes superior, esperaríamos que houvesse 10 vezes mais moléculas de sal
a atravessar o tubo de ligação por unidade de tempo.
Em matematiquês a 1a lei de Fick escreve-se
dc
J = −D , (9.1)
dx
dc
onde J é o fluxo, dx é o já amplamente explicado gradiente da concentração, e
D é a constante de proporcionalidade entre estas duas coisas, que chamamos
de coeficiente de difusão. Demonstre para si próprio que as unidades de
D, no SI, são m2 /s. Mas será mais vulgar aparecer-nos em cm2 /s. O
1
Na verdade o gradiente é definido na matemática como uma generalização para três
dimensões do conceito da derivada. Fica a nota apenas.

78
fluxo no sentido
J>0
positivo
c

dc < 0 ’gradiente’
dx negativo

x
xA xB

Figura 9.1: Figura pertinente para a discussão da primeira lei de Fick.

sinal negativo deve ser óbvio, mas também será explicado. . . Consideremos
a Figura 9.1. Ilustra uma hipotética solução com variação de concentração
bem visível. Por baixo, num gráfico temos a concentração, representada
como função da posição. O declive da tangente à curva em cada ponto é o
dc
valor de dx nesse ponto. Está visto que no caso da Figura 9.1 as moléculas
(pontinhos) vão difundir da esquerda para a direita: o fluxo será no sentido
dc
positivo. Mas a derivada dx é negativa. Assim temos o sinal negativo da
eq.(9.1): O fluxo é no sentido em que a concentração decresce. Por outro
lado, sendo mais inclinada a curva em xA do que em xB , a concentração está
a diminuir mais abruptamente no primeiro destes pontos. É claro então que
o fluxo de moléculas através da superfície em x = xA será superior ao fluxo
em x = xB .

9.1.2 Coeficientes de difusão


O coeficiente de difusão, D, representa a proporcionalidade entre a variação
da concentração e a taxa de difusão. Dado que a difusão é muito mais rápida
nos gases do que nos líquidos, esperamos valores de D muito superiores para
meios gasosos do que para líquidos. Também é verdade que D depende não
só do meio, mas também da espécie que está em difusão através desse meio.
Esperamos também que variações na temperatura e pressão, ou concentração
podem afectar o valor do coeficiente de difusão. Na realidade cada caso é
um caso. . .
Para gases, D é tipicamente da ordem de 0,1 cm2 /s, enquanto em meios
líquidos é tipicamente 10000 vezes menor, da ordem de 10−5 cm2 /s. Já

79
Gás (0o C) Líquido (25o C) Sólido (20o C)
Espécies D (cm2 /s) Espécies D (cm2 /s) Espécies D (cm2 /s)
H2 - H 2 1,5 LiBr em H2 O 1,4×10−5 Bi em Pb 10−16
H2 - O 2 0,70 NaCl em H2 O 2,2×10−5 Sb em Ag 10−21
N2 - N 2 0,15 açúcar em H2 O 0,52×10−5 Al em Cu 10−30
O2 - CO2 0,14 N2 em H2 O 1,6×10−5
CO - C2 H4 0,12
Xe - Xe 0,05

Tabela 9.1: Alguns valores de coeficientes de difusão em meios gasoso, lí-


quido e sólido, para 1 atm e as temperaturas indicadas. Valores de [12]

para os casos em que há difusão no meio sólido (um fenómeno que pode ter
importância sobretudo no interior dos metais), o coeficiente de difusão será
muito menor, correspondendo à tremenda lentidão desta difusão. Na tabela
9.1 apresentam-se alguns valores tirados de [12].
Confirmamos pelos valores no quadro a ordem de grandeza do coeficiente
de difusão para os diferentes estados físicos do meio. Também é notório
que o hidrogénio tem uma difusão muito mais rápida do que o Xénon, por
exemplo. É importante notar que para cada par de espécies gás-gás, só é
dado um coeficiente. A razão para isto, não óbvia, é que para a difusão de
O2 em CO2 consideramos o mesmo valor para o coeficiente de difusão que
para a difusão do CO2 em O2 . São recíprocos.2 Não é de surpreender que
a difusão do hidrogénio em oxigénio seja muito rápida. Pode não ser tão
claro que o oxigéniodeva difundir muito rapidamente em hidrogénio. Mas
é preciso não esquecer que uma molécula de hidrogénio não é uma barreira
significante para um molécula de oxigénio. Daí a difusão fácil.
Após estas considerações interessantes sobre gases e sólidos, convém no-
tar que aqui estamos mais interessados na difusão de moléculas através de
meios líquidos.

