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A literatura e seus tentáculos:

saberes e dizeres sobre a


arte literária e sua essência

P814 l Pontes, Carlos Gildemar

Carlos Gildemar Pontes A literatura e seus tentáculos: saberes e dizeres sobre a


arte literária e sua essência / Carlos Gildemar Pontes.
Organizador
Fortaleza – 2011.
192 p.
1. Literatura Brasileira. 2. Crítica e Interpretação. 3. Análise
Literária 4. Leitura – Crítica. 5. Teoria Literária.
I. Pontes, Carlos Gildemar. II. Título.

869.0 CDU: 82.09


A LITERATURA E Edições Acauã
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SABERES E DIZERES SOBRE A Coleção Dois Dedos de Prosa
ARTE LITERÁRIA E SUA ESSÊNCIA 1. Da arte de fazer aeroplanos, Carlos Gildemar Pontes
Coleção Verso ao Vento:
1. As impurezas do homem, Romero de Sá
2. Antologia Verso ao Vento, Org. Grupo Verso ao Vento
3. As armadilhas da vaidade, Antonio Antenor Angelim
4. Os gestos do amor: magia e ritual, Carlos Gildemar Pontes
5. Quando o amor acontece..., Carlos Gildemar Pontes
6. Melhor seria ser pardal, Carlos Gildemar Pontes
Coleção Mãos à Arte:
1. Súditos da arte, Íris Tavares
2. As aventuras de Zé Severino, Carlos Gildemar Pontes
3. Da roça pro viaduto, 2ª ed. Carlos Gildemar Pontes
4. De Viçosa à Juazeiro: Caminhos da vida inteira, Íris Tavares
Carlos Gildemar Pontes 5. O linguajar cearense, 2ª ed., Josenir Lacerda
6. A queda de Zé Severino, Carlos Gildemar Pontes
Organizador 7. Bush vai reinar no inferno, Carlos Gildemar Pontes
8. O delegado que roubava libros, Carlos Gildemar Pontes
9. A morte do rei do pop Michael jackson, Carlos Gildemar Pontes
Coleção Ensaio Tupiniquim:
1. Super Dicionário de Cearensês, Carlos Gildemar Pontes
2. Literatura (quase sempre) Marginal, Carlos Gildemar Pontes
3. Estudos de literatura praticada no Nordeste, Anchieta Pinto
4. Prosopopéia, Org. e estudos de Milton Marques Jr. et al.
5. Estudos de Literatura Brasileira, Milton Marques Júnior
6. Letras Cearenses, Hildeberto Barbosa Filho
7. Travessia de mundos paralelos, Carlos Gildemar Pontes
8. Elementos básicos da Geoeconomia global, Ésio Augusto Barros
9. Diálogo com a arte: vanguarda, história e imagens, Carlos Gildemar Pontes
10. O padre e a rua, Adalberto dos Santos Leite
11. A literatura e seus tentáculos, Carlos Gildemar Pontes

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Carlos Gildemar Pontes (Editor) Encart Comunicação Visual
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Carlos d'Alge
Fortaleza - Ceará
2011
Religião, mitologia e sexualidade: um estudo sobre a

SUMÁRIO homossexualidade no conto de Machado de Assis - Brenda Kílvia


Cândida RODRIGUES..........................................................................136
Apresentação........................................................................................9 Literatura infantil: concepções e perspectivas para o ensino de
Literatura e suas abordagens, da agradável e difícil arte de avaliar leituras nas séries iniciais - Abraão Vitoriano de SOUSA...............144
- Carlos Gildemar PONTES....................................................................11 A identidade feminina: repressão e liberdade - Tereza Dionísio
O ensino de literatura no nível superior: o olhar do aluno - Sara TAVARES..............................................................................................1 54
Fernandes MARTINS............................................................................22 Luísa: a mulher e o adultério em o primo basílio - Nathalia Aquino
Contação de histórias e desenvolvimento da leitura: o que dizem e Silva...................................................................................................167
os estudos - Diana Maria Leite Lopes SALDANHA.............................32 Amor e barroquismo nas cartas de Mariana Alcoforado - George
Patativa do assaré: o poeta do sertão e o sertão do poeta - Maria do Patrick do NASCIMENTO....................................................................179
Socorro PINHEIRO................................................................................45 A literatura na sala de aula: uma experiência de vida da leitura -
A questão social em menino de engenho, de José Lins do Rêgo - Carlos André da Silva / Mônica Cristiane Teodoro / Reginaldo
Manoel Guilherme de FREITAS / Guilherme Martins de Carvalho PAIVA.....57 Fernandes da Costa..............................................................................184

A leitura literária como experiência de vida: vidas secas e as


máscaras da denúncia na sala de aula - José Carlos REDSON / Maria
Edileuza da COSTA...............................................................................69
Cultura popular: ensinando a aprender literatura - Antonio
Cleonildo da Silva COSTA......................................................................81
Herói, literatura e mito - José Rosamilton de LIMA / Ivanaldo
Oliveira dos SANTOS............................................................................89
Discurso pedagógico: tecendo interação e conhecimentos - Luzinete
Cesário de Araújo FREITAS / Maria Lúcia Pessoa SAMPAIO........................103
Leitura e biblioteca: a autonomia leitora em construção - Míria
Helen Ferreira de SOUZA.....................................................................115
Artigos de graduandos em letras e história da Universidade
Federal de Campina Grande............................................................126
A literatura como identidade histórico-social na obra de José Lins do
Rêgo: o ciclo da cana de açúcar - Nadja Claudinale da Costa CLAUDINO......127
A literatura e seus tentáculos: saberes e dizeres sobre a arte Data vênia, caro leitor, não quero ser maledicente como o outro,
literária e sua essência só queria chamar a atenção para a leitura, única forma de se evoluir a
Gregório de Matos escreveu no século de 17 o retrato de um Brasil consciência, refinar o espírito, aplacar as dores d'alma, sufocar os
onde imperava a violência, a intolerância e a corrupção em todos os temores e libertar as amarras que prendem o homem ao servilismo
setores da Colônia. Diplomado e civilizado na Europa, o poeta baiano político e à ignorância cidadã.
estranhou o país que deixou ainda jovem, quando do seu retorno para Acabo de entrar numa livraria. Os livros me chamam, me
assumir um cargo na Santa Sé de Salvador. Esse Brasil de Gregório não invocam, me assediam o espírito e eu os apalpo, folheio sumários,
se parece nem de longe com o Brasil atual. Crescemos, conquistamos cheiro-lhes as folhas, sento numa cadeira e inicio a conversa que
respeito, participamos da globalização das nações, mas, com um pé na aprendi na infância com os mestres Grimm, Andersen, Perrault,
Colônia, ainda não civilizamos a nossa sociedade. Haverá nessa Lobato e, agora, com os analistas que integram esta coletânea de textos
adversativa uma contradição? Pensemos. sobre a literatura e suas formas de leitura. São colegas de ofício e de
Na minha infância e adolescência, pelos idos de 60/ 70, a Tv era convivência em terras áridas da escola atual. São professores,
debutante e disputava espaço com os livros e a música nacional das mestrandos, graduandos e amantes de um mesmo amor: a literatura.
grandes vozes e dos grandes poetas. A leitura era tão natural quanto São Quixotes e Ulisses, caminheiros desses desertos e dessas
beber água. A bela adormecida, o Chapeuzinho vermelho, Os três esperanças de que, quando o coração do homem for tocado pela
porquinhos e outros contos infantis povoavam nossa imaginação e literatura, todos os caminhos chegarão ao livro.
estimulavam nossa vontade de criar. A Tv trazia o “Supermouse”, a Agora estão do meu lado, espiando minha tranqüilidade de leitor
“Corrida maluca”, o “Zé Colméia”, a “Vila Sésamo”... e os adolescentes feliz. Sara Fernandes Martins, Diana Maria Leite Lopes Saldanha,
iam para as tertúlias repletos de uma euforia apaixonada pela vida e pela Manoel Guilherme de Freitas, Guilherme Martins de Carvalho Paiva,
conquista do primeiro beijo. José Carlos Redson, Maria Edileuza da Costa, Antonio Cleonildo da
O país sufocava nossos jovens e nossos intelectuais mergulhado Silva Costa, José Rosamilton de Lima, Ivanaldo Oliveira dos Santos,
numa ideologia militarista imposta pelo país dos ianques estúpidos. Luzinete Cesário de Araújo Freitas, Maria Lúcia Pessoa Sampaio,
Vivesse o poeta Gregório de Matos nesse tempo, sufocaria em sacos Socorro Pinheiro, Míria Helen Ferreira de Souza, Nadja Claudinale da
plásticos, afogado em tinas d'água, para secar no pau-de-arara. Sei disso Costa Claudino, Brenda Kílvia Cândida Rodrigues, Abraão Vitoriano de
tudo porque li. Li os contos infantis, os desenhos animados, a história Sousa, Tereza Dionísio Tavares, Nathalia Aquino e Silva, George Patrick
oficial e a paralela, a poesia e a prosa dos meus guias espirituais José de do Nascimento, Carlos André da Silva, Mônica Cristiane Teodoro,
Alencar, Machado de Assis, Castro Alves, Lima Barreto, Graciliano Reginaldo Fernandes da Costa.
Ramos, Manuel Bandeira, Patativa do Assaré... são tantos. Sorrio. O dia está claro. E eu vou logo mais dar aulas na
Não compreendo por que a escola está imersa numa nuvem universidade, compartilhar meus anseios e questões hermenêuticas
obscura de politicagem, incompetência e ameaça de extinção dos com os jovens que estão prontos para se lançarem nos abismos do
nossos mestres. Vou à universidade e escuto sempre a pergunta: “O sr. conhecimento. Só não quero ouvir novamente a pergunta se irei dar
vai dar aulas hoje?” Ora, isso é uma piada de dar desgosto. Como posso aulas. Afinal, se vou à universidade para trabalhar, por que algum aluno
eu sair de casa, deslocar-me até o trabalho, dirigir-me à sala de aula e iria para não ter aulas?
não dar aula? Parece que a preguiça mental venceu o desejo de Eis o livro. A literatura e seus tentáculos: Saberes e Dizeres
curiosidade, de olhar em perspectiva, de descortinar o desconhecido
mundo das idéias, de acender uma luz na caverna de Platão. Parece que Sobre a Arte Literária e sua Essência. Somos membros deste polvo,
a sala e os apetrechos tecnológicos que vieram facilitar a vida de agarrados aos tentáculos desta arte tão sublime e tão necessária ao
professores e alunos é um fardo pesado para se encarar. O que dirá a povo.
Biblioteca, este paraíso latente de cura para as maiores demências? Carlos Gildemar Pontes
Certamente o poeta exilado chamaria muita gente de asnos e a escola de
um presépio de bestas. Felizmente, estes, serão uma minoria.
A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

LITERATURA E SUAS ABORDAGENS, DA AGRADÁVEL E um tormento e um afastamento da sua compreensão. Ensinar litera-
DIFÍCIL ARTE DE AVALIAR tura é algo que não pode se prender a um só método, aliás, todo e qual-
quer método é válido, como a relação inversa também pode ser apli-
Carlos Gildemar PONTES¹
cada. Nenhum método pode abarcar a apreensão e o estímulo da

U
leitura do texto literário por este ser, antes de tudo, uma forma de
m dos maiores desafios para o crescimento de um país é,
conhecimento que abrange a apreensão da linguagem como suporte
sem dúvida, a formação de leitores. Escolas, indústrias, sin-
da língua. Basta passar uma vista nos compêndios de história da lite-
dicatos, governos, igrejas e outras formas de dar consistên-
ratura brasileira para se ver que a discussão gira mais em torno da
cia a uma nação precisam de uma população de leitores para não
literatura como representação do que ela é como arte em si. O fenô-
precisar de consertos e remendos na cidadania. meno literário passará ao largo, concebido como estranho ao univer-
E tudo necessariamente tem que se originar no texto literário. so que representa. Não se trata aqui de um conceito puro e simples,
E não há como formar uma consciência lendo uma receita de bolo, literatura é representação, ou reflexo, ou estrutura mental mediada
uma bula de remédio ou um manual de utilização de um aparelho pela arte etc. Porque aí teremos que discutir o conceito de arte, de
eletrônico. Textos resultantes dessas linguagens são puramente téc- linguagem, de sociedade, de homem, enfim, de humanidade – em
nicos, que dependem de uma compreensão maior, de uma estrutura determinado contexto sob determinadas condições estruturais.
mental acumulada no conhecimento da língua e seu uso pelas lin- Então, o círculo giraria sem parar, fazendo com que o ponto de parti-
guagens nela construídas. E desde a invenção da imprensa que a da dependesse do indivíduo, do leitor, do profissional das letras, do
memória e o conhecimento expresso pela oralidade foram tendo professor. Cada um destes tendo conhecimentos, expectativas e
como suporte, para a manutenção de muitas mais memórias, a escri- caminhos circulares diferentes do fenômeno literário. Portanto, o
ta. O texto, sem eliminar o conhecimento não textual, passou a ser a método de trabalho analítico da literatura não pode ser o mesmo
referência universal para a manutenção do conhecimento acumula- aplicado para o ensino da literatura ou da leitura despretensiosa,
do pela humanidade. Como resultado, a literatura é o suporte por feita por prazer. E como a literatura provoca um prazer mais espiritu-
onde devemos iniciar qualquer reflexão sobre o homem, sua cultura al e psíquico do que físico ou material, é preciso discutir formas dife-
e sua origem no campo das mentalidades. renciadas de cercá-la sem deformá-la em cercas acabadas. A posse
Toda e qualquer experiência humana pode ser repetida, embo- no caso não pode se transformar em propriedade.
ra não possa ser refletida e experienciada da mesma maneira por
povos distintos. Tratemos aqui de discutir a literatura e as diversas Ler é um ato de conhecer – o lado do escritor
formas de compreensão e apreensão da sua essência pelos leitores
obrigatórios: o povo da área de Letras. O conhecimento da língua ou de qualquer manifestação da
Muito se tem tentado exprimir teoricamente sobre o estatuto cultura tem sido uma obrigação mais do que um prazer. Aprende-se
literário do texto e suas formas de aprendizagem. Do prazer de ler o para uma finalidade específica. A prova, para o estudante; a profis-
texto à obrigação de estudá-lo vai uma distância que pode se tornar são, para o trabalhador; a sociabilidade entre os homens ou simples-
mente o conhecimento para o poder são meios para manutenção da
¹Escritor, Professor de Literatura da Universidade Federal de Campina Grande cultura. O livro, artefato do saber, só diz algo de si numa cultura
– UFCG/ CFP. Mestre em Letras pela UERN. Editor da Revista Acauã. letrada, profissional, sociabilizada, detentora de um grau de desen-

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

volvimento tecnológico superior e minimamente justa, onde o bem A reversão do caos: o sistema não lê ou a cultura precisa de edu-
estar social é uma prática e não uma conquista a ser almejada. Ou cação
seja, ler depende das condições existenciais, que são frutos das con-
dições materiais e sociais. Ainda vejo minha infância como um tempo de livros e sonhos.
A discussão sobre leitura ocupa ou deveria ocupar as preocu- Nos livros eu fabricava sonhos e nos sonhos que eu não sabia ler via
pações dos profissionais da escola em todos os níveis. Pena que as alegrias e as tristezas do coração. Eu sentenciava meus sonhos a
muito pouco se tem feito para minimizar o flagelo da falta de leitura. correrem comigo no quintal de casa, iluminava-os no galho mais
Do lado, no mercado editorial, a relação é entre o produto e o alto do cajueiro. E dali eu os alçava para o infinito.
lucro. Só é bom escritor quem produz lucro. Não existe a figura do O tempo ia passando e a escola substituindo sonhos por deve-
leitor e sim do consumidor. Isso faz com que a surpresa de revelações res, muitos dos quais enfadonhos, mas era preciso mostrar o boletim
na arte da escrita tenha sido cada vez menor. É preferível investir em para meus pais. E poucas vezes eu tive oportunidade de aprender a
autores que trocam de títulos e se mantém no ranking dos mais ven- arte de sonhar na escola. Gostava de desenhar, pintar, escrevinhar
didos, do que integrar novos autores ao mercado editorial. Há exce- uns versinhos... e olhar os cabelos negros da morena que sentava à
ções, ainda. Escritores que surgem ligados às instituições que têm minha frente.
como suporte atividades ligadas a difusão cultural, caso das Institui- Hoje a escola está repleta de teóricos e suas teorias mirabolan-
ções de Ensino Superior e dos Grupos e Revistas Literárias que cum- tes. Escreve-se sobre a solução de tudo que é problema, menos do
prem o papel de agregar nomes consagrados com iniciantes. Afora que é fruto da escória indigesta da política centenária que sufoca a
isto, raros são os que conseguem furar o bloqueio do isolamento. E aí escola e o seu agente principal, o professor. Quem de sã consciência
reside um problema de fundo eminentemente estrutural. Faltam diria a um filho seu que vá ser professor? E olha que eu dou aulas
políticas públicas que centrem suas ações no sujeito produtor de num Curso de licenciatura de uma Universidade Federal. Então,
arte. Não são poucos, mas muito longe de serem suficientes, as Fei- como pensar na escola sem professor, sem educação, sem cultura? E
ras de Livros, os Seminários Temáticos, os Congressos de Literatura, por que relacionar os três? É porque fica difícil conviver com a escola
os Encontros diversos que trazem em seu bojo a focalização do escri- atual sem os ingredientes necessários para que os livros e os sonhos
tor, do livro e do leitor. Mesmo assim, são pouquíssimos os escritores voltem a reinar no ambiente escolar.
que participam, por fatores que vão desde a falta de condições eco- Há cerca de onze anos um professor do antigo primário me deu
nômicas para deslocamento e inscrição até a filtragem equivocada uma lição de como era antes, e olhe que foi apenas uma conversa ame-
que elimina o escritor ou simplesmente o distanciamento entre teo- na, numa posse de diretoria de um clube de serviço. O mestre falava
ria e prática, por que trazer um escritor para falar coisas que a maio- com segurança de autores que a maioria dos professores e estudan-
ria do público não irá ler? tes nunca terão “tempo” de ler. E foi uma conversa embalada pela
O escritor fica impedido de se mostrar, de interagir com o erudição do professor aposentado que vez por outra lamentava “o
público, de se integrar ao contexto mais amplo das relações cultura- hoje” de anos atrás. Posso daí fazer algumas perguntas que ficarão
is. Evidente que se fala dos que têm obras. Os que não publicaram sem respostas. Qual o professor, independente da disciplina, está
livros ainda, sequer são considerados escritores, mesmo que publi- levando Shakespeare e José de Alencar para sala de aula; Salvador
cações esporádicas em jornais e revistas já os credenciem ao univer- Dali e Di Cavalcanti; Tchaikowsky e Villa-Lobos; Michelângelo e
so mais estrito da literatura. Aleijadinho; Brecht e Qorpo Santo; Spielberg e Glauber Rocha; para

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

citar apenas dois, um estrangeiro e um brasileiro que se destacaram so: o professor. Neste contexto escolar, em que a educação que parte
em cada área artística. E não se pode pensar que isso é função de Edu- da escola poderá voltar a ela através da prática educacional de seus
cação Artística, por que até os professores desta disciplina estão pre- educadores, será preciso um permanente compromisso destes edu-
cisando ser apresentados a muitos dos gênios da arte. cadores com a sua formação crítico-humanística e com o contexto
Cabe mostrar a noção de atividade cultural que teve o IV Plano sociocultural em que estejam envolvidos.
de desenvolvimento Francês: O ponto de partida de uma grande tomada de consciência, dos
que participam direta ou indiretamente do processo educacional,
O desenvolvimento cultural de uma sociedade, em um dado será através da participação do educador na problemática social com
momento de seu desenvolvimento econômico e social, deve uma atitude política frente à realidade; a reestruturação dos currícu-
expressar a qualidade das relações do homem com essa socieda- los escolares, construídos pelos diversos segmentos educacionais
de; isto é, o grau de autonomia do indivíduo, sua capacidade de
interessados e a associação da cultura à educação. Precisamos for-
situar-se no mundo, de comunicar-se com seus semelhantes e de
participar melhor da sociedade, podendo, ao mesmo tempo,
mar leitores, pesquisadores, cientistas, escritores, artistas, já desde o
liberar-se. Nessa perspectiva se trata de optar por um certo núme- ensino fundamental, para não nos transformarmos num país de
ro de valores individuais e coletivos que tornem o desenvolvi- povo demente, como quer a maioria dos nossos governantes.
mento cultural a finalidade das finalidades². Educar-(se), antes de tudo, é saber dividir a cultura com os
que, de alguma forma, são impedidos de ter acesso a esse bem uni-
Esta noção de atividade cultural está diretamente ligada à qua- versal que é a educação. Sem isso, corremos o risco de uma acefalia
lidade de vida do homem. Entenda-se, por isto, qualquer atividade generalizada. Mais sério ainda, contribuiremos para a formação de
cultural capaz de “redimir o homem da alienação que lhe foi imposta uma cidadania de papel.
por uma sociedade cada vez mais industrializada, tecnificada e urba-
nizada”. Leitores de menos, o desafio de ler
Se na América Latina sofremos por falta de políticas culturais
definidas, dentre a falta de outras políticas, no Brasil, particular- A maior parte das licenciaturas na Universidade está repleta
mente, não há qualquer política séria e eficaz para a valorização da de estudantes da classe menos favorecida. Estes estudantes, se devi-
cultura. Com um enorme agravante de que os meios de comunicação damente aproveitados pelo mercado de trabalho, tornar-se-ão pro-
de massa exercem uma influência devastadora sobre os meios tradi- fissionais em escolas de diferentes níveis, a maioria delas capengas.
cionais de cultura: o livro, o teatro, o museu, o cinema estão sendo A sua formação cultural será pensada insuficiente para que eles par-
superados pelos meios multimídias. Para que qualquer tipo de ticipem de um processo que leve mais alunos pobres a competirem
conhecimento seja transformado na/pela escola gerando novos em pé de igualdade com os alunos ricos, que favoreça o ingresso de
conhecimentos, é necessário fortalecer o elo principal deste proces- alunos carentes nas Universidades públicas, nos IFs, nas Escolas
Agrotécnicas ou nas Escolas Militares. O universitário, no geral, não
lê os “clássicos”, participa muito pouco da vida acadêmico-
²In: HERRERA, Felipe et al. Novas frentes de promoção da cultura. Rio de estudantil, portanto, terá imensa dificuldade em repensar a sua prá-
Janeiro: Fundação Getúlio Vargas/MEC/DAC, 1977, p. 1-2.. tica e tenderá a reproduzir o que vem de cima para baixo via MEC e
Id. Ibid. p. 2
2
Secretarias de Educação dos estados e municípios. Então como pe-

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

sar o ensino da leitura e da literatura em cursos de licenciaturas e, em gem não está correspondendo às notas obtidas pelos alunos. As pro-
particular, em cursos de Letras? vas ainda são a melhor amostra do rendimento. Os seminários e os
Para que se chegue a sentir uma necessidade da arte, incorpo- trabalhos escritos em casa estão começando a dar mostra de ineficá-
rá-la aos nossos hábitos diários, é fundamental que seja inserido na cia. Os primeiros, geralmente feitos em equipes, demonstram uma
educação formal uma educação cultural que transforme o homem fragmentação cada vez mais crescente do conteúdo a ser trabalhado.
num profissional humanizado e num cidadão responsável. A escola Um grupo de três ou quatro divide o tema em três ou quatro partes e
deve ter como princípio, além da transmissão, a criação e a difusão da cada aluno dá conta apenas do seu pedaço, muitas vezes sem saber
cultura e do saber em função da liberdade do povo. Caímos, portan- sequer o que o outro vai tratar; quanto aos demais ouvintes não liam
to, no velho dilema, o problema está na estrutura educacional como nada além dos seus pedaços de conteúdos. Os segundos, trabalhos
um todo, a escola não cumpre mais o seu papel de formar cidadãos, em equipes, parecem mais uma colcha de retalhos na base do CTRL
quiçá leitores. C – CTRL V. O que fica ao final, para quem avalia, é uma sensação de
Alguém ousaria comparar a literatura francesa com a literatura que algo está errado em nós, na disciplina ou no método, já que cul-
paraguaia? Ou o esporte na Alemanha com o esporte no Senegal? par os alunos é o caminho mais fácil. Ao longo dos últimos dez anos
Ou a tecnologia japonesa com a tecnologia do Haiti? Ou até mesmo venho trabalhando desta forma, e alternando seminários com ela-
a saúde de Cuba coma a saúde de Honduras? Evidente que não. Os boração de artigos, composição de jornais e a formação de intérpre-
países que aparecem em primeiro plano investiram e investem nos tes de poesia. Disso resultou o Jornal Relaxe e Leia e o Grupo Verso ao
setores sociais básicos, os restantes têm construído cidadãos no Vento, ambos criados a partir de avaliações feitas em turmas do
papel. Como fazer para virar esse jogo adverso em que se encontra a Curso de Letras da UFCG/ Cajazeiras. Percebi que o que servia para
educação e principalmente a formação de professores? Vamos ver uma turma não era aproveitado por outra, além do que é difícil per-
agora uma experiência executada no Curso de Letras, do Centro de manecer na mesma turma todos os semestres para acompanhar a
Formação de Professores, da Universidade Federal de Campina evolução do processo avaliativo implementado em um semestre.
Grande, em Cajazeiras. Das dificuldades às soluções. Parti para uma proposta radical
numa turma de Literatura Brasileira IV, do sexto período de Letras
De frente com a literatura noturno, composta de 32 (trinta e duas) alunas. O conteúdo progra-
mático ia de Vanguardas Européias ao Romance de 30. Era fácil e
A experiência de trabalhar novas formas de avaliação condi- cômodo manter a tríade avaliativa prova, seminário, trabalho em
zentes com as conquistas tecnológicas e os reclames da sociedade casa. Mas era insuportável ver cada vez mais alunos indo para a prova
atual tem sido um desfio de professores e teóricos da educação. final sabendo cada vez menos. Resolvi adotar um sistema semelhan-
Como professor de vários níveis de ensino ao longo da minha profis- te aos Quiz de TVs. Alguém é perguntado e se não responder passa
são, defrontei-me sempre com o problema da avaliação. Como reali- para um grupo que disputa prêmios com o entrevistado ou simples-
zar uma avaliação que afastasse o nervosismo, a cola e o medo do mente cumpre o papel de eliminá-lo. Criei o DE FRENTE COM A
fantasma da reprovação? As muitas formas utilizadas para avaliação LITERATURA, jogo de perguntas sobre os temas trabalhados em
trabalhadas pela maioria dos professores na Universidade gira em sala com a ajuda da monitora da disciplina. O jogo consistia primeiro
torno da prova escrita, do seminário e de trabalhos em equipe. em fazer valer a palavra JOGO na sua finalidade precípua que é o
Venho utilizando estas formas avaliativas e percebo que a aprendiza- ludismo, portanto, estamos alterando o sentido da avaliação para

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

jogo, onde se podia ganhar ou perder, com a possibilidade de se recu- Uma das gratas e prazerosas surpresas foi a auto-avaliação
perar das perdas nos jogos seguintes. realizada pelas alunas. A maioria exultou o jogo como sendo um dos
Estratégia: Superadas as desconfianças e as resistências inicia- melhores momentos já vivenciados no Curso em termos de aprendi-
is, principalmente quando as alunas eram “obrigadas” a ler o mesmo zagem. Era como se houvesse um antes e um depois do JOGO, sendo
assunto, sempre trabalhado na aula anterior, passei a sortear a aluna este um marco fundamental para que elas aprendessem literatura e
que viria a ser sabatinada pelas perguntas que todas haviam feito lessem os livros que ouviam falar desde o início do curso sem, no
(entre oito e dez perguntas); depois, cinco destas perguntas eram entanto, terem tido tempo para ler.
feitas aleatoriamente e, para cada acerto, ganhava-se 1,0 (um ponto); Para mim, dentro da natural heterodoxia em que se deve pau-
para cada erro, perdia-se 0,5 (meio ponto). Caso a aluna não respon- tar a postura de divulgar a literatura além das salas de aulas, ficou a
desse a pergunta da vez, tornava-se a fazer a pergunta para o restante satisfação de saber que Ler, no Curso de Letras, passou a ser uma obri-
da turma e quem acertasse ganharia um ponto. Portanto, os possíve- gação de menos e um prazer a(de)mais.
is 2,5 (dois e meio) pontos perdidos poderiam ser recuperados quan- Esta experiência continua sendo realizada e aos poucos adap-
do ela fosse para a platéia. A aluna saía ao final entre 2,5 (dois e meio) tadas à realidade das turmas trabalhadas. Em algumas, percebemos
e 5,0 (cinco) pontos, tendo os 5,0 (cinco) pontos restantes para atin- alunos com uma resistência e uma preguiça inicial em aceitar o jogo,
gir a nota máxima acrescidos com um estudo dirigido em sala. visto que aceitar significa assumir obrigações, mesmo que estas obri-
Então, mesmo que ela não respondesse as cinco perguntas e fizesse o gações façam parte do processo formativo, os alunos resistem a qual-
estudo dirigido teria nota 7,5 (sete e meio), acima da média. E qual quer atividade que exija a leitura de mais de dois ou três textos xero-
seria, pois, o benefício? É que, para ser sabatinada ela teria que ela- copiados. Esta resistência se dilui e se transforma em ansiedade de
borar as perguntas, se postar diante das outras para ser inquirida e participação, na medida em que o resultado passa a ser um conheci-
sair do jogo com nota suficiente para passar por média. O fator prin- mento adquirido, com base na participação coletiva e no resultado:
cipal é que ela deveria ter lido os textos para participar do jogo. Sendo as notas vão aparecendo e alunos que antes temiam o processo avali-
esta uma das notas, a mais dinâmica, mantive a prova escrita, como ativo passam a manifestar o desejo de encarar a situação como algo
sendo a nota do equilíbrio e indiquei a composição de uma revista “natural”.
feita em equipe, que pudesse ser trabalhada em casa, com o auxílio
É claro que o professor deverá ter uma postura autocrítica dos
do CTRL C – CTRL V, porque se tratava de um trabalho de relaxa-
resultados obtidos e verificar casos em que um ou outro aluno não se
mento para contrabalançar a tensão da prova e a dinâmica do jogo.
adapte de forma alguma a este tipo de avaliação, proporcionando-
Essa revista deveria imitar uma revista ou jornal literário e deveria
lhe a opção de realizar prova, seminário ou artigo e, naturalmente,
versar sobre um dos temas da disciplina. Por exemplo, A Semana de
exigindo um rigor maior na avaliação, para que a minoria não seja
Arte Moderna. Toda e qualquer informação seria válida. Datas, his-
vista como alternativa e sim como exceção. Ressalte-se que a propos-
tória, integrantes, manifestos, quadrinhos, palavras cruzadas, caça
ta do jogo para a turma é realizada com base na aceitação da maioria.
palavras, fotos, tudo que pudesse ser copiado (desde que indicada as
fontes), parafraseado ou composto da própria lavra da equipe. Cabe ao professor o recurso do convencimento e a repercussão dos
resultados das turmas anteriores no boca a boca dos corredores e das
No último dia de aula, depois de vencidas as etapas de avalia-
cantinas.
ção, partimos para uma avaliação final da disciplina, agora sem a
obrigatoriedade da nota, visando mensurar a experiência do DE
FRENTE COM A LITERATURA.

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

Referências O ENSINO DE LITERATURA NO NÍVEL SUPERIOR:


O OLHAR DO ALUNO
HERRERA, Felipe et al. Novas frentes de promoção da cultura. Rio de Sara Fernandes MARTINS³

O
Janeiro: Fundação Getúlio Vargas/MEC/DAC, 1977.
PONTES, Carlos Gildemar. Diálogo com a arte: vanguarda, história ensino de Literatura vem sendo, ao longo do tempo, deixa-
e imagens. Fortaleza: Acauã; Campina Grande: UFCG, 2005. do em segundo plano. Isso se deve ao fato de não ser difun-
_______. Relaxe e leia. Cajazeiras: Curso de Letras UFCG, 2008. dida uma finalidade pragmática para a Literatura, cuja fun-
_______. Travessia de mundos paralelos. 2 Ed. Fortaleza: Acauã; ção vem sendo reduzida ao ludismo unicamente e a obrigatoriedade
Campina Grande: EDUFCG, 2007. do vestibular. Na maioria das aulas que abordam a Literatura os pro-
_______. Verso ao Vento. Cajazeiras: Programa Institucional de Bol- fessores se esquecem de trazer a tona seu caráter formador e pedagó-
sas de Iniciação à Atividade Artístico-Cultural da UFCG. 2008/ gico, ou o papel “humanizador” como descreve Cândido na afirma-
2009/ 2010. ção transcrita abaixo:

As produções literárias, de todos os tipos e todos os níveis, satis-


fazem necessidades básicas do ser humano, sobretudo através
dessa incorporação, que enriquece a nossa percepção e a nossa
visão do mundo. [...]. Em todos esses casos ocorre humanização e
enriquecimento, da personalidade e do grupo, por meio de
conhecimento oriundo da expressão submetida a uma ordem
redentora da confusão.
Entendo aqui por humanização (já que tenho falado tanto nela) o
processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos
essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a
boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a
capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza,
a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do
humor. A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade
na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a
natureza, a sociedade, o semelhante.(Candido, 1989: p. 117.)

Dessa forma, a Literatura deve estar a serviço de nossa forma-


ção enquanto seres humanos, ampliando nossa percepção de
mundo e nos enriquecendo de um conhecimento abrangente, já que

³Graduada em Letras na Universidade Federal de Campina Grande – UFCG/


CFP. Professora do Ensino Fundamental e Médio em Cajazeiras – PB.

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

ela engloba diversas áreas do saber. No entanto, o ensino literário mais expressivamente. Mas para que este método possa ser posto em
ainda está longe de alcançar esse papel “humanizador”, em decor- prática é preciso uma formação mais ampla nos conceitos de gênero.
rência de uma série de fatores como: falta de valorização da Literatu- Outra proposta é a de se trabalhar a Literatura em sala de aula a partir
ra, método de ensino e avaliação que visam apenas fazer com que o das unidades temáticas, onde determinados temas são estudados
aluno assimile e obtenha bons êxitos nas notas etc. tendo como base diversos textos de diversos gêneros e épocas, esta-
Muitos estudos vêm abordando essa temática trazendo pes- belecendo assim relações de similaridade e diferença entre eles.
quisas realizadas em diferentes escolas e resgatando do senso Porém, para a prática desta proposta os alunos precisam de um
comum concepções que fazem parte da realidade do ensino Literário conhecimento prévio que não possuem, uma vez que o ensino de
brasileiro. Porém, neste estudo, nosso intento é promover reflexões Literatura torna-se expressivo a partir do Ensino Médio.
acerca do ensino de Literatura no nível superior sob a perspectiva do Mesmo em meio a uma variedade de escolhas, o ensino de Lite-
aluno. Dessa forma, para comentar acerca dos métodos utilizados ratura continua predominantemente seguindo o modelo historicis-
em sala de aula e suas implicações no desenvolvimento do discente ta uma vez que se enfatizam datas, características, conceitos e fatos
utilizarei minhas experiências estudantis. Discutiremos também as
históricos, em detrimento da fruição de textos e de sua compreensão
diversas formas de avaliação aos quais os alunos são expostos e suas
e interpretação.
implicações no processo ensino-aprendizagem. E por fim, elencare-
mos diversas situações em que estudar dá prazer. Ao ingressar no Ensino Médio deparei-me com este método
historicista, começando pelos conceitos básicos e minguados de
teoria, como a diferença entre linguagem literária e não-literária, ou
Ii. Método: qual o caminho certo?
o que é o gênero épico, dramático e lírico. Após os conceitos partimos
para as escolas literárias, começando pelo trovadorismo, e seguindo
Na arte de ensinar não existe fórmulas prontas ou receitas a sequência, humanismo, arcadismo, até chegar à terceira geração
mágicas, mas há uma série de referenciais teóricos e documentos modernista. Todas estas escolas literárias foram sendo estudadas no
oficiais, como os PCNs, que transmitem um modelo “ideal” que
decorrer dos três anos de Ensino Médio nos limitando a Literatura
pode ou não ser utilizado pelo professor no exercício de seu ofício.
Brasileira e Portuguesa.
Também há o livro didático que traz uma organização interna, geral-
mente, seguida a risca nas escolas, principalmente no tocante ao Este método historicista que fez parte de minha formação
estudo de Literatura. O método seguido se configura de extrema antes do ingresso no ensino superior também se restringia a um
importância no processo ensino-aprendizagem, pois é ele que, na único material de estudo, que no meu caso eram apostilas montadas
maioria das vezes, determina a afinidade e o bom rendimento dos pelo professor. No entanto, na maioria das vezes o único material
alunos com a matéria a ser estudada. utilizado em sala de aula é o livro didático. Apesar disso, havia tenta-
Tendo em vista isto, as propostas metodológicas mais difundi- tivas esparsas de se trabalhar com a obra em sala de aula, mas esses
das atualmente são as que propõem, segundo Cereja (2005), um estu- trabalhos com o texto propriamente dito se resumiam como ainda
do de Literatura tendo por base os gêneros literários vistos de forma acontece, a realizar a leitura, comentar o enredo e algum aspecto que
gradativa – novela, conto, crônica, fábula, drama etc. – estabelecen- encaixe a obra em determinado período literário, não passando
do sempre a relação da evolução dos gêneros estudados com o con- assim de um estudo extremamente superficial das possibilidades
texto social e cultural e as escolas literárias que utilizaram do gênero interpretativas que um texto oferece.

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

O fato de não ter tido um estudo satisfatório de Literatura no conveniente é avaliar qual dessas possibilidades é a mais perti-
nível Médio não fez com que meu gosto por ela diminuísse, então nente a cada escola e ao seu projeto pedagógico, levando-se em
resolvi me aprofundar na área cursando Licenciatura Plena em conta, evidentemente, o corpo de professores e de alunos, as pro-
Letras. Fiquei muito ansiosa ante o desafio de estudar de forma mais postas oficiais de ensino, etc. (CEREJA; 2005: 162)
completa a Literatura no nível superior. E imaginem minha surpresa
ao descobrir que, apesar dos estudos serem mais complexos e com- III. Avaliação: um bicho de sete cabeças
pletos, o modelo historicista continuava, mas sob uma organização
diferente. Literatura Brasileira em quatro períodos que contemplam As práticas avaliativas são uma constante na vida de todo estu-
desde a “Carta” de Caminha até o modernismo. Literatura Portugue- dante, independentemente do nível cursado, uma vez que “avaliar
sa que vai do trovadorismo até o realismo. História das Literaturas não é uma ação esporádica ou circunstancial dos professores/as e da
que tentam contemplar a Literatura Universal em apenas um perío- instituição escolar, mas algo que está muito presente na prática peda-
do e assim por diante. gógica.” (GOMEZ & SANCRISTÁN; 2005: 296) Ela também se cons-
E o ensino de Literatura no nível superior deixou a desejar no titui numa fonte de preocupações que nos acompanha durante toda
tocante à questão do gênero – pouquíssimo trabalhado em sala de nossa formação. Mas o que realmente significa a avaliação e qual a
aula – e não abordou à Literatura infanto-juvenil e muito menos a sua finalidade?
Literatura de Cordel, ou autores nordestinos. Observando minha Avaliar vem do latim a + valere, que significa atribuir valor e
trajetória de estudo de Literatura do nível Médio ao Superior perce- mérito ao objeto em estudo. Portanto, avaliar é atribuir um juízo de
bo que não houve uma mudança significativa de método como achei valor sobre a propriedade de um processo para a aferição da qualida-
que ocorreria. E vai ver é por isso que é tão difícil mudar este modelo de do seu resultado, porém, a compreensão do processo de avaliação
historicista e bitolado que podemos observar no Ensino Médio, pois do processo ensino/aprendizagem tem sido pautada pela lógica da
é através deste método que a maioria dos professores que ensinarão mensuração, isto é, associa-se o ato de avaliar ao de “medir” os
neste nível se forma. Mas foi a partir do meu ingresso no Ensino conhecimentos adquiridos pelos alunos.
Superior, apesar da metodologia utilizada, que conheci o valor da Já para GOMEZ & SANCRISTÁN, a avaliação é:
pesquisa, de se buscar novas fontes de conhecimento além daquelas
trabalhadas em sala de aula. Outro ponto fundamental foi o maior o processo por meio do qual os professores/as, já que são eles que
contato com o texto e o olhar crítico que começa a se desenvolver a realizam, buscam e usam informação de numerosas fontes para
nesse contato, que deveria ser trabalhado desde o Ensino Funda- chegar a um julgamento de valor sobre o aluno/a em geral ou
mental. sobre alguma faceta em particular do mesmo. (2005 p. 296)
O que se faz necessário para tornar mais significativo o ensino
de Literatura é uma mudança de método ou uma dinamizada neste Obviamente a avaliação é de extrema importância, uma vez
modelo historicista. Mas o certo é que debater essa questão metodo- que como sempre há no processo de ensino/aprendizagem um cami-
lógica é complicado, pois a utilização de determinado método irá nho a seguir, entre um ponto de partida e um ponto de chegada, natu-
depender de uma série de fatores. Dessa forma: ralmente é necessário verificar se o trajeto está a decorrer em direção
à meta, se alguns pararam por não saber o caminho ou por terem
Pensamos que quase todas as opções metodológicas de ensino de enveredado por um desvio errado. Dessa forma, as práticas avaliati-
Literatura apresentam vantagens e desvantagens e que o mais vas descrevem que conhecimentos, atitudes ou aptidões os alunos

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

adquiriram, ou seja, que objetivos do ensino já atingiram num deter- textual e capacidade de síntese numa avaliação mais leve do que a
minado ponto de percurso e que dificuldades estão a revelar relativa- prova escrita, que muitas vezes também vem disfarçada com o
mente a outros. mesmo nome.
A informação, obtida por meio da avaliação, faz-se necessária - Seminário: Esta forma avaliativa foi a mais utilizada em
ao professor para procurar meios e estratégias que possam ajudar os minha formação enquanto docente e foi muito importante para meu
alunos a resolver suas dificuldades e é necessária aos alunos para se desenvolvimento e para a prática da transmissão de conhecimentos.
aperceberem delas (não podem os alunos identificar claramente as É basicamente uma simulação de aula reduzida e sem uma prepara-
suas próprias dificuldades num campo que desconhecem) e tenta- ção, como o plano de aula. A maioria das vezes é feita em grupo e
rem ultrapassá-las com a ajuda do professor e com o próprio esforço. encontra-se neste fato sua desvantagem, pois muitos alunos apenas
Por isso, a avaliação tem uma intenção formativa. dividem o material a ser exposto e estuda apenas a parte do assunto
que lhe coube.
Muitas são as práticas de avaliação posta em prática em nossas
- Produções textuais (artigos científicos, portfólios, resenhas,
instituições de ensino, entre elas temos:
etc.): Apesar das possibilidades de plágio que muitas vezes ocorrem
- Prova escrita, a mais utilizada: Esta modalidade de avaliação
em trabalhos deste porte, elas são de extrema importância no desen-
consiste em uma série de perguntas objetivas ou subjetivas, sobre
volvimento do aluno enquanto ensaista e crítico. Este tipo de avalia-
um determinado tema previamente discutido pelo professor. Reali-
ção dá possibilidades ao discente, como foi o meu caso, de começar a
zada em sala de aula em um determinado período de tempo também
produzir textos próprios sem uma orientação imediata, tendo como
estipulado pelo docente. Possui as vantagens de desenvolver nos base o que já foi visto em sala de aula.
alunos capacidade de rápida organização de idéias e de síntese, além
Há vários tipos e formas para se avaliar um aluno e cada uma
de ser estimulado o trabalho sobre pressão e a produção de texto.
delas, como vimos na descrição das formas mais utilizadas em sala
Em contrapartida, a prova escrita tem efeito oposto quando o aluno
de aula, apresentam suas vantagens e desvantagens. No entanto
não consegue desenvolver corretamente as capacidades descritas
todas são importantes no desenvolvimento de competências especí-
acima, já que na maioria das vezes a prova não é comentada após a ficas que precisam ser desenvolvidas pelos alunos, principalmente
atribuição da nota. Outra desvantagem se encontra no fato de que a por futuros professores. Mas a grande questão envolvendo a avalia-
prova escrita contempla apenas uma parcela de todo conteúdo estu- ção não é propriamente o tipo a ser utilizado, mas sim a concepção e
dado se constituindo sempre numa caixinha de surpresas muitas a vivência que se tem dela no processo ensino/aprendizagem, onde
vezes desagradável para o aluno. se dá lugar a julgamento quantitativo e não qualitativo. As práticas
- Prova oral: em minha concepção este tipo é a pior avaliação avaliativas, na maioria das vezes, têm como finalidade não avaliar e
que um professor pode submeter seu aluno. Cara a cara com o docen- sim julgar qual aluno merece prosseguir ou não, quando na verdade
te o discente precisa ter uma capacidade de organização mental deveria ser um instrumento de evidencia de situações problemas a
muito grande para emitir uma resposta satisfatória, uma vez que não serem resolvidas pelo professor e pelos alunos numa relação dialógi-
há possibilidades de rascunhos na fala. É claro que há casos especiais ca.
onde este tipo de avaliação é primordial como, por exemplo, no estu- Assim como o método utilizado, a avaliação também tem sua
do de línguas estrangeiras. parcela de contribuição no nível de motivação do aluno. É claro que
- Estudo dirigido: geralmente atribui-se esse eufemismo a tra- um método e uma avaliação que funciona no melhoramento de um
balhos pesquisados, onde se cobram do aluno uma boa produção discente pode não funcionar para outro. É neste aspecto que entra o

