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FACULDADE SESI DE EDUCAÇÃO

LICENCIATURA EM LINGUAGENS

Luciel Tenório Belem

ANÁLISE DO POEMA “NÃO HÁ BARREIRAS PARA O PERTENCIMENTO”


DE JULIE DORRICO

São Paulo

2023
Introdução

A cultura indígena tem suas bases na oralidade e a partir da década de 90 começa


a nascer a literatura indígena de forma escrita, com funções sociais importantíssimas na
atualidade para a proteção e perpetuação da cultura ancestral desses povos. Nas obras
escritas por indígenas, existe uma forte presença da busca pela ancestralidade e
autoafirmação e com viés de crítica a sociedade atual, utilizando a arte e a escrita como
ferramental de denúncia.

Importante recordar, além disso, que os/as escritores/as indígenas aliam-se


diretamente ao movimento indígena brasileiro, que emerge em fins de 1970
com a intenção de politizar e, em consequência, de publicizar a luta indígena
no país, como reação aos projetos de expansão socioeconômica dinamizados
pelos governos militares nas regiões norte e centro-oeste. Nesse caso, o
ativismo, a militância e o engajamento públicos, políticos e culturais
demarcaram tanto a constituição do movimento indígena e da literatura
indígena quanto a imbricação desta para com aquele. (DORRICO, Julie et al,
2018)

Julie Dorrico, ou Truduá Dorrico (nome indígena) é uma autora do movimento de


literatura indígena. Nascida em Rondônia em 1990, Julie foi vencedora do Prêmio FNLIJ
Tamoios 2019. Em suas obras, Julie mescla saber ancestral e a sociedade contemporânea,
partindo do ponto onde a literatura sempre existiu e precede a literatura escrita e impressa
(DORRICO apud WERÁ, 2019), estando viva através das gerações pela oralidade,
trazendo esse caráter para suas obras. A voz fornecida pela autora não é somente dela,
mas também possui natureza coletiva com a finalidade de ocasionar o reconhecimento
por parte de seus semelhantes.

Nesse contexto, a literatura indígena é muito importante para o caráter político-


social e para a perpetuação da cultura originária do nosso país. A autoria indígena também
é necessária para reconstruir e ressignificar os estereótipos criados sobre esses corpos,
posto que a literatura indígena dimensiona essas “vozes silenciadas e exiladas (escritas)
ao longo dos mais de 500 anos de colonização” (DORRICO apud Graúna, 2013, p. 15),
ao receptor indígena e não indígena na sociedade brasileira.

O trabalho busca interpretar o poema “Não há barreiras para o pertencimento” e a


sua relevância social para a literatura indígena. Esta obra está presente no livro “Eu sou
Macuxi e outras histórias”, publicado em 2019 pela editora Caos e Letras. Para melhor
compreensão do texto, foram utilizados ensaios e entrevistas da autora, e bibliografia
escrita principalmente por pessoas indígenas.
Análise do poema: Não há barreiras para o pertencimento

O principal ponto presente na obra de Truduá é o pertencimento étnico. É possível


observar nos textos e entrevistas da autora que existia um enorme preconceito relacionado
a sua aparência física e a utilização e não identificação com o termo “índia” pelo qual era
referida; “Não obstante as contínuas associações à minha aparência, cada vez que me
diziam que eu era “índia”, cada vez mais eu me silenciava e procurava me afastar da
comparação.” (DORRICO, 2020). Julie já possuía interesse na cultura originária, e após
a autodescoberta em ser Macuxi (etnia indígena localizada no estado de Roraima, por
descendência de sua bisavó), a autora se tornou uma grande ativista dos povos originários
e retrata a autoafirmação em seus trabalhos, junto de seus iguais.

O livro “Eu sou Macuxi e outras histórias” foi escrito em prosa e poesia em
primeira pessoa, onde são utilizados as histórias orais e vivências de Julie, mesclando a
oralidade ancestral, a colonização e cotidiano. Os textos possuem linguagem poética e em
toda a obra é possível enxergar a luta de Julie em defesa de seu povo. Além disso, fica
exposto a diferença entre indígenas e brancos, o sujeito ocidental segue a lógica de
homem versus a natureza (DORRICO, 2019), criando barreiras e separações; porém para
a autora não existem barreiras para o pertencer; o conhecimento ancião ultrapassa o
espaço e o tempo.

Em seguida o poema “Não há barreiras para o pertencimento”:

De um porto a outro
De norte a sul
Karitiana, guarani e macuxi
De um gosto a outro
Cruzeiro-do-sul
Kaingang, omágua/kambeba, pankararu
De um porto a outro
De norte a sul
Do meu ponto de referência
Viva os munduruku!
De um gosto a outro
De norte a sul
Wapichana, mura e mara-guaçús
Baniwa, Kadiwel e Guaicurús
No silêncio dos olhos de meus parentes amarelos
Ouço os sons dos maracás
Vejo a cor do urucum e do jenipapo em suas peles
Sinto o orgulho do pertencimento que sempre exala em seus cabelos!
Em suas sombras toca o tambor:
Eu sou! Eu sou! Eu sou!
Indígena eu sou!
De um porto a outro
De norte a sul
Do meu ponto de referência
Viva os kai-gua-ya-xucu
De um porto a outro
De norte a sul
Povos indígenas
Nessa vida e em tantas outras
Eu sou.

(DORRICO, 2019)

Neste poema, a autora trata principalmente sobre a territorialidade e orgulho em


ser indígena. A partir disto, ela utiliza os nomes de diversos povos e etnias indígenas
seguidos do verso “De um porto a outro / De norte a sul” para fazer a relação de localidade
dos povos. Após pesquisas, foi possível perceber que os povos indígenas estão espalhados
pelo território, desde a região norte, (onde o imaginário popular crê na existência de povos
originários somente no Amazonas ou Acre) até o sul do país. De acordo com o IBGE, 1,7
milhões de indígenas estão localizados no Amazonas, porém a sua pluralidade étnica não
se restringe somente a essa região, visto que em 86,7% dos munícipios brasileiros existem
comunidades indígenas.