9.2 Evolução temporal - 2a lei de Fick


A segunda lei de Fick é vulgarmente denominada de lei ou equação de di-
fusão, ou ainda equação do calor, pois trata tanto da difusão do calor como
da matéria (e outras coisas que difundem). Vou por a equação em nota de
rodapé para não assustar ninguém. O que importa nesta abordagem é que
sejam entendidas algumas ideias associadas a esta equação. Não explicarei
porque é que a equação tem a forma que tem, e muito menos como é que se
2
A condição para isto ser verdade é que não haja variação de volume durante a mistura.
No caso de se tratar de gases sem reacções químicas este é o caso. Para gases ideais é o
caso por definição.

80
resolve.3 Agora que já olharam para equação de difusão, podem esquecê-la,
até “um dia”.
Quando abordamos a primeira lei de Fick, o que estávamos a ver era uma
‘fotografia instantânea’ do gradiente da concentração, como na Figura 9.1.
Mas passado algum tempo, devido à própria difusão, a concentração vai se
tornando mais uniforme. O fluxo deve ir diminuindo. Finalmente deve che-
gar um instante em que a difusão completou o seu trabalho - a concentração
é uniforme, e não há fluxo resultante. É desta evolução da concentração com
o passar do tempo, e consequentemente do fluxo de matéria, que dá conta
esta eq. de difusão.
Consideremos o seguinte problema: Um cano longo e de pequeno diâme-
tro está cheio de água. No instante t = 0 introduzimos uma certa quantidade
de açúcar (N moles), num certo ponto x0 .
Resolver a equação de difusão para esta situação resultará na seguinte
expressão para a concentração como função do tempo t, e da posição x, ao
longo do cano:
N 1 (x−x0 )2
c(x, t) = √ e− 4Dt . (9.2)
A 4πDt
Aqui A é a secção (área) do cano. Não nos preocupemos demasiado com o
aspecto da eq.(9.2). A representação gráfica tornará claro o seu significado.
Figura 9.2. Vemos que acontece exactamente o que seria de esperar: O
soluto começa a espalhar-se (leia-se difundir); com a passagem do tempo,
estará cada vez menos concentrado em torno do seu local de origem em
x = x0 , e cada vez mais espalhado. Na figura representa-se o perfil da
concentração para tempos de 1, 10, 100 e 1000 s. Vale a pena notar que a
área debaixo de cada curva é a mesma, e é proporcional ao número total
de moles de açúcar no cano, que não aumenta nem diminui em quantidade
total (apenas espalha-se). Uma situação essencialmente idêntica produz-se
no caso da difusão inicial dar-se num extremo do tubo, como por exemplo a
partir do fundo dum recipiente. Apenas com a diferença da difusão apenas
se dar num sentido, claro.
Lembrando a primeira lei de Fick, torna-se claro que a velocidade da
difusão (mais precisamente o fluxo de açúcar, neste caso), diminui à medida
que a concentração se vai uniformizando.
É importante notar que existe uma relação bastante simples entre o
tempo de difusão e a distância média alcançada pelas moléculas em difusão.
Algumas moléculas terão se afastado bastante do ponto inicial quando outras
ainda estão lá. Tomando o quadrado das distâncias viajadas pelas partículas
em difusão, e calculando o valor médio desses quadrados, obtemos um valor
3
A equação é, para o caso mais simples a uma dimensão,

∂c ∂2c
=D 2
∂t ∂x

81
que
� 2�
é representativo do alcance da difusão num instante t. Usando o símbolo
x para esta média dos quadrados das distâncias é válida a equação:
� �
x2 = 2Dt (9.3)

É também habitual exprimir este resultado em termos da raiz de x2 , de-


� �

signada aqui por (Δx)rms .4 Obviamente fica



(Δx)rms = 2Dt (9.4)

O significado disto é simples. Tomando (Δx)rms como a medida pertinente


de distância de difusão, i.e. de “quanto é que a substância se espalhou”,
então vemos que para “ficar duas vezes mais espalhada, precisa de quatro
vezes mais tempo”, ou “para difundir para 3 vezes mais longe, precisa de 9
vezes mais tempo”. (Ver exercícios da série).
Um resultado importante desta consideração é que a difusão pode ser
considerada um processo deveras rápido para distâncias muito curtas, mas
muito lento para distâncias grandes: É muito rápido à escala das células, e
muito lento para chávenas de café.
Estivemos a considerar o caso de uma difusão linear, a uma dimensão
(coordenada x). No caso de considerarmos uma difusão em 3 dimensões
(como uma gota de corante a espalhar-se através de um volume de água), a
eq. (9.3) toma a forma � �
r2 = 6Dt (9.5)

sendo r2 a média dos quadrados das distâncias das moléculas do ponto


� �

inicial, ao fim do tempo t.