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

fator fundamental: o professor. Ele, enquanto mediador entre o produziu a segunda edição e planeja uma terceira mesmo sabendo
conhecimento e o estudante, precisa desenvolver estratégias para que não valerá nota em nenhuma disciplina.
melhorar o rendimento de sua turma, despertando em seus alunos o Outra experiência interessante é o caso do grupo Verso ao Ven-
prazer de estudar. to. Recitar poemas foi uma forma avaliativa utilizada pelo professor
na intenção de que os alunos participassem artisticamente de um
IV. O prazer de estudar encontro de Letras e está iniciativa acabou por originar um grupo de
performance poética. Algum tempo depois a idéia do grupo foi vin-
culada à um projeto do PIBIAC (Programa Incentivo com Bolsas de
Quais as estratégias que o professor precisa lançar mão para
Iniciação Artístico Cultural) orientado pelo professor Carlos Gilde-
resgatar o prazer pelos estudos de seus alunos? É neste âmbito que
podemos falar sobre o “jogo do saber” que consiste em “tentar recu- mar Pontes que foi o idealizador do Grupo Verso ao Vento. A partici-
perar o caráter lúdico do ensino/aprendizagem. Dessa forma, nunca pação neste grupo contribuiu para aumentar o desenvolvimento
é demais lembrar que a palavra “ludus”, em sentido próprio significa corporal e vocal que são ferramentas essenciais no trabalho docente,
jogo, divertimento e, por extensão, Escola, aula.” (MARCELINO; além é claro de melhorar o nível de leitura e interpretação de textos e
1996:.59). No entanto, segundo o próprio autor, este caráter lúdico despertar maior interesse durante as aulas. Estes benefícios pude-
vem sendo negado por causa de suas características muitas vezes ram ser observados até mesmo em uma das integrantes que cursava
confundidas com “infatilismo” em troca da “produtividade” moder- Geografia, cuja evolução intelectual foi observada pelos professores
na. de sua área. Como monitora, também pude observar os benefícios
Uma boa forma de envolver os alunos mais seriamente, bus- que utilizar um pouco do lúdico na sala de aula podem acrescentar
cando aprendizado e não apenas notas nas atividades realizadas em no processo ensino/aprendizagem. No período em que fui monitora
sala de aula, e lançar mão do ludismo, pois uma de suas característi- da disciplina Teoria da Literatura I e II acompanhei o trabalho do
cas é justamente, como cita Marcelino, ter um grande poder de fasci- professor que envolvia os alunos nas leituras de obras em sala de
nar aqueles que com ela se envolvem. Pelo menos nas experiências aula. Por exemplo, ao ser trabalhado um drama, os personagens
das quais participei enquanto aluna em que o professor utilizou essa eram distribuídos entre os alunos que faziam uma espécie de drama-
ferramenta foram extremamente proveitosa para minha formação. tização improvisada. Com essa tática percebi o interesse crescente
A primeira atividade que resgata essa característica lúdica foi a da turma pela Literatura e o bom desempenho dela no decorrer do
produção de um Jornal, o Relaxe e Leia. A sua produção envolveu o período.
esforço de toda a sala e contou com entrevistas, crônicas, poemas, Já como monitora da disciplina Literatura Brasileira IV o desa-
artigos literários, uma verdadeira mistura artística, que mobilizou a fio era atrair uma maior participação dos alunos durante a exposição
turma num exercício que envolveu pesquisa, produção textual, cria- do conteúdo. Juntamente com meu orientador desenvolvemos um
tividade, trabalho em equipe etc. A turma acabou se envolvendo de jogo de perguntas e respostas intitulado “De frente com a Literatura”.
tal forma que a nota que seria atribuída ao jornal acabou por ganhar A cada semana havia uma rodada do jogo do assunto que tinha sido
um lugar secundário, pois a preocupação primordial era produzir anteriormente explicado na ultima aula. As aulas de exposição do
um bom jornal, enquanto que a preocupação do professor que pro- conteúdo ficaram extremamente participativas e o jogo ia ficando
pôs a atividade era a de fazer com que a turma se sentisse capaz de cada vez mais disputado e prazeroso e seu caráter avaliativo foi
produzir um gênero textual. A idéia deu tão certo que a turma ainda sendo deixado de ser uma preocupação constante dos alunos que

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

começaram a buscar maiores conhecimentos, entrando no jogo e CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS E DESENVOLVIMENTO DA


não simplesmente buscando notas. LEITURA: O QUE DIZEM OS ESTUDOS
São iniciativas como essas que citei acima que tornaram os Diana Maria Leite Lopes SALDANHA4
meus estudos de Literatura mais prazerosos. É preciso fugir muitas
vezes da formalidade e da pressão do ensino como é exposto na maio-
Considerações iniciais
ria das nossas salas de aulas. Precisamos ressaltar que o processo

E
ensino/aprendizagem também pode se dá através de um meio mais
leve e divertido e nem por isso será menos eficiente. A palavra-chave ste trabalho é fruto de um estudo monográfico que foi desen-
aqui é inovação. O professor precisa se perguntar de que forma sua volvido por meio de uma pesquisa qualitativa de natureza
aula poderia ser mais dinâmica e tentar mudar algumas coisas para bibliográfica, realizado com objetivo de compreender como a
atrair o interesse de seus alunos. contação de histórias contribui para a formação do leitor. O interes-
se pela temática parte do pressuposto que através das histórias, pode-
mos abrir caminhos para introduzir a literatura em sala de aula,
Referências
tendo em vista a formação do leitor como também desenvolver a
CANDIDO, Antonio. “Direitos humanos e literatura”. In: Direitos
imaginação do aluno.
humanos e... São Paulo: Brasiliense, 1989.
A arte de contar histórias tem sido motivo de discussões e
CEREJA, Willian Roberto. Ensino de literatura: uma proposta dialó-
divergentes opiniões em relação ao seu papel para o desenvolvimen-
gica para o trabalho com a literatura. São Paulo: Atual, 2005.
to do indivíduo enquanto pessoa e leitor. A verdade é que apesar da
GÓMEZ, A. I. Pérez. SANCRISTÁN, J. Gimeno. Compreender e
escrita ter feito avançar a razão lógica e aperfeiçoado gramatical-
transformar o ensino. Trad. Ernani Fonseca. 4ª ed. São Paulo:
Artmed, 1998. mente o discurso, antes da escrita os homens já organizavam relatos
oralmente de acordo com Yunes (2003), os homens já contavam his-
MARCELLINO, Nelson Carvalho. A sala de aula como espaço para
o “jogo do saber”. In tórias e liam através de imagens nas cavernas, símbolos, rituais e
códigos que utilizavam no seu convívio. Seja qual for o contexto, o
MORAIS, Regis de. Sala de aula: que espaço é esse? 10ª ed. Campi-
nas: Papirus, 1996. processo de contação de histórias abre espaço para o pensamento
mágico e para o desenvolvimento do gosto pela leitura.
Discute-se a relação entre o contar histórias e o desenvolvi-
mento da leitura, o processo de contação de histórias e sua contribu-
ição para o desenvolvimento da criança e formação do leitor, bem
como a importância da leitura literária nas escolas para a aprendiza-
gem, haja vista, o relevante papel que a leitura desempenha no
desenvolvimento intelectual dos indivíduos, sendo fundamental e
necessária durante a formação indivíduo. Entretanto, sabemos que

Professora do Departamento de Educação da Universidade Estadual do Rio


4

Grande do Norte – UERN/ CAMEAM.

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

para a leitura se constituir um ato de prazer, requer incentivo, estí- contribui para provocar o imaginário, aguçar a curiosidade, fazer
mulo e motivação. questionamentos, como também encontrar outras idéias para resol-
ver problemas, conflitos e dificuldades que apareça.
Contação de histórias e formação do leitor Sendo assim, observamos que contar histórias abre espaço
para a criança ampliar seu mundo e enxergar outros mundos, tendo
em vista que o próprio narrador constrói um mundo de acordo com
A contação de histórias é uma arte milenar que permeia o
seus interesses para chamar a atenção do seu interlocutor e a criança
nosso convívio, atravessa nossa imaginação com seus encantos e
vê o mundo criado pelo autor e vai construindo seu mundo. Sobre
delícias e instiga a curiosidade e conseqüentemente o desenvolvi-
mento do ser humano enquanto pessoa e enquanto leitor (SISTO, isso, Amarilha (1999, p.13), coloca que:
1994). Isso acontece porque contar histórias não está ligado somente
Contar uma história é abrir uma janela para o mundo. A imagem
aos contadores profissionais que atuavam no meio social em locais
de janela traz à nossa mente o desenho geométrico de um certo
públicos. O primeiro contato que a criança, por exemplo, tem com o enquadramento do mundo. Em assim sendo, o narrador, aquele
texto é oralmente, através da voz da mãe, do pai ou dos avós, utilizan- que traça a janela, escolhe de acordo com seus objetivos e interes-
do contos de fadas, mitos, trechos da Bíblia, histórias inventadas, ses, declarados ou não, conscientes ou não chamar a atenção do
poemas cantados e outros. seu interlocutor para alguns aspectos da realidade.
É um momento relevante para a formação do imaginário da
criança que dá prazer e contribui para ser um leitor, corroboramos À luz desse argumento e em consonância com a autora, vimos
Abramovich (1997, p.16), quando argumenta, que para ter essa seleção de imagens, o leitor olha para esse ângulo do
mundo traçado pelo narrador reproduzindo sobre ele o que suas
Ah, como é importante para a formação de qualquer criança necessidades e expectativas estimularam a partir da história que ele
ouvir muitas, muitas histórias... Escutá-las é o início da aprendi- ouviu. A autora relata que, nesse momento, entram em circulação os
zagem para ser um leitor, e ser leitor é ter um caminho absoluta- fatores desejo e prazer. Daí, a dualidade dessa dinâmica que exige do
mente infinito de descoberta e de compreensão do mundo. leitor o papel de intérprete e crítico, de participante e criador, fazen-
do-nos questionar: quais elementos tornam o texto atraente para o
Para a autora, ler ou contar histórias para criança é ter a possi- leitor? E o que existe dentro de um texto que o torna significativo?
bilidade de sorrir, dar gargalhadas com as situações vividas pelas Celso Sisto orienta que para praticar o ato de contar histórias é
personagens, com as idéias contidas nos contos ou o jeito como o preciso ler muito e com prazer. O contador de história tem que se
autor escreve, além de poder ser cúmplice desse momento de doar e ter clareza de seus objetivos, saber o que ele quer realmente,
humor, de brincadeira e também divertimento. Ouvir faz sentir emo- visto que, de acordo com os objetivos, os procedimentos e encami-
ções importantes como alegria, segurança, tranqüilidade, medo, nhamentos são diferentes “Se o objetivo é apenas lúdico, se é discutir
irritação, raiva, tristeza, alegria, etc. Pode instigar o desenhar, o tea- determinada idéia ou tema, se é discutir uma série de sentimentos e
trar, o imaginar, o brincar, o escrever, o ver o livro e o querer ouvir a informações, se é terapêutico, se pretende promover uma integração
mesma história ou outra. O livro da criança que ainda não lê é a his- social e cultural” (SISTO, 1994, p.153).
tória contada, mesmo assim é importante mostrar que o que ela O autor esclarece que é necessário ainda que se conheça o
ouviu está impresso, com o intuito de incentivar a leitura. Tudo isso, público a quem está sendo dirigida as histórias. A verdade é que um

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

grupo sempre é heterogêneo e dispõe de diferentes interesses. Ape- leitores em trânsito, esses poderão chegar a fase de consolidação que
sar de muitas vezes classificarmos o público em infantil, juvenil e é a dos leitores autônomos. A figura abaixo (GOMES, 2003, p. 79)
adulto, os interesses vão variar também de acordo com critérios que resume a sistematização na formação do leitor,
vão além da faixa etária. Uma boa saída para um público misturado é
apostar na diversidade do repertório com o intuito de satisfazer a
todos. Para isto, é fundamental a familiaridade do contador com a
leitura e a maturidade como leitor, pois estes são critérios essenciais.
De acordo com Gomes (2003), o processo de contação na pers-
pectiva da formação do leitor requer uma sistematização por parte
do contador para que se formem leitores autônomos que, de início, é
um leitor iniciante e em seguida um leitor em trânsito até que se con-
solide a formação. Gomes (2003, p.p.77-78), define essas categorias
de leitores da seguinte forma:

O leitor iniciante é o aprendiz que está na fase de sensibilização,


construindo seu repertório de leituras a partir do que vê e ouve.
Geralmente, necessita da presença de um leitor experiente medi-
ando o processo [...] O leitor em trânsito é aquele que já está moti-
vado pela leitura, reconhece a sua importância, sente prazer por
essa atividade, mas o faz de modo irregular [...] Já o leitor autôno-
mo é um leitor proficiente, fluente, que desenvolve com regulari-
dade suas práticas de leitura. Encontra prazer e conhecimento,
admite a importância ao ato de ler e faz desse procedimento sua Para compreendermos melhor, discutiremos um pouco sobre
opção consciente. essas fases e os efeitos que produzem na formação do leitor.
A fase de sensibilização é o início do processo de formação do
Segundo o autor, é importante frisar que na atividade de con- leitor. O momento em que o contador vai procurar chamar atenção
tação de histórias, esses três tipos de leitores tornam-se leitores- do leitor para ouvir a história. Para Gomes (2003, p. 79):
ouvintes. Por isso, em todas as categorias, inclusive de leitor autôno-
mo que é experiente, a contação de histórias permanece como algo Sensibilizar consiste em impressionar, envolver, gerar interesses
e promover estímulos positivos. É na interação entre o contador
indispensável para formação do leitor. Em cada categoria ocorre de histórias e os leitores iniciantes que no primeiro momento
uma fase, ou seja, junto aos leitores iniciantes temos a fase da sensi- haverá a disposição dos alunos para que estes estejam receptivos à
bilização. Em seguida eles poderão encontrar maior interesse pela contação de histórias, promovendo-se a empatia entre as partes
leitura de literatura, a motivação, levando-os a categoria de leitores envolvidas na atividade.
em trânsito. Se tiver uma sistematização do processo que envolva os

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

Por isso destacamos a responsabilidade do contador nessa tos, pois além de ser um leitor assíduo ele deverá ser dinâmico para
fase, pois esse deverá utilizar medidas que chamem a atenção dos diversificar sua metodologia de trabalho e atrair a atenção dos alu-
ouvintes e provoque o gosto pela atividade proposta, a qual deverá nos na hora da contação de histórias, considerando que essa é uma
ser sinônimo da alegria, prazer e descontração. O autor defende que ponte que se forma rumo ao livro e às leituras, como postula Sisto: “É
é interessante que essa arte também esteja presente em sala de aula, exatamente do fascínio de ler que nasce o fascínio de contar” (1994,
nas horas de leitura de literatura, para que o professor possa se apro- p.150).
ximar e interagir com os alunos, além de não limitar suas atividades a
burocracia dos deveres e provas. Falando sobre leitura
Em se tratando da fase da motivação, consideramos que os
leitores em trânsito já avançaram um pouco no processo de forma- A leitura é de fundamental importância para o enriquecimen-
ção. Então, o autor demonstra que é preciso a utilização de suportes to pessoal e intelectual do indivíduo, pois podemos considerá-la
de leitura como: livros literários e didáticos, revistas, jornais, vídeos, como a base do saber e o sustentáculo para as demais disciplinas. Ela
músicas, obras de arte, etc. para oportunizar ao leitor o contato com contribui decisivamente para a aquisição do conhecimento e ama-
a diversidade existente no mundo da leitura. Bamberger (1991, p.32) durecimento do ser humano, seja qual for sua fase da vida. Entretan-
propõe que “a primeira motivação para ler é simplesmente a alegria to, o ato de lê não se constitui tarefa fácil e exige disposição e gosto da
de praticar habilidades recém-adquiridas, o prazer da atividade inte- parte do leitor, como conhecimento e incentivo dos envolvidos no
lectual recém descoberta e do domínio de uma habilidade mecâni- processo de formação de leitores. Kleiman (1989, p. 13) argumenta
ca.” Isso nos mostra que a motivação é essencial para desenvolver- que:
mos um bom trabalho em sala de aula, objetivando a aprendizagem O processo de ler é complexo. Como em outras tarefas cognitivas,
do aluno. como resolver problemas, trazer à mente uma informação neces-
sária, aplicar algum conhecimento e uma situação nova, o enga-
Já na fase de consolidação, espera-se alcançar o objetivo prin- jamento de muitos fatores (percepção, atenção, memória) é
cipal que é a formação de leitores autônomos. Essa fase “reflete na essencial se queremos fazer sentido do texto.
mudança de postura do aluno que passa a empreender a busca siste-
mática e autônoma pelo livro” (GOMES, 2003, p.94). O autor Com base nas idéias da autora, fica evidente a necessidade de
comenta que o leitor adquire certa maturidade e é capaz de escolher se conhecer esse processo para trabalhar com leitura, pois se o
os livros que quer ler, adotando critérios da seleção, gênero, estilo do docente não compreender a complexidade do processo de leitura e
autor, qualidade do texto e da edição. Ele tem uma visão abrangente da interação, ele estará produzindo idéias alheias, sem conseguir
do mundo proveniente de conhecimentos adquiridos, como tam- implementar essa visão, verbalizando sem agir. A leitura continuará,
bém se ver envolvido numa posição de elemento crítico da socieda- com raras exceções, reduzida à manipulação mecanicista de seqüên-
de. Apesar desse leitor já caminhar com seus próprios pés, não pode- cias discretas de sentenças, não havendo preocupação com a depre-
mos esquecer que a contação de histórias não perde seu valor, visto ensão do significado global do texto.
que, é uma atividade agradável que encanta e seduz independente A leitura não pode ficar limitada a atividades mecânicas, des-
do nível de escolarização que os alunos apresentem. conexas, considerando que o ato de ler não se resume somente a
Sob essa ótica, convém ressaltar o relevante papel que o profes- mera recepção e é importante para o desenvolvimento da aprendiza-
sor deve desempenhar enquanto mediador entre os alunos e os tex- gem dentro e fora da escola. Bamberger (1991, p.10), postula que “[...]

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

a leitura é uma forma exemplar de aprendizagem. Estudos psicológi- Dessa forma, é preciso que a leitura seja vista como necessária
cos revelam que o aprimoramento da capacidade de ler também e relevante no processo de ensino-aprendizagem, pois possibilita o
redunda na capacidade de aprender como um todo, indo além de desenvolvimento cognitivo do aluno. A partir daí, a literatura passa a
mera recepção [...]”. fazer parte do cotidiano escolar, não para desenvolver as atividades
Apesar de percebermos o relevante papel que a leitura exerce gramaticais, mas para desenvolver o gosto pela leitura por toda a
para o aprendizado do ser humano, essa prática parece privilégio de vida. Assim, Villardi (1997, pp. 10-11), coloca que:
uma minoria e uma atividade obrigatória para o aluno desenvolver
dentro da escola. Observamos a desmotivação por parte da escola e isto só ocorre se a leitura for vista não como cumprimento de um
dos professores para que o aluno tenha gosto pela leitura. Segundo dever, mas como espaço privilegiado, a partir do qual tanto é pos-
Kleiman (1995, p. 07), sível refletir o mundo, quanto afastar-se dele, buscando na litera-
tura aquilo que a vida nos nega, quer sob a perspectiva da realida-
as concepções do professor sobre essa atividade são apenas empí- de, que sob a da fantasia.
ricas, e suas práticas de ensino estão baseadas em dicas e progra-
mas de outros professores, utilizados porque são os únicos enfo- Por isso, o trabalho do professor é fundamental para que
ques disponíveis, não porque eles representem uma história de desenvolva o gosto pela leitura, pois o profissional deve utilizar sub-
sucesso. sídios que contribuam para levar o aluno a “descobrir a sua capacida-
de libertadora e criativa, enquanto esculpi, em cada texto, a sua pró-
Na verdade, é preocupante a questão do modismo e das recei- pria leitura.” (VILLARDI, p. 11). Corroboramos a autora quando diz
tas prontas entre os profissionais de educação. Na maioria das vezes, que este material utilizado pelo professor deve ser o texto literário.
os professores copiam receitas de outros colegas para aplicá-las em Ao fazermos um relato do que é literatura, encontramos várias
sala de aula, seja para trabalhar a leitura ou outras disciplinas, o que definições que a caracterizam. Primeiramente temos literatura
contribui para o fracasso de suas atividades, pois eles permanecem como “... a escrita 'imaginativa', no sentido de ficção – escrita esta
despreparados para atuarem de forma significativa rumo ao ensino que não é literalmente verídica” (EAGLETON, 2003, p. 1), definição
que não procede, pois na literatura Inglesa do séc. XVII, encontra-
mais eficaz.
mos sermões, autobiografias, discursos fúnebres de Bousset entre
outros. A distinção entre fato e ficção é muitas vezes questionável,
A leitura literária na escola
uma obra pode ser vista como factual por uns e ficcional por outros.
A literatura, segundo os formalistas russos defendem, é “violência
O ensino de literatura nas escolas tem sido alvo de grandes organizada contra a fala comum” (ibid, p. 2). Para eles, a literatura
discussões entre pesquisadores e autores que consideram essa práti- transforma e intensifica a linguagem comum afastando-se sistema-
ca essencial para o desenvolvimento do educando e para a formação ticamente da fala cotidiana. A essência do literário era tornar estra-
de leitores. Entretanto, existe uma preocupação acerca da formação nho. Em outro momento a literatura é considerada como poesia, o
do profissional professor que educa novos leitores. Malgrado cons- que é mais além, pois temos obras naturalistas ou realistas que não
tatarmos que ler é construir uma concepção de mundo e possibilitar são lingüisticamente autoconscientes, nem constituem uma reali-
sua compreensão e atuação sobre ele, percebemos que a leitura zação particular em si mesmo. Então, a literatura não tem uma defi-
ainda não se constitui prioridade nos currículos escolares. nição objetiva, depende da maneira pela qual alguém resolve ler, e

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

não da natureza daquilo que é lido. Podemos defini-la como a arte de Por esse motivo, o papel do professor enquanto mediador da
pensar; mundo encantado da imaginação; uma viagem por mundos aprendizagem é essencial para o desenvolvimento do gosto pela lite-
desconhecidos. Essas definições não alteram, nem negam o papel ratura não só para atender as exigências escolares, mas, para a vida.
que a literatura desempenha no desenvolvimento do educando e na Mesmo considerando que a responsabilidade de formar leitores não
formação do leitor. recai somente sobre a escola, mas a compreensão que temos é que se
Diante disso, retornamos a questão da importância do Ensino é função dessa instituição transformar indivíduos iletrados em pes-
de literatura na escola e a utilização do texto literário, haja vista, o soas ricas em conhecimento, fator que está ligado a saber ler para
seu caráter múltiplo e plurissignificativo. Sobre isso, Lacan demons- poder aprender. Sendo assim, no processo de leitura, cabe ao profes-
tra que este texto assenta-se em dois níveis de discurso, sor fazer a mediação entre o texto e o aprendiz. De acordo com Klei-
man (1995, p.27):
O nível manifesto, mais superficial, cuja estrutura transparece
sob a forma de uma cadeia significante articulada em imagens, é Na aula de leitura, em estágios iniciais, o professor serve de medi-
aquele que se evidencia ao leitor. No interior dessa cadeia signifi- ador entre o aluno e o autor. Nessa mediação, ele pode fornecer
cante existem inúmeras “brechas”, “portas”, “fendas” pelas quais modelos de estratégias específicas de leitura, fazendo predições,
se pode ingressar no segundo, mais profundo, o nível latente, perguntas, comentários.
onde se esconde uma imensa gama de sentidos que estão à espera
de que o leitor os descubra. (apud VILLARDI 1997, p. 11) O professor assumirá a função de incentivador, desafiador,
aquele que cria situações em que a leitura se torna uma necessidade
Para Villardi (1997), a compreensão dessa estrutura, por um
do ser humano e é praticada por prazer. O mestre deverá ser um lei-
lado permite ao leitor do texto literário um papel de agente, sem o
tor assíduo, que ler por prazer, para facilitar seu trabalho, já que ele
qual o texto não se faz por inteiro; por outro, admite a possibilidade
próprio será o exemplo para o aluno. De acordo com Martins (1994,
de que o significado profundo do texto se altere, de leitor para leitor,
p.19),
já que, nesse caminho, cada um tem a possibilidade de escolher suas
próprias trilhas. Essa estrutura explicita a riqueza da Literatura A medida que o professor ensina, ele se ensina a si próprio. A pos-
enquanto espaço plural e aberto. Assim, propicia ao indivíduo o pro- sibilidade de ensino de literatura liga-se, então, à condição de
cesso de cognição, ou seja, possibilita o conhecer que envolve aten- aprendiz de quem quer ensinar. Eleger essa frase e não outra para
ção, percepção, memória, raciocínio, juízo, imaginação, pensamen- focalizar o ensino da literatura reforça o caráter transitivo da lei-
to e linguagem. É o processo pelo qual o ser humano interage com os tura e dos processos de mediação escolares que a propiciam.
seus semelhantes e com o meio em que vive, sem perder a sua identi-
dade existencial. Tem como material a informação do meio em que Portanto, apoiamos a autora quando declara que o professor
vivemos e o que já está registrado na nossa memória. Assim, pode- assume enorme responsabilidade quando ensina literatura e ele
mos dizer que a literatura “não se ensina, aprende-se com ela. Mas, à deve estar ciente disso e saber por que ensina literatura. Só assim, o
medida que se aprende, é possível passar para os outros um pouco professor será um mediador que conduzirá o educando a literatura,
daquilo que o prazer da leitura deixou em nós” (MARTINS, 1994, ao gosto pela leitura e acima de tudo contribuirá para a sua aprendi-
p.18). zagem em todos os níveis.

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

Considerações finais Referências

A arte de contar histórias percorreu séculos e atuou na vida do


ser humano de várias formas. Em alguns momentos ocupou um ABRAMOVICH, F. Literatura infantil: gostosuras e bobices. São Paulo:
Scipione, 1997.
lugar de destaque, em outros permaneceu ou permanece quase
esquecida. A verdade é que a contação de histórias contribui signifi- AMARILHA, M. Educação e leitura. Natal, EDUFRN, 1999.
cativamente para formação do homem, seja enquanto leitor, seja BAMBERGER, R. Como incentivar o hábito da leitura. Tradução de
enquanto pessoa. Octávio Mendes Cajado. São Paulo: Ática, 1991.
Nesta perspectiva, observamos que começando pelo homem EAGLETON, T. Teoria da literatura: uma introdução. São Paulo: Martins
Fontes, 2003.
pré-histórico, mesmo não dominando a linguagem oral e escrita, ele
já utilizava a contação de histórias para repassar suas experiências e GOMES, A. A voz que vem de longe: o contador de histórias na formação
do leitor. Mossoró: Fundação Vingt-un Rosado – Coleção Mossoroense,
vivências aos outros e as gerações posteriores, através de desenhos 2003.
nas cavernas. A partir daí, mesmo com o domínio da linguagem oral
KLEIMAN, A. Oficina de Leitura. Campinas, SP: Editora da Universidade
e escrita o homem utilizou essa arte para expor suas idéias, ensinar Estadual de Campinas, 1995.
costumes e tradições e ainda divertir, fantasiar, encantar. As narrati-
KLEIMAN, A. Leitura: ensino e pesquisa. Campinas, SP: Pontes, 1989.
vas (mitos, lendas, fábulas), contadas oralmente, repassaram para
nós os costumes, tradições e modos de vidas dos nossos ancestrais e MARTINS, M. H. O que é leitura. São Paulo: Brasiliense, 1994 (coleção
primeiros passos).
também deu origem a literatura.
SALDANHA, D. M. L. L. A Contação de histórias e a formação do leitor.
A contação de histórias contribui ativamente para a formação Monografia de Especialização. Pau dos Ferros, 2008, 48 p. PPEGLL/UERN.
do leitor, pois possibilita o contato e a familiaridade com a leitura SISTO.C. Leitura e Oralidade In. Caderno de Leitura: PROLER. Rio de
daqueles que ainda não dominam textos escritos. Assim, incentiva Janeiro, 1994.
o gosto pela leitura e mostra a necessidade de aprender a ler. A arte de VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente: o desenvolvimento dos
contar histórias também estimula a leitura dos que lêem textos processos psicológicos superiores. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
escritos, pois, serve como ponte de incentivo para se lê as histórias VILLARD, R.Ensinando a gostar de ler e formando leitores para a
que ouviu. vida. Rio de Janeiro: Qualitymark, 1997.
A partir dos teóricos estudados, constatamos a importância YUNES,E. Pensar a leitura. São Paulo: Loyola, 2002.
que a leitura desempenha em nossas vidas, não só a leitura de textos YUNES,E. e OSWALD, M, L (org). A experiência da Leitura. São Paulo:
escritos, mas também a leitura do mundo, dos desenhos, das ima- Loyola, 2003.
gens. Ler abre caminho para desenvolver o processo de imaginação e
adquirir conhecimentos. A leitura leva-nos a diversos caminhos, a
diferentes lugares, ao encontro com pessoas que nunca vimos,
enfim, nos dá prazer.
Nesse contexto, os autores explicitam a responsabilidade que
o professor assume enquanto mediador que conduz o aluno ao texto
e a aprendizagem. Esse, deverá utilizar diferentes estratégias de con-
tação de histórias e atividades com vistas à formação do leitor. Lem-
brando que o mestre será exemplo para o aprendiz, por isso, deverá
ser leitor assíduo e amante da literatura.

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

PATATIVA DO ASSARÉ: O POETA DO SERTÃO E O SERTÃO ção humana, “eu sou irmão do caboco, / que ri, que zomba e faz pocô
DO POETA / da sua prope desgraça” (p. 15).
Maria do Socorro PINHEIRO5 O canto de Patativa é de dor e de protesto ao mesmo tempo.

D
Uma voz que assume várias vozes num contato relacional, em que a
esde a Antiguidade Clássica greco-romana que o espaço do história do outro é a sua história. A poesia se estende em muitas dire-
sertão tem provocado interesse em escritores e poetas. Gre- ções, aponta para o que falta e compartilha o que tem; um manto de
gos, como Teócrito, procuraram inspiração para sua alma rimas que enxuga o pranto de dor, uma espécie de comunhão. Poesia
na vida pastoril; entre os romanos, citamos Vergílio, o poeta das esperança que enlaça o fio da vida no labirinto da existência, dissi-
“Geórgicas” e das “Bucólicas”; na Idade Média, trovadores cantaram pando em ternos versos as amarguras do cotidiano.
canções em que o ambiente descrito era a zona rural e a mulher uma O poeta tinha uma roça que lhe dava alimento e poesia. Que
camponesa. Árcades, românticos, modernistas sentiram-se tam- coisa extraordinária! Natureza e cultura entrelaçadas, permitindo a
bém atraídos pela poesia campesina. ação uma da outra. Algo que acontecia por meio da poesia, a nature-
O sertão é um espaço de encontros e desencontros, reflexo de za abrindo espaço e permitindo ao poeta a criação de seus versos.
trajetórias de vida em busca de sobrevivência. O homem sertanejo é Essa união está associada ao seu fazer poético, duas atividades reali-
visto na sua essência. Um corpo que transpira ao mesmo tempo aspe- zadas ao mesmo tempo, uma se misturando a outra. A integração
reza e sensibilidade. Sua realidade nos atrai. A convivência com o entre natureza e cultura é compreendida pela forma de viver do
que falta estabelece um jogo de poder, de ação e reação. A percepção poeta de Assaré, que cultivava a terra e a poesia - um processo único,
desse ambiente físico e da psicologia humana é colhida, cuidadosa- simultâneo, imediato, envolvimento de corpo e mente. Todo o mate-
mente, pela expressão artística do poeta. Mas não de qualquer poe- rial de sua poesia estava na natureza, o cheiro do verso tinha “o chêro
ta. Falamos aqui especificamente de um. Somos convidados a atra- da poêra do sertão” (ASSARÉ; 1991: 19), não há como fazer a separa-
vessar a porteira do sertão para encontrar um terreiro de rimas, local ção entre esses dois universos, qualquer tentativa se esvaziaria, por-
de onde emana a poesia de Patativa do Assaré. que o pensamento de Patativa já é poesia.
O poeta nasceu na Serra de Santana a dezoito quilômetros da O sertão é visto como o lugar do fazer poético, razão principal
cidade de Assaré, no dia 05 de março de 1909. Espaço geografica- de o poeta nutrir sentimentos tão fortes e verdadeiros e de se sentir
mente localizado na Região do Cariri, próximo ao Chapadão do Ara- ligado a ele. Poeta, sertão e poesia, a tríade que revela um universo
ripe. Patativa, poeta agricultor que conheceu o sertão de perto, sabia encadeado de ações, prefigurando mudanças nos improvisos da
em que tipo de solo pisava, “só canto o buliço da vida apertada, / da vida. Estabeleceu-se uma relação que fez com que a natureza e a cul-
liga pesada, das roça e dos eitos”(ASSARÉ; 2003: 14). Amante das tura não se separassem, acrescida ainda da condição de poeta agri-
cultor, que vê no sertão um campo poético de conhecimento, beleza,
coisas do sertão e integrado ao meio em que viveu, ele assumiu a posi-
amor e outros sentimentos que fortalecem e estimulam a poesia a ser
ção de defensor do homem sertanejo, essa é a identidade do poeta.
da natureza.
Entendeu que a missão do vate passa pela consciência de sua condi-
Quantas coisas nós observamos no sertão de Patativa! Além da
natureza e cultura, a dimensão social, a beleza e a linguagem. Um
Professora do Curso de Letras da Universidade Estadual do Ceará sertão cantado de dentro, observado pelo olhar perspicaz de quem
5

UECE/FECLI, Mestre em Literatura Brasileira pela UFC. está sempre à espreita. Um movimento sequer e a poesia nasce. E

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

nasce vigorosa, cheia de vitalidade porque se endereça ao outro. da brisa que “assopra manêra fazendo cosca na mata”, (p. 22) e do
Corre nas artérias desse sertão de beleza e de sofrimento uma poesia encantamento “das festa do mês de maio e das festa de S. João”, (p. 23)
que tem a intenção de incluir todos num mesmo patamar. É esse o se não tiver longa vivência e devotamento por esse lugar?
sentido maior da poesia de Patativa, uma poesia feita para todos, Sertão festivo, atraente, cheio de empolgação, iluminado
uma voz que vibra em nome do outro, numa linguagem que caracte- pelas diversas práticas culturais, que hoje nem sempre são cultiva-
riza o sertão. Um lugar surpreendente pelas belezas e pelas calami- das, “já hoje não tem mais o que eu digo aí, mas já houve, aí eu retra-
dades naturais. Sertão como narrativa de lutas, expressa nos gritos
to. Lá na Serra de Santana tinha muita festa de São João, em toda par-
silenciosos da alma, em que tudo parece perdido e sem saída, “minha
te, em toda parte” (FEITOSA; 2001: 67). Muitas brincadeiras serta-
vida é uma guerra, / é duro o meu sofrimento, / sem tê um parmo de
nejas tomaram novas formas, outras ficaram perdidas, fazendo
terra; / eu não sei como sustento / a minha grande famia” (ASSARÉ,
parte apenas das reminiscências de algumas pessoas. Vivemos hoje
2003). Sem mais demora entremos no sertão de Patativa e conheça-
outro tempo, outra história. Patativa estava ligado ao sertão, “cantei
mos os elementos que caracterizam esse lugar onde sua poesia fez
sempre e hei de cantar / o que meu coração sente” (ASSARÉ; 1991:
morada.
235). Ele o conhecia “em carne e osso”, manifestando dessa forma
Como definir o sertão de Patativa? O sertão é “o doce ninho, / o
autoridade, portanto, é que cantou as “coisas rudes e belas do sertão”
livro aberto onde lemos o poema da mais rica inspiração” (ASSARÉ;
1992: 236). Foi esse livro que Patativa folheou e encontrou material (p. 237).
suficiente para falar de seu povo, temática que apresenta grande coe- O poeta de mão calosa diz para o poeta da cidade que ele não
são com sua história de vida. Ele nos fez ver que no sertão há muitas sabe cantar verdadeiramente o seu querido sertão, pois o vê de fora,
riquezas, mas não queria mostrar somente isso. Há uma intenção apenas de passagem, está longe, não entende o que se passa com o
muito maior: a possibilidade de fazer com que o homem sertanejo homem sertanejo. Seu conhecimento é superficial, longínquo, frio,
acorde para reivindicar seus direitos e tenha consciência de sua cida- abstrato. Quem nele vive, sabe cantar direito, está perto, assim diz o
dania, “natureza e social se fundem porque para Patativa são uma poeta em “Cante lá que eu canto cá”:
mesma manifestação” (CARVALHO; 2002: 59). O sertão não era
apenas o lugar do fazer poético de Patativa, mas um cenário de rei- Pra gente cantá o sertão,
vindicação dos direitos, “o sertão de Patativa é trabalho e luta” no Precisa nele morá,
dizer de Carvalho (p. 102). Rostos sofridos que vagam pelo mundo Tê armoço de feijão
afora em busca de sobrevivência, cansados de ter “armoço de fejão e a E a janta de mucunzá,
janta de mucunzá” (ASSARÉ; 2003: 276). Vivê pobre, sem dinhêro,
O sertão também é poesia, “Que prazer! Que grande gozo, /
Trabaiando o dia intêro,
Que bela e doce emoção, / Ouvir o canto saudoso / Do galo do meu
Socado dentro do mato,
sertão, / Na risonha madrugada / De uma noite enluarada!”
(ASSARÉ; 1992: 235). Quais são as belezas do sertão de Patativa? Não De apragata currelepe,
se tratava de um lugar qualquer, do qual se poderia dizer qualquer Pisando inriba do estrepe,
coisa. A beleza do sertão promove um canto renovado, um poetar Brocando a unha-de-gato.
interminável. Como falar dos teus mistérios, das tuas noites de luar, (p. 26)

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

O poema está em linguagem matuta, mas mesmo que não esti- ceu pelos sentidos, pela visualidade, pela voz, pelo cheiro. Voz pene-
vesse não perderia sua força temática e seu valor estético. Linguagem trante, com vida própria, que não se calava nem mesmo quando ter-
que caracteriza um tipo de homem, reflexo de sua condição social. A minava de recitar o poema. Voz que invadiu sertão adentro, constru-
utilização dessa forma lingüística resulta de um processo de escolha indo imagens que iriam habitar o novo céu sertanejo. Visões de um
em que o talento do poeta é que decide. Sua versatilidade nos mundo que se configurava pela secura de vidas, pela ausência de
impressiona quando nos deparamos com poemas em linguagem ornamentos, pela dureza da linguagem, mas ao longe novos sonhos
culta. O domínio de dois códigos lingüísticos de Patativa o coloca ressurgiam, dando outras significações para justificar a luta perma-
numa tradição em que outros poetas também fizeram parte, como nente pela sobrevivência “nos direitos humanos nós todos somos
Catulo da Paixão Cearense, Napoleão Menezes e Zé da Luz. Assunto iguais”.
que pode ser discutido em outro trabalho. A poesia de Patativa tem uma postura de reivindicação dos
São muitos os poemas que falam do sertão. “Eu e o sertão” é um direitos do homem camponês que passa pela questão da reforma
canto de louvor, de saudação em que o sentimento é movido pelo agrária. Seu discurso apresenta uma dimensão dialógica, manifes-
prazer de cantar o lugar que lhe deu “um mundo cheio de rima”. E o tando ora ao sertanejo ora ao doutor a situação de opressão do
que fez o poeta com esse mundo cheio de rima? Não quis mais sair homem do campo. O matuto advogado encontrou na poesia sua
dele. O sertão de Patativa está em estado puro, “ingualmente o dia-
defesa. Modos de dizer que atingem a alma do leitor, deixando-o em
mante / ante de arguém lapidá” (p. 22). “O diamante antes de ser lapi-
estado de alerta. Espécie de cartada final, não há opções de escolha,
dado, não é? Porque o diamante só é alguma coisa depois dele ser
apenas a vida. Toda sua obra está em sintonia com seu povo, revelan-
lapidado. Aí é que ele vai brilhar, não é? Mas o sertão é puro, tão puro
do a situação precária daqueles que não têm um pedaço de terra para
quanto o diamante antes de seu trabalho, não é?” (FEITOSA; 2001:
trabalhar. Realidade que não foi a do poeta, mas ele viu o sofrimento
25).
de seus irmãos sertanejos, e conscientiza-os dizendo, “tu pensas,
Patativa vive o sertão, “vivo dentro do sertão / e o sertão dentro
de mim”, (ASSARÉ; 1991: 236) expressando uma intimidade, um amigo, que a vida que levas, / de dores e trevas, debaixo da cruz”,/
conhecimento profundo do universo sertanejo. Ele está no sertão e o “são penas mandadas por Nosso Jesus”. (ASSARÉ; 1991: 99)
sertão está nele. Isso lhe permitiu mostrar pela voz como muitas No poema “A Terra é Natura”, Patativa mostra que a terra é de
pessoas viviam, “sou sertanejo e me orgulho / por conhecer o sertão” todos, é como o vento, o sol, a lua, a chuva, “tudo é coisa minha e sua”.
(p. 236). O sertão lhe pertencia, nasceu ouvindo o canto da bichara- O agregado pede licença para falar o que deseja, “o que quero nesta
da, conhecia o clima, a natureza, as grotas, os rios, as plantas. “Um vida / é terra pra trabaiá” (p. 330). A sobrevivência de sua família é
olhar de dentro para dentro” no dizer de Gilmar de Carvalho (2000), garantida pelo esforço, pelo trabalho com a terra. Ele sabe de sua
mas que não deixava de enxergar o que existia fora. Patativa é o ser- condição, é um trabalhador sem estudo, “sem escrevê, nem lê”, mas
tão, seu corpo, suas mãos, sua pele demonstram marcas desse longo conhece a verdade, e ela é uma só, independente da linguagem. O
convívio, que poderia ter ficado apenas na condição de trabalhador. poema “Eu quero”, entoa um canto de justiça,
Patativa se transforma num ser plural, intérprete de um povo
massacrado pelas injustiças sociais. O poeta do sertão é um analista A bem do nosso progresso,
da sociedade, seu canto questiona o modelo social capitalista que Quero apoio do congresso
tende a separar o homem. O acesso a esse mundo de idéias aconte- Sobre uma reforma agrária

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

Que venha por sua vez tida”, “Dois quadros”, “Emigração”, “Vida sertaneja” entre outros,
Libertar o camponês dialogam entre si, mostrando o quadro assombroso da seca no Nor-
Da situação precária. deste. O canto tornou-se uma espécie de ópera do sertão,
(p. 117).
Ai como é duro vivê
O poeta exige, “quero um chefe brasileiro”, que faça cumprir os Nos Estado do Nordeste
direitos do povo. Ele tem consciência de sua cidadania, portanto, a Quando o nosso Pai Celeste
exerce com dignidade. O camponês encontra em Patativa seu porta- Não manda as nuve chuvê.
voz, uma relação de pertinência entre canto e dor. De onde é que vem É bem triste a gente vê
essa mentalidade reformista? Patativa era agricultor como os Findá o mês de janeiro,
outros, mas com um detalhe que o tornava diferente: a rara sensibili- Depois passá feverêro
dade e a admirável capacidade poética, podendo dizer qualquer E março também passá,
coisa em forma de verso. A natureza lhe presenteou com um manan- Sem o inverno começá
cial de poesia, fonte que não se esgotou, nem mesmo quando o poeta
No Nordeste brasileiro.
já estava velho e doente.
Patativa do Assaré, assim como outros poetas populares, utili-
Berra o gado impaciente,
za uma temática recorrente ao falar do sertão, alimentada pelas cren-
Recramando o verde pasto,
dices, experiências e costumes de cada sertanejo. Segundo Câmara
Desfigurado e arrasto,
Cascudo, “os motivos da poesia tradicional sertaneja só podiam ser,
Com o oiá de pinitente.
evidentemente, os emanados do ciclo social, do ciclo do gado, da
O fazendeiro descrente
memória velha que guardara os romances primitivamente cantados
nos primeiros cupiares erguidos na solidão do Brasil nordestino...” Um jeito não pode dá;
(2005, p. 18). São esses motivos que tornam esse lugar vibrante, sur- O só ardente, a queimá
preendente, vivo. Apesar de seu deslumbramento pelo sertão, o E o vento forte assoprando,
poeta não deixa de mostrar que ao lado das coisas boas, há também A gente fica pensando
coisas ruins “umas que fede a cupim / ôtras que chera a melão”, sendo Que o mundo vai se acabá.
fiel ao expor todos os elementos que compõem esse espaço, afinal (2003: 281).
“desta gente eu vivo perto, / sou sertanejo da gema” (ASSARÉ; 1991:
236). Patativa retrata esse cenário de dor, situação comum na vida
Uma das coisas ruins é a seca, tendo como conseqüência para o do povo. A seca traz tormentos ao homem e à natureza. Não se ouve
sertanejo a saída de seu torrão amado a procura da sorte num lugar mais o canto do bonito sabiá, “o musgo mais afamado dos passarinho
desconhecido. A saga do nordestino atravessa décadas e mais déca- do Norte” (ASSARÉ; 1991: 283), apenas se ouve o joão-corta-pau com
das e encontra na poesia de Patativa grande expressão. “O Nordesti- “seu poema funero” e a sariema com “o toque desafinado, / acompa-
no em São Paulo”, “ABC do Nordeste flagelado”, “A seca”, “A triste par- nhando o cinema / do Nordeste flagelado” (p. 285). A seca arrasa a

