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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
(LINHA DE PESQUISA: METAFÍSICA)

DIEGO VINÍCIUS BRITO DOS SANTOS

NIETZSCHE E OS VALORES MODERNOS


UM ESTUDO SOBRE O ADOECIMENTO MORAL DO HOMEM

NATAL/RN
2021
DIEGO VINÍCIUS BRITO DOS SANTOS

NIETZSCHE E OS VALORES MODERNOS


UM ESTUDO SOBRE O ADOECIMENTO MORAL DO HOMEM

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Filosofia (PPGFIL) do Centro de
Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA) da
Universidade do Federal do Rio Grande do Norte
(UFRN) como requisito obrigatório para obtenção
do título de Mestre em Filosofia, sob orientação do
Prof. Dr. Edrisi de Araújo Fernandes.

NATAL/RN
2021
DIEGO VINÍCIUS BRITO DOS SANTOS

NIETZSCHE E OS VALORES MODERNOS


UM ESTUDO SOBRE O ADOECIMENTO MORAL DO HOMEM

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Filosofia (PPGFIL) do Centro de
Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA) da
Universidade do Federal do Rio Grande do Norte
(UFRN) como requisito obrigatório para obtenção
do título de Mestre em Filosofia, sob orientação do
Prof. Dr. Edrisi de Araújo Fernandes.

Aprovada aos 30 de março de 2022.

BANCA EXAMINADORA
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes -
CCHLA

Santos, Diego Vinícius Brito dos.


Nietzsche e os valores modernos: um estudo sobre o
adoecimento moral do homem / Diego Vinícius Brito dos Santos. -
2022.
148f.: il.

Dissertação (mestrado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e


Artes, Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, 2022.
Orientador: Prof. Dr. Edrisi de Araújo Fernandes.

1. Civilização - Dissertação. 2. Impulsos - Dissertação. 3.


Homem - Dissertação. 4. Moral - Dissertação. 5. Fisiologia -
Dissertação. I. Fernandes, Edrisi de Araújo. II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 17.02

Elaborado por Ana Luísa Lincka de Sousa - CRB-15/748


A quem sabe dizer Sim
AGRADECIMENTOS

Ao professor Edrisi Fernandes, pela orientação, confiança, estímulo e apoio;


Ao poeta-filósofo Lindoaldo Campos, pelas incontáveis contribuições;
Ao professor Carlos Freitas, aquém, com honrosas gratidões, expresso meu apreço e admiração;
Ao professor Lourival (Prem Hasido), pela partilha de vossa luminosa sabedoria;
A Suellen Maria e Isadora (Ohana);
Aos professores Benjamim Julião de Góis Filho, Francisco de Assis Costa da Silva (Pe. Costa),
Galileu Galilei Medeiros de Souza, José Eudo Bezerra, José Francisco das Chagas Souza
(Deda), José Teixeira Neto, Marcos Érico de Araújo Silva, Maria Geane de Lima Ferreira,
Maria Reilta Dantas Cirino, Shirlene Santos Mafra Medeiros – uma segunda mãe que tive
prazer em conhecer –, Iva Costa e Umberto Araújo, pela acolhida deste a vossa família uerniana.
A Ana D'arc da Silva e Erivânia Medeiros (Vaninha);
A minha família (minha mãe, Ana Santana Cruz; meu pai, Erivaldo Brito dos Santos; meus
irmãos, Taisa Maria, Thiago Henrique e, em especial, a Geiza Venícia, minha querida irmã
filósofa-romancista, com quem sempre compartilho os mais inusitados momentos), pelos
incentivos e pelo incondicional apoio nesta trajetória;
Aos professores: Serjane de Queiroz Vale, tanto por me principiar à filosofia quanto pelo zelo
e incentivos ofertados em minha formação, Sueny Nóbrega e Suedson Relva Nogueira;
A UFRN, por proporcionar a continuação de minha formação acadêmica;
E aos amigos, amigas e amiges que, com saudosas lembranças, lhes levo em meu coração.
Eu me domestiquei / Pra fazer parte do jogo
Mas não se engane, maluco / Continuo bicho solto!

Pitty, Bicho solto


RESUMO

A presente pesquisa evidencia o diagnóstico fisiopsicológico de Nietzsche sobre o homem


moderno. Até o século XIX, poucos pensadores ousaram entender o mal-estar moderno que se
tornou fenomênico no curso de nossa história. Nietzsche é um dos primeiros pensadores a
suspeitar dos rebentos da modernidade, por isso ousou diagnosticar, compreender e até mesmo
propor resistência e tratamento aos males de ordem psicológica e fisiológica que o Estado, a
filosofia ocidental, a moralidade, o cristianismo e as promessas modernas impuseram de forma
coercitiva à vida e ao modo de viver do homem. À luz do pensamento nietzschiano, somos
levados à compreensão de que o contexto gregário adoentou o ser humano, dado que tal
contexto impetrou um nocivo melhoramento para atalhar a manifestação de impulsos
animalescos do homem dentro da esfera social. Quando os homens foram impelidos a não mais
expressar seus impulsos em um contexto de rebanho, tais impulsos retroagiram ao interior do
homem e, nesse interior, esses impulsos começaram a corroer o próprio homem de dentro para
fora. Os sintomas que dessa interiorização nasceram são: ressentimento, sofrimento, fraqueza,
impotência, fadiga, irritabilidade e outros. Dentre esses sintomas, empenhamos-nos em mostrar
como, principalmente, o ressentimento banalizou-se ou tornou-se comum em nossas sociedades
modernas. Porém, para chegarmos a esta constatação, examinaremos primeiro os três fatores
que propiciaram a interiorização do homem, a saber: memória, castigo e medo. Ao analisar
esses três fatores, traremos luz ao diagnóstico fisiopsicológico de Nietzsche sobre o estado
enfermo ou niilista do homem, além de propor um tratamento viável a tal estado.

Palavras chaves: Civilização; Impulsos; Homem; Moral; Fisiologia.


ABSTRACT

The present research highlights Nietzsche's physiopsychological diagnosis of modern man.


Until the 19th century, few thinkers dared to understand the modern malaise that has become
phenomenal in the course of our history. Nietzsche is one of the first thinkers to suspect the
offspring of modernity, so he dared to diagnose, understand and even propose resistance and
treatment to the psychological and physiological evils that the State, Western philosophy,
morality, Christianity and modern promises imposed in a coercive way on man's life and way
of living. In the light of Nietzsche's thought, we are led to the understanding that the gregarious
context made the human being sick, given that this context brought about a harmful upgrading
to cut short the manifestation of man's animalistic impulses within the social sphere. When men
were driven to no longer express their impulses in a herd context, these impulses retroacted to
the interior of the man, and within that interior, these impulses began to corrode the man himself
from the inside out. The symptoms that were born from this interiorization are: resentment,
suffering, weakness, impotence, fatigue, irritability and others. Among these symptoms, we
endeavor to show how, mainly, resentment has become commonplace or common in our
modern societies. However, to arrive at this finding, we will first examine the three factors that
led to the interiorization of man, namely: memory, punishment and fear. By analyzing these
three factors, we will shed light on Nietzsche's physiopsychological diagnosis of the sick or
nihilistic state of man, in addition to proposing a viable treatment for such a state.

Keywords: Civilization; Impulses; Human; Moral; Physiology.


SUMÁRIO

Notas de esclarecimento e lista de abreviaturas das obras de Nietzsche 10


INTRODUÇÃO 13
QUADRO CLÍNICO 23
NIILISMO 23
NIILISMO COMO ESTADO PSICOLÓGICO 23
SENHORES E ESCRAVOS 27
NIILISMO NEGATIVO 31
Ideal ascético 31
Mundos? 37
NIILISMO REATIVO 46
“Deus está morto! Nós o matamos!” 48
MENSCH 54
É homem ou animal? 54
É... Útil? A Quê? 66
NIILISMO ATIVO 75
As metamorfoses do espírito 75
É camelo? 76
É leão? 79
É livre? 83
É criança? 88
É avaliador? 91
Tem boa memória? 97
Ou... sabes esquecer? 114
O que potencialmente é? 118
Ama a vida? “Se” sim: é criador! 128
A seleção 131
Anotações finais 137
REFERÊNCIAS 140
10

Notas de esclarecimento e lista de abreviaturas das obras de Nietzsche

Para a realização desta dissertação, foram utilizadas as seguintes abreviações e normas:

BA/EE – Über die Zukunft unserer Bildungsanstalten (Sobre o futuro dos nossos
estabelecimentos de ensino)
PHG/FT – Die Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen (A filosofia na idade trágica
dos gregos)
WL/SVM – Über Wahrheit und Lüge im aussermoralischen Sinn (Sobre verdade e mentira no
sentido extra-moral)
DS/Co. Ext. I – Unzeitgemässe Betrachtungen. Erstes Stück: David Strauss: Der Bekenner und
der Schriftsteller (Considerações extemporâneas I: David Strauss, o devoto e o escritor)
HL/Co. Ext. II – Unzeitgemässe Betrachtungen. Zweites Stück: Vom Nutzen und Nachteil der
historie für das Leben (Considerações extemporâneas II: Da utilidade e desvantagem da
história para a vida)
SE/Co. Ext. III – Unzeitgemässe Betrachtungen. Drittes Stück: Schopenhauer als Erzieher
(Considerações extemporâneas III: Schopenhauer como educador)
MAI/HDH I – Menschliches allzumenschliches vol. 1 (Humano, demasiado humano vol. 1)
MAII/HDH II – Menschliches allzumenschliches vol. 2 (Humano, demasiado humano vol. 2)
M/A – Morgenröte (Aurora)
FW/GC – Die fröhliche Wissenschaft (A Gaia Ciência)
Za/ZA – Also sprach Zarathustra (Assim falou Zaratustra)
JGB/ABM – Jenseits von Gut und Böse (Além de Bem e Mal)
GM/GM – Zur Genealogie der Moral (Genealogia da Moral)
GD/CI – Götzen-Dämmerung (Crepúsculo dos Ídolos)
AC/AC – Der Antichrist (O Anticristo)
WA/CW – Der Fall Wagner (O caso Wagner)
EH/EH – Ecce homo (Ecce homo)
FF – Fragmentos Finais (compilação de fragmentos póstumos)
FE – Fragmentos do Espólio – julho de 1882 a inverno de 1883/1884 (compilação de
fragmentos póstumos)
SA – Sabedoria para depois de amanhã (seleção de fragmentos póstumos)
NF/FP – Nachgelassene Fragmente (Fragmentos Póstumos)
KSA – Kritische Studienausgabe
11

Regra geral: os aforismos serão indicados com algarismos seguidos da sigla da respectiva obra,
por exemplo, FW/GC, 45 indica o aforismo 45 da Gaia Ciência. Entretanto, em relação a certas
obras, alguns esclarecimentos serão essenciais:

i) Em Assim falou Zaratustra, o número romano, junto à sigla do trabalho, refere-se à parte do
trabalho consultado e, posteriormente, o título do discurso é transcrito (e, quando apropriado, é
indicado, pelo número árabe, o número de parágrafo). Assim, Za/ZA, III, Da visão e do
enigma, 1 indica, em Assim falou Zaratustra, o primeiro parágrafo do discurso assim intitulado,
o qual aparece na terceira parte deste trabalho. A tradução de Mário da Silva (São Paulo: Círculo
do Livro, 1986) foi usada como texto base.

ii) Na Genealogia da moral, o número romano refere-se à dissertação e o número árabe, que
segue o número romano, refere-se ao parágrafo. Portanto, GM/GM, I, 3 indica, nesta obra, o
terceiro parágrafo de sua primeira dissertação.

iii) No caso de Crepúsculo dos ídolos, após a sigla, o capítulo será indicado e, em sequência, o
número árabe que fará referência ao parágrafo consultado. Assim, GD/CI, Os quatro grandes
erros, 5 indica, neste trabalho, o parágrafo 5 do capítulo mencionado.

iv) No Ecce Homo, o número árabe, adjacente à sigla, refere-se ao aforismo consultado. Assim,
EH/EH, NT, 2 indica, em Ecce Homo, o segundo aforismo do capítulo intitulado O nascimento
da tragédia (NT). Para as outras seções, com títulos que não se referem às obras de Nietzsche,
elas serão expressamente indicadas (por exemplo: Por que sou tão sábio, Por que sou tão
inteligente, Por que escrevo tão bons livros etc.).

v) Em Humano, demasiado humano, vol. 2, a primeira parte (Opiniões e sentenças diversas)


será indicada por MAII/HDH II, OP. A segunda parte (O andarilho e sua sombra) será
indicada por MAII/HDH II, AS. O número arábico que lhes segue indica o aforismo.

vi) A referência a aforismos, contidos em Prólogos, Apêndices e seções relacionadas, irá ser
feita expressamente, para diferenciá-los daqueles que têm uma numeração idêntica no restante
do trabalho. Portanto, MAI/HDH I, Prólogo, 8 indica o aforismo 8 do Prólogo do Humano,
demasiado humano, Vol. 1; por sua vez, MAI/HDH I, 8 indica o aforismo 8 do corpo textual
deste mesmo trabalho.

vii) Para designar os fragmentos póstumos (ou anotações de Nietzsche), foi utilizada a
numeração usada pela edição crítica das obras de Nietzsche, preparada por Giorgio Colli e
Mazzino Montinari (KSA), indicando o ano, o número atribuído aos cadernos e o número, entre
colchetes [ ], do fragmento. Nesse sentido, NF/FP de 1888, 14[14], in: Fragmentos póstumos,
Vol. IV, p. 521 indica o Fragmento Póstumo 14 do caderno 14 da primavera de 1888, transcrito
na página 521 da edição espanhola dos Fragmentos Póstumos dirigida por Diego Sánchez Meca
e traduzida por Juan Luis Vermal e Joan B. Llinares (Vol. IV. 2ª ed. Madrid: Editorial Tecnos
(Grupo Anaya, S. A.), 2008). Salvo indicações em contrário, as traduções dos fragmentos
póstumos desta edição (volumes I, II, III e IV) são de nossa autoria e responsabilidade. Para
referenciar e diferenciar os fragmentos póstumos contidos nas obras Fragmentos Finais (FF),
Fragmentos do Espólio (FE), Sabedoria Para Depois de Amanhã (SA) e no texto Sobre o
Niilismo e o Eterno Retorno (SNER) elaborado por Rubens Rodrigues Torres Filhos, emprega-
se a numeração constante da edição crítica das obras de Nietzsche e indica-se, mediante a sigla,
12

a obra utilizada, além da paginação na qual ocorreu a transcrição do fragmento. Assim, NF/FP
de 1888, 14[36], in: FF, p. 151 indica o fragmento póstumo 36 do caderno 14 do ano de 1888,
transcrito na página 151 da obra Fragmentos Finais (seleção, tradução e prefácio de Flávio R.
Kothe. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008). NF/FP de 1882, 4[77], in: FE, p. 130
indica o fragmento póstumo 77 do caderno 4 do ano de 1882, transcrito na página 130 do livro
Fragmentos do espólio – julho de 1882 a inverno de 1883/1884 (seleção, tradução e prefácio
de Flávio R. Kothe. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008). NF/FP de 1883, 22[1],
in: SA, p. 159 indica o fragmento póstumo 1 do caderno 22 do ano de 1883, transcrito na página
159 do livro Sabedoria Para Depois de Amanhã (seleção dos fragmentos póstumos por Heinz
Friedrich e tradução por Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2005). E, por fim, NF/FP
de 1881, 11[148], in: SNER, p. 389-390 indica o fragmento 148 do caderno 11 do ano de 1881,
transcrito no corpo do texto Sobre o Niilismo e o Eterno Retorno (in: Obras incompletas. 3. ed.
Tradução e notas de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 377-
397). Embora o referido texto não indique o ano, o número dos cadernos e o número, entre
colchetes [ ], dos fragmentos, estes elementos serão por nós expressamente indicados.

viii) A Digitale Kritische Gesamtausgabe [edição digital das obras de Nietzsche concebida por
meio da KSA sob a direção de Paolo D'Iorio. Disponível em:
<http://www.nietzschesource.org/texts/eKGWB> (website gerenciado pela Association
HyperNietzsche e hospedado pela École Normale Supérieure – Paris)] foi de fundamental
importância à identificação de termos e expressões contidos no original.

ix) Na transcrição de alguns textos (nomeadamente aforismos breves e trechos de discursos da


obra Assim falou Zaratustra) certas normas técnicas, relativas a recuos e espaçamentos, foram
deliberadamente afastadas.

x) Para indicar os trabalhos da coleção Obras Incompletas (tradução e notas de Rubens


Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural – Col. Os Pensadores), a abreviação do título
dar-se adjacente ao ano da edição consultada entre parênteses. Assim, enquanto JGB/ABM
indica o livro Além do bem e do mal (tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. São
Paulo: Companhia das Letras, 2005), a indicação JGB/ABM (1983) refere-se ao Além do bem
e mal (in: Obras incompletas. 3. ed. Tradução e notas de Rubens Rodrigues Torres Filho. São
Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 267-294).

xi) Salvo indicação em contrário, todos os destaques (itálico/ negrito) trazidos em transcrições
constam nos textos originais, isto é, são de seus/suas respectivos/as autores/as.
13

INTRODUÇÃO

Nietzsche é um dos filósofos que mais dá margem a interpretações que temos em nossa
tradição. Podemos encontrar o filósofo e seu pensamento sob as mais diversas máscaras e
facetas: do filósofo de direita ao poeta, do “apolítico” ao anarquista, do pessimista ao médico,
do lúdico ao absurdo, do antimoral ao extramoral, do louco ao músico, etc. Isso não é nenhum
problema em si, mas sim a constatação de que Nietzsche é, para usar um dos termos de Michel
Foucault, uma caixa de ferramentas a serviço de nossos múltiplos interesses intelectuais,
principalmente quando se trata de interpretar (e, talvez, ver) o mundo. Todavia, embora esse
caráter do pensador seja benéfico, ele pode ser um obstáculo quando tentamos interpretar o
filósofo pelas lentes daqueles que porventura já nos antecederam. Nesta dissertação procuramos
tecer uma interpretação do filósofo com o propósito de remascará-lo para redescobrir, nele e
em sua obra, respostas à gradual perda de sentidos em nossas sociedades modernas.
Sabemos que a obra de Nietzsche nos oferece um denso e laborioso diagnóstico
filoclínico de nós mesmos e de nossa sociedade. Daí nosso interesse de evidenciar o diagnóstico
fisiopsicológico (ou psicofisiológico) do homem1 elaborado pelo Nietzsche-psicólogo. Por
meio dos atuais estudos psicossomáticos, a hipótese de que psicoses ou neuroses podem
germinar em decorrência de uma fisiologia adoentada já nos aparece como um prognóstico
suficientemente acertado. Nietzsche, ao manusear a fisiologia em suas reflexões sobre a

1
Ao longo do corpo do texto, há uma acentuada utilização da palavra homem devido ao termo alemão Mensch.
No entanto, nos é notório que Mensch abrange três admissíveis elucidações no português, sendo elas: i) homem,
ii) humano e iii) ser humano. À vista disso, Mensch não se refere apenas ao gênero masculino, visto que as
traduções: humano e ser humano, embora sejam traduções masculinas, englobam tanto o gênero masculino quanto
o feminino em suas respectivas acepções. Logo, ainda que o presente texto empregue a tradução homem, deve-se
ter em mente que seu sentido não se atém somente ao gênero masculino. Citando caso análogo, quando nos
referimos aos impulsos do homem, com efeito queremos aludir os impulsos do ser humano. Outra analogia factível
é a tradução super-homem que, quando popularizada como tradução do termo Übermensch, parece querer
privilegiar tão somente o gênero masculino em seu significado, contudo, apesar dessa distorção gramatical, nos é
notório que o ato de se tornar Übermensch não é restrito ao homem, já que, segundo Toni Llácer (El superhombre
y la voluntad de poder, p. 98, [salvo assinalamentos em contrário, nas transcrições desta obra, todas as traduções
são de nossa autoria e responsabilidade]), “o substantivo ‘Mensch’ se refere ao ‘ser humano’ em geral, tanto
masculino quanto feminino”. À vista disso, recusamos, quase que por integral, as afirmações lapidadas no capítulo
Das mulheres, velhas e jovens no Zaratustra, por entender que se o indivíduo (seja este homem ou mulher) é
vontade de poder e nada mais do que isso, já que este é o ser próprio do ser humano, o gênero biológico, portanto,
não pode opor-se ao querer-crescer, querer-dominar, o querer-criar e, sobretudo, ao querer-ser-mais-do-que-se-é.
Ademais, deve-se ter em mente que o Übermensch é uma possibilidade futura intranscendente ou imanente do ser
homem, portanto, tal possibilidade nunca aconteceu, quer dizer: nem o próprio Nietzsche detinha consigo a virtude
dadivosa da clarividência para afirmar quem vai ou não se tornar tal Übermensch, aliás, como procuramos
evidenciar, tal possibilidade pode inclusive não acontecer. Quanto ao que pode ou não o homem e a mulher, a
partir da obra Sex and Temperament (1935) de Margaret Mead, podemos afirmar que não há nenhum elemento
inato, fisiológico ou psicológico que determine o temperamento de ambos os gêneros, nem suas possibilidades de
vir a ser ou muito menos o que pode ou não os gêneros, já que os papéis de gêneros são apenas imposições
socioculturais. É preciso que tenhamos em mente que, por trás dos papéis de gênero e de nossas imposições sociais,
há somente indivíduos em perpétua transformação e livres para ser aquilo que potencialmente são.
14

civilização e sobre o homem, ao nosso ver, contribuiu profundamente para diagnosticar nossas
visíveis patologias modernas. Assim, entre as tarefas de que Nietzsche se ocupou, parece-nos
que o diagnóstico da civilização moderna ocupou um lugar de ênfase em sua obra. Nietzsche
fez da civilização sua paciente, visando identificar seus males fisiopsicológicos. Assim como
procuraremos evidenciar, a Europa, centro de grandes acontecimentos históricos, políticos e
científicos imprescindíveis para o desenvolvimento da civilização moderna e de onde nos
escreve o filósofo, possuía um espírito adoentado, decadente e fraco, estes fatores nos oferecem
subsídios para questionarmos o seguinte: se a civilização europeia se encontrava doente, o que
dizer do homem moderno? Não vos soaria estranho afirmar que é possível (sobre)viver em um
ambiente insalubre sem adoecer ou perecer? Nossa hipótese é esta: o homem da modernidade
encontra-se adoentado. Para defender essa hipótese, iremos identificar os sintomas do
adoecimento do homem a partir da relação entre a sociedade, o homem e a moralidade.
Essa relação, Nietzsche a elabora, sobretudo, em sua Genealogia2, especialmente na
segunda dissertação, onde ele mostrará que a vida em comunidade adoeceu o ser humano ao
operar um processo de melhoramento3 que impedisse que os impulsos humanos se
expressassem na esfera social. Quando os homens se tornaram incapazes de expressar tais
impulsos em um contexto de rebanho, eles retroagiram ao interior dos homens e, nesse interior,
esses impulsos começaram a corroer o próprio homem de dentro para fora. Os sintomas que
dessa interiorização nasceram são: ressentimento, sofrimento, fraqueza, impotência, fadiga,
irritabilidade, apequenamento, mal-estar e outros. Dentre esses sintomas, destacaremos,
principalmente, o ressentimento, já que este foi transformado pelo sacerdote ascético em um
sentimento de culpa a partir da relação contratual entre homem e Deus, o seu credor tido em
um para-além-da-vida. Porém, para chegarmos a esse quadro clínico, examinaremos primeiro
os três fatores que propiciaram tal internalização, a saber: a memória, o castigo e o medo.

2
Em algumas passagens, nos referimos às obras de Nietzsche de forma abreviada, à exemplo da Genealogia e do
Crepúsculo. Para saber que se trata de uma obra, destacamos todas as ocorrências em itálico.
3
No Crepúsculo do ídolos, Nietzsche mostrou que “tanto o amansamento da besta-homem como o cultivo de uma
determinada espécie de homem foram chamados de ‘melhoria’: somente esses termos zoológicos exprimem
realidades – realidades, é certo, das quais o típico ‘melhorador’, o sacerdote, nada sabe – nada quer saber”. Nesse
sentido, ao longo do texto, para não haver equívocos sobre o que se pretende dizer com o termo melhoramento e
derivados, antecipamos que os seus usos literários e gramaticais serão afastados e, em seus lugares, será indicado
a percepção nietzschiana aos termos, ou seja, onde se ler: “melhoria”, “melhoramento” e outros derivados com o
mesmo radical que se refiram à ação de melhorar e “melhorado” ou derivados que se refiram ao alvo da ação, vós
deveis realocar em seus sentidos usuais os seguintes significados: “amansamento” e “domesticação” a termos que
expressem a ação de melhorar e “amansado” ou “domesticado” para termos que se referem ao alvo da ação de
melhorar. Queremos, com isso, evitar desacertos literários e preservar o lampejo intelectual de Nietzsche, visto
que ele próprio nos deixa registrado que “chamar a domesticação de um animal sua ‘melhora’ é, a nossos ouvidos,
quase uma piada” (todas as transcrições nesta nota são de GD/CI, Os “melhoradores” da humanidade, 2).
15

À vista disso, partiremos da investigação sobre o desenvolvimento da memória, visto


que, para iniciar suas investigações sobre o sentimento de culpa, sobre a má consciência e coisas
afins, Nietzsche parte de duas questões, a saber: “criar um animal que pode fazer promessas –
não é esta a tarefa paradoxal que a natureza se impôs, com relação ao homem? Não é este o
verdadeiro problema do homem?”4. O ato de fazer promessas requer dois aspectos: a
consciência e a memória. A consciência, como será apresentada, é um órgão humano que só
mais tarde foi concedido e aperfeiçoado devido à necessidade de comunicação. Embora seja
preciso determos alguma atenção a ela, daremos foco ao exame e investigação de Nietzsche
sobre a faculdade da memória, já que, juntamente com a consciência, ela marca “o limiar
inaugural do processo de hominização”5. O animal homem, neste processo, como será
apresentado, foi severamente coagido e violentado para que fosse possível separá-lo de sua
própria natureza, visando sua adaptação no contexto sócio-moral que foi estabelecido.
Nenhum outro animal da natureza se propôs a desnaturar-se no mesmo nível e
expressividade que o ser humano. Porém, ele precisava ser “melhorado” e ter a sua bestialidade
domada, para que pudesse conviver entre seus semelhantes e, por esse motivo, não a natureza,
mas a sociedade precisava cultuar um ser qualificado para prometer e lembrar suas promessas,
para que, além de obrigações, fosse incorporada uma certa confiança nele, o que garantiria que
esse animal pudesse ser espontaneamente controlável. Isto significa dizer que a mnemotécnica6
foi indispensável para “arrancar o [bicho] homem da prisão do instante e do esquecimento[,
típico dos animais], tornando possível o prever, o calcular, o antecipar uma representação que
insere o agir efetivo como efeito na cadeia da vontade, como seu resultado futuro”7. De acordo
com Nietzsche, essa finalidade, a de transformá-lo em um ser habilitado para prometer e
lembrar, “traz consigo, como condição e preparação, a tarefa mais imediata de tornar o humano
até certo ponto necessário, uniforme, igual entre iguais, constante e, portanto, confiável”8.
Assim sendo, era imperativo que ele incorporasse em seu aparato fisio-psíquico aquilo que

4
GM/GM, II, 1.
5
Oswaldo Giacoia Jr., Nietzsche como psicólogo, p. 106.
6
Segundo Nicola Abbagnano (Dicionário de filosofia, p. 675), mnemotécnica ou mnemônica é uma “arte de
cultivar a memória”. Todavia, segundo Oswaldo Giacoia Jr. (Nietzsche como psicólogo, p. 110), o uso da
mnemotécnica sui generis é o meio pela qual “se desenvolve a própria faculdade da memória e não meramente
uma técnica para inserir preceitos particulares numa memória já desenvolvida”. Portanto, a mnemotécnica
associada à punição, como evidenciamos no corpo do texto, possibilita com que o homem se separe da sua
faculdade de esquecimento, sendo forçado a lembrar suas responsabilidades morais e cívicas perante seu maior
credor, a sociedade (ou Estado).
7
Oswaldo Giacoia Jr., Nietzsche como psicólogo, p. 107 – acrescentamos.
8
GM/GM, II, 2.
16

Nietzsche designa por “moralidade do costume”9, ou seja, o animal homem teve que trazer,
para dentro de seu mundo interior, o éthos e a cultura criados na sociedade. Estes, segundo o
filósofo de Röcken, são, por assim dizer, uma “camiseta de força social”10, uma vez que a
moralidade do costume é a protagonista no processo de interiorização do indivíduo, na medida
em que ela veta a manifestação dos impulsos bestiais do homem dentro do âmbito social.
Para Nietzsche, a vida é vontade de poder, dado que, de acordo com Zaratustra, o seu
alter ego: “onde encontrei vida, encontrei vontade de poder”11. Todavia, com o estabelecimento
dessa moralidade dos costumes, o querer-crescer, expandir, dominar, ultrajar e outros quereres,
foram restringidos em prol de ídolos no além ou ídolos modernos, como Deus, Estado e a
ciência os quais, em tese, conduziriam o homem ao cume do progresso. Nietzsche escreve sobre
a noção de progresso nO Anticristo, onde ele afirma que “a humanidade não representa um
desenvolvimento para melhor ou mais forte ou mais elevado, do modo como hoje se acredita.
O ‘progresso’ é apenas uma ideia moderna, ou seja, uma ideia errada”12. Neste sentido, entende-
se que a vida moralizada do homem moderno não constitui um melhoramento, uma superação
ou um avanço, mas sim o seu oposto, pois o que se verifica no gregarismo moderno e social é
“a diminuição dos instintos hostis e que geram desconfiança – este seria o nosso ‘progresso’ –
representa só uma das consequências, na diminuição geral da vitalidade”13.
À vista dessa afirmação, tentaremos entender como e por que a moral14, derivada da
religião, particularmente, do cristianismo, da modernidade e da filosofia, promoveu a
domesticação (Zähmung) do homem e de seus impulsos. Esta pretensão estará alinhada com a
declaração de que “todas as forças e pulsões mediante as quais há vida e crescimento estão
temperados com o fascínio da moral: moral como instinto de negação da vida. É preciso
aniquilar a moral para libertar a vida”15. No que se refere à última declaração, a de aniquilar a
moral, se tomará ela como ponto de referência à tentativa de uma transvaloração de todos os

9
Cfr. GM/GM, II, 2. Oswaldo Giacoia Jr. (Nietzsche como psicólogo, p. 109 – acrescentamos) traduziu a expressão
por “eticidade dos costumes (Sittlichkeit der Sitte); [a qual] trata-se do processo de consolidação de hábitos, usos
e praxes, por meio do qual a humanidade fixa e desenvolve, para si mesma, as formas regulares do ethos, dos
fundamentos daqueles que doravante seriam os seus principais modos de existência”. A primeira ocorrência do
termo, no conjunta das obras de Nietzsche, é no aforismo 9 de Aurora, no qual se localiza sua conceituação: “a
moralidade [ou: eticidade] [dos costumes] não é outra coisa (e, portanto, não mais!) do que obediência a costumes,
não importa quais sejam” (M/A, I, 9 – acrescentamos). Também é possível percebê-lo no segundo volume de
Humano, demasiado humano (cfr. MAII/HDH II, OP, 89).
10
Cfr. GM/GM, II, 2.
11
Za/ZA, II, Do superar a si mesmo.
12
AC/AC, 4.
13
GD/CI, Incursões de um extemporâneo, 37.
14
Ao nos referir ao termo moral estamos querendo aludir, assim como assinala Gianni Vattimo (Introdução a
Nietzsche, p. 87), a “moral-metafísica platônico-cristã”.
15
NF/FP de 1886, 7[6], in: FF, p. 112.
17

valores. Portanto, a moralidade dos costumes não só será apontada como o erro mais perigoso
já germinado na terra, mas também mostraremos o caminho que Nietzsche concebe em
contrapartida a ela, um novo caminho que visa estabelecer uma afirmação entre o homem, seus
impulsos e sua vida. Embora, ao tratar desse assunto em especifico, extrapolamos nosso escopo
inicial, que é apenas mostrar a doença fisiopsicológica do homem, faz-se importante ressaltar
que Nietzsche tanto verifica a enfermidade como também lhe prescreve um tratamento.
Para darmos conta de compreender, identificar e evidenciar o mal que a moralidade
concebeu ao homem da modernidade, estaremos utilizando obras dos três períodos do
pensamento nietzschiano. O literary corpus de trabalhos utilizados nesta pesquisa se deve ao
fato de que “esse vínculo entre filosofia e a questão da civilização, Nietzsche o estabelecia
desde os seus primeiros escritos”16. Assim sendo, embora o pensamento do autor tenha passado
por um processo de amadurecimento ao longo do tempo e de suas experiências, é importante
entender as nuâncias de pensamento entre os primeiros escritos e os escritos finais, a fim de ter
uma visão macro sobre nosso objeto de estudo. À luz disso, nesta pesquisa, utilizaremos obras
do período juventude (1870 a 1876) (Sobre o futuro de nossas instituições de Ensino [1872],
Sobre Verdade Mentira no sentido extramoral [1873] e as Considerações Extemporâneas
[1873/74]) para desenvolver uma crítica à concepção de verdade e para mapear os primeiros
vestígios da proposta de educação de Nietzsche. Já na fase intermediaria (1876 a 1882), foi
necessário o manejo de Humano, demasiado humano (1878/80), Aurora (1880/81) e A Gaia
Ciência (1881/82) para dissertarmos sobre a concepção de espírito livre em relação ao saber
cientifico e sobre as primeiras concepções críticas de Nietzsche a respeito de nossos
preconceitos morais. Já as obras de maturidade, que compreendem desde o Assim Falou
Zaratustra (1883/85) ao Ecce Home (1888), serão utilizadas, sobretudo, para evidenciarmos a
crítica de Nietzsche à moral e para apresentarmos a prescrição nietzschiana às patologias
decorrentes de nossa moralidade moderna. As anotações póstumas de Nietzsche também serão
utilizadas como um recurso adicional para compreendermos temas e conceitos que porventura
careçam de definições objetivas nas obras publicadas em vida. Por fim, não temos a pretensão
de seguir uma linha de investigações cronológica da obra de Nietzsche, já que o filosofo se
apresenta como assistemático. Trabalhar com esse denso material intelectual requer, por vezes,
traçar paralelos entre obras escritas em momentos e fases diferentes, relacionar as anotações
póstumas com as obras publicadas, recolher definições de conceitos talhados tanto em obras
diferentes como em anos diferentes, analisar densos aforismos e se perder em um mar de

16
Carlos A. R. de Moura, Nietzsche: civilização e cultura, p. XIII.
18

interpretações possíveis. Por esses e outros motivos, não nos prenderemos à cronologia das
obras, por entender que ir à obra de Nietzsche requer jogo de cintura e astucia para navegar em
um pensamento poético, aforismático, rico em metáforas e simbologias e experimental.
Posto isso, por meio da declaração de guerra17 nietzschiana e de suas duras marteladas18
filosóficas, mostraremos o árduo combate do pensador contra “todos os velhos monstros da
moral”, que gritam em um só coro: “‘il faut tuer les passions’”19. Dessa forma, além da
religião20, disserta-se acerca daqueles que, por meio de “ídolos”21, imperativos morais,
máximas universais e “conceitos-múmias”22, negam tudo que é fruto do vir-a-ser, da mudança,
dos fenômenos, do corpo e, por consequência, da própria vida. Essa enunciação de batalha se
iniciará com o filósofo Sócrates que difundiu entre os gregos uma cosmovisão de um outro
mundo, um mundo verdadeiro, que conteria consigo verdades absolutas. A partir da fábula deste
mundo verdadeiro, será mostrado que a busca do homem foi até agora uma busca pelo nada, de
tudo o que não existe e do que não possui valor ou utilidade efetiva à vida. Ao apresentar e
entender tal mundo e outras coisas como ficções, fabulações e criações humanas decorrentes da
vontade de verdade e produzidas por meio de nossa linguagem metafísica, procuraremos
compreender o porquê de, “em todos os tempos, os homens mais sábios fizeram o mesmo
julgamento da vida: ela não vale nada... Sempre, em toda parte, ouviu-se de sua boca o mesmo
tom – um tom cheio de dúvida, de melancolia, de cansaço de vida, de resistência à vida”23.
À vista disso, tentaremos compreender a razão pela qual a vida e tudo aquilo que compõe
o mundo do vir-a-ser terem sidos apontados em uma perspectiva má (böse, schlecht) até então.

17
Cfr. GD/CI, Prólogo. Para não ser entendido inadequadamente, o que é indicado como guerra, nada mais é do
que a “campanha contra a moral” de Nietzsche. Desta forma, a locução guerra não deve ser compreendida ipsis
litteris, dado que essa campanha bélica não “tinha o menor cheiro de pólvora”, entretanto, seria concebível que
vós e muitos outros se surpreendessem com “odores inteiramente outros, e bem mais agradáveis, desde que se
tenha alguma finura nas narinas” (todas as transcrições nesta nota de rodapé são do EH/EH, A, 1).
18
O martelo possui duas características: ele não apenas destrói, mas o ato de criar também lhe é característico.
Para interpretar isso, Nietzsche concede o imperativo “‘tornai-vos duros!’, a mais básica certeza de que todos os
criadores são duros”. Ser criador equivale a ser tão duro quanto o martelo, pois “em direção ao homem leva-me
sempre minha fervorosa vontade de criar; assim é levado o martelo à pedra”. Assim como o ferreiro, que cria
objetos lhes martelando numa bigorna, o ser humano pode martelar para criar valores e destruir seus valores para
reconstruir, porque a ação de martelar valores é ora destruir velhos valores, ora criar novos valores. Para Nietzsche,
criar é “a grande redenção do sofrimento, é o que torna a vida mais leve” (todas as transcrições nesta nota de
rodapé são de EH/EH, ZA, 8).
19
GD/CI, Moral como antinatureza, 1.
20
É importante compreendermos que a religião não é um problema em si, ela não é nada contra o que se deva
lutar, pois a religião pode e deveria servir de meio para o cultivo e a educação de homens superiores. O real
problema da religião é seu querer ser um fim e uma salvação àqueles que deveriam perecer e não ser preservados
(cfr. JGB/ABM, 61).
21
No Ecce Homo, Nietzsche oferece uma definição do que são os ídolos, escreve ele: “o que no título se chama
ídolo é simplesmente o que até agora se denominou verdade. Crepúsculo dos Ídolos – leia-se: adeus à velha
verdade” (EH/EH, CI, 1).
22
Cfr. GD/CI, A “razão” na filosofia, 1.
23
GD/CI, O problema de Sócrates, 1.
19

Buscaremos essa compreensão na terceira dissertação da Genealogia, onde Nietzsche escreve


sobre a noção dos ideais ascéticos e, a partir dessa dissertação, evidenciaremos que por meio
da criação de um mundo ideal para-além-da-vida, seja ao modo dos filósofos ou ao modo do
cristianismo, a vida ou a própria “realidade foi despojada de seu valor, seu sentido, sua
veracidade”, dado que “a mentira do ideal foi até agora a maldição sobre a realidade, através
dela a humanidade mesmo tornou-se mendaz e falsa até seus instintos mais básicos – a ponto
de adorar os valores inversos aos únicos que lhe garantiriam o florescimento”24. Ciente dessa
observação, um dos temas fundamentais da filosofia de Nietzsche pode ser entendido, o qual
consiste na “libertação do homem da servidão dos ideais transcendentes (Deus, a moral, o
ultramundo metafísico)”25, visto que Nietzsche nos propõe a não submissão perante essas
figuras e sequer que lhes enxerguemos como verdades, dado que eles são produção humana.
Ao que parece a humanidade se esqueceu que foi ela quem deu valor aos objetos e, por
esquecimento, presume que esses ídolos e suas invenções são verdadeiros/as. Porém, ídolos são
só metáforas e símbolos humanos, criados por homens impotentes, fracos e sofredores que se
agarram na esperança de seu ideal ascético, abstendo-se de viver a única vida possível.
Nesse sentido também precisaremos compreender quais são os critérios dessa avaliação
negativa sobre a vida. Para tal, duas perguntas foram feitas para guiar essa análise, a saber: (i)
o que os filósofos idiossincráticos e os moralistas modernos aspiram ao agir contra os impulsos
do ser humano? (ii) Por que existe uma certa rejeição na criação de uma nova moralidade? O
que ainda nos impede de realizar uma transvaloração? Essas perguntas serão respondidas no
decorrer desta produção. No entanto, torna-se relevante apresentar nossas deduções agora,
visando evidenciar nossa hipótese prévia antes do desfrute subsequente. Em primeiro lugar,
parece que a inibição dos impulsos do homem supõe duas prováveis razões, a saber: (i) a
domesticação do animal homem, para proporcionar seu melhoramento civilizatório e (ii)
impossibilitar erros e ilusões que fazem com que filósofos não alcancem um suposto
conhecimento transcendental (transzendentales Wissen) e verdadeiro localizado em outro
mundo. Quanto à recusa em se criar outra moralidade, foram encontradas duas razões
relevantes, a saber: (i) em consenso com Nietzsche, na esfera gregária, o homem prefere
“obedecer a uma lei vigente ao invés de criar uma lei própria, que obrigue o autor e outros a
obedecer. O medo de comandar – melhor se submeter em vez de reagir”26 e (ii) também porque
o homem “deseja que nenhuma outra doutrina e apreciação das coisas venha a se impor que não

24
Ambas transcrições são EH/EH, Prólogo, 2.
25
Eugen Fink, A filosofia de Nietzsche, p. 59.
26
NF/FP de 1886, 7[6], in: FF, p. 113. Sobre a obediência, cfr. JGB/ABM, 199.
20

seja aquela em que ele próprio se dá bem”27 e que lhe traga a sensação de bem-estar.
O que a sociedade fez senão cultivar um tipo de homem que é infeliz consigo e o algemar
a um cativeiro social agressivo com qualquer impulso saudável? É preciso cultivar novos
homens, livres desse cativeiro moral, como os espíritos livres já que eles, por não serem
adoentados ou semelhantes ao humano moderno, não são guiados por verdades, deveres morais
e/ou por qualquer ilusão moderna, pois o espírito livre é

o grande cético que suspeita daquilo que até agora o homem confiava. Ele
possui o olhar maldoso, penetra nos segundos planos vitais de todos os
“ideais”, ilumina o mundo subterrâneo da santidade, da verdade e do bem e
traz para a luz coisas curiosas.28

Em um discurso no Zaratustra, é-nos permitido obter uma tipologia desses espíritos


livres, no momento em que Zaratustra fala: “Mas quem é odiado pelo povo como um lobo pelos
cães: esse é o espírito livre, o inimigo dos grilhões, que não adora ninguém, que mora nas
selvas”29. Dessa forma, pode-se entender esse espírito livre como uma ultrapassagem ou contra
efígie do homem moderno, do homem enfermo, que mantém seu querer preso em grilhões
sociais, morais e em ídolos. O espírito livre reside nas florestas e montanhas, porque lhe é
estranho conviver no coletivo, onde as diferenças entre os homens devem ser suprimidas em
prol do bem-estar social, do progresso e do ordenamento social ou onde os impulsos bestiais do
homem são domados, visando homogeneizar todos/as em um ideal de ser humano.
Por meio dessa constatação, é preciso redizer no que constitui a empreitada filosófica
de Nietzsche. Em uma nota de observação, o filósofo lança a seguinte reflexão sobre si mesmo:
“Devolver ao homem mau a boa consciência [gute Gewissen] – terá sido esse o meu esforço
involuntário?”30. Diante tal interrogação, nessa produção adota-se a alegação de que Nietzsche
não toma como dever a pretensão de melhorar o homem ou a de lhe oferecer uma verdade, pois
ele certifica que “a última coisa que [...] prometeria seria ‘melhorar’ a humanidade. Eu não
construo novos ídolos; os velhos que aprendam o que significa ter pés de barro. Derrubar
ídolos (minha palavra para ‘ideais’) – isto sim é meu ofício”31. Portanto, tornar-se esse espírito
livre é um processo individual de homens que já não sabem “viver nos dias de hoje. Já que é

27
NF/FP de 1885, 2[168], in: FF, p. 108.
28
Eugen Fink, A filosofia de Nietzsche, p. 58.
29
Za/ZA, II, Dos famosos sábios.
30
NF/FP de 1886, 7[6], in: FF, p. 120 – acrescentamos.
31
EH/EH, Prólogo, 2 – suprimimos e destacamos com negrito.
21

esse o melhor modo – de continuardes [...] vivos”32, daí a importância de possuir coragem e
vontade para o proibido, para novas experiências e tentativas de se viver autenticamente.
***
Por fim, para responder aos tópicos e objetivos mencionados acima, esta dissertação não
será dividida em capítulos, como tradicionalmente se faz, mas em momentos. No primeiro
deles, trataremos sobre o niilismo como estado psicológico e, em sequência, evidenciaremos
três de suas formas, sendo estas: negativo, reativo e passivo. Essas formas nos farão
compreender o niilismo em sua forma completa, o niilismo ativo, enquanto uma possível saída
à ausência de sentido da vida e uma possível oportunidade à criação de novos valores. Porém,
como antecipado, no que diz respeito ao niilismo ativo, apenas o exibiremos, dada a sua
importância, mas não nos aventuraremos no mar de possibilidades que dele surge.
No segundo momento, trataremos sobre o adoecimento moral do homem, onde serão
apresentados os sentimentos de culpa, dívida e ressentimento, visando compreender a origem
da má consciência (schlechtes Gewissen33). Por meio da segunda dissertação da Genealogia,
constataremos que “a má-consciência ou o sentimento de culpa tem [...] uma dupla origem. A
primeira é a transformação do tipo ativo34 em culpado que se deu com o nascimento do Estado”
e a segunda é “a transformação do ressentido em culpado realizada pelo padre ascético”35. Após
apresentarmos essa dupla procedência da má consciência, apontaremos possíveis curas para
podar ou impotencializar essa doença no bicho homem, a saber: por meio da divina arte ativa
de esquecer, por meio do Não sagrado do leão (ou: espírito livre) e do Sim da criança, uma
negação e uma afirmação que proporcionam destruir e criar valores, isto é: transvalorar.
Finalmente, no terceiro momento, será destacado um possível caminho trágico que pode
levar à superação da má consciência do homem e de seu estado de decadência. Aqui será
exposto brevemente como Nietzsche propõe superar esse quadro clínico do homem moderno.

32
Za/ZA, IV, Do homem superior, 3 – suprimimos.
33
Nietzsche também usa o termo Das böses Gewissen (cfr. p. ex.: SE/Co. Ext. III, 1; MAII/HDH II, OP, 402; M/A,
I, 9 e 38; e FW/GC, 95). Todavia, não constatamos ou não há nenhuma diferença substancial no conceito.
34
A dupla tipologia de homem: “ativo” e “reativo”, é uma interpretação feita pela ótica deleuziana. Para nós, fazer
essa oposição é retornar ao dualismo socrático-platônico, porque não há um homem essencialmente ativo, mas um
homem com uma boa hierarquia fisiológica, ou seja, uma fisiologia onde as forças ativas dominam as forças
reativas, porém, este homem tem ambos as forças e não só uma. O tipo reativo também possui forças ativas em si,
ou seja, em sua fisiologia as forças reativas imperam sobre as forças ativas. Assim como evidenciámos a seguir,
ambas hierarquias podem entrar em decadência e uma força que antes dominava pode vir a ser dominada, quer
dizer: a hierarquia não possui fixidez, ela é fruída. Nesse sentido, preferimos usar os termos de Nietzsche para
fazer a distinção moral e hierárquica de ambos os tipos de homens: onde aparece o tipo de “homem ativo”, vós
deveis entender que se refere ao homem nobre, senhor e criador, e, onde aparece o tipo de homem reativo, vós
deveis entender que se refere ao homem plebeu, servil, comum e impotente.
35
Ambas transcrições são de Roberto Machado (in: Nietzsche e a verdade, p. 65 – suprimimos).
22

Dessa forma, será exposto a filosofia do personagem Zaratustra, o alegre mensageiro36, o “sem
Deus”37, “o defensor da vida, o intercessor da dor, o assertor do círculo”38, que aos quarentas
anos, depois de ter gozado dez anos de solidão e de sabedoria em sua caverna (– note-se que ao
contrário do mito da caverna de Platão, “é na caverna e não fora dela que se faz sábio”39), deixou
a solitude de sua caverna e foi de encontro aos homens para lhes dar um presente, a saber: o
Übermensch40. Por meio desse presente e da doutrina do eterno retorno do mesmo,
evidenciaremos que “o homem deve aprender a agir como se a mais ínfima de suas ações
devesse se repetir eternamente, de maneira a dar à sua própria existência a bela forma da obra
de arte”41, ou seja, será afirmado que o homem pode viabilizar uma afirmação de sua vida,
baseada naquilo que Nietzsche designa como amor fati: o Sim afirmativo da vida.