9.3 Transporte de solutos através de membranas


9.3.1 Introdução
O transporte através de membranas pode proceder através de diversos me-
canismos. De entre estes, não surpreendentemente, está a difusão. Desde
que haja um gradiente de concentração, a matéria será ‘empurrada’. A ma-
neira como se movimenta depende em grande parte do que encontrar no
caminho. Até aqui consideramos a difusão através dum meio homogéneo
em tudo menos a concentração da espécie em difusão (leia-se: sem variações
de pressão, temperatura, viscosidade. . . Uma membrana é algo que está no
caminho e obviamente deve afectar a difusão.
Para além desta difusão simples, essencialmente um exemplo da primeira
lei de Fick, há a considerar ainda a difusão facilitada, e o transporte activo. A
difusão simples e a difusão facilitada são mecanismos de transporte passivo:
4
rms é abreviatura habitual de “root mean square”.

82
t=1
t=10
t=100
t=1000
Concentração

x0
Posição

Figura 9.2: Representação do resultado 9.2. Vemos como se espalha a subs-


tância introduzida em x = x0 no instante t = t0 para a sucessão de tempos
indicada.

83
ocorrem no sentido determinado pela variação da concentração da espécie
em transporte/difusão. Como tal, o seu motor essencial é o aumento da
entropia (leia-se maximização da uniformidade). Ao contrário, o transporte
activo é feito contra o gradiente da concentração. Requer então dispêndio
de energia. Iremos considerar em pormenor a difusão simples.

9.3.2 Difusão simples através de membranas


A Figura 9.3 representa uma membrana que divide duas soluções idênticas
em tudo menos a concentração. Do lado esquerdo a concentração é c1 , e do
lado direito, c2 . A membrana é permeável ao solvente, e também ao soluto,
que certamente será empurrado no sentido da concentração mais alta, c1 ,
para a mais baixa, c2 . A espessura da membrana é δ. É trivial aplicar a
primeira lei de Fick para determinar o fluxo do soluto através da membrana:

• O gradiente da concentração é simplesmente a diferença c2 −c1 dividido


pela espessura da membrana, δ:
Δc c2 − c1
= .
Δx δ

• Então a primeira lei de Fick diz:


Δc c2 − c1
J = −D = −D
Δx δ

É habitual definir a permeabilidade como


D
P = .
δ
Sendo o coeficiente de difusão D uma área/tempo, então P é comprimento/tempo,
i.e. cm/s, por exemplo. A lei de Fick escrita com a permeabilidade fica sim-
plesmente:
J = P (c1 − c2 ) .
Para um papel de filtro, por exemplo, a descrição que acabamos de ver
é adequada. Não há descontinuidade na concentração entre o interior e
exterior da membrana. Uma membrana celular pode ser um pouco mais
complicado, mas veremos já de seguida, que enquanto se tratar de difusão
simples, basta uma pequena modificação ao modelo anterior.
Como sabem, pelo menos tão bem quanto eu, a membrana celular trata-
se na sua grande parte de uma dupla camada de fosfolípidos. No exterior da
célula temos um meio aquoso, e no interior também. Entre estes meios está
a membrana, cujo interior é essencialmente lípido. (O interior da membrana,
obviamente, não da célula). A nossa hipótese de trabalho é que estamos a
considerar a difusão de moléculas para as quais a membrana é plenamente

84
δ

c1

Concentraçao
~
c2

Fluxo

Figura 9.3: Difusão através duma membrana tipo papel de filtro.

permeável. Pode ocorrer entretanto que a sua solubilidade em meio aquoso


seja bastante diferente da sua solubilidade nos lípidos que constituem o es-
sencial da espessura da membrana. Por hipótese, vamos supor que a espécie
em consideração tenha mais afinidade pela agua do que pela gordura. Vamos
ainda supor que a sua concentração no exterior da célula é superior à sua
concentração no interior da célula, i.e. que vai haver difusão de fora para
dentro da célula. Todas estas hipóteses são invertíveis, e creio que serão
óbvias as modificações nos resultados.
Temos então duas interfaces entre fases distintas:

1. Exterior da célula e ↔ Membrana.

2. Membrana ↔ Interior da célula.

É de esperar, dada a maior afinidade da espécie pelo meio aquoso, uma


variação abrupta na sua concentração em cada uma destas interfaces: Ha-
verá concentrações mais elevadas do lado aquoso das interfaces. O perfil
da concentração será então a da Figura 9.4. Na nossa hipótese c1 , a con-
centração no exterior da célula, será mais elevada que c�1 , a concentração
no extremo da membrana junto ao exterior da célula. Da mesma forma ao
passar do extremo interior da membrana para o meio aquoso do interior da
célula, devemos ter um aumento de concentração, de c�2 para c2 . Pelo facto
de considerarmos que c1 > c2 , resulta o perfil da figura.
A razão entre a concentração no interior da membrana e nos meios aquo-
sos exteriores à membrana é dada pelo coeficiente de partição, K. Isto é

c�1 c�
K= = 2
c1 c2
Para aplicarmos a primeira lei de Fick a esta difusão, há ainda uma
condição que temos de supor cumprida: No movimento da molécula de fora
da célula para dentro desta, é a difusão através da espessura da membrana
que é o processo lento, e não qualquer das passagens pelas duas interfaces
entre fases aquosas e lípidas. (O contrário violaria a hipótese da ‘plena’