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

vida do pobre camponês, seu desespero aumenta quando vê a pelas matas do sertão, aquele cenário de secura desaparece “e corre
mulher “cunzinhá lá no fugão / o derradêro fejão / que ele guardou água em brobutão”. Como no sertão nada é imóvel a começar pela
pra cimente” (p. 286), como sinal de esperança. A única alternativa é natureza, o sertanejo não fica parado, logo pega suas ferramentas e
procurar a sorte em outro lugar, “e viaja para o Sú / inriba de um cami- vai cuidar da terra, e assim “neste bonito triato / todo cheio de apara-
nhão” (p. 286), que nem sempre é a melhor saída. Patativa presenci- to / cada bichinho do mato / faz a sua obrigação” (ASSARÉ; 1991: 80).
ou o sofrimento daqueles que partiram para terras desconhecidas e Isso se não tiver acontecido uma “Seca d'água”, poema em que o
que não tiveram mais como voltar, “trabaia dois ano, três ano e mais poeta revela as desventuras causadas pelo inverno, “meus senhores
ano, / e sempre no prano / de um dia inda vim” (p. 287). governantes / da nossa grande Nação/ o flagelo das enchentes / é de
O poeta está à frente, na porta de entrada para mostrar as vere- cortar o coração” (ASSARÉ; 2001: 170).
das dos caminhos perdidos, das desilusões sofridas, da terra rachada Encontramos os quatro elementos da natureza, o fogo, o ar, a
pela falta d'água, das cabanas destruídas, mas não pense que ele está terra e a água, na obra de Patativa “toda poética deve receber compo-
ali passivamente, aceitando pacientemente o destino. Pelo contrá- nentes – por fracos que sejam – de essência material, é ainda essa
rio, o poeta clama por justiça, usa sua poesia para expressar o modo classificação pelos elementos materiais fundamentais que deve aliar
de viver sertanejo e a luta contínua pela vida. Sua poesia é voz que mais fortemente as almas poéticas” (BACHELARD; 1988: 04). Sua
insiste em ser ouvida, que implora a presença do outro. Mesmo dian- poesia recebe esses elementos e de forma muito acentuada estão
te da trágica realidade, o homem ainda encontra energia para conti- presentes a água e a terra. Componentes que contribuem para a
nuar vivendo. Não se sabe de onde vem sua força, as desventuras são mobilidade do sertão, para seu enriquecimento, para a criação de
tantas, vidas aperreadas, esquecidas e sem horizontes, mas o imagens que ilustram o universo sertanejo. A água e a terra são os
homem nordestino consegue driblar a própria sorte e sem menos hormônios do sertão, elementos revitalizantes que permitem o
esperar está ele novamente abraçando a vida. desenvolvimento da natureza e o fortalecimento das relações entre o
A seca revela um quadro cruel do sertão, tudo está sem vida, o homem e o meio onde está inserido.
curral deserto, o chiqueiro das cabras, as casas dos vaqueiros fecha- Na poesia de Patativa há a presença de personagens tradicio-
das, os açudes secos. Sertão, muitas vezes, definido pela ausência de nais do sertão: o vaqueiro, o caboclo, o roceiro, o caçador, e assim
vida, mas logo se transforma com a chegada do inverno. O camponês como outros poetas que também cantaram o sertão, ele não se
se prepara com sementes e de enxada na mão “vai prantá feijão ligê- esquece dos animais familiares, como o cavalo, o boi e o cachorro.
ro, / pois é o que vinga premêro / nas terra do meu sertão” (p. 79). Homens e animais irmanados pela força da natureza. Seus persona-
Patativa apresenta os festejos da nova aurora amenizada pela pre- gens não são imóveis, passivos, pelo contrário, estão num vai e vem,
sença da chuva e anuncia “o sonho do sertanejo, / seu castelo e seu que deixa o sertão iluminado, acordado.
desejo / é sempre o inverno e a lavoura” (ASSARÉ, 1991). A água traz a Vemos a natureza, os bichos, os pássaros, as árvores e outros
idéia de fertilidade e de pureza e que ao penetrar na terra dá-se o seres transformados em protagonistas de suas histórias. “O vim-
santo himeneu, resultando na fecundidade, pois os frutos nascem vim”, “O sonho de Mané Filiciano”, “O sabiá e o gavião”, “Um sabiá
do encontro da água com a terra. “A água é um embrião; dá a vida um vaidoso”, “Cada um no seu lugar”, “A estrada da minha vida” e outros
impulso inesgotável” (BACHELARD; 1988: 10). poemas nessa mesma linha, mostram a forte relação com a natureza,
O sertão de Patativa agora é outro. Com o inverno tudo muda, ficar longe dela é um tédio no dizer do poeta. “O galo egoísta e o fran-
toma outra feição, “de verde a terra se reveste”. Novas cores brilham go infeliz”, “O boi zebu e as formiga”, “O castigo do mucuim” são

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

outros poemas, cujo enredo e personagens estão na natureza e que Referências:


aproveitam para chamar atenção sobre os aspectos morais e sobre os ALENCAR, Geraldo Gonçalves de. Ao pé da mesa: motes e glosas. São
valores da vida a serem cultivados. Os poemas “Eu e meu campina”, Paulo: Terceira Margem: Fortaleza: Secult, 2001.
ASSARÉ, Patativa do. Aqui tem coisa. Fortaleza: Secult, 1994.
“Eu e pitombeira”, é o poeta e a natureza, entrelaçados, unidos num
__________. Cante lá que eu canto cá. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 1992.
eterno diálogo. Natureza que não é apenas uma multidão de folhas __________. Cordéis. Fortaleza: UFC, 1999.
verdes, mas seres com sentimentos. __________. Inspiração Nordestina: Cantos de Patativa. São Paulo:
Patativa firmou determinados traços de nossa literatura. Sua Hedra, 2003.
poesia reflete o mundo do caboclo, do homem da roça, daquele povo __________. Ispinho e Fulô. Fortaleza: UECE, 2001.
sacrificado, caracterizando aquilo que é nosso. Não foi a cidade com BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos. São Paulo: Martins Fontes,
1998.
seus desenvolvimentos tecnológicos e científicos que deu à literatu-
CARVALHO, Gilmar de. Patativa do Assaré. Fortaleza: Edições
ra o caráter nacional, mas o sertão pôde marcar, de fato, a indepen-
Demócrito Rocha, 2000.
dência literária. A necessidade de auto-afirmação veio do campo, “o __________. Patativa poeta pássaro do Assaré. Fortaleza: Omni Editora
sertanismo revela o anseio, num país onde a cultura é importada, de Associados Ltda., 2002a.
valorizar os elementos mais genuinamente nacionais” (MIGUEL- __________. Patativa do Assaré: Pássaro Liberto. Fortaleza: Museu do
PEREIRA; 2002: 179). Ceará; Secretaria da Cultura e Desporto do Ceará, 2002b.
Patativa nunca ficou do lado de fora do sertão, distanciado de CASCUDO, Luís da Camara. Literatura oral no Brasil. 2. ed. Rio de
Janeiro: J. Olympio; Brasília: INL, 1978.
sua gente, esse seu devotamento tem uma causa muito importante.
____________. Dicionário do folclore brasileiro. 8 ed. – São Paulo:
Sua poesia de caráter social revela a história de vida de seu povo, que Global, 2000.
é também sua própria história. Escolheu fazer isso por meio de uma ____________. Vaqueiros e cantadores. São Paulo: Global, 2005.
linguagem que consegue expressar suas idéias, suas propostas. CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade: estudos de teoria e história
Como agricultor, ele não podia fazer muito pelos irmãos sertanejos, literária. 8ª ed. São Paulo. T. ª Queiroz, 2000.
mas fez como poeta. Tanto é que não desperdiçou tempo, nem poe- FEITOSA, Luiz Tadeu. Patativa do Assaré: a trajetória de um canto. São
Paulo: Escrituras Editora, 2003. – (Coleção ensaios transversais)
sia, tudo que canta, de alguma forma está relacionado ao povo “mi-
MIGUEL-PEREIRA, Lúcia. Regionalismo. In: História da Literatura
nha poesia é assim dentro desse tema do povo. É assim como um Brasileira. Vol. XII. São Paulo – Fortaleza: ABC Editora, 2002.
grito de alerta, apresentando o estado de vida aqui... ali... na classe ONG, Walter. Oralidade e cultura escrita: A tecnologização da palavra:
pobre, né? (...) Como eu apresento naquele meu poema “Brasi de tradução Enid Abreu Dobránszky. – Campinas, SP: Papirus, 1998.
Cima e Brasi de Baixo”, que é a divisão das classes...” (CARVALHO; ORALIDADE em tempo e espaço: colóquio Paul Zumthor / Leyla
2002a). Ele sempre esteve voltado para as classes sociais, para defen- Perrone-Moisés... et all.; org. Jerusa Pires Ferreira. - São Paulo: Educ,
1999.
der os menos favorecidos, isso teria acontecido independente do
ZUMTHOR, Paul A letra e. a voz: a literatura medieval. São Paulo: Cia
lugar em que ele viveu. Se não fosse o sertão, seria outro lugar, con- das Letras, 1993.
tanto que pudesse expressar seu interesse pela temática social. Mas ___________. Introdução à poesia oral. São Paulo: Hucitec, 1997.
que outro tipo de lugar Patativa poderia habitar?

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

A QUESTÃO SOCIAL EM MENINO DE ENGENHO, Menino de engenho


DE JOSÉ LINS DO REGO
Manoel Guilherme de FREITAS6 É composta de 40 capítulos em que fala da história de um meni-
Guilherme Martins de Carvalho PAIVA7 no burguês, de um menino de engenho, diferente dos outros pela sua
condição social. No entanto, apesar de sua condição privilegiada,
sente muita a ausência de sua mãe e, posteriormente, de seu pai,
Considerações iniciais
logo, fica isolado na sua realidade social.

M
A obra é, sem dúvida, um marco da literatura brasileira regio-
enino de engenho, obra de José Lins do Rego, sem dúvida, é nalista além de iniciar uma fase importante da produção regionalis-
uma obra representativa da literatura modernista brasile- ta do romancista. Esta obra está bem representada através do prota-
ira, apesar de não ser uma das mais importantes dentro do gonista – Carlos de Melo. Nela, ele retrata a realidade cruel de uma
quadro estético desta literatura, ainda assim, é significativa por que sociedade que não tem limites para conseguir seus objetivos, convi-
reproduz uma realidade social antagônica, se levada em considera- vendo com o simulacro, a aparência através de um modelo que estava
ção às condições materiais e simbólicas da construção dos persona- preste a ruir.
gens. Estas pessoas simples e caricatas são, na verdade, condicio- Datada de 1932, tem importância central na vasta produção de
nantes da estrutura social vigente, numa região específica do país, José Lins do Rego, principalmente quando se faz a análise de seus
ou seja, o Nordeste. personagens típicos, caricatos, já que estão condicionados sócios e
historicamente pela estrutura social vigente, através da violência e
Logo, a descrição dos personagens se dá através das memórias
da pobreza a que estão submetidos. São, no geral, personagens
de um menino – Carlos de Melo, ou seja, na intimidade Carlinhos.
comuns e famigerados como: negros, ex-escravos, trabalhadores das
Pelo teor das suas memórias, são reminiscências de um jovem, quan- fazendas, lavadeiras, coronéis, cangaceiros. Enfim, personagens
do tinha apenas 08 anos, na época em teve que retornar ao sítio do comuns, sem condições econômicas, sem formação, sem perspecti-
avô para que pudesse ser criado, haja vista que tinha ficado órfão da vas de vida para o futuro, a não ser reproduzir o sistema social da soci-
mãe. São lembranças condizentes com a época, feitas a partir do ima- edade canavieira do Nordeste, a exceção aqui, são os coronéis vistos
ginário coletivo de uma região, que reproduzia mazelas por todas as como superiores, já que representam a classe social dominante.
partes. Nesse contexto, muitas vezes, a lei era a do mais forte, enten- O romance foi escrito através de uma linguagem simples e sem
dido como aquele que possuía dinheiro e poder. Nesse caso específi- exageros, pois reproduz a realidade de uma região do país, o Nordes-
co, de seu avô coronel da fazenda Santa Rosa, José Paulinho, este te, tal como outras obras regionalistas de relativa importância, a
exercia sobre a fazenda toda a liderança, mas também, o poder. Afi- saber: Vidas Secas (1938), São Bernardo (1934), de Graciliano Ramos,
O quinze (1930) de Raquel de Queiroz, O cacau (1933) e Terras do
nal, O sistema coronelista, dava condições para isso.
sem fim (1943) de Jorge Amado, dentre outras que enfatizam esse
linguajar tão característico e específico dessa tendência literária. É
Mestrando em Letras da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte –
6
óbvio, que há algumas diferenças, no entanto, todas partem dos mes-
PPGL/ UERN/ CAMEAM. Professor do Ensino Médio em Pau dos Ferros – RN. mos temas relacionados à estrutura social da terra através do: coro-
Professor da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. nelismo, do patriarquismo, do assistencialismo político, do trafico
7

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

de influências por parte dos coronéis. Nesse sentido, reproduz minu- De certo, fora um menino especial, que desde cedo se desloca
ciosamente, a ideologia da estrutura social agrária, comum na do meio urbano para o rural, ou seja, de Recife para o engenho no
região específica do país. Para tal, usa e abusa de seu poderio econô- interior da Paraíba, precisamente na Vila Pilar, na fazenda, Santa
Rosa, pois o destino do menino de engenho tinha lhe reservado algo
mico e social para conseguir seus objetivos. O coronel, José Pauli-
de inusitado, diferente, já que começa a ter contato com outro
nho, era típico do interior, chefe da casa grande, ou seja, da fazenda mundo diferente, pois era um mundo selvagem e rude, diferente de
Santa Rosa. Ele é respeitado e prestigiado tanto na vila quanto em seu anterior. Nessa mudança, começa a transformar, também, sua
sua região. O que não deixa de ser uma marca de sua classe social da personalidade, pois de menino meigo, vai tornando-se aos poucos,
época. sagaz, habilidoso, estrategista. Nesse universo, a diferença entre
opressor e oprimido caminha lado a lado. No entanto, desperta no
No entanto, cabe ao protagonista, Carlos de Melo, o papel de
homem o espírito de sobrevivência, da avareza tão comum, tão
destaque, principalmente através de suas recordações de infância, banal nesta região onde ser forte é aquele que consegue sobreviver
relatadas minuciosamente através de suas angústias, tensões, dese- sobre os outros não importando de que forma.
jos e descobertas, pois não é um menino qualquer como os outros, A obra é capital para a estética de 1930 porque começa a incor-
mas um menino de engenho. Ele se materializa através de suas recor- porar nova concepção de homem, de sociedade a partir da estrutura
dações, observações, experiências e sentimentos. Logo, é um perso- social e econômica de sua região. Esta convivia com o atraso econô-
mico em pleno século XX. Na verdade. A obra em estudo serviu para
nagem rico na medida em que possibilita uma heterogeneidade de denunciar a pobreza e o atraso industrial reinante na época. Daí sua
discurso. Se, por um lado tem o status de menino prodígio, domi- importância, relatada por diversos críticos, dentre eles, Otton Car-
nante, por outro lado, ele se sente isolado, fechado, sem pai e sem peaux e Gilberto Freire. O próprio Freyre (Apud Castro, 1998, p.207)
mãe. reforça sobre a obra:
São memórias e lembranças representadas pelo imaginário
É o maior depoimento humano que temos sobre determinada
coletivo de uma classe social – a dominante, as do senhor de enge-
região do Brasil, de interesse sociológico e mesmo econômico
nho, que assemelha aos senhores feudais, com suas devidas diferen- para o estudo, ascensão e declínio do engenho latifundiário do
ças, o coronelismo do sertão. De certa forma, satisfaz a um tipo de Nordeste, absolvido pela usina, no processo da mecanização da
leitor emergente da época, oriundo dessa classe social da década de lavoura açucareira, mostrando, consequentemente, o esplendor
1930, através da construção de personagens sutis e diversificados. No e a decadência do senhor de engenho, bem como os conflitos
entre este tipo patriarquista e o bacharel.
entanto, não são quaisquer memórias, mas aquela do narra-
dor–personagem – Carlinhos, digno representante desta classe soci- Logo, a obra é fundamental para a compreensão da sociedade
al, conforme reforça Bosi (1997, p.450): nordestina da época, através da figura do homem, da economia
local, além das classes sociais existentes na década de 1930. Pois, era
Não são memórias e observações de um menino qualquer, mas uma sociedade que ainda estava atrasada em relação ao país, tanto
de um menino de engenho, feito à margem e semelhança de um econômica quanto culturalmente. Nesse contexto, as personagens
mundo que,está prestes desagregar-se conjura todas as forças destacam-se muito mais pelas suas mazelas do que pelas suas virtu-
de resistência emotiva e fecha-se na autofruição de um tempo des. De certa forma, são expostos ao ridículo devido à precariedade
sem manhã. em que vivem.

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

Essa diferença permitiu a reflexão, o questionamento dos valo- acreditar o protagonista ser obra divina a dominação de um homem
res da época por parte do protagonista que analisa os personagens em relação ao outro.
minuciosamente em seu contexto social. De um lado, estava o Essa é a linguagem da obra Menino de engenho (1932), rica e
senhor de engenho, majestoso, imponente, defensor da moral e diversa, mas que reproduziu uma realidade cruel, desumana conta-
detentor do poder econômico, chefe patriarcal da casa grande, o cen- da na íntegra, sem rodeios. Logo, é uma linguagem de narrador per-
tro do poder. De outro, estava o restante da população, sendo quase sonagem que não consegue dissociar-se de sua realidade social. Atra-
dizimada no seu próprio habitat pela miséria e exploração da elite vés da experiência da personagem principal, pode-se ver a realidade
local através de seu poder e da ideologia circundante. de uma região do país, conflituosa, imperativa, autoritária, preci-
A oposição das classes sociais é capital para compreender a sando de uma ideologia utópica para legitimar seu ideal de domina-
obra através de seus personagens, que determina o modo de pensar, ção e perpetuação. Segundo o próprio escritor, Rego (Apud Castro,
agir e de reproduzir os valores dominantes através da exploração, da 1998, p.206) A história desses livros é bem simples: comecei quando
miséria e da ignorância dos personagens. Este status de uma classe apenas memórias que fossem as de todos os meninos criados nas
social ou raça é essencial para o enredo através da inferência das con- casas grandes dos engenhos nordestinos. Seria apenas um pedaço de
dições sociais de produção além das condições simbólicas que per- vida o que queria contar.
mitem sua manutenção. Pois, era comum no imaginário coletivo É a história de um menino que apesar de ser diferente dos
local, a ideia de um indivíduo ser superior hierarquicamente em outros, tinha necessidades e conflitos, especialmente afetivos, pois
relação a outro. Por isso, o protagonista – Carlos de Melo, o Carli- se tornou órfão de pai e de mãe ainda criança e necessitava de cuida-
nhos, reflete sobre sua condição de indivíduo socialmente privilegi- dos especiais. Daí o apego a tia Maria, uma incansável mulher com
ado em relação aos demais meninos. A passagem seguinte ilustra grande proteção, sendo que o mesmo não podia dizer de tia Sinhazi-
bem a maneira de ver e conceber a sociedade, conforme Rego (2005, nha. No entanto, demonstrava ser inteligente e sagaz. Logo, no iní-
p.76): cio da obra, Rego (2003, p.5) menciona: EU TINHA uns quatro
anos no dia em que minha mãe morreu (grifo do autor). Ou seja,
O costume de todo dia dessa gente na sua degradação me habitu- tinha uma memória aguçada, pois vai reconstruindo mentalmente
ava com a sua desgraça. Nunca, menino, tive pena deles. Achava as lembranças boas e ruins, porém inesquecíveis.
muito natural que vivessem dormindo em chiqueiros, comendo Nos capítulos iniciais, o narrador continua descrevendo sua
um nada, comendo um nada, trabalhando como um burro de reminiscência infantil, pois não consegue esquecer suas brincadei-
carga. A minha compreensão de vida fazia-me ver nisso uma obra ras, desilusões, desejos, enfim, ele faz questão de mencioná-las nos
de Deus. Eles nasceram assim, pois quisera, e porque Deus quise- mínimos detalhes. Assim se dá nas passagens seguintes: AINDA ME
ra que nós éramos e mandássemos neles. Mandávamos tam- LEMBRO e em: TODOS OS RETRATOS que tenho da minha
bém nos bois, nos burros, nos matos. mãe, TRÊS DIAS DEPOIS da tragédia levaram-me para o enge-
nho, EU TINHA SIDO CRIADO num primeiro andar, (grifo do
Conforme o exposto, o discurso dominante serve para legiti- autor), (REGO, 2003, p.6 -14). É comum nos capítulos seguintes a
mar a desigualdade social existente no Nordeste brasileiro, através descrição dos personagens. Essa descrição é feita minuciosamente
de uma tradição cultural, segundo Lucas (1970, p.78). “não resolvida, através das peripécias além das virtudes delas. No entanto, a cons-
servindo para ajudar a reproduzir a exploração de uma pequena trução social dos personagens se dá pela sua degradação que fica
minoria dominante em relação à grande maioria da população”. Daí patente, principalmente através do viés social e econômico. Dessa

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

forma, o valor do ser humano se dá pela sua pele, pela condição social Como se nota, a realidade da maioria dos personagens é caóti-
exercida na sociedade conforme menciona Rego (2003, p.14) entre o ca, triste, chega a ser desumana devido às condições econômicas e
diálogo de tia Maria e o protagonista Carlos de Melo: sociais a que estão submetidos. Muitos sofrem com a exploração
vigente através da fome, das enchentes e, principalmente, dos fenô-
Você está um negro – me disse tia Maria – Chegou tão alvo, e nem menos das secas. Este é, sem dúvida, um grande problema que faz
parece gente branca. Isto faz mal. Os meninos de Emília já estão com que muitos de seus habitantes migrem para outras regiões do
acostumados, você não. De manhã à noite, de pés no chão, salto país em busca de sobrevivência, de esperança já que não há incentivo
como um bicho. Seu avô ontem me falou nisso. Você é um meni- por parte dos governantes.
no bonzinho, não vá atrás destes moleques para toda parte. Logo, o protagonista continua descrevendo minuciosamente
suas observações aguçadas de seu contexto social de menino de enge-
Percebe-se a preocupação da família com o menino prodígio, nho, ou seja, de sua infância livre sem responsabilidade, sem com-
Ele não era qualquer um, pelo contrário, era sim, um menino dife- promisso. Mas, começa a crescer e chegam às cobranças, pois é o
rente dos outros da fazenda Santa Rosa, pois era neto do coronel José momento de iniciar suas primeiras letras, conforme é descrito em:
Paulinho. Afinal, era o todo poderoso e influente da região. No BOTARAM-ME PARA APRENDER as primeiras letras (grifo do
entanto, nem todos tinham esse pensamento com relação a ele. A tia autor), (REGO, 2003, p.30). Nele o protagonista começa a sentir emo-
ções diferentes do que sentia pela sua tia, conforme atesta o autor:
Sinhazinha estava sempre atenta as suas vontades, brincadeiras e
travessuras, sempre em vigília, razão pelo qual não gostava dela.
Para ele, era oposta a tia Maria. Quando diz: esta velha seria um tor- Gostava dela diferente do que sentia pela minha tia. Ela sempre
mento da minha meninice (REGO, 2003, p.15). Ou seja, era o demô- que me ensinava as letras debruçava-se por cima de mim. E os
nio já que todos os dias a odiavam, nem as negras que costumavam a seus braços e o beijos eram os mais quentes que já tinha recebido
(...) E o meu coração sentiu-me cheio de uma afeição estranha
obedecer, gostavam dela.
pela sua mulher. Era tão terna para mim, me punha no colo para
A exploração do cômico, do miserável é característica marcan- me agradar, para me dizer que me queria um bem de mãe. Eu
te nas obras regionalistas, o que não deixa de ser a representação sentia o seu sofrimento como se fosse o meu.
social de uma sociedade, que convive com muitos problemas, prin-
cipalmente a fome, a ignorância, o cangaço, a prostituição infantil,
O menino vai crescendo e começa cada vez mais a sentir diver-
contribuindo assim, para a degradação social do homem sem seu
sas emoções. Os toques, o fago despertava sentimento erótico na
próprio habitat. Nesse sentido, a literatura tem tudo a ver com a rea- medida em que tinha contato com a professora. Era, sem dúvida, um
lidade social, principalmente nesta obra, que retrata a estrutura soci- menino diferente curioso, observador dos fatos que ocorriam a sua
al agrária nordestina através de personagens comuns e marginaliza- volta. Na fazenda, tinha privilégios, afinal, era neto do coronel Zé
dos. Porém, esses personagens ganham em dimensão humana, his- Paulinho (REGO, 2003, p.31), razão pelo qual refletia constantemen-
tórica, mitológica, sociológica muito grande no enredo. Essa era a te sobre sua condição social dominante.
realidade dos personagens entregue a um sistema social desigual, Apesar desse apego e respeito que todos tinham pelo menino
autoritário e imposto através da violência do homem pelo homem. de engenho, era cobrado dele compromisso e responsabilidade nos
Esse coronelismo servia para legitimar a exclusão na região nordes- estudos para que no futuro fosse, naturalmente, o dono da fazenda.
tina. Mesmo assim, o povo humilde resistia o poder dos coronéis que Para tal, o seu avô sempre estava perto orientando, educando-o, ensi-
acontecia de forma violenta e desumana. nando-o conforme atesta o autor (2003, p.33) em: MEU AVÔ me

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

leva sempre em visitas de corregedor às terras do engenho (gri- Enquanto a região Sudeste existia um processo acelerado de
fo do autor). Mesmo assim, não era um menino feliz, pois vivia isola- industrialização, no resto do país havia muita pobreza e atraso eco-
do, preso nesse mundo tão brutal, tão silvícola. Refletia sobre a con- nômico, com desigualdades sociais e crise econômica. No Nordeste,
dição humana na fazenda com em: RESTAVA AINDA A SENZALA a lavoura canavieira não dava lucro como antes, pois convivia com
dos tempos de cativeiro (2003 49). Nessas observações, muitas uma estrutura de engenhos precária além de uma mentalidade arca-
vezes, o isolamento com pessoas simples ajudaria amenizar suas ica dos senhores que insistiam nas suas posições e ideologias ultra-
angústias, tristezas. passadas. No Nordeste a lavoura canavieira não dava muito lucro e a
região começa um processo de retrocesso no seu desenvolvimento.
Mas, nem tudo é ruim para o protagonista, ele conseguiu
ganhar seu primeiro presente, um carneiro para brincar com seus Na literatura surge o regionalismo de 30, que veio para denun-
ciar este sistema social desigual e arcaico, denunciando e mostrando
colegas. Ou seja, em fase da realidade local, muitos não tinham nem
a exploração do homem pelo homem através da figura do coronel,
o que comer, no entanto, o menino recebia presente só para brincar
que em muitos casos, assemelha a senhor feudal. Logo, a terra repro-
com o animal. No final da obra percebe-se que tudo caminha para duzia o atraso tendo em vista o surgimento das máquinas, da tecno-
um final feliz do protagonista. Ele tem sua primeira namorada – logia emergente. Essa literatura além de ser importante para a cultu-
Maria Clara, embora antes tivesse tido sua primeira paixão: Judite ra do país foi um instrumento essencial para implorar melhorias
com quem aprendeu as primeiras letras. No entanto, não foi corres- para as desigualdades sociais existentes através de seus principais
pondido. Nesse momento, descobre o amor com Zefa Cajá. E, final- escritores que tinham na literatura, a arma para a transformação de
mente, o menino sai da fazenda para começar seus estudos. uma realidade.
Portanto, é uma obra crucial dentro da fase regionalista, que A obra retrata a realidade social e econômica de um menino,
enfatiza o homem enquanto indivíduo social ligado a terra através não de um menino qualquer, mas de um menino dominante, um
de suas tradições e valores que legitimam um tipo de sociedade domi- menino de engenho. É uma obra regionalista produzida em 1932, em
nante da época – sociedade canavieira, que apresenta vários proble- que o romancista através de suas memórias autobiográficas diag-
mas inerentes, a saber: dissimulações, erotismo, fraquezas, egocen- nostica a estrutura social quase feudal, alimentada pela exclusão da
trismo, escravidão, miséria. Esse é o mérito da obra, mostrar como se maioria da população. O menino era especial, desde pequeno
demonstrava ser curioso, ás vezes, crítico diante da sociedade da
mantinham no poder os dominantes: os coronéis brancos.
qual fazia parte. Aos poucos, foi se saltando e ampliando suas amiza-
des e conhecendo as pessoas da fazenda e interagindo com elas. No
II. A questão social da obra entanto, tinha os cuidados da família, afinal, era a continuação de
um sistema que alimentava todo um imaginário coletivo. Assim, era
Na década de 1930, o país estava em plena industrialização. No o Nordeste na década de 30, uma pequena minoria que detinha o
entanto, essa industrialização não chegava às regiões pobres do país, poder e as formas de produção dessa riqueza, através do sistema
principalmente no Nordeste, que convivia co o atraso econômico, agro-exportador deficiente, mas que resistia a todo o custo sua per-
até porque a região não tinha influência política no quadro nacional, petuação e manutenção.
já que no Brasil existia a política intitulada café com leite em São O menino tinha todo um ritual para que pudesse representar
Paulo e Minas Gerais. O primeiro detinha o café e o segundo o leite. uma imagem simbólica de nobreza, de dominante. Então, existia
Porém, esta política foi interrompida em 1930, quando Getúlio Var- uma suposta preparação para que fosse o futuro administrador da
gas chegou ao poder. fazenda. Nesse contexto, as diferenças entre quem pode e quem não

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

podem, tornam-se nítidas, através deste modelo social que reprodu- deste viés, percebe-se que alimenta um modelo social existente na
zia desigualdades sociais, através do sistema coronelista. Apesar dos região nordestina, nesse sentido, a literatura tem tudo a ver com a
sérios problemas do sistema, a imagem do coronel era inquestioná- realidade existente no país na década de 1930, na região do Nordeste.
vel, embora que era consubstanciada na máscara, no disfarce. São relatos de quem nasceu e cresceu vendo os personagens
No enredo percebe-se a mudança entre os polos: urbano - típicos, caricatos, em que a única lei é a do mais forte, a lei da sobrevi-
rural, para em seguida, alternar entre o rural e urbano, ou seja, o vência. De um lado, os poucos privilegiados e, de outro pólo antagô-
abandono temporário da fazenda para que pudesse estudar, já que nico, os miseráveis, excluídos, num modelo social quase que feudal.
estes poucos privilegiados podiam crescer cultural e socialmente, No entanto, o menino Carlos, neto de um grande coronel, José Pauli-
para manter a estrutura social vigente, enquanto a maioria cabia a nho, da fazenda Santa Rosa, precisava ser preparado para ser o suces-
força do trabalho, mal-remunerado para sua sobrevivência. A sor deste modelo de sociedade, quase hereditário, de pai para filho.
mudança ocorrida representa no imaginário coletivo a busca do pro- Então, a questão social em análise reside nisto: como são construí-
gresso frente ao atraso vigente. Lá o menino estuda, conhece novas dos estes personagens na obra e o que representa no imaginário cole-
idéias e retorna para ser o dono de fato e, de direito da Fazenda Santa tivo de uma estrutura social em colapso, vivendo mais da aparência
Rosa. Porém, com outra visão e concepção da estrutura fundiária. do que da essência, nesse sentido, o autor contribui muito para a
Para ele, o sistema precisava de reformas, principalmente com a literatura regionalista de 30.
incorporação da máquina, o que será referenciado nos romances
seguintes do autor. Referências
Portanto, é marcante a questão social neste romance, princi-
palmente na construção dos personagens caricatos, simples, o que BOSI, Alfredo. Literatura e resistência. São Paulo: Companhia das
de certa forma, representa uma realidade cruel além de denunciar os Letras, 2002.
problemas sérios que assolam o homem nordestino. Na figura deste
personagem protagonista, o autor referencia um modelo social rei- CÂNDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudo da teoria e his-
nante, tanto material quanto cultural, através da figura de um meni- tória literária. 8ª Ed. São Paulo: T. A. Queiroz, 2000.
no, que era as observações de sua infância no interior do estado da CASTRO, M.C de. Língua e Literatura. 2ª Ed. São Paulo: Saraiva,
Paraíba. São imagens marcantes, chocantes, de uma sociedade que 1994.
estava em apuros, fruto da exploração e manutenção de uma classe CHIAPPIINI, Lígia & BRESCIANI. M. S (Orgs). Literatura e Cultura
social que mantinha no topo, através de sua arrogância, ignorância no Brasil: identidades e fronteiras. São Paulo: Cortez, 2002.
mostrada nas palavras tanto bem, na figura de um menino, que era, HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 2ª ed. Rio de Janei-
por assim dizer, as histórias do homem, José Lins do Rego, natural de ro: José Olympio, 1968.
uma região do país paupérrima diante do avanço do Centro- Sul do LUCAS, Fábio. O caráter social da Literatura Brasileira. Rio de Janei-
país. ro: Paz e Terra, 1970.
REGO. José Lins do. Menino de engenho. Rio de Janeiro: José
III Considerações finais Olympio, 2003 (Literatura em minha casa, v.3)

A obra pode ser considerada clássica dentro da estética moder-


nista de 1930, porém, para alguns críticos é convencional, estrutura-
lista, burguesa em sua construção. No entanto, o que interessa é
como os seus personagens foram construídos no enredo. A partir

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

A LEITURA LITERÁRIA COMO EXPERIÊNCIA DE VIDA: VIDAS de pluralidade discursiva capazes de ultrapassar os limites da estru-
SECAS E AS MÁSCARAS DA DENÚNCIA NA SALA DE AULA tura interna da obra. É preciso entender aqui, plural, como dissemi-
nadora de sentidos, que busca muito além do que o significado único
José Carlos REDSON
8
da obra, mas procura interpretar as relações existentes entre a obra e
Maria Edileuza da COSTA9 o leitor, entre a obra e a realidade, tendo em vista as múltiplas vozes
que se cruzam no texto.
Fechado, um livro é literal e geometricamente um volume, uma De fato, o texto literário posibilita a irrefreável disseminação
coisa entre outras. Quando um livro é aberto e se encontra com
de sentidos diante de seus leitores e sua leitura pode ser comprendi-
seu leitor, então ocorre o fato estético. Deve-se acrescentar que
da como acontecimento que provoca reações, estímulos, experiênci-
um mesmo livro muda em relação a um mesmo leitor, já que muda-
mos tanto. as, de modo que, não só a leitura resulta em interações diferentes em
Jorge Luis Borges cada leitor, mas cada leitor pode interagir de modo diferente sobre a
obra literária, tudo isso pemitido pela escrita literária. Dessa forma,

A leitura vem há muito sendo motivo de discussão e reflexão


no meio acadêmico/científico como forma de buscar solu-
ções para as divergências que se fazem acerca do ensino de
leitura em sala de aula, especialmente quando se trata da manifesta-
A escrita literária se diferencia da escrítica científica, daquela da
propaganda política, informativa, etc, por que foge ao que lhe é
contemporâneo, ficando livre da divisão dos papéis da vida real,
não se submete às regras do discurso funcional e produtivo, no
ção do texto literário. Assim, o leitor vem, ao longo do tempo, sendo
questionado, não só pela estética da recepção, mas por outras teorias qual quem fala se identifica como “eu” do discurso e converte-o
ou outras linhas críticas da atualidade, para as quais este elemento em “palavra própria”, pela qual ele é responsável e pela qual res-
ponde em primeira pessoa [...] O sentido de um texto literário
entra em cena, além do autor e do texto.
não se esgota no que lheé contemporâneo e, portanto, não pode
Como é de se esperar, o sentido verdadeiro da leitura configu- ser compreendido introduzindo-o no quadro da cultura de uma
ra-se como um espaço potencial indispensável no processo de com- época, considerada como sistema e código, como langue, em
preensão da criação artística, seja manifestada no texto verbal ou no relação ao qual o texto literário tenha se codificar como se fosse
texto escrito. É importante lembrar que a noção que se tem de texto parole. (PONZIO; 2008: 49-50).
hoje foi ampliada; o texto deixou de ser fixo e dado para se tornar um
espaço de dimensões múltiplas, em que através da leitura se realiza a
Como já enfoca autor, para se entender a relação o texto literá-
concretização de sentidos também múltiplos. Bakhtin, embora não
tenha discutido especificamente sobre o efeito da obra de arte sobre rio e suas relações, é preciso considerar que essa relação deve ser vista
o leitor, desenvolveu um conceito chamado de polifonia, nos aler- como dialógica, ou seja, como uma relaçao recíproca entre obra e
tando paraa dimensão dialógica do texto em que existe uma espécie autor, entre obra e leitor, entre obra e realidade. Tudo isso por que a
escrita literária permite ao leitor ultrapassar as barreiras do texto,
Professor do Curso de Letras da Universidade do Estado do Rio Grande do
8
indo além de uma aceitação limitada de toda e qualquer leitura. Os
Norte – UERN/ CAMEAM. Mestre em Letras. leitores que precisamos construir hoje, não são mais aqueles que
Professora da Graduação e do Mestrado em Letras da Universidade enxergam a obra como um produto pronto e acabado, mas aqueles
9

do Estado do Rio Grande do Norte – UERN/ PPGL/ CAMEAM, em que pregam a proliferação ilimitada de leituras que uma obra pode
Pau dos Ferros – RN. suscitar. Em outras palavras,

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

A leitura das obras literárias nos obriga a um exercício de fideli- É oportuno frisar que uma boa leitura pode nos exigir tempo,
dade e de respeito na liberdade de interpretação. Há uma perigo- reflexão, análise detida da obra, o que pode se tornar muitas vezes
sa eresia crítica, típica de nossos dias, para qual de um obra literá- numa atividade cansativa, mas pode oferer-nos também o prazer
ria pode-se fazer o que se queira, nelas lendo aquilo que nossos que pode nascer do esforço. É esse o estímulo que precisamos passar
mais incontroláveis impulsos nos sugerirem. Não é verdade. As para nossos alunos, especialmente quando se trata do texto literário.
obras literárias nos convidam à liberdade de interpretação, pois É preciso perder de vista a visão mecânica que se tem de literatura em
propõem um discurso com muitos planos de leitura e nos colo- que, nem sempre a leitura literária como experiência estética acon-
cam diante das ambiguidades e da linguagem da vida. Mas para tece.
poder seguir neste jogo, no qual cada geração lê as obras literárias Todas essas questões nos fazem relfetir sobre que leitor a esco-
de modo diverso, é preciso ser movido por um profundo respeito
la esá formando. Entendemos que, qualquer pessoa comprometida
para com aquela que, eu, alhures, chamei de intenção do texto.
com a educação sabe que compete à escola fomar leitores críticos. No
(ECO; 2003: 12)
entanto, a prática escolar, no que concerne à leitura literária tem se
resumido basicamente em privilegiar atividades de memorização,
Fica demonstrado que o texto literário não permite qualquer de estudo do texto, ainda que a leitura, propriamente dita não tenha
leitura, mas permite que o leitor se veja livre para viajar na imagina- acontecido. Neste caso são privilegiados aspectos historiográficos,
ção, uma vez que nossa fruição sobre a obra de arte é sempre única e características de estilo, deixando em segundo plano a leitura do
não se repete. É preciso lembrar que seremos outro noutro momen- texto literário.
to e assim, nossa leitura também será outra e também diferente por Fica patente observar que o texto literário permite compreen-
tudo na vida flui. der os significados da escirta e da leitura literária para aqueles que a
Entretanto, quando aterrizamos no terreno da sala de aula, utilizam e delas se apropriam nos contextos sociais, tendo em vista
nos deparamos com uma realidade que, na grande maioria dos que a leitura faz parte de nossa vida. Por isso, o texto literário deve ser
casos, é diferente. A escola, que deveria propiciar essa oportunidade, encarado como experiência de vida. Lembramos ainda que:
torna-se um espaço de aulas meramente mecãnicas, voltadas espe-
cificamente para a estética do texto. Isso nos faz crer que o professor da adesão a esse “mundo de papel”, quando retornamos ao real,
nossa experiência, ampliada e renovada pela experiência da obra,
de literatura precisa estar teoricamente embasado nas suas aulas, de
à luz do que nos revelou, possibilita redescobri-lo, sentindo-o e
modo que possa, nas leituras das obras literárias, refletir sobre elas, pensando-o de maneira diferente e nova. A ilusão, a mentira, o
cultivando o senso de diálogo com a obra e incentivando seus alunos fingimento da ficção aclara o real a desligar-se dele, transfiguran-
no mesmo caminho. De outro modo, Hélder Pinheiro ressalta que: do-o; e aclara-o já pelo insight que em nós provocou. (NUNES;
1996: 03)
Penso, portanto, que a crítica literária é fundamental para o pro-
fessor de literatura, não para substituir a leitura do professor e Isso indica que o texto literário tem o poder de encantar ou
dos alunos, mas para estimular em novas descobertas de sentido desencantar, de acordo com a relidade de cada leitor. Nessa perspec-
e para ajudar o jovem leitor a encontrar o caminho da leitura sig- tiva, o texto literário, considerando a sua especificidade deve ser tra-
nificativa, que, lembremos, às vezes é exigente, diriamos mesmo, balhado de forma que o aluno possa encontrar dentro dele as mais
cansativa. (PINHEIRO; 2006: 119) variadas marcas de manifestação da língua ou dos fatos históricos

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

que o circundam, tornando-se um cidadão crítico e consciente de mo de 30 e representa uma preocupação com as secas que assolam a
seus valores e atitudes em sociedade. região nordeste de nosso país. Pinta ainda a difícil situação do nor-
Em outras palavras, dentro dessa conjuntura, é interessante destino obrigado a conviver com essa situação. Assim, na obra de
também reforçar que cabe à escola oportunizar condições para que a Graciliano Ramos existe uma espécie de realismo social ou crítico,
leitura possa ser manifestada em sala de aula, no sentido de que os realismo aqui, no sentido dos problemas de relacionamento huma-
alunos possam despertar para a representatividade do texto literário no e das estruturas sociais e econômicas da sociedade e não como
dentro do espaço que ocupa. E, assim, encontrar na leitura de obras movimento estético literário.
literárias, a exemplo; a obra Vidas Secas, representações das marcas Vidas Secas nos conta a estória do sofrimento de uma família
sócio-culturais de um tempo, como muito bem podemos observar de retirantes fugindo da seca em busca de um ambiente propício
na anáise que segue. para levarem a vida. A obra está constituída de treze capítulos, apre-
sentados de forma fragmentária, muito embora se ligue de modo
Vidas Secas e As Máscaras da Denúncia contínuo. A narrativa se passa no ambiente hostil do sertão nordes-
tino, iniciada pela peregrinação de quatro pessoas e uma cachorri-
A obra Vidas Secas foi publicada em 1938 e está inserido na nha. Esse conjunto é composto por Fabiano, Sinhá Vitória, o Menino
segunda fase do Modernismo brasileiro. É caracterizado pela tradi- mais velho, o Menino mais novo, a cachorra Baleia e um papagaio,
ção literária como um romance de estilo modernista e canonica- antes sacrificado para matar a fome da família. Caminhando por
mente classificado como romance regionalista. Escrito em uma caminhos incertos Fabiano e sua família encontram uma fazenda,
época de grandes e relevantes transformações na literatura brasilei- aparentemente abandonada, onde resolvem fixar moradia. Contu-
ra, Vidas Secas retrata fielmente a realidade brasileira da época com do, o dono aparece reclamando a posse do lugar. A solução foi ficar
base na injustiça social, na miséria, fome, desigualdade, seca, pro- por ali mesmo servindo ao patrão, que trata Fabiano como um traste.
blemas que ainda hoje estão presentes no meio social brasileiro. Dias depois, Fabiano decide ir à feira para comprar mantimentos,
Inserida dentro da fase regionalista da literatura brasileira, a obra mas é preso, humilhado publicamente por um soldado amarelo
Vidas Secas representa muito mais do que a simples história de uma depois de se envolver na confusão de um jogo. Os personagens são
família de retirantes em busca de melhores condições de vida. marcados pela dureza e pela pouca comunicação. O grande desejo
Nela está subentendida a representação dos habitantes do de Sinhá Vitória é possuir uma cama de verdade. O Menino mais
Nordeste brasileiro que, na época das grandes estiagens são obriga- novo é marcado pela decepção de não conseguir montar um bode,
dos a deixarem seu lugar de origem em busca de sobrevivência para enquanto o Menino mais velho tem em Baleia sua única simpatizan-
terras desconhecidas; te entre o grupo. Com a chegada do inverno a família se reúne ao
É nessa época, dentro da estética modernista que eclode o redor do fogo, mas pouco conversam e Fabiano imagina que as coisas
romance nordestino, mais conhecido como romance regionalista de iriam melhorar. A família vai uma festa de natal na cidade, mas se
30. Contudo, o regionalismo não deve ser considerado como um sente distante da civilização, talvez pelos trajes pouco comuns à suas
movimento à parte da literatura brasileira, um movimento contrá- figuras. Depois de algum tempo Baleia adoece e Fabiano decide
rio, mas como uma forma de manifestação literária que se principiou sacrificá-la para desespero dos meninos. Desconfiado de estar
no Romantismo, adentrou-se pelo Modernismo e se destacou den- sendo enganado pelo patrão, Fabiano vai tomar satisfação, mas sub-
tro da nossa literatura. Vidas Secas é a obra que marca o regionalis- misso pede desculpas e sai reclamando da vida. Com o fim do inver-

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

no, a seca volta a ameaçar. A obra termina com a fuga da família, aban- Esse retrato da desigualdade pode ser destacado na persona-
donando tudo como encontraram, seguindo para o sul. Desta vez os gem Fabiano, marcado pela revolta e pela consciência de si, a figura
meninos caminham na frente. Os pais sonham com uma vida que está a mercê dos que tem poder, dos que são letrados, que vive
melhor para os filhos e um mundo de novas perspectivas ia sendo junto à sua família marginalizado pelo signo do silêncio pelo próprio
criado. sistema em que é inserido. Acerca da obra de Graciliano, Holanda
Nesse sentido, buscamos analisar alguns trechos ficcionais de (1992, p. 30) nos acrescenta que:
Vidas Secas, no sentido de observar a denúncia de um sistema social
desigual, uma grande dicotomia entre o mundo dos que tem muito e O que Graciliano aqui acusa é o sistema social que embaça o espe-
o mundo dos que tem pouco, ou seja, o estabelecimento das relações lho, impedindo assim, ao indivíduo, a visão de si, reflexiva. A
despossessão de Fabiano é a mais completa: além da desposses-
de poder. Vidas Secas pode ser considerada uma estória de sofrimen-
são que a reificação reitera (é um “cabra”', um “bicho”), e da des-
to e angústia em que nos apresenta a realidade de uma determinada possessão da palavra, há mais: o desejo do mesmo Fabiano é um
região do Brasil, marcada pela fome, pela miséria, pela falta de opor- desejo “alheio” porque mediado pela figura do Seu Tomás. Não é
tunidades, escrita em 3ª pessoa por um escritor regionalista da lite- genuíno, não tem origem nele, mas é feito por “procuração” [...]
ratura brasileira em meio ao contexto sócio-político-econômico do Fabiano empresta um rosto anônimo à máscara social.
Brasil na década de 30.
Percebe-se com isso que Vidas Secas é uma obra que trata dos Sabemos que os personagens de Vidas Secas são representan-
conflitos internos do homem, no sentido de que a sua resistência é a tes da vida precária do sertão nordestino construídos abaixo da esca-
prova viva da subsistência de cada personagem. Estes representam a la humana e comparados a animais, como o narrador faz com o per-
dura vida sertaneja, o abandono das autoridades, o povo que vive sonagem Fabiano. Não podemos esquecer que estamos diante de
num ambiente pouco propício a melhores condições de vida. A obra uma família sertaneja, flagelados, atravessando a caatinga que dor-
nunca perde a sua atualidade em virtude das situações nela retrata- mem no leito de um rio seco, atormentados pela fome e pelo cansa-
das que ainda acontecem no Brasil. Aqui, o homem é colocado no ço. Suas possibilidades de realização na vida são castradas pela força
limite de suas forças em busca de sua própria sobrevivência. Assim, da natureza adversa, por aqueles que detêm o poder (o dono da
Vidas Secas apresenta uma estrutura que pode ser desmontável. São fazendo, o soldado amarelo, o fiscal da prefeitura). Assim, Fabiano
capítulos, aparentemente separados, por que foram publicados ini- constitui-se no ser inferior, vítima de um sistema social perverso, de
cialmente em forma de contos (VENTUROTTI, 2008). Mas os capí- forma que é totalmente consciente de sua condição subumana,
tulos adquirem sentido no seu contexto pleno e envolvem do primei- como se fosse um animal:
ro ao último uma espécie de harmonia interior e dramaticidade. Tra-
Tirou do aió um pedaço de fumo, picou-o, fez um cigarro com
ta-se da estória de uma família que não tem onde morar, que não tem
palha de milho, acendeu-a ao binga, pôs-se a fumar regalado
o que comer que não tem sobrenome, que não tem nada, além de
_Fabiano você é um homem, exclamou em voz alta [...] Olhou em
resistência. Isso fica claro logo no início da narrativa: “Na planície torno, com receio de que, fora os meninos, alguém tivesse perce-
avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infeli- bido a frase imprudente. Corrigiu-a, murmurando: - Você é um
zes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos”. bicho, Fabiano. Isto para ele era motivo de orgulho. Sim senhor,
(RAMOS; 2009: 09) um bicho, capaz de vencer dificuldades [...] (p. 18-19).