36
Segundo Paulo César de Souza (EH/EH, Nota do Tradutor nº 70, p. 119), “‘Alegre mensageiro’: a expressão
traz uma alusão ao evangelho (boa nova, alegre mensagem – frobe Botschaft, em alemão)”. Nietzsche usou a
expressão para explicar a seguinte afirmação: “por que sou um destino”, escreve ele: “em toda a seriedade,
ninguém antes de mim conhecia o caminho reto, o caminho para cima: apenas a partir de mim há novamente
esperanças, tarefas, caminhos a traçar para a cultura – eu sou o seu alegre mensageiro... Exatamente por isso sou
também um destino” (EH/EH, CI, 2).
37
Za/ZA, IV, Sem ofício.
38
Za/ZA, III, O convalescente.
39
Scarlett Marton, Nietzsche e a celebração da vida: A interpretação de Jörg Salaquarda, p. 12.
40
O termo Übermensch apresenta três traduções possíveis, são elas: i) super-homem, ii) além-do-homem e iii)
além-homem. A tradução “além-do-homem” é preferida, dentre outros, por Rubens Rodrigues Torres Filho (Obras
incompletas, Prefácio a Za/ZA, nota 1, p. 228), Scarlett Marton (Nietzsche: uma filosofia a marteladas, p. 70) e
por Oswaldo Giacoia Jr. (Nietzsche, p. 11), enquanto que a tradução “além-homem” é utilizada por Mário Ferreira
dos Santos (Assim falava Zaratustra, p. ex., nota 6, p. 21). Já a tradução “super-homem” é manejada por Mário da
Silva (Za/ZA, Prólogo, 3); por Paulo César de Souza (por exemplo, MAI/HDH I, 4); e é adotada e considerada a
melhor tradução por Roberto Machado (Zaratustra, tragédia nietzschiana, p. 45), “primeiramente, porque ‘super’
também tem o sentido de ‘sobre’ – que é outra possibilidade de traduzir über – como se nota, por exemplo, pela
tradução do termo freudiano Überdeterminierung por ‘superdeterminação’ e ‘sobredeterminação’. Segundo,
porque é importante manter a correspondência entre ‘super-homem’ (Übermensch), ‘super-herói’ (Über-Held),
‘superespécie’ (Über-Art) ‘superar” (überwinden), ‘auto-superação’ (Selbstüberwinderung)... para indicar mais
claramente que o sentido de ‘super-homem” é dado pelo processo de auto-superação. Terceiro, porque é mais
eufônico do que ‘sobre-homem’, ‘além-do-homem’, outras possibilidades corretas de tradução. Quarto, porque o
termo já tem um uso consagrado na língua portuguesa”. Na contramão das traduções apresentadas, Flávio R. Kothe
(Nota do tradutor, p. 19) entende que o Über do termo Übermensch “não significa aí nem ‘super’, nem ‘além do’
e nem ‘sobre’. A tradução mais próxima seria ‘supra-homem’ ou ‘ultra-homem’, a indicar um ser capaz de
transcender o ser humano que existiu até hoje na história enquanto pré-história do homem que deveria ter sido e
não foi jamais”. Portanto, havendo diferentes traduções e interpretações ao termo Übermensch, optamos por usar
o termo em sua grafia original, exceto em possíveis transcrições alheias, onde permanecerá a grafia e a tradução
acolhidas por qualquer tradutor/a do termo em questão.
41
Oswaldo Giacoia Jr., Nietzsche, p. 57.
23

QUADRO CLÍNICO
NIILISMO

NIILISMO COMO ESTADO PSICOLÓGICO

Esperança

tem,
mas acabou.

Marcos M. Casadore, Artifício

Nietzsche numa anotação póstuma42, redigida para integrar sua obra não finalizada,
intitulada: A Vontade de Poder: Ensaio de uma Transvaloração de Todos os Valores (Die Wille
zu Macht: Versuch einer Umwertung aller Werte), esboça três formas de niilismo como estados
psicológicos manifestadas em decorrência da queda cosmológica de valores superiores, isto é,
do vazio ocasionado pela morte de Deus, do fundamento último da existência.
A primeira forma “trata-se do desdobramento da pergunta por finalidade (‘para que?’),
por um sentido fora da realidade, que acaba culminando na descoberta de que sua busca o levou
ao nada”43. Assim como será apresentado em sequência (cfr. a seção: Ideal ascético e a seção:
É homem ou animal?), a religião oferece uma finalidade à vida do homem: ele deveria viver a
vida abjurando seus impulsos (Trieb) e agir em conformidade com certa conduta moral,
visando, assim, obter uma vida melhor no céu/reino de Deus. Todavia, perante a referida queda
cosmológica de valores, essa boa vida transmudou-se em algo inacessível, inexistente, somente
uma promessa vazia. Portanto, o homem foi enganado, desperdiçou sua vitalidade em vão, em
prol de uma finalidade que não existe, do nada. Na Genealogia da Moral, Nietzsche alega que
o homem é “o animal avaliador”44 (cfr. a seção: É avaliador?), isto é, o que ele é, seu ser próprio,
tem ânsia por medir45 valores e forjar conceitos. Assim, “Nós é que inventamos o conceito de
‘finalidade’: na realidade não se encontra finalidade”46. É Isso47 que o homem é o martelo donde
floresceram conceitos e significados, fora d’arte dIsso, não há conceitos, eles não vêm do nada;
não há solos metafísicos ou transcendentais, apenas o querer-criar e o querer-interpretar dIsso

42
Cfr. NF/FP de 1887, 11[99], in: Fragmentos póstumos, Vol. IV, p. 394-396.
43
A. E. Paschoal, A dinâmica da vontade de poder como proposição moral dos escritos de Nietzsche, p. 134.
44
GM/GM, II, 8.
45
Cfr. MAI/HDH II, AS, 21.
46
GD/CI, Incursões de um extemporâneo, 24.
47
Assim como evidenciamos a seguir, vós deveis compreender este Isso enquanto o ser próprio do homem (cfr. a
seção: “Mundos?”). Estamos acolhendo o termo utilizado por Georg Groddeck em Das Buch vom Es (1923).
24

que persuade a nossa já velha consciência sobre a existência de finalidades em si. Para tornar
isso mais claro, é indispensável observar de perto as inclinações psicológicas do homem niilista.

Niilista não é, para Nietzsche, quem não acredita em nada, mas quem acredita
no nada como se fosse tudo, como se fosse supremo. Esse nada é tudo para
ele: Deus, Jeová, alma, imortalidade, vida celestial após a morte, reencarnação
em nível mais elevado, espírito, etc. Nietzsche chamaria isso de nihil, por
serem entes ficcionais, mentiras em que pessoas e comunidades acreditam
como se fossem verdades absolutas, mas que expressam, antes, medo da
morte, narcisismo, megalomania, etc. O crédulo passa a viver em função da
ficção e da morte, desperdiçando a única vida que tem.48

Possuir finalidades ou sentidos bem determinados para viver, faz com que o homem
consiga suportar tanto a vida, quanto seus possíveis sofrimentos e males existenciais, pois, só
desta forma, o sofrimento não se torna em vão: – há uma proposito no meu sofrer, pensa Isso
que pensa em nós – É ou não é o homem o animal mais curioso? O “que mais que qualquer
outro tem de preencher uma condição existencial: ele tem de acreditar saber, de quando em
quando, por que existe”49, quer dizer: ele é único animal que precisa de finalidades. Mesmo
tendo a capacidade única de criar seu próprio sentido, “o ser humano não consegue viver no rio
do devir sem uma finalidade e uma interpretação enraizadas num domínio inquestionável”50.
Todavia, “sentido e finalidade foram evidentemente inventados e fundamentados em mitos ou
razões”51. Se a existência é um vir-a-ser constante (cfr. a seção: Mundos?), se não há nada para
além do devir e de seu eterno retorno (cfr. a seção: Ama a vida? “Se” sim: é criador!), então
“nada é alvejado, nada é alcançado”52, não há finalidade e nenhum fim, e, ao perder o ânimo
em sua busca por finalidades para sua existência ou quando estiver suficientemente desiludido
e cético em relação a quaisquer hipóteses finalísticas, o homem se tornará niilista.
A segunda forma do niilismo ocorre “quando se tiver colocado uma totalidade, uma
sistematização, ou mesmo uma organização, em todo acontecer e debaixo de todo acontecer”53
e, logo depois, quando se compreender que o mundo não pode ser organizado, porque o mundo
é um constante vir-a-ser. Não obstante, é importante notar que, ao apresentar o mundo como
um vir-a-ser, não se quer afirmar que em algum momento da história ele veio a ser, porque, na
interpretação de Nietzsche, “o mundo subsiste; não é nada que vem a ser, nada que perece. Ou

48
Flávio R. Kothe, Nietzsche, Marx, Freud, p. 13.
49
FW/GC, 1.
50
C. L. Araldi, Para uma caracterização do niilismo na obra tardia de Nietzsche, p. 81-82.
51
Francisco Traverso Fuchs, O lance de dados e a superação do niilismo, p. 23.
52
NF/FP de 1887, 11[99], in: SNER, p. 380.
53
NF/FP de 1887, 11[99], in: SNER, p. 380.
25

antes: vem a ser, perece, mas nunca começou a vir a ser e nunca cessou de perecer – conservar-
se em ambos... Vive de si próprio: seus excrementos são seu alimento”54. Nesse sentido e
afastando-nos de um viés criacionista do mundo, entende-se o mundo como um vir-a-ser
constante, ou seja, o mundo está em um processo incessante de autocriação e autodestruição. À
vista disso, já que “o mundo não é absolutamente nenhum organismo, mas sim o caos” 55, o
homem não pode tecer para ele uma sistematização ou organização, como fez a ciência, por
exemplo, propondo pretensiosas leis e fórmulas para ordenar e fazer do mundo algo calculável,
ordenado e compreensível56, pois “o caráter geral do mundo [...] é caos por toda eternidade, não
no sentido de ausência de necessidade, mas de ausência de ordem, divisão, forma, beleza,
sabedoria e como quer que se chame nossos antropomorfismos estéticos”57.
A terceira forma de niilismo é resultado das duas primeiras. Nessa forma, “um niilista
é o homem que, a respeito do mundo tal como é, julga que [ele] não deveria ser e, a respeito do
mundo que deveria ser, julga que ele não existe. Consequentemente, existir (agir, sofrer, querer,
sentir) não tem sentido”58. Ou seja, nessa última forma do niilismo, com a queda cosmológica
de velhos valores, é retirado do homem o seu direito ao mundo verdadeiro, isto é: o subterfúgio
deste mundo. Segundo Nietzsche, o homem até então condenou

esse inteiro mundo do vir-a-ser como ilusão e [passou a] inventar um mundo


que esteja para além dele, como verdadeiro mundo. Tão logo, porém, o
homem descobre como somente por necessidades psicológicas esse mundo foi
montado e como não tem absolutamente nenhum direito a ele, surge então a
última forma do niilismo, que encerra em si a descrença em um mundo
metafísico, que se proíbe a crença em um mundo verdadeiro.59

Quando, “em suma: as categorias ‘fim’, ‘unidade’, ‘ser’, com as quais tínhamos imposto
ao mundo um valor, foram [...] retiradas por nós – [...] [então] o mundo aparece sem valor...”60.
Diante da queda cosmológica dessas categorias se desencadeia inicialmente uma das duas
formas extremas do niilismo, porque i) se o mundo não possui finalidades; ii) se não há uma
ordem ou organização nesse mesmo mundo; e iii) se não há outro mundo, um mundo verdadeiro
ou metafísico além deste mundo, então o homem está condenado a viver uma vida sem sentido

54
NF/FP de 1888, 14 [188], in: SNET, p. 396.
55
NF/FP de 1887, 11 [74], in: Fragmentos póstumos, Vol. IV, p. 389.
56
Cfr. JGB/ABM, 22.
57
FW/GC, 109 – suprimimos.
58
NF/FP de 1887, 9[60], in: Fragmentos póstumos, Vol. IV, p. 250 – acrescentamos.
59
NF/FP de 1887, 11[99], in: SNER, p. 381 – acrescentamos.
60
NF/FP de 1887, 11[99], in: SNER, p. 381 – acrescentamos e suprimimos.
26

em um mundo caótico. O homem entrará em um estado niilista quando, cansado demais para
procurar qualquer sentido para a existência, ele for tomado pelo non sens da existência.
Todavia, de acordo com Nietzsche, o niilismo é ambíguo, isto é, semelhante às moedas
ou ao deus Jano [Janus, em latim] da mitologia romana, ele possui duas faces. Em uma delas,
há um “Nihilismo como sinal de poderio potenciado do espírito: um nihilismo ativo [activer
Nihilism] [...] [e na outra, há um] “Nihilismo como decadência e regressão do poder do
espírito: o nihilismo passivo [passive Nihilism]”61. O niilismo que acometeu o homem
moderno é o niilismo passivo, o niilismo incompleto. Ele ocorre quando os valores de outrora,
com os quais o homem erguia muralhas contra a dor e contra a falta de sentido da existência,
são desvalorizados. A consequência dessa desvaloração é o estabelecimento da absoluta falta
de sentido, como afirmado nO adivinho: “vi uma grande tristeza descer sobre os homens. Os
melhores deles cansaram-se de suas obras. Proclamou-se uma doutrina, que uma fé
acompanhava: ‘Tudo é vazio, tudo é igual, tudo foi!’”62. Contudo, o adivinho do Zaratustra não
chegou a conhecer a outra face do niilismo, pois nunca a experimentou e nunca poderá
experimentá-la, porque o niilismo ativo é precedido pela prova imposta no pensamento do
eterno retorno, que seleciona apenas homens que podem dizer Sim (cfr. a seção: Ama a vida?
“Se” sim: é criador!) ao eterno retorno, na mesma ordem e sequência, de todos os instantes da
vida. Os selecionados por tal pensamento são capazes de criar seus próprios sentidos e valores
(niilismo ativo) e criar “é a grande redenção do sofrimento, é o que torna a vida mais leve”63.
***
Além dos niilismos ativo e passivo, na interpretação deleuziana há mais dois: negativo
e reativo. O niilismo negativo, engendrado pela metafísica socrático-platônica e pelo
cristianismo, é o ponto de partida do niilismo reativo, passivo e ativo. Ele, como veremos,
corresponde a um valor negativo dado ao mundo e à vida e a um valor positivo dado à vida em
um para-além-do-mundo. Mas, antes de apreciá-lo, veremos a inversão dos valores nobres,
fortes e aristocráticos, que afirmavam a vida e o mundo, pelos valores dos escravos, dos
plebeus, do fraco, do homem cristão, que visam negar tudo que é bom, forte e afirmativo. Assim
como será posto, “os pequenos homens do povinho tornaram-se os senhores”64. Tudo aquilo
que era nobre, forte e saudável foi corrompido e tornou-se plebeu, fraco e débil, isto é: a
sociedade passou a ser guiada por tudo aquilo “que é de natureza feminina, o que provém da

61
NF/FP de 1887, 9[35], in: FF, p. 34 – acrescentamos e suprimimos.
62
Za/ZA, II, O adivinho.
63
Za/ZA, II, Nas ilhas bem-aventuradas.
64
Za/ZA, IV, Do homem superior, 3.
27

condição servil e, especialmente, a mixórdia plebeia: isso, agora, quer tornar-se o senhor de
todo o destino humano. Oh, nojo! nojo! nojo!”65. O assenhoreamento da plebe é resultado da
transvaloração dos valores nobres-aristocráticos. Decorre daí, dessa revolta da plebe, o porquê
de a sociedade ser marcada pela passividade, impotência, mediocridade e pela servidão ao
Estado. É por causa desse levante plebeu que já não há nenhum gênio na sociedade, pois muitas
auroras foram impedidas de brilhar por causa dessa decadência moral. Todavia, a base dessa
transvaloração da plebe caiu, foi mimada, veio a falecer e “somente desde que ele jaz no
túmulo, vós[, homens superiores,] ressuscitastes. Somente agora chega o grande meio-dia,
somente agora o homem superior se torna – senhor!”66. Ou seja, assim como será posto a seguir,
apenas com a morte de Deus poderá surgir homens superiores ou espíritos libertos da tradição.
Quando estes homens sofrerem aquilo que Zaratustra sofreu67, isto é, quando eles se
transformarem diante do pensamento abismal68 do eterno retorno, eles se tornaram senhores,
quer dizer: criadores de valores, valores afirmativos e nobres. (– Eis a esperança!).

SENHORES E ESCRAVOS

Sou um homem doente... Sou mau. Não tenho atrativos.

Fiódor Dostoiévski, Notas do subsolo

No Prólogo à Genealogia, Nietzsche tece a “nova exigência”: uma tarefa voltada para a
análise da origem dos valores, visando com isso realizar “uma crítica aos valores morais”69,
isto é, ele quer desmascarar os fundamentos de valor pelos quais a moral, a religião, a metafísica
e a ciência alicerçam-se e justificam-se, a começar pelo próprio valor que a verdade se atribui
diante da falsidade. Até então, “tomava-se o valor [...] [dos nossos] ‘valores’ como dado, como
efetivo, como além de qualquer questionamento”70, mas tal valor não veio do além, nem é dado,
ele possui uma história71. Logo, sob a ótica genealógica72 é preciso escavar a história dos

65
Za/ZA, IV, Do homem superior, 3.
66
Za/ZA, IV, Do homem superior, 1.
67
Cfr. Za/ZA, IV, Do homem superior, 6.
68
Cfr. Za/ZA, III, O convalescente.
69
GM/GM, Prólogo, 6.
70
GM/GM, Prólogo, 6 – acrescentamos e suprimimos.
71
Cfr. Za/ZA, I. De mil e um fitos.
72
Na filosofia, segundo A. E. Paschoal (A dinâmica da vontade de poder como proposição moral dos escritos de
Nietzsche, p. 20), “é Nietzsche quem utiliza pela primeira vez o termo ‘genealogia’, e o toma preservando seu
sentido de busca de herança dos antepassados, de conhecimentos sobre a origem daquele que ainda vive. Mas,
quando se trata da utilização do termo ‘genealogia’ por Nietzsche, deve-se acrescentar à ideia de ‘pesquisa’
(melhor traduzida pelo termo ‘investigação’), da busca pela origem e pela herança deixada pelos antepassados, o
seu engajamento, a partir do qual sua investigação ganha forma”. É por essa razão que, segundo Michel Foucault
28

valores, para que se obtenha o “conhecimento das condições e circunstâncias nas quais
nasceram, sob as quais se desenvolveram e se modificaram”73. Nietzsche,

numa perambulação [pesquisa] pelas muitas morais [...] [encontrou] certos


traços que regularmente retornam juntos e ligados entre si: até que finalmente
se revelaram dois tipos básicos [de morais:] [...] uma moral dos senhores e
uma moral de escravos.74

A partir destas duas tipologias de moralidades, Nietzsche desenvolve sua análise e


crítica. Tomando como ponto de partida a moral dos senhores, ele afirma que “toda moral nobre
nasce de um triunfante Sim a si mesma”75. Á vista disto, somos levados à compreender que este
“homem de espécie nobre se sente como aquele que determina valores, ele não tem necessidade
de ser abonado [...], sabe-se como o único que empresta honra às coisas, que cria valores. Tudo
que conhece de si, ele honra: uma semelhante moral é glorificação de si”76, de seu egoísmo.
Neste sentido, o homem nobre constrói sua moral e cria seus valores a partir de si. Ele realiza
ações espontâneas, já que possui a compreensão que suas ações “exprimem aquilo que ele é,
seu estado”77 de nobre: “nós, os nobres, nós, os bons, os belos, os felizes”78. E o seu oposto: “o
‘baixo’, ‘comum’, ‘ruim’, é apenas uma imagem de contraste, pálida e posterior”79.
Ainda por intermédio da moral dos nobres, dos senhores, dos aristocráticos, é preciso
explanar os conceitos: bom e ruim. Nietzsche, estudando a etimologia desses conceitos,
concluiu que a aristocracia desenvolveu o conceito de bom para si mesma. “Foram os ‘bons’
mesmos, isto é, os nobres, poderosos, superiores em posição e pensamento, que sentiram e
estabeleceram a si e a seus atos como bons, ou seja, de primeira ordem”80. Junto a esse conceito,
os nobres também estabelecem o conceito ruim, para designar tudo o que é antagônico e oposto

(Nietzsche, a genealogia e a história, p. 15), “a genealogia é cinza; ela é meticulosa e pacientemente documentária.
Ela trabalha com pergaminhos embaralhados, riscados, várias vezes reescritos”. Mas, se por um lado a genealogia
é cinza, dado o seu caráter documentarista, por outro, ela é colorida. Por isso é difícil reduzir a genealogia a uma
fórmula definida e estática, porque Nietzsche articula o caráter cinza “com o exercício de uma forma de vontade
de poder e como uma arte de interpretação, que ultrapassa em muito qualquer associação com a ideia de pesquisa,
produção e acúmulo de conhecimento” (A. E. Paschoal, A dinâmica da vontade de poder como proposição moral
dos escritos de Nietzsche, p. 18). Neste sentido, o caráter colorido da genealogia está associado ao ato criação, o
que possibilita entender que “a genealogia tem sua emergência diante da necessidade de se recolocar em
movimento o que tende a se estagnar, a se converter em ‘água parada’” (A. E. Paschoal, A dinâmica da vontade
de poder como proposição moral dos escritos de Nietzsche, p. 19-20).
73
GM/GM, Prólogo, 6.
74
JGB/ABM, 260 – acrescentamos e suprimimos. No aforismo 45 de Humano, demasiado humano, vol.1, sobre
A dupla pré-história do bem e do mal, Nietzsche já antecipava as moralidades aqui apresentadas.
75
GM/GM, I, 10. Cfr. WA/CW, Epílogo.
76
JGB/ABM, 260 – suprimimos.
77
A. E. Paschoal, A Dinâmica da vontade de poder como proposição moral nos escritos de Nietzsche, p. 166.
78
GM/GM, I, 10.
79
GM/GM, I, 10.
80
GM/GM, I, 2.
29

a eles, ou seja, ruim equivaleria “a tudo que era baixo, de pensamento baixo, e vulgar e
plebeu”81. Ao contrário da moralidade dos nobres, onde a criação dos seus valores “têm como
pressuposto uma construção física poderosa, uma saúde florescente82, rica, até mesmo
transbordante, juntamente com aquilo que serve à sua conservação”83, os homens da moral dos
escravos “não criam propriamente valores; limitam-se a inverter os que foram postos pelos
nobres”84, ou seja, não há, por exemplo, uma valorização da vida por parte dos plebeus, mas
sim uma inversão ou corrupção do valor bom que os aristocratas incubem à vida. Portanto, o
critério dos juízos de valores do escravo é baseado na inversão dos valores nobres.
Nesse sentido, enquanto a forma de valorizar dos nobres parte de um Sim a si mesmos,
a forma de valorizar dos escravos parte de um “Não a um ‘fora’, um ‘outro’, um ‘não-eu’ – e
este Não é seu ato criador. Esta inversão do olhar que estabelece valores – este necessário
dirigir-se para fora, em vez de voltar-se para si – é algo próprio do ressentimento”85. Nesse
sentido, o homem do ressentimento, que “é alguém que nem age nem reage realmente; [que]
produz apenas uma vingança imaginária, um ódio insaciável”86 a quem não pode se equiparar,
inverte a forma de valoração nobre para “dar sentido a sua falta de força” 87 e impotência de
agir. Ele inverte o valor bom do nobre e cria o valor “mau” para designar “nobres e poderosos,
[...] [eles] serão por toda eternidade os maus, os cruéis, os lascivos, os insaciáveis, os ímpios,
serão também eternamente os desventurados, malditos e danados”88, enquanto que o ressentido
e impotente passa a se referir como bom em contrapartida ao nobre, pois, somente assim, ele

pode [...] se considerar, ou melhor, se imaginar bom” 89, já que “os miseráveis somente são os
bons, apenas os pobres, impotentes, baixos são bons, os sofredores, necessitados, feios, doentes
são os únicos beatos, os únicos abençoados, unicamente para eles há bem-aventurança”90.
Segundo Nietzsche, foram os ressentidos “que, com apavorante coerência, ousaram
inverter a equação de valores aristocrática (bom = nobre = poderoso = belo = feliz = caro aos
deuses)”91. A nova equação, surgida nessa inversão, poderia ser colocada assim: bom ≡

81
GM/GM, I, 2.
82
Possuir uma saúde florescente equivale a possuir uma fisiologia saudável, onde as forças ativas e reativas
são/estão bem hierarquizadas.
83
GM/GM, I, 6.
84
Scarlett Marton, Nietzsche: a transvaloração dos valores, p. 55.
85
GM/GM, I, 10.
86
Roberto Machado, Nietzsche e a verdade, p. 64.
87
Roberto Machado, Nietzsche e a verdade, p. 64.
88
GM/GM, I, 7 – acrescentamos e suprimimos.
89
Roberto Machado, Nietzsche e a verdade, p. 65.
90
GM/GM, I, 7.
91
GM/GM, I, 7.
30

miserável ≡92 impotente ≡ feio ≡ sofredor ≡ abençoado por Deus. Não obstante, posto esses
elementos, pode-se concluir que o valor dos valores bom e mal não é dado93, pois, assim como
evidenciado, ele foi criado na história: num primeiro momento, o valor bom foi estabelecido e
criado pela nobreza-aristocrática, e, em seguida, tal valor veio a passar por um processo de
decadência e tornou-se decadente na mão de homens ressentidos que integram a moral dos
escravos. Como Nietzsche afirma: “aprendi a separar o preconceito teológico do moral, e não
mais busquei a origem do mal por trás do mundo”94, isto é, tal valor não sucede do além,
bastando apenas “alguma educação histórica95 e fisiológica”96 para se verificar tal fato. Não
obstante, tendo buscado a procedência do valor desses valores, torna-se indispensável agora,
portanto, elaborar a crítica, o que equivaleria a fazer a seguinte pergunta: qual valor possui o
bem e o mal? Isto é, “obstruíram ou promoveram até agora o crescimento do homem? São
indícios de miséria, empobrecimento, degeneração da vida? Ou, ao contrário, revela-se neles a
plenitude, a força, a vontade da vida, sua coragem, sua certeza no futuro?”97.
É notório que responder a essas perguntas demanda maior tempo. A crítica que
Nietzsche propõe perpassa toda a ossatura de sua Genealogia da Moral, por isso iremos prestar
maior atenção a ela na maior parte desta produção, para não nos furtar a atenção e a ruminação
da qual ela necessita. Nesta seção, queremos entender a decadência que acometeu o homem
moderno e, diante do que foi exposto, já nos encontramos em condições de afirmar que essa
decadência é proveniente da revolta dos escravos98, dos “malogrados, doentes, exaustos,
consumidos, [...] [do] que hoje [n]a Europa começa a feder”99, contra os homens nobres: “‘os

92
Símbolo de equivalência.
93
Esse fator já era afirmado por Nietzsche, por exemplo, no Zaratustra, onde é colocado: “Em verdade, foram os
homens a dar a si mesmos o seu bem e o seu mal. Em verdade, não o acharam, não caiu do céu em forma de voz”
(Za/ZA, I, De mil e um fitos).
94
GM/GM, Prólogo, 3.
95
Em Humano, demasiado humano, Nietzsche adverte que a “falta de sentido histórico é o defeito hereditário de
todos os filósofos” (MAI/HH I, 2), porque o modo de filosofar da tradição, ou melhor, da “velha filosofia [...]
sempre escapou à investigação sobre a origem e a história dos sentimentos morais” (MAI/HH I, 37 — suprimimos),
uma vez que os filósofos creem que tudo possui origens metafísicas e, portanto, não históricas. Em contrapartida,
Nietzsche entende que “tudo veio a ser; não existem fatos eternos: assim como não existem verdades absolutas.
— Portanto, o filosofar histórico é doravante necessário” (MAI/HH I, 2). Além disto, no Crepúsculo, Nietzsche
apresenta sua interpretação sobre o caráter dos filósofos, isto é, a sua idiossincrasia: “sua falta de sentido histórico,
seu ódio a noção mesma de vir-a-ser, seu egipcismo” (CI, A “razão” na filosofia, 1).
96
GM/GM, Prólogo, 3.
97
GM/GM, Prólogo, 3.
98
Cfr. GM/GM, I, 7 e JGB/ABM, 195.
99
GM/GM, I, 11, — suprimimos e acrescentamos.
31

senhores’ foram abolidos; a moral do homem comum100 venceu”101. E se percebe isso


nitidamente, porque “a ascensão do escravo pressupõe uma mudança da organização geral das
forças”102 e tal revolta “nega as formas nobres de valoração e cuja vitória pode ser percebida,
em termos históricos, pela supressão das aristocracias gregas, romanas e judaicas, o que
equivale à desestruturação do mundo antigo”103. Portanto, “para o próprio Nietzsche a moral
que predomina no presente é a de escravos”104, a moral do apequenamento do homem, visto
que “Hoje nada vemos que queira tornar-se maior, pressentimos que tudo desce, descende,
torna-se mais ralo, mais plácido, prudente, manso, indiferente, medíocre, chines, cristão – não
há dúvida, o homem se torna cada vez ‘melhor’... E [...] nisso está o destino fatal da Europa”105.
Não obstante, com a vitória e o estabelecimento da moral dos escravos se desencadeiam três
processos: i) o processo de reação a valores nobres, ou seja, a decadência da hierarquia
(Rangordnung)106, ii) “uma progressiva mediocrização [ou: apequenamento] e degeneração do
homem”107 e, como resultado deste, iii) o advento do niilismo (Herauskunft des Nihilismus),
pois “Nietzsche interpreta a fadiga pela qual é acometido o homem do ressentimento como
retrocesso, decadência, degeneração, em suma, como niilismo”108. Para ele, a “visão do homem
agora cansa – o que é hoje o niilismo se não isto? Estamos cansados do homem...”109.

NIILISMO NEGATIVO

Ideal ascético

O bicho,
quando quer fugir dos outros,
Faz um buraco na terra.

100
Em alemão, o termo que designa o homem comum é “shlecht [ruim], o qual é idêntico a shlicht [simples] –
confira-se shlechtweg, shlechter-dings [ambos, ‘simplesmente’] – [...] originalmente designava o homem simples,
comum, ainda sem olhar depreciativo, apenas em posição ao nobre” (GM/GM, I, 4, — suprimimos; acréscimos
do tradutor).
101
GM/GM, I, 9.
102
Leon Kossovitch, Signos e poderes em Nietzsche, p. 48.
103
A. E. Paschoal, A dinâmica da vontade de poder como proposição moral dos escritos de Nietzsche, p. 121.
104
Carlos A. R. de Moura, Nietzsche: civilização e cultura, p. 117.
105
GM/GM, I, 13 – suprimimos.
106
Segundo Gilles Deleuze (Nietzsche e a filosofia, p. 92 – suprimimos), “a palavra hierarquia em Nietzsche
possui dois sentidos. Significa em primeiro lugar a diferença entre as forças ativas e reativas, a superioridade das
forças ativas sobre as forças reativas [...] designa também o triunfo das forças reativas, o contágio das forças
reativas e a organização complexa que daí resulta, em que os fracos venceram, em que os fortes são contaminados,
em que o escravo que não deixou de ser escravo impera sobre um senhor que deixou de ser”.
107
C. L. Araldi, Para uma caracterização do niilismo na obra tardia de Nietzsche, p. 80 – acrescentamos.
108
C. L. Araldi, Para uma caracterização do niilismo na obra tardia de Nietzsche, p. 80.
109
GM/GM, I, 13.
32

O homem,
para fugir de si,
fez um buraco no céu

Mário Quintana, As covas

Na terceira dissertação da Genealogia, Nietzsche exibe o significado de ideais ascéticos


e os infortúnios que eles conceberam ao homem, à vida e ao mundo. Em uma leitura atenta da
dissertação mencionada, percebe-se que as raízes do niilismo surgem da latria a esses ideais
ascéticos, posto que estes ideais, forjados pelo sacerdote ascético110 para evitar o “horror
vacui”111 de sentido da vida, carrearam o oposto: destituíram a vida de qualquer valor e
viabilizaram a tensão entre a “‘vida contra [a] vida’”112, porque o ideal ascético é um sintoma
do desejo de querer sair da vida e buscar outra vida em um para-além-da-vida, ou seja, se a vida
não tem valor, se é oca de significados, é preciso abrir mão dela e buscar sentidos fora dela. Em
vista disso, os ideais ascéticos são criados a partir da necessidade psicológica113 de significado,
propósito e objetivo. Portanto, se não há sentido neste mundo, nesta vida, a solução é edificar
um mundo frutificado em sentidos. Todavia, para se alcançar este mundo para-além-da-vida, é
preciso abandonar, a princípio, o mundo do vir-a-ser; este mundo julgado e avaliado enquanto
algo maldoso, enganoso, ilusório e vazio. É esse o escopo dos ideais ascéticos, pois eles são
ideais de negação e de abnegação da vida e do mundo. É possível avistar esses traços do
ascetismo no segundo capítulo da primeira epístola de João, que preceitua o seguinte:

Não ameis o mundo nem as coisas que há no mundo. Se alguém amar o mundo,
o amor do Pai não está nele; porque tudo que há no mundo, a concupiscência
da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida, não procede do Pai,
mas procede do mundo. Ora, o mundo passa, bem como a sua concupiscência;
aquele, porém, que faz a vontade de Deus permanece eternamente.114

Esse alheamento pelo mundo denota a filosofia de vida de não só aqueles que fazem
parte da comunidade cristã, como também de todos os ascéticos que vieram a florescer na terra,

110
Segundo A. E. Paschoal (A dinâmica da vontade de poder como proposição moral dos escritos de Nietzsche,
p. 127 – suprimimos), “a expressão ‘sacerdote ascético’ não remete necessariamente a alguma pessoa, mas a um
tipo que inverte os valores básicos do homem em nome de outra realidade, da qual ele é representante (Vertreter).
Analisado a partir de características como ‘falar em nome de...’, que Nietzsche aponta nos sábios e políticos
modernos [...] pode-se dizer que, na modernidade, corresponde a esse tipo de número bem maior do que se teria
com a sua associação, por exemplo, ao conceito ‘pároco’”. Nas palavras de Nietzsche: o sacerdote ascético “não
pertence a nenhuma raça determinada; floresce em toda parte; brota de todas as classes” (GM/GM, III, 11).
111
GM/GM, III, 1.
112
GM/GM, III, 13 – acrescentamos.
113
Sobre essa necessidade psicológica, cfr. a seção: NIILISMO COMO ESTADO PSICOLÓGICO.
114
Primeira Epístola do apóstolo João, 2:15-17.
33

onde “seu filosofar é uma forma de oposição aos instintos vitais [...] e de conceber tanto a vida
como uma ponte para uma ‘outra realidade’, quanto às coisas ligadas a ‘este mundo’, ao mundo
natural e à corporalidade, como ilusão”115. Por via de regra, a persona ascética idealiza suas
crenças para se olvidar da vida, tal como: Deus, verdade, empíreo, nirvana, el dorado e afins.
Esses ideais são tecidos para julgar a vida como mal116, para impor a justiça de cima, da qual o
sacerdote é mediatário, para desvalorizar o mundo, buscar verdades alcançáveis apenas pelos
filósofos117, para olvidar-se do sofrimento, etc. Aquele que edifica um ideal ascético, torna-se
senhor de seu próprio invento, torna-se, mesmo que por uma fração de segundos, forte, pois a
criação de ideais-para-além-do-mundo possibilita superar o sentimento de impotência.
Segundo Zaratustra118,

sofrimento e impotência – foi isso que criou todos os transmundos; e, mais, a


breve loucura da felicidade que só o grande sofredor experimenta. Um
cansaço, que, num único salto, um salto mortal, quer chegar ao marco
extremo, um pobre, ignorante cansaço, que já não quer nem mesmo querer:
esse criou todos os deuses e transmundos.119

Como visto, na seção anterior, os fracos e impotentes inverteram os valores dos nobres,
unicamente, para se tornarem fortes, bons e senhores. A construção de um ideal ascético parte
desses mesmos desejos psicológicos, pois, quem o cria e obtém fiéis que aderem a tal invenção,
torna-se forte ao se tornar mediador entre o ideal que construiu e aqueles que nele acreditam.
Foi esse o caso de todos os filósofos da tradição: eles se tornaram superiores aos homens
comuns, pois inventaram um reino onde imperam como reis. Ora, o mundo verdadeiro nada
mais é do que o mundo ideal dos filósofos, assim como o céu não é outra coisa senão o mundo
ideal dos cristãos. Veja bem, a cicuta não era um veneno para Sócrates, ao contrário, era o meio
para chegar mais rápido ao seu ideal, pois, a seu ver, a filosofia é um exercício constante para
a morte120. Lembremos suas derradeiras palavras: “daqui para além. É esta minha prece; assim
seja!”121. Note-se a expressividade do querer de Sócrates: ele preferiu querer o nada, a nada
querer, isto é: direcionou seu querer para o além, pois nada queria neste aquém. Seu ideal lhe
deu forças de superar o sofrimento e a impotência da vida e a certeza de sua morte.

115
A. E. Paschoal, A dinâmica da vontade de poder como proposição moral dos escritos de Nietzsche, p. 127 –
suprimimos.
116
Em Atos 10:42, Deus é apresentado como juiz dos vivos e dos mortos, portanto, sendo o sacerdote ascético a
figura fenomênica que fala em nome de Deus, ele também é um juiz que, enquanto vivo, julga a vida e os viventes.
117
Apresentaremos na seção seguinte a desvalorização do mundo feita pelos filósofos.
118
Vós deveis notar que estamos nos referindo a Nietzsche por meio de Zaratustra, seu alter ego.
119
Za/ZA, I, Dos transmundanos.
120
Cfr. Fédon, 81a.
121
Fédon, 117c.
34

É exatamente por meio dessa crença e dessa esperança em um para-além-da-vida, que


o ideal ascético fornece um certo remédio ao sofrimento dos homens, já que “o ideal ascético
nasce do instinto de cura e proteção de uma vida que degenera, a qual busca manter-se por
todos os meios, e luta por sua existência”122. Esta última busca, a da existência, revela uma das
contradições de todos os ideais ascéticos123, porque, embora o ideal ascético seja um lance de
vontade ao nada, para outro mundo ou a valores superiores, ele também é um remédio para a
ausência de sentido da vida, isto é, “o ideal ascético mantém ativo o querer no homem, fechando
as portas para um ‘niilismo suicida’, para a absoluta falta de sentido” 124. Portanto, pelo ideal
ascético “ocorre [...] exatamente o contrário do que acreditam os adoradores desse ideal – a vida
luta nele e através dele com a morte, contra a morte, o ideal ascético é um artifício para a
preservação da vida”125, ou seja, o ideal ascético é um fármaco que tona a vida suportável.
Á luz disso, o ascetismo, como preservação da vida, é um remédio para o sofrimento
diante da fidúcia da morte, uma vez que, pela crença em outra vida e em um para-além-do-
mundo, o sofredor não mais teme os males e sofrimentos da vida e nem a morte, porque seu
espírito fica apaziguado na verdade que é fornecida por seu ideal. Nietzsche afirma que “tendo
seu por quê? da vida, o indivíduo tolera quase todo como?”126, ou seja, ao erguer um ideal
ascético como sentido de sua vida, o homem passa a tolerar o sofrimento, mesmo que esse
sentido não seja verdadeiro. Nesse sentido, pode-se dizer que o sacerdote transforma a verdade
em uma pia fraus127. “A verdade é insuportável”128, portanto, é o que a maioria dos homens
menos deseja e “não há ninguém que aguente a verdade todo o tempo. Ela precisa ser servida
em doses homeopáticas e com certa elegância”129. À vista disso, “a mentira é uma necessidade
social: não há sociedade que sobreviva sem mentiras institucionalizadas”130. Enquanto os
homens, especialmente os religiosos e os filósofos dogmáticos, dizem que são devotos à
verdade, eles não fazem nada mais que idolatrar a mentira para suportar a verdade.

Quando Heidegger fala no homem como um “ser para a morte”, é uma ironia.
Já que todos vão morrer, a única finalidade efetiva e inegável da vida humana

122
GM/GM, III, 13.
123
Segundo Nietzsche, o ideal ascético é uma “vontade de contradições e antinatureza” (GM/GM, III, 12).
124
A. E. Paschoal, A dinâmica da vontade de poder como proposição moral dos escritos de Nietzsche, p. 271.
125
GM/GM, III, 13 – suprimimos.
126
GD/CI, Máximas e flechas, 12.
127
No Crepúsculo dos Ídolos, Nietzsche nos afirma que a pia fraus (mentira piedosa) é a herança de filósofos e
sacerdotes (cfr. GD/CI, Os “melhoradores” da humanidade, 5. Cfr. tb. JGB/ABM, 105).
128
Flávio R. Kothe, Nietzsche, Marx, Freud, p. 12.
129
Flávio R. Kothe, Nietzsche, Marx, Freud, p. 12.
130
Flávio R. Kothe, Nietzsche, Marx, Freud, p. 12.
35

parece ser a morte, fato que todos procuramos negar, inventando sentidos para
o que não tem, a rigor, nenhum sentido.131

Assim, o homem ascético é um ser que não ama a vida, mas a vive na espera de uma
vida melhor em um para-além-da-vida. Essa fé em uma outra vida e em um outro mundo
também marca a aversão do homem consigo mesmo, pois esse desejo por um para-além-da-
vida está ligado, além da certeza da morte, ao desprezo pela única vida e ao único mundo que
o homem têm, pois o desgosto, que tateia as fisiologias fracas, doentes e impotentes, é a argila
que edifica as pilastras dos ideais ascéticos, como nos afirmar Zaratustra:

O corpo que desesperava da terra – foi ele que ouviu falar-lhe o ventre do ser.
E, então, quis passar a cabeça através das últimas paredes, e não somente a cabeça,
para o outro lado, para “aquele mundo”.
Mas “aquele mundo” acha-se bem oculto dos homens, aquele mundo desumanizado
e inumano, que é um celestial nada; e o ventre do ser não fala absolutamente ao
homem, a não ser como homem.132

Note a riqueza e a profundidade desta passagem. Nela encontramos a afirmação sobre a


procedência de transmundos: o desespero que equivale ao sofrimento que o homem sente por
não encontrar no mundo aquelas três categorias que apresentamos (fim, unidade e verdade). O
sofrimento diante da eterna ausência de sentido é o sêmen que origina transmundos, ou seja,
apenas por necessidades psicológicas, como já posto, o homem inventou um mundo verdadeiro.
Portanto, como Zaratustra põe, não há um ser que fala sobre a existência de transmundos, senão
o próprio homem, que cria e quer ir para outros mundos assentados no para-além-da-vida.
Todavia, eis a contradição dos ideais ascéticos: aqueles que pregam a existência de tal
ficção, não pregam a morte voluntária para se chegar lá, ao contrário: lá é uma promessa para
seletos, daí a necessidade de adicionar o ascetismo, pois, para chegar neste para-além-da-vida,
é preciso certa purificação da alma no aquém. Sobre isso, nos diz Sócrates: “O exercício próprio
dos filósofos não é precisamente libertar a alma e afastá-la do corpo?”133. Seguindo a mesma
resposta que Símias oferece a esta pergunta, é-nos lícito afirmar que sim, eis o exercício da
velha filosofia134. Daí o xis da necessidade que os filósofos têm de obterem uma dose de
ascetismo, pois filosofar requer: “estar livre de coerção, perturbação, barulho, de negócios,

131
Flávio R. Kothe, Nietzsche, Marx, Freud, p. 17.
132
Za/ZA, Dos transmundanos.
133
Fédon, 67d.
134
Essa tarefa é melhor percebida no argumento socrático sobre a meléte thanátou (cfr. Fédon, 64a-65a, 67e e
80e), um/a processo/prática milenar de separação hierárquica entre o corpo (sôma) e alma (psyché), já que a alma
do filósofo precisa desvencilhar-se do corpo-prisão (cfr. Fédon, 62b) e preparar-se para o ocaso da vida, a morte.
36

deveres, preocupações; lucidez na cabeça; dança, salto e voo do pensamento;”135 etc. em suma,
os filósofos têm uma “vontade de deserto”136, isto é: uma vontade de estarem a sós em um lugar
onde não sejam acometidos pelos desejos do corpo e pelos sofrimentos da vida.
A vida, como posto na epístola de João apresentada anteriormente, é uma antecâmara
da vida-para-além-da-vida. E como também visto na epístola, para se chegar ao Pai, é preciso
negar a sensualidade caprichosa, a concupiscência e a soberba do corpo. Tanto os filósofos
quanto os sacerdotes “pregam este comportamento como a forma de se chegar a um outro
mundo metafísico e dessensualizado”137. À vista disse, Nietzsche afirma que:

O sacerdote ascético é a encarnação do desejo de ser outro, de ser-estar em


outro lugar, é o mais alto grau desse desejo, sua verdadeira febre e paixão:
mas precisamente o poder de seu desejo é o grilhão que o prende aqui;
precisamente por isso ele se torna o instrumento que deve trabalhar para a
criação de condições mais propícias para o ser-aqui e o ser-homem –
precisamente com esse poder ele mantém apegado à vida todo o rebanho de
malogrados, desgraçados, frustrados, deformados, sofredores de toda espécie,
ao colocar-se instintivamente à sua frente como pastor.138

Assim, é-nos lícito afirmar que, as inúmeras edificações de ideais ascéticos não são, de
certo ângulo, uma negação da vida, pois eles são necessários para que uma espécie de sofredores
possa continuar a viver no aquém. No entanto, se o sacerdote consegue encontrar maneiras de
enlaçar o homem à vida, “é realmente um médico, este sacerdote ascético?”139 Como vimos, os
ideais ascéticos aliviam a dor, esse é o seu escopo, já que o ascetismo como remédio é um
tratamento de alívio, não de cura. Logo, ele amortece os sintomas, mas não combate a doença.
Portanto, ao sacerdote ascético, “dificilmente podemos chamá-lo de médico, por mais que lhe
agrade sentir-se ‘salvador’, ser venerado como ‘salvador’. Apenas o sofrimento mesmo, o
desprazer do sofredor, é por ele combatido, não a sua causa, não a doença”140, e, por isso, o
homem deveria ter a “objeção mais radical à medicação sacerdotal”141, pois, “os remédios que
o sacerdote ascético prescreve aos homens doentes, longe de curarem, agravam a doença”142.
***

135
GM/GM, III, 8.
136
Cfr. GM/GM, III, 7 e 8.
137
Gustavo Arantes Camargo, Nietzsche: por uma ética trágica, p. 132.
138
GM/GM, III, 13.
139
GM/GM, III, 17.
140
GM/GM, III, 17
141
GM/GM, III, 17.
142
C. L. Araldi, Para uma caracterização do niilismo na obra tardia de Nietzsche, p. 83.
37

Nas seções: “É homem ou animal?” e “Tem boa memória?”, retornaremos a esta questão
sobre o ascetismo para alinhá-lo aos conceitos de má consciência e ressentimento, visando, com
isso, entender a origem da separação entre a natureza e o homem e a decadência dos impulsos
bestiais. Porém, antes de fazer esse paralelo, faz-se imperativo mostrar que a busca do homem
foi até agora uma busca pelo nada (nihil), de tudo o que não existe e daquilo que não tem valor
ou utilidade efetiva à vida, por exemplo: a verdade e o mundo verdadeiro. Ao apresentar e
entender essas e outras coisas como ficções, fabulações e criações humanas decorrentes da
vontade de verdade (Wille zur Wahrheit) e produzidas através da linguagem metafisicada,
procuraremos mostrar os fundamentos iniciais para superar o ascetismo e o niilismo.

Mundos?

O que me consome o coração é essa força dominadora que se oculta sob a totalidade da Natureza, e
que nada produz que não destrua o que a rodeia, e por fim a si mesmo... E assim vagueio atormentado
por aí. Céu, terra e suas forças ativas em volta de mim! Nada vejo senão um monstro que engole
eternamente e eternamente volta a mastigar e a engolir.