85
δ

c1 Interior da

Concentraçao
~
c´1 celula
´
c2
c´2
Membrana

Fluxo

Figura 9.4:

permeabilidade da membrana para a espécie em questão). Quer isto dizer,


aplicamos a lei de Fick à difusão no interior da própria membrana, e supomos
que a passagem nas interfaces não causa demora. Assim o fluxo do exterior
para o interior da célula é governado pela demora na difusão através da
membrana, e não pela passagem nas interfaces membrana ↔ meios aquosos.

Ao fim disto tudo, a aplicação da lei de Fick é agora uma coisa muito


simples.

• O gradiente da concentração é simplesmente a diferença c�2 −c�1 dividido


pela espessura da membrana, δ:

Δc� c� − c�1
= 2
Δx δ

• Então a primeira lei de Fick diz:

Δc� c� − c�1
J = −Dm = −Dm 2 ,
Δx δ

onde Dm é o coeficiente de difusão para a espécie no interior lípido da


membrana. Visto que
c�1,2 = Kc1,2
podemos reescrever a expressão para o fluxo como
c1 − c2
J = Dm K .
δ
E usando a definição do coeficiente de permeabilidade da membrana,
Dm K
Pm = ,
δ
fica finalmente
J = Pm (c1 − c2 ) (9.6)

86
Este resultado final simples mostra-nos que, como talvez seria de esperar,
o fluxo na difusão simples acaba proporcional à diferença de concentrações
no exterior e interior da célula. O coeficiente desta proporcionalidade, Pm ,
depende então do coeficiente de difusão das moléculas através do meio lípido
no interior da membrana, do coeficiente de partição, K, e, claro, da espessura
da membrana através da qual se dá a difusão.

87
Capítulo 10

Osmose

Ao falarmos de difusão anteriormente, consideramos o transporte de solutos


e partículas suspensas, com ou sem membranas permeáveis no caminho. Não
demos grande atenção ao solvente. O fenómeno da osmose tem precisamente
a ver com a difusão do solvente, através dum tipo de membrana especial,
dita semipermeável. Por definição uma membrana semipermeável é aquela
que permite a passagem do solvente, mas não do soluto.

10.1 Osmose
Osmose é a difusão espontânea dum solvente para uma solução
mais concentrada, da qual está separado por uma membrana
semipermeável.

A osmose é tradicionalmente incluída no estudo das soluções juntamente com


a depressão do ponto de fusão e o aumento do ponto de ebulição. São efeitos
coligativos das soluções, e faz todo o sentido considerá-los em conjunto no
contexto dum estudo termodinâmico. Aqui a abordagem à osmose será
puramente fenomenológica, e apenas aplicável a soluções diluídas. Ainda
assim, veremos, do ponto de vista prático tem grande importância.
Considere-se a seguinte experiência. Figura 10.1. Num tubo dois volu-
mes de água estão separados por uma membrana semipermeável (ou melhor
dizendo, estão em contacto através de uma membrana semipermeável). O
equilíbrio implica a igualdade da pressão hidrostática dos dois lados, o que
se traduz na igualdade do nível da água nos tubos verticais.
No lado direito é então dissolvido um pouco de açucar. (E vale a pena
notar que um pouco basta). Constata-se então uma migração de água do lado
esquerdo (soluto puro) para o lado direito, o da solução. Isto é osmose. É
difusão do solvente para onde está em menor concentração. Pois, a presença
de açucar implica uma diminuição da concentração da água no lado direito.

88
açucar
����������
�������� ����������
��������
����������
�������� ����������
��������
����������
�������� ����������
��������
����������
�������� ����������
�������� h
����������
��������
���������� ����������
��������
��������
���������� �� ����������
�������� ��
��������
���������� �� ����������
��������
���������� �� ´ +
´
agua pura ��´agua pura
���������� ´
agua pura �� agua
����������
���������� �� ���������� �� açucar
���������� �� ���������� ��
´
Membrana semipermeavel ´
Membrana semipermeavel
(a) (b)

Figura 10.1: Osmose. (a) Inicialmente não há diferença no nível dos dois
lados, pois contêm ambos água pura. (b) Adicionando açucar ao lado direito,
é provocada a difusão de água para o lado da solução - onde a concentração
da água é menor.