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

Dessa maneira, Fabiano representa o homem diminuído dian- Sinhá Vitória. Secos são os sentimentos de Fabiano. Seca é a terra.
te das grandes forças, marginalizado, comparado ao animal que, Seco é o céu. Seca é a história sobre os viventes. (BARRETO; 2005:
embora trabalhador, tenha forças para trabalhar, pensava pouco e 583)
obedecia por necessidade. Faltava-lhe o principal. A terra, capaz de
tirá-lo de sua condição animalesca: Nesse sentido, é possível observar que em Vidas Secas, Gracili-
ano Ramos traz à luz a situação da miséria nordestina e traz para a
Vivia longe dos homens, só se dava bem com os animais. Os seus realidade nacional uma parte do país que ainda era desconhecida, ou
pés duros quebravam espinhos e não sentiam a quentura da terra. pelo menos, ainda não havia sido mostrada através da literatura e de
Montado, confundia-se com o cavalo, grudava-se a ele. E falava forma tão real, dura e sincera. Todas essas características faz com que
uma linguagem cantada, monossilábica e gutural, que o compa- o leitor tome posições acerca do material que tem em mãos. É possí-
nheiro entendia. A pé, não se agüentava bem. Pendia para um vel enxergar nas entrelinhas do texto literário o compromisso do
lado, para o outro lado, cambaio, torto e feio. Às vezes, utilizava escritor em denunciar um sistema social baseado na desigualdade
na relação com as pessoas a mesma língua com que se dirigia aos dos direitos, fazendo o leitor refletir sobre a situação da seca, um dos
brutos - exclamações, onomatopéias [...] (p. 20). problemas que mais assolam a região nordeste do país. Essa premis-
sa nos faz ainda ir mais longe, e observar a falta de compromisso ou
Como é possível notar, Vidas Secas traz o retrato comovente de um plano político que contrbua para amenizar as mazelas causa-
do homem do sertão nordestino, aflagelado pela dureza da terra, das pela seca. Tudo isso só é possível enxergar porque estamos diante
pela brutalidade do clima, pela devassidão do verde e das águas e do texto literário, fonte aberta a inúmeras interpretações.
pela ameaça da morte constante. O livro começa no fim de uma seca Ainda é importante ressaltar que a obra é construída sobre
e termina no começo de outra. Entre um ponto e outro, tudo conspi- uma aparente estrutura desconexa, como se pudéssemos ler os capí-
ra para a destruição do homem que não tinha nem água para beber: tulos de forma separada. Porém, essa forma de criação literária não
impede que possamos enxergar um todo, como o tema da seca, por
Fabiano tomou a cuia, desceu a ladeira, encaminhou-se ao rio
exemplo. Graciliano Ramos faz muito mais do que retratar o ambi-
seco, achou no bebedouro dos animais um pouco de lama. Cavou
ente naturalista, ele vai mais além desses traços e nos faz refletir atra-
a areia com as unhas, esperou que a água marejasse e, debruçan-
do-se no chão, bebeu muito. Saciado, caiu de papo para cima, vés da história que conta sobre as consequências da seca na vida dos
olhando as estrelas, que vinham nascendo. (p. 14). personagens. Graciliano Ramos soube com esmero cuidado e prote-
gido pelas personagens que criou fazer muito mais além do que a
Nesse conjunto de personagens existe um ponto em comum simples denúncia da luta de uma família no sertão nordestino em
entre eles; tudo neles é pequeno, desde o nome até, passando pelos busca de sobrevivência. O autor alagoano representou por meio
sonhos, até chegar aos vocábulos que pronunciam. Dessa forma. dessa obra, na tumultuada década de 30, as marcas da seca e do meio
social, na vida de Fabiano e de sua família, representantes de todo o
Os sonhos são pequenos. Seus nomes são pequenos. Seus filhos povo do sofrido sertão nordestino brasileiro. Nesses personagens
são pequenos. Seus vocábulos são pequenos, seus sons guturais, podemos encontrar a amargura, a tristeza, a ignorãncia de uma
secos de certas palavras, assim como de palavras certas. Secas são gente desprotegida, marginalizada, a mercê de todos os impropérios
suas vidas. Secas estão suas esperanças. Seca e dura é a cama de que a natureza pode oferecer e do abandono social de que são víti-

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

mas. Essas marcas podemos encontrar na personagem Sinhá Vitória na vida de Fabiano e de sua família, representantes de todo o povo do
através de suas atitudes e ações no decorrer da narrativa, como a que sofrido sertão nordestino brasileiro. Enfim, Vidas Secas é um roman-
destacamos aqui: ce seco, que conta uma história seca, com personagens secos, numa
região seca e com uma linguagem também seca. Nesta obra, está
Sinhá Vitória tinha amanhecido nos seus azeites. Fora de propó-
representada a força e a persistência homem do sertão nordestino e de
sito, dissera ao marido umas inconveniências a respeito da cama
de varas [...] Sinhá Vitória andara para cima e para baixo, procu- sua luta para sobreviver em meio às condições de vida precária que a
rando em que desabafar. Como achasse tudo em ordem, queixa- região lhe oferece. Representa ainda o abandono das autoridades, o
ra-se da vida. E agora vingara-se em Baleia, dando-lhe um ponta- descaso com o homem pobre, mísero, sem chão, sem o que comer,
pé. (p. 40). sem moradia, escrita pelas mãos argutas de um escritor que viveu
todos esses problemas numa época de grandes perturbações nas esfe-
Em outras palavras, Sinhá Vitória pode ser compreendida
como uma personagem amargurada, indignada com a condição de ras social-econõmica-política de nosso país na década de 30. Vidas
vida que leva. Rude, bruta, ela revolta-se com a cachorra Baleia e os Secas é a história de luta, de resignação, de revolta, de sofrimento, não
filhos e seu maior sonho é possuir uma cama de lastro de couro, con- só da realidade social da época em que foi publicada, mas também dos
siderado um bem de luxo na época. Apesar de tudo, é capaz de ver e dias atuais.
compreender as coisas ao seu redor.
Para Bosi (2006, 403-404): Referências
BARRETO, C. C. Subjetividade da linguagem em Vidas Secas: discurso popular
Vidas Secas abre ao leitor o universo mental esgarçado e pobre de e identidade. __In: Revista Discursos e Identidade Cultural, 2005.
um homem, uma mulher, seus filhos e uma cachorra tangidos BORGES, J. L. A poesia. In: ____. O rumor da língua. São Paulo: Brasiliense,
pela seca e pela opressão dos que podem mandar: o “dono”, o “sol- 1988.
dado amarelo”... O narrador que, na aparência gramatical do BOSI, A. História Concisa da Literatura Brasileira. 43 ed. São Paulo: Cultrix,
romance de 3ª pessoa, sumiu por trás das criaturas, na verdade
2006.
apenas deslocou “fatum” do eu para a natureza e para o latifún-
ECO, U. O texto, o prazer e o consumo. In: ______. Sobre os espelhos e outros
dio, segunda natureza do agreste. E o que havia de unitário nas
ensaios. Trad. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.
obras anteriores, apoiados nos eixos de um protagonistas, dis-
persa-se nesta em farrapos de idéias, no titubear das frases, nos HOLANDA, Lourival. Sob o signo do silêncio: Vidas Secas e o Estrangeiro. São
“casulos de vida isolada que são os diversos capítulos”, enfim, na Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1992.
desagregação a que o meio arrasta os destinos inúteis de Fabiano, NUNES, B. Ética e Leitura. Leitura: teoria e prática. N. 27, jun. 1996. Campinas:
Sinhá Vitória, Baleia... ALP.
PINHEIRO, J. H. Teoria da literatura, crítica literária e ensino. In: ______.
Em síntese, Graciliano Ramos soube com esmero cuidado e PINHEIRO, J. H. & NÓBREGA, M. (Orgs.) Literatura: da crítica à sala de aula.
protegido pelas personagens que criou fazer muito mais além do que Campina Grande: Bagagem, 2006.
a simples denúncia da luta de uma família no sertão nordestino em PONZIO, A. A revolução bakhtiniana: o pensamento de Bakhtin e a ideologia
busca de sobrevivência. O autor alagoano representou por meio dessa contemporânea. São Paulo: Contexto, 2008.
obra, na tumultuada década de 30, as marcas da seca e do meio social, RAMOS, G. Vidas Secas. 109 ed. Rio de Janeiro: Record, 2009.

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

CULTURA POPULAR: ENSINANDO A APRENDER É certamente por isso que se propõe observar o quanto a neces-
LITERATURA sidade dos estudos analíticos e da própria aprendizagem escolar vai
Antonio Cleonildo da Silva COSTA
10
assimilando tendências para adequar-se aos anseios emergentes de
um público cada vez mais contemporâneo, porém, muito mais
Introdução sedento de cultura. Nesse caso, entende-se cultura pelos escritos de

N
Ayala & Ayala (2006), quando observa a importância da tradição dos
o propósito de discutir o valor literário extraído da cultura que nos antecederam. Torna-se sugestiva a ideia de que, por olhar-
popular e observar os desafios do ensino nessa área do mos menos para o passado, acabamos tendo prejuízo no presente.
conhecimento, é que se constrói um olhar para o que se con- Nessa óptica, conceituar cultura popular se torna fundamen-
sidera de fato literatura ou não-literatura. As universidades bem tal a princípio, para que possamos ir juntando as peças no jogo edu-
cacional em que ela se insere. Para Xidieh (1976, s/p) o termo “cultu-
como todo o sistema de ensino absorvem a perspectiva de classe soci-
ra” se refere “a um conjunto de traços e padrões materiais e espiritua-
al e econômica e transfere-a para a literatura, dividindo a mesma em
is, formulados socialmente, transmissíveis de geração para geração
literatura clássica e em literatura popular. A última, estigmatizada como meio de socialização e de controle social”. O mesmo autor
na cultura que se insere. entende o termo “popular” da seguinte maneira: “varia desde os qua-
Diante do exposto, pretende-se aqui discutir a tentativa de dros mais difusos e gerais – povo – até configurações mais delimita-
ensinar a aprender literatura através da cultura popular, num fazer das no âmbito da sociedade global”. A cultura popular representa um
que se configura dentro da vida. Através dos conceitos chaves que conjunto de aspectos inerentes aos seres humanos que vão passando
norteiam o estudo da cultura popular na educação literária e da dis- entre as gerações ao ritmo das transformações sociais.
cussão prática, sugere-se uma reflexão acerca da forma cristalizada Apresentado esse contexto, observa-se claramente a necessi-
que se costuma ver a literatura nos parâmetros culturais de um povo, dade de ordenação dos fatores da cultura popular dentro dos parâ-
sem levar em conta a vida desse povo e todos os valores constituídos metros escolares. Claro que se ela é inerente aos seres humanos e
em seu grupo. está em constante transformação social, pressupõe a sintonia com as
práticas educativas. É o que afirma Libâneo (1994) quando se refere à
1. Observando conceitos essas práticas como “parte integrante da dinâmica das relações soci-
ais, das formas da organização social”. (p.21). A cultura popular
Os conceitos que se inserem no grande universo da educação sendo prática educativa nos faz compreender o ensino na visão de
Libâneo (1994) como “ações, meios e condições para as realizações
são nos dias atuais desafiadores quando apresentam, por vezes,
da instrução”. (p. 23)
amplitudes relativamente complexas. Não se quer aqui desconstitu-
A instrução, nesse ensejo, nos leva a aprendizagem, a qual mui-
ir conceitos, muito menos diminuir o valor que os tais assumem, mas
tas vezes pode representar apenas um repasse daquilo que foi apren-
deixar claro o quanto as definições se misturam e ao mesmo tempo
dido. Parece, por um momento, que a discussão caminha para uma
conseguem ganhar roupagens novas em suas constituições. bola de neve, o que não se descarta, tanto pela proporção, como pela
circularidade e velocidade, ou seja, aprende-se o que se ensina e ensi-
Mestre em Letras pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte
10 na-se transmitindo o conhecimento já absorvido anteriormente. Na
– UERN. Professor do Ensino Fundamental e Médio - RN. verdade, a cultura popular quase nem é cogitada no ensino, sobretu-

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

do na formação do professor. Esse consequentemente não repassará É a possibilidade que as manifestações populares têm de, uma
para seus alunos aquilo que não aprendeu. vez integradas no interior do sistema e do processo de ensino
formal, revolucioná-lo. A começar por permitir pensar algo
O motivo da quase não transmissão do conhecimento da cul-
amplo: quem sabe, uma nova e mais humanizada estratégia de
tura popular está no que Silva (2005) chama de múltiplas hierarqui- educação. Dar uma nova roupagem a cultura popular. (p. 15)
as e desigualdades, “a ideia de 'cultura' – antes de tudo associada à
sofisticação, à erudição e à educação formal – uma vez aproximada à
categoria 'popular' produz uma estranha dissonância.” A distinção Conseguir extrair a substancialidade do ser humano, através
de valores de classes econômicas e sociais se transfere para o valor de suas ações e narrativas é vê-lo como suporte para a própria litera-
literário o qual se submete as análises. tura e daí facilitar a aprendizagem, já que aprender aquilo que se vive
no cotidiano, através das experiências, é bem mais fácil do que
É aqui, com ênfase, que ainda para cumprir esse primeiro
aprender conteúdos formais impostos e às vezes inacessíveis física e
momento necessário de definições, apresenta-se um breve conceito
intelectualmente.
de literatura. No que prescreve Moisés (1967) Literatura “pertence ao
campo das ciências, e corresponde ao enunciado das características O grande impasse se configura no conhecido sistema capita-
universais e essenciais dum objeto material ou imaterial”. (p. 16). O lista que num processo classicista translada, entre outros, dois valo-
mesmo autor ainda se refere à literatura como a criação de uma res para a cultura popular. O primeiro referente às transformações
supra-realidade, uma ficção e abstração, sem deixar de lado o sociais que lhe é inerente e o segundo a estigmatização. Sobre esse
mundo físico. Mesmo na antiguidade, Aristóteles e Platão viam a último, Silva (2005) relata: “a lógica dominante que hierarquiza, a
literatura como imitação da realidade, uma espécie de mímesis. partir do valor financeiro e de mercado, as diversas formas de expres-
são simbólica no país em que vivemos, reproduz também estas desi-
Unir as pontas conceituais de cada parte acima exposta con-
gualdades em outras tantas escalas”. (p. 07) Em decorrência das con-
templa um ponto de partida para a reflexão que se pretende a partir
dições em que se efetiva a cultura popular, ou seja, nas raízes do povo
de então. A cultura popular se faz dentro da vida, segundo Ayala
e esse povo em sua maioria passa necessidades e é marginalizado,
(2003) apresenta a humanidade em seu espaço físico e em suas abs-
não se consegue obter iguais inferências de valores literários para as
trações. Ensinar a aprender literatura, nesse ensejo, pode ajudar a
produções dessas distintas classes sociais. A alimentação dos valores
própria educação a rever os seus conceitos.
discriminativos acerca da cultura popular é tão provável que

2. Cultura popular na educação literária


na universidade muitos insistem em achar que não é arte, que
não é cultura, que não é literatura aquilo que iletrados e semi-
A cultura popular numa perspectiva literária pretende mos- letrados fazem. Só aceitam quando encontram alguma vincula-
trar que, além dos clássicos, é didático e proveitoso aprender litera- ção com algum momento passado da cultura européia, por exem-
tura, através das lendas, excelências, danças, músicas, entre outros plo. (AYALA; 2003: 98).
vários aspectos. As narrativas, por exemplo, ultrapassam as letras e
representam a realidade de uma comunidade, de tal forma, que con- Por se fazer dentro de uma classe detentora de um maior núme-
seguem exteriorizar as condições sociais da mesma. ro de pessoas, porém desprovida de status, a literatura parece não
Adentrar no seio da sociedade é propor mudanças no sistema ganhar consistência, com a justificativa de que os grandes clássicos,
formal e humanizar as práticas da educação, como sugere Silva sobretudo os que importam caracteres estrangeiros é que levam o
(2005) homem à literatura. A pequena elite, detentora de uma maior condi-

83 84
A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

ção aquisitiva dissemina o estigma pelas gerações, sem ao menos 3. Observando a prática
conhecer a relevância de tentar observar sua própria origem dentro
de determinado grupo da cultura popular. A visão de literatura está para os clássicos, assim como o ensino
Diante da situação elitista que vive ainda a nossa educação, em do português está para a gramática. Equívocos acontecem, e ai certa-
específico os próprios universitários, futuros formadores de gente e mente estão dois. Primeiramente, por que ensinar português envol-
sendo a cultura popular, segundo Ayala (2003), um mundo sempre ve muitos conhecimentos, inclusive as reflexões gestuais, textuais e
de gente, chegamos à realidade do ensino fundamental e médio. orais, as quais a literatura propõe. Em segundo lugar, se a literatura
Como já se relatou anteriormente o repasse do que aprendemos cum- se restringisse apenas aos clássicos literários, como forma cristaliza-
pre o ciclo da educação, o que torna, de certo modo, para os alunos da, as atribuições às ações humanas teriam desaparecido. Pelo con-
pobres um abafamento do seu contexto, para colher literatura de trário, elas emergem pela sede cultural das pessoas.
outras distantes realidades. Atualmente os indivíduos sentem a necessidade de encontra-
O que menos se deseja nesse trabalho é diminuir o valor da rem-se a si mesmos, de saberem de onde vieram e daí, pelo que Xidi-
influência européia, através dos clássicos literários, por exemplo. eh (1976) conclui, é exatamente a repetição ou reelaboração da cul-
Mas, dizer que aquilo que está mais próximo de cada ser é o que vai tura popular, que foi, segundo o mesmo, a primitiva e que ao passar
ter mais consistência para ele. do tempo massificou-se, havendo por parte das classes “superiores”
uma seleção científica. Hoje a cultura popular é vista como cultura
As histórias de vida de muitos desses homens e mulheres
de massa e transmite o rústico, o rural, contudo, não deixou de cons-
comuns, dependendo de sua habilidade, ao contar suas expe-
riências, vão tecendo lembranças de festas, alegrias, tristezas, tituir a origem do povo.
dificuldades para sobreviver, compondo para o ouvinte uma nar- Trazer as teorias para a prática é muito mais difícil do que se
rativa tão atraente como a literatura de um texto escrito. (p. 96) possa imaginar. Por um lado a amplitude do universo da cultura
popular; por outro, as dificuldades nas regras que se configuram no
Observar a literatura nessa perspectiva dar muito mais traba- ensino-aprendizagem; e, por outro lado ainda, o conceito de litera-
lho, tendo em vista a sondagem, as observações, a escuta, os traba- tura que deveria ser comum às classes sociais, porém se confunde
lhos de análises; mas poderá ser ainda um método capaz de fazer o com os valores econômicos.
aluno refletir sobre sua própria vida. Como acrescenta Tfouni Na prática, não se pode, muito menos se deve, pensar no ensi-
(2006), a análise das narrativas não está apenas “reproduzindo enre- no de literatura dentro da cultura popular como um fator inexisten-
dos e eventos preexistentes, mas, antes, está estruturando ativa- te. O aluno tem a necessidade, de ser consumidor da cultura, mas é
mente as estórias quando as conta”. (p. 49) preciso saber em qual cultura ele está inserido. Diante da diversida-
A literatura, portanto, pode ser extraída da cultura popular de de alunos o professor, fica restrito, por vezes, a fazer sondagens
com a mesma eficácia com a qual os clássicos se inserem no meio culturais e assim chegar aos anseios.
educacional. Mesmo com a carência dos estudos culturais, voltados Misturar teorias será a tentativa de solução cientificamente
ao contexto popular em universidades e nos ensinos básicos, pode- falando para dar conta da complexidade que é ensinar a aprender
se constatar o mesmo valor literário, com um diferencial, que se con- literatura no universo da cultura popular. Se observarmos o pensa-
cebe positivo, o fato de está mais próximo da vida, ou seja, intrínseca mento de Bosi (1994) quando apresenta a memória como um fator
ela. fundante do passado, presente e futuro e adicionarmos ao de Mar-

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

tins (2005) que fala em representações e símbolos de uma explosão Referências


tecnológica, entendemos o desafio que é ensinar e aprender na con-
temporaneidade. AYALA, M.I.N. Aprendendo a aprender cultura popular. In: PINHEIRO, H.
O estudo dos clássicos literários é imprescindível e com ele (org.). Pesquisa em literatura. Campina Grande: Bagagem, 2003.
tem-se a necessidade de preparar o aluno para interpretar. Como AYALA, M. ; AYALA, M. I. N. Cultura popular no Brasil: Perspectivas de
fazer isso se ele ao menos recolhe das memórias de seus antepassa- análise. São Paulo: Ática, 2006.
dos ou mesmo das suas, a literatura relevante para entender a si pró- BOSI, E. Memória e sociedade: lembranças dos velhos. 3 ed. São Paulo:
prio ou conseguir chegar ao entendimento de algo? Chegar a uma Companhia das Letras, 1994.
metáfora, quando se estuda texto literário, se torna desagradável LIBÂNEO, J. C. Didática. São Paulo Cortez, 1994. (Coleção Magistério. 2º
para o aluno que não se identifica com o que está sendo ensinado, grau. Série formação do professor)
quanto mais entender literatura dessa forma! O professor deve rever MARTINS, C. H. dos S. Cultura popular urbana e educação: O que a escola
conceitos e além dos conteúdos básicos, inserir ou permitir a cultura tem a ver com isso? In: SILVA, R. M. da C. (org.) Cultura Popular e Educação
popular, de forma que os alunos sintam-se a vontade para discutir a / Salto para o futuro. Série “Linguagens artísticas da Cultura Popular”,
sua formação, seus antepassados e confrontar tudo isso ao jeito tec- 2005.
nológico que vivem hoje, sem deixar de lado, contudo, a cultura MOISÉS, M. A criação literária. São Paulo: melhoramentos, 1967, pp. 15 –
popular. 26.
SILVA, R. M. da C. Cultura popular e educação In: SILVA, R. M. da C. (org.)
Conclusão Cultura Popular e Educação / Salto para o futuro. Série “Linguagens artísti-
cas da Cultura Popular”, 2005.
Pelo que se pode notar a discussão que contempla a literatura _________. R. M. da C. Cultura popular, Linguagens artísticas e educação
no seu caráter cultura popular se estenderá ainda por muitos outros In: SILVA, R. M. da C. (org.) Cultura Popular e Educação / Salto para o futu-
estudos. Esse pensamento se sustenta por que a cultura popular é ro. Série “Linguagens artísticas da Cultura Popular”, 2005.
muito ampla, ganhando também certa complexidade quando rela- XIDIEH, O. E. Cultura popular In: SESC/SP. Catálogo de apresentação da
cionada com o que Xidieh (1997) chama de cultura de massa. Feira Nacional de Cultura Popular. São Paulo, 1976.
No ensino, portanto, o que serviria de porta de entrada para a TFOUNI, L. V. Letramento e alfabetização. 8 ed. São Paulo: Cortez, 2006.
leitura literária, acaba sendo descriminado; o que poderia servir de
princípio para se entender a própria vida, acaba sendo sufocado. Ler,
por exemplo, os grandes clássicos poderia ser muito mais fácil se
antes de entrar no mundo das letras e dos grandes cânones literários
tivéssemos a oportunidade de passar pela cultura particular do
nosso povo. A educação, sobretudo o gosto pela literatura, poderia
ser muito mais consistente se começássemos a entender elementos
da narrativa, pelo que é comum e de conhecimento nosso. Esse é o
grande desafio do ensino superior, médio e fundamental em apren-
der literatura dentro da cultura popular.

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

HERÓI, LITERATURA E MITO O nascimento do herói


José Rosamilton de LIMA11
Ivanaldo Oliveira dos SANTOS12 Desde muito tempo que na história da humanidade tem se
revelado muitos indivíduos com características de heróis. Podemos
Considerações iniciais dizer que o herói sempre teve seu espaço garantido desde as lendas
transmitidas oralmente de geração para geração, que influenciaram

O
homem tem buscado seu aprimoramento pessoal, intelec- várias obras literárias, seja na ficção do cinema inspirada na maioria
tual e tem desenvolvido invenções tecnológicas para suprir das vezes na própria literatura e também na vida real. O fato é que os
suas necessidades do cotidiano. Em consequência disso, heróis nascem a partir de uma necessidade espiritual, uma forma de
hoje vivemos em uma hegemonia das informações que se expande proteção contra o medo do desconhecido.
através dos meios de comunicação de forma muito rápida, possibili- Considerando esses aspectos, a literatura é um amplo espaço
que suporta muitos heróis. Em suas obras se reproduzem o sistema
tando-nos o acesso a fontes diversas. No entanto, a rapidez com que
social e o herói é a dominante que ilumina estrategicamente a iden-
as notícias circulam muitas vezes não nos permite que façamos uma
tidade de tal sistema. O herói na história política e socioeconômica e
reflexão sobre a veracidade dos fatos. também na literatura são personagens que podem vir da burguesia,
A expansão do saber permite novas formas de pensamento que da elite, do poder, como também das classes sociais mais baixas,
se distanciam de outras já consideradas ultrapassadas ou simples- insurgindo contra um governo autoritário, contra as injustiças soci-
mente chamadas de crenças costumeiras. O saber produzido cienti- ais de um sistema econômico. Em outras palavras, ele pode surgir
ficamente diverge da produção mitológica e tenta ignorar um como resultado da imaginação de muitas gerações e que posterior-
conhecimento que conduziu o homem por muito tempo no decorrer mente são contemplados na literatura ou como também podem ser
de várias civilizações. pessoas reais que desempenham ações de grande generosidade que
Na luta pela sobrevivência, houve a necessidade da organiza- adquirem visibilidade por representar coragem, astúcia, sabedoria,
ção em sociedade e, a partir daí, começam a se destacar aquelas pes- ousadia. Nesse caso, o herói defende uma causa que beneficia sua
soas mais bravas, corajosas, protetoras. Esses líderes foram capazes comunidade ou uma nação, lutando por igualdade e justiça social.
de conduzir povoados, por demonstrarem características superiores Os primeiros tipos de heróis foram os clássicos. Estes não são
comparadas aos outros membros da comunidade que logo foram caracterizados como intelectuais, mas homens de bravura e cora-
atribuídas ao sobrenatural. Portanto, os heróis surgem como resul- gem com muitas estratégias que são bem sucedidas. Além disso,
tado de uma imaginação fértil e estimulados por atos de bravura. demonstram disposição para adquirir sabedoria, por isso, estão
num nível mais elevado do que outras pessoas que possuem um esti-
lo de vida que não representa destaque com características bem sim-
Mestre em Letras pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte –
11
ples de sobrevivência e submissão social. Eles representavam o
UERN/ CAMEAM. poder e a burguesia. O herói é quem leva a coragem ao máximo, a
Mestre em Ciências Sociais e Doutor em Estudos da Linguagem pela
12
ponto de sacrificar a própria vida por uma causa maior. As obras clás-
Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Professor Adjunto II sicas são construídas por determinadas classes sociais e permitem-
da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN/ PPGL/ nos compreender o passado, repensando-o, criando novas sensibili-
CAMEAM. dades e novas luzes para que se possam progredir no presente.

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

Sabemos que o mito surgiu desde os povos primitivos que rea- de grega, há mais de quatro séculos antes de serem registradas por
lizavam seus ritos e cultos na presença de vários indivíduos que se escrito.
destacavam dentre os demais por sua valentia e coragem, e que os Com o tempo, o herói se torna menos mitológico e mais huma-
gregos o nomearam de heróis. Os mitos gregos não desapareceram no. Kothe (1987, p. 14) afirma que “à medida que o herói épico decai
da memória histórica, portanto o nascimento do herói se deu com o em sua “epicidade”, ele tende a crescer em sua “humanidade” e nas
mito. Segundo Feijó (1995, p.14), “a mitologia grega pode ser resumi- simpatias do leitor/expectador”. Logo, o leitor sente-se mais emoti-
da na vida dos deuses e heróis, sendo que os deuses tinham caracte- vo por ver no herói características e semelhanças que estão relacio-
rísticas humanas, como vícios e virtudes, e os heróis tendo caracte- nadas com maior proximidade da realidade da vida desse apreciador
rísticas divinas, com poderes especiais, embora fossem mortais”. da literatura.
O herói é aquele que conquista a admiração pelos seus feitos e A história da literatura marca a passagem do herói divino para
sua coragem, e ganha o afeto do seu povo pelo seu caráter. O verdade-
o herói humano, daí surge o personagem. De acordo com Feijó (1995,
iro herói deve sempre lutar para estabelecer e garantir a ordem para
p. 63) “na mitologia, o herói é divino. Na poesia épica, ele é unidade
proteger a sua nação. No entanto, é interessante mencionarmos tam-
bém que a história consagrou os seus heróis na perspectiva de como de sentimento e ação. Na história é separado da realidade. Na litera-
ela é e por quem é escrita. De fato, quem dita normas e determina tura, o destino do herói é a sua iniciação: a descoberta de si mesmo”.
aquilo que é verdadeiro é quem detém o poder, isto é, segundo os Desse modo, o herói trágico surge da classe social alta, é situa-
registros históricos, a criação do herói se dá por meio do discurso. do no topo do poder. No entanto, ao longo do tempo, ele descobre
É verdade que o herói tem um amplo espaço na literatura. que seu agir foi errado e que, embora aparente ser o mais forte, na
Kothe (1987) classifica os heróis em: a) épico; b) trágico; c) trivial e d) verdade, na correlação de diversas forças, apresenta-se muito frágil.
pícaro. Nesse sentido, Kothe (1987, p.15) afirma que “o herói épico é o Assim, somente depois que perde o poder é que busca a sua grandeza
sonho do homem fazer a sua própria história; o herói trágico é a ver- para recuperá-lo. O que se destaca no herói trágico é a sua intensa
dade do destino humano; o herói trivial é a legitimação do poder luta contra o seu destino, que ao final é superado por sua grande for-
vigente; o pícaro é a filosofia da sobrevivência feita gente”. Segundo ça, mas que nesse percurso ele se torna mais humanizado.
Kothe (1987) o poeta dá forma artística às crenças, aos mitos, aos Na concepção de Kothe (1987), o herói trágico é visto como o
anseios e desejos coletivos. A primeira forma que o herói atingiu na personagem principal de uma tragédia. O uso moderno do termo
literatura foi a épica e seu maior poeta foi o grego Homero. Ele era geralmente envolve a noção de que o herói cometeu um erro em suas
cego, morava na região da Jônia, no século VIII a. C., e transmitia
ações, o que leva a sua queda. Geralmente a sua falha mais frequente,
oralmente as sagas heroicas do povo grego que reuniam em duas
especialmente nos dramas gregos, é o orgulho. Esse herói é a verdade
obras primas a Ilíada e a Odisseia. Na Ilíada estão narrados aconteci-
mentos que envolvem o último ano da guerra de Tróia, cujo herói do destino humano, sendo o produto do acasalamento entre um ser
principal é Aquiles. A Odisseia narra o retorno do herói Ulisses para humano e uma divindade. Portanto, ele representa os seres superio-
o lar, após a guerra de Tróia. Os dois heróis são mitológicos e fazem res e, ao mesmo tempo, a fraqueza, o vício do homem, e, consequen-
parte da crença popular que evidentemente os tornou heróis épicos temente, a desgraça do herói.
pela criação que o poeta Homero lhes deu. As respectivas obras são Em seguida, Kothe (1987) aponta o herói trivial, como aquele
datadas do século VIII – VII a. C., e portanto as mais antigas referên- que é bastante comum e que significa a legitimação do poder vigente
cias ordenadas sobre mitos que certamente já eram parte da socieda- e, dessa forma, procura elevar sempre a classe social a qual pertence.

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

Esse mesmo autor (1987) também destaca na literatura o píca- séculos, homens ou instituições poderosas distorceram ou inventa-
ro, que é o herói que representa uma espécie de malandro com muita ram fatos a seu favor para colocar o passado e o presente a serviço de
esperteza perante o capitalismo. Ele procura sempre levar vanta- ideologias ou de seus interesses próprios. Diante disso, alguns per-
gem, realizando trapaças com a finalidade de lucrar mais com sonagens reais foram transformados em lendas, seres sobrenaturais
menos trabalho. Então, podemos dizer que a criação de um herói com evidências tão bem inventadas que parecem ter existido. De
pode ocorrer a partir de um apelo popular. O fator oculto sobre fato, se inclui aqui a categoria dos heróis.
alguns mistérios históricos a cerca de mitos proporciona muita curi- O que denomina um herói desde a antiguidade clássica à con-
osidade e aumenta o interesse das pessoas. Ao herói são atribuídos temporaneidade é que ele assume a função de um protetor e salvador
grandes feitos e, por vezes, ele aparece como o fundador de uma cul- da humanidade. O conceito grego de herói inclui uma série de
tura. Dessa maneira, há na literatura ou na história da humanidade aspectos como o nascimento difícil, profecias envolvendo o futuro,
muitas personalidades que transitam entre o real e o imaginário, exposição ao perigo, descoberta da origem nobre, façanhas memo-
mas que acabam se solidificando na cultura de um povo como um ráveis, vingança de humilhações sofridas, casamento com princesa
mito. ou heroína, reconhecimento dos méritos e morte trágica.
A mitologia é o poder que a linguagem exerce sobre o pensa- Diversas situações históricas foram capazes de inspirar heroís-
mento humano. Cassirer (2009, p. 21) afirma que “tanto o saber, mos, e muitos personagens das artes e do imaginário popular são
como o mito, a linguagem e a arte, foram reduzidos a uma espécie de baseados nestes heróis. Muitas vezes constituem personagens cuja
ficção, que se recomenda por sua utilidade prática, mas à qual não vida é baseada em uma pessoa que realmente existiu. Os diferentes
podemos aplicar a rigorosa medida da verdade se quisermos evitar movimentos culturais literários e artísticos inspiraram diversas ati-
que se dilua no nada”. Nessa perspectiva, a realidade é algo criado de tudes heroicas ou serviram de pano de fundo para manifestos popu-
acordo com a vivência em uma determinada sociedade. Ou seja, de lares cujos líderes foram considerados heróis pelo povo, embora
um povo que, com base na formação de seu pensamento, crê em algo tenham sido duramente represados pelas minorias representantes
que para ele tem utilidade e direciona o seu viver, constituindo assim do poder.
da sua cultura. Kothe (1987, p. 53) afirma que “segundo Baudelaire, o poeta é o
De acordo com Cassirer (2009), toda a produção do imaginário grande herói da modernidade, pois vive numa espécie de realidade
se torna possível por meio da linguagem. São as palavras que dão em que não há propriamente lugar para o poeta: o que ele faz não
forma ao nosso pensamento. Logo, o mito está associado com a lin- vale nada para a sociedade”. A afirmação vem do fato de que atual-
guagem e ambos são resultados de um mesmo ato fundamental da mente vivemos em uma sociedade capitalista. E em meio a essa soci-
elaboração espiritual da concentração e elevação da simples percep- edade, o homem parece ter medo de si próprio, da sua força, das suas
ção sensorial. O imaginário evoca a ilusão do real no simbólico. qualidades, frente à supremacia da nova era tecnológica, por isso ele
Todos os mitos da antiguidade eram alegóricos e simbólicos, acaba criando um mundo no seu interior que ele pode expressar por
contendo sempre alguma verdade moral, religiosa, filosófica ou meio da arte, o seu espírito revolucionário. Na concepção de Kothe
ainda um fato histórico por trás, porém, com o tempo passam a ser (1987) o poeta não tem utilidade para a sociedade.
compreendidos literalmente. Os mitos são fruto do desejo da huma- Desde a antiguidade até a contemporaneidade um dos aspec-
nidade de explicar os fenômenos naturais que ela não é capaz de com- tos mais representativos é o caráter moral do herói. Contudo, diver-
preender. Portanto, muitos deles surgem da necessidade de dar sen- sidade de opiniões e contradições caracterizam quase todas as tenta-
tido aos nomes de lugares e pessoas. É verdade que, ao longo dos tivas de delinear a natureza moral do herói. Brombert (2001, p. 18-19,

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

itálico no original) mostra em resumo, algumas diversificadas con- vante a figura de um ídolo para encorajar as pessoas a superarem os
cepções de alguns importantes autores a cerca do aspecto moral do diversos obstáculos que surgem na sociedade complexa da atualida-
herói: de.
Na verdade, o termo herói designa originalmente o protago-
Friedrich Schiller acreditava que o herói encarna um ideal de nista de uma obra narrativa ou dramática. Para os gregos, o herói
perfeição moral e enobrecimento. (“Veredlung”). Thomas Carl- situa-se na posição intermediária entre os deuses e os homens, e,
yle via os heróis como modelos espirituais guiando a humanida-
portanto, tem dimensão semidivina. O herói é marcado por uma
de, e portanto merecedores do “culto do herói”. Joseph Campbell,
em nossos dias, descreveu o herói de mil faces como capaz de projeção ambígua em que, por um lado representa a condição huma-
“autoconquistada submissão” e pronto a dar a vida por alguma na na sua complexidade psicológica, social e ética, e, por outro lado,
coisa maior do que ele mesmo. [...] Para Johan Huizinga, o herói transcende a mesma condição, na medida em que representam face-
era apenas um exemplo superior de homo ludens. [...] Sigmundo tas e virtudes que o homem comum não consegue, mas gostaria de
Freud, de maneira menos lúdica, embora também destacando a atingir tais como bravura, coragem, superação, nobreza e força de
competição, ofereceu uma visão mais sombria. Em Moisés e o vontade. Desse modo, suas motivações serão sempre moralmente
Monoteísmo definiu o herói como alguém que enfrenta o pai e justas ou eticamente aprováveis, mesmo que às vezes ilícitas e vio-
“no fim suplanta-o vitorioso”, e ainda menos tranquilizadora-
lentas.
mente (a noção de parricídio não é nada edificante) como um
homem que se rebela contra o pai e “mata-o de um modo ou de
outro”. [...] Joseph Conrad [...] sugere que a “treva” é o domínio Literatura, mito e saber
privilegiado da alma heroica. A finalidade entre o herói e as zonas
obscuras têm sido expostas muitas vezes. Paul Valéry afirmou O homem aprendeu a dominar a natureza por meio das suas
que tudo que é “nobre” ou “heroico” está forçosamente vinculado técnicas de evolução para o seu conforto e benefício próprio. Porém,
à obscuridade e ao mistério do incomensurável, ecoando a obser- atualmente, ele se sente pressionado pela inversão de papéis, uma
vação de Victor Hugo a respeito do obscurecimento legendário vez que foge ao seu controle a exploração inadequada e isso já é moti-
(“obscurcissement légendaire”) cerca a figura do herói.
vo de preocupação porque os cientistas defendem que as ações
devastadoras do homem estão provocando sérias mudanças climá-
Como podemos ver há uma enorme diversidade nos conceitos
de herói, uma vez que há autores que definem como algo extraordi- ticas que poderão repercutir numa série de problemas para a huma-
nário, que deve ser realmente enaltecido devido à sua perfeição nidade.
moral, por ser capaz de iluminar o caminho da humanidade. No Segundo Adorno e Horkheimer (2006, p. 18):
entanto, outros estudiosos são mais cautelosos e apontam opiniões
menos exaltadas e reconhecem no herói o desejo do imaginário das O que os homens querem aprender da natureza é como empregá-
pessoas que buscam no fantasioso refúgio para superar seus obstá- la para dominar completamente a ela e aos homens. Nada mais
culos do mundo real. Além disso, é enfatizada uma visão sombria do importa. Sem a menor consideração consigo mesmo, o esclareci-
herói que está vinculada à obscuridade. Desde a antiguidade o ser mento eliminou com seu cautério o último resto de sua própria
humano escolhe os seus ídolos, tomando-os como exemplos para autoconsciência. Só o pensamento que se faz violência a si
direcioná-los na sua melhor forma de viver. É interessante mencio- mesmo é suficientemente duro para destruir os mitos.
narmos que mesmo na contemporaneidade continua sendo rele-