Johann Wolfgang von Goethe, Die Leiden des jungen Werther

A partir da tradição socrático-platônica, os meios para obter ou criar um conhecimento


da realidade mundana (as sensações que surgem dos sentidos, os órgãos sensoriais do corpo, o
próprio corpo143 e o mundo) foram concebidos como obstáculos à obtenção do verdadeiro
conhecimento. Todavia, é preciso entender e questionar o porquê dessa mudança. A busca deste
porquê parte da tradição mencionada, que considerou os meios mencionados como cárcere e
empecilhos da razão ao limitá-la em sua busca pela verdade que estaria assentada em um mundo
verdadeiro e que, por coincidência, seria “alcançável para o sábio, o devoto, o virtuoso – ele
vive nele, ele é ele”144. Para ilustrar essa posição de Nietzsche e procurar o porquê desejado, é
interessante reconferir a alegoria da caverna de Platão, que retrata uma duplicação do mundo:
de um lado está o mundo verdadeiro e do outro o mundo aparente e transitório.
Essa alegoria, em resumo, tem a prerrogativa de destacar a necessidade de superar a
ignorância e os erros deste mundo para se alcançar o conhecimento verdadeiro em outro

143
A concepção mais antiga e difundida de corpo é a que o considera o instrumento da alma, podendo receber
apreço pela função que exerce, sendo por isso elogiado ou exaltado. Essas duas possibilidades se alternaram na
história da filosofia, que nos mostra tanto a condenação total do corpo como túmulo ou prisão da alma, segundo a
doutrina dos órficos e de Platão (Fed, 66 b ss.), ou como exaltação do corpo, tal qual a feita por Nietzsche, por
exemplo, na primeira parte do Assim falou Zaratustra, no capítulo intitulado Dos desprezadores do corpo (cfr.
Nicola Abbagnano, Dicionário de filosofia, p. 211).
144
GD/CI, Como o “mundo verdadeiro” se tornou finalmente fábula, 1.
38

mundo145. Essa ultrapassagem concebe a pequena razão146 superior aos sentidos e a negação
desses mesmos sentidos. Isso é mostrado em um póstumo, onde Nietzsche mostra a lógica de
pensar de uma “espécie sofredora”147 que compreende que “os sentidos enganam, a razão
corrige os erros148: por via de consequência, conclui-se, a razão é o caminho para o permanente:
as ideias mais insensatas precisariam estar mais próximas do ‘mundo verdadeiro’”149. Talvez,
por meio dessa valoração da razão, seja possível afirmar que toda a tradição ocidental tem
concebido a razão como o único veículo para a felicidade, o que, para Nietzsche, “significa tão-
só: é preciso imitar Sócrates e instaurar permanentemente, contra os desejos obscuros, uma luz
diurna – a luz diurna da razão”150, pois é difícil aceitar ou reconhecer “que o erro é inerente à
vida, [...] [identifica-se] sempre a verdade ao bem e o erro ou a falsidade ao mal”151. Ao rejeitar
o erro, a razão é a apresentada como a ferramenta adequada para colocar ordem na vida, pois
ela é uma espécie de empacotadora, isto é, ela encaixa a mudança, que proporciona erros e
desacertos, em conceitos e equações lógicas, para transformar o mundo e a vida em uma
equação linguística e racional passível de manipulações assertivas e sem erros.
Segundo Nietzsche, “o ser humano busca ‘a verdade’: [em] um mundo que não se
contradiga, não engane, não mude, um mundo de verdade – um mundo em que não se sofra:
[qualquer] contradição, engano, mudança – causas do sofrimento!”152 Quando o mundo é
duplicado ou quando se inventam transmundos, o homem “sempre privilegia um termo em
detrimento do outro: o céu vale mais que a terra; a alma, mais que o corpo; o eterno, mais que
o transitório; o divino, mais que o humano, etc.”153. À vista disso, quando Platão postula, em
sua alegoria, a existência de outro mundo, perenal, imutável e sem quaisquer erros, tal mundo
acaba por se tornar mais desejado do que o mundo do devir acometido por erros e mudança.
Nesse sentido, ao examinar

o conhecimento em Platão, [...] percebe-se que o filósofo propõe buscar o


fundamento da episteme [do conhecimento] para além do sensível, isto é, o

145
Para Nietzsche, “o conceito de ‘mundo verdadeiro’ insinua que este mundo é um mundo falso, enganoso,
desonesto, inautêntico, não essencial — e, portanto, sem efeito para nosso benefício (— desaconselhável, adapte-
se a ele, melhor, resista a ele)” (NF/FP de 1888, 14[168], in: Fragmentos póstumos, Vol. IV, p. 589).
146
A pequena razão é a consciência, o Eu consciente, apenas um “instrumento do corpo”, enquanto que “o corpo
é uma grande razão, uma multiplicidade com um único sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor”
(ZA, I, Dos desprezadores do corpo).
147
NF/FP de 1887, 9[60], in: FF, p. 70.
148
Em um aforismo da Gaia Ciência, Nietzsche contrapõe essa concepção de que seriam os sentidos que
fabricariam erros, na verdade, para ele, é o intelecto, pois o “intelecto nada produz senão erros” (FW/GC, 110).
149
NF/FP de 1887, 9[60], in: FF, p. 70.
150
GD/CI, O problema de Sócrates, 10.
151
Luciana Zaterka, Nietzsche: a “verdade” como ficção, p. 88 – acrescentamos e suprimimos.
152
NF/FP de 1887, 9[60], in: FF, p. 69 – acrescentamos.
153
Flávio R. Kothe, Nietzsche, Marx, Freud, p. 19.
39

conhecimento verdadeiro não está no objeto visto sensivelmente, posto que


tudo aquilo que é dado através do sensível é falível, mutável, contingente,
temporal etc. Por isso, dir-nos-á Platão, a base do conhecimento deve
extrapolar os sentidos e ser buscada no inteligível [mundo verdadeiro] por ser
este imutável, incontingente e eterno, capaz de subsistir por si.154

É mediante essa crença em um conhecimento fora da realidade que “Nietzsche ataca


ferozmente essa tendência metafísica de acreditar que a razão de ser de todas as coisas sempre
se encontra fora delas, nas realidades externas e objetivas”155. Todavia, por meio da crença
nesse outro mundo e pela frustração de não se encontrar as ficções que ele deveria prover, os
filósofos, assim como Sócrates, passam a atentar contra “uma aparência, um engano, que nos
impede de perceber [wahrnehmen156] o ser157: onde está o enganador?”158 A partir dessa
necessidade de encontrar algo para culpar159, surge então o desprezo contra os rebentos do
mundo dos sentidos, já que os filósofos estranhamente descobrem o seu grande enganador e o
“gritam felizes, ‘é a sensualidade! Esses sentidos, já tão imorais em outros aspectos, enganam-
nos acerca do verdadeiro mundo” 160 e impedem o alcance de um saber verdadeiro.
Para filósofos dogmáticos, é preciso “desembaraçar-se do engano dos sentidos, do vir-
a-ser, da história, da mentira”161. Essa atitude marca uma das três teses essenciais da imagem
dogmática do pensamento162, que expressa “que somos desviados do verdadeiro [...] por forças
estranhas ao pensamento (corpo, paixões, interesses sensíveis). Porque não somos apenas seres
pensantes, caímos no erro, tomamos o falso pelo verdadeiro”163. Se o homem é um ser que
pensa e sente, então ele deve negar e eliminar seus sentidos para alcançar o verdadeiro. Por
meio desse desapreço aos sentidos e a tudo aquilo que constitui o mundo das mudanças, a
história dessas pessoas de caráter egipcista é uma reação incessante contra o mundo, aliás, em
decorrência disso, eles dizem: “fora com o corpo, essa deplorável idée fixe dos sentidos!
acometido de todos os erros da lógica, refutado, até mesmo impossível, embora insolente o
bastante para portar-se como se fosse real”164. O corpo, a grande razão, é, “para eles, uma coisa

154
Lili Pontinta, Conhecimento no Fédon de Platão, p. 5 – acrescentamos e suprimimos.
155
Toni Llácer, El superhombre y la voluntad de poder, p. 75.
156
Segundo Karina Jannini (SA, N. T., p. 203), “em alemão, perceber (wahrnehmen) significa literalmente ‘tomar
por verdadeiro’”.
157
Segundo Wolfgang Müller-Lauter (A doutrina da vontade de poder em Nietzsche, p. 76), “‘Ser’ é, segundo
Nietzsche, ‘uma ficção vazia’”.
158
GD/CI, A “razão” na filosofia, 1 – acrescentamos.
159
Culpar é a idiossincrasia psicológica do ressentido.
160
GD/CI, A “razão” na filosofia, 1.
161
GD/CI, A “razão” na filosofia, 1.
162
Essas teses são apresentadas por Gilles Deleuze (cfr. Nietzsche e a filosofia, p. 155-156).
163
Gilles Deleuze, Nietzsche e a filosofia, p. 156 – suprimimos.
164
GD/CI, A “razão” na filosofia, 1.
40

enferma; e de bom grado desejariam sair de sua própria pele”165. Essa disposição pode servir
para responder uma questão: “Por que os filósofos são caluniadores? [Porque eles têm] A
pérfida e cega hostilidade contra os sentidos[, contudo,] Não são os sentidos que enganam!”166.
Em um póstumo, Nietzsche afirma que a “verdade é o tipo de erro sem o qual um certo
tipo de ser vivo não poderia viver”167. A criação de verdades estaria ligada àquela vontade de
verdade, “que é a crença de que nada é mais necessário do que o verdadeiro, de que o verdadeiro
é superior ao falso, de que a verdade é um valor superior - crença que funda a ciência e constitui
a essência da moral e da metafísica - é a expressão de uma vontade negativa de potência”168.
Essa é uma das críticas de Nietzsche à tradição filosófica, pois, em sua busca pela verdade a
todo custo, os filósofos não encontram a verdade, mas criam convicções e as defendem como
se fossem verdades. Segundo Nietzsche, os filósofos de nossa tradição “são todos advogados
que não querem ser chamados assim, e na maioria defensores manhosos de seus preconceitos,
que batizam de ‘verdades’”169. Em um póstumo, escrito antes do Além do Bem e do Mal, essa
característica dos filósofos já era colocada, quando Nietzsche afirma que “lutar por uma
verdade e lutar pela verdade são coisas diferentes”170. Dessa maneira, os filósofos dogmáticos
lutam ou advogam por suas verdades e não pela verdade. Também se faz importante ressaltar
que “aquele que quer buscar o verdadeiro quer antes de mais depreciar este grande poder do
falso: faz da vida um ‘erro’, deste mundo uma ‘aparência’. Opõe pois à vida o conhecimento,
opõe ao mundo um outro mundo, um além-mundo, precisamente o mundo verídico”171.
Em uma passagem da alegoria platônica172, é possível observar a fonte desse desprezo
pelo corpo e pelo mundo, quando Sócrates, em seu diálogo com Glauco, retrata a saída de um
dos prisioneiros para o lado de fora da caverna. Esse homem virtuoso, recém saído do engano
sensível e diante de um mundo novo, muda sua perspectiva, moral, crenças, ideias e, sobretudo,
sua concepção do que é real e do que não é. Para este homem virtuoso e nesse mundo, a vida
se baseia em “conceito mais elevado”173, isto é, em “conceitos mais gerais, mais vazios”174.
Esses conceitos, da forma como são propostos, são caixas vazias, sem quaisquer conhecimentos
do mundo para preenchê-los, visto que eles não podem ter causas empíricas ou conhecimentos

165
Za/ZA, I, Dos transmundos.
166
NF/FP de 1888, 14[134], in: FF, p. 81 – acrescentamos.
167
NF/FP de 1885, 34[253], in: Fragmentos póstumos, Vol. III, p. 769.
168
Roberto Machado, Nietzsche e a verdade, p. 12.
169
JGB/ABM, 5.
170
NF/FP de 1872, 19[106], in: SA, p. 23, destaque em negrito do autor.
171
Gilles Deleuze, Nietzsche e a filosofia, p. 145.
172
Cfr. A República, VII, 515cd.
173
GD/CI, A “razão” na filosofia, 4.
174
GD/CI, A “razão” na filosofia, 4.
41

de natureza sensível, mas somente uma causa “em si”175, pois são rebentos do ser. Em Além do
bem e mal, no capítulo Dos preconceitos dos filósofos, Nietzsche deixa claro essa predisposição
para a criação de conceitos a partir do ser e não do mundo.

“Como poderia algo nascer do seu oposto? Por exemplo, verdade do erro? Ou
a vontade de verdade da vontade de engano? Ou a ação desinteressada do
egoísmo? Ou a pura e radiante contemplação do sábio da concupiscência?
Semelhante gênese é impossível; quem com ela sonha é um tolo, ou algo pior;
as coisas de valor mais elevado devem ter uma origem que seja outra, própria
— não podem derivar desse fugaz, enganador, sedutor, mesquinho mundo,
desse turbilhão de insânia e cobiça! Devem vir do seio do ser, do intransitório,
do deus oculto, da ‘coisa em si’ — nisso, e em nada mais, deve estar sua
causa!”.176

É por meio desse modo de pensar tipicamente preconceituoso e “pelo qual podem ser
reconhecidos os metafísicos de todos os tempos”177, que “os filósofos chegam ao estupendo
conceito de ‘Deus’”178, pois tal conceito também ≡ Ø179, pois ele não é passível de mudança ou
experimentação; ele não se torna, quer dizer: “O que é não se torna; o que se torna não é”180.
Devido a uma formação milenar, que fundamenta os preconceitos dos filósofos, os homens
passaram a acreditar que existe um mundo verdadeiro ou uma verdade absoluta que, por não
pertencer ao plano do mundo aparente, não pode ser entendida pelo processo de intuição, por
isso, o sujeito que busca a verdade pressupõe que não é possível encontrá-la neste mundo falso.
Desta forma, “o conceito de verdade qualifica um mundo como verídico” 181, isto é, por meio
do conceito de verdade, se presume a existência de um mundo verdadeiro, porque a verdade
somente poderia existir em um mundo sem mudanças; sem erros, um mundo que é.
Na contramão da preeminência da razão, que supõe poder alcançar o conhecimento das
aeternae veritatis, Nietzsche considera que só alcançamos algum conhecimento por meio da
interpretação, isto é, conhecer é perspectivar. Ora, “‘Nós’ somos seres perspectivamente
interpretantes”182, isto é, Isso que somos confere significações às coisas. Quando se pergunta
“o que isto é?” ou “o que aquilo é?” e quando se responde “isto é aquilo” e “aquilo é isto”, não
se deve crer que se chegou a um conhecimento sobre o que é isto ou aquilo, mas que apenas

175
Segundo Nicola Abbagnano (Dicionário de filosofia, p. 151 – acrescentamos), em si é “o que a C[oisa] é,
independentemente da sua relação com o homem”.
176
JGB/ABM, 2.
177
JGB/ABM, 2.
178
GD/CI, A “razão” na filosofia, 4.
179
Símbolo de vazio.
180
CI, A “razão” na filosofia, 1.
181
Gilles Deleuze, Nietzsche e a filosofia, p. 144.
182
Wolfgang Müller-Lauter, A doutrina da vontade de poder em Nietzsche, p. 137.
42

conferiu-se um juízo (Urteil) de valor a algo, ou seja, que se fez uma interpretação sobre algo.
Se não há verdades eternas, logo, só há interpretações. Todavia, Nietzsche afirmou que não é
um eu-sujeito-pensante que perspectiva as coisas, ele próprio é tão somente uma coisa
perspectivada por Isso que somos. Para não cairmos no erro de afirmar que é um Eu-consciente
que interpreta, ao nos referimos aos impulsos, a “um soberano” que se encontra “por trás dos
pensamentos e sentimentos” e que é “um sábio desconhecido”183, usaremos o Isso (Id, es,
Etwas, Das Selbst, it) para dignar algo ou a grande razão (o corpo) que interpreta, Isso que é o
ser próprio do homem: o corpo e suas pulsões, visto que, para Nietzsche, “A formação das
coisas é, do começo ao fim, obra do conceptualizador, pensador, aspirante, inventor”184, isto é,
não é um eu-sujeito-pensante que aspira, inventa ou interpreta as coisas no mundo, mas sim “os
nossos instintos [...]. Cada instinto é uma espécie de ânsia de dominar, cada um tem a sua
perspectiva que ele gostaria de impor como norma a todos os demais instintos”185. Os impulsos
pensam, conflituam-se, põem perspectiva contra perspectiva e somente uma parte do arcabouço
do que é pensado neste embate chega à consciência, que se torna consciente, que passa a valer
conscientemente como interpretação de alguma coisa. O eu-sujeito não cria, pois ele é apenas
uma frívola interpretação da grande razão, do interpretador, que é o ser próprio do homem.
Contrários ao modo de conhecer instintivo e perspectivo, os “filósofos dogmáticos”186
procuram conhecer coisas que não sofrem contradições, o saber precisa ter certa fixidez, caso
contrário, não é relevante. Nesse sentido, cria-se o princípio de não-contradição, o qual
“forneceu o esquema: o mundo verdadeiro, para qual se procura o caminho, não pode estar em
contradição consigo mesmo, não pode mudar, não pode vir-a-ser, não tem origem e não tem
fim”187. Assim, a invenção de conceitos a partir do princípio da não-contradição, como o
conceito Deus, são cunhados “como noção-antítese à vida – todo nocivo, caluniador, toda a
inimizade de morte à vida, tudo enfaixado em uma horrorosa unidade”188. Aliás, além do
conceito Deus, criou-se também “a noção de ‘além’, ‘mundo verdadeiro’, para desvalorizar o
único mundo que existe – para não deixar à nossa realidade terrena nenhum fim, nenhuma
razão, nenhuma tarefa!”189. Desse modo, os filósofos criam um eikon avessado do mundo,
visando caluniar e denegar tudo que eflui do vir-a-ser, da mudança, da vida e do próprio mundo.

183
cfr. Za/ZA, I, Dos desprezadores do corpo.
184
NF/FP de 1885, 2[152], in: FF, p. 160.
185
NF/FP de 1886, 7[60], in: FF, p. 165 – suprimimos.
186
Ao se referir aos filósofos dogmáticos no Além do bem e do mal, Nietzsche afirma que a busca pela verdade
destes, herdeiros da metafisica platônica, “significou pôr a verdade de ponta-cabeça e negar a perspectiva, a
condição básica de toda vida, falar do espírito e do bem tal como fez Platão” (JGB/ABM, Prólogo).
187
NF/FP de 1888, 14[153], in: FF, p. 60.
188
EH/EH, Por que sou um destino, 8.
189
EH/EH, Por que sou um destino, 8.
43

Para Nietzsche,

Essa é a lamentável história: o ser humano busca um princípio, a partir do qual


ele possa desprezar os seres humanos – ele inventa outro mundo, para poder
caluniar e sujar este mundo aqui: de fato ele apela cada vez mais para o nada,
e constrói o nada como “Deus”, como “verdade” e, em todo caso, como juiz e
condenador desta existência aqui...190

Ao subtrair tudo o que compõe o mundo aparente da equação do conhecimento, o que


resta do mundo se não uma ficção de mundo? Afinal, o que é o mundo? Uma resposta a essa
pergunta já foi registrada anteriormente, porém, para avigorar aquela resposta, é indispensável
ponderar a seguinte passagem contida em um póstumo de 1885:

E sabeis sequer o que é para mim “o mundo”? Devo mostrá-lo a vós em meu espelho?
Este mundo: uma monstruosidade de força, sem início, sem fim, uma firme, brônzea
de força, que não se torna maior, nem menor, que não se consume, mas apenas
transmuda [...] – queres um nome para esse mundo? Uma solução para todos os seus
enigmas? Uma luz também para vós, vós, os mais escondidos, os mais fortes, os mais
intrépidos, os mais da meia-noite? – Este mundo é a vontade de potência e nada além
disso! E também vós próprios sois essa vontade de potência – e nada além disso!191

Após compreender o mundo como um caos e multiplicidade de forças, sem começo,


sem fim e que se retroalimenta de si mesmo, Nietzsche nos mostrará que a busca pelo mundo
verdadeiro tende a suprimir a multiplicidade do mundo e a organizar o caos que o mundo é.
Para Nietzsche, não tentamos “‘reconhecer’ [o mundo], porém, esquematizar, impor ao caos
tanta regularidade e tantas formas quanto convier às nossas necessidades práticas” 192 e
psicológicas. Esse egipcismo de filósofos é um erro, pois “o mundo [...] tem duas características
fundamentais: instabilidade e interdependência. A realidade em si não possui nenhum tipo de
estrutura ou regularidade, mas é essencialmente um enorme caos de forças”193, isto é, quando
o mundo estiver suficientemente retido em um ossário conceitual aceito racionalmente ou
logicamente, ele se alterará e suscitará outras tantas mais interpretações, pois se “o mundo não
tende a um estado permanente [e se isto] é a única coisa que está demostrada”194, então ele
nunca virá a ser aprisionado em uma equação conceitual, pois não é possível abarcar um em si
dele, nem das coisas. À vista disso, como o mundo possui ânsia por transformação, ele só pode

190
NF/FP de 1888, 14[134], in FF, p. 82.
191
NF/FP de 1885, 38[12], in: SNER, p. 397 – suprimimos. Cfr. ABM, 36.
192
NF/FP de 1888, 14[152], in: FF, p. 96 – acrescentamos.
193
Toni Llácer, El superhombre y la voluntad de poder, p. 109 – suprimimos.
194
NF/FP de 1887, l0[138], in: Fragmentos póstumos, Vol. IV, p. 343 – acrescentamos.
44

ser compreendido por meio de múltiplas verdades, quer dizer: perspectivamente, onde as suas
múltiplas verdades equivalem às suas múltiplas interpretações.
Existem múltiplas interpretações quanto ao ser próprio do mundo, por exemplo, “para
as plantas, o mundo é de tal e tal maneira; para nós, de tal e tal maneira [...] para as plantas, o
mundo é inteiro feito de plantas, para nós, de homens”195. Quando se investiga o ser do mundo,
para responder se deve perguntar: baseado em quê? Ou: em quem? A título de exemplo, para o
“Iluminismo o mundo era uma grande máquina que a luz da razão podia compreender, para o
Romantismo o universo/a natureza era, como para alguns filósofos Estóicos, o corpo de um
grande ser vivo, cuja alma era Deus”196, etc. Portanto, o ser próprio do mundo estaria ligado às
suas interpretações? E, existindo múltiplas interpretações do mundo, qual a verdadeira? De
antemão, para o filósofo que crê no em si, nenhuma delas é verdadeira, mas, se essa verdade
que se busca estiver liberta da pérfida busca pelo ser-em-si-da-coisa, então todas as múltiplas
interpretações do mundo são múltiplas verdades da mesma coisa vista de ângulos diferentes.
A interpretação do mundo foi a maneira pela qual o Isso que somos encontrou para dar
forma e sentido ao mundo caótico em que ele veio a aparecer. Portanto, nos afirma Nietzsche:
“Na medida em que a palavra ‘conhecimento’ ainda tem qualquer sentido, o mundo é
cognoscível: mas ele é interpretável ou outro modo, ele não tem nenhum sentido subjacente,
porém, inúmeros sentidos, ‘perspectivismo’”197. Por meio da habilidade dIsso de interpretar, se
“constrói um mundo estável a partir do esquecimento de que tudo é criado, ou seja, de que tudo
o que o sujeito acredita conhecer não passa de uma ficção”198 gerada dIsso, de perspectivas e
de interpretações humanas. Nesse sentido, o homem impõe um certo ordenamento ao mundo,
já que ele recusa a hipótese de que “o mundo é caótico, desorganizado, informe e, ao mesmo
tempo, informulável, totalmente heterogêneo ao conhecimento: não existe para ser conhecido
e sobre ele o conhecimento não pode enunciar leis que não existem”199.
Enquanto vontade, o mundo não tem uma ordem, mas um desejo pela desordem, porque
“o caráter geral do mundo [...] é caos por toda eternidade, não no sentido de ausência de
necessidade, mas de ausência de ordem, divisão, forma, beleza, sabedoria e como quer que se

195
NF/FP de 1872, 19[158], in: SA, p. 24-25 – suprimimos.
196
Edrisi de Araújo Fernandes, O espelho de Zaratustra, a correção do “mais fatal dos erros” e a superação da
“morte de Deus”, p. 183.
197
NF/FP de1886, 7[60], in: FF, p. 165.
198
Flavia Turino Ferreira, Da Representação ao Sentido Anti-histórico: Memória, Esquecimento e Criação em
Nietzsche, p. 70.
199
Roberto Machado, Nietzsche e a verdade, p. 102-103.
45

chame nossos antropomorfismos200 estéticos”201. Aqui é apropriado apresentar o elo percebido


que liga as interpretações de mundo: a linguagem que “atua como uma tesoura com o qual, por
razões práticas, cortamos o continuum da energia da vida”202. A linguagem, essa engenharia
humana, é a responsável pela incompatibilidade entre o que é o mundo e o que ele não pode
ser. A partir dela, a consciência tende a encaixotar o mundo em um conceito mumificado203.
Além disso, é através da linguagem que seria possível fabular e forjar a existência de um outro
mundo, um mundo estável, organizado e ordenado, imutável e eterno, capaz de ser manipulado
e alcançado somente por meio da consciência lógica, pelo discurso metafísico e pela fé.
Dessa forma, o mundo não é uma coisa falsa, muito menos enganadora, já que, como já
foi demonstrado, para Nietzsche não é possível alcançar uma essência da coisa, um em si, visto
que, nos diz Nietzsche: “a essência de uma coisa também é apenas uma opinião sobre a
‘coisa’”204. A partir de interpretações convencionais, é possível dizer que algo é falso ou
verdadeiro, porque é no coletivo de homens que juízos de valores se solidificam nas coisas, pois
“a verdade é, antes de mais nada, um valor; indissociável da linguagem, mantém a vida gregária.
Instituída por convenção, não diz respeito às próprias coisas, mas à relação que os homens
estabelecem com elas”205. Portanto, dizer que o mundo é falso é apenas atestar que uma
convenção de homens estabeleceu uma interpretação ou um ajuizamento de valor para o mundo,
porém, é-nos lícito afirmar que esse valor não faz parte do mundo, já que ele é apenas um valor
que surge da relação entre o Isso e o mundo. De fato, para que o valor falso seja dado ao mundo,
deveria haver um valor verdadeiro. Para entender a questão da verdade, Nietzsche elaborou
algumas reflexões sobre a linguagem, já que as palavras, com as quais se edifica a gramática206
de qualquer civilização, possuem a presunção de estabelecer verdades sobre coisas.
Nietzsche afirma que “acreditamos saber algo das coisas mesmas, quando falamos de
árvores, cores, neve e flores, e, no entanto, não possuímos nada mais do que metáforas das
coisas, que de nenhum modo correspondem às entidades de origem”207. Portanto, não é possível

200
Com o termo “antropomorfismo”, segundo Nicola Abbagnano (Dicionário de filosofia, p. 68), “indica-se com
este nome a tendência a interpretar todo tipo ou espécie de realidade em termos de comportamento humano ou por
semelhança ou analogia com esse comportamento. ‘Crenças antropomórficas’ ou ‘antropomorfismos’ são
chamadas, em geral, as interpretações de Deus em termos de conduta humana”.
201
FW/GC, 109 – suprimimos.
202
Toni Llácer, El superhombre y la voluntad de poder, p. 112.
203
Ao apontar o conceito como algo que encaixota o conhecimento, observou-se uma certa anotação de Nietzsche,
na qual ele aponta que “por meio de conceitos, a impressão é capturada e isolada, e, depois de morta e esfolada, é
mumificada e conservada enquanto conceito” (NF/FP de 19[228], in: WL/SVM, p. 80) e de uma certa definição
de Eugen Fink (A filosofia de Nietzsche, p. 35), na qual afirma-se que “o conceito é a casca vazia de uma metáfora”.
204
NF/FP de 1885, 2[150], in: FF, 159.
205
Scarlett Marton, Novas liras para novas canções: reflexões sobre a linguagem em Nietzsche, p. 34.
206
Para Nietzsche, a gramática é a “metafísica do povo” (FW/GC, 345).
207
WL/SVM, 1 (1983).
46

ao homem obter a verdade de alguma coisa, mas apenas uma indicação linguística para a coisa
ou, nas palavras de Nietzsche, uma metáfora208 do objeto, porque “a linguagem é simplesmente
um conjunto de metáforas [...] pela sua própria natureza, é incapaz de captar as coisas”209. É
diante dessa afirmação que ele critica a noção kantiana de Ding an sich, porque “‘a coisa em
si’ (tal seria justamente a verdade pura [e] sem consequências) é, também para o formador da
linguagem, inteiramente incaptável e nem sequer algo que vale a pena”210, visto que “a
gnosiologia é um juízo de valor, não há conhecimento”211 e, muito menos, um conhecimento
em si, já que “Uma ‘coisa em si’ [é] tão errada quanto um ‘sentido em si’, uma ‘significação
em si’. Não há nenhum ‘estado de coisas em si’”212, portanto, não é preciso “procurar o sentido
das coisas: mas enfiá-lo dentro delas!”213, quer dizer: é preciso que o Isso queira-perspectivar.
***
Na seção: “É avaliador?”, mostraremos o surgimento e a única função e utilidade prática
da linguagem, visto que, chegar a verdades sobre as coisas, não lhe é possível. Tendo
apresentado as características do niilismo negativo, agora nos deteremos no niilismo reativo.

NIILISMO REATIVO

As raízes do niilismo chegaram às fronteiras de toda a Europa e Nietzsche, ao perceber


isso, indagou: – o “niilismo está diante da porta: de onde nos chega esse mais estranho e mais
ameaçador de todos os hóspedes?”214. O sentimento niilista ou a falta de sentido é o mais claro
sintoma manifestado quando há em curso uma forte predisposição do homem pelo caminho reto
ao nada. Tendo ocorrido a decadência na forma de dominação, onde o escravo venceu o nobre,
há uma consequência: sendo o escravo vitorioso, somado e unido em uma massa de similares,
então ele não tem ninguém para negar, porque os nobres e senhores se tornaram resultado do
acaso (cfr. a seção: É... Útil? A Quê? e a seção: O que potencialmente é?). Até então, os escravos
estavam no âmbito da negação, ou seja: negavam essa vida em nome de outra, porque a vida só
proporcionava dor, sofrimento e era sinônimo de impotência. Porém, os escravos
assenhorearam-se, ganharam poder e destaque na sociedade, então por que esperar outra vida

208
Para Nietzsche, uma “metáfora significa tratar como igual algo que, num dado ponto, foi reconhecido como
semelhante” (NF/FP de 1872, 19[249], in: WL/SVM, p. 91).
209
Luciana Zaterka, Nietzsche: a “verdade” como ficção, p. 87 – suprimimos.
210
WL/SVM, 1 (1983) – acrescentamos.
211
Flávio R. Kothe, Nietzsche, Marx, Freud, p. 13.
212
NF/FP de 1885, 2[149], in: FF, p. 159 – acrescentamos.
213
NF/FP de 1886, 6[15], in: FF, p. 164.
214
NF/FP de 1885, 2[127], in: FF, p. 47.
47

para agir? Por que não essa? Existe outra vida? Eis o momento que escravo reage contra seus
próprios valores e seus ídolos, porque “das profundezas do espírito da época surgem o ceticismo
e a desconfiança, frequentemente dissimulada”215, quer dizer: o homem moderno passa a
desconfiar da existência de seu velho Deus. É possível observar essa descrença cada vez mais
crescente desde o Iluminismo e da Revolução Francesa, onde uma ruptura na cultura ocidental
foi desencadeada. Esses eventos levaram ao surgimento de dúvidas diante das concepções
tradicionais que guiavam o homem até então, ou seja, os valores superiores e o próprio divino
foram postos em xeque por meio da desvalorização da fé engendrada pelo surgimento do
conhecimento científico. Neste sentido, o homem sai de um niilismo negativo impetrado,
principalmente, pela filosofia dogmática e pelo cristianismo, para um niilismo reativo, que
equivale a substituição dos valores superiores por “ideias modernas como ‘humanidade’,
‘sociedade livre’, ‘ciência’, ‘progresso’, ‘felicidade para todos’...”216.
Nesse niilismo reativo, a ciência, como será apontado (cfr. a seção: É livre?), ao assumir
a tarefa de analisar os fundamentos do conhecimento, constata que o homem, em outrora, foi
guiado por crenças e superstições fantasiosas derivadas da fé. A ciência moderna, nesse sentido,
vence Deus em seu próprio terreno, isto é: “a vitória sobre o deus cristão deve-se à própria
vontade de verdade engendrada pela moral cristã, aguçada nos confessionários e
metamorfoseada em consciência científica”217. Portanto, a ciência não é tão diferente da religião
ou da metafísica, porque ela nasceu na modernidade como fiadora da verdade, ou seja, em
essência, nada mudou. No entanto, diante da descrença dos valores que davam sentido e ordem
à vida, o homem parece não saber o que fazer ou que caminho seguir. Na Gaia Ciência,
Nietzsche é enfático em afirmar que “tudo quanto irá desmoronar, agora que a crença [em Deus]
foi minada, porque estava sobre ela construído, nela apoiada, nela arraigada: toda a moral
Europeia, por exemplo”218, todo sentido e significado, todo porquê, como e para quê.
O homem matou Deus para gozar dos rebentos de sua modernidade, onde todos são
iguais e gozam do bem-estar social. Mas o fato é que a ausência de Deus é sentida pelo homem,
porque foi ele quem deu sentido à vida do homem até então e, embora a ciência seja entendida
como a nova fiadora de sentidos à vida, ela nasceu ontem, ou seja: ainda levará tempo para que
ela seja consolidada como parâmetro moral. Nesse sentido, a ciência liberta o homem do
dogmatismo moral religioso e proíbe a fé em Deus, mas não preenche o vazio deixado.

215
Wolfgang Müller-Laute, O desafio Nietzsche, p. 9.
216
Roberto Machado, Zaratustra, tragédia nietzschiana, p. 64.
217
C. L. Araldi, Para uma caracterização do niilismo na obra tardia de Nietzsche, p. 84.
218
FW/GC, 143 – acrescentamos.
48

“Deus está morto! Nós o matamos!”

(Se rezas, detenha-se! aprendes a cantarolar!...

Uma das principais ideias desacreditadas na modernidade e que resulta no


estabelecimento de um niilismo passivo é a ideia de Deus219, já que, “no fundo, o homem perdeu
a crença em seu valor, através dele não atua um todo infinitamente valioso: isto é, ele concebeu
um tal todo, para poder acreditar em seu valor”220. Nietzsche, no aforismo de abertura do
quinto livro221 da Gaia Ciência, já antecipava essa descrença, ao afirmar que “o maior
acontecimento recente – o fato de que ‘Deus está morto’, de que a crença no Deus cristão perdeu
crédito – já começa a lançar suas primeiras sombras sobre a Europa”222. E como “era a partir
da crença em Deus que a vida humana podia ser explicada e significada de tal modo que para
ela se fornecia um sentido satisfatório”223, nesse momento, a vida aparece sem sentido.
O ideal de Deus foi proposto como sentido da vida por largo tempo, porém, ele caiu.
Aliás, de forma semelhante a queda deste ideal, “a filosofia dos dogmáticos foi, temos
esperanças, apenas uma promessa através dos milênios”224, pois quando se lapida filosofias,
ídolos e crenças na argila da veracidade, basta tão somente um pouco de ceticismo, um tanto
do sentimento de em vão, uma consciência e alguma dúvida para que toda a obra desmorone,
por isso “há os zombadores que afirmam que caiu, que todo o dogmatismo225 está no chão, ou
mesmo que está nas últimas”226, pois se desencadeou a “grande novidade [...]: não há nada a
ver por trás da cortina”227. Se antes, os valores e crenças que guiavam a vida eram construídos
sob o ideal de Deus e na filosofia dogmática (dogmatische Philosophie), através da
desvalorização engendrada pelo ceticismo, há a perda de sentidos que organizavam a vida ou,

219
Segundo Toni Llácer (El superhombre y la voluntad de poder, p. 72), “a palavra ‘Deus’ não designa unicamente
o deus da Bíblia, mas toda uma maneira de pensar que vai muito além do âmbito estritamente religioso. Deus
simboliza a metafísica ocidental”.
220
NF/FP de 1887, 11[99], in: SNER, p. 380-381.
221
O livro em questão, intitulado como Nós, os impávidos, foi adicionado durante a expansão substancial realizada
por Nietzsche no ano da segunda edição (1886). Nesta expansão de sua obra, além de adicionar o quinto livro, ele
também adicionou o prólogo e o apêndice formado por alguns poemas. Segundo Paulo César de Souza (FW/GC,
Posfácio, p. 305), “o novo capítulo de A gaia ciência originou-se no período pós-Zaratustra, o mesmo de Além do
bem e do mal (1886), com o qual partilha o tom e a densidade”.
222
FW/GC, 343.
223
Danilo Bilate de Carvalho, A tirania do sentido: interpretação, verdade e moral em Nietzsche, p. 6.
224
JGB/ABM, Prólogo.
225
Segundo Carlos A. R. de Moura (Nietzsche: civilização e cultura, p. 33), “‘dogmático’ é aquele que estabelece
uma determinação como a verdade. O ‘dogmatismo’ é a pretensão à universalidade da verdade”.
226
JGB/ABM, Prólogo.
227
Gilles Deleuze, Nietzsche e a filosofia, p. 222 – suprimimos.
49

até mesmo, a perda da própria vida, já que a vida foi desqualificada e negada para que o homem
pudesse acreditar em seus ideais. O maior dos eventos recentes, o “crepúsculo do Deus
cristão”228, deixou a vida nua de sentidos, portanto, caberá ao homem sucumbir junto a seus
velhos valores ou perceber seu caráter criativo para, a partir de novas experiências e vivências,
criar novos valores, passando assim de um niilismo passivo para um niilismo ativo.
No célebre aforismo 125 da Gaia Ciência, Nietzsche apresenta explicitamente a
expressão: Deus está morto. Esta descoberta é anunciada por um louco 229, quando ele, no
mercado e entre os homens, pronunciou: “‘Para onde foi Deus?’ gritou ele, ‘já lhes direi! Nós
o matamos – vocês e eu. Somos todos os seus assassinos”230. Contudo, parece que o louco não
estava tentando dizer que Deus não existe ou que ele realmente morreu, como se Deus pudesse
perecer de maneira semelhante aos homens. Portanto, é importante entender que o anúncio da
morte de Deus “tem o significado de um abalo cósmico, de uma perda total de sentido, de toda
finalidade, ocasionados pelo afastamento da fonte divina dos valores (compreendida como o
sol na tradição platônica) que forneciam um sentido ao mundo”231. A morte de Deus quer
expressar que a crença nesse ideal perdeu crédito e ganhou desconfiança, a tal ponto que essa
crença sucumbiu e padeceu da existência e da vida dos homens, pois a morte de Deus “é a
evidência de que a fé em Deus, que servia de base à moral cristã, se encontra minada, de que
desapareceu o princípio em que o homem cristão fundou sua existência”232.

(– Mas,
quem desatou a terra de seu Sol?

Nietzsche, para nitidificar quem é o assassino de Deus, escreveu na quarta parte de


Zaratustra, em O mais feio dos homens, uma alegoria na qual Zaratustra, depois de ter
encontrado e conversado com o último papa, agora já sem ofício, ou melhor: aposentado,
chegou a um vale, onde

Erguiam-se, ali, negros e vermelhos penedos: não havia ervas nem árvores
nem cantos de pássaros. Era, justamente, um vale que todos os animais
evitavam, também os animais ferozes; e somente uma raça de cobras, feias,

228
A. E. Paschoal, A dinâmica da vontade de poder como proposição moral dos escritos de Nietzsche, p. 136.
229
O homem louco também é respectivamente o título do aforismo 125. Roberto Machado (Zaratustra, tragédia
nietzschiana, p. 47) manuseou a tradução “o insensato” que, ao nosso ver, oferece a ideia de alguém afastado da
sensatez da razão, da luz diurna da razão, que ficou louco, tresloucado, ensandecido.
230
FW/GC, 125.
231
C. L. Araldi, Para uma caracterização do niilismo na obra tardia de Nietzsche, p. 77.
232
Roberto Machado, Zaratustra, tragédia nietzschiana, p. 47.
50

gordas, verdes, iam lá, quando velhas, para morrer. Por isso os pastores
chamavam o vale: “A morte das cobras”. 233

Ao entrar naquele sinistro vale, Zaratustra, “ao levantar os olhos, viu, sentada no solo,
qualquer coisa com figura de homem, qualquer coisa inominável”. Aquela forma ignóbil de
homem parecia não estar viva. No entanto, depois de algum tempo, “eis que o morto [...]
[começou] a produzir sons [...] [que] transformaram-se, por fim, em voz e fala humana”,
produzindo a seguinte fala:

“Ó Zaratustra! Zaratustra! Adivinha meu enigma! Fala! Fala! Quem


vem a ser a vingança contra a testemunha?234

Note que o sentimento de vingança é típico daquele que é ressentido, daquele que busca
uma causa e um culpado por seu sofrimento, já que o ressentido conserva em sua memória (cfr.
a seção: Tem boa memória?) fardos e sofrimentos passados, quer dizer: o ressentido sofre
unicamente por não conseguir digerir suas amarguradas lembranças e, por isso, possui a
necessidade psicológica de buscar culpados. Em uma fórmula: ressentido ≡ acusador perpétuo
de um outro-eu. Neste caso, o causador do sofrimento, a quem o homem ressentido projeta sua
vingança psicológica, é a testemunha ≡ Deus. Ao ouvir a pergunta daquele homem, Zaratustra
o reconhece: o homem em sua frente era o mais feio dos homens ≡ o assassino de Deus ≡ o
homem reativo ≡ o homem moderno que reage e que se vinga contra a testemunha.
Depois de reconhecê-lo, Zaratustra o lança uma provocação:

Não suportaste aquele que te via – que te via sempre e até o mais
fundo do teu ser, ó tu, o mais feio dos homens! [ou: ó tu, homem ressentido!]
Tiraste vingança contra essa testemunha!235

Lançada a provocação do Zaratustra, o ressentido toma a palavra:

Mas ele – precisava morrer: via, com olhos que viam tudo – via as
profundezas e âmago do homem, toda a sua oculta vergonha e fealdade.
Sua compaixão não conhecia pudor: insinuava-se nos meus desvãos
mais sujos. Esse mais curioso de todos os curiosos, ultramolesco,
ultracompassivo, precisava morrer.
Ele me via sempre; de uma tal testemunha eu quis vingar-me – ou,
então, preferia não viver.

233
Za/ZA, II, Dos compassivos.
234
Za/ZA, II, Dos compassivos.
235
Za/ZA, II, Dos compassivos – acrescentamos.
51

O Deus que via tudo, também o homem: esse Deus precisava morrer!
O homem não suporta que uma tal testemunha continue viva.236

O ressentido afirma que já não poderia viver caso deixasse viver essa testemunha
compassiva que podia observar as suas profundezas. Deus veio a morrer ironicamente de
compaixão. Esse fator também já era antecipado por Nietzsche numa anotação de 1882 que diz:
“‘o amor de Deus para com os homens é o inferno dele’ – disse o diabo. ‘Mas também como é
possível se apaixonar pelos seres humanos!’”237. E, antes de ser posto pela boca do assassino
de Deus, essa afirmação é colocada pelo próprio Zaratustra em Dos compassivos, onde ele diz:

Certa vez, assim falou-me o Diabo: “Também Deus tem o seu inferno:
e é seu amor aos homens”.
E, recentemente, ouvi-o dizer estas palavras: “Deus está morto;
morreu de sua compaixão pelos homens”.238

A compaixão, enquanto virtude cristã, é uma virtude decadente e doentia, porque


quando alguém se compadece do outro, isto é, sofre com o não-eu, adoece ≡ torna-se cristão ≡
torna-se fraco. Ou seja: ter compaixão pelo outro causa danos a si e a um outro-eu, porque i) a
compaixão retira o direito pessoal do outro de sentir seus próprios males e ii) prejudica o
compassivo que incorpora em si uma dor que não é sua239. Portanto, aconselha Nietzsche,
“cuidado com a compaixão: ela nos sobrecarrega com as necessidades de outros”240. No Sem
ofício, podemos observar nitidamente como a compaixão é prejudicial e nociva. Neste capítulo,
Zaratustra pergunta ao último papa, “que serviste [Deus] até o fim”, se ele “sabes como ele
morreu? [Se] É verdade o que dizem, que a compaixão o sufocou[?]”241. O último papa
silenciou-se por algum tempo, mas acabou por responder a Zaratustra:

Quando era jovem, esse Deus vindo do Oriente, era duro e vingativo
e edificou um inferno para deleite dos seus prediletos.
Finalmente, porém, ficou velho e mole e combalido e compassivo,
mais semelhante a um avô do que a um pai e mais semelhante, ainda, do que
a qualquer outra coisa, a uma velha avó trôpega.
Quedava-se, murcho, sentado a um canto do fogão, queixando-se da
fraqueza das pernas, cansado do mundo, cansado de ter vontade; e, um dia,
morreu sufocado por sua excessiva compaixão.242

236
Za/ZA, IV, O mais feio dos homens.
237
NF/FP de 1882, 3[1], in: SA, p. 92.
238
Za/ZA, II, Dos compassivos.
239
Cfr. JGB/ABM, 82.
240
NF/FP de 1887, 11[80], in: FF, p. 76.
241
Za/ZA, IV, Sem ofício – acrescentamos.
242
Za/ZA, IV, Sem ofício.
52

Observe que existem dois estados fisiológicos de Deus: no primeiro, ele é forte e
saudável; no segundo, toda a sua fisiologia se torna decadente como resultado da compaixão.
Deus, na versão de Paulo, foi quem mais sacrificou sua fisiologia saudável em favor dos
homens. Portanto, o homem tem uma promissória de dívida com esse Deus, pelo menos é o que
nos diz a versão cristã da história, e, por ter que quitá-la, o homem teve que aderir aos dogmas
morais do cristianismo, vivendo em constante sofrimento para restituir o dano causado a este
Deus que se compadeceu com o sofrimento de todos nós. Todavia, como mostrado
anteriormente, o homem moderno ≡ o assassino de Deus não quer243 mais viver no âmbito desta
religião, ou seja, ele não suporta mais ter que sofrer para pagar tal dívida; ele deseja obter a
felicidade das pequenas coisas; ele quer novos ídolos para libertá-lo do Deus compassivo.

Nós, sem Deus... Nós, últimos dos homens, descendentes do ignóbil

Tendo encontrado o assassino de Deus e o porquê de sua vingança, precisamos entender


o que daí resulta, isto é: o último homem que equivale ao “desdobramento do assassino de
Deus”244. Zaratustra, no prólogo, apresenta esse homem: “Vede! Eu vos mostro o último
homem”245. Ele seria aquele homem que, por não mais saber, pergunta: “‘Que é amor? Que é
criação? Que é anseio? Que é estrela?’”246. Este homem, depois de abandonar a religião
(passagem do niilismo negativo ao niilismo reativo), onde era difícil viver devido a compaixão
de Deus, agora vive para “seus pequenos prazeres para o dia e seus pequenos prazeres para a
noite”247. Esse homem conformista, passivo e órfão de Deus não quer superar-se, ao contrário,
visa conservar-se no rebanho criado pelo Estado, onde todos são iguais, tem o seu tu deves a
seguir e o onde o Estado impera como o novo ídolo248. Nietzsche coloca isso da seguinte forma:

Posto agora que a crença em Deus se foi: então se recoloca a questão: “quem
fala?” – Minha resposta, não extraída da metafísica, mas da fisiologia animal:
o instinto do rebanho fala. Ele quer ser senhor [isto é: quer comandar; quer
dominar]: daí o seu “tu deves!”, ele quer deixar valer o indivíduo só no sentido

243
O não querer equivale ao querer liberdade de, assim como quer o espírito do leão (cfr. a seção: “É leão?”).
Porém, vós deveis notar que, ao contrário do leão, que equivale ao espírito livre e ao jovem, o homem moderno
não se torna livre, dado que ele continua a perscrutar ídolos (à exemplo da ciência, Estado, felicidade, verdade
etc.) para guiar a si. Deus é deixado de lado, mas o homem não se livra de sua dependência, permanecendo camelo
(cfr. a seção: “É camelo?”), isto é, continua a suportar e a dizer Sim a pesos idealistas e morais.
244
Gilles Deleuze, Nietzsche e a filosofia, p. 227.
245
Za/ZA, Prólogo, 5.
246
Za/ZA, Prólogo, 5.
247
Za/ZA, Prólogo, 5.
248
Cfr. Za/ZA, I, Do novo ídolo.
53

do todo [isto é: sem individualismo, apenas rebanho ≡ povinho], para a


vantagem [ou: conservação] do todo, ele detesta aqueles-que-se-afastam [isto
é: o subversivo249] – ele volta o ódio de todos os indivíduos contra ele.250

Nesse sentido, se voltarmos aos itens 3, 4 e 5 do prólogo do Zaratustra, notamos que o


Zaratustra fracassa ao falar para o povo, isto é, aos homens modernos, sobre a necessidade de
superar o homem para fazer surgir o Übermensch. Quer dizer: Zaratustra fracassa em sua tarefa
inicial de “atrair muitos para fora do rebanho”251, porque, assim como ele percebe
posteriormente, “aquilo que, um dia, a plebe aprendeu, sem razões, a acreditar, quem
conseguiria derrubá-lo, com razões dentro dela?”252. Não se pode falar de coisas profundas com
quem tem “orelhas compridas”253. É preciso estar entre os homens superiores, homens
superiores aos homens do mercado, porque não é por meio da plebe que se proporcionará
transformações na cultura. Esta é a primeira verdade que chega a Zaratustra após sua ida ao
mercado: “‘Que me importam a praça do mercado e a plebe e o estardalhaço da plebe e as
orelhas compridas da plebe!’”254. Os plebeus não querem ser superados, eles apenas querem se
preservar. Nesse ponto, podemos compreender a mensagem do aforismo 125. Ali, Nietzsche
quer entender o que a morte de Deus representa para a sociedade e para o homem moderno,
além de suas consequências mais notáveis, pois, “com o desmoronar da abóbada que brilhava
sobre a paisagem da existência humana, surge o perigo de um imenso empobrecimento da
humanidade, de uma terrível banalização num vulgar ateísmo e numa depravação moral”255.
Para o autor do Zaratustra, por meio do maior acontecimento recente, é necessário
mostrar que a morte de Deus terá repercussões na tradição, no pensamento social e nos valores
morais do homem. Se novos valores não forem criados, haverá tão somente cansaço ≡ niilismo
passivo ≡ empobrecimento da vida ≡ em vão. “A morte de Deus [...] [criará] um vazio
[existencial e psicológico] acentuado pelo último homem - para quem já não existem mais
valores”256. Se o fundamento da existência, que equivaleria a Deus, caiu, isso não significa
atestar que nenhum sentido é possível, ao contrário, todo sentido é possível desde que ele seja
criado. Se o homem pode criar Deus, este também pode criar sentidos. Nas palavras de
Zaratustra: “‘Mortos estão todos os deuses; agora, queremos que o super-homem viva!’ – Que

249
Cfr. a seção: “É livre?”.
250
NF/FP de 1886, 7[6], in: FF, p. 117 – acrescentamos.
251
Za/ZA, Prólogo, 9.
252
Za/ZA, IV, Do homem superior, 9.
253
Za/ZA, IV, Do homem superior, 9. As orelhas compridas são uma referência ao espírito de camelo.
254
Za/ZA, IV, Do homem superior, 1.
255
Eugen Fink, A filosofia de Nietzsche, p. 72-73.
256
Sofia Barbosa De Godois, “O Zaratustra” e o processo de individuação, p. 51– suprimimos e acrescentamos.
54

isto brilhe, algum dia, no grande meio-dia da nossa vontade”257. Este é o enunciado final da
primeira parte do livro e aí mesmo aparecem os símbolos necessários para superar o vazio
existencial ou psicológico deixado por Deus. Mortos estão todos os deuses! Ora, isso equivale
a dizer: mortos estão todos os fundamentos! Ou seja, a vida sem fundamento ≡ vazia de
significados. Porém, o drama da existência não termina aí, pois queremos que o Übermensch
viva, ou seja, se não houver fundamento, que o próprio homem crie seu fundamento, portanto:
o homem deve se tornar um Übermensch, já que, como veremos, este é o único que pode criar
valores. E os que não conseguirem criar valores sucumbirão aos reveses do niilismo passivo,
pois se a fé em Deus era a base que sustentava suas verdades, com o fenecer de Deus, surgirá
somente cansaço e impotência. Por isso estes dirão: “Tornamo-nos, todos, secos; e, se caísse
fogo sobre nós, seríamos reduzidos a cinza: – sim, cansamos o próprio fogo”258.