10.2 Pressão osmótica


A elevação do líquido no lado direito significa um aumento na pressão desse
lado. Este aumento de pressão contraria, claro está, a tendência do líquido
continuar a difundir para onde está menos concentrado. Em determinada
altura, a diferença de pressão equilibrará a difusão osmótica. Nessa altura,
o excesso de pressão do lado da solução é a pressão osmótica. No caso da
Figura 10.1 esta será dada por π = ρgh. (É habitual usar a letra grega pi
para designar a pressão osmótica). Uma definição exacta:

A pressão osmótica é a pressão que tem de ser aplicada a uma


solução para a por em equilíbrio com o solvente puro quando
está separada deste por uma membrana semipermeável.

A própria definição de pressão osmótica dá boas indicações sobre como


se poderá medi-la. . .
Constata-se experimentalmente que, para soluções diluídas:
1. A pressão osmótica é directamente proporcional à concentração do
soluto.

2. A pressão osmótica é directamente proporcional à temperatura abso-


luta.
Isto é, em matematiquês:
π = kcT
sendo π a pressão osmótica, c a concentração do soluto, T a temperatura
absoluta, e k uma constante a estudar. Curioso foi o que se descobriu ao
investigar a natureza da constante de proporcionalidade k:

89
1. É independente do solvente, do soluto e da membrana (desde que esta
seja verdadeiramente semipermeável).

2. Vale 8,314 J/mol·K. Isto é a constante dos gases ideais!

Destes dados concluiu Van’t Hoff, em 1884, que:

A pressão osmótica é igual à pressão que o soluto exerceria se


estivesse em estado gasoso à mesma temperatura e ocupando o
mesmo volume que a solução.

Resulta então a equação de Van’t Hoff :

π = cRT ⇔ πV = nRT, (10.1)

onde a equivalência resulta da concentração ser c = n/V onde n e V são,


respectivamente, o número de moles e o volume da solução. Pois é, isto
parece mesmo a equação de estado dum gás ideal. (Assim é mais fácil
lembrarmos da sua forma).
Por esta altura deve começar a notar-se que as pressões osmóticas podem
ser muito elevadas, mesmo para pequenas concentrações. Óbvio deve ser que
mesmo para uma única mole de soluto em 22,4 � de solvente, a 0o C, a pressão
osmótica será π = 1 atm.
A ideia de Van’t Hoff pode ser levada um pouco mais longe, resultando
numa correcção lógica à sua própria equação. Na analogia com a pressão
exercida pelas partículas dum gás faz mais sentido considerar o volume de
solvente do que o volume de solução. Assim a substituição do volume da so-
lução pelo volume do solvente na equação de Van’t Hoff deve dar resultados
melhores. Isto é de facto o que sucede. O facto foi descoberto experimen-
talmente e resulta numa equação devida a Morse:

πV � = nRT (10.2)
onde V � é o volume de solvente. É evidente que para concentrações realmente
baixas a distinção não tem importância. Na realidade ambas as equações
podem ser justificadas como aproximações válidas para soluções diluídas no
âmbito dum estudo termodinâmico da osmoe. Esse estudo, válido também
para situações de concentração mais elevada, escapa ao âmbito deste curso,
mas sendo importante qualificar os conceitos de ‘boas aproximações’ e ‘baixa
concentração’, apresenta-se a tabela 10.1, elucidativa sobre a validade das
teorias referidas.
Ainda usando como guia a analogia com gases de Van’t Hoff, concluímos
correctamente que no caso de haver dissolução electrolítica do soluto, a
pressão osmótica será superior. Por exemplo, se dissolvermos uma mole de
sal em água, teremos 2 moles de partículas em solução: os iões Na+ e Cl− . À
partida devemos esperar uma duplicação na pressão osmótica. Na realidade

90
Pressão osmótica (atm)
Molalidade experimental Morse Van’t Hoff termodinâmica
0,1 2,47 2,47 2,40 2,47
1,0 27,22 24,7 20,4 27,0
2,0 58,37 49,5 35,1 58,5
3,0 95,16 74,2 45,5 96,2

Tabela 10.1: Pressão osmótica para solução de sucrose em água. Comparem-


se os dados experimentais com os resultados calculados com as relações de
Morse e Van’t Hoff. Ainda se incluem os valores previstos considerando a
termodinâmica das soluções. Dados de [10].

o aumento será dependente da concentração, e menor que 2, porque um


certo número de iões Na+ e Cl− estarão emparelhados em moléculas.1 Não
irei desenvolver este assunto, mas devemos considerar as relações de Morse
e Van’t Hoff apenas válidas para solutos em que não há dissociação: uma
mole de solvente rende uma mole de partículas dissolvidas.
A medição da pressão osmótica é particularmente útil na determinação
de massas moleculares elevadas, como as das proteínas ou dos polímeros.
Isto resulta simplesmente do facto da pressão osmótica ter valores apreciáveis
mesmo para soluções muito diluídas.