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

É nessa produção do saber concebido por meio de métodos gem, mas também expor, fixar e explicar. É evidente que o cálculo
científicos que o homem tem como finalidade destruir os mitos e científico dos acontecimentos e a utilização da lógica matemática
estabelece para que seja valorizado somente o conhecimento que se propõem que se desfaçam as crenças costumeiras repassadas por
tenha comprovação na ciência. Com a grande dificuldade para meio da mitologia.
sobreviver no sistema econômico vigente no mundo atual tende a De acordo com Adorno e Horkheimer (2006, p. 21), “O mito
afastar o ser humano de princípios básicos relacionados à espiritua- converte-se em esclarecimento e a natureza em mera objetividade.
lidade, ética e moralidade, que na antiguidade eram considerados de O preço que os homens pagam pelo aumento de seu poder é a aliena-
suma importância. Nesse cenário socioeconômico mundial prevale- ção daquilo sobre o que exercem o poder”. Assim, o homem torna-se
ce o capitalismo, em que o que vale não é a satisfação de um estilo de dependente do próprio saber que produziu, à medida que sente
vida tranquilo com o básico para se sobreviver, com espírito de parti- necessidade de fazer uso dele para se manter no poder e possuir a
lha, generosidade, uma harmonia com Deus. Na verdade, o fator mera ilusão de satisfação pessoal, algo que na percepção dos mitos se
mais relevante para o homem atual é o acúmulo da riqueza material, busca na divindade.
pois, cada vez mais, somos conduzidos para o consumismo e busca-
Do mesmo modo que os mitos tentaram promover o esclareci-
mos o procedimento mais eficaz de conquista do capital.
mento, assim também o esclarecimento se situa mais ainda dentro
Na perspectiva do esclarecimento, os mitos são resultado da da mitologia, pois ele recebe todo conteúdo dos mitos, em seguida
fértil criação imaginária do homem, que de certa forma se encontra tenta extingui-lo, porém, ao julgá-lo, ele acaba entrando na órbita
amedrontado pelo natural, por aquilo que ele ainda desconhece.
dos mitos. Adorno e Horkheimer (2006, p. 25) advogam que “a
Pois, todo esse conjunto de personagens fantasiosos como demôni-
duplicação da natureza como aparência e essência, ação e força, que
os, anjos, espíritos, fantasmas, etc. são imagens especulares do
torna possível tanto o mito quanto a ciência, provém do medo do
homem que é a projeção do subjetivo na natureza. No entanto,
homem, cuja expressão se converte na explicação”.
segundo Charaudeau (2007, p. 43):
Na verdade, o homem, para se refugiar do medo, que ocorre
principalmente em situações extremas em que se depara com as difi-
O saber não tem natureza, visto que é o resultado de uma cons-
trução humana através do exercício da linguagem. A atividade de
culdades nos diversos aspectos na sua trajetória de vida, possui uma
construção consiste em tornar o mundo inteligível, categorizan- forte tendência em clamar por uma força desconhecida. Esse senti-
do-o segundo um certo número de parâmetros cuja combinação mento situado em seu interior pode ser denominado de força espiri-
é bastante complexa. tual, e forma como um resultado do sobrenatural ou do imaginário,
os seus personagens divinos para que eles possam estimular a exteri-
Com base nisso, Charaudeau (2007) afirma que o saber é uma orizar essa vontade de reação para depois repercutir em ações que
construção abstrata que é determinada pelo homem, obedecendo a ocasionem a superação dos diversificados problemas que surgem.
alguns padrões que ele próprio estabelece e considera que é o mais Tal fenômeno tem ocorrido ao longo das gerações, daí a grande
correto. Nesse caso, na contemporaneidade, o esclarecimento exige influência e presença constante do mito na cultura de um povo e a
a destruição dos deuses e reduz-se a grandezas abstratas e aquilo que sua resistência na história da humanidade. Adorno e Horkheimer
não se reduz aos números passa a ser ilusão, logo é remetido para a (2006, p. 26) afirmam que “os deuses não podem livrar os homens do
literatura. No entanto, podemos propor uma comparação de que a medo, pois são as vozes petrificadas do medo que eles trazem como
finalidade do esclarecimento pode se assemelhar também ao mito, nome. Do medo o homem presume estar livre quando não há mais
uma vez que ele tinha como objetivo relatar, denominar, dizer a ori- nada de desconhecido”. Esse estilo de vida o escraviza para o traba-

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

lho, obrigando a continuar na sua busca insaciável pelo conheci- mesmo em plena crise de nervos, preserva uma escrita sadia. É inte-
mento na tentativa de livrar-se do medo daquilo que lhe aterroriza ressante mencionarmos que o francês Charles-Pierre Baudelaire foi
que é o desconhecido. um poeta e teórico da arte. É considerado um dos precursores do
No entanto, o esclarecimento tenta repassar justamente uma Simbolismo e reconhecido internacionalmente como o fundador da
ideia contrária, propondo o saber construído com metodologia cien- tradição moderna em poesia.
tífica na tentativa de livrar o homem deste mundo fantasioso. O Ele configura a sua imagem como um mendigo que não neces-
saber produzido cientificamente é considerado o conhecimento sita de recursos financeiros para conduzir sua vida. Benjamin (1989,
seguro, preciso e certo, porque possuem fundamentos de certeza, p. 73) mostra o conceito de modernidade na concepção do referido
verdade, razão e evidência observacional e experimental. Porém, poeta afirmando que “o herói é o verdadeiro objeto da modernidade.
esse saber acaba caindo em um universo da abstração, da técnica da Isso significa que, para viver a modernidade, é preciso uma constitu-
matemática para desafiar os deuses por essa trilha do descobrimento ição heroica”. De fato, o operário assalariado que trabalha para
daquilo que é desconhecido. Dessa maneira, ele próprio se configura sobreviver é escravizado pelo sistema capitalismo. Esse homem
como o dono do saber, e, portanto, como o próprio deus. Assim, o representa o herói porque ele luta intensamente para ganhar seu
esclarecimento tenta exterminar com os mitos, esse conjunto de sustento.
crenças que vem conduzindo a humanidade desde muito tempo. Benjamin (1989) afirma que Baudelaire também enfatiza a
No que se refere à literatura mundial, Benjamin (1989) argu- discriminação que as lésbicas sofrem no meio social, e advoga que a
menta que o poeta Baudelaire conformou a sua imagem de artista a humanidade nunca se acostumou com esses modos compassados e
imagem de herói. Diante do auge do capitalismo no qual o homem repugnantes. Benjamin (1989, p. 88) delimita que “a lésbica é a hero-
vale pelos bens materiais que possui, o poeta demonstra sua frustra- ína da modernidade. Nela um ideal erótico de Baudelaire – a mulher
ção e angústia ao mesmo tempo em que ironiza e repugna esse siste- que evoca dureza e virilidade – se combina a um ideal histórico – o da
ma financeiro. grandeza do mundo antigo”. Nesse caso, o homossexualismo repre-
O capitalismo é um sistema econômico em que os meios de senta uma atitude heroica para romper os obstáculos estabelecidos
produção e distribuição são de propriedade privada e com fins lucra- pela sociedade para que as pessoas que se enquadram nessa catego-
tivos. Desse modo, as decisões sobre oferta, demanda, preço, distri- ria adquiram um maior espaço no meio social.
buição e investimentos não são feitas pelo governo, pois os lucros são Além de ser um precursor de todos os grandes poetas simbolis-
distribuídos para os proprietários que investem nas indústrias e os tas, Baudelaire é considerado pela maioria dos críticos como o mais
salários são pagos aos trabalhadores pelas empresas. provável fundador da poesia na modernidade. Isso ocorre porque
Jameson (2006) utiliza o termo capitalismo tardio, que tem através da percepção do real, chegava sempre a um correlato objetivo
como elementos distintivos a expansão das grandes corporações para o sentimento que desejasse expressar. Dessa forma, sua poesia
multinacionais, a globalização dos mercados e do trabalho, o consu- na modernidade tendeu para a expressão de imagens cotidianas, em
mo de massa e a intensificação dos fluxos internacionais do capital. que era evidente a concepção do autor, tendo ele sido em sua época
Podemos dizer que seria mais propriamente uma crise de reprodu- quem melhor demonstrou compreensão imediata e deduziu à
ção do capital do que um estágio de desenvolvimento, já que o cresci- mudança radical provocada pela metrópole sobre a sensibilidade.
mento do consumo e da produção está se tornando insustentável No cenário mundial, já podemos falar em sociedade contem-
devido à exaustão dos recursos naturais. porânea que possui características no meio social que conduz o
Benjamin (1989) acrescenta que com estilo único, demons- homem para a alienação, a anomia, a solidão, a fragmentação social e
trando por palavras uma luta física contra o capitalismo, Baudelaire, o isolamento. Segundo Jameson (2006, p. 29) está ocorrendo a “inau-

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

guração de uma sociedade totalmente nova, cujo nome mais famoso como o aumento da violência e criminalidade, a falta de moradia,
é “sociedade pós-industrial”, mas que também é conhecida como dentre outros.
sociedade de consumo, sociedade das mídias, sociedade da infor- Diante da injustiça e desigualdade social, o ser humano sofre, e
mação, sociedade eletrônica ou high-tech e similares”. a partir daí continua a existir o desejo e a necessidade de heróis para
Como podemos observar, com base em Jameson (2006), na protegerem a população e combaterem o caos social. Nesse cenário
sociedade contemporânea, o sujeito é concebido de forma desfrag- de contraste, a mídia passa a ter muita influência na formação do
mentada, que não possui um estilo individual e está sempre em pro- sujeito. Daí, ela se insere neste meio e, de forma lúdica, lança este-
cesso de formação da sua identidade. Destaca-se o fim do ego bur- reótipos de heróis que podem surgir do cenário político como
guês nessa nova fase da sociedade. Nesse prisma, a sociedade con- alguém capaz de combater as injustiças sociais, bem como de acabar
temporânea é constituída pela cultura da informação, comunicação e/ou reduzir esses problemas provenientes, na maioria das vezes, do
e das mídias, logo são estas as palavras da ordem do discurso. As mídi- sistema econômico. Portanto, a mídia contribui significativamente
as manipulam tanto quanto manipulam a si mesmas, e, portanto, para configurar o herói da contemporaneidade.
elas possuem uma significativa contribuição na formação do saber e
expansão do conhecimento no universo. Referências

Considerações finais ADORNO, Theodor W. e HORKHEIMER Max. Dialética do esclarecimen-


to: fragmentos filosóficos. Tradução Guido Antonio de Almeida. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006.
Com base no exposto, podemos dizer que na contemporanei-
dade o homem tem apresentado muito progresso, principalmente BENJAMIN, Walter. Charles baudeleire um lírico no auge do capitalismo.
Tradução José Martins Barbosa, Hemerson Alves Baptista. São Paulo: Bra-
no que se refere à área da tecnologia e, evidentemente, nos meios de siliense, 1989.
comunicação e divulgação da informação. Como resultado disso, na BROMBERT, Victor H. Em louvor de anti-heróis. Tradução José Laurenio
produção do saber por meio de pesquisas, utilizando-se de métodos de Melo. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.
considerados científicos, o homem busca cada vez mais exterminar CASSIRER, Ernst. Linguagem e mito. Tradução J. Guinsburg, Miriam
os mitos. Junto com a formação dessa cultura do conhecimento Schnaiderman. São Paulo: Perspectiva, 2009.
implantou-se o sistema capitalismo, em que o ser humano se confi- CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das mídias. Tradução Angela S. M. Cor-
gura como o centro do universo, e os bens materiais são as principais rêa. São Paulo: Contexto, 2007.
causas da satisfação pessoal, abandonando assim a crença em Deus FEIJÓ, Martin Cezar. O que é herói. Editora Brasiliense. 1995.
em primeiro plano para sua vida. JAMESON, Fredric. Pós-Modernismo: a lógica cultural do capitalismo tar-
Esse sistema financeiro predominante no mundo atual favore- dio. 2 ed. São Paulo: Ática, 2006.
ce para a concentração da riqueza para os grandes empresários. KOTHE, Flávio R. O herói. 2 ed. São Paulo: Ática. 1987.
Enquanto isso, a grande maioria da população são trabalhadores
que se esforçam bastante para ganhar seu sustento. Além disso, com
a substituição da máquina em grande escala pela mão de obra dos
trabalhadores, a situação se agravou, proporcionando maior produ-
ção em menos tempo, e, consequentemente, dando mais lucro aos
donos das empresas. Com a sobra de mão de obra, há muito desem-
prego, ocasionando uma diversidade de outros problemas sociais

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

DISCURSO PEDAGÓGICO: TECENDO INTERAÇÃO E Um segundo fator que fez com que se pensasse nessa temática
CONHECIMENTOS é a mecanização com que se trabalha a metodologiadidática da lín-
Luzinete Cesário de Araújo FREITAS13 gua portuguesa no ensino superior, muitas das vezes, embasada ape-
Maria Lúcia Pessoa SAMPAIO14 nas no domínio técnico do código, numa morosidade complexa que
coloca a escrita como instrumento reprodutor de conhecimentos,
Considerações iniciais desconsiderando a compreensão dos mecanismos e recursos da
estrutura textual em cada situação discursiva e também os contextos

O
processo de ensino-aprendizagem torna-se possível quan- interno e externo da escrita.
do um sujeito passa a interagir com outros sujeitos criando Uma terceira causa é porque, parece haver um distanciamento
muito grande entre as teorias estudadas quando da formação acadê-
novos espaços de significações, de relações dialógicas e de
mica e as suas aplicabilidades quando o universitário passa a ser pro-
configurações discursivas no mesmo contexto ou em diversos con-
fissional em sala de aula.
textos
Em conformidade com os questionamentos até então expos-
Acredita-se, portanto, ser o discurso pedagógico uma porta de
tos, circunscreve-se a seguinte questão: o discurso pedagógico do
entrada para a constituição de um processo interativo inteligível, professor de Língua Portuguesa possibilita o desenvolvimento de
capaz de dar conta das estratégias discursivas considerando o caráter um processo ensino-aprendizagem de escrita, pautado na tríade:
dialético, ideológico e dialógico da linguagem, apontando para a interação, construção de sentidos e produção de conhecimentos
construção de possíveis e múltiplas aprendizagens. Por assim ser, Em face do caráter da aquisição do saber, missão das universi-
pretende-se com este trabalho estabelecer uma relação entre o dis- dades, acredita-se que as parceiras fortalecem e ampliam o espaço da
curso pedagógico do professor de Língua Portuguesa e o processo de universalização do conhecimento, além de mobilizar estudantes e
ensino-aprendizagem da escrita, uma vez que se reflete a cerca das intensificar, por parte dos professores e gestores, as conexões de
práticas discursivas, com base na Teoria da Argumentação no Dis- redes que fazem se aproximar diferentes comunidades científicas.
curso (TAD) tendo a linguagem como mecanismo que permeia as Reforçando esta premissa e acreditando que este projeto apresenta
relações humanas numa perspectiva sócio-histórica e interacional. interesses que estão em consonância com o PROCAD (Programa
Nacional de Cooperação Acadêmica), afirma-se o intuito de, dentre
A motivação para este trabalho surgiu da percepção de que, no
os objetivos aqui propostos, estabelecer conexões entre “formalizar
interior dos estudos sobre linguagem e educação, não é dada ênfase
o estado da arte no qual se encontra o conhecimento efetivamente
necessária ao discurso pedagógico do educador, enquanto mecanis- mobilizado na MELP (Metodologia do Ensino de Língua Portugue-
mo capaz de construir conhecimentos, sentidos e aprendizagens. sa) sobre a formação de professores de Língua Portuguesa”, “com-
preender algumas as representações sobre o que seja a formação do
professor de Língua Portuguesa e seu ensino-aprendizagem hoje” e
Mestranda em Letras da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte –
13

“analisar as conseqüências para o ensino e para a pesquisa a respeito


UERN/ CAMEAM.
14
Professora do Departamento de Educação da Universidade do Estado do Rio do ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa oriundas dos dife-
Grande do Norte – UERN/ CAMEAM. Coordenadora do PPGL e do Projeto rentes encaminhamentos dados na disciplina, objetivos específicos
BALE. do PROCAD.

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

Entende-se, portanto, que este trabalho possa contribuir para históricos, na cadeia da comunicação discursiva, formada pelo já-
uma reflexão mais profunda acerca da atuação do educador, dito e o ainda não-dito na atmosfera da língua, onde estão presentes
enquanto mediador da ação pedagógica, atuante na sociedade e con- interlocutores ativos, construindo sentidos. Por assim,
tribua para os estudos da argumentação no discurso pedagógico e no
que se refere aos processos interativos como forma de construção de A palavra (e em geral, o signo) é interindividual. Tudo o que é dito,
conhecimentos, sentidos e aprendizagens. expresso, situa-se fora da “alma”, fora do locutor, não lhe pertence
O trabalho emerge de uma pesquisa bibliográfica, tendo como com exclusividade. Não se pode deixar a palavra para o locutor
categoria empírica o discurso pedagógico, cujo aporte teórico leva as apenas. O autor (o locutor) tem seus direitos imprescritíveis
sobre a palavra, mas também o ouvinte tem seus direitos, e todos
seguintes categorias teóricas, quais sejam: o conceito de argumenta-
aqueles cujas vozes soam na palavra têm seus direitos (não existe
ção, de dialogismo, mediação pedagógica... Dos quais se emanam a
palavra que não seja de alguém). A palavra é um drama com três
conclusão acerca do caráter dialógico, argumentativo e interacional personagens (não é um dueto, mas um trio) (BAKHTIN; 1997:
do discurso pedagógico. 350)

1. Discurso, argumentação e interação: um novo fazer pedagó- Mediante o exposto, o dialogismo bakhthiano aponta para o
gico “caráter polifônico dessa relação exibida pela linguagem” (BRAIT,
1997, p. 56), razão pela qual, no campo do discurso pedagógico não
Os processos de ensino e aprendizagem, dentro de sala de aula, se pode mais pensar em discurso como um duelo de forças, onde o
são complexos e exigem o aperfeiçoamento de diversos mecanismos professor faz uso da palavra autoritária para “transmitir conheci-
da comunicação entre professor e alunos em uma perspectiva socio- mentos”, perpetua-se como “dono da verdade” ou como meio de asse-
cultural. gurar à reprodução social-cultural, uma vez que,
Neste contexto, a linguagem adquire uma importância funda-
mental, pois permite, tanto ao aluno ao professor, serem sujeitos Os sujeitos são posicionados ideologicamente, mas são também
historicamente construídos, com competências e habilidades para capazes de agir criativamente no sentido de realizar suas próprias
conexões entre práticas e ideologias a que estão sendo expostos e
atribuir significados as formações e práticas discursivas num ambi-
de reestruturar as práticas e as estruturas posicionadoras. (...) As
ente de interação. Desta forma, compreende-se ser a aprendizagem
práticas discursivas são investidas ideologicamente à medida
a internalização de processos compartilhados no plano social. Inse- que incorporam significações que contribuem para manter ou
rida neste panorama, a argumentação, passa a ser compreendida reestruturar as relações de poder. Em princípio, as relações de
como um discurso que envolve peculiaridades contraditórias, assu- poder podem ser afetadas pelas práticas discursivas de qualquer
mindo, provavelmente, uma posição privilegiada nos processos de tipo. (FAIRCLOUGH; 2008: 87)
ensino e aprendizagem, principalmente, ao se considerar “o discur-
so como a realidade singular de interação-enunciação” Neste sentido, reforça-se a idéia de que, desde os primórdios
(MARCUSCHI; 2008: 83). dos tempos o relacionamento entre os seres humanos, em qualquer
Tudo isso aponta para uma relação dialógica fundamentada das suas dimensões quer históricas, quer sociais ou culturais dá-se,
num processo contínuo de produção de sentido, que implica na com- basicamente, por meio de símbolos. Neste sentido, considerando à
preensão do próprio enunciado, enquanto fios ideológicos, sociais e interação social, e observando o comportamento linguístico dos

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seres humanos, verifica-se, segundo Koch (2000, p. 12), que “a inte- Mediante o exposto, considera-se que o prisma da argumenta-
ração social por intermédio da língua caracteriza-se, fundamental- ção, é a apresentação de um ponto de vista, defendido pelo sujeito
mente, pela argumentatividade”. argumentador como sendo o ideal para seu discurso, sempre acom-
Para Isócrates (Apud PERELMAN & OLBRECHTS-TYTECA; panhado de uma razão persuasiva. Assim sendo, o produtor do dis-
1999: 50), “o objetivo de toda argumentação provoca ou aumenta curso, além de ter leituras e vasta experiência de vida, deve saber uti-
adesão dos espíritos às teses que se apresentam a seu assentimento”. lizar os elementos linguísticos com o intuito de expressar seus pen-
samentos e levar o outro a crer no seu ponto de vista, na sua tese.
Para tal, o argumentador deve despertar no outro a ação pretendida
Dessa forma, para se elaborar um discurso, satisfatoriamente,
(positiva ou negativa), bem como instigar a criação em seu interlo-
deve-se harmonizar estruturas próprias da língua com elementos
cutor, a disposição para atar os elos coesivos deixados no texto
extralingüísticos, movimentos de retroação e avanço, para que o
durante a captura da coerência. leitor não se perda, ao fazer os movimentos cognitivo-discursivos
Assim sendo, o ato de argumentar requer estratégias discursi- necessários à construção dos efeitos de sentido, engendrados na
vas, capazes de permitir ao orador a obtenção do chamado acordo tessitura textual, além de saber as técnicas da argumentação, o que
com o auditório universal, ou seja, saber alternar, no texto, lugares- consiste em direcionar o discurso para um auditório particular, a fim
comuns e lugares-específicos, razão pela qual se afirma que a combi- de transmitir a mensagem desejada para um público específico.
nação e a seleção de alguns elementos em detrimento de outros é Sobre isto, afirma-se que
diretamente proporcional à sua indispensabilidade na argumenta-
ção. Pensando no uso efetivo do discurso em situações reais de intera-
Nesta perspectiva, Perelman (Apud KOCH; 2000: 43), ção social, jamais podemos ver a linguagem verbal como linear,
unívoca, totalmente racional; ao contrário, temos de vê-la como
um meio de interação, como algo que emerge de sujeitos históri-
ressalta que a argumentação visa a provocar ou incrementar a cos e culturalmente situados e se dirige a outros sujeitos em situa-
“adesão dos espíritos” às teses apresentadas ao seu assentimento, ções semelhantes, refletindo, nessa interação, as ambigüidades,
caracterizando-se, portanto, como um ato de persuasão. as controvérsias; enfim, as relações dialéticas e dialógicas que
Enquanto o ato de convencer se dirige unicamente à razão, atra- permeiam as relações humanas. (SOUZA; 2008: 61)
vés de um raciocínio estritamente lógico e por meio de provas
objetivas, sendo, assim, capaz de atingir um “auditório univer- Neste sentido, afirma-se que a língua enquanto sistema de
sal”, possuindo caráter puramente demonstrativo e atemporal (as práticas sócio-interativas de base cognitiva e histórica deve ter seus
conclusões decorrem naturalmente das premissas, como ocorre usos apropriados a diversas situações e práticas sociais nas quais
no raciocínio matemático), o ato de persuadir, por sua vez, pro- participam diferentes tipos de discursos, e gêneros diversos nos
cura atingir a vontade e o sentimento do (s) interlocutor (es), por quais se faz presente um vocabulário de formas semânticas já inven-
meio de argumentos plausíveis ou verossímeis e tem caráter ideo- tariadas e outras, ainda, em vias de lexicalização.
lógico, subjetivo, temporal, dirigindo-se, pois, a um “auditório
particular”: o primeiro conduz a certezas, ao passo que o segundo No espaço discursivo, o Outro não é nem um fragmento localizá-
leva a inferências que podem levar esse auditório – ou parte dele – vel, nem uma citação, nem uma entidade exterior, não é necessá-
à adesão dos argumentos apresentados. rio que ele seja testável por alguma ruptura visível da compacida-

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

de do discurso. Ele se encontra na raiz de um Mesmo sempre já podendo este lugar ser constituído de diversos modos, o que consti-
descentrado em relação a ele próprio, que não é nenhum tuirá uma organização do trabalho pedagógico e numa delimitação
momento focalizável sob a figura de uma plenitude autônoma. de sentidos. Pois,
Ele é o que sistematicamente falta num discurso e lhe permite
fechar-se em um todo. Ele é esta parte do sentido que foi preciso A palavra é o fenômeno ideológico por excelência. A realidade
que o discurso sacrificasse para constituir sua identidade.” toda da palavra é absorvida por sua função de signo. A palavra não
(MAINGUENEAU apud BRANDÃO; 2004: 92 - 93) comporta nada que não esteja ligado a essa função, nada que não
tenha sido gerado por ela. A palavra é o modo mais puro e sensível
Isto posto, a pluralidade dos discursos em trânsito, no espaço de relação social. “(BAKHTIN;1992: 36)
social, reflete a também pluralidade das práticas sociais, de tal modo
que “os textos são configurados pelas situações concretas de que Nesta perspectiva, ao aprender o que dizer, se aprende como
participam, e, além disso, pela mediação de gêneros e discursos, eles dizer, o que se espera que seja dito, ou seja, cria-se expectativas de
se articulam às práticas sociais, cujas situações de enunciação e de desempenho de papéis, de habilidades e conhecimentos que deter-
interpretações são ocorrenciais”. (RASTIER, 2000, p. 445) minam o que cada um faz e diz no espaço escolar ou em relação a ele
Com essa colocação fica claro que é pela interação que se dá a (Cf. ALMEIDA & SILVA; 1994: 53).
produção de conhecimentos, uma vez que neste processo, além do Diante do exposto, vê-se a necessidade de dar um novo rumo
locutor, se fazem presentes o interlocutor, a palavra e novas signifi- ao discurso pedagógico, pois o mesmo caracteriza-se como propul-
cações advindas dos usos da linguagem em situações diversas de sor de múltiplas aprendizagens, dominando valores, criando confi-
práticas sociais de produção. Isto nos leva a crer nas possibilidades ança e aceitabilidade. Isto posto,
de que numa atividade colaborativa em que se dá a interação entre
autor-texto-leitor e ou falante-texto-ouvinte, embora havendo As atividades sociais dizem respeito aos comportamentos que
desencontros, ocorra uma extração de informações objetivas que são praticados pelos organismos vivos e que permitem a eles inte-
ragir com o ambiente. No ser humano, essas atividades somam-
implica em construção de sentidos, com base em atividades inferen-
se a outras mais complexas e diversificadas, que surgiram e se
ciais; ação que provoca múltiplas aprendizagens. desenvolveram graças à capacidade especificamente humana de
Assim sendo, o discurso, a argumentação e a interação devem interagir verbalmente, ou seja, à linguagem, que as medeia
ser considerados como formas de ação social, propícios ao desempe- (LEITE; 2007: 10).
nho da função comunicativa, sendo interligados entre si e comple-
mentares do ponto de visto do objeto do dizer, em que estão presen- Assim, entende-se que as formas discursivas são uma extensão
tes aspectos pragmáticos, tipológicos, processos de esquematiza- da palavra provida de significação, extraordinariamente rica e
ção, plano de codificação-decodificação e uma série de conseqüên- importante nas instâncias da comunicação e criação ideológica,
cias formais e não-formais. nascituro da compreensão, processo discursivo regido pela compe-
Acredita que o discurso pedagógico, diante desta nova realida- tência da renovação que inova a síntese dialética entre a vida interior
de histórico-social deve ser repensado e reconstituído, uma vez que e a vida exterior, através da pluralidade de linguagens, reforçando,
o professor deve constituir um lugar de escuta (interpretação) e cons- desta forma, a complexidade da língua, no campo de ação dos seus
tituir sua voz a partir também deste lugar, a partir do que foi dito, infinitos enunciados, das suas inúmeras possibilidades expressivas,

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da sua flexibilidade e de suas características estilísticas e da sua vari- ração da dinâmica argumentativa e as estratégias de argumentação,
abilidade social e histórica. Diante do exposto, a produção de novos discursos e ampliando o processo de aprendiza-
gem compartilhada.
A mediação pedagógica é um processo complexo de intervenção,
que envolve as ações, os conhecimentos e estratégias do profes- Considerações finais
sor, assim como as ações, os conhecimentos e estratégias do alu-
no, incluindo, ainda, as condições concretas de interação e a natu-
Todo discurso produzido pelo ser humano está inserido em
reza do conhecimento trabalhado. Postulamos que o processo de
mediação pedagógica, assim definido, visa desencadear uma
uma sociedade e traz consigo as marcas da sua historicidade, talvez
nova relação de conhecimento, mudanças no modo de o aluno por isso Bakhtin afirma que o ser humano é dialógico por natureza, e
pensar e agir. Ressaltamos, sobretudo, a necessidade da argu- a linguagem só se constitui através da relação eu-tu, o que implica
mentação no processo de mediação pedagógica (FREITAS; 2008: dizer: não existe comunicação fora da perspectiva dialógica. Assim
118). pode-se dizer que se há uma relação de dominação entre professor e
aluno, certamente, não haverá produção de conhecimento, pois “o
Nesta perspectiva, a linguagem torna-se essencial para a cons- diálogo não pode verificar-se na relação de dominação” (FREIRE;
tituição da sociedade, dos sujeitos e da história e refratam sentidos 1996: 33).
ideológicos produzidos no discurso exterior e interior, de maneira Embora professores e estudantes sejam marcados, posicional-
interativa, dialogizada que ao permitir a compreensão dos espaços mente, no discurso e tenham, no contexto da sala de aula competên-
sociais, tendem a criar hierarquias, dominações, discriminação, cias diferentes, ambos são seres humanos que expressam visões de
consensos e dissensos entre homens e conhecimentos, uma vez que mundo variadas. Tomados como objetos centrais na natureza dialó-
os signos refletem a realidade. Assim, gica da linguagem são portadores de vozes que perpassam o silêncio
da ignorância numa produção efetiva de conhecimento, razão pela
O diálogo, no sentido estrito do termo, não constitui, é claro, qual ao aluno deve-se oportunizar à apropriação de um conheci-
senão umas das formas, é verdade que das mais importantes, da mento e, a partir dele, as condições para que sejam estabelecidas as
interação verbal. Mas pode-se compreender a palavra “diálogo” relações significativas com outros conhecimentos já elaborados.
num sentido amplo, isto é, não apenas como a comunicação em
Além do mais, ao pensar no universo do discurso pedagógico
voz alta, de pessoas colocadas face a face, mas toda comunicação
como lugar de interação, em que o discurso do professor interfere na
verbal, de qualquer tipo que seja. (BAKHTIN; 1992: 109)
constituição do discurso do estudante e vice-versa cria-se um novo
espaço de significação para o sujeito, uma vez que ocorre uma rela-
Entende-se, portanto, que o caráter dialógico, argumentativo
ção de interlocução com outros sujeitos.
e interacional no discurso pedagógico é um passo decisivo para a
construção do processo de ensino-aprendizagem, uma vez que deve Os requintes da sociedade, a evolução histórica da humanida-
valorizar no contexto da sala de aula a interação social, além do mais de e os avanços culturais não mais permitem que o professor perma-
é preciso considerar que a argumentação é parte do processo de medi- neça no lugar do saber e o estudante à margem do saber, isto é, no
ação pedagógica, que deve, através da intervenção do professor lugar do não-saber. Assim, professor e estudantes enquanto interlo-
enquanto mediador e argumentador, desencadear mudanças nos cutores devem conviver com o heterogêneo, lugar de inscrição da
modos de pensar e agir dos alunos, intensificando assim, a estrutu- língua, das diversas instâncias do dizer, para que as formas discursi-

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

vas sejam propulsoras de sentidos, uma vez que, isto posto, a ação JAPIASSU, Hilton. Um desafio à educação: repensar a pedagogia
dialógica do professor e do estudante torna-se uma eficaz prática científica. 9.ed. São Paulo: Letras & Letras
pedagógica, capaz de exercitar a tomada de decisões diante de outras LEITE, E. G. A Reescritura do aluno sob a orientação do professor
posições, ressignificar conceitos, gerar, partilhar e mediar novos (Projeto de Pesquisa) João Pessoa – PB, 20092010.
conhecimentos, inclusive, conhecimentos científicos. MARCUSCHI, Luiz Antônio. Produção textual, análise de gêneros e
Desse modo, se a aprendizagem transcorre através do processo compreensão. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.
de interação, que por sua vez ocorre numa relação locutor x palavra x RIOLFI, Claudia Rosa, MAGALHÃES, Mical de Melo Marcelino.
interlocutor, algo de muito estranho permeia o discurso pedagógico Modalizações nas posições subjetivas durante o ato de escrever.
do educador, uma vez que em muitos casos, parece se perder nesta Dossiê. Estilos da Clínica, 2008, Vol. XIII, no 24, 98-121. São Pau-
inter-relação social de comunicação e aprendizagens múltiplas. lo: GEPPEP USP, in http://paje.fe.usp.br/~geppep/, acessado em
13 de julho de 2010.
Acredita-se, então, que o discurso pedagógico é permeado
pelo discurso internamente persuasivo, uma vez que é parte do pro-
fessor e parte do aluno e permite a interação dialógica, sendo porta-
dor de uma estrutura infinita, aberta e com possibilidades de revelar
em cada contexto novas formas de significar.

Referências

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gem: Problemas fundamentais do método Sociológico na Ciência da
Linguagem. 6. ed. São Paulo: HUCITEC, 1992.
BRAIT, Beth (org.). Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. São
Paulo: Editora da Unicamp, 1997.
FOUCAULT, M. História da sexualidade: o uso dos prazeres. Rio de
Janeiro: Graal, 1984. v. II.
FREITAS, A. C. Leitura e argumentação: travessa de sentidos em
discussões de histórias. In: FREITAS. A.C.; RODRIGUES, L. O.;
SAMPAIO, M.L.P (Orgs). Linguagem, discurso e cultura: métodos
objetos e abordagens. Mossoró: Queima-Bucha, 2008.
GERALDI, João Wanderley. Portos de passagem. 3. Ed. São Paulo:
Martins, 1995.
GOULART, Cecilia M. A. Em busca de balizadores para a análise de
interações discursivas em sala de aula com base em Bakhtin. Revista
Educação Pública. Faculdade de Educação, UFMT, 2009.

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

LEITURA E BIBLIOTECA: A AUTONOMIA LEITORA EM tos a partir do prazer da leitura. Este espaço não pode restringir-se ao
CONSTRUÇÃO papel meramente didático-pedagógico de oferecer apoio para o pro-
Míria Helen Ferreira de SOUZA15 grama de professores, mas deve funcionar como uma ponte entre o
ambiente escolar e o mundo externo.
A biblioteca como espaço construtor de saberes O contato com portadores textuais possibilita que a criança

P
perceba a divisão do seu pequeno mundo em dois: o real e o imaginá-
ara transformar informação em conhecimento é necessária a rio. Além de ensinar conteúdos, a visita à biblioteca ajuda a elaborar
compreensão do significado destes termos que circulam no questões, instiga perguntas, provoca desafios e desenvolve na crian-
ambiente escolar. Conforme JACOBUCCI (2008), a informa- ça a capacidade de olhar para uma coisa cotidiana e perceber algo a
ção é a socialização de dados de forma meramente eventual, ser descoberto. Ao circularem no espaço da biblioteca, as crianças
enquanto que o conhecimento perpassa por momentos de reflexão e não buscam textos para estudar ou se alfabetizar, mas, nesse conví-
avaliação dos fatos. Portanto, conclui-se que o papel da escola frente vio, aprendem sobre si, sobre os outros e sobre os modos de viver na
ao processo do desenvolvimento da competência leitora é permear sociedade.
caminhos que levem o aluno a se familiarizar com a aquisição de Ao estarem imersas em um ambiente leitor começam a se inte-
saberes que estejam além do processo de informação, mas que se ressar pela leitura e acabam aprendendo a ler. Também descobrem
configurem em conhecimento. que “ler” é um processo incorporado à vida social. Isso se configura
No entanto, sabemos que em nosso país, nem todas as crianças nos outdoors, cartazes, propagandas, panfletos, revistas, jornais,
têm a oportunidade de conviver com recursos literários, antes e fora recursos midiáticos que estão ao seu alcance e que expandem a
da escola, que venham a proporcionar momentos de aprendizagem. necessidade de compreensão da mensagem que expõem ao público
No estado do Rio Grande do Norte, mas especificamente, na cidade alfabetizado ou letrado.
de Mossoró também não é diferente. Consequentemente, o desenvolvimento do hábito de leitura
Em casa, as crianças, em sua maioria, não dispõem de momen- não surge do nada. A biblioteca funciona como aparato na constitui-
tos de leitura que contribuam para a formação leitora, e isso compro- ção de novos leitores por ser um espaço de liberdade, imaginação e
mete a participação destas perante a sociedade contemporânea que, aventuras, mas para que a criança se constitua leitora, é pertinente a
mesmo sem oferecer condições favoráveis exige de seus partícipes convivência com livros e leitores que compartilhem práticas de lei-
comportamentos adequados à vida social. tura. Nesse sentido, a família precisa assegurar a continuidade desta
experiência, como também os professores devem planejar situações
Na instituição escolar, a biblioteca renasce como o ambiente
que envolvam os pais do educando em prol da formulação de víncu-
que convida as crianças a descobrir e aprofundar novos conhecimen-
los que conservem a prática de leitura como atividade constante res-
peitando as especificidades dos vários modelos de família que com-
Graduada em Pedagogia pela Universidade do Estado do Rio Grande do
15 põem a sociedade contemporânea.
Norte/UERN. Especialista em Educação, área Gestão do Sistema de Ensino, Conforme Morais:
pela UERN. Professora Auxiliar II do Departamento de Educação da
UERN/CAMEAM/Pau dos Ferros. Sub-chefe do Departamento de Educação Nas escolas, a literatura infantil tem sido utilizada como forma de
da UERN/CAMEAM. E-mail: miriahelen@hotmail.com atrativo para o aluno gostar de leitura. Só que não a utilizam ade-

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

quadamente e, o que antes poderia ser um excelente auxiliar, iniciais. A partir desta constatação observa-se que grande parte dos
acaba se tornando em mais uma das “coisas” da escola para tolher
professores brasileiros não teve acesso a obras literárias e assim não
a liberdade da criança. Quando bem utilizada, ela pode realmen-
construíram práticas sociais de leitura, concomitantemente esses
te ser um instrumento de aproximação do aluno com a leitura, de
forma atrativa, sem imposições. Pode ser um auxiliar para se atin-
profissionais que não têm familiaridade com a literatura não conse-
gir o sonhado estado de letramento tão almejado pelos anos ini- guem ser agentes disseminadores de boas práticas leitoras.
ciais no Ensino Fundamental”. (2009, p.112) Portanto, uma das formas de reverter o quadro é buscar fazer
da leitura uma atividade cotidiana aproveitando o momento na
O maior objetivo do trabalho da biblioteca na instituição esco- biblioteca para servir de referencial para os alunos.
lar é, justamente, levar o leitor por mundos nunca imaginados e,
consequentemente, permitir que demonstre as emoções que vive a A biblioteca e seus cantinhos: atividades significativas
partir das histórias lidas ou contadas. Precisa perceber a biblioteca
como um local onde a leitura ganha vida a partir do desenvolvimento A leitura é como um hobby. Cada pessoa conhece o melhor
de sua própria autonomia. lugar para se entregar aos livros. Há quem goste de ler deitado, senta-
Frente à descoberta de ler por prazer, o professor ocupa lugar do, no ônibus, nas bibliotecas públicas. Outros preferem o sofá. O
central nesse processo tendo em vista que se apresenta para a socie- que importa realmente é que o processo de leitura se efetive na vida
dade escolar como mediador de saberes e patrocinador de oportuni- de cada cidadão, quer seja criança, jovem ou adulto. É essencial
dades de crescimento intelectual. Assim sendo é fundamental rea- conhecer diversas versões da realidade ou dos contos fantásticos a
valiar a qualidade das atividades que são repassadas para os alunos, fim de que as informações representadas reflitam pontos de vista
observando que o trabalho com a leitura ocupa um lugar inferior, que se associem a produção de conhecimentos.
conforme pesquisa divulgada na Revista Nova Escola n° 234 de Agos- Para despertar a curiosidade dos alunos e incentivar o acesso
to de 2010. A organização das atividades de leitura, a exploração dos das crianças à biblioteca, esta se submete a uma nova roupagem
movimentos dos alunos e os contatos com os livros receberam as onde os mais diversos tipos de linguagem somam-se em prol do avan-
piores avaliações. Esse aspecto nos remete a refletir sobre o papel do ço do saber. Como por exemplo, a criação de cantinhos especiais
professor diante do desenvolvimento da competência leitora dos como a brinquedoteca, a bebeteca, a cdteca que contribuem para a
aprendizes, tendo em vista que, e o aluno estão diariamente juntos geração de interesses pela leitura devido serem atrativos e, sem que
diante de situações de aprendizagem. seja percebido pela criança, têm sempre o mesmo objetivo comum:
O discurso de Paulo Freire (1996) remete ao ato de crer que a promover o prazer de ler.
leitura de mundo precede a leitura da palavra. No entanto, para que Esses cantinhos têm variadas funções. Enfatizamos, dentre
isso configure no cenário real é pertinente que o professor repense tantas, a função pedagógica (que oferece possibilidade de manuseio
sobre a proposta pedagógica a qual submete seus alunos e num pro- de brinquedos educativos), a social (possibilita o uso de brinquedos
cesso de autoavaliação e autoregulação destas práticas programe pelas crianças menos favorecidas) e comunitária (favorece o apren-
meios para revertê-la. dizado das relações de respeito, colaboração, ajuda mútua entre os
Matêncio (1994) ressalta a formação docente como o aspecto alunos). Podemos pontuar ainda a possibilidade de inclusão das
mais conflituoso na relação entre ensino e aprendizagem dos graus crianças independente da idade, pois as que ainda não dominam o

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

código linguístico podem manter contato com portadores textuais Decidimos nomear as escolas de Escola A,B,C,D e E a fim de
mesmo que seja apenas para tocar, sentir, ouvir, cheirar e contar as preservar a identidade de cada uma delas.
diferentes histórias que ali ouvem por seus mediadores. Sabemos que o ideal é que as escolas tenham um local que per-
Possibilitar o acesso à biblioteca de forma espontânea é respei- mita aos alunos vivenciar a experiência da leitura em um espaço pri-
tar os anseios dos alunos sem levar em consideração se sabem ler ou vilegiado como a biblioteca ou a sala de leitura, no entanto, na Escola
não. Essa prática converge com o que Martins (1996) pontua sobre os A,B e C este lugar inexiste.
níveis de leitura que circundam os leitores mirins que adentram o Isso se comprova na fala dos sujeitos partícipes da pesquisa:
chão da escola.
Diretora da Escola A: “o espaço foi usado para guardar materiais em
Em suas particularidades temos alunos que se encontram no
desuso, devido ao fato de não haver um almoxarifado na escola.”
nível de leitura sensorial que, segundo a autora supracitada, é a pri- Supervisora da Escola B: “as professoras preferem levar os livros
meira etapa do processo de decodificação. Esse tipo de leitura é reali- para a sala de aula porque a biblioteca é muito apertada e não cabe
zado pelos sentidos, ou seja, antes de ser um texto que contenha estó- todo mundo”.
rias, expressões, ele tem formas, cor, texturas, cheiro e a criança por Diretora da Escola C: “a escola não tem espaço para organizar a
mais que não saiba ler, se encanta ao sentir a textura do papel, ao ver biblioteca e a sala de leitura.”
cada página, cada desenho.
Os alunos que se encontram no nível de leitura racional já são Ao refletirmos sobre a função da escola mediante o desenvol-
capazes de estabelecer uma ponte entre ele e o conhecimento. Estão vimento da competência leitora de seus alunos, constatamos que
aptos a analisar fatos, a formular conceitos, a organizar o texto, a cabe à ela ensinar a ler criticamente, ajudando ao aprendiz a domi-
nar e interpretar os vários tipos de textos que circulam na sociedade,
refletir sobre o conteúdo lido e atribuir significado. O nível emocio-
para assim não haver a reprodução das desigualdades sociais, mas a
nal mexe com as emoções do leitor, e segundo a autora é a que, talvez, liberdade de expressar opiniões e defender seus direitos. Qualquer
dê mais prazer ao indivíduo; pessoa que ler de modo crítico e reflexivo é capaz de fazer, de forma
A partir da reflexão posta, percebemos que estes cantinhos, consciente, o seu julgamento sobre o que leu. Por isso, a leitura deve
associados a um trabalho de qualidade no ambiente da biblioteca, ser considerada um rico instrumento para evitar a alienação das
contribuem para a formação de leitores competentes. camadas populares. Através dela será possível emancipar os cida-
No entanto, o retrato das escolas públicas estaduais da cidade dãos da ignorância, expandir seus horizontes para variados assuntos
de Mossoró apresenta um cenário contraditório. e problemas que vigoram nas sociedades, além de favorecer a apren-
Isso foi constatado por meio de uma pesquisa in lócu, em insti- dizagem.
O Art. 4º da Lei Nº 9.169/09 que trata da promoção da leitura
tuições de ensino da rede pública da cidade de Mossoró. Dentre as
nas escolas públicas norte-riograndenses pontua que:
cinco escolas visitadas durante o acompanhamento de cinco alunas,,
estagiárias do 7º período do curso de Pedagogia da Universidade do
Estado do Rio Grande do Norte, campus Mossoró, nos Anos Iniciais Art 4º. Para efeitos desta Lei, são considerados espaços de leitura:
do Ensino Fundamental, foi possível observar a situação de precari- I – Biblioteca: ambiente preparado para a realização de pesqui-
edade em que se encontra os espaços destinados ao funcionamento sas, leitura, espontânea, empréstimos e atividades de mediação
da biblioteca escolar.