MENSCH

Entre as tarefas de que Nietzsche se ocupou, nos parece que o diagnóstico da civilização
moderna ocupou um lugar com ênfase em sua obra. Nietzsche fez da civilização sua paciente e
esperava identificar seus males fisiológicos. A Europa, de onde nos escreve o filósofo, possuía
um espírito adoentado, decadente e fraco: eis o que nos empenharemos em mostrar a seguir.
Todavia, se a civilização europeia, centro de grandes acontecimentos históricos, políticos e
científicos imprescindíveis para o desenvolvimento da civilização moderna tal como a
conhecemos, possuía um espírito adoentado, decadente e fraco, o que dizer do homem
moderno? Não vos soaria estranho afirmar que é possível viver em um ambiente insalubre sem
adoecer? O homem moderno está doente! E o que dizer de nossas sociedades tardias?

É homem ou animal?

O excesso de animalidade deforma o homem cultural;


o excesso de cultura cria animais doentes

Carl Gustav Jung, Psicologia do Inconsciente

Para Nietzsche, a moralidade e os costumes que imperam na Europa e na civilização de


sua época, tornaram possível reprimir a natureza animal do homem, através da negação de seus

257
Za/ZA, Da virtude dadivosa, 3.
258
Za/ZA, II, O adivinho.
55

impulsos e desejos naturais, para que este se tornasse um homem civilizado. Ser civilizado é
viver em comunidade e viver em comunidade é sinônimo de conservação, pois a comunidade
oferece formas de facilitar a vida, proporcionando bem-estar social. No entanto, para o nosso
psicólogo, com “o bem-estar cresce a sensibilidade; sofre-se menos com as menores dores;
nosso corpo está melhor protegido, mas doentia a nossa alma [...] perde-se tanto quanto se
ganha”259. Nesse sentido, podemos ver uma cadeia de equivalências nessas colocações: negação
dos impulsos animais ≡ civilizado ≡ vida em comunidade ≡ bem-estar ≡ menos sofrimento +
proteção ≡ adoecimento da alma. A alma nesta equação é equivalente à fisiologia que era
saudável em um momento e doente em outro. No que se refere ao ser civilizado, isto é, sobre o
viver em comunidade, Nietzsche escreve que o homem “precisava, sendo o animal mais
ameaçado, de ajuda, proteção, precisava de seus iguais”260, quer dizer: se aproximar e viver
com outros homens, visando obter ajuda para preservar-se, para obter segurança, conforto e
bem-estar. Portanto, assim nasceram os primeiros grupos sociais: por coerção do meio e pela
necessidade de sobrevivência. Essa conclusão não é necessariamente uma conclusão de
Nietzsche, pois ele entende que o Estado nasce de outra forma; é criação de forças nobres, de
senhores, daqueles que têm o direito de criar. Essa gênese das primeiras formas de comunidade
poderia muito bem ter sido decretada por um pensador evolucionista que acreditasse que o
ambiente elege os mais fortes, com o fito de fazer o homem evoluir até o cume da natureza.
Quer dizer: essa conclusão poderia ser formulada por quem acreditasse em uma teleologia da
humanidade261. Todavia, deixando o mérito de a natureza ter ou não um telos para o homem,

259
NF/FP de 1886, 7[7], in: FF, p. 173 – suprimimos.
260
FW/GC, 354.
261
Sobre isso, para não lhe roubar as considerações de que necessita, indicamos a apreciação do aforismo 24 do
Humano, demasiado humano, vol. I, no qual Nietzsche escreve sobre o progresso da civilização e se tal ideia é de
fato uma possibilidade. Além disso, sugerimos uma apreciação das conclusões a que chegou Roberto Machado
nas páginas 51, 52 e 53 de seu livro Zaratustra: uma tragédia nietzschiana. Nessas poucas páginas, R. Machado
desenvolve a tese de que Übermensch não seria um ideal evolucionista de Nietzsche, mas antes um ideal
intranscendente, ou seja: um ideal futuro com valor forjado na própria terra. E, além disso, estabelece que tal
Übermensch pode não ser para onde a humanidade irá seguir, isto é, o Übermensch, repetiremos: é uma
possibilidade-futura-intranscendente-do-homem, lembremos também que está em jogo a possibilidade do
surgimento dos últimos homens, os homens do niilismo passivo, os sem Deus e sem valores. Assim, é possível
que o solo da terra torne-se infértil (cfr. Za/ZA, prólogo, 5), isto é, ele pode perder toda a seiva necessária para a
germinação de tal Übermensch. Em vista disso, como afirma R. Machado, Nietzsche é um anti-Darwin. Em uma
anotação, o filósofo nos diz: “a escola de Darwin se enganou em todas as dimensões. Aquela vontade de poder, na
qual eu reencontro o fundamento último e o caráter de todas as mudanças, coloca-nos à disposição o motivo pelo
qual a seleção não ocorre a favor dos casos excepcionais e acasos felizes: os mais fortes e mais formados são fracos
quando têm contra si a maioria constituída pelos impulsos de rebanho organizados, a covardia e baixaria dos
fracos” (NF/FP de 1888, [14] 123, in: FF, p. 80). Neste sentido, os fracos são os selecionados pelo ambiente
unicamente por meio daquilo que os fazem fracos: o querer-conservar-se que os levou a adaptar-se. Enquanto isso,
os fortes perecem por causa daquilo que lhes tornam fortes: a vontade de crescer, de poder, de expandir, de
dominar. Este último desapareceu quando os francos detiveram o poder com astúcia, porque embora sejam fracos,
ainda são guiados pela vontade de poder – o ser próprio do homem – e pela vontade de autoconservação.
56

pelo menos neste momento, Nietzsche entende que foram os mais fortes que pereceram e que
são os mais fracos que encontram grande longevidade, pois se adaptaram bem ao processo
civilizador que consiste em viver em rebanho e negar impulsos ≡ tornar-se civilizado.
Nietzsche afirma “que um animal, uma espécie, um indivíduo está corrompido quando
perde [ou: nega] seus instintos, quando escolhe, prefere o que lhe é desvantajoso”262. Ora, o
que seria mais desvantajoso para o homem do que negar seus impulsos, isto é, negar a si em
favor de um projeto civilizador de si mesmo? Nietzsche, ao falar que seria preciso escrever algo
sobre os “ideais de humanidade”263, que são responsáveis por viabilizar e incentivar o projeto
de melhorar ≡ civilizar ≡ domesticar o bicho homem, afirmou que conseguiria alcançar “a
explicação de por que o homem se achar tão corrompido”264, quer dizer: doente. Se Nietzsche
fosse levar a cabo tal escrito, para alcançar o seu objetivo desejado, poderia começar realizando
um diagnóstico fisiológico da sociedade moderna, porque é em sociedade que tanto o agir,
quanto os impulsos do homem se acham moralmente melhorados, ou seja, o homem já não age
como outrora, quando ele era um animal livre, selvagem, belicoso, um animal com profundos
laços com a natureza que o constitui. Tal escrito, porventura, existe: é a Genealogia.
Em sua Genealogia, Nietzsche relata que a fundação da sociedade moderna foi baseada
nas noções de memória265 e castigo, uma vez que elas são os mecanismos responsáveis por
restringir e impedir a ação dos impulsos do homem. Por meio desses mecanismos, o homem
abandona seu comportamento animal para se transformar em um ser civilizado; em um ser de
boa memória; em um refém de responsabilidades, leis e normas restritivas; e em um ser que
tolera ser castigado pela justiça do Estado que “é a socialização da vingança”266.
Nessa mudança, o Estado se tornou o responsável por direcionar o homem ao caminho
correto e aceito moralmente, pois é ele quem instrui o homem na direção do comportamento
cívico e o impede de retroagir ao uso de seus velhos impulsos animais, visto que “o Estado é
organizado de tal maneira que o retorno às pulsões livres, anárquicas, torna-se impossível”267,

262
AC/AC, 6 – acrescentamos.
263
AC/AC, 6. Quanto aos ideais de humanidade, que equivalem aos ídolos e a ideais ascéticos, sugere-se a
apreciação integral do Crepúsculo dos ídolos, pois, além de apresentar tais ideais, como será demonstrado no corpo
do texto, é necessário entender como Nietzsche os destrói, esvazia o mar de ideais que existia até então e como
deixa Deus opaco e o atira em seu ocaso natural. Porém, ainda existem ídolos no horizonte do homem, à exemplo
do Estado. Nietzsche o tratou como um ídolo à parte. Existe, na maior parte de suas obras, dos seus póstumos e de
suas cartas, alguma atenção a este novo ídolo. Sobre ele, é deveras importante apreciar, por exemplo, Humano,
demasiado humano I, capítulos II, V, VI e VIII; a segunda dissertação da Genealogia, que apresentamos à frente;
e, na primeira parte do Zaratustra, o capítulo intitulado Do novo ídolo.
264
AC/AC, 6.
265
Nessa seção, abordaremos o papel do castigo no controle dos impulsos do homem, já na seção “Tem boa
memória?” abordaremos o desenvolvimento e função da memória.
266
Flávio R. Kothe, Nietzsche, Marx, Freud, p. 12.
267
Leon Kossovitch, Signos e poderes em Nietzsche, p. 42.
57

e, dado que, por meio de sanções e punições legais e institucionalizadas, o Estado pode e irá
punir qualquer homem que não se submeta aos ditames e ordenamentos morais da sociedade.
No entanto, embora o Estado utilize a punição como meio de correção comportamental,
de acordo com Nietzsche, o que “em geral se consegue com o castigo, em homens e animais, é
o acréscimo do medo, a insatisfação da prudência, o controle dos desejos: assim o castigo doma
o homem, mas não o torna ‘melhor’”268. Portanto, se o castigo não melhora o homem, seu
objetivo seria tão somente o de docilizar e domesticar o animal homem269, visando torná-lo um
ser cívico e obediente, já que “as sanções que recaem sobre aqueles que se desviam de normas
sociais ou morais [...] visam causar a dor que deve manter acesa a obediência a tais normas”270.
Nesse sentido, o castigo é uma prática social que, depois de institucionalizada e normalizada
pelo Estado, tornou possível administrar, prever e controlar o comportamento humano dentro
da sociedade por meio da memorização da dor que o homem sofrerá caso este se entregue ao
uso de determinados impulsos de sua própria natureza. O castigo, neste sentido, seria a
ferramenta par excellencia no processo civilizatório e no de controle dos impulsos da natureza
humana, visto que “a única maneira de fazer com que o animal [homem] não responda
imediatamente a um impulso de sua natureza é fazê-lo se lembrar que, caso ceda ao impulso,
sofrerá mais do que o prazer conseguido com sua realização”271. Assim, é perante o medo de
ser castigado que o homem se torna moral, pois “o medo é a forma singular e original que os
dominadores usam para passar suas ideias, ou melhor, suas ilusões para a população. Desse
modo, [...] vê-se com clareza que a essência da moral é justamente o medo”272.
Como resultado de seu diagnóstico sobre a sociedade moderna, Nietzsche entendeu que
a “moral é apenas linguagem de signos, sintomatologia”273, ou seja, a moral é criação humana.
Contudo, por meio da instrução perpetuada pela sociedade e pela necessidade de se formar e
organizar grupos sociais, o homem acabou assumindo para si mesmo que a moral, da qual se
tornou refém, expressa um verdadeiro valor em si, isto é, o valor dela seria inegável e
inquestionável, já que ela pretende impor-se como universal assim como o imperativo

268
GM/GM, II, 15.
269
Segundo Nietzsche, “o animal dócil e o homem domesticado: essa é a grande massa” (NF/FP de 1884, 25[274],
in: SA, p. 172).
270
Gustavo Arantes Camargo, Nietzsche: por uma ética trágica, p. 107 – suprimimos.
271
Gustavo Arantes Camargo, Nietzsche: por uma ética trágica, p. 106-107 – acrescentamos.
272
Ivanaldo Santos, Nietzsche: discurso introdutório, p. 61 – suprimimos.
273
GD/CI, Os “melhoradores” da humanidade, 1. Nietzsche já antecipou essa afirmação em 1886, ao colocar que
“as morais não passam de uma semiótica dos afetos” (JGB/ABM, 187), isto é, a moral é uma representação
sintomática ou linguagem simbólica de um afeto (Affekte), dos impulsos, da vontade.
58

categórico274 de Kant, a “aranha nefasta”275, que teceria máximas universais de comportamento


que deveriam guiar as ações do homem em sociedade, visando evitar extravios morais.
Na Gaia Ciência está atestado que os homens “recorrem a filosofias da moral que
pregam algum imperativo categórico, ou assimilam um bom bocado de religião”276, pois o
indivíduo já não deseja ou não estima criar valores por conta própria, porque ele largou seu
ofício de valorizar. Estes homens, guiados por uma moralidade dos costumes, almejam
inclusive que exista um senso de dever geral277, um imperativo moral que todos e todas devem
cumprir para alcançar uma das principais ideias civilizatórias e modernas: a noção de igualdade.
Por esse motivo, eles aspiram esse sentimento de dever, dado que “a fórmula geral que se
encontra na base de toda moral e religião é: ‘faça isso e aquilo, não faça isso e aquilo – assim
será feliz! Caso contrário...’ Toda moral, toda religião é esse imperativo”278. Aqui se entende
que a moralidade equivale a um mecanismo de homogeneização de comportamentos e hábitos,
cujo objetivo é suprimir certas ações e diferenças em favor de um impulso de massa, o qual
deve delegar os bons hábitos e comportamentos a serem praticados no âmbito gregário.
Em meados de 1888, Nietzsche escreveu que, por meio da devoção à moralidade, o
homem participou de uma espécie de ménagerie279, onde sua melhoria e seu processo formativo
seriam concretizados. Ele usou, como exemplo, a melhoria dos nobres alemães, ao perguntar o
seguinte: “que aparência tinha depois esse germano ‘melhorado’, conquistado pelo
claustro?”280. E então ele constatou que “ali jazia ele, doente, miserável, malevolente consigo
mesmo; cheio de ódio para com os impulsos à vida, cheio de suspeita de tudo o que ainda era
forte e feliz”281. A rejeição aos impulsos bestiais, dado a fórmula geral da moral, visou impetrar
uma melhoria no homem, já que, até hoje, “todos os velhos monstros da moral são unânimes:
‘il faut tuer les passions’ [é preciso matar as paixões]”282, quer dizer: o homem não pode ser
bom se não aniquilar seus impulsos antes, eis a máxima moral de nossa moderna sociedade. A

274
Segundo Flávio R. Kothe (Nietzsche, Marx, Freud, p. 11), “Nietzsche nega o imperativo categórico kantiano
de que cada um deve agir de tal modo que isso possa tornar-se modelo para todos na mesma situação: isso é querer
ser eterno modelo universal, beira a megalomania e o narcisismo: o doente não pode ser paradigma de virtude”.
275
De acordo com Paulo César de Souza, “Kant é invectivado dessa forma, supõe-se, por lançar ‘teias conceituais’
sobre a realidade” (AC/AC, Nota do Tradutor nº 14, p. 146). Além disso, no Crepúsculo dos Ídolos, Nietzsche
apresenta a mesma caracterização, fazendo uma distinção entre o modo de filosofia dos pensadores gregos com a
de um eremita que, por meio de uma inocência alemã, estaria “tecendo teias de aranha conceituais” (GD/CI,
Incursões de um extemporâneo, 23).
276
FW/GC, 5.
277
Cfr. AC/AC, 11.
278
GD/CI, Os quatro grandes erros, 2.
279
Cfr. GD/CI, Nota do Tradutor nº 53, p. 118.
280
GD/CI, Os “melhoradores” da humanidade, 2.
281
GD/CI, Os “melhoradores” da humanidade, 2.
282
GD/CI, Moral como antinatureza, 1 – o tradutor adicionou a tradução; destacamos com negrito.
59

moral fraca que passou a dominar o homem é rebento do ódio contra impulsos naturais, corpos
e fenômenos, dado que o “domínio absoluto d[ess]a moral [...] [consiste em:] todos os
fenômenos biológicos [são] mensurados e julgados de acordo com ela”283. É diante desse
entendimento que os impulsos, aqueles que antes eram tidos como salutares à sobrevivência e
manutenção vital do homem, passaram a ser avaliados como maus, o que proporcionou o
aparecimento de homens adoentados, ressentidos e que sentem algum mal-estar em si.
Nisto surge uma queixa para o homem, já que esse animal consentiu com qualquer
máxima moral estabelecida para ou contra si. Ao escrever “Para a crítica das virtudes do
rebanho”284, em uma anotação, Nietzsche afirma que esse tipo de homem considera conveniente
“obedecer a uma lei vigente ao invés de criar uma lei própria, que obrigue o autor e outros a
obedecer. O medo de comandar – melhor se submeter em vez de reagir”285, porque só então ele
poderá encontrar conforto na convivência entre seus semelhantes e no que é comum e vulgar286,
visto que o estabelecimento dessa moral fraca não admitiria a existência de qualquer
autenticidade ou diferença no comportamento e no modo de pensar do homem. Em uma nota
de observação, o filósofo adverte que se no homem, em um coletivo gregário, exteriorizar
determinada peculiaridade, ela deverá ser radicalmente “posta sob observação”287 até que seja
domesticada moralmente288, dado que, “quando os talentos [naturais] diminuem, as
características morais de um h[omem] se tornam mais visíveis”289. Um ser moral e obediente
aos ditames da sociedade, esse foi o ideal de homem que a sociedade almejou alcançar, dado
que, de acordo com Nietzsche: “o sentido de toda cultura é amestrar o animal de rapina

283
NF/FP de 1886,7[6], in: FF, p. 114 – acrescentamos e suprimimos.
284
NF/FP de 1886, 7[6], in: FF, p. 113.
285
NF/FP de 1886, 7[6], in: FF, p. 113.
286
Comum e vulgar são as respectivas traduções de gemein em alemão. O termo é radical de Gemeinschaft (gemein
+ schaft, comunidade), o que pode levar a uma interpretação incompleta do significado e do uso de ambas as
traduções trazidas no texto. O termo gemein pode ser entendido como algo em comum que é compartilhado por
membros de uma comunidade ou de algo que se tornou habitual, vulgar, comum, estrutural, etc. Não estamos
apenas adotando esse sentido, embora, dada a etimologia da palavra, seja possível. No texto e na perspectiva
nietzschiana, gemein assume mais de um significado, passa a referir-se tanto àquilo que é “comum” quanto
“inferior”: comum porque preserva o entendimento apresentado, de algo em comum que é compartilhado em
comum (na seção “É um avaliador?” exploraremos esse fator ao afirmar que a linguagem, em um contexto
gregário, deve possuir e representar o que é comum, pois só é possível comunicar algo em comum entre vários
membros de uma comunidade) e inferior porque o ato de fazer algo se tornar comum equivale a inferiorizá-lo,
rebaixá-lo, homogeneizá-lo, ou seja, em observância com o que Nietzsche entende por hierarquia, afirmar que algo
se tornou inferior é assumir que ele foi despotencializado, domesticado, tornado inferior. Nesse sentido, podemos
entender o homem de rebanho enquanto um homem comum, que se acha em abundância, que compartilha de um
impulso em comum e que foi melhorado e domesticado, isto é, tornado inferior.
287
NF/FP de 1886, 5[35], in: FF, p. 110.
288
Segundo Scarlett Marton (Nietzsche: uma filosofia a marteladas, p. 49), “esse é o princípio de toda vida
gregária: impedir as singularidades, abolir as diferenças” e, portanto, domesticar o homem.
289
NF/FP de 1882, 1[93], in: FE, p. 55 – o primeiro acréscimo é nosso e o segundo é do tradutor.
60

‘homem’, reduzi-lo a um animal manso e civilizado, domesticado”290, isto é, em um ser que


saiba “prestar obediência a uma lei ou tradição há muito [tempo] estabelecida”291.
Esse entendimento pode ser visto na seguinte passagem:

Os cimos [ou: pontos altos] da cultura e da civilização são separados um do


outro [ou: entre si]: não devemos nos deixar extraviar pelo antagonismo
abismal entre cultura e civilização. Os grandes momentos da cultura foram
sempre, moralmente falando, tempos de corrupção; os tempos de desejada e
forçada domesticação (“civilização” –) do ser humano, por sua vez, foram
tempos de intolerância em relação às naturezas mais espirituais e audaciosas.
A civilização quer algo diferente daquilo que a cultura quer: talvez algo
contrário...292

Também pode-se observar tal fator na seguinte passagem do Além do bem e do mal:
“Existe entre os chineses um provérbio que as mães ensinam às crianças de berço: ‘Faz pequeno
o teu coração!’. Esta é, de fato, a tendência fundamental das civilizações tardias” 293. Diante
desse entendimento, sobre a tendência da civilização, Nietzsche entende que nossa civilização
é composta por homens de rebanho ≡ homens apequenados ≡ homens melhorados ≡ homens
modernos e doentes, pois houve um declínio: antes, haviam homens nobres, fortes e
aristocráticos, agora, porém, só avistamos e encontramos homens comuns, úteis, servis e
impotentes. Talvez Nietzsche seja o primeiro a perceber que “todos os julgamentos supremos
de valor, todos aqueles que passaram a dominar a humanidade, pelo menos a humanidade
domesticada, podem ser reduzidos aos julgamentos dos exaustos”294, isto é, em valores
elaborados por homens já cansados e ressentidos, já que os valores morais exprimem a
hierarquia psicofisiológica dos que lhes criam. Se o homem possuir uma boa hierarquia
fisiológica, isto é, uma hierarquia saudável entre as forças ativas e reativas, então ele criará
valores bons, nobres e capazes de proporcionar crescimento. Porém, se esta hierarquia estiver
corrompida, se forças reativas imperarem sobre forças ativas e saudáveis, estão haverá “miséria,
empobrecimento [e] degeneração da vida”295. Nietzsche utiliza seu método genealógico para
diagnosticar qual dessas tendências imperam em nossos valores morais, chegando à conclusão
de que forças reativas, ao transvalorizar valores nobres, passaram a imperar sobre forças ativas
e saudáveis. Tal diagnóstico levou Nietzsche a entender que “nós os europeus [do século XIX]

290
GM/GM, I, 11.
291
MAI/HDH I, 96 – acrescentamos.
292
NF/FP de 1888, 16[10], in: KSA 13, 485s – traduzimos.
293
JGB/ABM, 267.
294
NF/FP de 1888, 15[13], in: Fragmentos póstumos, Vol. IV, p. 628.
295
GM/GM, Prólogo, 3 – acrescentamos.
61

temos em nós o sangue daqueles que morreram por suas crenças; temos levados a moral
terrivelmente a sério, e não há nada que por ela não tenhamos de algum modo sacrificado” 296.
Portanto, não é dificultoso entender que Nietzsche vê “a moral como o maior perigo do
homem”297, pelo menos essa moral nascida de uma fisiologia doente, onde as forças reativas,
as forças que deveriam ser dominadas, imperam sobre forças nobres e dominantes.
Poderíamos elencar vários exemplos de fisiologias fracas que produzem os valores
decadentes de nossa civilização, porém não seríamos felizes em listar todas elas. Todavia,
podemos apresentar a principal, já que Nietzsche a deu maior atenção que as outras. Esta
fisiologia decadente é a religião cristã. Nietzsche desmascarou a intenção última dessa religião,
porque “o cristianismo representa ‘a guerra de morte contra o tipo superior de homens’, a
corrupção, a perversão dos instintos humanos, a religião [é] contrária à Natureza”298. Inclusive,
com certa ironia, ele mencionou o livro sacro do cristianismo, visando demonstrar que, além
dos impulsos e aspectos vitais do homem, o próprio corpo foi avaliado na perspectiva cristã
como algo mal. Ele menciona o Sermão da Montanha, onde se afirma que “‘se teu olho te
escandaliza, arranca-o de ti’”299. Nos demais versículos desse mesmo Sermão, se encontram as
máximas de conduta moral que deveriam normalizar e guiar a vida e o agir dos cristãos. Apesar
disso, em relação a máxima mencionada, “felizmente, nenhum cristão age conforme esse
preceito”300, salvo casos explícitos de fanatismos. Para Nietzsche, “aniquilar as paixões e os
desejos apenas para evitar sua estupidez e as desagradáveis consequências de sua estupidez,
isso nos parece, hoje, apenas como uma forma aguda de estupidez”301. Ao contrário das
máximas do Sermão da Montanha, Nietzsche, via Zaratustra, coloca: “Aconselho-vos,
porventura, a matar os vossos sentidos? Eu vos aconselho a inocência dos sentidos. Aconselho-
vos a castidade? A castidade é uma virtude, em alguns, mas, em muitos, quase um vício”302.
No artigo quarto de sua “Lei contra o cristianismo, proclamada no dia da salvação, dia
um ano um (30 de setembro de 1888 da contagem errada)”303, Nietzsche estabelece que o ato
de “pregação da castidade é uma incitação pública à antinatureza. Todo desprezo da vida sexual,
toda impurificação da mesma através do conceito ‘impuro’ é o autêntico atentado contra o

296
NF/FP de 1885, 2[207], in: FF, p. 110.
297
NF/FP de 1886, 5[49], in: FF, p. 111 – acrescentamos.
298
Eugen Fink, A filosofia de Nietzsche, p. 146 – acrescentamos.
299
GD/CI, Moral como antinatureza, 1. O versículo tratado por Nietzsche é do Novo Testamento. Ele está no
Evangelho de Mateus, 5: 29-30.
300
GD/CI, Moral como antinatureza, 1.
301
GD/CI, Moral como antinatureza, 1 – destacamos como negrito.
302
Za/ZA, I, Da castidade.
303
AC/AC, lei contra o cristianismo, p. 81. Cfr. WA/CW, Wagner como apóstolo da castidade, 3.
62

sagrado espírito da vida”304. O objetivo da castidade é controlar [ou: castrar] o apetite sexual
do homem, porém, isto significa tentar controlar um dos desejos ou impulsos mais fortes de
nossa fisiologia. Embora estejamos civilizados, “todos somos ou já fomos, de uma maneira ou
de outra, arrebatados por tal impulso”305. Nietzsche, por meio de seu Zaratustra, ao aconselhar
a inocência dos sentidos, quer que o homem aprenda a libertar seus impulsos e não a reprimi-
los ou domá-los, e aí entra a inocência dos sentidos, para que o homem não se torne escravo de
seus impulsos, porque “a inocência é uma chave para se viver os impulsos”306.
Por meio da castidade, essa visitante a quem “oferecemos a nossa hospitalidade e nosso
coração; [e que,] agora, mora conosco”307, foram postas as mais contraditórias negações aos
homens, já que a religião, ao propor recompensas, confortos e um suposto alívio no além como
moeda de troca pela renúncia a certos impulsos da natureza humana, conseguiu tão somente
adoentar e apequenar o homem para fazer dele um cristão. Portanto, não é de se estranhar a
afirmação de que, “com a moral cristã, tem-se a humanidade dominada pelo cabresto. Tornar
uma pessoa doente308, essa é a verdadeira intenção do cristianismo. Na verdade, para que
alguém se torne cristão, já é necessário que esteja doente”309, porque o cristianismo busca os
grandes sofredores, aqueles que precisam de um porquê para seus sofrimentos e para poder
viver, e que, por isso, acatarão a negação em prol dessa necessidade psicológica.
O homem, que ainda precisa e depende de narcóticos dentro da sociedade, irá acatar as
prescrições restritivas da religião. Esta, por sua vez, afirma que os impulsos animais são os
responsáveis pela dor e pelo sofrimento do homem; eles fazem do homem um ser impuro e
pecaminoso, portanto, o seu sofrimento advém deles. Assim como Nietzsche apontou, a besta-
homem, ao desfrutar do conforto e bem-estar social, começou a rejeitar a possibilidade de sentir
dor310, ela desenvolveu maior sensibilidade à dor, tanto que “já não admiramos os dentistas que

304
AC/AC, lei contra o cristianismo, p. 81
305
Gustavo Arantes Camargo, Nietzsche: por uma ética trágica, p. 192.
306
Gustavo Arantes Camargo, Nietzsche: por uma ética trágica, p. 193.
307
Za/ZA, I, Da castidade – acrescentamos.
308
Sobre essa intenção do cristianismo, conferir o aforismo 22 do Anticristo, onde Nietzsche refere-se a esse
adoentar o homem em uma perspectiva fisiológica.
309
Gustavo Arantes Camargo, Nietzsche: por uma ética trágica, p. 129.
310
É interessante perceber que foi através dessa afirmação, sobre não querer sentir dor, que o plebeu, em sua
prática de inverter valores nobres, concebeu um valor mal para certos sentimentos humanos. É possível que, por
meio dessa inversão de valores, Zaratustra tenha entendido que o “inebriante prazer, para o sofredor, é desviar o
olhar dos seus sofrimentos e olvidar-se de si mesmo” (Za/ZA, I, Dos trasmundanos). Cinco anos depois, no
Crepúsculo, Nietzsche afirmou que os helênicos, ou seja, os aristocratas, por compreenderam a dor, não lhe
condenam, pois “todo vir-a-ser e crescer, tudo o que garante o futuro implica dor...” (GD/CI, O que devo aos
antigos, 5). A dor seria, portanto, algo necessário ao crescimento e à alegria do homem, não o contrário, como
pensam os modernos, os quais, no meio social, fogem de qualquer dor, lástima ou sofrimento, como afirma
Nietzsche na seguinte passagem: “hoje a dor é muito mais odiada que antigamente, mais do que nunca fala-se mal
dela, considera-se difícil de suportar até mesmo a presença da dor como pensamento, e faz-se dela uma caso de
consciência e uma objeção a toda a existência” (FW/GC, 48). (FW/GC, 48).
63

extraem os dentes para que eles não doam mais...”311, pois a dor, somada a tudo que causa
sofrimento, deve ser evitada. Nisso fica claro o porquê de o homem carecer de narcóticos para
aliviar sua vida e esquecer seu sofrimento. É por esse motivo que a religião e a moral são vistas
como “âncora de salvação”312 do homem, já que este animal doente não percebe o mal que a
sua religião e moralidade fazem a si, dado que a religião “até hoje ensinada, venerada e pregada,
volta-se, pelo contrário, justamente contra os instintos da vida – é uma condenação, ora secreta,
ora ruidosa e insolente, desses instintos”313. Esta condenação é a necessidade primeira à
obtenção da felicidade do cristão, que crer que, pela castidade e pela renúncia de seus impulsos,
alcançará uma felicidade eterna em uma outra vida; uma vida prometida aos mais seletos.
O ideal de felicidade, estabelecido tanto pela religião como pela sociedade, adentrou a
modernidade enquanto um dispositivo de controle, manipulação e alienação. Ele é o
responsável por introduzir certo peso moral sob os indivíduos, porque, considerando o
pressuposto da fórmula geral da moralidade: faça isso para ser feliz, caso contrário, castigo, dor
e sofrimento, pode-se entender que, ao propor uma fórmula para se obter felicidade e bem-estar,
o homem nada mais fez do que, guiado por preconceitos morais e religiosos, negar suas próprias
paixões para se adequar aos parâmetros da sociedade e desfrutar de suas comodidades
No entanto, se a felicidade moderna fosse analisada de perto, entender-se-ia que tal ideal
é inatingível ou impraticável, pois seu fundamento é baseado na homogeneização de homens,
ou seja, vários homens teriam que pensar e agir em consenso, sem conflitos e sem diferenças,
e isso, além de não proporcionar a felicidade prometida, proporcionaria tão somente uma falsa
sensação de segurança e coletivismo social tal qual visto em nossas democracias modernas,
onde todos são iguais e têm direitos e deveres iguais. Todavia, como resultado dessa pretensiosa
homogeneização, a vida seria diluída e seu crescimento impossibilitado, visto que a vida,
enquanto vontade de poder, necessita do conflito e da tensão para expandir e crescer.
Todavia, o ideal de felicidade não é a única ideia declinante surgida nessa época fraca,
pois, para se alcançar a felicidade, o homem primeiramente deve questionar e encontrar a causa
de sua infelicidade. Para Nietzsche, por meio da necessidade de alívio, o homem busca uma
causa ou um sentido para seus estados, pois ele não suporta aceitar se encontrar em algum
estado, sem que esse estado advenha de uma causa conhecida. Dessa maneira, o homem
necessitaria encontrar-se consciente das causas para só então agir dessa ou daquela maneira. A
causa, nesse sentido, seria sua motivação psicológica. Contudo, Nietzsche alerta, por meio de

311
GD/CI, Moral como antinatureza, 1.
312
AC/AC, 17.
313
GD/CI, Moral como antinatureza, 4 – acrescentamos.
64

“explicações psicológicas para isso”314, que essas causas são almejadas, unicamente, para
darem algum alívio, pois “fazer remontar algo desconhecido a algo conhecido alivia, tranquiliza
e, além disso, proporciona um sentimento de poder”315. Na Genealogia, Nietzsche evidencia
que o adoentado, por ter necessidades psicológicas, quer causas, quer porquês, ele é “ávido [...]
de remédios e narcóticos”316 para seu sofrimento, por isso busca o falso médico, o sacerdote,
que lhe dá um motivo, já que “motivos aliviam”317 e este é o papel do sacerdote: aliviar um
rebanho que sofre sem saber o porquê de seu sofrimento318. No entanto, não basta receber uma
causa qualquer ao seu sofrimento, já que o homem quer a causa que gera alívio, portanto,

não se busca apenas um tipo de explicação como causa, mas um tipo seleto e
privilegiado de explicações, aquelas que foram eliminadas da maneira mais
rápida e mais frequente, o sentimento do estranho, novo, não vivenciado – as
explicações mais habituais.319

Para o filósofo, ao se buscar causas seletas, criar-se-ia um sistema capaz de explicar os


“sentimentos gerais desagradáveis”320. Ele cita, como exemplo, o comportamento histérico, já
que lhe tem sido proposto como causa “a má compreensão das histéricas como sendo bruxas”321
e, pode-se acrescentar, pecadoras, já que ele afirma que o sentimento de pecado introduziu, por
meio da fórmula moral, um mal-estar psíquico-orgânico do homem consigo mesmo, pois
quando se normaliza um padrão de comportamento, a moralidade instrui o homem a odiar
comportamentos atípicos. Nesse sentido, comportamentos não-padrões, como o
comportamento histérico, são rotulados de imorais na visão social e pecaminosos na visão
religiosa. A sociedade e a religião ensinaram a odiar e temer o comportamento das “bruxas”,
por exemplo, mas nunca ensinou a odiar o comportamento brutal dos tribunais eclesiásticos322,

314
GD/CI, Os quatro grandes erros, 5.
315
GD/CI, Os quatro grandes erros, 5.
316
GM/GM, III, 20 – suprimimos.
317
GM/GM, III, 20.
318
Assim como afirma Nietzsche, “o que revolta no sofrimento não é o sofrimento em si, mas a falta de sentido”
(GM/GM, II, 7) e finalidade. Daí o porquê do homem fraco buscar o sacerdote ascético.
319
GD/CI, Os quatro grandes erros, 5.
320
GD/CI, Os quatro grandes erros, 6.
321
GD/CI, Os quatro grandes erros, 6.
322
Os tribunais eclesiásticos, encarregados do processo de inquisição, eram grupos e instituições legalmente
respaldados pelas práticas e doutrinas políticas da Igreja Católica Romana, com o objetivo de combater a heresia
em sua diligência. Segundo Lana Lage da Gama Lima (O tribunal do santo ofício da inquisição: o suspeito é o
culpado, p. 21), “na verdade, a dimensão simbólica de que se revestia o combate à heresia no imaginário popular,
alimentado pelos espetáculos públicos dos autos-de-fé, fazia do inquisidor mais do que um funcionário graduado
do tribunal, transformava-o num representante da justiça divina”. Ainda segundo Lana Lage da Gama Lima (id.,
p. 17), uma “característica marcante do processo inquisitorial era a reiterada busca da auto-acusação do réu,
expressada na pregação constante para que confessasse suas culpas e no uso da tortura como forma de extrair
confissões”. Portanto, tais tribunais eram, na perspectiva da sociedade atual, a personificação da crueldade e da
barbárie, dados os recursos metodológicos utilizados, entre outros fatores, para prescrever sentenças ou punições
65

constituídos a partir da necessidade de castigar e punir comportamentos não enquadrados na


ótica da normalidade, por isso, escreve Nietzsche: “Oh, quanta supérflua crueldade e tortura
animal teve origem nas religiões que inventaram o pecado”323. Portanto, o pecado, uma
invenção moral do homem, passou a designar os comportamentos não aceitáveis e, por isso,
castigáveis. Logo, comportamentos naturais são avaliados como imorais e a liberdade do animal
homem em pecado, visando com isso engendrar o sentimento de culpa que proporcionará o
controle e a domesticação moral do homem por parte do pároco acético.
Neste processo de domesticação, tanto a sociedade quanto a religião introduziram a
noção de livre-arbítrio no pensamento do homem, visando responsabilizá-lo por seus atos e
ações. O silogismo posto por esses agentes é: se o homem é livre, então, ele é responsável, pois
ele pode escolher. Contudo, como o homem pode ter livre-arbítrio em sociedade se “a condição
pela qual e a partir da qual efetivamente o homem se torna cidadão livre é reproduzindo na sua
existência a vontade das instituições[?]”324 Para Nietzsche, esse famigerado artifício de
teólogos, o livre-arbítrio, tem a incumbência de “fazer a humanidade ‘responsável’ no sentido
deles, isto é, de torná-la deles dependentes”325. Por isso, torna-se importante questionar: como
o homem pode ser responsável se seu comportamento segue seus impulsos e desejos naturais?
E se “as pulsões vitais não são plenamente passivas frente a domesticação dos metódicos
processos civilizatórios encampados pelas instituições[?]326” Por meio de tais indagações, se
pode pensar que, “se acaso o homem pudesse agir espontaneamente e dependesse apenas das
suas forças instintivas, nada poderia torná-lo responsável pelo seu agir”327. É mediante esta
impossibilidade de responsabilidade que foi necessário forjar hábitos e costumes
comportamentais para o homem, a fim de tornar a sua vontade livre em uma vontade cativa de
normas e leis morais. Os meios para tal: a introdução de castigos e a responsabilidade moral.
Nesse sentido, se, como já foi colocado, o castigo está associado ao sentimento de medo, então
o homem, que sabe [ou: lembra-se] que será punido se agir guiado por algum de seus impulsos,
age moralmente não porque quer, mas porque tem medo de agir de outra maneira. E, aliás, a
sociedade não precisa nem mesmo vigiar seu rebanho, pois cada homem entra na vigília do

a hereges ou àqueles que não estavam em conformidade com padrões de comportamento de ser e estar daquela
época. Passaremos por esta questão, na seção: “Tem boa memória?”, para mostrar que tais práticas, usadas durante
a inquisição, tinham o caráter, além de punitivo, educativo.
323
M/A, I, 53.
324
Sergio Fernando Maciel Corrêa, O niilismo e os ideais ascéticos na terceira dissertação da Genealogia da
Moral, p. 122 – acrescentamos.
325
GD/CI, Os quatro grandes erros, 7.
326
Sergio Fernando Maciel Corrêa, O niilismo e os ideais ascéticos na terceira dissertação da Genealogia da
Moral, p. 122 – acrescentamos.
327
Nelson José Batista da Silva, Memória, esquecimento e criação em Nietzsche, p. 14.
66

outro, ou seja, cada homem se torna uma espécie de juiz moral do outro e, diante do outro, cada
um tende a agir de acordo com a cartilha educacional e moral que foi gravada em sua memória.
Quantas ações imorais, espontâneas e atípicas seriam cometidas se ninguém estivesse em
vigilância do outro? O homem não age moralmente porque quer, mas porque é constantemente
vigiado e tem medo de ser punido, foi isso que Giges nos ensinou sabiamente.
Daí podemos concluir o porquê do adoecimento do homem, uma vez que, ao ser
responsabilizado ou culpado por dar satisfação aos seus impulsos, no homem nasce o
sentimento de medo, geralmente, ligado a noção de castigo, dado que “na condição de ser social,
condicionado pela moral [...], o homem procura responder pelos seus atos e depende de normas
que lhe foram impostas coercitivamente”328. É-nos lícito pensar que a doença do homem está
ligada a um conflito interno: uma tensão entre o seu querer e o medo de ser punido.
***
Na próxima seção, retornaremos ao período das Considerações Extemporâneas, onde
Nietzsche possuía o objetivo de mostrar como o Estado e suas instituições educacionais
promovem a fisiologia fraca, ou seja: homens passivos, conformistas, servis e trabalhadores
úteis ao progresso do Estado. Ao cultivar tais homens, o estado evita o surgimento de gênios,
isto é: homens superiores aos homens de rebanho e socialmente nivelados. Desta seção em
diante, procuraremos destacar algumas tipologias de homens identificadas por Nietzsche.

É... Útil? A Quê?

– Está sonhando? Olhe que a sopa esfria!

Eu estava sonhando...
E há em todas as consciências um cartaz amarelo:
“Neste país é proibido sonhar.”