1
Para água do mar o factor será de 1,8.

91
Apêndice A

Algumas deduções

A.1 Equação Barométrica


A equação barométrica revela a variação da pressão com a altitude num
fluido, considerado gás ideal, em que a variação da densidade com a pressão
é importante.
Na figura consideramos as forças verticais actuando sobre uma fatia de
gás de espessura dy. O peso deste volume V = Ady é mg = ρAgdy, onde ρ
é a densidade do gás onde a pressão vale p(y). As forças de pressão verticais
valem Fb = p(y)A, e Ft = p(y + dy)A, com os sentidos indicados na figura.
Por hipótese admitimos a situação de equilíbrio, pelo que
Fb − Ft = mg ⇒
⇒ A[p(y) − p(y + dy)] = Aρgdy ⇒
dp
⇒− = ρg (A.1)
dy
A densidade do gás ideal de massa molar M à temperatura T e pressão p é
Mp
ρ=
RT
sendo R a constante do gás ideal, obviamente. Introduzindo este valor da
densidade na expressão (A.1) resulta
dp M gp
=−
dy RT
Rearranjando as peças podemos integrar desta forma:
� p(y) � y
dp Mg
=− dy (A.2)
p0 p y0 RT
onde p(y) é o valor da pressão à altitude y quando p0 é a pressão no nível
y0 . Deve ser claro que estamos a considerar que a temperatura tem um valor
fixo, o que às vezes não é bem assim. . .

92
Integrando a expressão (A.1) descobrimos que
p(y) Mg
ln = (y − y0 )
p0 RT
que é outra forma de escrever a equação barométrica:
Mg
p(y) = p0 e− RT (y−y0 ) (A.3)

É patente que a dedução supõe um gás ideal em equilíbrio estático com


uma temperatura constante.

A.2 Viscosidade e a Lei de Poiseuille


A.2.1 Viscosidade
Começamos por olhar com mais pormenor à situação da secção 2.3.2 em que
se definiu o coeficiente de viscosidade através da relação
A
F =η v0 (A.4)
D
Na realidade esta é uma versão simplificada (mas correcta!) da seguinte
relação usada para definir o coeficiente η dum fluido em termos de velocidade
e forças exercidas no seu interior
dv
F = ηA (A.5)
dy
As duas relações são equivalentes, como espero convencer-vos com argu-
mentos em vez de contas:
• A placa move-se com velocidade constante, pelo que a força resultante
sobre ela é nula. Assim, a força aplicada à placa para manter a velo-
cidade v0 é igual mas oposta à força que o fluido em contacto com a
placa exerce sobre ela.

• Pela terceira lei de Newton, a força que o fluido exerce sobre a placa
é igual mas oposta à força que a placa exerce sobre o fluido.

• Conclui-se que a força que a placa exerce sobre a camada superior do


fluido tem o valor da expressão (A.2.1).

• Se a placa fosse substituida por uma camada de fluido com a mesma


velocidade, a força exercida sobre o fluido por baixo não mudaria: o
seu estado de movimento mantém-se. Portanto a expressão (A.2.1)
representa igualmente a força que uma camada de fluido com velo-
cidade v0 exerce sobre a camada de fluido imediatamente por baixo,
com velocidade inferior, tal como na situação da Figura A.1.

93
y
D v0
F

v=0 x

Figura A.1: A força F� é exercida pela camada superior de fluido (azul claro)
sobre a camada mais escura.

y A
v(y + dy)
−F
v(y)
F

Figura A.2: A camada de cima, mais veloz, exerce a força F� sobre a camada
de baixo, mais lenta. Por sua vez, a camada de baixo exerce a força −F�
sobre a camada de cima. O valor das forças é dada pela relação A.2.1.

• Na situação da figura, é claramente verdade que


v0 dv
=
D dy
No limite de nos concentrarmos sobre uma fina camada fluida, é a
expressão com a derivada que deve ser usada, claro.

De todas estas considerações concluir-se-á, havendo ainda paciência, que


a força que uma camada fluida exerce sobre outra ao deslizar é
dv
F = ηA (A.6)
dy

A Figura A.2 ilustra as forças mútuas (iguais e opostas) exercidas pelas duas
camadas de fluido em contacto que escoam a velocidades �v (y + dy) e �v (y).
Então uma camada fluida é arrastada para frente se estiver em contacto
com outra camada mais veloz, e puxada para trás se estiver em contacto com
outra camada menos veloz, e em qualquer das situações o valor da força é
dada pela expressão (A.2.1).
É claro que no interior do fluido uma força resultante é uma expressão
duma variação na pressão.

94
R
v(r + dr)
v(r)
r + dr
r

p1 p2

Fp
Fi
Fe ℓ

Figura A.3: Figura útil para analisar escoamento laminar num tubo. Expli-
cação no texto.