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

de leitura. O acervo é composto de obras literárias e de referência Também não vale nem a pena investir num espaço desse porque
(dicionários; enciclopédias; manuais; gramáticas da língua por- não temos profissionais capacitados para ocupar o lugar. Como
tuguesa; mapas; atlas; entre outros). sempre, o estado irá mandar um professor readaptado ou que
II – Sala de Leitura: ambiente preparado para a relização de ativi- está aguardando a aposentadoria, só para dar trabalho a gente.
dades de mediação de leitura, empréstimos e leitura espontânea.
O acervo é composto, majoritariamente, de obras literárias. (RIO Sobre isso o Art 7º da Lei Nº 9.169/09 cita que todo o trabalho
GRANDE DO NORTE, 2009) de escrituração, controle e organização do acervo literário deve ser
realizado por um bibliotecário ou outro profissional que venha a ser
Portanto, nas escolas, campo da pesquisa, constatou-se que o orientado por ele.
cumprimento deste documento não se formaliza de modo eficiente. Na sequência, o Art 8º da mesma lei atribui ao Poder Executivo
Inicialmente comprovamos a olho nu não existir espaço físico ade- a tarefa de realizar concurso público para bibliotecário ou contratar
quado ao funcionamento da biblioteca, em sua maioria apenas há profissionais para a realização da tarefa em escolas que possuam
arranjos, como é o caso da Escola B, onde a professora prefere levar o acervo a partir de 4.000 livros. É pertinente pontuar que em nenhu-
acervo à sala de aula do que acomodar os alunos no espaço que a esco- ma das escolas pesquisadas o acervo se aproxima deste montante. A
la oferece como biblioteca. Esta prática descumpre também o Pará- escola B é a que mais possui material literário que atenda às exigênci-
grafo Único da referida Lei que enfatiza: as legais, mas não passa de 500 livros. Na realidade, o acervo das
supostas bibliotecas é composto mais por livros didáticos do que
Parágrafo único. Os cantos de leitura por ventura adotados em sala
pelos materiais especificados anteriormente no Art 4º.
de aula ou a disponibilização de acervos ou instrumentos móveis A função de bibliotecário também inexiste no rol das escolas
são opcionais e de caráter complementar aos serviços prestados da rede estadual de ensino. E quando há a vaga, ela é ocupada por
pela biblioteca e/ou sala de leitura da escola, portanto, não substi- pessoas não especializadas para realizar as atividades de mediação
tuem os espaços definidos nos incisos I e II deste artigo 4º. de leitura. Concomitantemente, isso converge com a fala da gestora
da Escola D que se sente incomodada por esse espaço ser preenchido
A necessidade de revisão da prática pedagógica que envolve a por pessoas que não têm mais condições de assumir uma sala de aula
leitura deve ser revigorada pelos docentes tendo em vista que, para por motivos de saúde ou idade avançada.
desenvolver o hábito leitor, é fundamental que as crianças tenham o É preciso compreender que a biblioteca também é um espaço
onde o ensino e a aprendizagem acontece simultaneamente. Para
direito de escolher os materiais literários que sejam de seu interesse.
que isso se efetive de uma forma qualitativa é fundamental que haja
O ato de entregar aos alunos os livros colhidos na biblioteca pelo
professor e aluno. Portanto, o agente responsável pelo espaço da
professor desconsidera o fato de que leitura é uma interação entre o biblioteca ou da sala de leitura precisa ser ativo e estar sempre bus-
leitor e o texto. (SOLÉ, 1998) cando estratégias que incentivem o leitor a retornar a este espaço.
Na continuidade da pesquisa, as escolas D e E, por meio de Os discursos sobre a qualidade do ensino, a revitalização de
suas gestoras, responderam que aguardam a construção de uma práticas pedagógicas, os debates sobre as novas formas de ensinar
nova sala porque tiveram que transformar em sala de aula o espaço invadem os espaços escolares. No entanto, mobilizar a população
onde antes funcionava a biblioteca. A gestora da Escola D ainda para a efetivação de novos “modos de fazer” não é o remédio para as
reforçou: mazelas da educação brasileira.

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

O ideal seria analisar o que já está descriminado nos docu- Esse fato se comprovou nas escolas pesquisadas, pois nenhu-
mentos legais, descartar burocracias que travam o funcionamento ma delas apresentou em seu espaço físico um ambiente que possa ser
das instituições de ensino e dar ênfase e valor ao processo da leitura, denominado de biblioteca. Na verdade, esses locais serviam de depó-
porque somente por meio dela teremos a capacidade de elencar pro- sitos de materiais.
postas para os problemas acima descritos. Em relação ao acervo não se constatou haver preocupação da
Valorizar a leitura é permitir que as pessoas tenham acesso ao equipe pedagógica em adquiri-lo de acordo com a necessidade de
conhecimento e por meio deste possam fazer valer sua opinião, bus- seus alunos. O material literário disposto, em sua maioria, não era
car consenso nas divergências ou retroalimentar posições conver- adequado as pesquisas escolares e os livros, em sua maioria, não aten-
gentes a fim de que se possa ter no futuro muito mais do que escolas diam aos interesses das crianças.
com bibliotecas, mas bibliotecas que sejam grandes escolas. O fato mais preocupante foi o descaso constatado através da
fala dos sujeitos da pesquisa que não imprimem pertinência ao tra-
Finalizando... balho de leitura que poderia ser realizado em parceria com a biblio-
teca escolar, como também não percebem a importância do desloca-
Pensar a leitura no espaço da biblioteca nos impele a aceitar o
mento da criança ao mundo da leitura que é a sala da biblioteca.
poder que ela tem na vida humana. No entanto, precisamos perce-
Outro fator que chama a atenção é a inexistência de propostas
ber as restritas ações, que no espaço escolar, viabilizam o acesso ao
pedagógicas que viabilizem o trabalho com a literatura. O ato de ler
mundo literário.
está associado as atividades de rotina de sala: ler para responder. Este
Muitos são os entraves vivenciados pela sociedade em prol do
aspecto colabora para o crescimento dos alarmantes efeitos do pro-
desenvolvimento da competência leitora em nossas crianças desde a
cesso de desvalorização da leitura que culmina no déficit de aprendi-
mais tenra idade.
zagem da área da linguagem.
Mesmo a existência da biblioteca não sendo a garantia supre-
ma de que todos os alunos desenvolverão seu interesse pelo ato de Matêncio (1994) alerta sobre a preocupação que os profissio-
ler, a sua presença fortalece vínculos entre a pessoa e os recursos nais da educação devem ter para com o ensino da leitura e escrita na
pedagógicos que lhe são oferecidos. Nem sempre as crianças entram escola, pois estes acompanharão os alunos após a etapa de escolari-
na sala da biblioteca para ler. Mas, a constância de sua visita pode zação. Em resumo, se a escola não contribui para que a criança se
contribuir para a geração de interesses futuros. interesse pela leitura, consequentemente, não estará formando lei-
Mais do que oferecer momentos de leitura, a biblioteca se con- tores para o futuro.
figura num espaço onde a criança aprende pelas informações casuais Esse processo remete a reflexão de que a preservação da pala-
que apresenta e, o(a) bibliotecário(a) através de um trabalho de vra ainda não é trabalhada na escola, muito embora esteja no palco
mediação planejado com objetivos definidos e estratégias inovado- das discussões pedagógicas. Enfim, é fundamental que as escolas
ras poderá vir a cativá-la para a leitura literária. replanejem suas atividades em prol do desenvolvimento da leitura e
Mas, por meio da pesquisa efetivada, constatou-se que a convi- por meio de estratégias vençam as barreiras impostas pela sociedade
vência pedagógica entre a biblioteca e a escola ainda não é uma reali- que, às vezes usam os espaços de ensino como ferramenta ideal no
dade consolidada. desconhecimento da linguagem como se isso fosse algo natural.

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

Referências

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Educação Básica. Brasília: MEC/SEB, 2009.
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Artigos de graduandos
39, acessado em 13 de julho de 2011.
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RIO GRANDE DO NORTE. Lei n.º 9169, de 15 de janeiro de 2009. Dispõe
sobre a política estadual de promoção da leitura literária nas escolas públi- Sob a tutoria do Professor Carlos Gildemar Pontes
cas do estado do Rio Grande do Norte. Assembleia Legislativa.
SANTOS, Santa Marli Pires dos. Brinquedoteca: O lúdico em diferentes
contextos, Petrópolis-RJ; Vozes, 1997
SOLÉ, Isabel. Estratégias de leitura. 6 ed. Porto Alegre: Artmed, 1998.

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

A LITERATURA COMO IDENTIDADE HISTÓRICO-SOCIAL nhos com os moleques da bagaceira em Menino de Engenho, a visita
NA OBRA DE JOSÉ LINS DO REGO: O CICLO DA CANA DE de Antônio Silvino, o Governador do Sertão, no engenho do velho
AÇUCAR coronel Zé Paulino. As desventuras de Carlos de Melo (o Carlinhos)
Nadja Claudinale da Costa CLAUDINO16 que depois de se tornar bacharel em Direito pela Faculdade do Recife
volta para o engenho e vive um caso de amor com sua prima Maria
Introdução Alice, em Banguê. As agruras de Ricardo (que não é um menino de
engenho, mas sim um moleque da bagaceira), que sai do engenho e

J osé Lins do Rego escreveu uma extensa obra, onde contou a histó- vai tentar a vida no Recife, onde sofre mais do que no eito sob o jugo
ria da família patriarcal, usando como cenário econômico o ciclo do coronel Zé Paulino (Moleque Ricardo). São todos personagens
do açúcar, para exemplificar as relações econômicas, sociais e que se identificam com o modo de vida dos engenhos, ora como
políticas. Escreveu sobre o ciclo da cana de açúcar porque foi nesse parte desse universo físico (a fazenda, o canavial, a fornalha, os
meio que José Lins do Rego cresceu. O autor nasceu na cidade de tachos de mel de cana, a bagaceira) ora como homens e mulheres
Pilar, Estado da Parahyba do Norte, em 1901, no Engenho Corredor. com os seus problemas de relacionamento humano, político e social.
Há também os deserdados pelo poder e mandonismo local, são as
Sua infância era comum às dos meninos que tinham suas vidas
mulheres que se prostituem, os filhos bastardos, os moleques da
cercadas de histórias e causos forjadas na fornalha dos engenhos.
bagaceira, personagens que enchem os romances de vida e de cor,
Brincou com os moleques da bagaceira, viu as colheitas da cana de
muitas vezes por meio de suas desgraças e de suas miudezas.
açúcar e muitas vezes andou pelas casas de purgar, e isso lhe deu
parte das lembranças que usou para escrever seis romances que tra-
Vida e morte dos engenhos
tavam do tema da Cana-de-Açúcar. (Menino de Engenho, Doidinho,
Bangüê, O Moleque Ricardo e Usina) e escrever sua obra prima, Fogo
A vida no Engenho de Cana de Açúcar girava em torno da Casa
Morto, que para o autor sintetizava os outros cinco romances.
Grande e das plantações de cana. Homens e mulheres trabalhavam
O tema central desses livros gira em torno da decadência dos
nas lavouras para a manutenção dos engenhos. No começo da colo-
engenhos e principalmente das famílias patriarcais, engolidas pelas
nização brasileira, nos anos de 1550, nos primeiros engenhos nor-
usinas que representam os tempos modernos. As narrativas mos-
destinos, a mão-de-obra usada era a indígena. Com o passar do tem-
tram o fim de um modo de produção e descrevem a história da for-
po, já no século XVII, a maioria da mão-de-obra dos engenhos era
mação do nordeste canavieiro. Os personagens integram um ambi-
composta de africanos ou afrodescendentes. O trabalho nos enge-
ente onde a imagem dos coronéis e do cangaço ainda povoa o univer-
nhos era um trabalho muitas vezes perigoso e insalubre principal-
so sertanejo. Por outro lado, a imagem real da cana crescendo, a bele-
mente para os que trabalhavam diretamente na fabricação do açú-
za da Zona da Mata, as cheias do Paraíba, as brincadeiras de Carli-
car.
Com o fim da escravidão os engenhos de cana-de-açúcar pas-
Ficcionista. Colabora em Jornais e sites de Cajazeiras e Mossoró. saram a adotar um novo tipo de mão-de-obra, os empregados que
16

Graduanda do Curso de História da Universidade Federal de trabalhavam em um regime de exploração não mais comparado ao
Campina Grande UFCG/ CFP. Membro do Conselho Editorial da da escravidão, porém sob condições de trabalho muito precárias. Os
Revista Acauã. senhores mandavam com poderes ilimitados nos seus “cabras” e nos

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seus engenhos, usando a seu bel prazer a força de trabalho dos nagens que povoaram os outros quatro romances do autor. Menino
homens do eito, os quais chamavam de “Camubembe”. Os senhores de engenho tem como ponto principal da narrativa um assassinato.
de engenho viam seus empregados da mesma maneira que viam suas Logo no início, a mãe de Carlos de Melo (Carlinhos) é assassinada
terras, como propriedade, com o direito de mando, tratando-os mui- pelo pai do menino. A partir daí, com a desestruturação da família,
tas vezes com violência. Com os seus olhos de senhor, que tudo podi- Carlinhos passa a viver no engenho do avô, no brejo paraibano. Ao
am, às vezes também viam seus empregados como “filhos”, a quem chegar ao engenho, Carlinhos, o menino que viveu parte da infância
podiam repreender e castigar quando fosse necessário. Os narrado- em um sobrado no Recife, se encanta com aquele mundo novo, onde
res dos romances de José Lins do Rego nos falam desse senhor de iria viver daí para frente. O engenho se constitui na obra de José Lins
engenho, dono de sua gente e de suas terras, com certo saudosismo, do Rego como um lugar encantado e fascinante.
sempre tentando dar a esse tipo de relação patrão empregado um
tom sentimental. Talvez isso se desse porque esses narradores Minha imaginação vivia assim a criar esse mundo maravilhoso
conheciam a realidade da vida de dentro da Casa Grande do enge- que eu não conhecia. Sempre que perguntava a minha mãe por-
nho. Para eles, a pobreza não era anormal, pobres sempre existiram e que não me levava para o engenho, ela se desculpava com o
existiriam. O coronel Zé Paulino era rico porque trabalhou, era mere- emprego de meu pai. Daí a impressão extraordinária que me ia
cedor da riqueza, já os trabalhadores do eito eram pobres porque causando os mais insignificantes aspectos de tudo que estava
naturalmente não tinham a mesma coragem e disposição do dono. vendo. (Rego; 2009: 12)
“Não fora o engenho que fizera grande o meu avô. Ele é que fizera o
engenho grande.”17 A sua administração e seu olhar de dono fizeram Esse mundo encantado de Carlinhos é o mesmo mundo
prosperar o seu engenho; o trabalho dos “camubembes” parece ter encantado do autor, que por meio da memória vai narrando esse
pouca importância nesse processo. Em relação ao trabalho mal universo, voltando seu olhar para sua infância, escrevendo dessa
remunerado dos trabalhadores, o narrador nos passa a impressão de maneira a história de seu próprio meio social, individualizando sua
que a naturalidade da exploração pelo trabalho escravo deveria con- identidade e a partir disso fazendo um apanhado sobre a identidade
tinuar mesmo depois da liberdade. patriarcal brasileira. O autor, no prefácio à primeira edição do seu
romance Usina, fala que nesse livro, o último do ciclo da cana-de-
As negras do meu avô, mesmo depois da abolição ficaram todas açúcar, teria conseguido fazer o que pretendeu, resgatar a memória
no engenho, não deixaram a rua como elas chamavam a senzala. dos meninos que como ele foram criados nas casas grandes dos enge-
nhos. “Seria apenas um pedaço de vida o que eu queria contar” .
18
E ali foram morrendo de velhas. Conheci umas quatro: Maria
Gorda, Generosa, Galdina e Romana. O meu avô continuava a Além de conseguir resgatar essas memórias José Lins do Rego regis-
dar-lhes de comer e vestir. E elas trabalhavam de graça, com a trou uma parte da história brasileira pelo viés das relações familiares
mesma alegria da escravidão. (Rego; 2009: 49) que se inserem nas relações sociais e econômicas, num período em
que a política era determinada pelo coronelismo e pelas relações de
O ciclo da Cana-de-Açúcar se inicia com o romance Menino de compadrio.
engenho, publicado em 1932. Nessa obra são apresentados os perso- Com o segundo livro, Doidinho, lançado em 1932, José Lins do
Rego faz um retrato sobre a educação dispensada aos filhos dos

REGO, José Lins. Bangüê. Rio de Janeiro. J. Olympio, 1980, p. 15. Nota do autor à 1ª edição de Usina.
17 18

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

senhores de engenho no colégio em Itabaiana. O personagem Carli- olhos das crianças costumam hipertrofiar as coisas, passa a olhar o
nhos revela outro aspecto da história social do período nas cidades engenho como perda, tem saudades pelas lembranças que o fazem
cuja economia girava em torno dos engenhos. Quando o menino sai reviver um tempo de glória e felicidade. Constata que, como as coisas
da casa dos pais para o engenho e, depois, do engenho em direção ao envelhecem, o engenho e o avô entraram em decadência. A fartura
colégio, vamos percebendo que o romance atua como um documen- de antigamente e o poder do avô ficaram lá atrás, num tempo e lugar
to importante para compreender a educação. É interessante notar o encantados. “E não havia nada mais triste do que um retorno a esses
papel da escola no interior do nordeste nas primeiras décadas do paraísos desfeitos.”20
século XX, um local onde se iria aprender e se civilizar. “Pode deixar o Carlos de Melo se decepciona com o que encontra, o engenho
menino sem cuidado. Aqui eles endireitam, saem feito gente” . A
19
meio abandonado, a cana pronta para moer e o avó sem aquela força
escola é o lugar onde impera a disciplina muitas vezes usando méto- para comandar seus homens e suas terras. Ao mesmo tempo, perce-
dos que hoje em dia seriam considerados desumanos. A disciplina bia que não tinha a mesma competência do avô para controlar aque-
confundia-se com a violência como um dos métodos da “educação”. las terras, não era forte como o avô, não se adequava mais àquela vida
O menino Carlinhos, por esse tempo, na sua adolescência, sentia um isolada do resto do mundo. Para desgosto do avô, passava as manhãs
grande orgulho das suas origens, do seu avô e dos nove engenhos que lendo os jornais vindo da capital, aparentando ser um desocupado,
possuía. Orgulhava-se quando o velho vinha a Itabaiana visitá-lo. indolente e preguiçoso. Zé Paulino sabia que aquele neto não daria
Sofria com a distância da família e do Engenho Santa Rosa, mas tam- continuidade ao seu trabalho. Ambos sabiam disso, e isso os mortifi-
bém travou conhecimento no colégio com os meninos da sua idade e cava.
da mesma condição social. Foi lá que conheceu a sua primeira pai-
xão. A paixão, ao mesmo tempo em que liberta o pensamento aprisi- Levara ele mais de oitenta anos a se levantar de madrugada, a
andar de serviço em serviço, a dormir pouco, a romper secas
ona o coração. Sentia-se preso por não poder ver sempre Maria Luí-
inclementes e cheias medonhas, para que aquele seu neto pudes-
sa, por não poder estar sempre no engenho. Não aguentando mais a
se estar ali, satisfeito da vida. (Rego; 1976: 121)
vida no colégio, Carlinhos foge de volta para o seu paraíso, o Enge-
nho Santa Rosa. Com a morte do avô, Carlos de Melo herda a propriedade da
Mas é nessa fase que o romancista apreende o contexto das sua família e como era de se esperar não consegue administrá-la a
relações econômicas do nordeste açucareiro, onde a decadência dos contento. Os problemas da falta de habilidade e de gerenciamento
engenhos é o cenário mais triste da série de romances do Ciclo da redundam no descontrole das finanças e suas consequências que
Cana de Açúcar. Em 1933, surge seu terceiro romance, Bangüê. Car- levam o jovem advogado sem banca a ter que vender o engenho para
los de Melo cresce, estuda na Faculdade de Direito do Recife, traço o seu tio Juca. Em todo esse processo de fracasso como administra-
que parece autobiográfico de Zé Lins. Carlos conhece lugares dife- dor Carlos de Melo demonstra ser um homem pouco afeito as coisas
rentes, convive com outros homens, mas acaba voltando para o Enge- da terra, sem tato para comandar os homens, sem ser da mesma
nho Santa Rosa, como se o lugar fosse parte da sua humanidade. estirpe do avô, se decepciona com a vida do engenho. Do encanta-
Porém, nessa volta ele não vê mais a grandiosidade do Santa Rosa, os

REGO, José Lins. Bangüê. Rio de Janeiro. J. Olympio, 1976, p. 4.


20
REGO, José Lins. Doidinho. Rio de Janeiro. J. Olympio, 1980, p. 3
19

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

mento para a realidade, Carlinhos/ Carlos percebe que a vida do tra- mais desigualdades nas relações estabelecidas na cidade do que as
balho é dura para um jovem que freqüentou a escola, se formou e que eram estabelecidas no engenho, confirmando a observação ini-
agiu como qualquer homem da classe que detinha o poder econômi- cial de que nesses romances a perspectiva narrativa assume e valida
co, com um enorme desprezo pelo outro. No romance, a ênfase dada uma posição senhorial dos narradores de José Lins do Rego. A idéia
à decadência do engenho contrasta com a relação de posse sobre as de que nos engenhos o trabalhador tinha uma assistência melhor,
mulheres, que por serem empregadas e pobres, geravam filhos bas- seria melhor bem tratado, no fundo é a justificativa ficcional das
tardos. Em Banguê, José Lins do Rego mostra a vida dos trabalhado- relações de desigualdade entre classes. As relações entre patrão e
res de uma forma menos idealizada do que em Menino de Engenho. empregado em uma cidade grande para o autor era uma relação mais
desumana do que a dos engenhos. Por isso, as dores de Ricardo como
Tinham filhos que perdiam com a mesma indiferença com que alugado seriam menores que as do sofrimento como trabalhador
viam morrer um pinto de sua ninhada. Se o ano fosse bom de algo- livre na cidade grande. Ele nos fala que até mesmo o grito do coronel
dão faziam mais roupas e bebiam mais nas festas, inventando Zé Paulino era diferente, pois não tinha a intenção de humilhar e sim
novenas para se estragarem no caipira. Não sabiam nunca o que de orientar, conduzir seus trabalhadores como se fosse um grande
era um mealheiro, um tostão guardado. (Rego; 1976: 69) pai. Em nota à primeira edição de Usina, José Lins explica que Ricar-
do mesmo sendo de uma classe social diferente da de Carlos de Melo
Bangüê é o romance da decadência do engenho, do velho coro- se assemelham em muitas coisas. Os dois fogem e fracassam. Os dois
nel Zé Paulino e do próprio narrador Carlos de Melo. A obra mostra estão intimamente ligados, pois viveram no mesmo ambiente. Eram
como os ventos trazidos pela modernidade desestruturaram essas frutos dos engenhos de cana-de-açúcar.
relações patriarcais, como as usinas estavam paulatinamente aca-
bando com os bangüês, engolindo tudo com suas enormes forna- Pode ser que se pareçam. Viveram tão juntos um do outro, foram
lhas, comprando as terras e tratando trabalhadores pior do que os tão íntimos na infância, tão pegados (muitos Carlos beberam do
senhores de engenho. Carlos de Melo fracassa como herdeiro, como mesmo leite materno dos Ricardos) que não seria de se espantar
advogado e como homem, também não consegue viver a paixão com que Ricardo e Carlinhos se assemelhassem. Pelo contrário. (Re-
a prima Maria Alice. go; 1936: nota à 1 edição).
O moleque Ricardo, romance publicado em 1935, é um dos
romances que adquire um tom mais politizado na obra de José Lins Em Usina, romance publicado em 1936, o último do chamado
do Rego. Ricardo era considerado um dos moleques da bagaceira, ciclo da cana-de-açúcar, mostra a volta de Ricardo para o engenho
que viviam na promiscuidade do engenho, vendo sua mãe muitas depois de oito anos de ausência. Também é nesse romance que nos é
vezes recebendo favores em troca do corpo, numa espécie mais bran- mostrado o fim dos engenhos e o apogeu das usinas. Juca, filho do
da de prostituição. Ricardo se destaca dos outros companheiros e sai coronel Zé Paulino não consegue administrar os negócios e acaba
à procura de uma nova vida, não quer ser visto como um alugado, não perdendo o engenho para a Usina São Felix. O Santa Rosa termina
quer ir para o eito como os outros homens. Aos 16 anos Ricardo foge um ciclo de produção artesanal, sua forma de produção familiar dá
de casa e vai viver na cidade do Recife. Deixou para trás sua casa, a lugar ao capital estrangeiro que traz as máquinas e o progresso. Para
mãe e o irmão mais novo. Nesse romance, o autor vai fazer uma ana- o narrador, a usina não se apiedará dos cabras como faziam os senho-
lise sobre as relações de trabalho no engenho e na cidade grande. Vê res. A vida passará a ser mais dura, especialmente para os emprega-

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

dos da usina. O Santa Rosa se transforma e perde a sua identidade, RELIGIÃO, MITOLOGIA E SEXUALIDADE: UM ESTUDO
um mundo formado de relações senhoriais, de compadrio se acaba e SOBRE A HOMOSSEXUALIDADE NO CONTO DE MACHADO
dá lugar às relações burocráticas, onde os trabalhadores seriam DE ASSIS21
números. Os patrões não conheceriam suas histórias, não teriam as Brenda Kílvia Cândida RODRIGUES22
sinhazinhas para se penalizarem da sua situação.

O
Fogo Morto, lançado em 1943, sete anos depois da publicação Homossexualismo foi e ainda é um tema bastante polêmi-
de Usina, representa uma síntese dos romances anteriores. Mas
co a ser discutido seja por questões religiosas ou por ques-
como se trata da obra mais madura de José Lins do Rego, que elenca
tões sociais. Este é um “fenômeno” bastante antigo, sendo
todos os elementos da complexidade da vida e morte dos engenhos, é
talvez uma prática até pré-histórica, como se ver em algumas pintu-
ela, em si, objeto de uma análise própria, mais profunda e menos
panorâmica que esta que realizamos. ras rupestres encontradas em cavernas. Temos conhecimento desta
prática também em algumas civilizações antigas como a Romana, a
Hebraica, a Egípcia e entre os Assírios, e todas posuíam suas formas
de penalizar os praticantes do homossexualismo.
Referências
Afinal, o que quer dizer Homossexual? Segundo o Aurelio,
“Homossexual: Diz-se de, ou individuo que pratica o ato sexual com
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do nordeste e
outras artes. Recife: FJN, Ed. Massangana; São Paulo: Cortez, 1999. pessoas do mesmo sexo.” (HOLLANDA; 1993: 289). Alguns têm a
CASTELLO, José Aderaldo. A literatura Brasileira: Origens e Unidade homossexualidade como “vontade de Deus” pois, os indivíduos já
(1500-1960). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1999. nascem com este desejo por outra pessoa do mesmo sexo, já para
COUTINHO, Afrânio. José Lins do Rego. Rio de Janeiro: Civilização Brasi- outros, o homossexualismo é ocasionado por algum distúrbio psico-
leira, 1991 (coleção fortuna crítica, v. 7). lógico, enfim, várias são as “explicações” para as atitudes homosse-
COUTINHO, Edilberto. O romance do açúcar. Rio de Janeiro: J. Olympio, xuais. Temos por finalidade, neste trabalho, o estudo deste compor-
1980. tamento Homossexual baseado no conto “Pílades e Orestes”, de
FAUSTO, Boris. História Concisa do Brasil. São Paulo: EDUDP, 2009. Machado de Assis, através da visão de algumas religiões como a Reli-
FREYRE, Gilberto. Casa grande e senzala: formação da família brasileira gião Católica, baseada na Biblia Sagrada, e na Doutrina Espírita.
sob o regime da economia patriarcal/ apresentação de Fernando Henrique Diante mão é necessário saber que este trabalho não visa fazer alusão
Cardoso. São Paulo: Global, 2006.
às Religiões como certas ou erradas, estas serão usadas apenas como
GONÇALVES, Regina Célia. Guerras e açúcares: Política e economia na
Capitânia da Parayba, 1585-1630. Bauru, São Paulo: Edusc, 2007. instumento de pesquisa para se entender o que significa o Homosse-
REGO, José Lins do. Bangüê. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1976.
xualismo, compreendê-lo diante de nossas crenças e assim assimilar
______. Doidinho. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1980.
se esta é ou não uma prática “pecadora”.
______. Fogo Morto. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1980.
As citações oriundas de sites serão descritas apenas com o nome do autor e da
21

______. Menino de engenho. Rio de Janeiro: J. Olympio, 2009.


página, ficando a referência completa no final deste trabalho.
______. O moleque Ricardo. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1978. 22
Graduanda do Curso de Letras da Universidade Federal de Campina Grande –
______. Usina. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1936. UFCG/ CFP

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

A maioria das atitudes católicas são influenciadas pelo Livro filhas, sem tomar pela mão o miserável e o indigente. 50. Torna-
Sagrado dos católicos e pelas leis Romanas que nos foram impostas. ram-se arrogantes e, sob os meus olhos, se entregaram a abomi-
nação; por isso eu as fiz desaparecer, como viste. (EZEQUIEL, 16:
Temos na Biblia alguns livros que remetem à questão Homossexual e
49, 50. p. 1142).
à punição a quem praticar tal atitude, em sua maioria, punições de
morte, como é o caso do livro Levítico, Coríntios 1ª carta, Romanos,
Outra passagem bíblica que remete muitas controvérsias é a 1ª
Genesis e Ezequiel; não são passagens longas, mas, curtas passagens
carta de Corintios:
que enfatizam muito bem essa realidade. Segundo Levítico: “22. Não
te deitarás com um homem, como se fosse mulher: isso é uma abo-
9. [...] Não vos enganeis: nem os impuros, nem os idólatras, nem
minação.” (LEVITICO 18: 22, p. 162). E ainda: “13. Se um homem dor- os adúlteros, nem os efeminados, nem os devassos, 10. nem os
mir com outro homem, como se fosse mulher, ambos cometerão ladrões, nem os avarentos, nem os bêbados, nem os difamadores,
uma coisa abominável. Serão punidos de morte e levarão a sua culpa. nem os assaltantes hão de possuir o Reino de Deus. 11. Ao menos
(LEVITICO 20:13, p.164). Notamos, então, muito bem esclarecido, alguns de vós têm sido isso. [...] (CORÍNTIOS, 6: 9, 10. p. 1470)
qual a punição católica para os homossexuais, a punição da morte
para os que compartilham desta opção; atitude esta chamada de Esta passagem nos leva a acreditar na salvação de todos os
abominação. As passagens que falam sobre Sodoma e Gomorra tam- tipos de pecadores, inclusive os efeminados, que significa: “Que ou
bém levam a entender que as cidades foram destruídas devido as quem tem aparência e/ou hábitos de mulher” (AURELIO, 1993, p.
práticas homossexuais, como visto em Genesis e Ezequiel. 197), ou seja, homossexuais. Desse modo entendemos que pelo Cato-
licismo a situação homossexual é um pecado condenado a morte.
5. E chamaram Lot: “Onde estão, disseram-lhe, os homens que
Mas, o que nos diz a Doutrina Espírita sobre este assunto? O Espiri-
entraram esta noite em tua casa? Conduze-os a nós pra que os
conheçamos” tismo trata este tema com mais compreensão, pois, nada foi explica-
[...] do de fato, cientificamente, mas os espíritas compreendem este
9. E, empurrando Lot com violência, avançaram para quebrar a assunto de acordo com a reencarnação de cada indidvíduo. Eles nos
porta. 10. Mas os dois (viajantes) estenderam a mão e, tomando informam que os espíritos não têm sexo, eles podem reencarnar ora
Lot para dentro de casa, fecharam de novo a porta. (GÊNESE, 19: como homem, ora como mulher, isso dependerá bastante da neces-
5, 9, 10. p. 64) sidade de luz do espírito, ou seja, da necessidade de progresso do
espírito até se tornar um espírito puro.
Após a fuga de Lot e sua família, a cidade foi destruída por uma
chuva de enxofre vinda do céu e exterminou os homens, as planícies A homossexualidade, também hoje chamada transexualidade,
e todos os animais que lá habitavam. Em Ezequiel, ainda sobre a des- em alguns círculos de ciência, definindo-se, no conjunto de suas
truição de Sodoma, percebemos a razão que o Senhor teve para a características, por tendência da criatura para a comunhão afeti-
exterminação da cidade, uma delas é, novamente, a abominação: va com uma outra criatura do mesmo sexo, não encontra explica-
ção fundamental nos estudos psicológicos que tratam do assunto
49. O crime da tua irmã Sodoma era este: opulência, glutoneria, em bases materialistas, mas é perfeitamente compreensível, à luz
indolência, ociosidade; eis como vivia ela, assim como suas da reencarnação. (XAVIER/ EMMANUEL, p. 19)

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

É através da reencarnação que a Doutrina Espírita explica as bém no que concerne a obrigações regenerativas. O homem que
questões Homo, Trans, Hetero e Bissexuais. Em relação à Bissexuali- abusou das faculdades genésicas, arruinando a existência de
dade: outras pessoas com a destruição de uniões construtivas e lares
diversos, em muitos casos é induzido a buscar nova posição, no
A vida espiritual pura e simples se rege por afinidades eletivas renascimento físico, em corpo morfologicamente feminino,
essenciais; no entanto, através de milênios e milênios, o Espírito aprendendo, em regime de prisão, a reajustar os próprios senti-
passa por fileira imensa de reencarnações, ora em posição de mentos, e a mulher que agiu de igual modo é impulsionada à reen-
feminilidade, ora em condições de masculinidade, o que sedi- carnação em corpo morfologicamente masculino, com idênticos
menta o fenômeno da bissexualidade, mais ou menos pronunci- fins. (XAVIER/ EMMANUEL, p. 20).
ado, em quase todas as criaturas. (XAVIER/ EMMANUEL, p. 20).
Após essa pequena explanação entre o que é ou não pecado
De acordo com esta doutrina o homem nasce homossexual, relacionado ao Homossexualismo, dividido em duas visões: a Católi-
sendo assim não o faz por maldade, então não é merecedor de puni- ca e a Espírita, pudemos observar a diferença gritante entre ambas;
ção, mas, de educação, afetividade e esclarecimento, pois esta é ape- uma penaliza fortemente com a morte os homossexuais, chamando
nas uma passagem que visa melhorar o sofrimento de seu espírito: a prática de abominação; enquanto a outra compreende que esta é só
mais uma prova que algumas pessoas têm que passar para se redimir
Homens e mulheres nascem homossexuais com a destina- dos pecados cometidos contra o referido sexo em suas vidas passa-
ção específica do melhoramento espiritual, jamais sob o das. Mostrando-nos que estas pessoas não precisam de punição,
impulso do mal. Os homossexuais, homens ou mulheres, mas sim, de educação, de afetividade e esclarecimento.
assim, são criaturas em expurgo de faltas passadas, merece- Segundo Simone de Beauvoir, a homossexualidade não é uma
doras de compreensão e sobretudo esclarecimento23. escolha feita por maldade muito menos é uma perversão, mas tam-
bém mostra que algumas questões como fisiologia, sociedade, psi-
Para esclarecimento, vemos que diferentemente do Catolicis- cologia, não explicam a escolha, apenas ajudam a entedê-la:
mo, o Espiritismo não condena a morte os homossexuais, ela com-
preende que esta fase seja uma transição para melhoramento de suas Na realidade, a homossexualidade não é nem uma perversão
faltas; assim o homem que muito penalizou uma mulher, por exem- deliberada nem uma maldição fatal. É uma atitude escolhida em
plo, poderá vir em um corpo feminino e vice-versa: situação, isto é, a um tempo motivada e livremente adotada.
Nenhum dos fatores que o sujeito assume com essa escolha —
dados fisiológicos, história psicológica, circunstâncias sociais —
Obviamente compreensível, em vista do exposto, que o Espírito
é determinante, embora todos contribuam para explicá-la.
no renascimento, entre os homens, pode tomar um corpo femini-
(BEAUVOIR; 1967: 164).
no ou masculino, não apenas atendendo-se ao imperativo de
encargos particulares em determinado setor de ação, como tam-
Ela explica também o motivo de muitos casais homossexuais
não se assumirem diante de todos: “Se tais amores são por vezes tem-
EURIPEDES KUHL, Capítulo do livro Sexo: Sublime Tesouro.
23
pestuosos é também porque estão geralmente mais ameaçados do
(Referencia completa no final.) que os amores heterossexuais. São condenados pela sociedade, con-

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

seguem mal integrar-se nela.” (SIMONE DE BEAUVOIR, 1967, p. No fim da história Quintanilha que serve de padrinho para o
161). É justamente por esse medo da aceitação ou não aceitação da casamento de Gonçalves e Camila e de padrinho tambem para seus
sociedade que muitas pessoas reprimem seus desejos, como é o caso dois filhos. Já que Gonçalves foi “obrigado” a casar com a moça devi-
das personagens do conto de Machado de Assis, Quintanilha e Gon- do um testamento de Quintanilha, em que passava tudo que tinha a
çalves. O conto retrata a amizade das duas personagens com um sua prima com a condição que seu casasse com o seu melhor amigo,
suave toque homossexual. Baseada na história da Mitologia Grega percebendo que a moça havia ficado feliz com o casamento com Gon-
de Pílades e Orestes; Orestes conhece Pílades ainda criança, cres- çalves e com o dinherio da herança, Quintanilha achou melhor refa-
cem juntos e tornam-se grandes amigos, quase irmãos. Pílades ajuda zer, em segredo, seu testamento deixando tudo apenas para seu
Orestes a tomar quase todas as decisões de sua vida. Assim como melhor amigo, Gonçalves. Depois de cumprida sua vontade, Quin-
Pílades e Orestes, as personagens do conto Machadiano eram ami- tanilha morre atingido por um tiro, que ninguém sabe de onde veio e
gos íntimos, moravam juntos, passeavam sempre os dois juntos e nem quem fez aquele disparo a quem ele chamou de “bala revoltosa”.
iam ao teatro... Quintanilha estava sempre a fazer os gostos de seu Lendo essa pequena história e voltando para o a história mitó-
logica de Pílades e Orestes, podemos perceber a força da amizade
amigo Gonçalves; há quem os chamassem de casal: “A união dos
entre eles, um elo que seguiu Quintanilha até a sua morte, um tipo
dous era tal que uma senhora chamava-lhes os 'casadinhos de fres-
puro de Amor; e se voltarmos a questão da homossexualidade abor-
co', e um letrado, Pílades e Orestes.” (ASSIS, p. 05). Quintanilha era o
dada no começo deste trabalho a partir das religiões, das crenças e
que se mostrava sempre bastante entusiasmado, sempre preocupa-
das bases teóricas, percebemos do que é capaz o esforço humano.
do em lhe atender e lhe ajudar, já Gonçalves era mais retraído, era
Gonçalves pode ter reprimido seu desejo pelo amigo, e, para não
quem sempre o ajudava a tomar as decisões importantes da vida do decepcioná-lo fez a vontade de seu testamento, casando-se.
amigo. Passado algum tempo Quintanilha percebe que é apaixona- De fato, ainda no século XXI muitos homossexuais sentem-se
do por sua prima segunda, Camila, moçinha na base dos vinte anos, reprimidos devido a repressão religiosa e social que ainda sofrem,
educada e bonita. Descobriu que amava e era amado, começando devido estes não admitirem a opção como normal, mas, sabemos
assim um triângulo amoroso. Aí que reparamos a situação afetiva que todo ser humano deve agir de acordo com o que lhe faz sentir
que Gonçalves nutria pelo seu amigo. realizado. Entendendo sempre que Deus odeia os pecados, mas ama
os pecadores. Todos os seres humanos são filhos de Deus, indepen-
Quintanilha descobriu um dia de manhã que sonhara com ela a dente de cor, raça, costume ou opção sexual; parafraseando Santo
noite toda, e à noite que pensara nela todo dia. E concluiu da des- Agostinho: “Conhece-te, aceita-te, supera-te”.
coberta que a amava e era amado. [...] Quando menos, quis dizê-
lo ao amigo Gonçalves e correu ao escritório deste [...] Um dia foi
jantar com o amigo, e, depois de muitas hesitações, disse-lhe
tudo; amava a prima e era amado.
[...]
- Você aprova, Gonçalves?
Gonçalves empalideceu, - ou, pelo menos, ficou sério; nele a seri-
edade confundia-se com a palidez. Mas, não; verdadeiramente
ficou pálido. (ASSIS, p. 08)

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

Referências LITERATURA INFANTIL: CONCEPÇÕES E PERSPECTIVAS


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http://www.dominiopublico.com.br e proveniente da Biblioteca Virtual Abraão Vitoriano de SOUSA24
do Estudante Brasileiro http://www.bibvirt.futuro.usp.br
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: A experiência vivida. Tradução Introdução

N
de Sergio Milliet. 2ª Ed. São Paulo: Editora Difusão Européia do Livro,
1967. o advento da pós-modernidade, na chamada “era da infor-
BIBLIA, Português. Biblia Sagrada. 113ª ed. São Paulo: Editora Ave-Maria mação”, a aquisição da leitura e escrita se configura como
Ltda, 1997. um dos eixos fundamentais para emancipação do indiví-
DONHA, João Alberto Vendrani. Artigos Espíritas: Citações sobre o duo na sociedade.
homossexualismo. Disponível em Neste cenário, a Literatura Infantil representa um importante
http://www.cele.org.br/homossexualismo.html
recurso de aprendizagem e humanização, por acoplar além do domí-
FERNANDES, Larissa. FERNANDES, Ivis (org). Aconselhamento Bíblico.
nio dos códigos e linguagens, a vivência do encanto, da imaginação e
Disponível em
a construção da criticidade.
http://www.conselheirobiblico.com/index.php?option=com_content&vi
No entanto, boa parte das instituições escolares de educação
ew=article&id=49:homossexualismo&catid=20:conselhos-
infantil e fundamental I, atribui à obra literária um caráter eminen-
biblicos&Itemid=95
temente didático: ora pautado em atividades de alfabetização e, nou-
FRANCHINI, A. S. – SEGANFREDO, Carmen. (org). As 100 melhores
histórias da mitologia: Deuses, heróis, monstros e guerras da tradição
tros momentos, na pura análise gramatical e ortográfica do texto.
Greco-romana. 9ª Ed. Porto Alegre: L&PM, 2007. Torna-se oportuno questionar: o que de fato constitui a litera-
KUHL, Eurípedes. A Homossexualidade e o Espiritismo. Disponível tura para crianças? Quais as atribuições da escola e do professor na
em:http://www.espirito.org.br/portal/artigos/diversos/sexualidade/a- abordagem com textos literários? Estas indagações motivaram a
homosexualidade.html escolha do tema, com o propósito de discutir o trabalho com a Litera-
MATOS, Alderi Souza de. A Homossexualidade no Ocidente: uma pers- tura Infantil nas séries iniciais, apresentado suas principais concep-
pectiva histórica. ções e perspectivas para o ensino de leitura.
Disponível em:
http://www.monergismo.com/textos/homossexualismo/homo_alderi.ht Resgate Histórico
m
XAVIER, Francisco Candido. Vida e Sexo: Ditado pelo espírito Emmanu- Desde os primórdios, o ser humano sentia uma necessidade
el. Disponível em http://www.espiritismogi.com.br/livrosd.htm natural em expressar seus pensamentos por meio de desenhos, tra-
ços ou símbolos. Com base nisso, surgiram as primeiras narrativas

Graduando em Letras pela Universidade Federal de Campina Grande


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– UFCG/ CFP. abraaovitoriano@hotmail.com

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

orais (ligadas à tradição popular) e, posteriormente, a compreensão por parte do adulto, que mantém sobre os pequenos, um jugo
da arte literária. A literatura, de modo geral, difundiu-se como um inquestionável, que cresce à medida em que esses são isolados do
olhar interior do artista diante do mundo, modificando-se de acordo processo de produção.
com os interesses emergentes de cada época.
Somente a partir do século XVIII, na plena Idade Moderna, Dentro desse panorama, a literatura infantil acompanha a
tem gênese a Literatura Infantil, quando em 1767, Charles Perrault “ótica” do momento, no intuito de educar moralmente a criança,
publicou os famosos Contos da Mamãe Gansa. Aparece, então, uma ensinando hábitos e valores para a construção de um cidadão hábil a
literatura preocupada com a formação da criança, impulsionada conviver no meio social. Instruir, disciplinar, monitorar, punir – as
pelo declínio do feudalismo e pela nova estrutura unifamiliar bur- palavras de ordem. A escola tinha como encargo preparar a criança
guesa, assentada na privacidade e bem estar dos seus membros. (Zil- para o convívio com os adultos. Não é de se admirar que as primeiras
berman, 1998). obras são de autoria de pedagogos e professores, um estilo doutriná-
Nesse contexto, os estudos da psicologia da aprendizagem e da rio e conservador; daí se estende a crítica, se realmente existiu a “lite-
pedagogia apontavam uma nova concepção: a infância. Entre os ratura” como fenômeno de fruição e transcendência que ela repre-
estudiosos da época destacou-se Jean Jacques Rousseau, revolucio- senta.
nário por afirmar que: Um considerável avanço sobreveio no início do século XX, com
as abordagens da psicologia experimental, cujo enfoque versava
A infância não era apenas uma via de acesso, um período de pre- sobre os estágios do desenvolvimento infantil. Discussões impor-
paração para a vida adulta, mas tinha valor em si mesma. (...) tantes, que contribuíram para caracterizar esse público, listaram
Defendia uma educação não orientada pelos adultos (...) ressal- suas capacidades e necessidades, corroborando para uma nova pers-
tava que a criança deveria aprender por meio da experiência, de pectiva da literatura para crianças, passando a se incomodar com o
atividades práticas, da observação, da livre movimentação, de diálogo adequação entre o autor e o leitor. (Coelho, 2000)
formas diferentes de contato com a realidade. (Apud Oliveira, No mesmo século, nasce a literatura infantil-juvenil brasileira,
2008, p. 63)
destacando autores consagrados, como Olavo Bilac (Contos pátrios,
1904); Coelho Neto (Através do Brasil, 1910) e os volumes de Montei-
Embora a criança tenha sido concebida como indivíduo em
ro Lobato. Mas grande parte das publicações se constituía de tradu-
pleno exercício de maturação e aprendizagem, também necessitava
ções de clássicos europeus e obras de apelo comercial. Na produção
de uma “atenção especial” – era um ser inocente e frágil -, logo, a
poética ainda prevalecia à intenção didática. Segundo Nelly Novaes
noção de infância restringiu-se “ao zelo” e transmissão de normas e
Coelho (2000, p. 204) a poesia infantil brasileira “surge comprometi-
condutas por parte dos adultos. Zilberman (1998, p.16) discorre a
da com a tarefa educativa da escola, no sentido de contribuir para
respeito:
formar no aluno o futuro cidadão e o indivíduo de bons sentimen-
A infância corporifica, a partir de então, dois sonhos do adulto.
tos.”
Primeiro, encarna o ideal da permanência do primitivo, pois a Isso justifica a inspiração romântica impressa nos poemas, os
criança é o bom selvagem, cuja naturalidade é preciso conservar excessos na linguagem: no uso dos diminutivos, nos clichês poéti-
enquanto o ser humano atravessa o período infantil. (...) Em cos. Para mais fácil absorção: a recitação obrigatória, que exigia do
segundo lugar, possibilita a expansão do desejo de superioridade aluno memorização, rigor no ritmo e na pronúncia.