Carlos Drummond de Andrade, Nova Reunião

Antes de adentrar essa seção, é importante ter em mente que Nietzsche “sabia o que se
passava em seu contexto social, político e artístico e o que era pensado naquele momento”329.
Portanto, seus escritos continham marcas expressivas da realidade e do contexto que o cercava,
porque “ele não filosofava à toa, mas tentava se certificar tanto da realidade de sua própria
época quanto dos fatores históricos como referências para seus argumentos”330. Não é preciso

328
Nelson José Batista da Silva, Memória, esquecimento e criação em Nietzsche, p. 14 – suprimimos.
329
Heinz Friedrich, Premissas, p. XLIV.
330
Heinz Friedrich, Premissas, p. XLIV.
67

grande esforço para constatar que, segundo Nietzsche, se a Europa daquela época se achava
adoentada, portanto, o cenário social iria expressar tal estado fisiológico, por isso que ele
criticou os frutos dessa fisiologia, tais como: “a política dominante [...], a aristocracia de sangue,
o militarismo, o nacionalismo, a falta de atendimento de necessidades sociais primárias, a
massificação e [a] alienação”331. Além destes, ele criticou o modelo democrático332, visto que
ele entendeu que “a Europa democrática se dirige apenas para um adestramento sublimado da
escravidão, a qual necessita ser comandada por uma raça forte para suportar a si mesma”333.
Todavia, se a Europa não fosse logo bem hierarquizada, não haveria quem a comandasse, e,
então, ela caminharia ao nivelamento social, onde homens superiores teriam que se rebaixar e
adoecer fisiologicamente para compartilhar do mesmo patamar do homem domesticado.
Para Nietzsche, a expressão “‘tipo superior’ não designa nada mais [que] [...] as formas
mais ricas e complexas [de homens]”334. Tais homens seriam antagônicos ao homem de rebanho
e, portanto, os mais raros de existir, pois “só os tipos inferiores é que mantêm uma imortalidade
aparente. Os [...] [homens superiores] raramente são gerados, sendo com dificuldades que eles
se sustentam no alto; [já] os [...] [comuns] têm para si uma comprometedora fertilidade”335. Isto
é: “como a maioria sempre é medíocre, se comparada com os talentos, sempre raros, a tendência
é o aniquilamento destes [homens raros]”336. Esse tipo superior de homem, por ser saudável e
forte, “está mais próxima a um ‘estado bruto’, animal”337 e é, até mesmo, uma “designação de
um tipo que vingou superiormente, em oposição a homens ‘modernos’, a homens ‘bons’”338,
isto é: a aqueles que “reduziram o trabalho a um passatempo, desistiram do que é penoso,
conquistaram [bem-estar,] segurança e conforto, [que] consideram que todos são iguais e vivem
para [os] pequenos prazeres [do dia a dia]”339, buscando conserva-se ao invés de superar-se.
A compreensão de Nietzsche sobre a sociedade democrática pode ser vista nesta noção
de que todos são iguais, isto é: de que não existem dessemelhanças entre nobres e escravos,
fortes e fracos, saudáveis e doentes. Portanto, por não se entender que “o princípio de igualdade

331
Flávio R. Kothe, Nietzsche, Marx, Freud, p. 27 – acrescentamos e suprimimos.
332
Em Além do bem do mal, Nietzsche considera “o movimento democrático não apenas [como] uma forma de
decadência das organizações políticas, mas [como] uma forma de decadência ou diminuição do homem, sua
mediocrização e rebaixamento de valor” (JGB/ABM, 203 – acrescentamos).
333
NF/FP de 1885, 2[179], in: FF, p. 30.
334
NF/FP de 1888, 14[133], in: FF, p. 39 – acrescentamos e suprimimos.
335
NF/FP de 1888, 14[133], in: FF, p. 39 – acrescentamos e suprimimos.
336
Flávio R. Kothe, Nietzsche, Marx, Freud, p. 29 – acrescentamos.
337
A. E. Paschoal, A dinâmica da vontade de poder como proposição moral dos escritos de Nietzsche, p. 204.
338
EH/EH, Por que escrevo tão bons livros, 1.
339
Roberto Machado (Zaratustra, tragédia nietzschiana, p. 54 – acrescentamos.
68

deveria ser, sobretudo, o reconhecimento da desigualdade do desigual”340, o homem superior


teve “que se tornar igual aos seus contemporâneos para reproduzir um dos grandes ideais da
modernidade - a igualdade”341. A proposição dessa igualdade vem de uma fisiologia doentia
que, por não atingir o alto nível da fisiologia forte e saudável, quer tornar em doente todas as
formas saudáveis, já que essa é a única maneira de se sentir menos impotente e fraco.
Esse erro levou Nietzsche a criticar fortemente o modelo social da Alemanha, pois ele
temia que a “homogeneização do homem terminasse por impossibilitar o aparecimento de
novos homens, uma vez que o homem de rebanho se sentirá fortalecido ao ver seus anseios
mesquinhos compartilhados por uma enorme massa de pessoas”342 e isso desenvolveria
“culturas fracas e fragmentadas [que apenas] criariam seres medíocres e inferiores”343.
Portanto, a partir desse processo de homogeneização, o processo de vulgarização seria
levado adiante, dado que a sociedade, ao constituir grupos e ao privilegiar os homens de
rebanho, eliminaria os demais homens, os quais pensam de forma singular e agem por vontade
própria e espontaneamente. A eliminação deste tipo superior de homem se dá pela ação,
sobretudo, de três agentes: i) o Estado, ii) a educação e iii) os jornais, porque o Estado, ao
oprimir e punir, gera homens obedientes à moralidade dos costumes; a educação, a serviço do
Estado, cria acadêmicos e trabalhadores úteis para a sociedade; e o jornal combate o
pensamento livre. Aliás, é importante destacar que o jornal [ou: a imprensa] teve um papel
proeminente nas discussões políticas e sociais ocorridas na Europa do século XIX. Naquele
contexto, “alguns viam-na como sendo um instrumento de progresso e esclarecimento,
enquanto outros a tinham como um veículo para a distração e a banalidade” 344. Nietzsche
certamente faz parte destes últimos, já que ele era um dos que já antecipavam o caráter dos
jornais, ao perceber que seria “outro século de jornais – e todas as palavras cheiram mal”345.
Portanto, para ele seria um século de declínio para o livre pensamento, já que as informações
redigidas nos jornais eram mascaradas como verdadeiras; informações prontas à disseminação
em larga escala e capazes de alterar a percepção social sobre o contexto histórico.
Haja vista a capacidade de alcance, o jornal foi por muito tempo o melhor mecanismo
para disseminar ideias políticas e progressistas, já que o surgimento de outras mídias de

340
Flávio R. Kothe, Nietzsche, Marx, Freud, p. 29. Na Gaia Ciência, Nietzsche deixa claro que “a tendência
predominante de tratar o que é semelhante como igual [...] [é] uma tendência ilógica, pois nada é realmente igual”
(FW/GC, 111 – acrescentamos e suprimimos).
341
Sergio Fernando Maciel Corrêa, O niilismo e os ideais ascéticos na terceira dissertação da Genealogia da
Moral, p. 122.
342
Gustavo Arantes Camargo, Nietzsche: por uma ética trágica, p. 151.
343
Douglas Kellner, A crítica de Nietzsche à cultura de massa, p. 14 – acrescentamos.
344
Douglas Kellner, A crítica de Nietzsche à cultura de massa, p. 14.
345
NF/FP de 1882, 3[1], in: Fragmentos póstumos, Vol. III, p. 68.
69

telecomunicações na Alemanha ocorreu somente no século seguinte, por exemplo, rádio (1923)
e televisão (1935). Assim, visando a supremacia do jornal durante o século XIX, “diferentes
grupos políticos passaram a desenvolver suas próprias publicações, com o objetivo de moldar
a opinião pública de diferentes formas”346. Por essa e outras razões, “a ‘imprensa-livre’ aparece
para Nietzsche como um engodo”347, porque o jornal não é algo livre, já que sempre há uma
ideologia por trás de suas publicações: seja para informar fatos ou não, todo o embaraço de
informações visa dar forma e conteúdo às perspectivas das classes dominantes.
Nietzsche não tinha dúvidas que muitos alemães, em um momento posterior ao seu,
sentiriam “a necessidade de viver livre da política, do nacional e da formação dos jornais”, isto
é, daquilo que ele entendia como, “idealmente, uma seita educacional”348, porque, sobretudo, o
jornal se tornou um meio útil para controlar o pensamento das massas e desvalorizar o
pensamento livre. Além disso, J. W. von Goethe, “antecipando Nietzsche, [...] criticou as
formas pelas quais o entretenimento moderno e a imprensa promoviam a passividade e o
conformismo”349. Eis dois possíveis fatores que poderiam justificar uma certa afirmação do
filósofo, quando ele afirma que “o espírito dos alemães é sufocado pela sua cerveja e pelos seus
jornais”350. A cerveja porque entorpece o corpo, ou seja, o torna doente e decadente, e o jornal
porque degenera a capacidade do homem de pensar por si mesmo. O oposto disso, isto é, pensar
por si mesmo e possuir uma fisiologia saudável, são características que descrevem o gênio: um
tipo de homem superior ao erudito351, ao homem instruído e aos homens massificados.
O gênio é um personagem metafórico recorrente nos textos de Nietzsche. No aforismo
345 da Gaia Ciência, Nietzsche deixa claro que esse gênio é o tipo de homem que não
compartilha do vulgar e do comum, porque “o gênio é aquele que busca a autossuperação,
divergindo do tipo fraco, que visa a autoconservação”352. No entanto e por esse motivo, ele é
um tipo extremamente raro de homem, pois quando homens desse tipo surgem, eles “são
submetidos a uma espécie de décadence: eles são casos extremos e, com isso, eles próprios já
quase décadents... A fugaz duração da beleza, do gênio, do Cézar é sui generis: algo assim não
deixa herdeiros”353. Nietzsche entendeu o gênio enquanto “a máquina mais sublime que existe,

346
Douglas Kellner, A crítica de Nietzsche à cultura de massa, p. 14.
347
Flávio R. Kothe, Nietzsche, Marx, Freud, p. 17.
348
Tanto a transcrição anterior como esta são do NF/FP de 1874, 32[62], in: KSA 7, 776 – traduzimos.
349
Douglas Kellner, A crítica de Nietzsche à cultura de massa, p. 13-14 – suprimimos.
350
MAII/HDH II, 324.
351
Em Além do bem e do mal, Nietzsche oferece uma tipologia do erudito em contrapartida ao gênio (cfr.
JGB/ABM, 206).
352
Enock da Silva Peixoto, A concepção de super-homem como um processo de trans-formação humana, p. 135.
353
NF/FP de 1888, 14[133], in: FF, p. 39.
70

– portanto a mais frágil”354, especialmente por duas razões: primeiramente, porque “o homem
completamente individualizado ‘é’ muito fraco e cai em meio a um bando de escravos: por
exemplo, o de uma ciência, o de um conceito, o de um vício”355. E, em segundo lugar, porque,
assim como evidenciado antes, os três agentes não aceitariam a existência de um gênio entre a
massa, já que ele é um tipo de homem que desafiaria as engrenagens do sistema ao não partilhar
do comum e do vulgar como o homem moderno. É por essa razão que Nietzsche afirma que “os
povos fazem de tudo para não ter grandes homens”356 e, portanto, se tais homens surgirem, eles
devem ser o mais breve possível melhorados, punidos357 ou crucificados [ou: ir à cruz] para
que as massas possam continuar a viver sob as ideias de bem-estar social e progresso, pois

na Europa de hoje [século XIX] o homem de rebanho se apresenta como a


única espécie de homem permitida, e glorifica os seus atributos, que o
tornaram manso, tratável e útil ao rebanho, como sendo as virtudes
propriamente humanas: a saber, espírito comunitário, benevolência,
diligência, moderação, modéstia, indulgência, compaixão.358

À vista disso, Nietzsche entendeu que a cultura na Alemanha entrou em declínio, quando
já não havia um gênio. A cultura havia sido sacrificada pela influência do Estado, já que este
produziu com habilidade um “tipo escravo como ideal de uma sociedade”359: trabalhador360,
alfabetizado, educado e obediente, pois esses tipos são ávidos em “seguir um senhor que lhes
diga o que é certo”361. Portanto, o Estado se tornou “o criador do grande rebanho moderno, o
rebanho dos ‘filhos’ do Estado. Ele cria uma multidão de indivíduos inúteis, passivos e
incapazes de pensar por si mesmos”362. No entanto, não devemos pensar que o estado criou seu
rebanho à toa, isto seria ingenuidade. O homem massificado, educado e trabalhador tinha uma
utilidade para o império alemão na época de Nietzsche. Tal utilidade estava relacionada ao
processo de unificação e industrialização da Alemanha. Ao contrário da França e da Inglaterra,
esses processos ocorreram tardiamente, mas em ritmo acelerado, o que possibilitou com que a
Alemanha, no final do século XIX, já se encontrasse, em termos de produção industrial, à frente

354
NF/FP de 1888, 14[133], in: FF, p. 40.
355
NF/FP de 1869, 3[44], in: SA, p. 6.
356
NF/FP de 1887, 11[179], in: FF, p. 37.
357
Cfr. JGB/ABM, 132.
358
JGB/ABM, 199 – acrescentamos.
359
Gustavo Arantes Camargo, Nietzsche: por uma ética trágica, p. 157.
360
Zaratustra, ao falar do último dos homens, afirma que os homens “ainda trabalham, porque o trabalho é um
passatempo”, ou seja, através do trabalho, o homem ocupa seu tempo e esquece suas preocupações. No entanto,
Zaratustra adverte: “Mas cuidem de que o passatempo não canse” (Za/ZA, Prólogo, 5), porque se o trabalho não
inibir mais as preocupações do homem, haverá apenas cansaço e niilismo.
361
Gustavo Arantes Camargo, Nietzsche: por uma ética trágica, p. 157.
362
Ivanaldo Santos, Nietzsche: discurso introdutório, p. 25.
71

do Reino Unido e da França, visto que, “em poucos anos, os estados alemães tornavam-se
grande produtor de ferro, carvão, máquinas e tecelagem de algodão”363. O processo de
unificação alemã foi estabelecido graças a Bismarck364 que “forjou um inimigo externo em
comum a todos, já que não havia nenhum elemento capaz de homogeneizar os interesses”365.
Assim, quando a Prússia venceu a guerra contra a França, iniciou-se sua unificação territorial,
e, além de ter vencido a guerra, a Alemanha foi compensada via Tratado de Frankfurt (1871).
Tal tratado conferia ao império alemão a Alsácia e parte de Lorena, colônias ricas em carvão e
minério de ferro, o que impulsionou ainda mais o seu processo de industrialização.
No entanto, para acelerar um processo de industrialização, na mesma proporção ocorrida
no império alemão, seria necessário, além do recurso econômico e da matéria-prima, o trabalho,
ou seja, uma grande massa de homens bêbados pelo nacionalismo, por ideias modernas e aptas
a abnegar uma formação cultural por uma formação mercantilizada. O seguinte verso:
“‘Alemanha, Alemanha acima de tudo’: Deutschland, Deutschland über Alles – primeiro verso
da Canção dos alemães (Lied der Deutschen), do poeta Heinrich Hoffmann von Fallersleben
(1798-1874), adotado como hino nacional”366, retrata bem o sentimento nacionalista nascido na
Alemanha, inclusive, seria por meio desse verso que, para Nietzsche, dar-se-ia “o fim da
filosofia alemã”367, porque, segundo ele, os alemães no passado “já foram chamados de povo
de pensadores”368, no entanto, “paga-se caro por chegar ao poder: o poder imbeciliza”369. A
ascensão econômica, política e industrial do Reich alemão resultou em um declínio cultural e
em um “maldito instinto de mediocridade”370. Em tom de zombaria, Nietzsche coloca o
seguinte: “‘Existem filósofos alemães? Existem poetas alemães? Existem bons livros
alemães?’, perguntam-me na Europa. Eu enrubesço, mas, com a valentia que me é própria
mesmo em casos desesperados, respondo: ‘Sim, Bismarck’”371. Todavia, não apenas Bismarck,
mas quando qualquer “pessoa se dedica a poder, grande política, economia, comércio mundial,
parlamentarismo, interesses militares – se despende para esse lado o quantum de entendimento,
seriedade, vontade, autossuperação que é, então ele faltará no outro lado”372. Essa colocação
pode ser relacionada a um póstumo redigido um ano antes dessa transcrição, no qual Nietzsche

363
Scarlett Marton, Nietzsche, p. 12.
364
Otto von Bismarck (1815-1898) foi o primeiro-ministro do Reino da Prússia. Depois de unificar a Alemanha,
ele ocupou o cargo de chanceler do império alemão.
365
Scarlett Marton, Nietzsche: uma filosofia a marteladas, p. 12.
366
GD/CI, Nota do Tradutor nº 59, p. 118.
367
GD/CI, O que falta aos alemães, 1.
368
GD/CI, O que falta aos alemães, 1.
369
GD/CI, O que falta aos alemães, 1.
370
GD/CI, O que falta aos alemães, 1.
371
GD/CI, O que falta aos alemães, 1.
372
GD/CI, O que falta aos alemães, 4.
72

entende que “a decadência do espírito alemão tem andado passo a passo com a ascensão da
patriotice e do nacionalismo”373, quer dizer: a Alemanha declinou quando passou a ocupar-se
com o progresso econômico do Estado e não mais com a elevação da cultura, daí o porquê dela
ter se tornado a nação flachland374 na Europa, uma “terra chata” e superficial.
Pode-se pensar que, além da patriotice e do nacionalismo, a mudança espiritual da
Alemanha também está relacionada ao sistema educacional alemão que, sob a configuração
industrial da Alemanha, tinha a tarefa de “tornar todos escravos de um sistema puramente
mercantil que não é capaz de produzir nada de grande, pois a grandeza espiritual e artística não
obedece às regras do desenvolvimento do mercado”375. Além disso, Nietzsche, em um jogo de
perguntas e respostas ou em uma reflexão monóloga consigo mesmo, enfatizou a seguinte
observação: “‘Qual a tarefa de todo ensino superior?’ – Fazer do homem uma máquina. – ‘Qual
o meio para isso?’ – Ele tem que aprender a enfadar-se. – ‘Como se consegue isso?’ – Mediante
o conceito de dever. – ‘Quem é seu modelo para isso?’ – O filólogo: ele ensina a suar”376. Esse
suar [ochsen377, em alemão] pode ser entendido enquanto o corolário do desprendimento de um
quantum de força vital, a ponto de cansar ou afadigar o corpo em decorrência do trabalho.
Diante disto, resta saber: qual a razão conduz o homem a gastar sua força vital no trabalho e
não mais em projetos que visem a expansão e crescimento de sua vida?
A busca desse porquê já se tornou uma busca cristalina, já que, em sociedade, o trabalho
tem, sobretudo, o objetivo de satisfazer e atender necessidades e desejos, isto é, o trabalho visa
fins práticos. Ora, por qual outra razão o titã eternamente sofredor, Prometeu, ofereceria o fogo
do Olimpo ao homem senão para fazer dele dependente da τέχνη [téchne], para, assim, atender
necessidades e para garantir a sobrevivência do animal mais frágil da natureza?
No Crepúsculo, Nietzsche expõe que “o trabalhador cansado e de respiração pesada,
[...] tem o olhar bonachão e deixa as coisas andarem como quiserem” 378. Esse fator passivo e
conformista do homem, a ponto de não se importar com o curso das coisas ao seu redor, já teria
sido abordado por volta de 1873, quando ele afirmou que os homens, por meio de seu
julgamento, que é “livrescamente uniforme, e até mesmo, no fundo, somente jornalístico”379,

373
NF/FP de 1887, 11[129], in: FF, p. 37.
374
Flachland pode ser traduzido por planície no português, porém, segundo Paulo César de Souza, quando
Nietzsche utiliza essa palavra para zombar de seu país, ela quer denotar “terra chata” (GD/CI, Nota do Tradutor
nº 66, p. 119).
375
Gustavo Arantes Camargo, Nietzsche: por uma ética trágica, p. 154.
376
GD/CI, Incursões de um extemporâneo, 29.
377
Segundo Paulo César de Souza, ochsen “é ‘trabalhar como um boi’ (‘ralar’, em gíria brasileira)” (GD/CI, Nota
do Tradutor nº 114, p. 126).
378
GD/CI, Incursões de um extemporâneo, 30 – suprimimos.
379
DS/Co. Ext. I, 8 (1983).
73

fogem das “perguntas mais importante [...] justamente aquelas perguntas pelo porquê, pelo de
onde, pelo para onde”380, ou seja, no homem “nem sequer ocorre a mais próxima de todas as
perguntas: para que serve seu trabalho, sua pressa, seu doloroso atordoamento”381. Assim, o
homem vive para o trabalho sem saber o motivo deste. Aliás, para mostrar a “comédia
comum”382 dos homens, Nietzsche faz a seguinte pergunta: “para que vives?”383. Segundo ele,
todos os que respondessem essa pergunta, diriam, “rapidamente e com orgulho: ‘Para se tornar
um bom cidadão, ou erudito, ou comerciante’”384, ou seja, um patriota com formação
mercantilizada e apto ao trabalho em prol do Estado e de sua subsistência, pois, sem saber o
motivo de seu trabalho, o homem trabalha apenas visando a obtenção do pão diário.
Se o desprendimento da força vital do homem é dirigido ao trabalho em prol de suas
necessidades e dos interesses do Estado, então “a cultura [Kultur] já não é mais a missão dos
povos, mas o luxo, a moda. Não ter necessidades é, para o povo, a maior infelicidade” 385. Eis,
portanto, o maior perigo para a cultura, porque quando “os homens abrem mão de si mesmos
em nome do dinheiro, também as nações que abrem mão de sua cultura em nome da riqueza
perdem todo o manancial de onde poderia florescer um novo homem”386. Numa sociedade em
que necessidades são criadas em um ritmo acelerado, ou onde o dinheiro se tornou vital, ou
onde o trabalho adquiriu dimensões desproporcionais, possuir uma boa cultura não é mais
importante, mas sim uma distração, pois é preciso ter outro tipo de cultura, uma cultura moderna
que proporcione conhecimentos técnicos e úteis para ganhar cabedal. Em 1872 na Universidade
de Basiléia, Nietzsche ministrou conferências para evidenciar sua percepção sobre a educação
e o futuro das instituições de ensino na Alemanha. É, sobretudo, nestas conferências que
encontramos a cinca ou o erro dessa educação utilitarista, porque qualquer tipo de educação
“que deixa vislumbrar no fim de sua trajetória um posto de funcionário ou um ganho material
não é uma educação para a cultura tal como a compreendemos, mas [...] [a] indicação do
caminho que podem percorrer para o indivíduo se salvar e se proteger na luta pela existência”387.
O trabalho servil e utilitarista, nesse sentido, é o meio pelo qual o povo encontra para poder
saciar suas necessidades diárias. Portanto, podemos afirmar que educar-se ou adquirir cultura,

380
DS/Co. Ext. I, 8 (1983) – suprimimos.
381
DS/Co. Ext. I, 8 (1983).
382
SE/Co. Ext. III, 4 (1983).
383
SE/Co. Ext. III, 4 (1983).
384
SE/Co. Ext. III, 4 (1983).
385
NF/FP de 1870, 8[57], in: SA, p. 15 – acrescentamos.
386
Gustavo Arantes Camargo, Nietzsche: por uma ética trágica, p. 154.
387
BA/EE, Conferência IV, p. 104 – acrescentamos e suprimimos.
74

neste contexto de Nietzsche e não tão diferente do atual, equivale a adquirir aptidões técnicas
para trabalhar, para exercer um ofício prático, visando, sobretudo, a obtenção de pecúlio.
Por fim, é legítimo afirmar que a cultura da Alemanha estava em declínio, pois, dados
os fatores apresentados nesta seção e de outros que ainda serão apresentados que retratam a
perspectiva de Nietzsche sobre a cultura alemã de seu tempo, ao que parece não era do interesse
dos alemães promover o surgimento de grandes homens. O Estado alemão foi composto por
homens pequenos: servos, úteis, instruídos profissionalmente e, sobretudo, submissos, já que
“o Estado convence os indivíduos de que a melhor condição que podem ter é de serem servos
obedientes e de nunca questionarem”388. Além dessa submissão voluntária, podemos dizer que
o que caracteriza esses homens cultuados na Alemanha não é um querer-crescer, mas um
querer-sobreviver, visto que eles são educados para, por meio do trabalho, garantir sua
sobrevivência e o progresso do Estado. O resultado desse processo é “a perda da nobreza de
espírito e o direcionamento da cultura para um ideal cada vez mais mercantil”389, quer dizer: já
não há uma preocupação com uma formação nobre que garanta o crescimento do espírito, mas
apenas com uma formação que visa extrair o máximo de utilidade do homem. Portanto, nos
sistemas educacionais da Alemanha, o viés moral predominante é o utilitário, que não produz
nada de grande, nobre, forte ou bom. No entanto, essas colocações não são exclusivas da
Alemanha, já que ela não é a única nação que busca tornar seus cidadãos maximamente
utilizáveis, pois, na modernidade, regidos pela necessidade de sobreviver aos reveses do dia a
dia, é difícil não nos tornarmos reféns dos interesses do Estado. Portanto, não apenas os
alemães, mas todos, após a revolução industrial, foram afetados por essa decadência. Quando
Nietzsche observou tal decadência espiritual em seu tempo, ele prescreveu o seguinte: “o
remédio protetor e terapêutico de uma civilização, a relação desta com o gênio do povo”390.
Porém, como visto ao longo desta seção, onde estariam e quem seriam esses gênios? Se o Estado
e sua moral utilitarista corromperam e impediram qualquer tipo de genialidade. Existe, ainda,
algum gênio? Se não há, eles ainda terão que aparecer em algum feliz acaso da história, pois
nossa educação não pretende oferecer meios e condições para que cada homem se torne o que
potencialmente é, já que seu objetivo é produzir homens trabalhadores e úteis à sociedade.
***

388
Ivanaldo Santos, Nietzsche: discurso introdutório, p. 26.
389
Gustavo Arantes Camargo, Nietzsche: por uma ética trágica, p. 152.
390
NF/FP de 1872, 19[33], in: Fragmentos póstumos, Vol. I, p. 351
75

NIILISMO ATIVO
As metamorfoses do espírito

Ela é tão livre que um dia será presa.


“Presa por quê?”
“Por excesso de liberdade”.
“Mas essa liberdade é inocente?”
“É”. “Até mesmo ingênua”.
“Então por que a prisão?”
“Porque a liberdade ofende”.

Clarice Lispector, Um Sopro de Vida (Pulsações)

Nietzsche é um dos primeiros a perceber o talento criativo da criança391. Além disso, ele
é um dos primeiros a atribuir a figura da criança com certo papel de notoriedade em sua própria
filosofia, visto que, começando com Platão, a criança vinha sendo retratada por muito tempo
como algo inferior ao homem, já que as crianças não possuiriam a competência da conceituação
abstrata e somente poderiam contemplar a superficialidade da realidade. No entanto, o que para
Platão e para outros seria um inconveniente ao discernimento, para Nietzsche, não, porque essa
observação da superficialidade da realidade, sem o entendimento ou consideração moral, social
ou metafísica, possibilitaria com que a criança, em sua inocência, encontrasse uma esfera
estética e não mais moral, como fazem os adultos392. No Assim falou Zaratustra, após os dez
itens do prólogo, no discurso de abertura do primeiro livro, intitulado Das três metamorfoses,
encontramos a reflexão sobre o tornar-se criança (ou: acriançar-se). Nesse discurso, Nietzsche,
por meio de Zaratustra, retrata o perfil de três formas de espíritos, a saber: o camelo, o leão e a
criança. Segundo o protagonista nietzschiano, o espírito do homem seria capaz de atuar, sob
certas circunstâncias, a forma de qualquer uma dessas formas de espíritos.

Eis as equivalências de cada uma das metamorfoses:

a. Camelo ≡ homem cristão, homem moderno, homem civilizado, escravo e fraco;


b. Leão ≡ espírito livre, subversivo, imoral, homem superior;
c. Criança ≡ Übermensch ≡ criador e destruidor de valor ≡ legislador.

391
É preciso lembrar que a questão da criança em Nietzsche está intimamente ligada ao conceito Aiôn de Heráclito
que, segundo Gilles Deleuze (Nietzsche e a filosofia, p. 40), significa “uma criança que brinca à patela”.
392
Aliás, em um aforismo do Além do Bem e Mal, Nietzsche, contrariamente à crença popular, registra que a
“maturidade do homem: significa reaver a seriedade que se tinha quando criança ao brincar” (JGB/ABM, 94).
76

É camelo?

Fenomenologia da resignação

1 Comigo isso jamais aconteceria.


2 Se acontecer, eu sei o que fazer.
3 Da próxima vez não vai ser tão fácil.
4 Quem já não passou por isso?

José Paulo Paes, Socráticas

A primeira transformação do espírito é a do camelo. Nietzsche a percebe na Europa de


seu tempo, porque “o camelo é a figura do homem decadente, um animal que simplesmente
venera, que sente necessidade de humilhar-se para suportar a vida. A vida para ele é vivenciada
e vista de baixo, de joelhos”393. Nesse sentido, para Nietzsche, especialmente o homem
moderno, por meio de sua instrução moral e das convicções sociais, se tornou camelo ou
burro394, uma vez que a sociedade, em sua prática institucional, atua para docilizar e disciplinar
o homem às boas práticas sociais. Para tal, sempre foi indispensável fazer do homem um animal
dócil, útil e educado e, como o camelo, ele deve se curvar diante de seu doutrinador, seu mestre
ou comandante, porque o homem, em coletividade, não é um senhor de si mesmo, portanto, ele
precisa de mestres e diretrizes morais para agir, viver e ter utilidade para algo.
Por essa razão, ao longo da história, foram criados, sobretudo, dois mecanismos para
apequenar e domesticar o homem: a religião e a moralidade. Já ficou claro como Nietzsche, em
sua Genealogia, demonstrou como o homem se curva diante de uma certa herança religiosa, da
moralidade e de ideais ascéticos, para se tornar escravo deles. No entanto, curvar-se não é a
única habilidade que Nietzsche indicou nessa transformação, pois o homem, semelhante ao
camelo, tende a carregar um peso desmedido, um fardo moral. Portanto, “‘o que há de pesado?’,
pergunta o espírito da suportação; e ajoelha como um camelo e quer ficar bem carregado”395.
O homem age de modo semelhante ao espírito da suportação, porque ele demora a entender que
os valores que recebeu são, tão somente, pesos que restringem o seu querer.

393
Maurício Eduardo Bernz, A crítica de Nietzsche à moral cristã: por uma vida sem refúgios, p. 80.
394
A figura do burro, paralela ao camelo, é apresentada na interpretação de Gilles Deleuze (Nietzsche, p. 39), na
qual ambos “são os animais do deserto”, e, segundo sua interpretação, “o burro também é camelo [...] A lista das
forças do burro e a das forças do camelo são semelhantes: a humildade, a aceitação da dor e da doença, a paciência
face ao que castiga, o gosto do verdadeiro mesmo se a verdade der a comer bolotas e cardos, o amor pelo real
mesmo se esse real for um deserto” (Gilles Deleuze, Nietzsche e a filosofia, p. 270 – suprimimos). Portanto, em
algumas passagens desta seção, ao transcrever o termo burro, deve-se pensar que ele está interconectado com a
noção de camelo e vice-versa.
395
Za/ZA, I, Das três metamorfoses.
77

Nesse sentido, Nietzsche entendeu o homem moderno como o camelo, já que o camelo
seria, “em primeiro lugar, o animal cristão: carrega com o peso dos valores ditos ‘superiores à
vida’. Depois da morte de Deus, carrega-se a si mesmo, carrega com o peso dos valores
‘humanos’, pretende assumir ‘o real como ele é’”396. Neste sentido, pode-se perceber que existe
uma dupla apresentação do camelo, uma antes e uma depois da morte de Deus.
Os mecanismos desenvolvidos pelo homem, ao passo que lhe apequenaram, o proibiram
de se afirmar, de virar senhor de si, por isso ele decaiu e adoeceu, pois, tomando a criação da
religião como exemplo, ela serviu apenas “para fazer sofrer, [...] para dar um sentido a todo o
sofrimento na Terra, mas um sentido supraterreno, para domesticar o homem fazendo com que
[ele] não pense em seu próprio crescimento”397. Portanto, o sofrimento, que se tornou
característico do camelo como resultado de seu fardo398, causou-lhe um profundo desgosto e
mal-estar consigo mesmo e com a sua vida. Não obstante, sua dor e tormento são resultantes
dos fardos morais postos, pela moral e pela religião, em sua corcova ≡ consciência.
Ademais, o camelo, “por sofrer diante de um mundo em decadência, termina por se
responsabilizar e [...] se culpar diante de tanta podridão. Incumbe-se de carregar, assim, pesados
fardos e, de certa forma, machuca a si mesmo, como que testando sua própria força”399.
Todavia, percebe-se que “essa imagem do camelo tido como forte, que suporta todo peso e
vangloria-se de seu fardo e de sua condição de força, é também a do animal obediente e servil.
Representa o homem decadente que precisa humilhar-se para suportar a vida”400.
Anteriormente, aludimos que o homem foi ensinado a suportar as mazelas de seu doloroso
sofrimento, seu sacrifício, seu trabalho e seus valores em prol de promessas, sejam elas de
felicidade, progresso, bem-estar ou, até mesmo, de uma vida melhor no além.
A religião é um narcótico generoso, que tem a tarefa de acalmar o espírito do homem,
dizendo-lhe que todo o seu tormento, esforço, trabalho e sofrimento, embora sejam punições da
divindade por seus pecados, serão recompensados em uma vida verdadeira e em um mundo
verdadeiro no além, prometidos aos mais seletos, aos grandes sofredores. Não obstante,
lembramos aqui o remédio que a religião manuseia no espírito do homem401, aquele remédio
que, como visto, não cura, mas que entorpece a vida na medida em que concebe um sentido ao

396
Gilles Deleuze, Nietzsche, p. 39-40.
397
Gustavo Arantes Camargo, Nietzsche: por uma ética trágica, p. 199-200 – acrescentamos e suprimimos.
398
Antes de ser carregado com tudo o que é pesado, ou seja, com tudo o que sucederia gravidade, o camelo
acreditava que poderia se alegrar com o tamanho de sua força, mas a carga imposta era muito pesada. Era sofrido
manter-se em pé, portanto, no deserto, em sua solidão, ele terá pressa em se libertar de seu excessivo peso e dever
moral.
399
Gustavo Arantes Camargo, Nietzsche: por uma ética trágica, p. 185.
400
Nelson José Batista da Silva, Memória, esquecimento e criação em Nietzsche, p. 50.
401
Cfr. a seção: “Ideal ascético”.
78

sofrimento e à dor, metaforicamente, ele é a fonte d’água onde o camelo sacia sua sede, para
recuperar forças e confiança em sua viagem. Após saciar sua necessidade de sentido e
significado para seu sofrimento, o camelo segue seu caminho ≡ vida mais apaziguado.
O camelo, além de ser um animal submisso, manso e inócuo, é uma espécie de animal
que não vive para si, mas para os outros, porque ele “é apenas bom para servir de Deus aos
homens superiores”402. Por viver em uma realidade cristã, ele carece de uma vontade afirmativa
e, portanto, se submete à vontade dum outro-eu. Nesse sentido, sendo dócil, domado e sofredor,
devido à moralidade que ele carrega, ele encara a vida enquanto uma tormenta, haja vista que
ela lhe causa dor. Então, se ele sofre, “é preciso saber por que sofre, por que não pode ser livre,
a quem estaria ele preso por algum dever que não se lembra de ter prometido”403.
No deserto, ele encontrará sua resposta, mas antes disso, ele “terá que enfrentar grandes
lutas”404 até a chegada do seu deserto. Porém, no meio do caminho, aparece um tipo de homem,
um tipo de sacerdote que lhe oferecerá um certo ideal que o confortará, porque o ideal
proporcionará, para este animal de orelhas compridas405, uma segunda vida em um outro
mundo, no qual não existe sofrimento e oriundos. Essa outra vida é uma compensação final
pelo abandono de si mesmo, de seus impulsos e pelo fardo moral que foi carregado por muito
tempo. Recebido esta ideia, o camelo, mais aliviado, continua sua jornada.
Pode-se intuir que “de uma ponta à outra, o Burro é a caricatura e a traição do Sim
dionisíaco; afirma, mas só afirma os produtos do niilismo”406. Assim, enquanto o Sim
dionisíaco407 é a afirmação mais ascendente da vida, o sim do camelo, sob o preceito moral e
religioso, seria desprezo pela vida. Em vista disso, o Sim deste homem nada mais é do que uma
inversão do significado estabelecido no Sim Dionisíaco. Portanto, o camelo ou “o Burro tem
dois defeitos: o seu Não é um falso não, um ‘não’ do ressentimento. E ainda mais, o seu Sim
(I-A, I-A) é um falso sim”408. Neste sentido, o I-A409 (sim) do camelo é um sim que não sabe
dizer não. Sua linguagem é baseada nesse sim, o sim a tudo o que lhe é posto, sobreposto e

402
Gilles Deleuze, Nietzsche e a filosofia, p. 265.
403
Gustavo Arantes Camargo, Nietzsche: por uma ética trágica, p. 186.
404
Gustavo Arantes Camargo, Nietzsche: por uma ética trágica, p. 185.
405
Caracterização feita por Gilles Deleuze (cfr. Nietzsche e a filosofia, p. 266).
406
Gilles Deleuze, Nietzsche, p. 40.
407
No Ecce Homo, Nietzsche oferece uma certa conceituação do termo (cfr. EH/EH, NT, 1, 4 e também GD/CI,
O que devo aos antigos, 5). Esse termo será apresentado mais adiante.
408
Gilles Deleuze, Nietzsche, p. 39.
409
Segundo Nietzsche (Za/ZA, III, Do espírito da gravidade), “Dizer sempre ‘I-A’ – aprendeu isto somente o
burro e quem tem o seu espírito”. Segundo Mário da Silva (loco citato, Nota do Tradutor), “Iá pronuncia-se a
palavra ‘Já’, que, como se sabe, significa ‘sim’, em alemão”. Contudo, enquanto o Iá/Já denota o sim, o I-A denota
o zurro do asno ou um falso sim, como evidenciado no corpo do texto.
79

imposto, porque, por não saber dizer não, ele diz sim a tudo, por ser obediente, não questiona,
por ser servil, carrega fardos morais, e, para estes, continua a dizer sim.
No entanto, como previamente afirmado, através da queda dos valores superiores, o
outro momento do camelo é consagrado. Ao chegar no deserto [deserto ≡ niilismo] o camelo
tem pressa em emancipar-se do fardo moral. Por esse motivo, ele tende a negar a moralidade
arcaica, mas, primeiro, é necessário superar seu dever moral, isto é, aprender a dizer não aos
valores e à moralidade, ou seja, “ele precisa desvencilhar-se dos fardos milenares impostos pela
tradição e alcançar sua liberdade”410. Nesta fase do camelo, seu espírito é transformado em leão,
porque “se o camelo corresponde ao espírito de carga, o leão aparece para desvencilhar-se dos
fardos”411, que dizer: o espírito do leão sabe dizer não, um Não sagrado.

É leão?

We don’t need no education


We don’t need no thought control

Pink Floyd, Another Brick In The Wall

O espírito do leão corresponde ao fim da fase de vigência da moralidade cristã. O


espírito do leão não quer estar preso à moral, porque ele não quer mais estar subordinado ao
que o mantinha detido em dever e culpa. Nesta ocasião, ainda no isolamento do deserto, ele
deseja descarregar todos os imperativos morais que até então estavam acima dele, pois, se seu
desejo é a liberdade de si mesmo, ele deve superar a tradição e tudo que cause gravidade.
Segundo o Zaratustra, é no deserto mais solitário onde “dá-se a segunda metamorfose:
ali o espírito torna-se leão, quer conquistar, como presa, a sua liberdade e ser senhor em seu
próprio deserto”412. Neste sentido, para adquirir sua liberdade, o espírito do leão terá que entrar
em guerra [ou: conflito] contra o que Zaratustra designa como o grande dragão, uma alegoria
simbólica ao sentimento do tu deves, de toda noção de dever e compromisso moral.
Somente na luta contra o dragão pode haver uma “liberação de uma tradição que por
muito tempo cercou e prendeu o homem em uma moral que lhe negava as prerrogativas mais
elementares de seu instinto”413. O homem, desde que tenha sucesso nesse confronto, consegue
eliminar, por exemplo, a noção do Deus cristão, um conceito que “fez surgir na terra o máximo

410
Nelson José Batista da Silva, Memória, esquecimento e criação em Nietzsche, p. 51.
411
Maurício Eduardo Bernz, A crítica de Nietzsche à moral cristã: por uma vida sem refúgios, 2007, p. 81.
412
Za/ZA, I, Das três metamorfoses.
413
Gustavo Arantes Camargo, Nietzsche: por uma ética trágica, p. 145.
80

de sentimento de obrigação”414. O conceito de Deus estabeleceu na consciência do homem, ao


longo da história da humanidade, o tu deves, esse sentimento de dever e dependência, que o
espírito de leão não tolera mais como sendo a orientação moral de sua vida.
Na solidão do seu deserto, o homem do espírito de leão compreende a urgência de
possibilitar uma superação do tu deves para um eu quero, dado que “renunciar ao dever é
reencontrar o querer, é redescobrir o lugar privilegiado do conceito de ‘vontade’, que não era
reconhecido como essencial exatamente por causa do cristianismo”415. Enterrar o conceito de
Deus na areia do deserto e esquecê-lo seria o começo para se tornar amigo da vida, uma
oportunidade para o espírito do homem se livrar da decadência que a concepção de Deus
representou ao longo da história humana, porque esse ideal foi construído em antítese à vida.
Mas o que faz o leão que diz não a tudo e que já não quer carregar velhos valores consigo?
O homem de espírito de leão, de acordo com Zaratustra, não pode criar valores, mas
consegue “criar para si a liberdade de novas criações – isto a pujança do leão pode fazer”416.
Essa liberdade, pretendida pelo leão, “que é capaz de dizer não, que nega a moral e seus
mandamentos impostos, que nega toda metafísica, ainda não chega ao seu auge”417, contudo,
ela é, ao menos, o passo inicial ou suposição inicial para que o homem possa se tornar criador.
No entanto, se o leão ainda não pode criar, ele deve ir além de seu estado de leão para se tornar
um criador. O leão deve então se tornar criança. No entanto, há quem ainda faz a seguinte
pergunta: “por que o rapace leão precisa ainda tornar-se criança?”418.
Os homens que operam sob o espírito do leão vivem em estado gregário e sob preceitos
morais, mesmo que sejam céticos em relação a eles. Como não podem criar valores, ainda
precisariam de uma diretriz para possuírem sentidos, quer dizer: mesmo que obtenham uma
liberdade ocasional perante velhos valores, eles ainda adorariam ídolos, por exemplo, a ciência.
Neste sentido, seus antigos valores não são abandonados, eles são simplesmente transformados
diante de um novo ideal. Consequentemente, Deus é esquecido, no entanto, a ciência se torna
o novo consolo do homem, caso este ainda tenha necessidade de um ponto de apoio ou de uma
verdade para organizar e guiar a sua vida. Este aspecto pode ser entendido através da

consequência de uma educação para a verdade que dura dois mil anos, que
finalmente se proíbe a mentira de crer em Deus... Vê-se o que triunfou
realmente sobre o Deus cristão: a própria moralidade cristã, o conceito de

414
Carlos A. R. de Moura, Nietzsche: civilização e cultura, p. 4.
415
Carlos A. R. de Moura, Nietzsche: civilização e cultura, p. 4-5.
416
Za/ZA, I, Das três metamorfoses.
417
Maurício Eduardo Bernz, A crítica de Nietzsche à moral cristã: por uma vida sem refúgios, 2017, p. 81.
418
Za/ZA, I, Das três metamorfoses.
81

veracidade entendido de modo sempre rigoroso, a sutileza confessional da


consciência cristã, traduzida e sublimada em consciência científica, em anseio
intelectual a qualquer preço. 419

Para superar a tradição arcaica, “o leão tem a tarefa de desmascarar os valores e ideais
impostos até então”420, já que para obter sua liberdade, ele não deve se submeter a novos ídolos,
mas ir contra tudo o que foi criado sob a jaez da metafísica e da moral, isto é, em discursos que
pregam alguma verdade como o caminho para o certo, ao inquestionável, ao verdadeiro, como
faz a ciência421 após a desvalorização da ideia de Deus. Portanto, o espírito do leão “é um niilista
ativo, um espírito que sente o ‘prazer na destruição’ da ordem estabelecida”422.
Na primeira parte de sua jornada, Zaratustra tem essa característica, essa tarefa do
leão423, porque ele vem ao encontro dos homens para lhes dizer, sobretudo, que Deus morreu,
ou seja, que o fundamento de valores pesados caiu e que, com isso, a carga moral dos homens
pode enfim ser superada. Isso significa dizer que o homem não precisa carregar fardos morais,
nem acreditar em um outro mundo, ou seja, Zaratustra ensina aos homens o Não do leão.
No entanto, observa-se que o dizer não exige uma certa força, já que é uma tarefa difícil
e poucas pessoas têm essa capacidade, pois é difícil desconstruir um hábito, um costume ou
uma moralidade, isso exige tempo e força. Talvez seja por essa razão que a moralidade foi
caracterizada como um dragão, pois combatê-la seria uma tarefa para espíritos corajosos e fortes
o suficiente para não se apegarem a outros ídolos quando a moralidade for vencida.
Nesse sentido, com base em uma certa interpretação, um paralelo pode ser estabelecido
entre o espírito do leão e a juventude, especialmente por duas razões: primeiro, “a juventude é
a idade onde começa o desejo por crescimento e liberdade” 424, isto é, aqueles jovens que não
querem ser como seus pais ou carregar seus valores, buscam se verem livres destes para afirmar
suas singularidades, porque a juventude é o momento onde “se decide querer ser livre ou
não”425, e, em segundo lugar, porque “é na juventude que são questionados os valores vigentes
e as morais caquéticas, somente a juventude pode derrubar tamanha hipocrisia”426. Nesse
sentido, os jovens podem operar perfeitamente o espírito do leão.

419
FW/GC, 357.
420
Maurício Eduardo Bernz, A crítica de Nietzsche à moral cristã: por uma vida sem refúgios, 2017, p. 81.
421
Posteriormente, ao relacionar a figura do leão ao espírito livre, mostraremos que Nietzsche compreende ambas
figuras, a princípio, ligadas ao ceticismo científico.
422
Toni Llácer, El superhombre y la voluntad de poder, p. 99.
423
Afirmação baseada na interpretação de Gilles Deleuze (Nietzsche, p. 44-45), na qual ele apresenta Zaratustra
operando o Não do leão.
424
Gustavo Arantes Camargo, Nietzsche: por uma ética trágica, p. 202.
425
Gustavo Arantes Camargo, Nietzsche: por uma ética trágica, p. 202.
426
Gustavo Arantes Camargo, Nietzsche: por uma ética trágica, p. 202.
82

É possível entender a rebeldia peculiar do jovem como um não querer tudo o que ele
não escolheu para si, mas que é atribuído e exigido por terceiros, por exemplo: um não querer
as velhas normas morais que regulam o comportamento do indivíduo na comunidade; um não
querer continuar o caminho profissional adotado por seus pais ou terceiros; um não querer
padrões de roupas, estética corporal ou qualquer padrão que torne impossível a ele descobrir
suas próprias preferências estéticas; um não querer estudar algo que não lhe ofereça interesse
ou regozijo; etc. Em resumo, é na juventude que o indivíduo desenvolve um forte desejo de não
querer se submeter ao que ele não deseja carregar, aceitar, suportar ou assumir. Portanto, a
juventude seria “a época em que a tolerância diminui drasticamente, em que nos perguntamos
se a vida não é um sonho [...]. E tudo nos parece vir do nada, nós próprios gostaríamos de ter
vindo do nada, gostaríamos de ser autores da nossa vida”427 e não nos deixar guiar por
parâmetros morais forjados e cultivados por outros.
Nesse sentido, o jovem, por não querer ou aceitar ser carregado com tudo o que
considera um fardo, precisa ser radicalmente melhorado e integrado aos moldes da sociedade,
isto é, ele precisa se tornar um adulto com responsabilidades e tarefas institucionais. Portanto,
“é neste ponto que o jovem, se não for forte, é assassinado e impedido de viver sua própria
vida”428, permitindo que outros escolham e determinem sua vida, seu modo de ser, estar e até
os seus pensamentos. Nesse sentido, “tudo aquilo que ele quer, gosta e acredita é, constante e
incessantemente, criticado e desqualificado pela ‘voz da experiência’, que o aconselha a desistir
de sua juventude”429. A voz da experiência seria o zurro da tradição e das pessoas que viveram
sob tutela moral e nunca se propuseram a dizer um não, sempre disseram sim e aconselham que
os jovens também digam sim, esse sim falso do camelo, o sim que aceitou tudo que era pesado.
Esse homem de experiência é “aquele que não é si mesmo, [...] [que] cansa-se de viver – uma
vez que a vida que vive não é a sua, e sim, a que a moral lhe ordenou – [...] [que] se torna um
rancoroso e vingativo assassino de jovens”430 e que quer que os jovens não vivam o que ele não
viveu, mas simplesmente o que se encontra em sua experiência.
Neste sentido, “Zaratustra, assim como qualquer jovem431, só conseguiu permanecer
firme em sua proposta pois possui um ponto invulnerável a ataques de qualquer ordem, já

427
Maria Filomena Molder, Ser uma experiência para si próprio: como tornar-se um espírito livre? p. 43 –
suprimimos.
428
Gustavo Arantes Camargo, Nietzsche: por uma ética trágica, p. 202.
429
Gustavo Arantes Camargo, Nietzsche: por uma ética trágica, p. 202.
430
Gustavo Arantes Camargo, Nietzsche: por uma ética trágica, p. 202-203, [acréscimos e supressões nossas].
431
No discurso “o canto do túmulo”, Zaratustra se lembra de sua juventude, que foi rapidamente retirada e
estrangulada e que agora está enterrada em uma ilha silenciosa (cfr. Za/ZA, II, O canto do túmulo).
83

sabemos: a vontade”432. Essa vontade pode ser interpretada enquanto o eu quero que o leão
almeja e o não querer da juventude, já que o não querer dos jovens é também uma vontade de
querer, uma vontade de negação que expressa um querer libertar-se de algo. Assim como o leão,
que quer ter sua liberdade, os jovens querem ter a liberdade de ser, de escolher e de experimentar
as inúmeras possibilidades e facetas que a vida pode possibilitar, para que eles possam se
tornarem aquilo que potencialmente eles são. Portanto, eles rejeitam e dizem não a tudo o que
os outros afirmam que eles devem ser, escolher e seguir. Este estabelecimento de uma vontade,
isto é, de um eu quero em oposição ao tu deves, “começa com toda força na juventude e, por
isto mesmo, esta é o alvo preferido para a cobrança em relação aos valores estabelecidos” 433,
ou seja, é para esses jovens, que não dizem sim e que não se submetem, que a sociedade institui
meios de docilizá-los e adestrá-los, seja por meio de uma cartilha educacional, que visa
transformar jovens em bons cidadãos, preparando-os para o mercado de trabalho e ensinando-
lhes o éthos da sociedade em que estão inseridos ou através de centros de correção
comportamental, visando discipliná-los ao cívico, ao bem agir para bem viver em sociedade.
No entanto, voltando ao espírito do leão, a pergunta que resta ser feita é: o que fazer
diante da queda da moralidade? Para onde ir? A liberdade do leão “é uma liberdade de, mas
ainda não é uma liberdade para: [porque ele] está liberto dos valores herdados, mas ainda não
tem capacidade para criar novos valores”434. É evidente que o homem não pode retornar ao
espírito de camelo, porque não há mais nada a dizer sim, nem deve continuar no espírito de
leão, porque, uma vez que sua liberdade foi alcançada, a liberdade da tradição, então não há
mais nada pelo que lutar contra, portanto, ele deve se transformar uma outra vez, isto é, o
homem não deve retornar ao camelo, mas ir além do espírito do leão, para poder ocasionar a
transvaloração de todos os valores435, pois, a superação do leão, a criança, é o espírito da
criação, este espírito que possui a liberdade para criar seus próprios valores.
***
Antes de iniciar a metamorfose da criança, veremos primeiro o espírito livre que
equivale ao espírito do leão e que significa abrir-se ao novo, ao perigo.

É livre?

Nós ao igual destino

432
Gustavo Arantes Camargo, Nietzsche: por uma ética trágica, p. 203.
433
Gustavo Arantes Camargo, Nietzsche: por uma ética trágica, p. 203.
434
Toni Llácer, El superhombre y la voluntad de poder, p. 99 – acrescentamos.
435
Cfr. a seção: “Ama a vida? “Se” sim: é criador!”.
84

Iniguais pertencemos.