A.2.2 Escoamento num tubo. Perfil da Velocidade.


Podemos agora juntar isto tudo e analisar um fluido em escoamento laminar
num tubo cilíndrico, o nosso objectivo.
A Figura A.3 representa a situação. Um fluido corre num tubo de raio
R. Camadas sucessivas do fluido em escoamento são cilindros concêntricos.
Na camada interior a velocidade é maior, diminuindo em direcção à borda.
Concentramos-nos na camada entre r e r + dr. São exercidas sobre esta
porção de fluido três forças, que se equilibram. São as duas forças exercidas
pelas camadas de fluido adjacentes, a azul, F�i e F�e , e a força devida a uma
queda da pressão no sentido em que o fluido corre, representada a verde, F�p ,
pois p1 > p2 na situação da figura.
Vejamos então o valor de cada uma destas forças:
|F�i | = −2πr�η · v � (r) (A.7)
pois 2πr� é a área da superfície interna da camada, η o coeficiente de visco-
sidade do fluido, e v � (r) a variação espacial da velocidade (derivada) nesta
superfície. O sinal negativo torna a expressão positiva, uma vez que a velo-
cidade diminui ao aumentar o valor de r, i.e. v � (r) < 0. Da mesma forma
|F�e | = −2π(r + dr)�η · v � (r + dr) (A.8)
A força devido à diferença de pressão p1 − p2 actuando sobre a área em
forma de anel é
|F�p | = 2πrdr · (p1 − p2 ) (A.9)

95
Como por hipótese as forças estão em equilíbrio - a velocidade do fluido
não muda com o tempo,
Fe = Fi + Fp (A.10)
Substituindo as expressões para estas forças dadas em (A.7), (A.8), e (A.8),
resulta, recordando que v � (r + dr) − v � (r) = v �� (r)dr

rv �� (r)�η + v � (r)�η + r · (p1 − p2 ) = 0 (A.11)

Esta equação vai nos levar ao perfil característico da velocidade, a partir


da qual será directo chegarmos à lei de Poiseuille. A equação (A.11) é
equivalente a
d 1 2
� �
rv (r)�η + r · (p1 − p2 ) = 0

(A.12)
dr 2
pelo que a expressão entre [ ] é uma constante:
1
rv � (r)�η + r2 · (p1 − p2 ) = C
2
Considerando r = 0, concluímos que a constante é simplesmente zero. Desta
forma chegamos até:
1 p1 − p2
v � (r) + r =0⇔
2 �η
1 p1 − p2
v(r) + r2 = C (constante) (A.13)
4 �η
Como a velocidade é nula quando r = R, a constante na equação (A.13)
vem dada por C = 14 R2 (p1 − p2 ). Por outro lado a velocidade é máxima
quando r = 0, pelo que que
1 p1 − p2
vmax = R2 (A.14)
4 �η
Finalmente obtemos a expressão do perfil parabólico da velocidade para um
fluido em escoamento laminar num tubo:
� �
r2
v(r) = vmax 1− 2 (A.15)
R

Este resultado está ilustrado na Figura 2.7

A.2.3 Taxa de Escoamento (Caudal).


Através dum anel de raio r e largura dr, que tem área dA = 2πrdr, flui um
volume v(r)dA de líquido na unidade do tempo. Assim o caudal total, Q,
que flui no tubo é � R
2πrv(r)dr (A.16)
0

96
Usando a equação (A.15) e integrando resulta
1
Q = πR2 vmax (A.17)
2
Concluímos daqui que identificando vef = 12 vmax e A = πR2 , temos

Q = Avef (A.18)

A.2.4 Lei de Poiseuille


Basta incluir a expressão (A.14) na equação (A.17) para obter

πR4 (p1 − p2 )
Q= (A.19)
8�η

que é a mesma lei de Poiseuille. (No texto principal foi usado L enquanto
aqui usei � para o comprimento de tubo considerado).

97
Apêndice B

Diagrama de fases duma


substância pura

O diagrama de fases duma substância pura (sistema só com uma compo-


nente) mostra, para diferentes valores da temperatura e da pressão, qual a
fase mais estável. Considerando apenas uma fase sólida (muitas substân-
cias podem cristalizar sob formas distintas, e que constituem fases sólidas
distintas1 ), o diagrama será da forma da Figura B.1. A fase mais estável é
aquela que tem o menor valor da energia livre de Gibbs por mole. Os valo-
res da temperatura e pressão tais que duas fases têm a mesma energia livre
molar são as das curvas de coexistência, que podem ser sólido-vapor (curva
de sublimação), sólido-líquido (curva de fusão), ou líquido-vapor (curva de
vaporização).
Nestes diagramas é imediato, para uma dada pressão, a leitura dos va-
1
Para a água são conhecidas quinze fases cristalinas distintas, das quais apenas o vulgar
“gelo” é estável às pressões e temperaturas da nossa experiência comum. O autor Kurt
Vonnegut descreve o fim do mundo na obra Cat’s Cradle, devido a uma nova fase sólida
de água, o “gelo-nove”.