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

Por este e outros motivos já elencados a literatura para infantil, A Leitura: Interpretação do Mundo
durante muitas décadas, foi designada como um gênero literário
menor, caracterizado pelos fins utilitário-pedagógico e moralizan- A leitura constitui uma competência essencial para o desen-
te. volvimento do sujeito em diferentes instâncias: a interpretação de
De certo, o auge da literatura infantil ocorreu na segunda meta- dados e notícias, a elaboração do vocabulário, a construção de textos
de do século XX, especificamente na década de 70. Simpósios, semi- diversos, enfim, envolve o convívio social.
nários e congressos se encarregaram de estudar e debater acerca das De acordo com Regina Zilberman: “é a posse dos códigos de
carências e defasagens do tema, cujo propósito elucidava a leitura e a leitura que muda o status da criança e integra-a num universo maior
literatura como um agente de formação da mentalidade, capaz de de signos, o que nem a simples audição, nem o deciframento das
contribuir para o desenvolvimento do indivíduo em todos os seus imagens visuais permitem.” ( p. 65)
sentidos. Expõe Coelho: A importância mencionada não enfatiza a mecânica decodifi-
cação, simplesmente juntar sílabas e formar palavras. Defende-se a
A literatura infantil é, antes de tudo, literatura: ou melhor, é arte: leitura numa visão ampla: desenvolvimento da cognição, competên-
fenômeno da criatividade que representa o mundo, o homem, a cia linguística e argumentativa, e, sobretudo, a consciência crítica e
vida, através da palavra. Funde os sonhos e a vida prática, o imagi- emancipação social. Ler significa interpretar, comparar, apreender,
nário e o real, os ideais e sua possível/impossível realização... estabelecer relações efetivas com a cultura e com a sociedade. (Frei-
(Coelho, 2000, p. 27) re, 1994)

Em virtude disso, transcorreu um significativo progresso no Do trabalho com o texto literário


setor editorial, e a escola começa a se preocupar pelo trabalho com a
literatura infantil. Notavelmente, programas e campanhas do O espaço escolar se depara cotidianamente com as dificulda-
governo contribuíram para difundir a leitura e a escrita, viabilizando des relacionadas à aprendizagem dos alunos, dentre estas, a defi-
coleções e volumes às instituições de ensino do país. ciência da leitura traduz um dos mais graves problemas. Este proble-
ma tem relação direta como a forma como as obras literárias são abor-
O legado de toda essa mobilização (década de 70) sublinha
dadas na escola. Não é cena rara deparar-se com professores que con-
além da produção e consumo, uma vez que colocou em pauta a estru-
ferem ao texto uma função simplesmente pedagógica, com a utiliza-
tura interna do livro infantil, discutindo sobre os enredos, o lúdico,
ção de exercícios escritos e convencionais, a citar a cópia, o estudo e
os personagens e a representação da criança no texto, com a comuni- interpretação textual e as redações temáticas. Isso tende a influenci-
cação entre esta e o autor. Atentando para esses aspectos, desdobra- ar a aprendizagem do aluno, gerando o desinteresse pela leitura e
se a literatura infantil contemporânea que “visa alertar ou transfor- literatura, visto que estas não permitem o desenvolvimento de sua
mar a consciência crítica do seu leitor/ receptor.” (Coelho, p. 29) autonomia e criatividade.
Assim, vêm sendo publicadas obras infantis em diversas linguagens Ainda nesta problemática, uma situação habitual na sala de
e formatos, empregando o humor, a narrativa; tentando acompa- aula: a prioridade do texto em prosa em detrimento da poesia. O que
nhar as exigências do leitor/ criança, dono de outro perfil: “questio- se percebe nessa “lógica” é a escolha por um formato convencional,
nador” e com acesso deliberado às mídias da informação. atribuindo-se um valor erudito e de eloqüência, primordial como

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pontuais leituras para o aperfeiçoamento vocabular dos educandos. tério da Educação, mas falta um longo trajeto para se assegurar o ato
A poesia, quando aludida, ora dissemina comportamentos e valores de ler e produzir textos como um atributo de consciência crítica e
(bons hábitos, temas patrióticos), ora atêm-se ao corriqueiro (trava- social.
línguas, adivinhações). Neste sentido, os Parâmetros Curriculares Nacionais (1998),
A despeito desse trabalho com os textos na escola, salienta arrolam um dos objetivos gerais de língua portuguesa para o ensino
Helder Pinheiro (2002, p.18): fundamental I: “Compreender os textos orais e escritos com os quais
se defrontam em diferentes situações de participação social, inter-
Não podemos cair no didatismo emburrecedor e no moralismo pretando-os corretamente e inferindo as intenções de quem os pro-
que sobrepõe à qualidade estética determinados valores. É
duz.” (Brasil, 1998, p.141)
necessário muito cuidado com o material que chega ao aluno Sob esta ótica é incumbência da escola a organização e siste-
através do livro didático. Com relação aos livros de grau menor,
matização do ensino para a formação de alunos praticantes da língua
no sentido mais amplo, isto é, saber utilizar a linguagem oral e escri-
há uma tendência de privilegiar o jogo pelo jogo, deixando de
ta nas diversas situações comunicativas.
lado o sentido. O jogo cai no pueril, na pseudo-criatividade.
Para tanto, o espaço escolar precisa intercalar dois ambien-
tes/momentos: “o de estudos programados (sala de aula, bibliotecas
Em decorrência disto, o aluno vai perdendo o seu gosto pela
para pesquisa, etc.) e o de atividades livres (sala de leitura, recanto de
leitura. Dados do Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatísti-
invenções, oficina da palavra, laboratório de criatividade, espaço de
ca (Ibope) e do Instituto Pró-livro mostram que 45% da população
experimentação, etc.).” (Coelho, 200 p. 17) Em outras palavras, a esco-
não lê nenhum exemplar por ano (desses, 53% dizem simplesmente
la tem de explorar as linguagens verbais, musicais, dramáticas e plás-
“não ter interesse” e outros 42% admitem “ter dificuldade”)25. ticas, emergir a criança no universo da leitura e escrita, tendo com
Um quadro espantoso e que serve de alerta, pois enquanto os instrumentos do livro ao computador.
trabalhos de leitura e escrita se preocuparem exclusivamente com Contudo, para que esse segmento tenha rendimento, frutifi-
suporte didático-pedagógico, continuará negligenciando sua maior que, há um componente indispensável: o professor. Ele desponta
função: de alargar horizontes, de provocar sentidos, acrescentar algo como mediador, para facilitar o diálogo entre o aluno/leitor e o obje-
de útil para a vida – reside aqui a inicial motivação do aluno. to/texto, selecionando os escritos e metodologias, propiciando a
este sujeito, melhores estratégias de compreensão e uma relação
Das Pertinências da Escola e do Professor efetiva com o saber e com a cultura. No que concerne aos jogos tea-
trais, o educador deve deixar o aluno “percorrer livremente seu cami-
Muito se tem discutido acerca das imputações da escola e do nho de descobertas e permite-lhe assimilá-las, transformá-las e
docente para o ensino de leitura e literatura. Num recorte atual, tem- expressá-las com prazer e naturalidade”. (REVERBEL, 1997, p. 20)
se intensificado alguns programas e propostas, sobretudo do Minis- Comungando dessa idéia a autora Nelly Novaes Coelho apre-
senta as três principais direções do trabalho docente, entre estas: “da
leitura (como leitor atento), da realidade social que o cerca (como
cidadão consciente da 'geléia geral' dominante e de suas possíveis
25
Revista Nova Escola, ano XXV. Nº 234. Agosto de 2010, Leitura Literária causas) e da docência (como profissional competente).” (COELHO,
(página 49). 2000, p. 18)

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

Infelizmente, não é cena rara deparar-se com profissionais da tra ingenuidade, porque à medida que a criança principia a leitura, já
educação que não têm o hábito de ler e nem se incomodam com tal está implícito um ato de aprendizagem. Até as obras mais doutriná-
situação. Consequentemente carregam o espírito de desanimo para rias, situam um vínculo com a fantasia, com o pincelar personagens.
a turma, fazendo a leitura do jeito que lhe convir, tantas vezes, des- Acondicionada por esta dialética, a literatura infantil afigura-
respeitando a pontuação e sem discutir as acepções e temáticas dos
textos. se com um fenômeno duplo: abstrato (sentimentos) e concreto (pa-
lavras), e no seio dessas relações fecunda-se a consciência infantil.
Reconhecendo o valor da contação de histórias para o desen-
volvimento da criança, exprime Fanny Abramovich: Um estreitar relações entre o mundo literário e o interior do lei-
tor/criança, abrindo simultâneo espaço para a diversão, o riso fácil e
SE O PROFESSOR FOR LER UM POEMA PARA A CLASSE – que a (re)leitura das coisas que o cerca, despertando o seu senso crítico.
o conheça bem, que tenha lido várias vezes antes, que o tenha Parafraseando Cecília Meireles (2002): o ensino de literatura
sentido, percebido, saboreado. Para que passe a emoção verdade- para crianças tem de ser uma ciência e uma arte, ao mesmo tempo.
ira, o ritmo e a cadência pedidos, que sublinhe o importante, que
faça pausas para que cada ouvinte possa cobrir – por si próprio – Considerações Finais
cada passagem, cada estrofe, cada mudança... (Fanny Abramo-
vich 1994, p. 95)
A Literatura Infantil consiste numa importante recurso para o
ensino nas séries iniciais, desde que seja compreendida como um
Por tudo isso, o ensino de literatura requer um embasamento
teórico-metodológico, uma abordagem além dos processos de estí- fenômeno da linguagem, um elemento da arte, que contribui para a
mulo-resposta. Assumir a complexidade da leitura, interpretação e formação integral do aluno.
escrita, conjectura o ponta pé inicial para se pensar num ambiente Deste modo, compete à escola e ao professor refletirem sobre
dinâmico e inovador, um convite para que o educando desenvolva suas práticas e metodologias, repensando certas concepções como a
suas competências lingüísticas e aprimore sua oralidade. supervalorização do texto escrito, a noção de leitura atrelada
somente à alfabetização e as funções atribuídas às obras literárias,
As “Funções” da Literatura Infantil ora como divertimento ou imbuída de utilidade pedagógica.
Pensar na Literatura Infantil na escola é abrir espaço para que a
A obra literária infantil tem como pano de fundo: o jogo do criança se comunique com mundo, corroborando para seu desen-
imaginário e/ou a veiculação de algum ensinamento e/ou conteúdo, volvimento na leitura e escrita interligado ao exercício da sensibili-
popularmente conhecido como a “moral da história”.
dade e criatividade. É este fabuloso processo que deve ser articulado
Posto as duas características, convém diferenciá-las: “como
nas instituições escolares com todo o comprometimento de coorde-
objeto que provoca emoção, dá prazer ou diverte, ou acima de tudo,
modifica a consciência do mundo, a literatura infantil é arte”, toda- nadores, professores, pais, alunos e comunidade em geral.
via, “como instrumento manipulado por uma intenção educativa,
ela se inscreve na área da pedagogia”. (Coelho, 2000, p. 46) Ambas as
funções integram-se e acompanham o percurso histórico das produ-
ções infantis . Afirmar que “texto só diverte e não ensina” demons-
26

Nelly Novaes Coelho (2000). A natureza da Literatura Infantil, p. 27.


26

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

Referências A IDENTIDADE FEMININA: REPRESSÃO E LIBERDADE


Tereza Dionísio TAVARES27
ABRAMOVICH, Fanny. Literatura Infantil: gostosuras e bobices. São Pau-

O
lo: Scipione, 1997 conceito de identidade ao longo do tempo tem sofrido
COELHO, Nelly Novaes. Literatura Infantil: teoria, análise, didática. São diversas transformações. Stuart Hall, em A identidade cul-
Paulo: Moderna, 2000. tural na pós-modernidade 2006, define três tipos de identi-
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. São Paulo: Cortez, 1994. dade para o sujeito, o sujeito do Iluminismo, em que o “eu” estava
LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. São Paulo: centrado na identidade do indivíduo, o sujeito sociológico, em que a
Ática, 2001. identidade era formada através da interação entre o indivíduo e o
OLIVEIRA, Zilma Ramos de. Educação Infantil: fundamentos e métodos. meio, e o sujeito pós- moderno, que é marcado pelas diferentes iden-
São Paulo: Cortez, 2008. tidades.
PINHEIRO, Hélder. Poesia na sala de aula. João Pessoa: Ideia, 2002. A partir do patriarcalismo vemos surgir uma identidade defi-
REVERBEL, Olga. Jogos Teatrais na Escola: atividades globais de expres- nida socialmente para a mulher a de ser mãe e esposa, dessa forma é
são. São Paulo: Scipione, 1996. separada a função do Homem e da Mulher. Mas as identidades ao
ZILBERMAN, Regina. A Literatura Infantil na Escola. São Paulo: Global, longo do tempo tendem a se descentralizarem. Considerando isso,
1998. este trabalho tem como objetivo fazer uma análise da construção da
identidade feminina a partir das normas sociais. Para isso serão ana-
lisados os contos “A Fuga” e “A bela e a Fera ou A Ferida Grande Dema-
is”, de Clarice Lispector, e o drama Doll's House, do norueguês Hen-
rik Ibsen.
Nos Contos lispectorianos, citados anteriormente, e em
Doll´s House, encontramos três perfis femininos. Mulheres casadas
e mães, que a partir de uma situação inusitada refletem sobre a sua
condição de esposa e de mulher, com isso partem em busca de sua
verdadeira identidade, mas o destino tomado por cada uma é dife-
rente e marca a ideologia assumida.
Em “A Fuga”, a personagem, que não recebe um nome, é casada
há doze anos, vive uma união sufocante, e em uma tarde chuvosa
decide fugir de sua rotina e consequentemente de um casamento
desgastado. Após três horas fora de casa, a fugitiva redescobre o
mundo ao seu redor e a liberdade, sente-se Mulher. Mas no fim do

Graduanda em Letras na Universidade Federal de Campina Grande – UFCG/


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CFP. Campus de Cajazeiras.

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

dia, quando se tranquiliza, ela retorna ao “lar”, assume sua função de Destacavam-se dois conceitos de moral: a racional e a emocio-
mulher casada e vê a liberdade partir junto com o navio. nal, a primeira era característica masculina enquanto a segunda era
No conto “A Bela e a Fera ou A Ferida Grande Demais”, surge à parte da personalidade feminina. Sendo suas decisões baseadas na
personagem Carla de Sousa e Santos casada e com três filhos, sendo afetividade, a mulher devia realizar-se com os afazeres do lar, pois
esta permitia a expressão de sua subjetividade.
uma mulher bela, sente-se segura e feliz, mas quando encontra em
uma tarde com um mendigo, aleijado de uma perna e com uma gran-
de ferida, ela se assusta, neste encontro ela reflete sobre o “mundo” Na medida em que as mulheres com um estilo moral de julga-
mento pautado por estes últimos, são excluídas da moral racional
que ela acreditava não existir, composto por pessoas ricas e pobres.
e confinadas a sua esfera doméstica, onde a subjetividade - parte
Dessa forma, ela estende esse reconhecimento para o seu casamen- integrante e inevitável da existência humana - poderia florescer,
to, percebe a sua dependência, inicialmente do pai e depois do mari- e cada indivíduo reconhecer e afirmar a sua singularidade.
do. (SORJA apud YOUNG; 1988: 19)
Comparado as personagens lispectorianas, em Doll´s House
surge Nora Helmer, mulher que abandona seu lar quando descobre a Com isto, podemos observar a presença do Sujeito do Ilumi-
não realização do milagre que uniria o casal. No início de seu matri- nismo que considerando o indivíduo estável, separava os papéis de
mônio com o advogado Torval Helmer, ele adoece. Com a saúde frá- gênero.
gil, a única salvação seria viajar para à Itália, para tanto Nora falsifica
a assinatura de seu pai, que estava doente, e consegue o dinheiro atra- O sujeito do Iluminismo estava baseado numa concepção de
vés de um empréstimo com um usurário. Após oito anos de casa- pessoa humana como um indivíduo totalmente centrado, unifi-
mento, a verdade é descoberta, Torvald hostiliza a esposa e o tão cado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação,
cujo “centro” consistia num núcleo interior que emergia pela
sonhado milagre que se realizaria quando o marido guiado pelo
primeira vez quando sujeito nascia e com ele se desenvolvia...
amor para com a esposa e pelo respeito por sua atitude assumiria a (HALL; 2006: 11).
culpa pelo ato ilícito. Decepcionada, Nora deixa para trás filhos e
marido e vai em busca de si mesma. Com o passar do tempo, este modelo 'estável' pregado pela era
Na Era Vitoriana (1831-1901) surge um modelo de mulher mol- vitoriana sofre um abalo, as feministas com suas críticas mostram
dada pelo ideal de moralidade. A classe média, desejosa de partici- que a mulher está apta a assumir atividades não ligadas somente ao
pação social, adota esse ideal feminino. A mulher idealizada passa a lar, surgiram avanços na área da psicologia Social e da Antropologia,
ser frágil, sensível, submissa, bela e extremamente religiosa. Torna- dessa forma, foi provado cientificamente que o papel de “rainha” do
se a rainha do lar, uma mistura de 'anjo' e mulher, este tipo feminino lar dado à esposa era fruto da civilização e não mais de um determi-
nismo biológico.
é criado para o casamento e para a sua função de progenitora.
A instituição familiar é revalorizada, sendo o bem sagrado Considerando a identidade, Stuart Hall define O sujeito socio-
lógico que reflete a complexidade do mundo moderno, pois o indiví-
para a sociedade. O casal estável e feliz auxilia na estabilidade social. duo forma sua identidade quando entra em contato com o Outro que
O homem casado adquire status e representa sua esposa no meio lhe transmite valores, mas essa identidade não é mais estável, ela
social, enquanto ela deve zelar pela moralidade em seu lar como tam- comporta diferentes identidades, compreendendo a complexidade
bém o bom nome do marido. do indivíduo.

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O sujeito previamente vivido como tendo uma identidade unifi- mais feliz, ela desejava ser autônoma, trabalhar, descobrir-se, mas
cada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de estes desejos iam contra sua feminilidade. Ser feminina nesta con-
uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditó-
cepção significaria negar uma vida profissional, negar sua autono-
rias ou não resolvidas (HALL; 2006: 12)
mia e suas escolhas próprias, pois essas eram características mascu-
linas, dessa forma a mulher deveria dedicar-se ao lar, tornar-se mãe,
A identidade sociológica, segundo Hall produz o sujeito pós-
ser amorosa e bela, mantendo assim sua feminilidade.
moderno, marcado por diversas identidades assumidas de acordo
com as diferentes situações, há a identidade profissional, de mãe e Mas, escolhendo a feminilidade de preferência a uma penosa
de mulher. A identidade torna-se conflitante, continuamente deslo- evolução até a plena identidade, o que não se consegue pela fan-
cada. A busca da identidade feminina foi e é uma tarefa árdua, teve tasia e sim pelo domínio da realidade, essas jovens estão conde-
início com as feministas, que eram tidas como motivos de piadas, nadas a sofrer mais tarde aquela sensação difusa de tédio, falta de
consideradas mulheres infelizes e masculinizadas, mas deram o objetivos, não-existência e não-envolvimento com o mundo, a
primeiro passo para a construção da independência da mulher, ofe- que se pode chamar anomia, falta de identidade, ou simplesmen-
recendo outra função que não estava aliada a maternida- te problema sem nome. (FRIEDAM; 1971: 158)
de/matrimônio.
Betty Friedam, em The Feminine Mystique mostra a situação Com as descobertas de Friedam, a feminilidade é desmistifica-
da mulher americana na década de 50 e 60, apesar de estarem situa- da, as mulheres assumem a causa de sua doença, elas se reconhecem
das em período após as primeiras críticas feministas, as mulheres nas entrevistadas da Psicóloga. Expressar a necessidade de autoafir-
foram ideologicamente convencidas de que sua realização estava na mação significava ir contra a ordem estabelecida pela sociedade e
construção familiar, dessa forma a Mulher americana (estaduniden- observar que ser independente não as tornaria menos femininas.
se) acreditava que a felicidade estava ligada ao casamento, muitas Simone de Beauvoir, em sua obra O segundo sexo defende que:
abandonavam a universidade para se tornar a esposa socialmente
perfeita. Os especialistas em estudos femininos, psicológicos e a Ninguém nasce mulher: torna-se mulher, nenhum destino bio-
mídia divulgavam estudos que aliavam a felicidade ao casamento, as lógico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana
revistas divulgavam a figura da dona de casa feliz com um espanador assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que ela-
na mão, cuidando dos filhos e do marido. bora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que
No entanto, a realidade mostrava outro tipo de mulher: infeliz, qualificam de feminino. Somente a mediação de outrem pode
frustrada por não ter seguido uma profissão e por depender do mari- constituir um indivíduo como outro. (BEAUVOIR; 1967: 09)
do. Sua identidade não era individual, mas grupal. Com isso, surgiu
uma crise nomeada por Friedam de o problema sem nome, mulhe- Com isto, podemos compreender que a forma como a socieda-
res adoeciam, sentiam-se fracas, irritadas e melancólicas, mas de vê a mulher define seu papel, quando impuseram a maternidade e
nenhum médico ou psicólogo descobriam o que afligiam a mulher o matrimônio , a educação feminina fora moldava para a vida
“perfeita”, que tinham uma bela família e um lar confortável. doméstica, sua aprendizagem ressaltava os afazeres do lar, seu com-
A doença da mulher americana, segundo Friedam, era a crise portamento e sua maneira acentuam este seu comprometimento
de identidade, pois a identificação com a vida familiar não a tornava com a família.

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Embora a sociedade molde um modelo de mulher, é também mas exige tanto dinheiro! [...] você não acreditaria se lhe dissese
ela que favorece a descentralização da identidade feminina através quanto um homem tem de despender quando arruma uma ave como
das transformações sociais e culturais. Ao observar o outro a mulher você.” (IBSEN; 2009: 11)
se define como tal e questiona sobre o que lhe é imposto. A inteligência e a capacidade de agir por si mesmo da persona-
A mulher e o homem são criados para exercerem suas funções gem era contestada. Mas o segredo escondido por Nora a tornava
sociais, mas surge o questionamento: Porque um não pode assumir a útil, pois salvara a vida do marido, embora sua ação seja considerada
função do outro? O papel da mulher vai além da sua função domésti- ilícita e inapropriada para uma mulher casada. A partir da ação come-
ca, para atuar profissionalmente não é necessário o afastamento do tida por Nora, a aquisição de um empréstimo, ela passa a trabalhar e
lar, como muitos conservadores defendiam, e a independência femi- a economizar dos seus gasto pessoais para pagar a dívida adquirida,
nina não significa a perda dos traços femininos. este ato inicia a transformação da personagem, pois ela não se vê
como boneca, mas sim como um ser humano independente e capaz.
Libertar a mulher é recusar encerrá-la nas relações que mantém
com o homem, mas não as negar; ainda que ela se ponha pra si, Nora – E também tinha outros ganhos no inverno por sorte, con-
não deixará de existir de existir também para ele [...] Ao contrário, segui um monte de textos para copiar. Então recolhia-me e
é quando for abolida a escravidão de uma metade da humanidade escrevia até alta noite. Oh! às vezes sentia-me tão cansada ! No
e todos os sistemas de hipocrisia que implica, que a “secção” da entanto era tão divertido trabalhar para ganhar dinheiro! sen-
humanidade revelará sua significação autentica e que o casal tia–me quase um homem. (IBSEN; 2009: 24)
humano encontrara sua forma verdadeira. (p. 500)
Dessa forma, podemos perceber que a personagem, apesar de
Na atualidade a mulher adquiriu independência, coloca sua identificar-se como esposa e mãe, desejava assumir uma profissão
felicidade como o primeiro item de seus objetivos, mas o que ocorre que a tornasse independente. O sentir-se como homem representa a
quando a mulher, através dos discursos do outro, coloca a felicidade insatisfação causada pela divisão dos papeis estabelecidos naquela
grupal antes da sua? Certamente padeceriam dos mesmos sintomas época. Por isso, Nora apresenta-se como transgressora, age para con-
sofridos por mulheres de séculos anteriores. seguir o dinheiro que salva a vida do Marido, tem uma profissão,
mesmo que temporária. Com estas ações, ela assume não só o seu
Construção e desconstrução da identidade feminina papel na administração do lar, mas também uma atividade conside-
rada masculina.
Em Doll´s House, lançada em 1879, a personagem principal Observamos que, em “A Fuga”, a personagem, semelhante à
Nora é a típica representante da mulher vitoriana, dedicada ao lar e Nora, precisa de uma autoafirmação, a busca da liberdade é a própria
ao marido, sente-se feliz. Para Torvald Helmer, a esposa é uma descoberta da identidade. Em Doll´s House, Nora tem motivos ofe-
mulher frívola e dependente dos seus cuidados. Dessa forma, ele recidos pelo marido para abandonar o lar, descobre que seu casa-
considera que Nora não possui consciência de como ganhar e man- mento é uma farsa e que é apenas uma boneca. Em “A fuga” a perso-
ter o dinheiro. Podemos perceber que esta era uma visão direcionada nagem procura diariamente à concretização do seu milagre, mas
não somente a Nora, mas as demais mulheres daquele período. “Hel- este consistia na concretização de sua fuga. Em uma tarde chuvosa,
mer não negue, minha querida Nora! [...] o estorninho e gracioso, este período do dia representa o momento de ociosidade, sendo este

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o horário propício para a revelação da frustração, pois atormentada Em “A Fuga”, quando a personagem foge, ela vaga tentando
por seus desejos, a personagem escapa do “lar". encontrar o caminho certo, este vagar é a busca de si mesmo, essa
busca causava-lhe medo, mas era bom sentir medo. “Quis sentar-se
Abre a boca e sente o ar fresco inundá-la. Por que esperou tanto num banco do jardim, porque na verdade não sentia a chuva e não se
tempo por essa renovação? Só hoje, depois de doze séculos. saíra importava com o frio. Só mesmo um pouco de medo, porque ainda
do chuveiro frio, vestira uma roupa leve, apanhara um livro. Mas não resolvera o caminho a tomar.” (LISPECTOR; 1996: 13)
hoje era diferente de todas as tardes dos dias de todos os anos. Este mesmo sentimento era compartilhado entre as entrevis-
(LISPECTOR; 1996: 25) tadas de Friedam:

O mesmo ocorre com a personagem Carla, a revelação da per- Por vezes uma mulher dizia-me que a sensação tornava-se tão
sonagem ocorre quando em uma tarde, ela encontra-se com um men- opressiva que ela saía de casa e punha-se a caminhar a esmo pelas
digo, no entanto para a personagem este período do dia não repre- ruas então as crianças contavam uma anedota e ela não ria sim-
sentava frustração, pois ela não tinha reconhecimento do que lhe plesmente porque nem a ouvira.Conversei com mulheres que
atormentava desde a infância, identificava-se com o casamento, este haviam passado anos em sofás de analistas, procurando «ajustar-
era seu eixo seguro, os três filhos e a sua beleza davam-lhe a seguran- se ao papel feminino», tentando resolver bloqueios para «sentir-
ça e um objetivo na vida. Outra identificação que não fosse a vida se realizada como esposa e mãe». Mas o olhar e o tom desespera-
conjugal não era desejado, pois fora criada para este destino, primei- do dessas vozes eram o mesmo tom e olhar de outras mulheres
que estavam certas de não ter problema algum, embora sentis-
ro dependia do pai e depois passou a depender do marido. “trouxera
sem aquele mesmo estranho desespero. (p. 22)
dinheiro porque o marido lhe dissera que nunca se deve andar sem
nenhum dinheiro. [...] mas era uma tarde de maio e o ar fresco era um
a flor aberta com o seu o perfume” (p. 64) A crise de identidade também é acentuada em Carla, após o
O clímax em Doll´s House ocorre não no período vespertino, encontro com o mendigo, ela reflete sobre sua identidade e lembra
mas à noite, pois Nora deixa sua família neste horário. Este fato mos- que desde a infância, tinha medo de se tornar dependente apenas de
tra que a noite representava para Nora a segurança quanto a sua deci- si mesma, a figura masculina surgia como o seu salva-vidas, ela se
agarrava a ele, pois fora criada para ser dependente, uma ideia dife-
são, tivera motivo para esta ação, o dia seguinte seria o primeiro dia
rente a assustava.
consigo mesma, enquanto que a personagem de A Fuga vive uma
epifania; embora seu casamento estivesse desgastado, ela não tinha
grandes motivos para deixá-lo, pois não fora diretamente hostiliza- - É que tenho medo de, de, de, de cantar muito bem...
da como Nora, ou traída, semelhante a Carla. “Helmer: Ainda não, Mas você canta muito mal, dissera-lhe o professor.
Nora, ainda não! Espere até amanhã. Nora: (pondo o sobretudo) - Também tenho medo, tenho medo também de cantar muito
Não posso passar a noite sob o teto de um estranho”. (IBSEN: 2009: bem, muito, muito mais mal ainda. Maaaaal mal demais! chora-
107) va ela e nunca mais teve mais nenhuma aula de canto.
Há o questionamento sobre a condição feminina, pois ao refle- (LISPECTOR, p. 73)
tirem sobre sua vida conjugal, as personagens se interrogam sobre
qual é a sua verdadeira identidade, se esta está ligada ao casamento, Há uma semelhança entre as figuras femininas dos contos de
então há crise de identidade. Lispector e as pacientes de Friedam, elas sofriam de um sentimento

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

comum que as torturavam, mas não admitiam a causa da opressão, Em Doll´s House, Nora também vive essa dependência do
aceitar o destino conjugal, na concepção de viver para ele, significa marido, ele controla o seu comportamento, alimentação e ações:
negar-se. Parafraseando Beauvoir, aceitar o casamento passivamen-
te acreditando que a maternidade e o tempo lhe farão realizar-se RANK Se assim é, de fato, o melhor é não dizê-la; mas a nós
nessa vida é uma ilusão. podia... Que é então que lhe apeteceria dizer diante de Helmer?
Em A Fuga a personagem não sente fome, sede, ou expressa NORA Tenho muita vontade de dizer: Caramba! (IBSEN, p. 28)
sua opinião, o marido a submete a seu bom senso, trava-lhe as ideias.
Com isto, ela questiona sobre sua condição de mulher casada, pro-
Nos três personagens observamos, o que Hall define como
curando compreender o porquê de sua submissão diante do marido. sujeito sociológico, pois elas têm suas identidades deslocadas, não
Ao refletir ela decide tornar-se livre, mas a liberdade não está no aceitam o que lhe é imposto socialmente, questionam, desejam viver
casamento, é preciso fugir para alcançá-la. suas diversas identidades, a de mãe, esposa e principalmente a de
mulher. A interação com o outro que lhe impõe regras e lhe dita o
Porque o seu marido tinha uma propriedade singular: bastava casamento, não só as convencem dessa função, mas também lhes
sua presença para que os menores movimentos de seu pensa- mostram, através do observar o outro, diferentes oportunidades, e
mento ficassem tolhidos. A princípio, isso lhe trouxera certa estas significariam invadir o espaço masculino e refazer a sua identi-
tranqüilidade, pois costumava cansar-se pensando em coisas
inúteis, apesar de divertidas. (p. 25)
dade social.
Os destinos tomados pelas personagens femininas são dife-
rentes e expressam como o social interfere ou não em suas escolhas.
Viver a sua própria identidade é o desejo desta personagem,
Nora, apesar de formada na ideologia vitoriana, mostra-se trans-
surge o contraste entre o frio é o calor, o primeiro representa o con-
gressora, desafia os valores sociais que eram impostos para uma
forto do lar que controla o desejo de liberdade, mas oprime, mostra-
mulher casada, pois abandona o papel de boneca que assumia em
lhe a insignificância de sua vida. O frio surge como o despertar para o
sua casa e escolhe uma vida real para si.
seu “eu”, como força motora de sua busca. O período diário que a
atormenta, lhe desperta para os seus fantasmas, e estes são seus dese-
jos que a deixam contrariada, pois ela compreende a sua função de NORA Já não creio nisso. Creio que antes de mais nada sou um ser
esposa, sabe que esta lhe foi imposta, deseja viver como mulher, mas humano, tanto quanto você ... ou pelo menos, devo tentar vir a sê-
o peso dos anos e o medo de ir contra as regras sociais a reprime. “Os lo. Sei que a maioria lhe dará razão, Torvald, e que essas idéias
desejos são fantasmas que diluem mal se acende a lâmpada do bom também estão impressas nos livros. Eu porém já não posso pen-
senso. Por que é que os maridos são o bom senso?” (p. 25) sar pelo que diz a maioria nem pelo que se imprime nos livros.
Carla, na infância, expressa a sua crise identitária quando pro- Preciso refletir sobre as coisas por mim mesma e tentar compre-
cura na arte entender-se melhor, entretanto o medo de conhecer-se endê-las. (IBSEN, p.98)
é maior, o cantar bem ou cantar mal, reflete este medo do sucesso ou
insucesso, cantar bem significa depender-se de si mesma, cantar Pensar por si própria era abandonar os manuais que ditavam as
mal significa não encontrar-se, e esta busca continua é dolorosa regras femininas, questionar a religião que perpetuava a sua “santa”
quando o sujeito não se conhece. Dessa forma, a personagem opta missão, negar uma literatura que as convence de sua inferioridade e
para o destino, de toda mulher: o casamento. que sua feminilidade estava no seu dever de esposa.

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

O destino tomado por Nora não é o mesmo que ocorre com as abandonada em favor de uma que torna homens e mulheres iguais
personagens Lispectorianas estudadas, pois elas fazem sua escolha socialmente.
pensando não em si, mas no que é esperado delas. Há um paralelo Libertar a mulher, nas palavras de Beauvoir, é o mesmo que
entre Nora e Carla, ambas são descritas como sendo belas, antes da aproximá-la, pois ser livre não significa ser alheio ao amor ou desejo
situação transformadora de suas vidas e idéias, elas acreditavam de união. Quando homem e mulher estiverem em igualdade, a soci-
serem felizes e a sua função de mãe /esposa lhes era agradável, esta edade será justa, pois ambos são dotados de capacidades intelectua-
situação se inverte em Nora quando o seu segredo é descoberto, e em is para decidir seu próprio destino.
Carla ocorre a partir do encontro com o mendigo. Em “A Fuga” a per- O conhecimento de nossa identidade ou de nossas diversas
sonagem, após viver o seu momento de mulher, retorna ao lar, con- identidades contrastantes ou não favorece a realização de nossos
forma-se com o seu “destino” definido socialmente. desejos, o casamento, embora na atualidade não seja aliado a opres-
são, ainda é o objetivo buscado tanto por homens quanto por mulhe-
Oh, tudo isso é mentira. Qual a verdade? Doze anos pesam como res que sejam com parceiros de sexo diferentes ou não.
quilos de chumbo e os dias se fecham em torno do corpo da gente
e apertam cada vez mais. Volto para casa. Não posso ter raiva de Referências
mim porque estou cansada. (...) “Dentro do silêncio da noite, o
navio se afasta cada vez mais. (LISPECTOR, p. 27) LISPECTOR, Clarice. Primeiro Beijo & outros contos. 12 ed. São Paulo: Áti-
ca, 1996.
Carla, do conto “A Bela e a Fera ou A Ferida Grande Demais”, HALL, Stuart, A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Tradução
interroga-se sobre quem é ela, inquieta-se por não sabê-lo, mas dá- Tomaz Tadeu da Silva. 1. ed. Rio de Janeiro: DP & A, 2006.
nos a ideia que permancerá casada, pois esta é a sua segurança, o seu BEAUVOIR, O Segundo Sexo: a experiência vivida. Tradução Sérgio Milli-
status e a afirmação de sua classe social. et. 2ª ed. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1967.
FRIEDAM, Betty. A Mística Feminina. Tradução Áurea. B. Weissenberg
Seu casamento estava findando, ele com duas amantes... ela tudo Rio de Janeiro: Vozes, 1971.
suportando porque o rompimento seria escandaloso: seu nome
SORJ, Bila. Uma Questão de Gênero. Rosa dos Tempos. Rio de janeiro, 1992.
era por demais citado nas colunas sociais. E voltaria ela a seu
IBSEN, Henrik. Casa de Bonecas. Tradução Maria Cristina Guimarães
nome de solteira? Até habituar-se ao seu nome de solteira, ia
demorar muito (p. 27) Cupertino. 4ª ed. São Paulo: Veredas, 2007.

Considerações Finais

Pretendeu-se mostrar neste trabalho como a identidade femi-


nina é construída e desconstruída através das relações sociais. Dessa
forma, foi visto que a identidade é complexa, um sujeito com um “eu”
estável é impossível. A identidade feminina, inicialmente formada
por um modelo que excluía a mulher de uma vida autônoma fora

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

LUÍSA: A MULHER E O ADULTÉRIO EM O PRIMO BASÍLIO nos moldes românticos, bastante criticada pelo autor. À medida que
Nathali Aquino e Silva28 o texto se desenvolve sabe-se, então, que a moça se torna um resulta-
do da influência do meio em que vive. Sua futilidade a levará a uma
“O adultério é a curiosidade do amor e dos prazeres ilícitos."(Plutarco) aventura num relacionamento extraconjugal.
O presente texto visa estudar os motivos que levaram Luísa a
desrespeitar sua família e cometer o adultério. Considera-se, para
Introdução
tanto, tanto os fatores internos, quanto os fatores externos à obra. Os

O
fatores internos seriam os relacionados à sua convivência matrimo-
Primo Basílio (1878), romance realista do escritor portu- nial, o seu dia-a-dia e os seus costumes como esposa, já os fatores
guês Eça de Queirós (1845-1900), provocou inquietações na externos corresponderiam à influência da sociedade no comporta-
sociedade quando publicado, pois trata de um realismo mento da mulher e formação de sua personalidade, visto a sua sub-
negativo da sociedade burguesa, marcada pela inveja e vingança. missão às regras sociais.
Este artigo, porém, não pretende se voltar a essas características soci- A divisão deste trabalho se dará em dois tópicos. O primeiro
ais, e sim ao que seria o tema principal abordado pelo livro: o adulté- tópico apresentará o perfil da mulher portuguesa adúltera no século
rio da mulher Luísa com o seu primo Basílio. XIX ante a sociedade em que vivia baseando-se na personagem Luí-
Eça procura analisar em sua obra, de maneira irônica, a vida de sa, e, por fim, o segundo tópico que mostrará o adultério desenvolvi-
uma família pequena, composta de marido/mulher e empregadas, do pelas personagens e que é apresentado na obra de Eça.
simbolizando uma hierarquia social entre classe dominante e classe Dessa forma, pretende-se através do desenvolvimento desse
dominada. Utiliza uma descrição detalhista das personagens e do trabalho, mostrar como o adultério feminino era tratado no século
espaço por onde a narrativa passeia para explicitar o cotidiano da XIX, através das Leis de Portugal e, por seguinte, como Eça aborda
família burguesa da época, com os seus costumes e valores mascara- essa temática em uma de suas mais famosas e importantes obras
dos. A revelação de uma “sociedade podre”, tendo como base de aná- realistas: O Primo Basílio (1878).
lise a família de Jorge e Luísa, corresponde, entre outros, aos compo-
nentes temáticos e estéticos do movimento realista. 1. Luísa: a portuguesa adúltera do século XIX
Em o Primo Basílio (1878) o autor tenta mostrar as regras que
uma moça burguesa lisboeta deveria seguir. No entanto, ele constrói O adultério, sobretudo no século XIX, esteve sempre muito
a personagem Luísa como provocação e quebra dessas regras impos- ligado à moral da sociedade. A preservação de um casamento era
tas pela sociedade. A obra é um exemplo do romance de combate à tida, em princípio, como regra social. O homem e a mulher deviam
burguesia tão repugnada pela escola realista. ser fiéis no casamento. No entanto, mesmo havendo essa regra para
Ao focalizar a narrativa em uma família da média burguesia ambos, o que ocorria era que a mulher adúltera possuía, tanto pelos
portuguesa, Eça apresenta Luísa, personagem com uma educação olhos da sociedade como pelos da lei, uma culpabilização maior que
a do homem infiel.
Graduanda do Curso de Licenciatura Plena em Letras da Universidade
28 A mulher no século XIX se encontrava em desvantagem ao
Federal de Campina Grande – Centro de Formação de Professores – UFCG/ homem. Isso porque não tinha direitos e sim deveres. Ela era sub-
CFP. missa afetivamente - é a mulher a representação da afetividade no

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

relacionamento - e, economicamente, pois o homem trabalhava Em um trecho do livro de Eça, Jorge marido de Luísa deixa bem
para sustentar sua família e consequentemente ter plena autoridade claro essa visão machista em relação à mulher que comete o adulté-
em sua casa e em sua esposa. rio:
Ao se casar a mulher deixava de ser livre e sua liberdade era
entregue ao seu marido. A sua submissão no casamento surge como Falo sério e sou uma fera! Se enganou o marido, sou pela morte.
obrigação de esposa segundo o Código Civil Português aonde afirma No abismo, na sala, na rua, mas que a mate. Posso lá consentir
que: - a mulher tem que prestar obediência ao marido (art. 1185º do que, num caso desses, um primo meu, uma pessoa da minha famí-
Cod. Civ.).
lia, do meu sangue, se ponha a perdoar como um lamecha! Não!
As Leis, como se trata acima, eram mais brandas para o Mata-a! É um princípio de família. Mata-a quanto antes![...].
homem, o favorecendo mesmo que cometesse o mesmo delito que a (QUEIRÓS; 2008: 48).
mulher. O adultério, por exemplo, é tratado diferentemente para
ambos os sexos. Como afirma Anna de Castro Osorio (1905):
Segundo o Código Penal Português se o homem for traído e
matar a mulher ele “será desterrado para fora da comarca por seis
O homem que cometeu o adultério [...] tem a ridicula pena de três
mêses a três annos de multa, conforme o art.º 404º. do Cód. meses”; e se apenas violentar a mulher ele “não sofrerá pena algu-
Penal. Sobre a mulher cái toda a ira, toda o selvagem ciume do ma”29 .
legislador, que defende nos maridos o direito de macho que não Portanto, principalmente pela figura de Luísa, nota-se que o
tolera o desrespeito da fêmea, chegando á ferocidade de tirar á romance realista O Primo Basílio (1878), seja a representação fiel dos
mulher adúltera os próprios bens della, que serão entregues ao deveres de conduta da mulher perante as regras sociais e leis jurídi-
marido, arbitrando-lhe uma triste mesada que será o que o capri-
cas relacionadas ao casamento e adultério que eram impostas no
cho do conselho de familia e o juiz quizerem ou entenderem. É
doutrina do § único do art. 1210º. e outros do Cod. Civil. (212-13). século XIX.