Fernando Pessoa, Poemas de Ricardo Reis

Se, como visto, a sociedade está adoentada devido aos velhos valores morais que a
orientaram até então, portanto, para reverter esse quadro clínico, é necessária uma dupla atitude
humana: uma negação e uma afirmação. Quando terminarmos de apreciar as três metamorfoses,
poderemos, enfim, afirmar que o tornar-se criança é o remédio propício ao tratamento da
afecção patológica da moral fraca que se sobressaiu, por muito tempo, ante o espírito do
homem. Na seção anterior, entendemos que o homem só irá se transformar no espírito de
afirmação e criação, quando, primeiro, aprender a dizer não, o Não sagrado do leão, porque só
assim ele se tornará um espírito libertado da tradição que o adoentou e o domesticou na servidão
do Estado e da religião. Nesse sentido, interpretaremos a figura do leão ligada ao espírito livre,
porque, em certa interpretação, “o espírito de leão e o espírito livre possuem algumas
congruências comuns”436, sobretudo, o desejo de liberdade. Além disso, mostraremos que o
tipo de homem que Nietzsche aspirava proporcionar, a princípio, seria esse espírito livre, porque
“o espírito livre é um imoralista e encontra-se em uma hierarquia superior ao homem da
massa”437, ou seja, “alguém que visa superar sua época e o homem de seu tempo”438. Contudo,
como já mostrado previamente, esse tipo de espírito, em outro momento, deverá acriançar-se,
ou seja, o tipo de homem, imaginado por Nietzsche, consiste em uma superação do homem de
espírito de camelo, o homem carregado por encargos morais e dogmáticos, e do espírito livre,
para fazer surgir um tipo de homem criador, isto é, a criança que equivale ao Übermensch.
O Übermensch é o tipo de homem que tanto Nietzsche quanto Zaratustra aspiram fazer
surgir. Todavia, antes de apreciar esse tipo de homem que transvaloriza, veremos primeiro
como Nietzsche concebeu o espírito livre, uma vez que ele é, em suma, a suposição inicial ao
surgimento do Übermensch, isto é, “o espírito livre é uma condição necessária para a superação
da moral e para [a] criação de novos valores”439. Como se sabe, do surgimento desse espírito
livre na obra de Nietzsche até o espírito livre como superação da tradição, o conceito passará
por algumas transformações, ou seja, em um ponto, Nietzsche o apresenta com certo
significado, em outro, o espírito livre é ressignificado. Isso, longe de caracterizar uma

436
Daniel de A. Berbare, A filosofia do Espírito Livre em Nietzsche: tensões, rupturas e inovações, p. 58.
437
Daniel de A. Berbare, A filosofia do Espírito Livre em Nietzsche: tensões, rupturas e inovações, p. 21.
438
Daniel de A. Berbare, A filosofia do Espírito Livre em Nietzsche: tensões, rupturas e inovações, p. 21.
439
Daniel de A. Berbare, A filosofia do Espírito Livre em Nietzsche: tensões, rupturas e inovações, p. 10 –
acrescentamos.
85

contradição no pensamento de Nietzsche, é só a constatação de que seu pensamento passou por


um longo e profundo processo de amadurecimento e de desenvolvimento.
Atentando e tomando os devidos cuidados à constatação de que a figura do espírito livre
possui significações, como se tornar um espírito livre? Para esta questão, considerando o que
foi exposto até agora, supõe-se que, “para tornar-se espírito livre, é preciso rebelar-se contra
toda autoridade. Pais, amigos, mestres princípios, educadores, tornam-se facilmente ‘diretores
de consciência’. Impõem normas de comportamento e maneiras de pensar”440. Portanto, é-nos
lícito afirmar que tal espírito é, visto de um certo ângulo, um subversivo do que até então era
considerado moralmente correto, uma vez que diferente dos bons e úteis cidadãos cultuados
pelo Estado, que apenas cumprem com seus deveres cívicos, aos subversivos apetece o desejo
de se libertarem dos chamados “diretores da consciência”, isto é, de proporcionar uma liberdade
contra um falso ordenamento tradicional que visa instituir e fixar uma moralidade que, como
visto, visa suprimir as singularidades dos homens, impondo o dever moral e a submissão aos
costumes. Portanto, o espírito livre também pode ser entendido como imoral, porque “o
indivíduo que não quer submeter-se à tradição é considerado ‘imoral’”441. Neste sentido, parece
que esse não querer submeter-se a algo, isto é, se tornar escravo de um outro-eu, como visto na
figura do camelo, caracteriza o espírito livre e o distingue dos espíritos cativos.
O espírito cativo é semelhante ao camelo já apresentado. Ele não possui a liberdade de
escolher ou de querer-ser-senhor-de-si, visto que, por achar-se adaptado à comunidade, ele
tende a seguir o convencional, o socialmente aceito e o correto. Portanto, podemos afirmar que
os homens cativos = bons + úteis ≡ cívicos ≡ adaptados são a essência da sociedade na medida
em que eles compõem a massa que segue preceitos, deveres e ordens sociais tidos como certos
em decorrência do hábito, já que “o espírito cativo não assume uma posição por esta ou aquela
razão, mas por hábito”442. Em toda sociedade, existem hábitos = normas + costumes que não se
adaptam às singularidades dos indivíduos, mas, ao contrário, são os indivíduos que devem
renunciar à sua individualidade para se adaptar aos costumes do ambiente em que eles se
encontram. Em direção oposta, o espírito livre ≡ leão ≡ jovem procurará vencer esse tu deves
adaptar-se. Ele procura as razões para ter que seguir certos costumes e não as encontra, visto
que “todos os Estados e ordens da sociedade: as classes, o matrimônio, a educação, o direito,
adquirem força e duração apenas da fé que neles têm os espíritos cativos — ou seja, da ausência

440
Scarlett Marton, Nietzsche: uma filosofia a marteladas, p. 48.
441
Scarlett Marton, Nietzsche: uma filosofia a marteladas, p. 50.
442
MAI/HDH I, 226.
86

de razões”443. Portanto, o homem permanece preso na tradição devido a fé nos costumes444 e,


já que os homens cativos “não buscam as razões que fundamentam suas crenças, seguem apenas
o ‘instinto de rebanho’ de tal sorte que é o hábito que lhes conduzem as suas ‘verdades’”445.
Como visto na seção: “É... Útil? A Quê?”, os homens trabalham sem saber o porquê.
Daí pode-se perceber certa carência de criticidade por parte dos homens, o que para a sociedade
deve ser uma característica bem-vista e desejável, visto que, do homem, ela espera fé em seus
preceitos sem nenhum questionamento ou dúvida quanto a sua legitimidade. Neste sentido,
“acerca da diferença entre os tipos ‘espírito livre’ e ‘espírito aprisionado’, o que se deve
acrescentar é que o espírito livre se propõe a ir para além daquilo em que o homem se
acomodou, do ‘punhado de certeza’ que esse homem prefere”446. Para entender essa
característica, do ir além do convencional ou da fé, é necessário levar em conta que Nietzsche
passou por um período histórico bem circunscrito da história: a ascensão da segunda revolução
industrial. Nesse período, o método científico e a ciência foram desenvolvidos por toda a
Alemanha. Quando a ciência se tornou proeminente, foi indispensável verificar os fundamentos
do que era considerado verdadeiro até então. Nesse sentido, ocorre, neste momento, certa
libertação da fé e um movimento em direção ao ceticismo científico447, o qual cumpre a missão
de evidenciar que o homem apenas venerava ideais fantasiosos, não passíveis de comprovação
ou experimentação quanto às suas verdades. Portanto, o ceticismo da ciência fornece a
desmistificação das crenças que orientavam o agir e o viver do homem. “Para o espírito livre,
toda crença e convicção devem ser problematizadas até as suas últimas consequências e nunca
serem aceitas dogmaticamente através de uma pseudo ‘revelação’”448. Por esta razão, a ciência
cumpre o papel de evidenciar a fragilidade do alicerce da religião e da metafísica ao colocá-las
sobre a ótica do saber científico. Assim, “o modo de valorar da ciência moderna pretende
demonstrar que a fé não revela a verdade”449, mas apenas crenças e convicções fantasiosas.

443
MAI/HDH I, 227.
444
Segundo Daniel de A. Berbare (A filosofia do Espírito Livre em Nietzsche: tensões, rupturas e inovações, p.
48), “a mais forte das crenças é aquela baseada na fé e somente quando essa asseveração for superada é que a
liberdade espiritual pode, enfim, desabrochar”.
445
Daniel de A. Berbare, A filosofia do Espírito Livre em Nietzsche: tensões, rupturas e inovações, p. 33.
446
A. E. Paschoal, A dinâmica da vontade de poder como proposição moral dos escritos de Nietzsche, p. 233.
447
No aforismo 261, nomeado Os tiranos do espírito, de Humano, demasiado Humano, Nietzsche alude que, com
o ceticismo falando cada vez mais alto e com maior força, “o período dos tiranos do espírito passou” (MAI/HDH
I, 261), isto é, finda-se a crença em uma verdade absoluta e nasce a dúvida. Sobre isso, A. E. Paschoal (A dinâmica
da vontade de poder como proposição moral dos escritos de Nietzsche, p. 102) registra que “o ceticismo é a
qualidade necessária a um espírito que queira ser elevado, ao ‘espírito livre’, ao espírito com disposição para a
aventura. Ele designa a liberdade do filósofo diante de toda espécie de convicção”.
448
Daniel de A. Berbare, A filosofia do Espírito Livre em Nietzsche: tensões, rupturas e inovações, p. 47.
449
Mauro R. de Almeida Vieira, Nietzsche e a modernidade: da crítica à metafísica a crítica à democracia, p. 74.
87

Todavia, “o homem da ciência está longe de ser um espírito livre. Além de renunciar às crenças
religiosas, é preciso abandonar a crença na verdade”450 preservada pela ciência.
Neste sentido, o ceticismo científico proporciona certa liberação do homem de crenças,
tais como: mundo metafísico, além, Deus e afins que não são comprováveis logicamente.
Todavia, “o espírito livre não é livre por viver segundo o conhecimento científico, é livre na
medida em que utiliza a ciência como meio para se libertar da grande servidão da existência
humana em relação aos ‘ideais’, para [...] escapar [...] da religião, da metafísica e da moral”451.
Portanto, a ciência também deve ser vista como o que ela realmente é, isto é, como criação
humana e que, assim como a filosofia, não é capaz de alcançar verdades absolutas, visto que
isso apenas forneceria “a substituição da especulação filosófica pela positividade dos dados
científicos”452, concebendo “à ciência moderna o lugar de porta-voz de verdades objetivas e a
legitimidade para forjar os conceitos”453. Portanto, “Nietzsche, sem negar que a racionalidade
científica serviu para quebrar as cadeias do dogmatismo religioso, considera que, vistas em
profundidade, ciência e religião não são tão diferentes quanto nos diz a versão oficial”454.
Quando caracterizamos o espírito do leão, anteriormente, tratamos de registrar que ele,
depois de vencer o tu deves, não deveria buscar na ciência um novo ponto de apoio, mas ir além,
para não se tornar cativo de novos ídolos. A ciência ou o “positivismo representa para Nietzsche
unicamente uma pele em que ele se envolve por algum tempo, uma sabedoria de serpente da
transição, e ele não tardará também a mudar de pele”455, pois o modo de pensar positivista
“trata-se apenas de um meio para a libertação, para a rejeição das tradições” 456. Portanto,
quando o espírito torna-se liberto, como o leão quando ganha sua liberdade, ele deve procurar
experimentar as possibilidades que surgem quando o peso da tradição é superado, isto é, o
homem deve aprender “que viver significa ousar, e a vida torna-se possível como
experiência”457. Tais indicações apontam para o niilismo já apresentado, porque “o niilismo
aparece entendido como um período necessário após a descrença nos valores superiores”458. No
entanto, diferentemente do niilismo apresentado anteriormente, ou seja, o niilismo passivo, o
niilismo mencionado aqui não tende a fazer surgir o último dos homens, mas seu antagonista,

450
Scarlet Marton, Nietzsche, p. 56.
451
Eugen Fink, A filosofia de Nietzsche, p. 55 – suprimimos.
452
Mauro R. de Almeida Vieira, Nietzsche e a modernidade: da crítica à metafísica a crítica à democracia, p. 47.
453
Mauro R. de Almeida Vieira, Nietzsche e a modernidade: da crítica à metafísica a crítica à democracia, p. 47.
454
Toni Llácer, El superhombre y la voluntad de poder, p. 79.
455
Eugen Fink, A filosofia de Nietzsche, p. 59. Segundo Daniel de A. Berbare (A filosofia do Espírito Livre em
Nietzsche: tensões, rupturas e inovações, nota de rodapé nº 129, p. 72), a saída do positivismo cético para o projeto
de uma transvaloração dos valores marca a passagem “da segunda para terceira fase do pensamento de Nietzsche”.
456
Eugen Fink, A filosofia de Nietzsche, p. 58.
457
Eugen Fink, A filosofia de Nietzsche, p. 56.
458
Gustavo Arantes Camargo, Nietzsche: por uma ética trágica, p. 144.
88

o Übermensch459, pois a “descrença [nos valores superiores] pode acarretar a negação da vida
ou pode abrir para a sua mais pura afirmação, sua afirmação trágica e dionisíaca”460.
Através da perda de valores superiores e orientações metafísicas, o homem perde as
verdades que o guiaram até então, daí o aparecimento daquele sentimento de “em vão”. No
entanto, diante dessa mesma perda de valores, novos caminhos se abrem para o homem;
caminhos estes que o levam para além do bem e do mal, ou seja, além do dualismo metafísico
clássico que o orientou até então. Nesse novo momento, a verdade não é mais o pressuposto do
conhecimento, pois esse novo caminho se caracteriza pelo número de possibilidades e
interpretações que o acaso da existência pode oferecer, daí a razão pela qual o espírito livre
“jamais se fixará em alguma certeza, superando-se perpetuamente em direção a novas opiniões,
novas perspectivas [...]. [Ele] estará condenado a ser um experimentador”461.
Na ausência de orientações, crenças morais e verdades, o espírito livre deve ser guiado
por si mesmo, isto é, através de seu querer (eu quero), o que lhe permitirá ousar e experimentar
as possibilidades que a vida possui. Para ousar, é indispensável abandonar o convencional, a
comodidade do coletivo e a servidão social, a fim de se buscar experiências únicas ou aventurar-
se no desconhecido. Nietzsche, na Gaia Ciência, sugere que “o segredo para colher da vida a
maior fecundidade e a maior fruição é: viver perigosamente!”462. No entanto, no Além do Bem
e do Mal, Nietzsche deixa registrado que “[...] serão percebidos como perigo: tudo o que ergue
o indivíduo acima do rebanho”463, porque, como visto anteriormente, esse espírito, ao
abandonar os impulsos de rebanho e viver orientado por um querer-crescer e um querer-
experimentar, será visto como uma ameaça à ordem social e a qualquer moral que se imponha
como inviolável ou inquestionável. Mas, ao viver perigosamente, o homem poderá caminhar
em direção a novos horizontes, novos amanheceres e possibilidades de experimentação.

É criança?

As coisas que não têm nome são mais pronunciadas por crianças.

Manuel de Barros, O livro das ignorãças

459
Segundo Diego Sánchez Meca (Figuras del ultrahombre (Übermensch) nietzscheano, p. 14 – traduzimos), “a
figura do Übermensch, na obra de Nietzsche, deve ser interpretada em conexão íntima com o tema do niilismo,
entendida como perda do valor absoluto das verdades, normas, ideais, fins e valores nos quais o mundo moderno
se baseia, com todas as suas ideias modernas”.
460
Gustavo Arantes Camargo, Nietzsche: por uma ética trágica, p. 144 – acrescentamos.
461
Carlos A. R. de Moura, Nietzsche: civilização e cultura, p. 201 – acrescentamos e suprimimos.
462
FW/GC, 283.
463
JGB/ABM, 201 – suprimimos.
89

Tornar-se criança implica superar as duas metamorfoses anteriores e não um se tornar


criança literalmente, porque é uma superação [ou: ultrapassagem] do homem tal como ele foi
até então. O homem precisa entender que, para tornar a vida leve, é necessário voltar a esquecer:
esquecer para criar, criar para destruir, destruir para recriar, recriar para se tornar criador, é por
isso que “o leão torna-se criança, [...] o ‘sim sagrado’ da criança deve ser precedido pelo ‘não
sagrado’ do leão”464, dado que, para se tornar um criador de valores, em primeiro lugar, era
necessário que o homem possuísse alguma verdade para depois negá-la e, finalmente, diante de
sua negação, para que fosse possível a criação e afirmação de algo novo. Nesse sentido, a
afirmação surge da negação, sem isso “a afirmação não é nada, ela própria [é] impotente para
se afirmar”465, porque sem o Não do leão, o homem continuaria a considerar o real como ele é,
isto é, continuaria a perpetuar um antropomorfismo da existência, do mundo e da vida, negando-
lhes o direito à inocência de se tornar, isto é, de vim a serem eternamente.
Já foi mostrado que o “mundo não é nem verdadeiro, nem real, mas vivo. E o mundo
vivo é vontade de poder”466, portanto, assim como qualquer organismo vivo, o mundo pode e
vai mudar; mudança é o ser de tudo o que está vivo, “porque não existe um ser para além do
devir, não existe um uno para além do múltiplo, nem o múltiplo nem o devir constituem
aparências ou ilusões”467. Assim como visto anteriormente, a tradição ocidental, por longo
tempo, tomado por vingança ao vir-a-ser, ao que não pode ser calculável, previsível ou
racionalizado, quis transformar o mundo em um conceito mumificado, para que ele não viesse
a mudar e para não dificultar a busca pelo verdadeiro. Todavia, por meio do Não do leão, do
não aos valores superiores e à tradição, o homem pode participar do “jogo da criação” 468, isso
significa tornar-se criador de novos valores e assumir o mundo como ele é, sem valores divinos,
não perene, eternamente autocriado, imerso em fluidez, caótico e sem sentido.
Se o mundo e a vida não têm sentido ou significado e se a noção de culpa é humana e o
sofrimento é rebento da negação da vida, cabe ao homem ser o criador de seus próprios sentidos,
ou seja, construir significado para a sua própria vida469. É preciso, portanto, “aprender a
enxergar na criação a redenção do sofrimento, a alegria e afirmação da vida, mesmo em seu

464
Gilles Deleuze, Nietzsche e a filosofia, p. 265 – suprimimos.
465
Gilles Deleuze, Nietzsche e a filosofia, p. 265 – acrescentamos.
466
Gilles Deleuze, Nietzsche e a filosofia, p. 275.
467
Gilles Deleuze, Nietzsche e a filosofia, p. 38.
468
Za/ZA, I, Das três metamorfoses do espírito.
469
É nesse sentido que, segundo Luis Enrique de Santiago Guervós (O antiniilismo estético e a superação do
niilismo, p. 21), “com a ideia da criança que cria jogando, Nietzsche procura ir além do niilismo, pois a superação
do niilismo não consiste em ‘encontrar’ novas metas ou crenças, porém em criá-las”.
90

caráter absurdo, mesmo que para isso seja necessário sentir as dores típicas de toda criação”470.
Quando o leão diz Não a Deus, ele desocupa o trono daquele que “criava” valores, agora, o
próprio homem pode ocupar esse lugar vazio para criar e, como o leão ou o jovem, deixar de
ser refém de valores que ele não criou.

Vamos! Coragem, homens superiores! [Coragem, espíritos livres!] Somente


agora a montanha do futuro humano sente as dores do parto. Deus morreu,
agora que o super-homem viva.471

Quem pode ocupar esse trono de criador, artista e legislador, se não o espírito da
criança? Zaratustra, em outras palavras, questiona o “que poderá ainda fazer uma criança, que
nem sequer pôde o leão?”472 Após esse questionamento, Zaratustra confere um perfil à criança.
Coloca ele: “Inocência [ou: sem culpa e ressentimento], é a criança, e esquecimento; um novo
começo, um jogo, uma roda que gira por si mesma, um primeiro movimento, um sagrado dizer
‘sim’. Sim, meus irmãos, para o jogo da criação é preciso dizer um sagrado “sim”: o espírito,
agora, quer a sua vontade, aquele que está perdido para o mundo conquista o seu mundo”473.
Nesta caracterização do Zaratustra para a criança, fica claro que, por ser inocente, ou seja,
desprovida de segundas intenções, finalidades e de objetivo em suas ações ou por não sentir
nenhuma culpa em seu agir, a criança não é um ser maculado pela moral, já que a moralidade
tende à responsabilidade e à objetividade da ação, ou seja, as ações devem sempre possuir um
porquê e um para quê, características estas que não são perceptíveis na ação da criança, visto
que ela age sob a espontaneidade do querer e de sua vontade, sem parâmetros morais.
Ao mesmo tempo em que é um ser imoral, a criança também é esquecimento, visto que
ela não é um ser socialmente obrigado a lembrar o que é certo e o que é errado, como agir e
como viver, nem os detalhes de suas ações ou qualquer atividade realizada, porque é típico das
crianças esquecerem suas ações e se divertirem fazendo a mesma ação, semelhante ou igual,
como se fosse a primeira vez, portanto, sua vida é sempre “um novo começo, um jogo, uma
roda que gira por si mesma, um primeiro movimento”474. Considerando essas características, a
criança é a superação do homem ressentido, ou seja, daquele que, por não esquecer certos
eventos, mantém em sua memória fardos e fatos que sucedem gravidade e responsabilidade.

470
Danilo Bilate de Carvalho, Nietzsche e a aceitação trágica da vida, p. 3-4.
471
Za/ZA, IV, Do homem superior, 2 – acrescentamos.
472
Za/ZA, I, Das três metamorfoses do espírito.
473
Za/ZA, I, Das três metamorfoses do espírito.
474
Za/ZA, I, Das três metamorfoses do espírito.
91

Neste sentido, pode-se entender que “o criador será definido pela faculdade de esquecer e pelo
poder de criar; o ressentido, pela prodigiosa memória e pelo poder de conservar”475.
Enquanto o homem ressentido se sente culpado, a criança, livre de costumes e
responsabilidade, brinca, ri e, com pés leves, dança, a própria existência, para ela, é de uma
leveza sui generis. Isso torna possível entender que, enquanto a existência é vista como a
culpada pela dor do homem, na perspectiva ascética, na percepção da criança, não, pois a vida
já não é mais vista com semblantes morais, mas, sim, estéticos, e “como fenômeno estético a
existência ainda nos é suportável”476, porque, diferentemente da moral ou da tradição, uma
existência estética permite a aventura do ato de criar, remove pesos e confere uma certa aliança
entre o homem e a vida, por isso “devemos também poder ficar acima da moral: e não só ficar
de pé, com a angustiante rigidez de quem receia escorregar e cair a todo instante, mas também
de flutuar e brincar acima dela!”477, quer dizer: ao contrário do modo como o homem viveu até
então, “poder ficar acima da moral, pairar acima da moral, significa retirar da vida o véu da
moralidade – que, ao lhe encobrir, a despotencializa – e projetar sobre ela uma nova forma de
valoração da existência – mais potente, livre, dançante, flutuante, brincalhona e venturosa”478.
Nesse sentido, a criança representa a superação da moral, ela é esse ser para além do bem e do
mal e que vive no deleite de uma existência estética. Portanto, somente o espírito da criança é
capaz de superar a moralidade e possibilitar uma afirmação estética da existência.

É avaliador?

– O que faz o querer no homem? - cria! - cria o quê? - Palavras ...)

sou um mero fazedor-de-palavras:


o que há nas palavras!
o que há em mim!479

Nietzsche, numa anotação póstuma, afirma que “a natureza acomodou o homem em


fragrantes ilusões. Eis seu elemento próprio. Ele vê formas e, em vez de verdades, sente
estímulos”480. Portanto, ele entende que o homem, quando sofre um estímulo de um

475
Rosa Maria Dias, Nietzsche, vida como obra de arte, p. 79.
476
FW/GC, 107.
477
FW/GC, 107.
478
Roberta Franco Saavedra, Amor fati e eterno retorno no livro IV de “A gaia ciência”: uma interpretação
estética da existência, p. 50,
479
NF/FP de 1888, 20[157], in: FF, p. 236.
480
NF/FP de 1872, 19[179], in: WL/SVM, p. 73.
92

determinado objeto, não alcança uma verdade sobre qualquer objeto, mas que faz uma abstração
dos estímulos fornecidos pelos objetos, subordinando sequencialmente os objetos sentidos à
jurisprudência da linguagem, onde eles serão nomeados e identificados por classe, extensão,
cor, volume e afins, em suma, por suas especialidades abstraídas. Embora haja sistemas
filosóficos que afirmam que, por meio das percepções, o sujeito pode alcançar verdades sobre
as coisas, deve-se entender que a única geração possível neste processo são metáforas.
Por exemplo,

A concepção hegeliana de que a verdade é a percepção do objeto em suas


múltiplas determinações pode estar correta, mas contém algo insolúvel: não
se consegue determinar que se tenha chegado às determinações que o fazem
ser como ele é. Não se tem nenhum órgão dos sentidos que possa assegurar
isso. A mente [consciência] pode ter a pretensão de ter conseguido, mas não
passa de autoritarismo e pretensão do sujeito. [...] Isso faz da verdade uma
utopia, pois não se consegue chegar jamais à totalidade das determinações,
nem das percepções que se tenha tido. Nunca se pode ter certeza de que foram
obtidas todas as determinações de algo. Sempre podem surgir surpresas.481

O querer-filológico de Nietzsche é o de mostrar que não há verdades absolutas sobre as


coisas, porém, simplesmente, metáforas. Em sua fase filosófica-filológica, Nietzsche parte da
pergunta: o que é uma palavra? Para anunciar que a palavra não é a representação de uma
verdade dos objetos, mas “a figuração de um estímulo nervoso em sons”482. No entanto, não é
plausível dizer que Nietzsche queira desvalorizar a linguagem, porque vale lembrar que um de
seus grandes méritos, ocorrido em meados de 1869, quando ele tinha apenas 24 anos, foi o de
ser nomeado para a cadeira de Filologia Clássica na Universidade de Basileia, tornando-se o
professor mais jovem a realizar esse feito. Portanto, Nietzsche tem uma estima muito pessoal e
importante na linguagem. No entanto, a linguagem metafisicada, “de um certo ponto de vista,
será uma sombra que ele quer afugentar, mas da qual não pode se libertar”483.
Nos parece certo e bem coerente que o que Nietzsche tenta mostrar, enquanto o erro
posto sob a linguagem, é a pretensão do homem de assumir que a linguagem detém capacidade
de fornecer a verdade sobre as coisas, de extrair delas a coisa em si, por isso, ele pergunta: “é a
linguagem a expressão adequada de todas as realidades?”484. Para responder a essa inquietação,

481
Flávio R. Kothe, Nietzsche, Marx, Freud, p. 13 – acrescentamos e suprimimos.
482
WL/SVM, 1 (1983).
483
Scarlett Marton, Nietzsche e o problema da linguagem: a crítica enquanto criação, p. 17.
484
WL/SVM, 1 (1983).
93

é indispensável, primeiro, fazer uma breve genealogia da linguagem485, com a finalidade de


mostrarmos a procedência da linguagem e as modificações de seu uso e utilidade ao longo da
história, visando entender essa corrupção metafísica que, sobretudo, a filosofia lhe impôs.
É sabido que “a associação da linguagem à consciência é obrigatória”486, portanto,
primeiramente, precisamos entender como se deu a origem da consciência, para, só então,
entendermos de onde procede essa associação entre linguagem e verdade.
No aforismo 354 da Gaia Ciência, de forma genealógica, Nietzsche aponta
precisamente o problema da consciência ao colocar que: “o problema da consciência (ou mais
precisamente, do tornar-se consciente) só nos aparece quando começamos a entender em que
medida poderíamos passar sem ela”487. Nesta passagem textual, Nietzsche adentra a questão
questionando, como é de seu feitio, o valor, a utilidade e a importância da consciência à vida
do homem. Em um outro texto, embora ele não maneje o termo consciência, porém intelecto,
ele ressalta que este “foi concedido apenas como meio auxiliar aos mais infelizes, delicados e
perecíveis dos seres, para firmá-los um minuto na existência, da qual sem essa concessão, eles
teriam toda razão para fugir”488. Desta forma, o filósofo-genealógico entende o intelecto
enquanto algo concedido ou desenvolvido no animal homem por meio da pressão do meio, já
que, diferentemente de outros animais, o homem não apresenta em si características ou
habilidades que possam colocá-lo em pé de igualdade com os demais animais.
Através desse entendimento do intelecto, alguém poderia ousar responder a indagação
de Nietzsche sobre a necessidade de tornar-se consciente, uma vez que tanto o intelecto quanto
a consciência parecem ser concessões do meio unicamente à sobrevivência (Die Überleben) do
bicho homem. Todavia, segundo o filósofo, “nós poderíamos pensar, sentir, querer, recordar,
poderíamos igualmente ‘agir’ em todo sentido da palavra: e, não obstante, nada disso precisaria
nos ‘entrar na consciência’”489. Afinal, “para que, então, consciência, quando no essencial é
supérflua?”490. Se o animal homem não precisa da consciência para realizar as atividades
listadas, há tão somente uma utilidade relacionada “à capacidade de comunicação de uma
pessoa (ou animal), e a capacidade de comunicação, por sua vez, à necessidade de
comunicação”491. As duas ênfases acrescentadas pelo autor não foram colocadas ao acaso,

485
Essa genealogia da linguagem, que será posta nessa seção, já foi e será evocada como instrumento textual capaz
de subsidiar certas passagens, dada a importância que ela demanda para certos pontos da filosofia de Nietzsche,
que, reflexivamente, elegemos para compor o manifesto escrito
486
Leon Kossovitch, Signos e poderes em Nietzsche, p. 54.
487
FW/GC, 354.
488
WL/SVM, 1 (1983).
489
FW/GC, 354.
490
FW/GC, 354.
491
FW/GC, 354.
94

porque ambas são muito importantes nessa genealogia. Na transcrição, a função ou utilidade da
consciência está ligada à capacidade de se comunicar, ou seja, o homem para comunicar algo,
através de sinais ou palavras, deve estar ciente de algo para só então comunicar. É claro que
esse estar consciente (bewusst-sein) de algo para comunicá-lo não exaure o caráter supérfluo
da consciência, visto que existem comunicações inconscientes e averbais, dado que o corpo,
por meio de movimentos, expressões, gestos e afins pode, consciente e inconscientemente,
comunicar algo que não necessariamente decorre do uso de símbolos ou palavras.
A segunda ênfase, sobre a necessidade de comunicação, oferece subsídios que nos
levam ao entendimento do porquê a linguagem consciente e simbólica ter sido tão apreciada na
história, porque, como visto na passagem sobre o intelecto, o homem na natureza, enquanto o
animal mais indefeso, passou a ter indulgências e isto, “por muito tempo, obrigou os homens a
se comunicarem, a compreenderem uns aos outros de forma rápida e sutil”492. Portanto, segundo
Nietzsche, a consciência, que permite ao homem tomar consciência do que deseja comunicar
ao outro, é, “na realidade, apenas uma rede de ligação entre pessoas – apenas como tal ela teve
que se desenvolver”493. Foi ela a responsável por transformar o animal homem em um ser capaz
de produzir, receber e transmitir símbolos e sinais. O uso da consciência e da linguagem, nesse
sentido, serve tão somente para conectar homens dentro de um contexto gregário, já que, visto
de outro ângulo, “um ser [forte,] solitário e predatório não necessitaria dela”494.
Após esse pequeno prelúdio sobre a consciência e a linguagem, faz-se importante
destacar que é no contexto gregário que a linguagem se desenvolve em palavras, uma vez que
o “inventor de signos nos é, ao mesmo tempo, o homem cada vez mais consciente de si; apenas
como animal social o homem aprendeu a tomar consciência de si – ele o faz ainda, ele o faz
cada vez mais”495. Portanto, ao tomar consciência de si mesmo e depois que o ambiente lhe
aprisionou nas comunidades, o homem começou a tecer suas palavras, visando, com isso, tornar
suas experiências comuns, pois só é viável comunicar o que é comum entre as pessoas.
Isso se deve ao fato de que,

Entre “dizer” e “ver”, estabelece-se uma cumplicidade. Atribuindo-se à


palavra um único sentido nela impresso desde sempre, considerando-a
unívoca, desprezam-se os sentidos possíveis que poderia comportar. Esse
modo de proceder já estaria presente na própria origem da linguagem. A partir
do momento em que os indivíduos mais fracos procuraram viver
gregariamente, surgiu a necessidade de fixar uma designação das coisas, cujo

492
FW/GC, 354.
493
FW/GC, 354.
494
FW/GC, 354 – acrescentamos.
495
FW/GC, 354.
95

uso fosse válido e obrigatório de maneira uniforme. Com isso, conferiu-se à


palavra uma fixidez que ela não possui.496

Dessa maneira, comunicar o que é comum somente é possível quando as experiências


dos homens se tornam comuns, idênticas, inautênticas e superficiais, ou seja, “para haver
comunicação não basta nomear experiências de um indivíduo, mas devem ser nomeadas as
experiências que são comuns a várias pessoas”497. Embora essa transcrição textual não traga
em suas linhas uma certa ideia, é-nos evidente que o que foi colocado responde a uma pergunta
feita pelo próprio Nietzsche no Além do bem e do mal, onde ele coloca: “o que é, afinal, a
vulgaridade?”498. Como apontado na passagem, esse tornar-se comum deriva da necessidade de
tornar as experiências compreensíveis no coletivo social, para que seja possível a comunicação.
Essa ideia, do tornar experiências comuns entre os homens, é posta pelo filósofo como um dos
requisitos à vida comunitária e quiçá a mais importante, porque não basta que haja palavras
para a comunicação de experiências, “é preciso utilizar as mesmas palavras para a mesma
espécie de vivências interiores, é preciso, enfim, ter a experiência em comum com o outro” 499.
Quando esse comum é estabelecido, há o requisito fundamental para a criação da sociedade,
pois “quando as pessoas viveram juntas por muito tempo, em condições semelhantes (clima,
solo, perigos, necessidade, trabalho), nasce algo que ‘se entende’, um povo”500.
À vista disso, Nietzsche aponta uma dupla tipologia das experiências humanas: as
experiências semelhantes que proporcionam esse tornar comum e as experiências mais raras
que “não ganham o direito de cidadania no campo da linguagem”501, porque são autênticas,
únicas e de difícil compreensão, já que não participam do que é comum ou vulgar. Portanto,
“são as ‘vivências medianas e vulgares’ que, de forma privilegiada, se convertem em
linguagem”502. Já afirmamos anteriormente que, em sociedade, não há espaço para
autenticidades, assim sendo, “os homens mais semelhantes, mas costumeiros, sempre estarão
em vantagem; os mais seletos, mais sutis, mas raros, mais difíceis de compreender, esses ficam
facilmente sós, em seu isolamento sucumbem aos reveses, e dificilmente se propagam”503. À
vista disso, podemos entender o porquê de a linguagem não poder expressar tudo aquilo que
seria singular e autenticamente único, uma vez que a comunicação fornece a “evolução do

496
Scarlett Marton, Nietzsche e o problema da linguagem: a crítica enquanto criação, p. 19.
497
A. E. Paschoal, A dinâmica da vontade de poder como proposição moral dos escritos de Nietzsche, p. 29.
498
JGB/ABM, 268.
499
JGB/ABM, 268.
500
JGB/ABM, 268.
501
A. E. Paschoal, A dinâmica da vontade de poder como proposição moral dos escritos de Nietzsche, p. 29.
502
A. E. Paschoal, A dinâmica da vontade de poder como proposição moral dos escritos de Nietzsche, p. 29.
503
JGB/ABM, 268.
96

homem rumo ao semelhante, costumeiro, mediano, gregário – rumo ao vulgar!”504. Portanto,


como a comunicação é uma necessidade da vida gregária, baseada neste tornar comum, ela
acaba se tornando uma forma de vulgarização de rebanho, quer dizer: o processo de construção
de um indivíduo forte, legislador de si e criador de valores se perdeu quando a linguagem, a
sociedade e a moralidade criaram o oposto, ou seja, um homem totalmente dependente, cativo
da moralidade e fraco, porque este tipo de homem, em vez de afirmar-se pela sua autenticidade,
afirma-se pela igualdade, por meio daquilo que é semelhante e médio em si e num outro-eu.
Após esse discernimento da linguagem, faz-se importante voltar ao propósito desta
seção, isto é, em mostrar a corrupção metafísica gerada pela tradição filosófica. Assim como
mostrado nesta seção e na seção “Mundos?”, a linguagem não pode expressar uma verdade
sobre o mundo ou quiçá de um outro mundo, visto que as palavras, que constituem o edifício
gramatical de qualquer linguagem e civilização, não são nada mais do que construções humanas
e que têm, como única função, a ação de conectar indivíduos dentro de um coletivo social.
Tampouco o intelecto, já que ele é tão somente “algo útil, uma ‘ferramenta’ utilizada com
propósito simples de facilitar a vida”505, garantido fins práticos à sobrevivência do homem.
Dessa maneira, quando o homem se utiliza do intelecto, “isso não significa que ele apreenda
qualquer conhecimento (Erkenntnis), muito menos, qualquer ‘conhecimento em si’, mas apenas
que faz abstrações, simplificações e reduções, sempre com fins práticos”506 à vida.
Nesse sentido, é necessário incorporar o fato de que

as regras gramaticais são [apenas] ilusões necessárias [e úteis] para a


existência e crescimento de uma civilização, [evidentemente] é preciso que
[elas] sejam creditadas como verdade para que desempenhem este [único]
papel, mas tais regras [e a linguagem] não permitem [captar] o conhecimento
da verdade tal qual a filosofia sempre procurou, elas apenas definem o que
deve valer por verdade [na sociedade], o que deve ser acreditado como tal.507

Incorporado isso, é-nos lícito, portanto, afirmar que um dos maiores erros do homem
foi sua presunção de metafisicar a linguagem, visando, por meio dela e do intelecto, procurar
ídolos no além e, sobretudo, negar e falsificar o aqui, pois “a intenção era enganar-se de maneira
útil: os meios para isso, a invenção de formas e signos, como auxílio dos quais a desconcertante
multiplicidade [do mundo] seria reduzida a um esquema finalístico e manipulável” 508, ou seja,

504
JGB/ABM, 268.
505
A. E. Paschoal, A dinâmica da vontade de poder como proposição moral dos escritos de Nietzsche, p. 29.
506
A. E. Paschoal, A dinâmica da vontade de poder como proposição moral dos escritos de Nietzsche, p. 29.
507
Gustavo Arantes Camargo, Nietzsche: por uma ética trágica, p. 31 – acrescentamos.
508
NF/FP de 1888, 14[153], in: FF, p. 61 – acrescentamos.
97

o homem nada mais fez do que, por meio da linguagem, tentar aprisionar o vir-a-ser, a mudança
e a fluidez do mundo em signos, a fim de manipulá-los de uma maneira útil a sua sobrevivência
no gregarismo. Portanto, “veja-se então: agora o mundo é que se tornou falso, e exatamente por
causa das propriedades que constituem a sua realidade: mudança, multiplicidade, antítese,
contradição, guerra”509. Se antes havia um mundo inocente para vim a ser constantemente, com
o advento e aprimoramento da linguagem consciente e simbólica, o mundo tornou-se, em todas
as suas dimensões, algo de espécie conceitual, manipulável e, sobretudo, fixo.
Isso deve-se ao fato de que o homem esquece que foi ele mesmo quem criou seu arranha-
céu gramatical e, por esquecimento, acredita que suas palavras e seus conceitos são eternos,
isto é, eles não foram criados ou modificados no curso da história. Para ele, as coisas sempre
tiveram uma designação simbólica que tornou possível sua representação mental. Portanto, “o
ser humano esquece justamente que põe um mundo de palavras ao lado do mundo de entes
reais; e esquece sobretudo que esses dois mundos são irredutíveis”510. A “testemunha desse
esquecimento é o fato de acreditar nos nomes como aeternae veritatis, de crer que a linguagem
lhe permita elevar-se acima do animal e atingir um conhecimento verdadeiro do mundo”511.
***
Na próxima seção, nos dedicaremos em mostrar como o desenvolvimento da
memória512 se tornou uma ferramenta necessária ao controle do homem e de sua transformação
em um ser cívico e obediente. A partir desses deste fator entenderemos como surgiu a base da
sociedade e como foi gerada a decadência do homem no contexto gregário, isto é, o que levou
o homem a interiorizar seus impulsos e desejos naturais em troca da coexistência entre seus
semelhantes. O objetivo da seção é mostrar que existe uma divisão no homem: por um lado,
sua natureza reprimida e aprisionada e, por outro, a repressão social, moral e religiosa. Essa
divisão oportuna a compreensão da procedência da doença do homem, bem como a
compreensão de um possível processo de tratamento ou, quem sabe, de cura, na medida em que
esse tratamento, ao contrário do ascetismo, não fornecerá uma negação da vida ou um desejo
pelo nada em algum além, mas a criação de valores que afirmam a vida a partir da vida.

Tem boa memória?

509
NF/FP de 1888, 14[153], in: FF, p. 61.
510
Scarlett Marton, Nietzsche e o problema da linguagem: a crítica enquanto criação, p. 26.
511
Scarlett Marton, Nietzsche e o problema da linguagem: a crítica enquanto criação, p. 26.
512
Na seção “É homem ou animal?”, abordamos a função do castigo no controle dos impulsos do homem. Porém,
nessa seção, mostraremos como o castigo é utilizado no desenvolvimento da memória. Vale ressaltar que o castigo
possui múltiplas utilidade (cfr. GM/GM, II, 13), por isso é necessário um maior aprofundamento de sua função.
98

A memória importa não tanto pelo conhecimento que traz, mas pela ação que ela governa.
O seu custo é a dor. Foi preciso torturar para produzi-la.

Renato Janine, Apresentação a Norbert Elias, in: O processo Civilizador vol. 1

Para entender a doença do homem, é significativo começar com a investigação da


memória, pois, para iniciar suas investigações sobre o sentimento de culpa, má consciência e
coisas afins, Nietzsche parte de duas questões, a saber: “criar um animal que pode fazer
promessas – não é esta a tarefa paradoxal que a natureza se impôs, com relação ao homem?
Não é este o verdadeiro problema do homem?”513. O ato de fazer promessas requer dois
aspectos: consciência e memória514. A consciência, como já enfatizado, é um órgão humano
que mais tarde foi concedido e aperfeiçoado devido à necessidade de comunicação. No entanto,
necessitamos examinar a faculdade da memória, já que, juntamente com a consciência, ela
marca “o limiar inaugural do processo de hominização”515. O animal homem, neste processo,
precisou controlar seus impulsos para se adequar ao contexto sócio-moral que foi inserido.
Nenhum outro animal da natureza se propôs a desnaturar-se no mesmo nível e
expressividade que o animal homem. Porém, ele precisava ser melhorado e ter seus impulsos
domados, para que pudesse viver entre seus semelhantes. Por esse motivo, não a natureza, mas
a sociedade precisava cultuar um ser qualificado para prometer e lembrar suas promessas, para
que, além das obrigações, fosse incorporada uma certa confiança nele, o que garantiria que esse
animal pudesse ser espontaneamente controlável, isto significa dizer que a mnemotécnica516 foi
indispensável para “arrancar o [bicho] homem da prisão do instante e do esquecimento[, típico
dos animais], tornando possível o prever, o calcular, o antecipar uma representação que insere
o agir efetivo como efeito na cadeia da vontade, como seu resultado futuro”517. De acordo com
Nietzsche, essa finalidade, a de transformar o animal homem em um ser habilitado para
prometer e lembrar, “traz consigo, como condição e preparação, a tarefa mais imediata de tornar
o homem até certo ponto necessário, uniforme, igual entre iguais, constante e, portanto,
confiável”518. Portanto, era imperativo que o homem absorvesse, em seu aparato fisio-psíquico,

513
GM/GM, II, 1.
514
Cfr. MAI/HDH I, 59.
515
Oswaldo Giacoia Jr., Nietzsche como psicólogo, p. 106.
516
Mnemotécnica ou mnemônica, segundo Nicola Abbagnano (Dicionário de filosofia, p. 675), trata-se da “arte
de cultivar a memória”. Contudo, segundo Oswaldo Giacoia Jr. (Nietzsche como psicólogo, p. 110), o uso da
mnemotécnica sui generis é o meio pela qual “se desenvolve a própria faculdade da memória e não meramente
uma técnica para inserir preceitos particulares numa memória já desenvolvida”. Dessa maneira, a mnemotécnica
associada à punição, como será evidenciado, possibilita com que o homem se separe de sua faculdade de
esquecimento, sendo forçado a lembrar constantemente suas responsabilidades perante seu credor, a sociedade.
517
Oswaldo Giacoia Jr., Nietzsche como psicólogo, p. 107 – acrescentamos.
518
GM/GM, II, 2.
99

aquilo que Nietzsche designa por moralidade do costume, isto é, o animal homem teve que
mover, para dentro de seu mundo interior, o éthos e a cultura criados na sociedade. Estes,
segundo Nietzsche, são, por assim dizer, uma “camiseta de força social”519, isto é, a moralidade
do costume é a protagonista no processo de interiorização do homem, na medida em que veta
a manifestação dos impulsos animais do homem dentro da sociedade.
No entanto, como registrar no homem todo o manancial de regras, costumes, padrões
de comportamento, valores, crenças e tudo o que é culturalmente criado em uma sociedade?
Ou: nos termos de Nietzsche:

“Como fazer no bicho-homem uma memória? Como gravar algo indelével


nessa inteligência voltada para o instante, meio obtusa, meio leviana, nessa
encarnação do esquecimento?”... Esse antiquíssimo problema, pode-se
imaginar, não foi resolvido exatamente com meios e respostas suaves; talvez
nada exista de mais terrível e inquietante na pré-história do homem do que a
sua mnemotécnica. “Grava-se algo a fogo, para que fique na memória: apenas
o que não cessa de causar dor fica na memória” — eis um axioma da mais
antiga (e infelizmente mais duradoura) psicologia da terra.520

Aparentemente, “o problema do homem identifica-se com a criação de uma memória, a


contracorrente da poderosa força do esquecimento”521. A memória parece ser indispensável ao
imaginar a constituição de uma sociedade, porque o que seria um povo sem a memória de sua
cultura, história, regras, processo de organização, concepções etc.? No entanto, ao mesmo
tempo em que existe um certo prestígio na memória, vistos sob outro ângulo, existem aspectos
prejudiciais, por exemplo, se, como já considerado, não há verdades, portanto, o que foi
incorporado ao homem não corresponderia meramente às perspectivas humanas?522 E que,
através delas, o homem sofre por não ser capaz de deslembrá-las, digeri-las, excretá-las ou, até
mesmo, reinventá-las, já que a interiorização e o processo de desenvolvimento da memória
tornaram possível registrar essas perspectivas a fogo para não serem esquecidas. Isso resultou
na convicção de que tudo que se encontra na memória seria de fato verdadeiro, porque o homem
não encontra a oportunidade de esquecer ou suspeitar que tais memórias vieram de fora para
dentro e não o contrário, como se ele pudesse transportar, desde o nascimento, os valores,
costumes e ideias inatas em sua memória, por exemplo, a ideia de Deus ou os valores de certo

519
Cfr. GM/GM, II, 2.
520
GM/GM, III, 3.
521
Oswaldo Giacoia Jr., Nietzsche como psicólogo, p. 107.
522
Sobre isso, Nietzsche nos diz: “Gradualmente o cérebro humano foi preenchido por tais juízos e convicções, e
nesse novelo produziu-se fermentação, luta e ânsia de poder”, agora, a nossa questão é saber: “Até que ponto a
verdade suporta ser incorporada? – eis a questão, eis o experimento” (FW/GC, 110).
100

e errado. No entanto, neste ponto, pode-se entender que, se o conhecimento é criação humana,
ele pode ser ensinado ou passado, mas não pode surgir em uma perspectiva atávica.
Nesse sentido, não há nada de inato na memória, nenhum valor bom ou mau, certo ou
errado se escreve inatamente no homem, pois o que está inserido na memória ou no espírito do
homem vem de sua relação com o mundo, com seus impulsos. Por esta razão, Nietzsche, como
já posto, “ousou perguntar sobre o valor dos valores, já que os mesmo[s] não são dados. [...] Os
valores não surgem do nada [...] os valores têm uma procedência, uma história. Não são divinos.
Tampouco são eternos e universais”523. Não obstante, se é realmente necessário que o homem
tenha uma memória para que os valores sejam armazenados nele/a, Nietzsche portanto buscará
“esclarecer como nasceu esta memória e como ela se tornou imprescindível e indispensável
para prometer, para dar a palavra e, através de marcas indeléveis impingidas no corpo, para
ativar essa memória que deve responder às normas morais”524 e aos costumes sociais.
Para Nietzsche, a memória parece ter origem em “relações contratuais” 525, isto é, na
relação entre um indivíduo que exige ganhar confiança na palavra do outro. Nietzsche, para
caracterizar esse relacionamento, partiu da relação entre credor e devedor, onde

O devedor, para infundir confiança em sua promessa de restituição, para


garantir a seriedade e a santidade de sua promessa, para reforçar na
consciência a restituição como dever e obrigação, por meio de um contrato
empenha ao credor, para o caso de não pagar, algo que ainda “possua”, sobre
o qual ainda tenha poder, como seu corpo, sua mulher, sua liberdade ou
mesmo sua vida (ou, em certas circunstâncias religiosas, sua bem-
aventurança, a salvação de sua alma, e por fim até a paz no túmulo.526

A memória, alegoricamente, seria nesse relacionamento um contrato não textual ou


simbólico, mas que em nenhum momento viria a ser apagado, o que a consolida como o mais
confiável dos contratos. Além disso, na continuação da transcrição acima, Nietzsche fala de
uma certa prática da civilização egípcia, “onde o cadáver do devedor nem sequer no túmulo
encontrava sossego diante do credor”527, pois, como o compromisso do contrato não terminaria
com a morte do devedor, ele permaneceria intacto e com a mesma confiança inicialmente
depositada, pois, a dívida, mesmo após a morte do devedor, ainda haveria de ser paga.
No Egito, quando alguém faltava ao compromisso de uma dívida em vida, o credor

523
Daniel de A. Berbare, A filosofia do Espírito Livre em Nietzsche: tensões, rupturas e inovações, p. 11-12 –
acrescentamos e suprimimos.
524
Nelson José Batista da Silva, Memória, esquecimento e criação em Nietzsche, p. 10.
525
GM/GM, II, 5.
526
GM/GM, II, 5.
527
GM/GM, II, 5.
101

poderia, do corpo do devedor, “cortar tanto quanto parecesse proporcional ao tamanho da


dívida”528, e, ainda, podia “infligir ao corpo do devedor toda sorte de humilhações e torturas”529.
Ainda que o devedor não venha realmente a sofrer nenhuma dor física, a cultura, ao registrar
essa prática na memória dos homens, fez com que as dívidas passassem a ter uma dimensão de
maior importância, como quisesse dizer: ó homem, não esqueças tuas dívidas! Caso contrário...
Para Nietzsche, “desse valiosíssimo legado de uma obrigação subsequente, a consciência de
uma obrigação, [surge] o dever de uma retribuição equivalente”530. Nesse sentido, a aplicação
da pena ao devedor após a sua morte não tinha por objetivo prejudicar o devedor, mas apaziguar
o credor pelo infortúnio que sofreu, como evidenciado na seguinte transcrição:

Durante o mais largo período da história humana, não se castigou porque se


responsabilizava o delinquente por seu ato, ou seja, não pelo pressuposto de
que apenas o culpado devia ser castigado — e sim como ainda hoje os pais
castigam seus filhos, por raiva devida a um dano sofrido, raiva que se desafoga
em quem o causou; mas mantida em certos limites, e modificada pela ideia de
que qualquer dano encontra seu equivalente e pode ser realmente compensado,
mesmo que seja com a dor do seu causador.531

Portanto, fez-se necessário judicializar o hábito de punir e infligir dor, dadas as possíveis
dimensões que poderiam desencadear em uma sociedade sem jurisprudência sobre tais práticas.
Portanto, “bem cedo e em toda parte houve avaliações precisas, terríveis em suas minúcias,
avaliações legais de membros e partes do corpo”532. Essas avaliações legais são melhores
observadas e percebidas na antiga prática do direito romano, onde