C
Solido
´ Liquido
´

t
Vapor

Figura B.1: Diagrama de fases duma substância pura.

98
Solido
´ Liquido
´
p
0

Vapor

Tf Te

Figura B.2: Temperaturas de fusão, Tf , e de ebulição, Te , para a substância


à pressão p0 .

lores das temperaturas de fusão e ebulição (ou sublimação, se for o caso).


Basta encontrar o ponto da curva de coexistência pertinente, como na Fi-
gura B.2 onde se indicam as temperaturas de fusão e ebulição para uma
certa pressão p0 .
Constatamos que existe um ponto onde as três fases podem coexistir. É o
ponto triplo, indicado pelo t na Figura B.1. O ponto triplo da água tem pt =
611.73 Pa e Tt = 0.01o C. No caso do CO2 os valores são pt = 5.185 bar e Tt =
−56.6o C. Uma vez que a pressão do ponto triplo do CO2 é superior à pressão
atmosférica, esta substância passa de vapor para sólido ao ser arrefecido, sem
passar pela fase líquida. Ao aquecer CO2 sólido este irá sublimar (constitui
o chamado “gelo seco”). O ponto C da Figura B.1 é o ponto crítico. A
curva de vaporização começa no ponto triplo e acaba no ponto crítico. A
pressão e temperatura neste ponto são conhecidas como pressão crítica e
temperatura crítica. Acima da temperatura crítica a fase líquida não existe.
A interface líquido-vapor desaparece. Por vezes distingue-se entre a fase de
vapor acima e abaixo da temperatura crítica: para temperaturas mais altas
é um gás, e para temperaturas mais baixas vapor (porém, aqui esta distinção
não se fará, e os termos serão usados liberalmente, como é uso mais comum).
Desaparecendo a distinção entre vapor e líquido no ponto crítico, torna-se
óbvio que é também o ponto onde o calor de vaporização, que diminui com
o aumento da temperatura, vai para zero.
Nas curvas de coexistência entre o vapor e qualquer das fases conden-
sadas podemos ler o valor da pressão do vapor que está em equilíbrio com
a fase condensada para uma dada temperatura. Vemos facilmente que ao
aumento da temperatura dum líquido corresponde um aumento da pressão
do vapor que está em equilíbrio com o líquido. Quando essa pressão iguala
a atmosférica, o líquido entra em ebulição, pois passa a ser possível a cri-
ação de bolhas do vapor no interior do líquido à pressão atmosférica. Isto
mostra a diferença entre ebulição e evaporação, que é a passagem a vapor

99
p

Solido
´ ´
Liquido
1 atm

Vapor

0 100 T (°C)

Figura B.3: Na água, a fase mais densa é a líquida. Ainda bem.

a temperaturas inferiores ao da ebulição - a evaporação apenas se processa


pela superfície livre do líquido.
Qualitativamente o declive das curvas pode ser facilmente compreendido
usando o princípio de Le Châtelier - Braun, de acordo com o qual os sistemas
evoluem no sentido de contrariar os efeitos duma perturabação ao seu estado
de equilíbrio. Assim um aumento da pressão sobre um sistema fará este
evoluir no sentido do estado que ocupa menos volume, assim reduzindo o
aumento de pressão, em obediência ao princípio. Desta forma o aumento
da pressão faz passar do vapor ao líquido, ou do líquido ao sólido, se a
temperatura o permite. Da mesma forma com um aumento da temperatura
o sistema evolui no sentido endotérmico, isto é sólido → líquido → gás. O
declive positivo das 3 curvas de coexistência corresponde assim à situação
ρsólido > ρlíquido > ρvapor 2 .
É interessante notar o caso excepcional da água. Como sabemos o gelo
bóia, logo a fase mais densa é a líquida. Assim a curva de fusão tem declive
negativo no caso da água. Figura B.3. Na realidade, é isto que permite
patinar no gelo, pois à grande pressão aplicada pela lâmina do patim (o peso
do patinador aplicado sobre uma área muito pequena), o sistema responde
deslocando o equilíbrio para a fase mais densa, isto é, derretendo. Forma-se
uma fina camada de água que permite o deslizar do patim. Chama-se à
atenção que se o gelo não boiasse, os oceanos não estariam em fase líquida,
e a Terra não seria como a vemos. . .

2
Quantitativamente o declive das curvas é dado pela equação de Clapeyron, mas não
aprofundaremos mais este assunto.

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