É importante ressaltar que os nomes das etnias estão transcritos em idioma


originário e/ou português brasileiro, como em “kai-gua-ya-xucu”, que significa “macuxi”.

[...]

Karitiana (Rondônia), guarani (Mato Grosso do Sul, São Paulo, Paraná,


Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Pará, Santa Catarina e
Tocantins) e macuxi (Roraima)

[...]
Kaingang (Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina, São Paulo),
omágua/kambeba (Amazonas), pankararu (Pernambuco, São Paulo, Minas
Gerais)

Ainda no começo do poema, o verso “Cruzeiro-do-sul” se relaciona com “Do meu


ponto de referência”, onde Cruzeiro-do-sul pode simbolizar a constelação, muito utilizada
pelos povos originários como marcador espacial e temporal; neste contexto, a depender
da posição nas estelas do céu eles poderiam dizer onde estavam e as estações do ano.
“Cruzeiro-do-sul” também pode fazer referência ao município localizado no Acre, região
que possui 49 povos indígenas.

Na estrofe: “No silêncio dos olhos de meus parentes amarelos / Ouço os sons dos
maracás / Vejo a cor do urucum e do jenipapo em suas peles / Sinto o orgulho do
pertencimento que sempre exala em seus cabelos!”, Julie retrata a cena pessoal da falta
de pertencimento por pessoas indígenas na sociedade moderna. A autora só “se
descobriu” indígena aos 27 anos,

O reconhecimento, e talvez a consciência do que significava saber que minha


bisavó pertencia a um povo indígena, veio como um rio represado que rompe
as barreiras de concreto. A minha barreira foi uma vida toda de silêncio,
invisibilidade e negação. Naquele momento ler “tua bisa é macuxi” foi mais
que suficiente para eu me encontrar na encruzilhada do meu passado e do meu
presente, nas memórias que eu passaria a decifrar, no presente que eu teria de
enfrentar e nas pessoas, sobretudo elas, a quem eu teria de explicar o que
significa ser uma indígena em contexto urbano. (DORRICO, 2020)

portanto, ela relata a situação em que pessoas indígenas são apagadas, porém percebe o
saber ancestral presente culturalmente, como os maracás, que são chocalhos feitos com
uma cabaça com um cabo de madeira e pequenas pedras, caroços ou sementes em seu
interior; o urucum e jenipapo, que são frutas nativas utilizadas principalmente nas
pinturas corporais.

O verso “No silêncio dos olhos de meus parentes amarelos1” também é possível
perceber que existia muito a ser dito, porém o apagamento e silenciamento histórico tonou
o processo de autoafirmação mais lento e dificultoso. Esse poema também revela o caráter
coletivo da escrita indígena, onde existe a busca de identificação entre os parentes.

Considerações finais

1
Em conversa com a autora, Julie declarou que os “parentes amarelos” é relacionado a cor da pele que
as pessoas atribuíam a ela, numa “falsa associação com os orientalizados” (DORRICO, 2023).
Após a análise do texto, é possível notar o orgulho e felicidade de Julie em ser
indígena. No cenário atual de autores indígenas, é muito importante que a autora ocupe
esse local e possa transmitir suas vivências com seus parentes e com pessoas não
indígenas, não somente para fins educacionais, mas como referência cultural. Dessa
maneira, os debates sobre ancestralidade são necessários para a autoafirmação e
conhecimento dessas histórias não ouvidas.

O descobrimento tardio de sua descendência não tornou Julie menos indígena


durante sua trajetória, sofrendo as diversas violências relacionadas, principalmente, a sua
aparência. Este tema, que também é algo que reverbera em preconceitos sobre “quão
indígena você é”, e é um questionamento que só faz sentido na sociedade moderna que
coloca pessoas em diversas categorias, baseando-se somente em estereótipos étnicos e
raciais. Vale ressaltar que, no Brasil, indígenas também eram configurados como
“pardos” até os anos 90, e muitos ainda se enxergam dessa maneira por não pensar nos
fatores exteriores a cor da pele. Nesse ponto, ao usar vocábulos tradicionais e trazer o
caráter cultural, ela afirma que a cultura vive nas pessoas, mesmo que elas ainda não
tenham percebido.

A obra possui diversas características da literatura indígena, como o caráter


coletivo, onde o eu-lírico narra sua história, porém reconhece os próximos para além do
físico e vê os hábitos e a presença da riqueza cultural ancestral; além de trazer diversas
simbologias importantes para o movimento literário indígena. Não é somente a existência,
mas sobre a resistência dos povos no espaço e no tempo, provando que eles ainda estão
aqui. Desta forma, essa obra contribuiu imensamente para o repertório cultural brasileiro
e indígena.

Referências

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Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=gKVOXmuEbwU. Acesso em: 11
nov. 2023.

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da metade deles vive na Amazônia Legal. Agência IBGE notícias. 2023. Disponível
em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-
noticias/noticias/37565-brasil-tem-1-7-milhao-de-indigenas-e-mais-da-metade-deles-
vive-na-amazonia-legal. Acesso em: 11 nov. 2023.
CANDIDO, Marcos. "Usar celular não nos torna menos indígenas", diz ativista
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em: https://www.uol.com.br/ecoa/ultimas-noticias/2020/11/28/usar-celular-nao-nos-
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http://www.cruzeirodosul.ac.gov.br. Acesso em: 11 nov. 2011.

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