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Universidade Regional de Blumenau – FURB

Centro de Ciências da Saúde – CCS


Disciplina: Psicologia do Desenvolvimento III
Professor: Alvaro Luiz de Aguiar
Aluno: Enrique Jana Silveira

Narrativa da vida de Maria Isabel, 74 anos.

Meu nome é Maria Isabel Kich Jana, tenho 74 anos e nasci na cidade de São
Manuel, no estado de São Paulo. Fui criada por minha mãe, Emília de Souza Kich, e
meu pai, Sebastião Andrade Kich. Além de mim, eles tiveram mais 5 filhas, sendo eu a
mais velha. Por isso desde cedo, quando eu fiz uns 4 anos de idade, já ajudava minha
mãe no cuidado das minhas irmãs que foram nascendo com o passar dos anos. Eu vi
o segundo parto da minha mãe. Lembro que minha irmã (Regina) era para ser um
menino, porque uma cuidadora de crianças havia dado uma erva para minha mãe
comer durante a gravidez. Meu pai é que havia pedido, porque morávamos em um
sítio e o sonho dele era ter a maioria de seus filhos homens pra ajudar na roça. Só que
eu acho que a erva teve o efeito oposto na mãe, porque só vieram moças. Mas eles
nunca desistiram.

Mas na minha infância, não sei muito o que dizer. Já estou muito velha pra
lembrar direito. Faz muito tempo que tudo isso aconteceu. Mais de 70 anos. Só lembro
que era tudo muito difícil, porque não tínhamos tanta condição e dependíamos do que
era vendido. Plantávamos pra viver e naquela época não tinha veneno. Haviam meses
que as formigas comiam tudo, ou os passarinhos comiam as sementes e elas não
semeavam. Minha mãe cuidava de crianças em troco de pão também. Ela nunca
trabalhou pesado, porque meu pai achava que se ela fizesse isso, poderia prejudicar o
útero. Naquela época eles acreditavam que pra mulher gerar homens, precisava ter
uma saúde muito forte e boa, senão saíriam mulheres.

Eu brincava bastante com essas crianças que a minha mãe trazia pra casa. A
gente corria por tudo que era lado, derrubava tudo. Eu apanhei muito da minha mãe,
mas eu merecia. Era muito sapeca e malcriada. Mas quando meus amigos faziam
arte, mesmo que eu só estivesse junto, só eu apanhava. Ela nunca bateu em
nenhuma criança que não fosse filha dela. Ela falava que quem ia bater neles eram os
pais deles. Eu tinha sorte de que minha mãe só me dava palmada. As outras crianças
apanhavam de vara seca. Mas eu era muito respondona também. Não queria
obedecer a mãe quando ela chamava e dizia que estava tarde.

Só que eu não diria que foi ruim. Foi difícil, porque era uma outra época. Claro
que hoje em dia nenhuma criança deveria apanhar assim, porque já sabem que faz
mal pra elas. Mas uma palmada era melhor do que deixar quebrar tudo. Parece que o
medo fazia as crianças se controlarem mais, porque era tudo aberto e os pais não
podiam ficar sempre vendo o que as crianças faziam. Aí como eu morria de medo de
apanhar, nem aprontava tanto.

Eu falo dessas coisas porque é o que vem na memória agora, mas também
lembro que fui bem feliz com o pouco que tínhamos. Tinha uma menina que era mais
rica e filha de vendedores grandes na cidade que ficava com minha mãe. Ela fazia
aula de ballet, que era algo muito chique e caro. Aí ela brincava de dança comigo. Foi
ali que eu me apaixonei pela dança. Por todos os tipos. Sempre que eu ia na escola,
eu pedia pra fazer atividade de dança com a professora. Mesmo quando essa menina
parou de ficar com a gente, eu continuei ensaiando o que ela ensinou e também
brincava com minhas irmãzinhas. Depois que a gente enjoava de uma peça, a gente
fazia outra e criava os passos, as coreografias. Minha mãe me comprou uma sapatilha
usada e eu usava ela sempre. Cuidava tanto, mas tanto, que se ainda tivesse estaria
intacta até hoje. Só usava pra ensaiar peças sérias. Não tínhamos dinheiro pra me
pagar aulas de ballet, então só depois que eu cresci que eu fui atrás disso. Hoje já não
tem mais como dançar, por causa do meu braço e do joelho, mas você sabe como eu
sempre me machuco só pra fazer isso. Eu amo demais.