O devedor, no passado, respondia com seu corpo e sua vida. No antigo Direito
Romano, havia a legis actio per manus iniectionem. Eis a situação: uma
pessoa era condenada a pagar uma indenização à outra. Ela tinha 30 dias para
efetuar o pagamento. Se não honrasse a dívida, o credor poderia conduzir o
devedor a juízo. Se o réu não pagasse em 60 dias, o credor poderia ir à casa
do devedor, amarrá-lo e vendê-lo como escravo. O credor tinha poder, até
mesmo, de matá-lo. Se fossem muitos os credores, o corpo do devedor era
dividido entre eles. A perna para um, o braço para outro e a cabeça ao maior
dos credores.533

Esse procedimento judicial foi projetado para, além de gerar a confiança necessária nas
relações contratuais, permitir que os danos sofridos por um determinado credor acabem sendo

528
GM/GM, II, 5.
529
GM/GM, II, 5.
530
Oswaldo Giacoia Jr., Nietzsche como psicólogo, p. 118 – acrescentamos.
531
GM/GM, II, 5.
532
GM/GM, II, 5.
533
José Roberto de Castro Neves, As Garantias do Cumprimento da Obrigação, p. 177.
102

compensados com algo que é considerado equivalente ao dano sofrido. Em vista disso,
Nietzsche demonstrou que a legalização do valor do corpo era essencial, porque “o corpo do
devedor serve de garantia e, sobretudo, serve de base que dá solidez à palavra, garantia de
promessa”534, pois a “equivalência está em substituir uma vantagem diretamente relacionada ao
dano (uma compensação em dinheiro, terra, bens de algum tipo) por uma espécie de satisfação
íntima”535, ou seja, ser capaz ultrajar outros, gerando certa

satisfação de quem pode livremente descarregar seu poder sobre um


impotente, a volúpia de “faire le mal plaisir de le faire” [fazer o mal pelo prazer
de fazê-lo]536, o prazer de ultrajar: tanto mais estimado quanto mais baixa for a
posição do credor na ordem social.537

Diante dessa afirmação, sobre a satisfação íntima que o homem apresenta em causar
sofrimento em outro, Nietzsche demonstrou que a terra, para quem tem certa delicadeza nas
narinas, extenua um certo eflúvio de sangue538, porque a terra, durante a história humana, foi
maculada por esse fluido corporal, dado que “o início de tudo grande na terra, foi largamente
banhado de sangue”539, exemplos disso não faltam na história do homem, porque, em tese, se
“pudéssemos lançar nosso olhar para trás e pudéssemos ver na história a trajetória das práticas
de torturas e castigos, constataríamos a presença de ações violentas e cruéis cujo objetivo era
tornar o homem um animal de promessas”540 e, por conseguinte, de boa memória.
Esta questão se relaciona com a prática da crueldade, que “constituía o grande prazer
festivo da humanidade antiga, como era um ingrediente de quase toda as suas alegrias”541. Sobre
isso e para tornar visível essa prática de crueldade, Nietzsche lembra-nos o seguinte:

não faz muito tempo que não se podia conceber casamentos de príncipes e
grandes festas públicas sem execuções, suplícios ou talvez auto de fé, nem
tampouco uma casa nobre sem personagens [p. ex.: bobos da corte] nos quais
se pudesse dar livre vazão à maldade e à zombaria cruel.542

Em vista disso, também é importante acrescentar outra consideração de Nietzsche, na


qual ele ressalta que “deve ser expressamente notado que naquela época, quando a humanidade

534
Diany Mary Falcão Alves, Nietzsche e a domesticação do animal homem, p. 17,
535
GM/GM, II, 5.
536
Cfr. GM/GM, Nota do Tradutor nº 06 da segunda dissertação, p. 146.
537
GM/GM, II, 5.
538
Cfr. GM/GM, II, 6.
539
GM/GM, II, 6.
540
Nelson José Batista da Silva, Memória, esquecimento e criação em Nietzsche, p. 18.
541
GM/GM, II, 6.
542
GM/GM, II, 6 – acrescentamos.
103

não se envergonhava ainda de sua crueldade543, a vida na terra era mais contente do que agora,
que existem pessimistas”544. Qual seria o motivo dessa mudança, se não o desenvolvimento da
“sensibilidade humana à dor”545 e, consequentemente, o desenvolvimento de uma moralidade
que impede a manifestação de um impulso de crueldade? O homem cívico desenvolveu uma
sensibilidade à dor, por isso a medicina e o aparato legal da sociedade se desenvolveram em
proporções viscerais, pois eles são, sem desconsiderar as práticas das religiões ascéticas, os
mecanismos inventados pelos homens para controlar e evitar as dores da existência.
Todavia, sobre o impulso de crueldade, diz Nietzsche: “talvez possamos admitir a
possibilidade de que o prazer na crueldade não esteja realmente extinto”546, mas “transposto
para o plano imaginativo e psíquico, e ornado de nomes tão inofensivos que não despertassem
suspeita nem mesmo na delicada e hipócrita consciência”547. Aliás, pode-se dizer que o Estado,
percebendo que a crueldade era importante, pois faz parte do homem, transformou a crueldade
em sanções legais, ou melhor: houve uma terceirização da crueldade, dada a importância e a
utilidade da dor no processo de domesticação, onde o medo da dor é uma excelente ferramenta
de controle dos impulsos do homem. Consequentemente, a crueldade não poderia ser
simplesmente ignorada, mas ser infligida, para aflorar a memória no homem, já que só

por meio do emprego de meios bárbaros e sangrentos – pela mobilização da


agressividade e da violência, especialmente aquela ritualizada em práticas
culturais religiosas e procedimentos penais, como sacrifícios e os castigos –
tornou-se possível fixar na memória incipiente de uma tosca semi-humanidade
os primeiros lineamentos e da obrigação, isto é, as formas mais elementares
de vínculo, de responsabilidade e, portanto, de sociabilidade.548

Por exemplo, como evidenciado anteriormente, durante a execução de sentenças contra


hereges, no decorrer do período inquisitório, as penas eram realizadas em praças e locais de
acesso ao público em geral, preferencialmente antes de qualquer evento comemorativo ou
festivo, de modo que um grande número de pessoas pudessem deliciarem-se com a dor infligida,
porque, “sem crueldade não há festa: é o que ensina a mais antiga e mais longa história do
homem – e no castigo também há muito de festivo”549, e para que aqueles presentes fossem
educados a não repetir a mesma ação que resultaria naquele castigo infligido. Logo, as sentenças

543
Aquela época anterior ao Estado.
544
GM/GM, II, 7.
545
GM/GM, II, 7.
546
GM/GM, II, 7.
547
GM/GM, II, 7.
548
Oswaldo Giacoia Jr., Nietzsche como psicólogo, p. 114.
549
GM/GM, II, 5.
104

e as penas da inquisição são as práticas mais viscerais de tortura humana, já que seus objetivos
tinham um status educacional550. Deste modo, se pode dizer que quando

Vive-se numa comunidade, desfruta-se as vantagens de uma comunidade [...],


vive-se protegido, cuidado, em paz e confiança, sem se preocupar com certos
abusos e hostilidades a que está exposto o homem de fora, o “sem-paz” [...],
desde que precisamente em vista desses abusos e hostilidades o indivíduo se
empenhou e se comprometeu com a comunidade. Que sucederá no caso
contrário? A comunidade, o credor traído, exigirá pagamento, pode-se ter
certeza. O dano imediato é o que menos importa no caso: ainda sem considerar
esse dano, o criminoso é sobretudo um “infrator”, alguém que quebrou a
palavra e o contrato com o todo, no tocante aos benefícios e comodidades da
vida em comum, dos quais até então ele participava. [...] A ira [ou: vingança,
crueldade] do credor prejudicado, a comunidade, o devolve ao estado
selvagem e fora da lei do qual ele foi até então protegido: afasta-o de si – toda
espécie de hostilidade poderá então se abater sobre ele.551

Nesse sentido, a sociedade, criação humana, adquire características humanas. Quando


ela se tornou credora da paz, segurança e conforto do homem, ela monopolizou o impulso de
vingança, e, segundo Nietzsche, “não é inconcebível uma sociedade com tal consciência de
poder”552, isto é, a sociedade está ciente de que tem o poder de fazer as pessoas sofrerem, daí
surge “nitidamente a evolução posterior do direito penal”553, o que lhe permitiu infligir
legalmente dor, punição e sanções aos seus devedores, aqueles que desfrutam de seus bens e
serviços. Portanto, “os procedimentos do direito penal constituem [...] um poderoso aliado na
tarefa de manter presente, na memória, as exigências mais elementares do vínculo
obrigacional”554, quer dizer: as práticas penais servem “para domesticar corpos, amansar e
docilizar homens espontâneos e impulsivos para que acatem normas reguladoras”555 e para que
estes mesmos homens obedeçam às ordens sociais e não mais seus impulsos naturais.
Nesse sentido, a sociedade tende a “sacralizar a vingança sob o nome de justiça”556,
contudo, que razão levaria o homem a tolerar a justiça e a vingança da sociedade? Já deve ter
ficado claro que “na origem da vida em coletividade, estariam os indivíduos que, não sendo

550
Nietzsche, ao listar as utilidades do castigo, declara o seguinte: “castigo como criação de memória, seja para
aquele que sofre o castigo – a chamada ‘correção’ –, seja para aqueles que o testemunham” (GM/GM, II, 13).
Portanto, o castigo tem caráter educativo, tanto para quem é punido quanto para quem testemunha a execução da
punição, pois ele gera uma memória da dor que será registrada e servirá como instrumento de educação moral.
551
GM/GM, II, 9 – acrescentamos e suprimimos.
552
GM/GM, II, 10.
553
GM/GM, II, 10.
554
Oswaldo Giacoia Jr., Nietzsche como psicólogo, p. 111.
555
Nelson José Batista da Silva, Memória, esquecimento e criação em Nietzsche, p. 20. Conferir também o
parágrafo 13 da segunda dissertação da Genealogia, no qual Nietzsche oferece uma lista, embora incompleta,
como ele mesmo afirma, das funções do castigo.
556
GM/GM, II, 11.
105

fortes o bastante para viver, tentaram simplesmente conservar-se557 e atribuindo ao instinto de


conservação importância maior que à vida”558, logo, esses homens passaram a valorizar e
precisar de proteção e serviços da sociedade, “mas submeter-se ao grupo social talvez não passe
de engodo”559, porque, uma vez submetido, o homem se sujeita a vontade da sociedade, quer
dizer: o homem perde seu lugar de criador da sociedade para ser dela seu dependente. A
sociedade, por sua vez, “espera que o indivíduo tenha ocupação permanente, caráter invariável,
opiniões constantes; quer que se torne um animal ‘previsível, constante, necessário’, pois só
assim pode estar certa de dispor dele a qualquer momento”560. Desse modo, estar na sociedade
requer uma memória, uma espécie de contrato, que repreenda as externalizações pulsionais do
ser humano, com a intenção de torná-lo um ser cívico, moral e social, e, se essa memória for
danificada, o homem será punido, seja na forma da lei ou por outros meios.
Assim, a punição cria uma memória que serve para acostumar o homem à obediência e
que possibilita com que as formas de ser e de estar na sociedade, isto é, costumes morais, se
tornam “tradicionais, elas acabam consolidadas, não admitindo dúvidas nem tolerando
questionamentos; têm de ser respeitadas de forma absoluta”561. No caso de surgir indivíduos
subversivos, melhor, homens maus562, aqueles que não se submetem ou seguem os preceitos
morais, eles devem ser punidos severamente, seja por meio da marginalização social, reclusão
em penitenciárias, sanções sociais e afins, ou atribuindo ao subversivo uma certa má reputação,
para que ele não possa obter emprego ou oportunidades da sociedade, pois tais benefícios
seriam destinados tão somente ao “homem [bom563 e] de [boa] reputação [que] seria quem
[possuísse] residência fixa, trabalho estável, caráter intransigente, opiniões inalteráveis, ou seja,
o cidadão útil”564, pois, o cidadão bom “é denominado bom porque é bom ‘para algo’”565. Para
esses homens respeitáveis, Nietzsche diria: “por um bom renome costuma-se pagar demais: ou
seja, a si mesmo”566. Portanto, embora a sociedade afirme que o homem tem liberdade, a velha

557
Portanto, é para esse indivíduo fraco que “o Estado dá proteção [...], o qual não pode proteger a si mesmo diante
do malfeitor: por isso, penas são, em primeiro lugar, medidas de segurança, até mesmo na medida em que
intimidam. Ele [o Estado] não quer que a gente se defenda – ele não teme a vingança, porém a consciência
soberana!” (NF/FP de 1883, [7]55, in: FE, p. 215 – acrescentamos e suprimimos).
558
Scarlett Marton, Nietzsche: a transvaloração dos valores, p. 57-58.
559
Scarlett Marton, Nietzsche: a transvaloração dos valores, p. 58.
560
Scarlett Marton, Nietzsche: a transvaloração dos valores, p. 58-59.
561
Scarlett Marton, Nietzsche: a transvaloração dos valores, p. 58.
562
“Mau é ser ‘não moral’ (imoral), praticar o mau costume, ofender a tradição, seja ela racional ou estúpida;
especialmente prejudicar o próximo foi visto nas leis morais das diferentes épocas como nocivo, de modo que hoje
a palavra ‘mau’ nos faz pensar sobretudo no dano voluntário ao próximo” (MAI/HDH I, 96).
563
Esse homem bom, de boa reputação e útil, é o escravo, “aquele que, após longa hereditariedade e quase por
natureza, pratica facilmente e de bom grado o que é moral” (MAI/HDH I, 96).
564
Scarlett Marton, Nietzsche: a transvaloração dos valores, p. 58 – acrescentamos.
565
MAI/HDH I, 96.
566
NF/FP de 1882, 2[44], in: FE, p. 66. Cfr. JGB/ABM, 92.
106

questão moral do livre-arbítrio, quando ele não escolhe seguir as regras e costumes, isto é, “caso
faça mau uso da liberdade, [a sociedade] reserva-se o direito de puni-lo”567, e, “para atingir seus
objetivos, [ela] emprega diferentes meios: estímulos a respeitar a tradição, encoraja a preservar
hábitos, difunde o medo de desobedecer”568. Porém, sanções punitivas, embora eficientes para
malograr e docilizar, não pode eliminar os impulsos dos homens, mas apenas controlá-los.
Entretanto, isso ocasionou um erro, uma doença, porque se a sociedade é um dispositivo
composto por homens dóceis e controlados, ela nunca poderá existir sem mitigação,
inconveniência, crime ou ressentimento, ou seja, “o ideal de socialização absoluta [...] [tende a
fracassar] porque sempre sobrará algo de natureza em mim, algo de indivíduo em mim, oposto
aos desígnios da sociedade”569, e isto “que permanece de natureza em nós, o que permanece de
individualidade exclusiva, será sempre fonte de tensão na vida social”570. Nesse sentido, a
memória, embora eficiente o suficiente para transpor o animal homem ao plano social, não é
forte o suficiente para substituir por completo a forma natural do homem, por isso o homem
opera em momentos de oposição: “entre indivíduo e cidadão, entre natural e artificial”571. A
tensão, que surge entre estas oposições, traria como resultado a má consciência.
***
Dedicaremos a segunda parte desta seção à origem desta má consciência, visto que já
apresentamos elementos suficientes nesta e noutras seções que nos possibilitam compreender a
precedência dessa doença que, ao nosso ver, é a maior patologia de nossa modernidade.
***
Em sua análise sobre a moralidade, Nietzsche abordou a questão da origem da doença
do homem. Como observado anteriormente, onde se afirmou que os fracos desencadearam uma
espécie de revolta contra homens nobres, porque “o fraco só consegue afirmar-se negando
aquele a quem não se pode igualar”572, é possível, a partir desse confronto, chegar à razão do
adoecimento do homem, porque na sociedade um desses homens ganhou maior importância,
número e utilidade. O homem fraco é aquele que obteve proteção, tranquilidade em um rebanho
e compartilha do interesse de muitos573. Ele é um tipo muito comum de homem, capaz de se
encontrar em excesso na sociedade. É um indivíduo submisso, civilizado, feliz e trabalhador.

567
Scarlett Marton, Nietzsche: a transvaloração dos valores, p. 58 – acrescentamos.
568
Scarlett Marton, Nietzsche: a transvaloração dos valores, p. 59 – acrescentamos.
569
Carlos A. R. de Moura, Nietzsche: civilização e cultura, p. 65.
570
Carlos A. R. de Moura, Nietzsche: civilização e cultura, p. 65.
571
Carlos A. R. de Moura, Nietzsche: civilização e cultura, p. 65.
572
Scarlett Marton, Nietzsche: a transvaloração dos valores, p. 53.
573
Viver entre um rebanho proporciona uma vida fácil, com conforto, segurança e bem-estar social, por isso,
escreve Nietzsche: “queres ter uma vida fácil? Então vive sempre no rebanho e esquece de ti em favor do rebanho”
(NF/FP de 1882, 5[1], in: FE, p.183).
107

Ele conta com algumas preocupações, mas suas indulgências diárias são providas. Os demais,
os fortes ou os aristocráticos, vivem de si mesmos e “o fato de se saber senhor de si mesmo lhes
dava um sentimento de plenitude que os diferenciava dos demais”574. Eles não são homens
felizes como os plebeus, mas sim alegres diante de suas criações. Entregues em suas vontades
e impulsos, seus prováveis sofrimentos sempre foram bem-vistos, pois eles entendem que, sem
as dificuldades inerentes à vida, não há crescimento. Detidos na solitude de si mesmos, eles
souberam se estimar antes de estimar outros indivíduos. Eles governam porque são de uma casta
mais alta do que aqueles que precisam de pastores, aqueles que fazem parte de uma casta
sacerdotal e isso marca o phatos de distância dos nobres: enquanto alguns criam, comandam e
legislam por serem fortes, outros são comandados por serem fracos. No entanto, não se deve
pensar que esses homens nobres são produtos de uma idealização, pois a figura nobre,

em diferentes épocas históricas, supõe encontrá-la. O homem nobre a que


[Nietzsche] se refere não se reduz a mero conceito; em contextos muito
precisos, acredita deparar com ele. Julga que existiu nos séculos XVII e XVIII
com a nobreza francesa, no Renascimento com a comunidade aristocrática de
Veneza e sobretudo na Antiga Grécia com a aristocracia guerreira.575

A partir dessa distância entre nobres e escravos, Nietzsche entendeu que, na moral dos
fracos, habitam o ressentimento e a má consciência. Estes fatores são resultantes do processo
de decadência e decorrentes da restrição de impulsos imposta pela tríade religião-moral-
sociedade. Em vista disso, a “proposta de Nietzsche é clara, quer libertar os instintos do homem,
que por muito tempo permanecem aprisionados em Estados e religiões, e dar-lhe a liberdade de
se tornar o que se é, de ser senhor de sua própria vontade”576. É por isso que Nietzsche propõe
a superação do homem tal como ele está e de seus velhos valores como uma das tarefas mais
urgentes a ser desenvolvida pelo homem moderno, o homem órfão de Deus.
Esse homem do ressentimento e de moral escrava quer “transformar em força a própria
fraqueza. Transmuta-a em virtude, pretendendo ser deliberadamente fraco, e atribuindo o mérito
da renúncia, da paciência, da resignação”577. Assim, da negação ou, como diz Nietzsche, do
não à vida, impulsos, desejos e à Terra, esse homem de ressentimento acredita em pseudo-
ideais, como um mundo verdadeiro ou um céu, uma espécie de recompensa final por sua
renúncia vital, porque “‘a salvação vem dos judeus’ – disse o fundador do cristianismo (Ev.

574
Gustavo Arantes Camargo, Nietzsche: por uma ética trágica, p. 116.
575
Scarlett Marton, Nietzsche: a transvaloração dos valores, p. 56 – acrescentamos. Cfr. JGB/ABM, 262.
576
Gustavo Arantes Camargo, Nietzsche: por uma ética trágica, p. 114-115.
577
Scarlett Marton, Nietzsche: a transvaloração dos valores, p. 55.
108

Joh. 4,22). E nele se acreditou!!!”578. E, no auge da incongruência humana, como visto


anteriormente, se acredita na invenção de uma alma, Deus e verdades, isto é, em valores
forjados [ou: invertidos] em objeção à vida. É em vista do crédito oferecido a essas e outras
ideias que Nietzsche certificou que, “em suma, os ideais até agora vigentes, todos ideais hostis
à vida, difamadores do mundo, devem ser irmanados à má consciência”579.
Sobre o surgimento da má consciência, é importante apreciar a seguinte passagem da
Genealogia, na qual Nietzsche “já não [...] [pode] furtar a [tarefa de] oferecer [sua] primeira,
provisória [...] hipótese sobre a origem da ‘má consciência’”580. Nietzsche afirma que entende
“a má consciência como a profunda doença que o homem teve de contrair sob a pressão da mais
radical das mudanças que viveu – a mudança que sobreveio quando ele se viu definitivamente
encerrado no âmbito da sociedade e da paz”581. Nietzsche, nessa passagem, oferece suas
suspeitas sobre a procedência da má consciência: ela é uma forte doença que o homem contraiu
como resultado do estabelecimento de sua vida no gregarismo, isto é, na esfera da sociedade e
da paz. Por meio da interiorização dos costumes e valores, forjados para sistematizar e
organizar a sociedade, o bicho homem tornou-se um animal frágil, rancoroso, malogrado e
vingativo, porque ele não pode mais dar vazão às forças que o compõem, por estar preso em
leis, regras e princípios que agem contra ele, pois, durante muito tempo, ele foi disciplinado e
acostumado, através de ideias, princípios e valores, a abster-se de seus impulsos.
Essa interiorização, que já perdura milênios, caluniou os impulsos mais humanos, a tal
ponto que esse homem nega tudo aquilo que retrocederia ou prejudicaria sua moral sagrada e
seus costumes, tudo aquilo que nele é natural e imoral. Assim, a sociedade se estabeleceu como
um grupo social de homens doentes, não autênticos, fechados e ressentidos, porque, com o
nascimento da sociedade, se inaugura “uma [nova] época, a do desespero de alma dupla. A
divisão entre natureza e gregariedade não traz nem harmonia, nem enriquecimento: a repressão
social instala a dor”582, porque a moralidade social, ao domesticar o animal homem, lhe
proporcionou o ressentimento como compensação pela renúncia de seus velhos impulsos.
Segundo Nietzsche, “a moral era necessária para impor o ser humano na luta com a natureza e
com o ‘animal selvagem’”583. Esse foi o objetivo, durante muito tempo, do Estado, porque “o
Estado incorporou a sua moral no indivíduo”584, para moldar um novo tipo de homem.

578
NF/FP de 1887, 10[182], in: FF, p. 201.
579
GM/GM, II, 24.
580
GM/GM, II, 16, [acréscimos e supressões nossas].
581
GM/GM, II, 16.
582
Leon Kossovitch, Signos e poderes em Nietzsche, p. 42 – acrescentamos.
583
NF/FP de 1886, 5[63], in: FF, p. 196.
584
NF/FP de 1882, 1[44], in: FE, p. 50.
109

Em épocas anteriores ao gregarismo, o bicho homem era um animal como qualquer


outro, um animal entre os animais, um animal selvagem, impulsivo, forte e saudável. Porém,
com o nascimento do Estado e quando este monopolizou a prática do castigo, com o objetivo
de coibir e domesticar os impulsos do homem, o homem adoeceu. “O mesmo deve ter sucedido
aos animais aquáticos, quando foram obrigados a tornar-se animais terrestres ou perecer [...] –
subitamente seus instintos ficaram sem valor e ‘suspensos’”585. Nesse sentido, retirar o homem
da natureza e obrigá-lo a se adaptar ao social significa retirar o valor, a utilidade, a eficácia e a
finalidade de seus impulsos. Na sociedade, os homens “não mais [possuem] os seus velhos
guias, os impulsos reguladores e inconscientemente certeiros – [estão] reduzidos, os infelizes,
a pensar, inferir, calcular, combinar causas e efeitos, reduzidos à sua ‘consciência’” 586. Nesta
mudança, nasceu a má consciência, todavia, “a má-consciência ou o sentimento de culpa tem
[...] uma dupla origem. A primeira [delas] é a transformação do tipo ativo em culpado que se
deu com o nascimento do Estado”587, assim como visto, já que antes de viver na civilização,
durante o período em que os homens estabeleceram por si seus próprios valores, ou quando os
homens “buscavam apenas saciar seus instintos e atender seus estados fisiológicos”588, ou
quando eram seres com uma força de vontade forte, nenhuma má consciência lhes aparecia.
Somente no momento em que esses homens foram violentamente forçados e coagidos a
coexistir entre seus semelhantes, a má consciência enraizou-se profundamente neles.
Esta é a circunstância sobre a decadência sucedida entre o homem e seus impulsos. Esta
é, em resumo, a suposição principal da doença do homem, uma vez que a mera recusa de tais
impulsos não foi suficiente para eliminá-los, mas apenas para restringi-los, mesmo que
provisoriamente, porque “civilizar sua ferocidade para viver socialmente fez com que a dor e a
crueldade presentes neles não se expressassem claramente. Foi no seu interior que elas passaram
a agir às ocultas”589. Os impulsos reprimidos, por constituírem certa parte do homem, querem
e aspiram reverter esse processo de interiorização (ou processo civilizatório), a fim de retornar
aos seus lugares apropriados. Portanto, eles anseiam o direito de se manifestarem.
Consequentemente, eles aguardam possibilidades de manifestações e eventualmente se
manifestarão, mesmo que tenham que infligir dor ao indivíduo que lhes reprime.

585
GM/GM, II, 16 – suprimimos.
586
GM/GM, II, 16, [trocamos o tempo verbal dos verbos possuir e estar para o presente, no original eles estao no
passado].
587
Roberto Machado, Nietzsche e a verdade, p. 65 – acrescentamos e suprimimos.
588
Nelson José Batista da Silva, Memória, esquecimento e criação em Nietzsche, p. 24.
589
Nelson José Batista da Silva, Memória, esquecimento e criação em Nietzsche, p. 27.
110

Nietzsche, como vimos anteriormente, chamará esse processo de repressão como


interiorização do homem, onde

Todos os instintos que não se descarregam para fora voltam-se para dentro –
isto é que chamo de interiorização do homem: é assim que no homem cresce
o que depois se denomina sua “alma”. Todo o mundo interior, originalmente
delgado, como que entre duas membranas, foi se expandindo e se estendendo,
adquirindo profundidade, largura e altura, na medida em que o homem foi
inibido em sua descarga para fora.590

Para Nietzsche, quanto maior a restrição dos impulsos, maior a moralização do homem.
Se antes ele era um animal rebelde, caçador, dominante e atroz, agora, em sociedade, se tornou
um animal domesticado, inócuo, obediente e cívico. No entanto, a parte selvagem, bem como
os impulsos animais do homem, não foram eliminados, pelo contrário, depois de coibidos
apenas foram interiorizados, levados para dentro, como se certa fração do homem estivesse em
cativeiro no próprio homem, se debatendo e almejando obter satisfação e vazão.
Segundo Nietzsche, a má consciência surgiu com essa interiorização, quando a
“hostilidade, a crueldade, o prazer na perseguição, no assalto, na mudança, na destruição” 591
foram levadas para o interior do homem, isto é, quando todos os impulsos que antes eram vitais
para a sobrevivência do homem foram restringidos e desprovidos de satisfação, e, “nos fortes,
esses ‘instintos’, não podendo manifestar-se numa coletividade organizada a partir de relações
contratuais, voltaram-se para dentro, originando a má consciência”592. Os impulsos tendem a
retroceder e esse antimovimento do espírito acaba transformando o homem nesse ser doente,
ressentido e vingativo, uma vez que “a má consciência, por natureza, agride o próprio
organismo que a produz, ela exprime uma força que se volta contra si mesma”593.
Eis a origem da má consciência: a interiorização dos impulsos do homem. Para
Nietzsche, na história do homem, é possível identificar os responsáveis por intensificar essa
interiorização, sendo estes: a cultura, a moralidade e a religião. A respeito da prática religiosa,
vale lembrar uma passagem de Além do bem e do mal, na qual Nietzsche retrata que: “onde
quer que a neurose religiosa tenha aparecido na terra, nós a encontramos ligada a três
prescrições dietéticas perigosas: solidão, jejum e abstinência sexual”594. Nesse sentido, a sua
“lógica é: esses desejos acarretam muitas vezes graves sequelas – portanto eles são maus,

590
GM/GM, II, 16.
591
GM/GM, II, 16.
592
Scarlett Marton, Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos, p. 84.
593
Nelson José Batista da Silva, Memória, esquecimento e criação em Nietzsche, p. 26.
594
JGB/ABM, 47.
111

condenáveis. O ser humano precisa livrar-se deles: antes disso ele não pode ser uma boa
pessoa”595. A religião, por meio de seu desprazer aos impulsos humanos, fez a má consciência
se desenvolver, “e o mesmo vale para a loucura dos moralistas, a qual, em vez do controle,
exige a extirpação das paixões596 [ou: impulsos] [do homem]. Sua conclusão é sempre [esta]:
só o homem emasculado [quer dizer: o homem castrado] é um homem bom”597.
Os impulsos naturais, confinados no homem, estão em decadência. Antes eles
trabalhavam a favor do homem e agora contra, quer dizer: “antes o bicho-homem agia conforme
os antigos e nobres instintos até chegar a uma convivência mais ordenada, mais controlada”598,
agora eles se voltam para trás, “contra o homem mesmo”599. A atenuação nessa tensão seria
concebível desde que o homem transvalorasse sua moralidade e suas normas restritivas,
visando, assim, dar vazão às suas pulsões. No entanto, além da moralidade, é necessário superar
a prática religiosa, uma vez que a má consciência e o ressentimento continuarão a crescer no
mesmo ritmo que o ascetismo prosperar na Terra, porque “o segundo modo de surgimento da
má-consciência é a transformação do ressentido em culpado realizada pelo padre ascético”600.
Quando falamos do homem ressentido, referimo-nos ao escravo, porque ele, por não ter uma
força plástica, inibidora e ativa601, não consegue se livrar de dores passadas. Ele, por mantê-las
vivas na memória, as ressente constantemente. Na primeira dissertação da Genealogia,
Nietzsche afirma que o ressentimento pode surgir tanto no escravo quanto no nobre, porém, ao
contrário do escravo, o ressentimento não pode se instalar ou envenenar o homem nobre,
exatamente por causa da força plástica, inibidora e ativa do esquecimento. Nesse sentido,
“quando [o ressentimento] nele aparece, se consome e se exaure numa reação imediata, por isso
não envenena [...]. Um homem tal sacode de si, com um movimento, muitos vermes que em
outros se enterrariam”602. Inversamente, no escravo, o ressentimento torna-se vingança, por que
o ressentido não sabe porque sofres e, já que sofre, “procura espontaneamente uma causa - um
culpado - de seu sofrimento para sobre ele descarregar seu ódio, ‘distrair a dor pela paixão’.
Esse culpado, o padre lhe oferece: é ele mesmo, o ressentido”603. Com a intervenção do
sacerdote ascético, o homem ressentido se torna ele próprio o culpado por seu sofrimento,

595
NF/FP de 1888, 14[163], in: FF, p. 208.
596
Por vezes, Nietzsche utiliza o termo “paixão” no lugar de “impulsos”.
597
NF/FP de 1888, 14[163], in: FF, p. 208 – acrescentamos.
598
Nelson José Batista da Silva, Memória, esquecimento e criação em Nietzsche, p. 27.
599
GM/GM, II, 16.
600
Roberto Machado, Nietzsche e a verdade, p. 66.
601
Cfr. a seção: “Tem boa memória?”.
602
GM/GM, I, 10 – acrescentamos e suprimimos.
603
Roberto Machado, Nietzsche e a verdade, p. 66.
112

fazendo com que o ressentimento se volte contra ele604, concebendo um aumento gradual do
sentimento de culpa, ou seja, “sua culpa, sua culpa, sua culpa! dizia incessantemente o
ressentido; minha culpa, minha culpa, minha máxima culpa! dirá agora o culpado”605.
No âmbito religioso, é-nos prudente entender que esse sentimento de culpa é rebento da
noção de pecado. Para entender a questão do pecado, é necessário retornar à relação contratual
entre o credor e o devedor, com o intuito de demonstrar que o sacerdote introduz a noção de
pecado no homem ressentido quando mostra que o homem sofre por ter uma dívida com Deus
ou até mesmo por tê-lo ofendido. Portanto, ao receber esta dívida, “uma dívida para com Deus:
este pensamento tornou-se para ele um instrumento de suplício”606 e, no “reconhecimento de
que a culpa causada pela dor que sente é sua; isso permite que o sacerdote lhe faça sentir-se
culpado pelas mazelas de seu próprio sofrimento”607. Nesse sentido, no campo religioso, a má
consciência é reinterpretada em consciência de culpa, por isso que Nietzsche distingue a má
consciência em dois momentos: em seu primeiro momento, ela está em estado bruto608, todavia,
“nas mãos do sacerdote, esse verdadeiro artista em sentimentos de culpa, [...] [o estado bruto
da má consciência] veio a tomar forma – e que forma! O ‘pecado’ – pois assim se chama a
reinterpretação sacerdotal da ‘má consciência’ animal”609. Nesse sentido, é sob a tutela
sacerdotal que o homem passa a entender que a sua dor, aquela gerada na interiorização de seus
impulsos, é um castigo resultante de uma dívida que não é sua, mas acredita ser, o que permite
com que a má consciência seja vista, neste momento, como consciência de culpa.
Mas como ocorre essa reinterpretação da má consciência? Nietzsche, na sequência da
transcrição acima, ilustra bem esse processo, escreve ele:

Sofrendo de si mesmo de algum modo, em todo caso fisiologicamente, como


um animal encerrado na jaula, confuso quanto ao porquê e o para quê, ávido
de motivos — motivos aliviam —, ávido também de remédios e narcóticos, o
homem termina por aconselhar-se com alguém que conhece também as coisas
ocultas — e vejam! ele recebe uma indicação, recebe do seu mago, o sacerdote
ascético, a primeira indicação sobre a “causa” do seu sofrer: ele deve buscá-
la em si mesmo, em uma culpa, um pedaço de passado, ele deve entender seu
sofrimento mesmo como uma punição... Ele ouviu, ele compreendeu, o

604
Segundo Paulo César de Souza (GM/GM, Posfácio, p. 160), “o sacerdote ascético dirige o ressentimento dos
‘escravos’ para dentro de si mesmos; daí a ânsia pelo nada, o ideal ascético”.
605
Roberto Machado, Nietzsche e a verdade, p. 66. Segundo Gilles Deleuze (Nietzsche e a filosofia, p. 35), “No
ressentimento (é por tua culpa), na má consciência (é por minha culpa) e no seu fruto comum (a responsabilidade)”.
606
GM/GM, II, 22.
607
Nelson José Batista da Silva, Memória, esquecimento e criação em Nietzsche, p. 28.
608
Gilles Deleuze (Nietzsche e a filosofia, p. 193-194) entende que a má consciência tem um duplo aspecto: um
topológico e outro tipológico. No primeiro, é entendido em um estado bruto ou material, já no segundo, é
reinterpretado como um sentimento de culpa.
609
GM/GM, III, 20 – acrescentamos e suprimimos.
113

infeliz: agora está como a galinha em torno da qual foi traçada uma linha. Ele
não consegue sair do círculo: o doente foi transformado em “pecador”...610

No parágrafo vinte da segunda dissertação, Nietzsche apresenta uma ideia interessante,


que expressa que o “triunfo sobre a nobreza independente, sempre abre o caminho para algum
monoteísmo”611. Isso pode ser entendido em uma distinção percebida entre a religião da antiga
Grécia e a religião cristã nascido mais tarde. Na antiga Grécia, “por muito e muito tempo, esses
gregos se utilizaram dos seus deuses olímpicos precisamente para manter afastada a ‘má
consciência’, para poder continuar gozando a liberdade da alma”612. Para eles, seus deuses
eram, segundo Nietzsche, “reflexos de homens nobres e senhores de si, nos quais o animal no
homem se sentia divinizado e não se dilacerava, não se enraivecia consigo mesmo!”613.
Sabemos que a criação de deuses é carregada de intenções. A criação do Deus cristão, por
exemplo, serviu para aliviar a dor existencial dos homens, dar-lhes um sentido, um meio de
fuga da superficialidade e concupiscência da vida mundana, uma esperança no futuro e no além,
todavia, como evidenciamos nesta seção, à custa de responsabilidades, culpa e má consciência.
A criação dos deuses olímpicos também possui intenções, por exemplo, a de “aliviar os terrores
da existência”614, porém, tais deuses não foram criados para imputar culpa e responsabilidades
ao homem, pois, na Grécia antiga, “a noção de culpa carregava um sentido completamente
diverso daquele que mais tarde, o mundo ocidental lhe daria: estava associada à idéia de delito,
mas como algo que pertence à vida, não sendo depositada em ninguém em especial”615. Nesse
sentido, quando um grego cometia um delito, era pouco provável que a culpa o tomasse o
espírito, pois ele poderia atribuir a responsabilidade de seu delito aos deuses, isto é, a culpa “era
deslocada para esferas distantes, desconhecidas, libertando o homem do seu peso moral”616.
Ao contrário dos gregos, que responsabilizavam os deuses pela natureza culpada da
existência, isto é, “a existência é culpada, mas são os deuses que tomam sobre eles a
responsabilidade”617 o que “não implica a responsabilidade do criminoso”618, o sacerdote
inverte esse relacionamento e impõe responsabilidade e culpa ao homem à custa de uma dívida
para com o seu Deus. Se antes o sofrimento experimentado pelo homem era justificado diante

610
GM/GM, III, 20
611
GM/GM, II, 20.
612
GM/GM, II, 23.
613
GM/GM, II, 23.
614
Selma Regina Nóbrega de Albuquerque, Niilismo e superação no pensamento de Friedrich Nietzsche, p. 63.
615
Selma Regina Nóbrega de Albuquerque, Niilismo e superação no pensamento de Friedrich Nietzsche, p. 63.
616
Selma Regina Nóbrega de Albuquerque, Niilismo e superação no pensamento de Friedrich Nietzsche, p. 63.
617
Gilles Deleuze, Nietzsche e a filosofia, p. 35.
618
Gilles Deleuze, Nietzsche e a filosofia, p. 35.
114

da loucura dos deuses, quando se exclui “a ordem olímpica, em que homens e deuses coexistem
inocentemente”619 e surge uma relação entre o aquém e o além620, então o homem não tem
ninguém para culpar além de si mesmo, e, em um “golpe de gênio”621, o cristianismo concebe
a ideia de que “o próprio Deus se [sacrificou] pela culpa dos homens, o próprio Deus pagando
a si mesmo, Deus como o único que pode redimir o homem daquilo que para o próprio homem
se tornou irredimível”622, isto é, por sua culpa, por seus erros e por seus pecados.
Nesse sentido, existem duas possibilidades: “ou um deus toma sobre si a
responsabilidade da loucura que inspira os homens, ou os homens são responsáveis pela loucura
de um Deus que se crucifixa”623. Guiado por esta última interpretação, o homem é o culpado,
porque, por seus pecados, um Deus veio a se sacrificar. Portanto, o homem tem uma dívida a
ser paga com a divindade e ao seu intercessor, o sacerdote, que insere essa dívida na memória
do homem, fazendo-o viver sua vida em negação e sofrimento, já que o homem passa a
“reinterpreta[r] esses instintos como culpa em relação a Deus (como inimizade, insurreição,
rebelião contra o “Senhor”, o “Pai”, o progenitor e princípio do mundo)”624.
Nesse sentido, se outrora, entre os gregos, os impulsos do ser humano eram divinizados
nas imagens de seus deuses e deusas, com o advento do Deus cristão, eles passaram a serem
vistos como maus, pecaminosos, impuros, insolentes e indignos. Portanto, o homem deve não
só controlá-los, mas sim castrá-los de si, porque é por meio da negação desses impulsos
mundanos que Deus é indenizado, ou melhor, mesmo diante da contradição mais insana, Deus
é compensado por meio da negação de sua obra625, assim deveria dizer o sacerdote.

Ou... sabes esquecer?

Memória ruim
A vantagem de uma memória ruim é poder fruir as mesmas coisas boas várias vezes pela primeira vez.

Friedrich Nietzsche, Humano, demasiado humano vol. 1, §580

619
Leon Kossovitch, Signos e poderes em Nietzsche, p. 45.
620
Ao contrário do Olimpo, o cristianismo alocou a ideia de Deus no além, porque, de acordo com Scarlett Marton
(Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos, p. 165 – acrescentamos), “quanto mais inacessível [ao ser
humano este] Deus [for], quanto mais celestial [for] sua imagem, quanto mais etérea [for] sua natureza, tanto maior
[será] a necessidade de mediadores e tanto mais difícil [será] contestá-los”.
621
GM/GM, II, 21.
622
GM/GM, II, 21, [o tempo verbal da palavra “sacrifício” foi alterado para se ajustar ao tempo verbal da frase.
No original, ela se encontra no gerúndio].
623
Gilles Deleuze, Nietzsche e a filosofia, 36.
624
GM/GM, II, 22 – acrescentamos.
625
Cfr. JGB/ABM, 55.
115

Anteriormente, afirmamos que o animal homem havia sido melhorado para adquirir a
capacidade de prometer e de lembrar suas promessas, em suma, sua melhoria o levou ao
desenvolvimento de uma memória em contrapartida ao esquecimento. Além disso,
acrescentamos ainda que essa memória, na sociedade, tem certa importância, sobretudo, para o
bem-estar, pois ela é a responsável por fornecer ordem social, através do estabelecimento da
etnicidade dos costumes, à comunidade. No entanto, consideramos que, naturalmente, o animal
homem não porta atavicamente uma memória, mas que ela é desenvolvida, levando em
consideração que ela é “uma capacidade que foi forjada no homem, um animal tão condicionado
ao esquecimento que como todos os outros animais era acostumado a viver feliz na estaca do
instante, sem preocupar-se com o que já foi e com o que será”626. Nesse sentido, em
conformidade com as indicações anteriores, faz-se necessário apontar as consequências do
desenvolvimento da memória para a saúde do homem, porque, na interpretação de Nietzsche,
o esquecimento parece ter maior importância do que a memória no que se refere à saúde.
Enquanto a memória é responsável por manter a eticidade dos costumes, memórias
dolorosas, decepções e experiências antigas na consciência, o esquecimento em contrapartida,
“como uma força plástica, inibidora e ativa, [é] capaz de nos libertar de impressões repetitivas
e doentias ao lidar com algum ultraje, decepção, descontentamento”627. Neste sentido, para
Nietzsche, o “homem no qual esse aparelho inibidor é danificado e deixa de funcionar pode ser
comparado (e não só comparado) a um dispéptico – de nada consegue ‘dar conta’”628, ou seja,
para o filósofo, o esquecimento age tal qual o aparelho digestivo do corpo: ele absorve o que é
importante, o que nutre e excreta o que não oferece nutrição ao organismo.
Ainda e de forma semelhante, quando esse processo digestivo é danificado ou inibido,
o corpo tende a dispepsia, quer dizer: o corpo começa a ter dificuldade em digerir aquilo que
lhe é incorporado. Portanto, o desenvolvimento da memória impede o processo de digestão de
velhas experiências, costumes, sentimentos ruins e afins. Não podendo digerir, no corpo é
gerado uma gastrite psíquica de várias informações e experiências. Daí a colocação de “não dar
conta”, pois, como o homem dispéptico pode dar conta de tudo que lhe foi interiorizado e não
adoecer diante da tortura fisiopsicológica imposta pelo acumulo de lembranças que não nutrem
o corpo? “Existem pessoas que não têm muita capacidade de assimilação e que por isso podem
perecer de uma única dor, enquanto outras, frente à maior catástrofe, tem força para esquecê-

626
Anna Paula de Ramos Campos, Nietzsche e o esquecimento, p. 12
627
Anna Paula de Ramos Campos, Nietzsche e o esquecimento, p. 16 – acrescentamos.
628
GM/GM, II, 1.
116

las, encontrando-se assim em boa saúde física e psíquica”629. Nesse sentido, o esquecimento é
uma das forças salutares para a saúde dos homens, pois ela possibilita com que o homem seja
capaz de lidar com o excesso de lembranças. Contudo, “precisamente esse animal que necessita
esquecer, no qual o esquecer é uma força plástica, uma força de saúde forte, desenvolveu em si
uma faculdade oposta, uma memória”630 por meios dos fatores já expostos antes.
Para enfatizar o esquecimento, Nietzsche elaborou a seguinte metáfora:

Considera o rebanho que passa ao teu lado pastando: ele não sabe o que é
ontem e o que é hoje; ele saltita de lá para cá, come, descansa, digere, saltita
de novo; e assim de manhã até a noite, dia após dia; ligado de maneira fugaz
com seu prazer e desprazer à própria estaca do instante, e, por isto, nem
melancólico nem enfadado. Ver isto desgosta duramente o homem porque ele
se vangloria de sua humanidade frente ao animal, embora olhe invejoso para
a sua felicidade - pois o homem quer apenas isso, viver como o animal, sem
melancolia, sem dor; e o quer entretanto em vão, porque não quer como o
animal. O homem pergunta mesmo um dia ao animal: por que não me falas
sobre tua felicidade e apenas me observas? O animal quer também responder
e falar, isso se deve ao fato de que sempre esquece o que queria dizer, mas
também já esqueceu esta resposta e silencia: de tal modo que o homem se
admira disso.631

Nessa metáfora, com a qual Nietzsche inicia a Segunda Consideração Extemporânea


(1874), é visto que o homem inveja o animal ao observá-lo pastando sem preocupações, dor ou
sofrimento, pois o rebanho tem o que o homem sempre quis, isto é, uma vida feliz, sossegada,
sem dor ou sofrimentos. Essa vida só é possível porque o rebanho, em contrapartida ao homem,
não se lembra do passado e não é determinado por ele, ele apenas vive no momento presente,
não se lembra do que aconteceu e não se importa com o futuro. Por sua vez, o homem, por não
poder esquecer [ou: por já não conseguir mais esquecer] em decorrência do processo
civilizatório [ou: processo de melhoria] pelo qual veio a ser submetido, permanece preso ao
passado [ou: no “foi assim”] sendo guiado e determinado por tudo aquilo que passou.
Em seguida, Nietzsche mostra que o homem também inveja a criança, dado que a
criança “não tem nada a negar de passado e brinca entre os gradis do passado e do futuro em
uma bem-aventurada cegueira”632, porém, sabe-se que a brincadeira da criança acaba sendo
interrompida, pois muito cedo ela começa a se lembrar e “então ela aprende a entender a

629
Flavia Turino Ferreira, Da Representação ao Sentido Anti-histórico: Memória, Esquecimento e Criação em
Nietzsche, p. 38.
630
GM/GM, II, 1.
631
HL/Co. Ext. II, 1, p. 7
632
HL/Co. Ext. II, 1, p. 8.
117

expressão ‘foi’”633, isto é, a criança começa a ser envolvida em teias de lembranças. Todavia,
faz-se necessário afirmar que Nietzsche, embora compreenda a capacidade de lembrar do
homem como algo prejudicial, não a desqualifica totalmente, pois “o pensamento humano é
primordialmente avaliador e seu poder de avaliar está relacionado tanto à capacidade de lembrar
quanto à de esquecer”634. A questão central nesse debate é a de que o projeto civilizatório
supervalorizou a memória e desvalorizou o esquecimento, por isso que “Nietzsche percebeu o
homem do século XIX saturado pela lembrança e o diagnosticou como doente”635.
O esquecimento é uma força de ordem superior, ele é mais importante que a faculdade
de lembrar no que se refere ao bom funcionamento do organismo. Enquanto o excesso de
esquecimento proporciona uma saúde forte, o excesso de registros armazenados na consciência
“impede o surgimento do novo, mantém o homem preso ao [peso do] passado [ou: ao “foi
assim”], não permitindo que a vida torne-se intensificadora e manifeste, a partir da ação [ativa
e plástica] do esquecimento, sua potência expansiva e criadora”636.
Todavia, para Nietzsche, o importante é saber

tão bem esquecer no tempo certo quanto lembrar no tempo certo; que se
pressinta com um poderoso instinto quando é necessário sentir de modo
histórico, quando de modo a-histórico. Esta é justamente a sentença que o
leitor está convidado a considerar: o histórico e o a-histórico são na mesma
medida necessários para a saúde de um indivíduo, um povo e uma cultura.637

Observa-se nesta passagem que Nietzsche não propõe a substituição de uma faculdade
pela outra, mas uma espécie de harmonia entre as duas, pois “saber esquecer e lembrar na
medida correta torna-se a sublime função da força plástica [plastische Kraft]”638. Essa força
plástica é, segundo Nietzsche, “modeladora, regeneradora, propiciadora do esquecimento”639.
Por meio dessas características, entende-se que a referida força é “uma espécie de guardião [...],
de zelador da ordem psíquica, da paz, da etiqueta”640 e das lembranças. Sua função é garantir
que o excesso de memórias seja gerenciado adequadamente, descartando registros psíquicos

633
HL/Co. Ext. II, 1, p. 8.
634
André Luiz Bentes, Nietzsche: a Arte e o Poder de Criar Valores, p. 62.
635
Márcio José Silva Lima, Nietzsche e a crítica ao historicismo: uma análise a partir da relação entre história e
vida na segunda consideração intempestiva, p. 78.
636
Nelson José Batista da Silva, Memória, esquecimento e criação em Nietzsche, p. 3 – acrescentamos.
637
HL/Co. Ext. II, 1, p. 11.
638
Márcio José Silva Lima, Nietzsche e a crítica ao historicismo: uma análise a partir da relação entre história e
vida na segunda consideração intempestiva, p. 78.
639
GM/GM, I, 10.
640
GM/GM, II, 1 – suprimimos.
118

desnecessários, irrelevantes e desnutritivos para o organismo e possibilitando, portanto, o


espaço psíquico necessário para novas experiências, possibilidades e para o novo.
É-nos permitido perceber a ação ativa do ato de esquecer na seguinte anotação:

Joga ao fundo o que te pesa


Homem, esquece! Esquece, homem!
Divino é a arte de esquecer!
Se queres voar,
Estar em casa nas alturas:
joga o teu peso maior no mar641!
Aqui está o mar, joga a ti mesmo no mar!
Divino é a arte [ativa] de esquecer!642

Nessa rica nota, percebe-se a importância e o propósito da capacidade ativa do esquecer.