A fidelidade direcionada à mulher tinha um aspecto bem mais 2. O Primo Basílio: a traição
importante daquela que se refere ao homem. Isso é explicado porque
ela, a partir do momento em que se casa, torna-se “propriedade” do Devido à subalternidade do seu papel, à sua condição social de
marido, devendo respeitá-lo e servi-lo, sendo sempre fiel e dedicada, quase mero objeto de necessidades masculinas (a que a literatura
ao homem que mantém o lar. Ou seja, o papel da esposa é o de servir romântica mistificadoramente e até perigosamente idealizara) a
completamente à família a que pertence e, tendo só essa finalidade, mulher queirosiana está sempre, como vítima principal, no
se torna inadmissível ter um relacionamento extraconjugal. núcleo patético da intriga.
Em O Primo Basílio (1878) acontece justamente a mesma coi- Antonio José Saraiva e Óscar Lopes30
sa. A protagonista é a representação da mulher dedicada e voltada à
família, porém adúltera. Sabe-se que o adultério feminino era mui-
tas vezes visto pelo homem como um ato que merecia sangue, ou Código Penal Português. Ext 87070 (nd, 94a).
29

seja, ele ao ser traído considera a morte da mulher adúltera uma SARAIVA, Antonio José & LOPES, Oscar. História de Literatura Portuguesa.
30

forma de valorizar sua honra. 15. ed. Porto: Porto Editora s/d. p. 945.

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

Esse tópico apresentará toda a trama em torno do adultério Em um determinado momento, Jorge tem que se afastar de sua
n'O Primo Basílio (1878), através da descrição das personagens esposa e de sua casa para um serviço profissional em Alentejo, e fica
envolvidas, resumo do enredo sobre a traição e, por fim, os motivos por lá um razoável período. Nesse tempo distante de seu marido,
que levaram Luísa a cometer esse ato.
Luísa começa a receber as visitas de seu primo Basílio que tinha aca-
2.1 Personagens: Jorge, Luísa e Basílio. bado de retornar de Bordéus, Paris.
Casada há três anos, com a aproximação de seu primo e a troca
Como o foco do texto é analisar, além da postura e costumes da de algumas cartas com o mesmo, Luísa não consegue resistir e acaba
mulher portuguesa, também o adultério na obra O Primo Basílio se entregando ao jeito conquistador de Basílio. Para os encontros
(1878), as personagens que terão destaque no estudo e na apresenta-
íntimos ele aluga um quartinho para os dois, e lá, principalmente
ção serão as que participam diretamente desse ato extraconjugal.
Primeiramente Luísa, a protagonista do romance. É a esposa ela, saciam todos os seus desejos sexuais.
de Jorge, muito bonita, porém fútil, sem personalidade. Leitora assí- Em um descuido de Luísa, uma carta deles acaba nas mãos de
dua de romances folhetinescos vive longe da realidade, deixando-se sua empregada Juliana. Tendo posse desse papel, ela passa a chanta-
influenciar pela imaginação de amores surreais, impossíveis. Pela gear a adúltera Luísa que passa a fazer todo o seu serviço doméstico.
falta de caráter e personalidade, Luísa é indecisa, o que faz dela uma
personagem sem muita profundidade psicológica. Para acabar com esse sofrimento, a patroa procura de várias formas
Jorge surge como personagem que representa o marido traído. ajuda para por um ponto final nas chantagens da empregada. Procu-
É um burguês, engenheiro de minas. Homem novo e bonito. Admi- ra o amigo Sebastião e a Basílio, que viaja às pressas para a França,
rador da ordem, desde solteiro nunca se entregou à vida de boêmio, cansado de sua prima e sem o dinheiro suficiente para ajudá-la.
manteve-se sempre sério em seu casamento, embora tendo algumas
Em uma carta de Basílio que respondia ao pedido de ajuda de
vezes se aventurado em relacionamentos amorosos extraconjugais.
Um observador dos costumes, embora superficialista de suas con- Luísa, Jorge acaba descobrindo tudo que aconteceu entre eles dois.
vicções. Essa descoberta faz com que ele entre em desespero, porém acaba
Por último, Basílio. Primo de Luísa e seu namorado na adoles- perdoando Luísa pelo amor que tinha por ela e pelo estado de saúde
cência. É um homem muito egoísta e vaidoso. Tem como maior
que a mesma se encontrava devido ao esforço do trabalho que fazia
característica o jeito galanteador e conquistador que o faz vulgar,
pois passa o seu tempo se aventurando em relacionamentos amoro- quando chantageada por Juliana. Mas de nada adiantou o seu perdão
sos sem levar nada e nenhuma mulher a sério. e sua dedicação aos cuidados da esposa enferma, Luísa morre encer-
rando, assim, toda a trama desenvolvida por Eça.
2.2 Triângulo amoroso: enredo
2.3 Os motivos para o adultério
Esse romance tem como cenário a cidade de Lisboa.
Luísa e Jorge constituem um casal da média burguesia que vive
tranquilamente em sua casa. Vez ou outra, aos domingos, recebem A seguir, de maneira contextualizada, serão apresentadas as
visitas de seus amigos mais íntimos. principais razões que levaram Luísa a cometer o adultério.

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

2.3.1 Influência de Leopoldina Nas influências que levam Luísa ao adultério, além das expe-
riências contadas por Leopoldina, há também a leitura de romances
Leopoldina é amiga de infância de Luísa. Casada, escandaliza idealizadores de aventuras românticas que acabam despertando o
toda a sociedade, pois, de maneira consciente, mantém relação com interesse dela em viver um relacionamento diferente do que vive
vários amantes. Segundo Eça de Queirós (2008, p.30), ela era muito com Jorge.
indiscreta, falava muito de si, das suas sensações, da sua alcova e das
suas condutas. Mesmo sendo considerada uma personagem secun- 2.3.2 A leitura de Romances
dária na obra, a sua personalidade se torna bastante importante para
compreender o comportamento de Luísa. Eça constrói a personagem Luísa com uma educação lírica
Essa personagem representa a sensualidade e a sexualidade na muito sentimental. Esse sentimentalismo é alimentado pelas suas
obra. Essa representação é idealizada por Luísa, ou seja, sua amiga se leituras folhetinescas de linguagens românticas. Em uma carta de
torna a projeção de um desejo íntimo seu que está ligado as suas fan- Eça a Teófilo Braga, o autor d'O Primo Basílio, retrata Luísa como:
tasias sexuais fracassadas em seu casamento. Essa projeção é notada
num trecho da obra, em que o narrador expõe o pensamento do cons- a senhora sentimental, mal educada, nem espiritual (porque
ciente de Luísa para descrever a sua admiração por Leopoldina: cristianismo já o não tem, sanção moral de justiça não sabe o que
isso é) arrasada de romance, lírica, sobrexcitada no temperamen-
descrevia-lhe os seus amantes, as opiniões deles, as maneiras de to pela ociosidade e pelo mesmo fim ao casamento peninsular,
amar, os tiques, a roupa, com grandes exagerações! Aquilo era que é ordinariamente a luxúria, nervosa pela falta de exercício e
sempre picante, cochichado ao canto de um sofá, entre risinhos; disciplina moral – enfim a burguesinha da baixa.31
Luísa costumava escutar, toda interessada [...] Às vezes na sua
consciência achava Leopoldina “indecente”, mas tinha um fraco
Não se pretende discutir o gosto da leitura de romances que as
por ela; sempre admirara muito a beleza do seu corpo, que quase
mulheres possuíam na época, mas como esses livros ou folhetins
lhe inspirava uma atração física [...] quase lhe parecia uma heroí-
influenciam na alienação da mulher na sua vida, em suas atitudes e
na; e olhava-a com espanto como se consideram os que chegam
desejos. A leitura de romances é um passatempo para Luísa. Eles a
de uma viagem maravilhosa e difícil, de episódios excitantes. (p.
tornam incapaz de separar a realidade da fantasia. Essa incapacida-
31).
de leva a moça romântica e alienada ao sonho de viver os amores e
aventuras dos livros que ela lia.
A insatisfação é o motivo para o homem fantasiar. E é a busca
da realização dessas fantasias que faz o indivíduo se aventurar e Lia muitos romances; tinha uma assinatura, na Baixa, ao mês. Em
cometer, no caso de Luísa, o adultério. Os desejos sexuais reprimi- solteira, aos dezoito anos, entusiasmara-se por Walter Scott e
dos pela sociedade da época a levam a traição, caracterizando, assim,
pela Escócia; desejara então viver num daqueles castelos escoce-
os impulsos de seus instintos sexuais. Tanto Luísa quanto Leopoldi-
na cometem o adultério por não terem, com seus maridos, as emo-
ções e os prazeres que seus amantes lhes proporcionam. E são essas 31
Carta de Eça de Queirós à Teófilo Braga. Newcastle, 12 de março de 1878.
emoções que as fazem perder a dignidade e se submeter a repugna- http://pt.wikisource.org/wiki/O_Primo_Bas%C3%ADlio/Carta_a_Te
ção dessa mesma sociedade repressora. %C3%B3filo_Braga – acessado em 16/06/2010 às 10h00.

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

ses, que têm sobre as ogivas os brasões do clan, mobilados com lectualmente ligados; não é mesmo o casamento comercial –
arcas góticas e troféus de armas, forrados de largas tapeçarias, chamemos-lhe assim – em que duas fortunas ou dois nomes se
onde estão bordadas legendas heróicas, que o vento do lago agita ligam pelo interesse monetario, formando para o futuro uma só
e faz viver: e amara Ervandalo, Morton e lvanhoé, temos e graves, firma...O casamento português, é na maioria dos casos, pura e
tendo sobre o gorro a pena de águia presa ao lado pelo cardo da simplesmente uma arrumação para a mulher, o amparo, como
Escócia de esmeraldas e diamantes.[...] e os homens ideais apare- que o asílo, para a pobre invalida, incapaz de ganhar pelo traba-
ciam-lhe de gravata branca, nas ombreiras das salas de baile, com lho a subsistencia e o conforto. (OSORIO; 1905: 197-98).
um magnetismo no olhar, devorados de paixão, tendo palavras
sublimes. (QUEIRÓS, 2008 p. 24-5) Luísa segue esse caminho e se casa com Jorge. Mesmo não sen-
tindo por ele o sentimento verdadeiro, acaba com o tempo, se acos-
A projeção do homem romântico é criada em Basílio. Luísa vê
tumando com a companhia de seu marido. Seu casamento foi de
nele a imagem do homem que sempre idealizou inspirada em suas
repente, segundo Eça (2008), Luísa se casou no ar!
leituras. Ele é um personagem real, surgido de um universo fictício
Esse casamento sem amor é mais uma explicação para enten-
da imaginação da protagonista. Mas, Luísa acaba se decepcionando
der o adultério de Luísa. Ela não tendo dentro de si um sentimento
com o seu homem perfeito: Basílio se mostra um homem sem cará-
ter, de personalidade fútil se opondo ao verdadeiro homem românti- sólido por seu marido acaba sendo mais fácil buscar em outros
co. homens o verdadeiro amor tanto exaltado nos romances em que lia.
É evidente a alienação que os romances causam em Luísa. Por- E é em Basílio que a menina ingênua vê o seu príncipe encantado. Ao
tando, fica clara a real intenção que Eça teve ao enfatizar, em sua revê-lo desperta dentro de si o antigo amor de infância que tinha por
obra, o hábito de leituras romanescas que Luísa cultivava: são os seu primo e se entrega de forma inconsequente a um romance que
romances os influenciadores e modificadores da fraca personalida- jamais viveu com Jorge, pois nunca o amou de verdade.
de da mulher casada do século XIX. Mesmo não sendo o amor o motivador para o casamento, com
o passar do tempo, muitas mulheres que se submetem a esse tipo de
2.3.3 O casamento sem amor e a necessidade da figura masculi- enlaço matrimonial acabam se acostumando com a vida de casada e
na passa a construir dentro de si um sentimento pelo seu marido.
Porém, esse sentimento não corresponde à paixão ou muito menos
A mulher daquela época era educada para seguir dois cami- ao amor, ele é mais uma admiração e certo respeito que a mulher tem
nhos: o de se tornar freira ou o de se casar. Geralmente os casamentos pela figura masculina. O casamento faz da mulher ainda mais
eram realizados por desejo da família, ou seja, a mulher se casava dependente do seu marido.
sem sentir por seu marido nenhum tipo de sentimento. A união de
duas pessoas significava mais que afetividade, era movida por inte- E sem o amar, sentia ao pé dele como uma fraqueza, uma depen-
resses econômicos e sociais. dência e uma quebreira, uma vontade de adormecer encostada ao
seu ombro, e de ficar assim muitos anos, confortável, sem receio
Não é o casamento, segundo a natureza, pela necessidade fisica de nada. [...] era o seu marido; em novo, era forte, era alegre, pôs-
de amar e ser amada; não é o casamento superior de dois espiritos se a adorá-lo. [...] Era seu tudo – a sua força, o seu fim, o seu desti-
que se comprehendem e juntos podem viver felizes, fisica e inte- no, a sua religião, o seu homem! (QUEIRÓS; 2008: 28)

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Essa dependência é afetada ainda mais quando o marido deixa O casamento surge da ideia que a mulher é um ser frágil e que
sua mulher sozinha por um período significativo de tempo. Essa precisa de proteção. O homem é, dessa forma, visto como superior à
ausência faz dela uma moça fragilizada: a distância do esposo des- mulher, pois é ela que necessita de sua companhia. A importância da
perta nela o medo, a carência e a solidão. Luísa exemplifica bem a mulher no casamento é a de proporcionar o bem-estar físico e senti-
esposa carente e fragilizada quando distante de seu marido. Com a mental ao seu marido.
viagem de Jorge, Luísa passa a se sentir muito sozinha e o envolvi-
mento com Basílio acaba de certa forma, com essa solidão, pois ao Era asseada, alegre como um passarinho, como um passarinho,
mesmo tempo em que há o relacionamento entre dois, a presença de amiga do ninho e das carícias do macho; e aquele serzinho louro e
seu primo lhe serve de companhia para passar os dias entediantes e meigo veio dar à sua casa um encanto sério. [...] Ele próprio
solitários em que vivia longe de Jorge. melhorara; achava-se mais inteligente, mais alegre... E recordan-
do aquela existência fácil e doce, soprava o fumo do charuto[...].
Luísa comete o crime do adultério e ao mesmo tempo da luxú- (p. 21).
ria. Mesmo tendo vários motivos para trair seu marido, Luísa acaba
se decepcionando com a sua busca do relacionamento sonhado e
O Primo Basílio não se restringe a uma literatura fictícia; a obra
idealizado. Além dessa decepção como castigo, Eça no final de sua
é verossímil aos costumes da época. Nesse sentido, há no livro uma
obra penaliza ainda mais Luísa, dando a ela um final trágico: uma
historicidade muito bem elaborada que apresenta, acima de tudo, as
enfermidade que a leva à morte. imposições absurdas em que a mulher era submetida naquela época.
Portanto, a análise do adultério feminino como tema principal desse
Conclusão artigo tem como finalidade apresentar explicações do que motivou
Luísa a cometer tal ato, destruindo a sua imagem de vilã e de mons-
Em sua obra, Eça constrói de forma bastante inteligente, uma tro, enfatizando que o seu adultério não se trata apenas de uma trai-
crítica à sociedade burguesa da época. Percebe-se que através de ção amorosa, mas também, consequência da imposição de regras e
Luísa, ele mostra as regras sociais que a mulher portuguesa do século leis civis rígidas direcionadas à mulher pela sociedade do século XIX.
XIX deveria seguir. Ao mesmo tempo, cria nela um caráter provoca-
tivo às imposições dessas mesmas regras. Referências
A protagonista representa a parte “podre” dos relacionamen- MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa através dos textos. 30.ed. São
tos perfeitos. Surge como uma mulher fútil e sem caráter, que se Paulo : Cultrix, 2006.
influencia facilmente por leituras de romances a ponto de não saber OSORIO, Anna de Castro. Ás mulheres portuguêsas. Livraria Editora Viuva
distinguir o real do imaginário. Possui uma coragem que poucas Tavares Cardoso, Lisboa, 1905.
mulheres da época tinham, quebra as regras sociais e comete o adul- PRAÇA, José Joaquim Lopes. A mulher e a vida ou a Mulher considerada debai-
xo dos seus principaes aspétos. Livraria Portugueza e Estrangeira do Editor
tério leviano sem pensar em suas consequências. Essa mulher fraca, Manuel de Almeida Cabral, Coimbra, 1872.
ingênua e sem personalidade é criada através da visão machista quei- QUEIRÓS, Eça. O Primo Basílio. São Paulo: Editora Martin Claret Ltda, 2008.
rosiana, isso porque Eça, como muitos homens daquela época, não
SARAIVA, Antonio José & LOPES, Oscar. História de Literatura Portuguesa.
vêem a mulher como independente, capaz de criar suas próprias 15a. ed. Porto: Porto Editora s/d.
opiniões e pensamentos sobre o mundo em que vive. Há neles um http://pt.wikisource.org/wiki/O_Primo_Bas%C3%ADlio/Carta_a_Te%C3%
receio que a mulher possa acender o seu conhecimento. B3filo_Braga : acessado em 16/06/2010 às 10h00.

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

AMOR E BARROQUISMO NAS CARTAS DE MARIANA Explanaremos no decorrer do trabalho situações dentro da
ALCOFORADO obra freirática, do ponto de vista estrutural e literário, para um
George Patrick do NASCIMENTO32 melhor entendimento do estilo barroco ibérico seiscentista.

Introdução 1. Individualismo amoroso: a aventura freirática

A epistolografia da freira Mariana Alcoforado, pertencente É notório observar que, durante toda a obra de Mariana Alco-
ao estilo Barroco, traz consigo uma grande carga de exageros na forado, o leitor só tem o testemunho pessoal da própria autora.
descrição do amor. A obra é composta de cinco cartas apresenta- Ela demonstra toda a sua problemática sentimental, sempre se
das apenas pelo ponto de vista único, que é a da própria freira. colocando como vítima. O ponto de vista é limitado apenas ao da
Dessa forma, o presente trabalho tem como objetivo analisar as freira. Portanto, como aceitar totalmente sua mensagem se o
características sentimentais e principalmente artísticas para com-
receptor não teve contado com as possíveis cartas enviadas tam-
provar como tais cartas podem estar inseridas ou não como obras
bém pelo conde de Chamilly?
literárias da Escola Barroca Portuguesa.
O leitor não deve mergulhar totalmente no que lhe é trans-
Surgida no século XVII, no final da década de 60, as Cartas
mitido durante as cartas de amor. É preciso manter sempre a criti-
de Amor foram publicadas primeiramente na França, como tra-
duções de possíveis textos amorosos, oriundos de um convento, cidade ativa para que não se estabeleça um senso único de aceita-
em Portugal, cuja autoria havia ficado anônima, onde o editor bilidade. Os relatos desses acontecimentos envolvem uma freira
esclarecia somente que seriam cartas de uma freira portuguesa portuguesa que, sendo jovem ou carente de afeto, e estando num
destinadas a um oficial do exército francês. ambiente religioso por obrigação, acaba-se envolvendo num rela-
Posteriormente, estudiosos de outras épocas conseguiram cionamento secreto com um soldado francês, onde tal atitude era
atestar informações prévias, designando a freira Mariana Alcofo- bastante comum na época, por não existir, na maioria das vezes,
rado como a autora da prosa já mencionada e sendo Noel Bouton, uma real vocação para o ofício sacerdotal. Porém, as informações
ou conde de Chamilly, o tal oficial francês que teria usurpado o presentes nas cartas não indicam necessariamente que tais atos
coração da jovem freira. Contudo, ainda existe atualmente quem possam ter sido realizados.
questione essas afirmações. Mas, lembramos que o presente arti- Em virtude da caprichosa elaboração da epistolografia,
go não tem como meta levantar hipóteses sobre a origem ou devemos nos recordar que Mariana era daquelas que mantinham
autenticidade das cartas de Mariana, pois essas são questões para contato constante com textos, livros, estabelecendo um vínculo
outros estudiosos.
com a leitura e a escrita. E que tais práticas poderiam ter causado
na freira uma maneira de descrever, por meio de um pendor lírico,
Graduando do Curso de Letras da Universidade Federal de Campina Grande
32 nada mais que uma fantasia amorosa, já que os documentos exis-
–UFCG/ CFP. tentes até hoje são somente as cartas feitas por ela. Não existe ou

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pelo menos nunca se encontrou as cartas do seu amante, logo, há mento, que se evidencia nesta passagem pela presença dos ter-
a possibilidade de ele ser somente um personagem de ficção cria- mos “quantas” e “mil”. Tal enfoque é, tradicionalmente, uma
do pela freira em sua condição de mulher. característica barroca, tanto dos exageros como da dualidade
expressiva, em que nas cartas são demonstradas, fundamental-
2. O sofrer na construção do prazer mente, pela satisfação por meio da dor.

Para demonstrar o caráter barroco, presente na obra em aná- 3. A escrita trabalhada: as cartas como literatura
lise, temos de caracterizar o fazer da autora, como sendo uma
demonstração do estilo conceptista, que é conceituado por Sarai- Há, de fato, literariedade na obra, como atesta Vitor Manuel
va & Lopes (1955: 503) como “o exercício da agudeza de engenho, o de Aguiar e Silva (1976) em relação ao tipo de linguagem normal-
virtuosismo de um pensamento que procede por meio de subtile- mente existente em certos textos considerados como literatura:
zas analógicas”. Há, de fato, uma incessante técnica por parte de
Mariana ao formular o seu testemunho amoroso. Ela manifesta-o A linguagem literária é plurissignificativa ou pluri-isotópica,
por meio de complexos e enfeitados enunciados, em termos ideo- porque nela o signo linguístico, os sintagmas, as frases e as
sequências transfrásicas são portadores de múltiplas dimensões
lógicos ou paradoxais, como no trecho: “Como é possível que lem-
semânticas, tende para uma multivalência significativa, fugindo
branças de momentos tão agradáveis tenham se tornado tão cru- da univocidade característica do discurso científico e didáctivo e
éis? E – como que contra a natureza – não sirvam senão para tira- distanciando-se marcadamente, por conseguinte, de um grau
nizar meu coração?” (ALCOFORADO; 1992: 19). Aqui é evidenci- zero da linguagem. (AGUIAR E SILVA; 1976: 51)
ado neste exemplo, além do jogo de ideias, uma valorização do
sofrimento sentimental como elemento causador do prazer, de Podemos entender que habitualmente uma Carta, como
uma concepção confusa, senão pelo menos contraditória, que texto literário, pode trazer em si uma linguagem que não é cons-
existe entre o agradável e a tristeza. tantemente univalente, ou seja, a mensagem contém dados que
É nessa perspectiva que a obra se desenvolve. É dessa forma não são ou não podem ser interpretados ao pé da letra. A signifi-
que a freira Mariana constrói sua dialética, sempre colocando a cação passa a estar num plano artístico e é função do leitor poder
sua pessoa no papel de vítima, estruturando seu texto com artifí- entender o possível ou possíveis sentidos que a locução sugere,
cios extremamente exagerados como em: “Quantas lágrimas me que o texto ganha fórum de literatura. Por exemplo, ainda em rela-
custaram essa decisão! Depois de mil impulsos e mil incertezas ção ao efeito excessivo barroco, podemos notar essa metaforiza-
que você nem imagina” (p. 48), ou seja, ela é a única que aparente- ção na passagem: “Mil vezes ao dia envio na sua direção os meus
mente está sofrendo e que o outro não sabe sequer o tamanho do suspiros; eles procuram você por todos os lugares e, como recom-
conflito sentimental em que a freira se encontra, mas como se isso pensa para tanta ansiedade, não me trazem senão a mais franca
não fosse o bastante, ainda é colocado uma exaltação das palavras advertência da minha má sorte (...)” (ALCOFORADO; 1992: 18).
para demonstrar uma não simplicidade ao comunicar o aconteci- Como pode um suspiro procurar por alguém e, além disso, trazer

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um comunicado ou advertência como retorno de sua jornada? A LITERATURA NA SALA DE AULA: UMA EXPERIÊNCIA DE
Como se pode contar, com precisão, uma quantidade tão alta de VIDA DA LEITURA
suspiros durante o dia? E como se pode localizar a direção de uma Carlos André da Silva33*
pessoa que está distante do campo de visão e, no caso do conde de Mônica Cristiane Teodoro*
Chamilly, do campo territorial? Lógico que isso não passa de um Reginaldo Fernandes da Costa*
sentido figurativo abusivo, já que estamos falando de uma obra
literária tipicamente barroca e que, por conseguinte, mantém Leitores formam-se, para continuar, com melhor leitura, pois a
toda essa marca estilística enunciativa. leitura não é apenas uma técnica de decodificação. Leitura é pro-
dução de sentido.
Paulo Coimbra Guedes
5. Considerações finais

A obra freirática de Mariana Alcoforado é carregada de sen-


timentalismo, o qual é mostrado de forma engrandecida por meio
de hipérboles, além de se firmar numa antítese formidável que
A epígrafe nos faz refletir sobre o papel da leitura em sala de
aula no momento em que muitas são as discussões acerca
desse assunto nas academias, no sentido de chegarmos a
uma compreensão sobre os conflitos vividos dentro da sala de aula
revela gozo através do sofrer. que envolve a leitura nas aulas de literatura. É preciso despertar para
Suas cartas são exímias exemplificações da Escola Barroca o fato de que ler é muito mais do que decodificar sinais gráficos na
Portuguesa, tendo nas figuras de linguagem os elementos literá- busca do sentido do texto. Ler é atribuir significados àquilo que esta-
rios estruturais, que revelam os traços contraditórios como o con- mos lendo, estabelecendo relações com outras leituras nos vários
flito entre o religioso e o carnal, ou seja, entre a doutrina católica contextos da vida cotidiana.
de um Convento ao qual pertencia Mariana Alcoforado e aos dese- Dessa forma, a leitura pode ser considerada uma relevante
jos carnais e amorosos próprios do ser humano, vivenciado por fonte de busca de informações no sentido de encontrarmos respos-
meio de uma aventura perigosa com um oficial francês. tas para nossos conflitos vividos dentro e fora da sociedade. Encon-
As Cartas de Amor são escrituras em que há a presença con- tramos no exercício da leitura uma forma de compreendermos
flituosa e indissociável de uma Mariana freira com uma Mariana melhor o que se passa mediante acontecimentos do cotidiano.
mulher. Sendo assim, devido inúmeros fatos presentes no nosso dia a dia,
necessitamos ler assiduamente com propósito de enriquecer nosso
Referências vocabulário, aprimorando a capacidade de formularmos hipóteses,
AGUIAR E SILVA, Vitor Manuel de. Teoria da literatura. São Paulo: Mar- de compreendermos teses ou teorias, melhorando nossa compreen-
tins Fontes, 1976. são e indo além do conhecimento empírico.
ALCOFORADO, Mariana. Cartas de Amor. Tradução de Marilene Felinto.
Rio de Janeiro: Imago, 1992.
*Graduandos Letras da Universidade do Estado do Rio Grande do
33
SARAIVA, Antônio José & LOPES, Oscar. História da Literatura Portu-
guesa. 11. Ed., Porto; Coimbra; Lisboa: Porto; Arnado; Fluminense, 1955. Norte - UERN/CAMEAM

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A partir dessa noção, o presente artigo busca investigar a mani- na vida da criança mesmo que ela ainda não tenha frequentado os
festação da literatura em sala de aula, principalmente no que concer- bancos escolares. Cabe a escola, portanto, capacitar e dar oportuni-
ne ao espaço dedicado à leitura literária, levando em consideração dade ao aluno de reconhecer entre os mais diversos gêneros com os
que existem diversas formas de se fazer leitura. Com isso, objetiva- quais tem contato, a estrutura daquele que ele está lendo em deter-
mos traçar algumas idéias acerca do papel da literatura na sala de minado momento, seja dentro ou fora da sala de aula. Para isso, é
aula e da função da leitura na formação do indivíduo, tendo em vista necessário que se tenha atividades lúdicas de prazer para com a lei-
que a leitura possibilita a este indivíduo a construção de sua própria tura, uma vez que a leitura se caracteriza sempre pela busca de novos
autonomia enquanto cidadão crítico e consciente de seus valores e conhecimentos. Conscientes do papel social da leitura, cabe aos
deveres em sociedade. docentes fazer com que os alunos compreendam os textos que estão
Como resultado dessa compreensão, é preciso entendermos a lendo, desde a sua estrutura até a sua função enquanto gênero, uma
manifestação da literatura na sala de aula como experiência de vida, vez que estamos diante da linguagem escrita. É necessário lembrar
em que a palavra se manifesta de forma viva e mágica e que, acima de que a leitura literária é especial e deve merecer lugar de destaque na
tudo ela está ligada às nossas práticas sócioculturais, em todas as sala de aula de forma lúdica e prazerosa. Assim,
atividades que exercemos cotidianamente. Assim, a leitura literária
vai muito mais além da palavra escrita, ela está implícita nas entreli- Para lermos necessitamos, simultaneamente, manejar com des-
nhas do texto, no sentido que o leitor busca no ato de ler. Em outras treza as habilidades de decodificação e aportar ao texto nossos
objetivos, idéias e experiências prévias; precisamos nos envolver
palavras,é preciso ver a literatura como representação simbólica de
em um processo de previsão e inferência contínua que se apóia na
aspectos sociais e culturais através dos textos literários, pois
informação proporcionada pelo texto e na nossa própria baga-
gem, e em um processo que permite encontrar evidências ou
A literatura é, duplamente, instrumento e objeto – meio e fim.
rejeitar as previsões e inferências antes mencionadas. (SOLÉ,
Sua presença no currículo se justifica na medida em que a escola é
vista como um espaço ideal e privilegiado para a formação de um 1998, p. 23).
público para a literatura. Nesta perpsectiva, cabe à escola a sensi-
bilização para o “estético literário”, função diametralmente opos- Pela citação acima, entendemos que existe todo um processo
ta à manipulação da sensibiilidade intuitiva do aluno para refor- para a concretização da leitura, pois esta não existe do nada nem
çar um quadro de vlores éticos, socais, afetivos, ideológicos. nasce pronta e acabada. Assim, chegamos a concepção de que existe
(LAJOLO, 1982, p. 15) uma relação íntima entre a obra e o leitor mediado por um autor,
realizador desse encontro. Toda e qualquer leitura não existe à toa,
Como é possível perceber, a literatura é muito mais do que um lemos porque temos um objetivo, por que queremos saber algo, por
simples conjunto de obras, ela está presente nas nossas ações, nas que nos sentimos necessitados ou lemos apenas por prazer. O que
experiências que construímos com o outro através da interação, nos queremos colocar com isso é que, na formação do indivíduo, em se
textos literários que representam um tempo, uma história, a forma- tratando de leitura literária, ela torna-se passo fundamental, pois
ção de uma sociedade. Os livros guardam segredos, mistérios que através dela é que tomamos contato com um mundo que muitas
tentamos descobrir no ato da leitura ou quando alguém nos conta vezes nem é nosso.
uma história. O certo, é que de uma forma ou de outra, nesse ato está No entanto, quando nos reportamos ao mundo da sala de aula
sendo empregado o incentivo à leitura, que deve ser implementado e da manifestação da literatura nesse espaço de aprendizagem, per-

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cebemos que estamos lidando com uma série de elementos comple- falar tão singular, tão carregado de originalidade e beleza. Leitura
xos, tendo em vista que o texto literário nem sempre é trabalhado que deve acontecer simplesmente pelo prazer de fazê-lo. Pelo
como deveria ser, levando os estudantes a uma compreensão, no prazer da apreciação, e mais nada. Para entrar no mistério, na
mínimo abrupta, de literatura. Ou seja, o uso de literatura em sala de transcendência, em mundo de ficção, em cenário de outras ima-
gens, criadas pela polivalência de sentido das palavras.
aula, seja do ensino fundamental ou ensino médio, ainda está longe
(ANTUNES, 2009, p. 200)
do ideal. Ainda estamos muito ligados ao ensino tradicional da lite-
ratura através da conhecida separação entre português, literatura e
Dentro desse raciocínio, Villardi (2006) nos coloca que se
redação. De outro modo,
torna um desafio para formarmos bons leitores capazes de compre-
A disciplina Literatura, presente no currículo de todas as escolas
ender situações cotidianas em nossa vida. Assim cada vez mais, pre-
de ensino médio no Brasil, deveria se chamar história da literatu- cisamos romper com o ensino tradicional, de forma que devemos
ra. Afinal, os professores dessa disciplina têm de abordar os movi- trazer para dentro da sala de aula o contato com diferentes gêneros
mentos literários cronologicamente, apresentando aos alunos as de textos, especialmente os textos literários. É necessário lembrar
características prototípicas de cada movimento e os autores tra- que nos deparamos frequentemente com diferentes gêneros e tipo-
dicionalmente considerados os mais representativos desses logias de textos, em várias ocasiões do dia a dia seja quando ouvimos
movimentos e suas características mais proeminentes. Na verda- uma propaganda num carro de som nas ruas das cidades, quando
de, o conteúdo dessa disciplina acaba por aproximá-la muito lemos um nome de um estabelecimento comercial, ou mesmo quan-
mais de história do que de português. (OLIVEIRA, 2010, p. 172- do precisamos depositar uma determinada quantia em dinheiro
173). num caixa eletrônico – por exemplo, estamos tendo contato com
diferentes textos. Com isso, o que precisa ser revisto dentro da sala de
Dessa forma, uma importante fonte de conhecimento capaz aula é a maneira de trabalhar as diferentes formas de leituras dentro
de ampliar o saber de um indivíduo consiste na leitura de textos lite- desse ambiente, principalmente quando nos reportamos ao texto
rários, desde que sejam trabalhados de forma adequada. Assim, a literário. Para isso, é preciso entender o papel e função da literatura,
sala de aula torna-se um dos mais adequados lugares de trabalhar- não somente dentro da sala de aula, mas também fora dela. Nesse
mos a prática de ler assiduamente discutindo de forma interacional sentido, a literatura
com nossos colegas e professores para ampliarmos nossos conheci-
mentos, partindo do uso da linguagem interagindo com o intuito de Serve para ajudar os indivíduos a crescer intelectualmente. Só
nos tornarmos seres capazes de comparar o saber empírico com o não deveria servir para torturar os alunos com exercícios de análi-
científico, mediante leituras de textos que permite-nos avaliar criti- se sintática. E o professor precisa estar consciente não só dessa
camente e comparando-os com situações presentes em diferentes utilidade da literatura, mas também do que ele não deve fazer
contextos sociais. Em se tratando do texto literário, é bom lembrar com os textos literários. Do contrário, contribuirá para aumentar
que: o desinteresse e o descompromisso dos alunos. (OLIVEIRA, 2010,
p. 194)
Ler textos literários possibilita-nos o contato com a arte da pala-
vra, com o prazer estético da criação artística, com a beleza gratu- Pelas considerações acima, entendemos que é necessário ino-
ita da ficção, da fantasia e do sonho, expressos por um jeito de vações para o incentivo ao ato de ler, especialmente quando consiste

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na leitura literária. Assim a relação entre leitura e literatura possui Dessa maneira, a literatura pode ser compreendida como a
um elo muito abrangente. Com isso, a prática de lermos textos literá- manifestação da palavra viva, em que as experiências sociais e cultu-
rios nos faz conhecer um mundo diferente do nosso cheio de magias, rais dos leitores são colocadas em pauta. A escola entra aí com um
linguagens criativas, que exige dos leitores uma análise crítica a papel fundamental, o de possibilitar o contato com uma infinidade
cerca do texto estudado, mas ao mesmo tempo nos permite fazer de textos literários, de forma que o aluno possa se identificar
comparações com a realidade sobre o qual estamos situados e pre- enquanto sujeito social, que faz uso da língua nas diversas situações
senciando inúmeras situações do cotidiano. de comunicação que mantém com o outro nas relações cotidianas.
Por isso, por meio da prática da leitura, a literatura nos permite Não podemos esquecer que a experiência com a leitura não se dá nas
fugir do preconceito das elites em relação às classes menos favoreci- nossas vidas apenas na escola, pois ainda quando criança já obtive-
das. Um exemplo disso foi Baudelaire, que através de suas observa- mos os primeiros contatos com a leitura, seja através do livro ou de
ções criava suas produções textuais literárias transformando coisas outras formas de contato, pois entendemos que a leitura não se faz
insignificantes aos olhos da sociedade burguesa, em objetos de apenas pela palavra escrita. Aqui entra em cena uma grande preocu-
importantes valores. Em seu livro As flores do mal, Baudelaire extrai pação, os objetivos que a escola tem tanto em relação às práticas de
das prostitutas, vítimas de preconceitos, a beleza através de compa- leitura realizada em sala de aula, quanto à necessidade que os alunos
rações metafóricas descrevendo-as como pura e radiante defenden- têm, pois ao longo de nossa formação histórica e social mantemos
do-as e criticando a elite por não se sensibilizarem mediante as con- contato com os mais diversos números de gêneros textuais e, essa
dições de vida dessas mulheres. Nesse sentido, entendemos que: realidade precisa estar presente na sala de aula, principalmente nas
aulas de literatura.
A literatura se adaptou muito bem a estas condições, ao Noutras palavras, é preciso que a escola incentive o gosto pela
permitir , e mesmo forçar, a preeminência da interpretação leitura, formando leitores capazes de compreender os conflitos soci-
poética, da descrição subjetiva, da técnica metafórica(da ais que os cercam tanto dentro quanto fora da sala de aula. É preciso
“visão”, numa palavra) sobre a interpretação racional, a des- perceber no texto, especialmente o texto literário, a grandeza das
crição científica, o estilo direto(ou seja, o conhecimento). palavras, pois existe uma relação íntima entre a leitura do mundo e a
Ante a impossibilidade de formar aqui pesquisadores, téc- leitura das palavras. Daí a importância de que todas as atividades em
nicos, filósofos, ela preencheu a seu modo a lacuna, criando sala de aula, principalmente as que envolvem o texto literário, preci-
mitos e padrões que serviram para orientar e dar forma ao sam fazer sentido na vida do aluno, de forma que este possa ver na
pensamento.(...) (CANDIDO, apud GUEDES; 2006: 45) sala de aula, a construção do conhecimento com base nos sistema de
interação. De outro modo, entendemos ainda que:
Sendo assim, a leitura literária possibilita ao indivíduo medi-
ante identificação, com um autor o qual escreve determinadas É a propósito da literatura que a importância do sentido do texto
obras, se inspirar nelas e começar a produzir suas próprias obras lite- se manifesta em toda sua plenitude. É essa plenitude de sentido,
rárias passando a colocar em prática seus conhecimentos adquiridos o começo, meio e fim de qualquer trabalho com o texto. Todas as
no ambiente escolar, por meio da atividade de ler obras literárias atividades escolares das quais o texto participa precisa ter senti-
do, para que o texto resguarde seu significado maior. (LAJOLO,
surgindo com isso a intertextualidade, fruto de uma interação entre
1986, p.69).
professor – aluno- sala de aula.

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A Literatura e Seus Tentáculos Carlos Gildemar Pontes

Com isso, torna-se importante a discussão que se tem realiza- Referências


do na crítica sobre o ensino que se faz de literatura em sala de aula,
pois em sua grande maioria, a literatura é confundida como sentido ANTUNES, I. Língua, texto e ensino: outra escola possível. São Paulo:
histórico, e só se estuda, datas, nomes e escolas literárias, deixando Parábola Editorial, 2009. (Coleção Estratégias de Ensino, v. 10)
de lado o mais importante; o sentido do texto e de sua função na vida BRAGA, P. C. O ensino de literatura na era dos extremos. Letras Magna
do leitor. Dessa forma, – Revista Eletrônica de divulgação em língua portuguesa, lingüística e
literatura, 2003, n. 05, 2º semestre de 2006.
É preciso promover o ensino de literatura focalizando-o enquan- GUEDES, P. C. A formação do professor de Português: que língua
to produção estética, e não enquanto retrato histórico articula- vamos ensinar? São Paulo: Parábola Editorial, 2006 (Estratégia de Ensino
dos por uma linguagem bem elaborada; e ainda evidenciar que 4).
sua função é promover antes da formação moral, a experiência JURADO, S. & Rojo, R. A leitura no ensino médio: o que dizem os docu-
moral. (BRAGA, 2006, p. 01). mentos oficiais e o que se faz. ___In: BUZEN, C. & MENDONÇA, M. (Org.)
Português no Ensino Médio e formação do professor. São Paulo: Pará-
Nessa perspectiva, compreendemos que o ensino de literatura bola Editorial, 2006.
deve ser pautado na concepção do sistema de interação, em que pese LAJOLO, M. O texto não é pretexto, leitura em crise na escola: as alter-
o sentido do texto com o qual o aluno está tendo contato, sem deixar nativas do professor. São Paulo: Contexto, 1986.
de considerar o contexto no qual o texto foi escrito em relação com o ______. Usos e abusos da literatura na escola. Porto Alegre: Globo,
contexto em que os alunos estão inseridos. 1982.
Portanto, de acordo com a temática discutida, devemos enten- OLIVEIRA, L. A. Coisas que todo professor de português precisa
der que a leitura destaca-se como essencial na formação do conheci- saber: a teoria na prática. São Paulo: Parábola Editorial, 2010.
mento do sujeito para a compreensão dos fatos ocorridos dentro e SOLÉ, I. Estratégias de leitura. 6 ed. Porto Alegre: Artmed, 1998.
fora da sala de aula, quando esse ser passa a usufruir do saber científi- VILLARDI, R. Ensinando a gostar de ler e formando leitores para a
co comparando-o com o saber empírico e colocando em prática a vida inteira. Rio de Janeiro: Qualytimarck/Dunya Editora, 1999.
aprendizagem colhida no ambiente escolar em diferentes aconteci-
mentos histórico- sociais. Além disso, devemos considerar a impor-
tância da leitura literária, assimilando a relação leitura e literatura,
porque uma não sobrevive sem a outra. Na proporção que nos depa-
ramos com o universo mágico presente no mundo da literatura,
somos capazes de descobrir um novo horizonte totalmente diferen-
te da nossa realidade social e somente com o pleno domínio do ato de
ler poderemos ter uma visão crítica a cerca desse horizonte. Com
isso, a sala de aula consiste em ser toda a base de efetivação da trans-
missão do conhecimento científico, necessário para formação de um
sujeito capaz de aplicar esse saber científico em qualquer situação do
cotidiano.

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