Mas quando eu era adolescente eu conheci na igreja uma senhora que


dançava. Ela já tinha se apresentado em tudo que era teatro famoso. E minha mãe
descobriu isso e ficou muito amiga dela. Minha mãe sempre foi assim. Ela era muito
amiga de todo mundo e conseguia puxar conversa. Mas sempre tinha uma segunda
intenção. Fazia isso com essa mulher, padeiro pra dar bolo no aniversário da gente,
com os jardineiros que fizeram a cerca da casa... Ela era desse jeito. Como não tinha
dinheiro, esses favores que ela conseguia nos ajudavam muito. Enfim, essa mulher ia
lá em casa tomar café e eu já começava a dançar pra ela ver e comentar. Eu me fazia
de tansa, como se nem soubesse que ela era bailarina. Aí ela me elogiava, mas
também dava umas dicas e ensinava uns passos e postura. Era um amor aquela
mulher. Mas também nem lembro do que aconteceu com ela. Sei que um dia parou de
aparecer na igreja e nunca mais vimos. Minha mãe explicou, mas já faz tanto tempo
que não tenho como lembrar.

Mas minha adolescencia foi ruim, eu diria. Porque parei de querer ir pra escola,
só queria sair, brigava com meus pais demais. Eles queriam que eu fosse dona de
casa, ficavam arrumando meninos pra mim, com 14-15 anos já queriam que eu
“casasse”. Eles eram todos mais velhos. Deveriam ter uns 25. Minha mãe falava que
eu precisava de um homem bravo pra dar jeito em mim. Eu fumava e bebia escondida
já com 14 anos, coisa que não me orgulho nem um pouco. No fim, eu casei com seu
vô quando fiz 18 anos. Eu não escolhi ele. Era um grosso, estúpido, mas nunca me
bateu. Não amava ele. Eu amava era outro homem, que namorava escondido dele.
Mas esse homem também logo casou e se mudou. Acho que na verdade ele não me
amava também, só que gostava um pouco mais da namorada que tinha. Mas nem
adianta pensar muito nisso agora né, esse povo aí já está morto e enterrado. Se
estiverem no céu, que ao menos estejam felizes juntos. Sei que morreram os dois
juntos. Faz uns 10 anos. O Vitu (ex de Maria Isabel) morreu dormindo e quando a
moça acordou e viu, desmaiou e morreu junto. O meu marido, seu avô, morreu com
40, faz tempo isso. Ele bebia e fumava muito, né. Muito mais que eu. E eu dou graças
a Deus por ter morrido. Nunca amei aquele nojento. Única coisa que ele me deu de
bom foi a aposentadoria, que ele era militar né, e meus filhos e netos. Mas que homem
ruim. Me batia horrores, chegava bêbado em casa. Vocês jovens vêem muito isso em
filme, e acham que não acontecia, mas era bem pior. No filme não tem sangue nem
nada. Eu era surrada. Tentava fugir, mas a família dele era muito controladora. Meus
sogros eram italianos mesmo, e não sabiam falar português direito. Minha família era
de origem alemã, então brigavam muito com isso. Eu não podia falar alemão com as
vizinhas aqui em Blumenau, que eram muitas as que falavam, porque senão ele
achava que eu estava falando mal dele, ou planejando trair.

Falei muito e acabei pulando um monte de coisa. A gente é assim mesmo


nessa idade. Como não tem muita gente que quer nos escutar, saber dessas histórias
de velho, a gente se perde e não fala nada com nada. Mas assim, de adolescência
seria isso. Fui muito malcriada e rebelde. Casei sem minha vontade e nunca mais
dancei.

Como seu vô era militar e aqui no sul tinha muita procura, ele foi transferido
aqui pra Blumenau e eu vim junto. Na época eu já tinha todos os filhos. O Zé, a Sônia
e o Marcos. Mas eles eram bem pequenos. O Zé tinha 5 anos e o resto mais novo. Eu
trabalhava de professora numa creche e eles ficavam com a vizinha. Mas logo a Sônia
fez 7 anos e cuidava da casa, aí ficavam sozinhos mesmo. Eu cuidava deles quando
não estava dando aula, mas tinha que trabalhar bastante pra ter o que comer. Quano
eu cresci, esse negócio que minha mãe fazia, de ficar amiga e conseguir favores, já
não dava tão certo. Todo mundo queria ganhar dinheiro. Isso era 1970, por aí. Tinham
muito medo de perder tudo e morar na rua. Foi uma década que era tudo incerto. E
também aparecia tudo que era invenção nova. Quando você ia ver, o que você fazia
de comida já tinha pra vender pronto em lata ou pacote. E na época falavam que isso
era o mais saudável, porque não apodrecia fácil. Era chique comer coisa pronta,
embutida. Hoje falam que isso faz mal e voltaram a vender os produtos “naturais”.
Parece que o ser humano sempre é assim. Tem que criar algo novo pra falar mal do
velho e dizer que não presta. Mas eu acho que fazem isso só pra vender.

Mas minha vida foi assim mesmo. Trabalhei em escolas como professora e
meu marido no exército. Os filhos cresceram e seguiram seus caminhos. A Sônia virou
professora, o Zé também e o Marcos foi pra rádio. Só que aí logo o Zé sofreu um
acidente e não podia mais dar aula. Ele era professor de educação física e se
machucou num jogo de futebol, que ele adorava. Aí não tinha mais jeito e tá com o
joelho estragado até hoje.

Eu fumava muito e bebia demais também, mas precisava pra aguentar o


esposo. Ele fazia o mesmo, só que me batia também pra descontar essa raiva dele.
Ele era muito humilhado no trabalho e descontava em mim e nos filhos. Mas depois
sempre dizia que me amava e pedia desculpas, que eu não merecia isso. Um nojento.
Ainda bem que tá morto e vai estar no inferno. Se eu for pro inferno, quero ficar num
purgatório diferente do dele. Deus me livre de ficar com esse nojento pra sempre.

Nunca fui bailarina, que eu sempre quis. Mas depois de aposentada fiz anos de
ballet. Eu queria viver disso, e não por hobby. Aprendi piano, voltei a falar com meu
ex, mesmo estando casado né. Parece que foi quando o José (ex-mariodo de Maria
Isabel) morreu e eu me aposentei, o que foi logo em seguida, que minha vida
começou. Meus filhos nasceram muito cedo. Tive o primeiro com 18. Então nessa
época que me aposentei, faz uns 25 anos, eu já estava livre de tudo. Segui cada
sonho que eu tinha quando era criança e de alguma forma realizei eles. Até dormi com
o Vitu escondida da mulher dele. Não me orgulho disso, mas ela era nojenta também.
E que nem eu falei, ninguém sabe dessas coisas, ninguém liga também. É só história
de gente velha que ninguém nunca iria saber se você não estivesse me dando esse
espaço pra falar.

...

A conversa seguiu um rumo em que Maria Isabel ficou falando de acontecimentos que
não a envolviam diretamente.
Projeto de ser

Maria Isabel reclamou bastante de como nunca conseguiu exercer sua paixão
de criança, que era ser bailarina profissional. Também falou muito de seu
relacionamento abusivo com seu ex-marido e de como o idoso não possui espaço
para falar, como se ninguém quisesse saber dos acontecimentos de sua vida. Ela traz
sempre uma história melancólica e aborda as dificuldades que encontrou em sua vida.

Seria interessante um projeto que pudesse ajudar Maria Isabel a se expressar.


Um local em que ela possa seguir os sonhso que tinha quando criança de sua
maneira, e que tenha espaço e seja ouvida. Aulas de ballet para terceira idade seriam
interessantes, por justamente trabalharem a atividade física conhecendo as limitações
corporais de seu corpo.

Quanto as queixas de que não é ouvida, a família poderia dar espaço para ela
falar e se expressar. Principalmente para contar sobre seu passado e se sentir aceita
e ouvida, coisa que ela retratou em sua biografia que sempre teve problemas, visto
que os sogros e marido eram extremamente controladores. Uma roda de conversa
com outros idosos também parece interessante para isso, visto que muitos tiveram
uma vivência parecida com a de Maria Isabel.

É curioso que Maria não demonstrou nenhuma vontade de parar com seus
vícios de fumar e beber, e os mantém desde jovem. Talvez ir atrás de algum
tratamento para controlá-los seria interessante, mas como sua saúde não está sendo
afetada por eles, e a quantidade de vezes que ela realiza esses vícios diminuiu
drasticamente comparado ao período de sua juventude e fase adulta, não há
necessidade de uma intervenção direta.

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