Esquecer corresponde a lançar memórias e experiências no inconsciente [ou: subconsciente],
no lugar mais profundo do ser humano. O que está presente na superfície, na consciência, na
memória, deve ser excretado para a inconsciência por meio da divina arte ativa de esquecer.
Manter as memórias na consciência, ou seja, estar constantemente consciente do que foi, do
que aconteceu, do que já foi sentido, experimentado e vivido, impede voos, porque, aquilo que
se faz ciente sem cessar, são pesos que prendem o homem ao passado. Não obstante, há também
um aspecto moral no esquecimento, pois “bom somente se permanece quando se esquece”643,
quer dizer: o homem só permanece bom [bom ≡ nobre] se for capaz de esquecer tudo o que o
faz mal, fere e causa sofrimento. “Crianças que na memória têm punições e pauladas [sofridas
antes], tornam-se fingidas, malignas –”644. Daí pode-se entender o porquê de o homem
ressentido não ser capaz de tornar-se bom, visto que, por não esquecer o que lhe machuca, busca
causas e culpados de seu sofrimento, e, ao fazê-lo, torna-se vingativo e maligno. Portanto,
“bem-aventurados os que esquecem: pois ‘darão conta’ também de suas tolices”645.

O que potencialmente é?

Quem és, não o serás, que o tempo e a sorte te mudarão em outro.

641
Referência ao Übermensch, cfr. Za/ZA, Prólogo, 3.
642
NF/FP de 1888, [20] 46, in: FF, p. 219-220 – acrescentamos.
643
NF/FP de 1888, 20[148], in: FF, p. 234.
644
NF/FP de 1888, 20[148], in: FF, p. 234 – acrescentamos. Outro exemplo sobre os resultados de esquecer ou
não dores vivenciadas, foi escrito por Nietzsche na terceira dissertação da Genealogia, no qual ele afirmar que,
depois que “uma mulher grávida conhece os desgosto e caprichos da gravidez [...] [eles] devem ser esquecidos,
para se desfrutar a criança” (GM, III, 4).
645
JGB/ABM, 217.
119

Fernando Pessoa, Poemas de Ricardo Reis

É-nos lícito afirmar que o melhoramento do homem foi o seu erro. Essa melhoria
constituiu um extenso processo de domesticação desenvolvido paralelamente ao projeto de vida
coletiva. Posteriormente, afirmou-se que o estado se desenvolveu de tal maneira que a cultura
se tornou em formação mercantilizada para atender necessidades e proporcionar a
autopreservação (Selbsterhaltung) dos homens que compõem o rebanho. Portanto, ser culto,
nesse cenário, seria sinônimo de ser educado; treinado em qualquer técnica que fornecesse o
estar inserido nos quadros funcionais do Estado, a fim de obter lucros rapidamente; estar em
sintonia com notícias jornalísticas para ter a sensação de fazer parte do cenário político; ter uma
enciclopédia de informações históricas na memória para lhes repetir à maneira dos papagaios,
já que “crendices [...] [devem ser] repetidas como verdades absolutas, e quem não as repete é
considerado louco”646; etc. Em suma, a Alemanha tinha um sistema educacional mais “voltado
para a instrução (Belehrtheit) técnica da ‘massa’ do que para a formação (Bildung647) e cultivo
dos grandes homens”648. A erudição, advinda da formação ou educação instrutiva da massa,
não é sinônimo de elevação ou superação. E é exatamente isso que Nietzsche nos esclarece
quando ele escreve que a “Educação [Erziehung]: [é] um sistema de meios para arruinar as
exceções em favor da regra”649, isto é, essa educação prevê a preservação do rebanho e a
eliminação do tipo de homem sui generis que surge em um eventual acaso.

646
Flávio R. Kothe, Nietzsche, Marx, Freud, p. 23 – acrescentamos e suprimimos.
647
Ao final da seção “É... Útil? A Quê?”, afirmamos que Nietzsche identificou certa decadência no modelo
formativo da Alemanha. Naquele contexto, como afirmamos, possuir uma boa formação não era importante, mas
sim uma distração, pois era preciso ter outro tipo de formação que proporcionasse conhecimentos específicos,
técnicos e úteis para ganhar cabedal e ser útil. Na Alemanha, a educação tornou-se pragmática, utilitarista e seu
conteúdo acabou por ser desvinculado da vida. É diante desse cenário que Nietzsche desenvolve seu projeto de
Bildung, assim como apresentaremos no “corpo” dessa seção, que, ao dotar o homem de forma e unidade (cfr.
NF/FP de 1873, 19[307], in: Fragmentos póstumos, Vol. I, p. 409), visa possibilitar a construção de homens
superiores em contrapartidas aos sem forma (Gestaltlose), à exemplo de especialistas, técnicos, burocratas ou
funcionários do Estado. A percepção de Nietzsche sobre a educação alemão encontra-se numa anotação intitulada
Os fortes do futuro que postula o seguinte: “Até agora, a ‘educação’ [Erziehung] tinha em vista o benefício da
sociedade: não o maior benefício possível do futuro, mas o benefício da sociedade agora existente”. Essa educação
imediatista criaria homens obedientes, superficiais, sem forma, instruídos e apequenados, porém, continua
Nietzsche, “O crescente apequenamento do homem é precisamente a força motriz para se pensar na criação
[Züchtung] de uma raça mais forte: que ela teria seu excedente precisamente naquilo em que a espécie apequenada
a espécie medíocre se enfraqueceria (vontade, responsabilidade, autoconfiança, ser capaz de estabelecer metas
para si mesmo)”, e, em sequência, Nietzsche oferece os meios necessários à criação dessa raça de homens mais
fortes: “o isolamento por interesses conservacionistas contrários aos atuais; o exercício de uma estima inversa de
valores; o pathos de distância; a consciência livre sobre o que hoje é mais subestimado e mais proibido” (NF/FP
de 1887, 9[153], in: Fragmentos póstumos, Vol. IV, p. 283). No “corpo” do texto dessa seção, apresentaremos
como esses meios aparecem e são articulados no interior do projeto de Bildung proposto por Nietzsche.
648
Ildenilson Meireles, Elevação (Erhörung) e cultivo (Züchtung) na filosofia de Nietzsche, p. 371.
649
NF/FP de 1888, 16[6], in: Fragmentos póstumos, Vol. IV, p. 672 – acrescentamos.
120

Assim, já no período das Considerações extemporâneas, Nietzsche realizava reflexões


sobre as condições favoráveis ao aparecimento de um tipo de homem capaz de proporcionar
uma renovação no espírito cultural da Alemanha. Essas condições estavam, sobretudo, ligadas
a um novo projeto de formação (Bildung) e de uma espécie de cultivo (Züchtung650) de homens,
embora seja uma tarefa difícil, porque há “o problema do cultivo: [...] um indivíduo vive
brevemente”651, isto é, o tipo de homem que deveria ser cultivado nasce, cresce e perece junto
a tudo o que o torna sui generis sem deixar herdeiros.
Referindo-se ao tipo mais elevado de homem no Anticristo, Nietzsche aponta que “tais
acasos felizes de grande êxito sempre foram possíveis e talvez sempre serão”652. Observa-se aí
que o surgimento desse tipo superior até então foi resultado de alguma sorte do acaso e não de
uma causa específica ou cristalizada, porque ele não pode ser simplesmente produzido. No
entanto, “tribos, estirpes, povos inteiros podem, em algumas circunstâncias, representar um tal
acerto”653. Porém, quais circunstâncias são necessárias para que esse tipo superior surja como
um acerto e não como uma mera e feliz coincidência na história?
Ainda no Anticristo, Nietzsche mostra que esse tipo de homem de mais alto valor, foi
visto “como acaso feliz, como exceção, [porém] jamais como algo querido. Ele foi [...] o mais
temido [...] – e a partir do temor foi querido, cultivado, alcançado o tipo oposto: o animal
doméstico, o animal de rebanho, o animal doente homem – o cristão”654. Esse fator também é
notável, como já apresentado, no item 5 do prólogo de Zaratustra, onde torna-se claro que o
solo do qual um Übermensch poderia emergir ainda é bastante rico para tal, no entanto,
Zaratustra afirma que “algum dia, esse solo estará pobre e esgotado, e nenhuma árvore poderá
mais crescer nele”655, portanto, “aproxima-se o tempo em que o homem não dará mais à luz
nenhuma estrela. Ai de nós! Aproxima-se o tempo do mais desprezível dos homens”656. Ao
apresentar o Übermensch no item 3, Zaratustra também apresenta as condições necessárias para
seu surgimento, dentre elas, a mais importante é a verificação de que Deus morreu.
Já afirmamos que o declínio de Deus tornaria possíveis dois caminhos opostos: um para
o último homem e outro para o Übermensch. Na passagem do item 5 do Prólogo, Zaratustra
teme que o homem, em vez de agir para possibilitar o surgimento do Übermensch, continue em

650
Segundo Paulo César de Souza (JGB/ABM, Nota do Tradutor nº 100), “Züchtung é a criação e o aprimoramento
de plantas e animais – mas também de homens, como quer Nietzsche”.
651
NF/FP de 1884, 26[407], in: KSA 11, 258 – traduzimos e suprimimos.
652
AC/AC, 4.
653
AC/AC, 4.
654
AC/AC, 3 – acrescentamos e suprimimos.
655
Za/ZA, Prólogo, 5.
656
Za/ZA, Prólogo, 5.
121

direção ao último dos homens. A figura do último homem é a figura do homem niilista. Os
últimos homens não têm valores ou ideais como o camelo, porque seu aparecimento ocorre após
a morte de Deus, ou seja, da queda dos valores antigos, por isso “abandonaram a religião onde
era duro viver”657, caíram em um ateísmo vulgar e vivem para seus pequenos prazeres diários,
sem grandes conflitos o que impossibilita dar à luz a alguma estrela dançante, assim como
registra Zaratustra: “Eu vos digo: é preciso ter ainda caos dentro de si, para poder dar à luz uma
estrela dançante. Eu vos digo: há ainda caos dentro de vós”658. Tais homens afirmam que
inventaram a felicidade, pois vivem em um coletivismo onde “todos são iguais; e quem [se]
sente de outro modo vai, voluntariamente, para o manicômio”659. Eles não são ricos nem pobres,
não querem governar ou obedecer, pois tais coisas são vazias ou sem sentido para eles.
Neste sentido, “permanecer em uma cultura homogeneizante [como a cultura dos
últimos homens] seria o desperdício de uma enorme oportunidade somente aberta após a morte
de Deus”660. Portanto, após tal acontecimento, o Übermensch representaria um mar661 aberto
de possibilidades ao homem, assim como registra Nietzsche:

De fato, nós, filósofos e “espíritos livres”, ante a notícia de que “o velho Deus
morreu” nos sentimos como iluminados por uma nova aurora; nosso coração
transborda de gratidão, espanto, pressentimento, expectativa – enfim o
horizonte nos aparece novamente livre, embora não esteja limpo, enfim os
nossos barcos podem novamente zarpar ao encontro de todo perigo,
novamente é permitida toda a ousadia de quem busca o conhecimento, o mar,
o nosso mar, está novamente aberto, e provavelmente nunca houve tanto “mar
aberto”.662

A imagem do mar, se a relacionarmos com o rio do devir de Heráclito, nos permite


entender que o homem pode passar por várias transformações e que, em mar aberto, novas
possibilidades de ser, pensar e agir podem e irão surgir, porque o homem não é um fim em si
mesmo663, mas um constante vir-a-ser e um constante superar-se. Mas para banhar-se neste mar,

657
Za/ZA, Prólogo, 5.
658
Za/ZA, Prólogo, 5.
659
Za/ZA, Prólogo, 5 – acrescentamos.
660
Gustavo Arantes Camargo, Nietzsche: por uma ética trágica, p. 158 – acrescentamos.
661
Sobre a figura do mar, Zaratustra diz o seguinte: “Vede, eu vos ensino o super-homem: é ele o mar onde pode
submergir o vosso grande desprezo”. Ao contrário do mar e do Übermensch, Zaratustra diz que o homem é “um
rio imundo”. Portanto, em termos de proporção, “é realmente preciso ser um mar, para absorver, sem sujar-se”
com a “miséria, sujeira e mesquinha satisfação” do homem [moderno], porque quando o rio encontra o mar, a
sujeira em suas águas é diluída na imensidão das águas límpidas do mar. (Todas as transcrições nesta nota de
rodapé são de Za/ZA, Prólogo, 3).
662
FW/GC, 343.
663
No Anticristo, Nietzsche afirma que o homem como “o grande objetivo oculto da evolução animal” revela
apenas sua vaidade, ou seja, “ele não é absolutamente a coroa da criação, cada ser existente se acha, ao lado dele,
no mesmo nível de perfeição... E, ao afirmar isso, ainda afirmamos muito: pois ele é considerado relativamente, o
122

além da morte de Deus, é necessário superar também seus resquícios, por exemplo, a
moralidade664, porque “a força dos milênios sob uma moral paralisadora culmina em uma
modernidade que segue um caminho rumo a nada”665, ao cansaço e ao último homem.
Embora Deus tenha morrido, ainda há traços de sua presença em toda a cultura. Entre
esses resquícios, pode-se destacar a noção de igualdade e de segurança observadas entre os
homens modernos. Partindo da noção de igualdade, ela foi um dos pressupostos fundamentais
da religião, especialmente o cristianismo, que postula “que todos são filhos de Deus,
descendentes de Adão e Eva, de que todos são irmãos em Cristo”; essa ideia também foi
apresentada por “Sófocles na peça Ájax, cinco séculos antes de Cristo, de que os homens seriam
iguais por serem frágeis diante da doença e impotentes diante da morte”, ou por “Platão, por
intermédio de Sócrates, de que os homens seriam iguais porque mesmo o escravo teria uma
anima que poderia ter contemplado princípios geométricos no mundo das ideias”666; por fim, a
concepção de igualdade também seria, como visto antes (cfr. a seção: É... Útil? A Quê?), o pilar
de sustentação do sistema democrático ao propor o nivelamento social dos homens.
Por meio da igualdade entre os homens, a sociedade é nivelada horizontalmente: todos
são iguais, têm direitos e obrigações semelhantes e ninguém pode elevar-se em relação aos
demais. É por esta razão que, ao ouvirem os discursos de Zaratustra sobre o Übermensch e as
características dos últimos homens, os ouvintes escolhem a figura do último homem, porque
nesta figura encontram a igualdade. No entanto, em direção oposta a uma sociedade nivelada,
Nietzsche entende que, para o surgimento de um tipo mais elevado de homem, seria necessário
formar “uma sociedade que acredita numa longa escala de hierarquias e diferenças de valor
entre um e outro homem, e que necessita da escravidão em algum sentido” 667. Portanto, pode-
se entender que a possibilidade de criar um tipo superior de homem só existe quando se
estabelece uma hierarquia vertical de valor e uma distinção entre homens inferiores e homens
superiores, fracos e forte, porque, se imaginarmos uma sociedade horizontal em que todos sejam
iguais, haverá apenas o impulso de autopreservação e não o de superar a si mesmo, uma vez
que a preservação fornece segurança. Já mencionamos alguns mecanismos que fornecem tanto

animal mais malogrado, o mais doentio, o que mais perigosamente se desviou de seus instintos” (as transcrições
são do AC/AC, 14).
664
Zaratustra afirma que, para se tornar um criador, o homem “em verdade, primeiro, deverá ser um destruidor e
destroçar valores” (Za/ZA, III, Do superar a si mesmo), isto é, o homem precisará superar a moralidade arcaica e
criar seus próprios valores; somente então poderá surgir algum raio de esperança no horizonte.
665
Gustavo Arantes Camargo, Nietzsche: por uma ética trágica, p. 158.
666
As três transcrições são de Flávio R. Kothe, Nietzsche, Marx, Freud, p. 20-21
667
JGB/ABM, 257.
123

essa preservação quanto a segurança, por exemplo: a linguagem, o intelecto, a eticidade dos
costumes, o trabalho, a ciência, leis jurídicas, o coletivismo social e afins.
Em geral, pode-se dizer que, quando coabitam juntos, desfrutam de segurança
institucionalizada e buscam a preservação, satisfazendo todas as suas necessidades diárias no
uso de bens e serviços da sociedade, os homens não procuram mais se superarem, mas o
contrário, eles tendem a preservar seu modo de viver. No entanto, “viver não é apenas adaptar-
se às circunstâncias externas: a vida é, antes de tudo, atividade criadora”668. O homem esteve
errado ao acreditar que ele vive para si mesmo, pois ele vive para preservar um outro-eu, a
sociedade, a moralidade e outras coisas. Obedientemente, o homem se ajustou a uma
perspectiva da vida com normas, responsabilidades, avaliações morais e afins, e em nenhum
momento tentou criar para si um significado, uma meta, um modo de viver mais autêntico.
Como foi visto inicialmente, com relação à necessidade de um novo projeto de formação
(Bildung) para o surgimento do tipo superior de homem, pode-se dizer que a formação que
Nietzsche prescreve deve permitir que o homem torne-se o que ele é669, ou seja, a formação
deve fornecer um “projeto de singularização do indivíduo de tal modo que ele possa educar-se
acima da massa indistinta do rebanho”670. Todos os homens sabem que cada um é um indivíduo
único, singular e particular, isto é, não há indivíduos iguais ou semelhantes. Cada um tem
experiências únicas e vê o mundo de uma maneira única, porém, poucos têm coragem de viver
sua singularidade em uma sociedade massificada e homogeneizada. É isso que Nietzsche nos
mostra no primeiro parágrafo de Schopenhauer como educador, onde

Ao ser questionado acerca de qual propriedade dos homens teria reencontrado


em toda parte, o viajante que viu muitos países e povos e muitas partes da
Terra diz: eles têm um pendor para a preguiça. A muitos pode parecer que ele
teria dito de modo mais correto e válido: eles todos são medrosos. Eles se
escondem debaixo de costumes e opiniões. No fundo, todo homem sabe bem
que está no mundo somente uma vez, como um unicum, e que nenhum acaso
tão rara mistura pela segunda vez uma multiplicidade tão maravilhosamente
variegada em algo idêntico a ele.671

Nesta passagem, Nietzsche usa a máscara do viajante que, apresentado no Humano,


demasiado humano como aquele que “conhece terras e povos pela janela do trem”672, possibilita
com que Nietzsche observe culturas e povos de fora, pois estando fora, ele pode refletir e

668
Rosa Maria Dias, Nietzsche, vida como obra de arte, p. 15.
669
Nietzsche usa esse lema do poeta Píndaro de Beozia como subtítulo de seu livro autobiográfico, Ecce Homo.
670
Rosa Maria Dias, Nietzsche, vida como obra de arte, p. 14.
671
SE/Co. Ext. III, 1.
672
MAI/HDH I, 282
124

elaborar um panorama sobre o que ver. Ao observar o homem moldado por tudo que constitui
a cultura da massa gregária, Nietzsche afirma que “quando alguém se vê por intermédio de
opiniões alheias, o que há de admirar se até mesmo em si próprio ele não vê nada além de ...
opiniões alheias”673. Nesse sentido, pode-se pensar que a educação, percebida por Nietzsche,
possuía a tarefa de formar estudantes em camelos, pois, como visto, o camelo é uma espécie de
receptáculo de valores, crenças, costumes e útil. À vista disso, nossa educação apenas visa
massificar, modelar e formar várias pessoas em um rebanho de homens iguais e comuns que
sejam úteis ao bem da sociedade, assim como posto na Gaia Ciência.

A educação procede quase sempre assim: ela procura encaminhar o indivíduo, por
uma série de estímulos e vantagens, para uma maneira de pensar e agir que, quando
se torna hábito, impulso e paixão, vigora nele e acima dele, de encontro com a sua
derradeira vantagem, mas “para o bem de todos” [...]. Tendo êxito a educação, cada
virtude do indivíduo torna-se uma utilidade pública e uma desvantagem particular,
conforme o supremo objetivo particular674.

Portanto, a formação de Nietzsche se distanciaria desse processo de instrução, porque


compreende-se que a proposta formativa pensada por Nietzsche não se trata de uma mera
instrução, mas sim de uma transformação, ou seja, uma formação que visa superar a
massificação dos homens, a fim de promover indivíduos autênticos que sejam capazes de
potencializar suas singularidades, características e vivências. Esses objetivos formativos se
alinham com “as condições [necessárias] de toda elevação da cultura (da possibilidade de uma
seleção às custas de uma multidão) são as condições de todo crescimento”675.
Em resumo, Nietzsche propõe uma formação que proporcione com que o indivíduo
possa tornar-se o que ele é e, assim como leão ou como o espírito livre, vencer, superar ou
esquecer uma arcaica moralidade, pois, ao assemelhar o leão e o jovem, destacamos que
somente por meio do não querer do jovem, isto é, o rejeitar o que lhe é imposto, o indivíduo
pode começar a traçar seu próprio caminho que lhe permita, a partir de suas experiências e
vivências, criar seus próprios parâmetros, valores de ser e o seu próprio modo de viver.
Nesse sentido, para haver essa transformação, o indivíduo “precisa diferenciar-se da
sociedade como um todo e, ao mesmo tempo, diferenciar-se de todos os outros indivíduos, de
modo que possa tornar-se uma singularidade insubstituível, um ser único”676. Se o homem não
fugisse das questões mais essenciais, como já apontado, ele poderia entender que ele surge no

673
SE/Co. Ext. III, 7 (1983).
674
FW/GC, 21 – suprimimos.
675
NF/FP de 1885, 2[128], in: FF, p. 49 – acrescentamos.
676
Rosa Maria Dias, Nietzsche Educador, p. 68.
125

mundo apenas uma vez e que não lhe é possível estender esse surgimento com a criação de uma
vida em um além utópico, portanto, se ele possui uma única vida, ele deveria desejar vivê-la
em todas as suas possibilidades, em vez de se permitir ser formado para viver de maneira
semelhante a todos os outros indivíduos ou ser formado para se entender como algo que ele não
é. Já afirmamos que nenhum indivíduo surgiu no mundo predeterminado para ser isso ou aquilo,
mas para criar seu próprio caminho, seus próprios sentidos. Portanto, além de se entender como
uma singularidade insubstituível, no fundamento da proposta de formação de Nietzsche,
percebe-se que o indivíduo não deve se tornar algo já determinado, como se sua formação
visasse um objetivo ou um fim, mas pelo contrário, a proposta de Nietzsche consiste em uma
constante transformação do indivíduo, um constante processo de vir-a-ser, um querer-crescer.
Essa noção do processo de construção constante pode ser percebida em um discurso de
Zaratustra, quando ele afirma que “o homem é algo que deve ser superado”677 e, no item
seguinte, ao afirmar que “o que há de grande, no homem, é ser ponte, e não meta: o que pode
amar-se, no homem, é ser uma transição e um acaso”678. Do ponto de vista de Zaratustra, o que
o homem pode ser não é um ser humano ideal a ser alcançado, pois já constatamos que há
somente “o nada por trás de todos os ideais do [e de] ser humano”679. Assim, quando Zaratustra
ressalta que o homem deve ser superado para alcançar o Übermensch, é importante notar que
Zaratustra sugere superar o rebanho doente e nivelado680, por que o “Übermensch é [um]a
proposta de um ser-acima-do-humano, a ultrapassagem do ser humano através do ser
humano”681 . O Übermensch não “se trata de um ideal de homem, nem de um homem ideal.
Trata-se de uma utopia negativa, um Atheos absconditus, uma divindade que só se afirma como
negação”682. Portanto, partindo desta interpretação, pode-se entender que Nietzsche utiliza “a
palavra ‘super-homem’, para designação de um tipo que vingou superiormente, em oposição a
homens ‘modernos’, a homens ‘bons’, a cristãos e outros niilistas”683. É nesse sentido que o
Übermensch figura ser uma possibilidade futura de um homem superior, não um ideal de
homem projetado no além, mas de um homem que busca ser uma perpetua superação de si.

677
Za/ZA, Prólogo, 3.
678
Za/ZA, Prólogo, 4.
679
GD/CI, Incursões de um extemporâneo, 32 – acrescentamos.
680
É o que Diego Sánchez Meca (El pensamiento del último Nietzsche, p. 53 – traduzimos) afirma quando ele
indica que, “na realidade, o Übermensch, como mera figura hipotética de um modo alternativo de existência ‘além’
(über) ou ‘depois’ do niilismo, é apenas o outro lado da crítica radical que Nietzsche dirige à cultura ocidental, e
contra a imagem do homem decadente e niilista”.
681
Flávio R. Kothe, Nietzsche, Marx, Freud, p. 10 – acrescentamos.
682
Flávio R. Kothe, Nietzsche, Marx, Freud, p. 10.
683
EH/EH, Por que escrevo tão bons livros, 1.
126

Esse tipo superior ocorre quando, afastando-se das virtudes de rebanho, surge no homem
a necessidade individual de uma nova maneira de sentir, uma nova maneira de pensar e uma
nova maneira de avaliar684, ou seja, trata-se de uma transvaloração do modo de viver cultivado
e ensinado ao homem até então. Nesse sentido, “o grande homem precisa, para poder existir,
ter domínio sobre uma força que seja maior que a força de resistência que é desenvolvida por
milhões de indivíduos”685. Como afirmado anteriormente, resistir a algo que já está socialmente
consolidado, como a moralidade da maioria, do rebanho ou dos escravos, é difícil e requer
grande força. Portanto, dois fatores devem ser destacados: i) nem todos os indivíduos poderão
ascender ao projeto de um Übermensch e Nietzsche compreendia esse fator, tanto que, embora
ele tenha desenvolvido duras críticas à moralidade dos escravos, ele não propôs a aniquilação
dos homens que compõem tal moralidade – fator esse que o movimento nazista não entendeu
na posterioridade – porque ii) para que os homens superiores surjam, a sociedade deve ser
hierarquicamente organizada e não nivelada horizontalmente, mesmo que ela seja formada
exclusivamente pelo tipo superior de homem apresentado pelo Zaratustra.
No aforismo 57 do Anticristo, Nietzsche desenvolve claramente sua proposta de
“hierarquia”. Para ele, “em toda sociedade sã se distinguem [...] três tipos de diferentes
gravitações fisiológicas”, onde “a separação dos três tipos é necessária para a conservação da
sociedade, para possibilitar tipos mais elevados e supremos”. O primeiro tipo faz parte da “casta
mais alta”, que Nietzsche considera “os poucos”; eles são os “indivíduos mais espiritualizados”,
“os mais fortes”, a quem os outros tipos se submeteriam. “Os segundos: eles são os guardiões
do direito, os que cuidam da ordem e da segurança, os guerreiros nobres [...]. Os segundos são
os executivos dos homens mais espirituais”. O terceiro tipo é o homem “mediano”. Para
Nietzsche, “seria totalmente indigno de um espírito profundo ver já na mediania em si uma
objeção. Ela é, inclusive, a necessidade primeira para que possam existir exceções: depende
dela uma cultura elevada”. No que diz respeito a este último tipo, o mediano pode ser entendido
como os homens que compõem o rebanho ou o povo. Segundo Nietzsche, “se o homem-exceção
trata justamente os medianos com dedos mais delicados do que a si mesmo e seus pares, isso
não é apenas cortesia do coração – é simplesmente seu dever...”686, porque, ratificando, sem
eles não haveria homens superiores, e, em uma anotação intitulada “os fortes do futuro”,
Nietzsche ainda expressa que “a nivelação do homem europeu é o grande processo que não

684
Essas três novas maneiras são características utilizadas por Gilles Deleuze para definir o Übermensch (cfr.
Nietzsche e a filosofia, p. 245).
685
NF/FP de 1887, 11[179], in: FF, p. 37.
686
Todas as transcrições anteriores neste parágrafo são de AC/AC, 57 – suprimimos.
127

deve ser impedido; deve ser acelerado ainda mais”687, porque “essa espécie nivelada, uma vez
alcançada, precisa de uma justificativa: está a serviço de uma espécie superior e soberana que
a sustenta e que somente ao resistir a ela pode assumir sua tarefa”688. Portanto, a existência dos
medianos é tão importante quanto a existência do Übermensch, já que sem este o Übermensch
não teria ninguém a quem resistir e razões para superar-se inúmeras outras vezes mais.
Essa questão é apresentada no Epílogo do caso Wagner, uma vez que, ao apresentar o
modo de valorizar da “moral dos senhores e a dos conceitos de valor cristãos”689, onde “a
primeira partilha a sua abundância com as coisas — transfigura, embeleza, traz razão ao mundo
—, a segunda empobrece, empalidece, enfeia o valor das coisas, nega o mundo”690, Nietzsche
afirma que “são ambas necessárias, tais formas contrárias na ótica dos valores”691, porque a
tensão e o conflito entre ambas oferecem elevação e superação. Nesse sentido, Nietzsche
escreve “o que tem efeito mais fatal que qualquer fatalidade [...] Supondo que esses dois (fracos
e fortes) um dia se casassem, inevitavelmente algo monstruoso viria ao mundo, ‘a última
vontade’ do homem, sua vontade de nada, o niilismo”692, pois na união entre saudáveis e
doentes findar-se-ia o conflito, sem conflito não haveria crescimento.
À vista disso, depreende-se que em uma sociedade hipotética, composta por
Übermenschen e medianos, o conflito teria maior valor que a paz, o bem-estar, a quietude e
afins, porque o conflito e a resistência permitem que o Übermensch procure constantemente se
fortalecer para vencer lutas, adversidades, desafios e qualquer outro contratempo que possa
surgir, assim como apontado por Nietzsche no seguinte aforismo:

Examinem a vida dos melhores e mais fecundos homens e povos e perguntem a si


mesmos se uma árvore que deve crescer orgulhosamente no ar poderia dispensar o
mau tempo e os temporais; se o desfavor e a resistência externa, se alguma espécie de
ódio, ciúme, teimosia, suspeita, dureza, avareza e violência não faz parte das
circunstâncias favoráveis sem as quais não é possível um grande crescimento, mesmo
na virtude? O veneno que faz morrer a natureza fraca é um fortificante para o forte –
e ele não o chama de veneno.693

Ao contrário do último homem que evita lutas, conflitos, dor e tende à autoconservação,
um homem que consegue ver os obstáculos da vida como oportunidades de crescer e de superar-
se, é um homem com maior grau de espiritualização, isto é, um Übermensch que “quererá

687
NF/FP de 1887, 9[153], in: Fragmentos póstumos, Vol. IV, p. 283.
688
NF/FP de 1887, 9[153], in: Fragmentos póstumos, Vol. IV, p. 283.
689
WA/CW, Epílogo.
690
WA/CW, Epílogo.
691
WA/CW, Epílogo.
692
GM/GM, III, 14 – suprimimos.
693
FW/GC, 19.
128

crescer, expandir-se, atrair para si, ganhar predomínio – não devido a uma moralidade ou
imoralidade qualquer, mas porque vive, e vida é precisamente vontade de poder”694 .

Ama a vida? “Se” sim: é criador!

Meto-me dentro de mim mesmo e acho aí um mundo!

Johann Wolfgang von Goethe, Die Leiden des jungen Werther

Embora criticado por Nietzsche, o último dos homens tem uma importância singular: é
por meio e a partir dele que o surgimento do Übermensch se tornará possível, porque o que
seria o Übermensch senão um para além do último homem, sua possível superação e
ultrapassagem? É neste sentido que qualquer análise deverá obrigatoriamente, para se entender
esse novo tipo de homem, passar pela análise do último homem, do homem moderno, pois o

Além-do-homem é um conceito que só pode ser corretamente apreendido em


antagonismo com a figura do último homem, pois ele constitui um contra-
ideal da tendência ao nivelamento e à uniformização que, para Nietzsche,
caracteriza a moderna sociedade de massa. Para ele, o homem pode ser visto
não como um fim — como o deseja o último homem —, mas como um meio
para conquistar possibilidades mais sublimes de existência.695

Mas como fazer emergir esse Übermensch? Já afirmamos que a educação696 pode ser
um instrumento que proporcionaria certa transformação, ao passo que possibilita ao homem se
tornar aquilo que ele é. Não obstante, se deve compreender esse “tornar-se aquilo que se é” não
como um atingir uma meta, mas sim como um ensinamento que conduz o homem a se tornar
um Der Versuch697 de si, isto é, um “inventor-experimentador de si mesmo”698. Fazer de si
mesmo uma experiência, um ensaio com erros e acertos, é um convite a um novo imperativo:
“sê tu mesmo!”699. Notoriamente, vale ressaltar que essa proposta formativa não encontraria
aceitação em nenhuma instituição moderna, pois a modernidade sabe muito bem qual modelo

694
JGB/ABM, 259.
695
Oswaldo Giacoia Jr., Nietzsche, p. 57.
696
A educação acaba se tornando um assunto recorrente devido à sua importância em alguns pontos-chaves da
filosofia de Nietzsche. Rosa Maria Dias (Nietzsche, a vida como obra de arte, p. 12) alerta-nos sobre esse fator,
afirmando que “a educação ocupa, na filosofia de Nietzsche, um lugar central. A máxima de Píndaro ‘Como
alguém se torna o que é’ dá a direção ao seu projeto educacional”, daí a relevância de se ruminar essa questão já
que ela é a chave para se compreender o projeto formativo do ser humano.
697
Ao referir-se aos filósofos do futuro no aforismo 42 do Além do Bem e do Mal, Nietzsche afirma que eles serão
Versucher, isto é, experimentadores, tentadores ou, como posto no “corpo” do texto, ensaístas de si mesmos.
698
Jorge Larrosa, Nietzsche & a Educação, p. 57.
699
SE/Co. Ext. III, 1.
129

de ser humano deve ser alcançado e cultivado700. Daí a importância encontrada na própria
experiência do indivíduo que não quer seguir em um conceito pré-fabricado de ser humano.
Tornar-se um experimentador e criador de si mesmo implica a perigosa aventura de
viver as muitas facetas que a vida possui. Não existe uma receita acabada que imponha uma
maneira correta de viver, muito menos que determina o que o ser humano deve se tornar.
Portanto, o passo inicial para experimentar as possibilidades de viver é recusar toda e qualquer
moralidade que impõe um certo, um errado, um bem e um mal. O que pode o homem não
depende do aceito institucionalmente e, “quem ainda julga que ‘assim deveriam agir todos nesse
caso’701, não chegou a andar cinco passos no autoconhecimento: do contrário saberia que não
há nem pode haver ações iguais”702, já que não existem homens, experiências e vivências iguais.
Nietzsche entende o homem como “o animal não determinado”703. Pode-se parafrasear
esse entendimento afirmando que o homem ainda não é, ele está nos ensaios. Qualquer
formulação do que é o ser humano nada mais seria senão uma equivocação frustrada de nossa
necessidade de engano, da necessidade de viver e agir em conformidade com alguma máxima
conceitual. Contudo, se de fato o homem quer ser o que potencialmente ele é, ele deve viver e
agir a partir de si, pois “seguir-se a si mesmo é prolongar-se, expandir-se, realizar-se, dar-se à
luz e dar à luz. Seguir-se a si mesmo é criar-se. O que criam esses criadores que se seguem a si
mesmos é, antes de mais nada, ELES PRÓPRIOS”704. Este posicionamento é exatamente o
ensinamento contido no aforismo 335 da Gaia Ciência, uma vez que

vemos, [...] [neste aforismo], que tornar-se significa criar-se, produzir-se,


construir-se e não propriamente descobrir-se, conhecer-se a si mesmo,
princípio apolíneo apropriado pelo racionalismo socrático-platônico. O que
faz do homem mais um processo de auto-superação, do que uma natureza,
uma realidade permanente. [...] Além disso, e essa é a segunda ideia do [...]
[aforismo], trata-se de tornar-se o que se é [...], quer dizer, de se criar como
singularidade, estabelecer seus próprios valores, constituir-se como seu
próprio legislador, dar a si mesmo suas virtudes, para além de normas
universais.705

Aqueles que se aventuram no ato de criar e de inventar a si mesmos são chamados, por
Nietzsche, de criadores. “Naturalmente que ‘criador’ não significa o homem do trabalho706, mas

700
Cfr. a seção: “É... Útil? A Quê?”.
701
Referência de Nietzsche ao imperativo categórico de Kant.
702
FW/GC, 335.
703
JGB/ABM, 62.
704
Pierre Héber-Suffrin, O “Zaratustra de Nietzsche”, p. 103.
705
Roberto Machado, Zaratustra, tragédia nietzschiana, p. 140 – suprimimos e acrescentamos.
706
Já vimos que o homem de rebanho ≡ homem do trabalho age pelo querer-sobreviver e não por um querer-criar.
130

o homem que cria jogando, que cria valores, que quer e possui uma grande vontade, que
estabelece para si um objetivo, que ousa um novo projeto”707. Essas caracterizações já foram
tratadas em algumas seções anteriores, portanto podemos concluir que esse homem que cria a
si e seus valores equivale ao Übermensch que ≡ a criança que é ≠ do camelo. O camelo e o
Übermensch são os extremos de nossa equação. Um deles é conhecido: o homem moderno que
é orientado por um outro-eu. No entanto, o Übermensch ainda não podemos fazer equivalências
apropriadas, porque essa tipologia designa uma constante autossuperação de si. Na seção
anterior, ele foi cautelosamente apresentado como um projeto de ser humano não determinado,
já que o Übermensch não pode ser idealizado como um modelo pronto para ser alcançado. Isso,
ratifica-se, iria de encontro ao erro civilizador, ou seja, a um projeto de homogeneização e de
melhoramento do ser humano. Nietzsche adverte que não fazia parte de suas ambições melhorar
o homem, nem lhe propor qualquer verdade708, por isso que o Übermensch

será muito diferente de um novo “ideal” de humanidade, de uma nova


“imagem” do homem, que viria pura e simplesmente substituir-se à sua
imagem atual. Com o conceito de além-homem se estará designando uma
perpétua superação de si, e por isso esse além-homem nunca terá rosto
definido, nem poderia tê-lo. Com esse conceito não se traça nenhuma imagem
de um novo homem divino, a ideia de superação de si proíbe toda e qualquer
cristalização de uma figura determinada, algo do qual se possa repertoriar os
traços, e por isso o espírito livre – viajante sem porto de chegada era a sua
melhor prefiguração.709

Nietzsche foge de qualquer pretensão dogmática de melhoramento. Para ele, o mais


correto é mostrar que o homem é o único responsável pela criação de si mesmo e pela vida que
vive: eis um pesado peso que o homem deve ser capaz de suportar. “Se este sempre viveu a
partir de ideais que o enfraqueciam, fazendo-o negar a potência de sua vida em nome de um
além inapreensível, é preciso procurar por um ideal contrário”710. Como já afirmado, esse
contra-ideal não é uma imagem cristalizada do homem, mas o Übermensch entendido como um
imenso mar de possibilidades surgido da morte de Deus, da descrença do além e no fim da
metafísica. Porém, para finalmente dar resposta à questão de como fazer emergir esse
Übermensch, dois fatores são fundamentais: o espírito livre e a doutrina do eterno retorno.
O espírito livre é, como afirmado, a abertura ao novo, ou seja, ele corresponde a um
processo de liberdade de, enquanto Übermensch corresponde a um processo de liberdade para.

707
Eugen Fink, A filosofia de Nietzsche, p. 80.
708
Cfr. EH/EH, Prólogo, 2.
709
Carlo A. R. de Moura, Nietzsche: Civilização e Cultura, p. 200.
710
Gustavo Arantes Camargo, Nietzsche: por uma ética trágica, p. 162.
131

O espírito livre, neste sentido, permite ao homem abandonar qualquer necessidade de


dependência, seja esta a de uma moral, um ideal, uma religião e afins. A partir dele, o homem
pode começar a experimentar a vida e suas possibilidades, pois “uma vez que toda moral e
dever das virtudes anteriormente aceitas não correspondem a uma sabedoria de espírito livre,
este terá que criar seus valores a partir de suas experiências”711. É nessa perspectiva que a
experiência e a vida acabam se tornando fatores ímpares na filosofia de Nietzsche, já que, a
partir deles, seria possível desenvolver uma proposta de transvaloração de valores antigos.
***
Na seção seguinte, evidenciaremos o segundo fator: a doutrina do eterno retorno.

A seleção

Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio. Julgar se a vida merece ou não ser
vivida, é responder a uma questão fundamental da filosofia. O resto, se o mundo tem três dimensões,
se o espírito tem novo ou doze categorias, vem depois. São jogos; primeiro é necessário responder.

Albert Camus, O Mito de Sísifo

Posto isso, é indispensável entender como será a seleção daqueles que estão em vias de
se tornarem um Übermensch. Essa noção de seleção não é algo que se deva “estranhar em uma
filosofia da hierarquia como a de Nietzsche, na qual o que importa é não deixar que a parcela
sã da humanidade seja contaminada pela [outra parcela] degenerada”712. Como o Übermensch
nietzscheano corresponde a um modo de ser e pensar oposto ao último dos homens, há um traço
fundamental em seu caráter: enquanto o último dos homens nega a vida, caberá ao Übermensch
afirmá-la. Logo, “contra a moral da negação da vontade que seleciona o medíocre enquanto
objetivo da cultura, é preciso um pensamento capaz de selecionar apenas os mais fortes. Os
mais fortes são aqueles capazes de afirmar a existência de maneira incondicional”713.
A seleção é feita por meio do ensinamento do eterno retorno, uma doutrina de afirmação
incondicional da vida. Nietzsche compôs o pensamento do eterno retorno do mesmo pela
primeira vez em uma anotação de 1881714. Segundo ele, esse pensamento lhe adveio enquanto
“caminhava pelos bosques perto do lago de Silvaplana”715 no “início de agosto de 1881 em Sils-

711
Gustavo Arantes Camargo, Nietzsche: por uma ética trágica, p. 148.
712
Carlo A. R. de Moura, Nietzsche: Civilização e Cultura, p. 274-275 – acrescentamos.
713
Gustavo Arantes Camargo, Nietzsche: por uma ética trágica, p. 167.
714
Cfr. NF/FP de 1881, 11[141], in: Fragmentos póstumos, Vol. II, p. 788-789.
715
EH/EH, ZA, 1.
132

Maria, a 6.000 pés acima do nível do mar e muito mais acima de todas as coisas humanas!”716.
Alguns meses depois, no outono daquele mesmo ano, também apareceu a primeira anotação
sobre o amor fati717. Ambos conceitos, no ano seguinte, começaram a abrolhar em suas obras
publicadas718. Os dois pensamentos são, ao mesmo tempo, importantes quando se discorre sobre
a realização do projeto de uma transvaloração de todos os valores. O primeiro por três motivos:
i) o eterno retorno do mesmo, enquanto pensamento seletivo, permite eleger aqueles capazes
de transvalorizar; ii) por meio dele, Nietzsche dilui o além ou qualquer ideia transcendente à
existência terrena719; e, por fim, iii) ele é uma possível resposta contra a forma incompleta do
niilismo, já que alguns homens, uma vez afetados por tal pensamento, conseguem extrapolar e
consumir o sentimento do em vão e a visão de uma vida vazia, sem sentido e sem finalidade. O
segundo, o amor fati, por ser a representação do Sim dionisíaco, que significa: “nada querer de
diferente, seja para trás, seja para frente, seja em toda a eternidade. Não apenas suportar o
necessário, menos ainda ocultá-lo [...] mas amá-lo”720, é o meio necessário para a aquiescência
da vida perante o pensamento do eterno retorno, pois ele proporciona coragem ao homem para
que ele venha a dizer ao demônio: “Era isso a vida? Pois bem! Outra vez!”721.
Passemos, agora, a experimentar o pensamento do eterno retorno:

– E se [wenn722] um dia, ou uma noite, um demônio [Dämon] aparecesse furtivamente


em sua mais desolada solidão e dissesse: “Esta vida, como você a está vivendo e já
viveu, você terá de viver mais uma vez e por incontáveis vezes; e nada haverá de novo
nela, mas cada dor e cada prazer e cada suspiro e pensamento, e tudo o que é
inefavelmente grande e pequeno em sua vida, terão de lhe suceder novamente, tudo
na mesma sequência e ordem – e assim também essa aranha e esse luar entre as
árvores, e também este instante e eu mesmo. A perene ampulheta do existir será
sempre virada novamente – e você com ela, partícula de poeira!”723

716
NF/FP de 1881, 11[141], in: Fragmentos póstumos, Vol. II, p. 788.
717
Cfr. NF/FP de 1881, 15[20] in: Fragmentos póstumos, Vol. II, p. 880,
718
Ambos os pensamentos aparecem pela primeira vez no livro quarto da Gaia Ciência (cfr. FW/GC, 341 e 276)
após o anúncio da morte de Deus no terceiro livro (cfr. FW/GC, 108 e 125) e antes da afirmação sobre o início do
declínio do personagem Zaratustra (cfr. FW/GC, 342). O eterno retorno volta a aparecer na terceira parte do Assim
Falou Zaratustra, na seção intitulada Da visão e do enigma, e nas seções 20, 56 e 70 de Para além de bem e mal,
sendo deixado de lado, já que não encontramos ocorrências nas obras posteriores (Genealogia da Moral e O Caso
Wagner). Só voltamos a identificar a presença do eterno retorno no Crepúsculo dos ídolos e no Ecce Home, obras
já tardias. Dentre os interpretes de Nietzsche, temos hoje três clássicas interpretações sobre o eterno retorno que
procuram estabelecer certo vínculo ou uma relação ontológica entre o eterno retorno e a vontade de potência, são
estes: Walter Kaufmann, Martin Heidegger e Gilles Deleuze. Porém, nesta seção, não aprofundaremos essas
interpretações, por considerarmos que elas necessitam ser melhor trabalhadas e desenvolvidas em pesquisas
futuras. Assim, para esta seção, nosso objetivo será o de utilizar a ideia do eterno retorno como uma teoria
psicológica ou como um instrumento de analise, tal como Nietzsche propõe em suA Gaia Ciência.
719
Concordamos com Scarlett Marton (Nietzsche e a celebração da vida: A interpretação de Jörg Salaquarda, p.
10) que “o pensamento de que tudo retorna sem cessar requer que abandonemos o além e nos voltemos para este
mundo em que nos achamos; exige que entendamos que eterna é esta vida tal como a vivemos aqui e agora”.
720
EH/EH, Por que sou tão inteligente, 10 – suprimimos.
721
Za/ZA III, Da visão e enigma, 1
722
A utilização do “e se” (wenn) reforça a tese de que estamos diante de um pensamento hipotético e experiencial.
723
FW/GC, 341 – acrescentamos.
133

Tendo revelado o eterno retorno na primeira parte do aforismo, o texto que aparece a
adiante exibirá as possíveis respostas à mensagem do demônio:

– Você não se prostraria e rangeria os dentes e amaldiçoaria o demônio que assim


falou? Ou você já experimentou um instante imenso, no qual lhe responderia: “Você
é um deus e jamais ouvi coisa tão divina!” Se esse pensamento tomasse conta de você,
tal como você é, ele o transformaria e o esmagaria talvez; a questão em tudo e em
cada coisa, “Você quer isso mais uma vez e por incontáveis vezes?”, pesaria sobre os
seus atos como o maior dos pesos! Ou o quanto você teria de estar bem consigo mesmo
e com a vida, para não desejar nada além dessa última, eterna confirmação e
chancela?724

O eterno retorno surge como um pensamento alternativo aos dogmas de negação da vida
até então cultuados. Se o homem foi instruído a negar esta vida para alcançar uma outra vida
para-além-do-mundo, o eterno retorno é posto como um pensamento capaz de tornar a vida algo
que precisa vim a ser afirmada. Uma vez acometido por este pensamento, o homem é compelido
a observar e a refletir sobre sua própria vida725: viveu como gostaria? Amou-a tão inteiramente
que a viveria novamente? Seria capaz de dizer sim a todos os momentos bons e ruins? Ao que
parece, o demônio seduz o homem a uma experiência existencial, onde o homem deverá colocar
em análise sua relação com a vida. Se “a vida nada mais é do que uma sequência contínua de
experiências colocadas exclusivamente no espaço e no tempo”726, ao falar sim a um único
instante vivido, o homem falará sim a todos os demais, pois é isto que o demônio nos dá: a
certeza de reviver todo o conjunto de instantes que moldam uma vida. Diante desse pensamento,
o homem pode ser acometido pelo pavor da impotência ou pode ser transformado.
O eterno retorno, como o entendemos, não é de fato verdadeiro727, mas uma
possibilidade (Möglichkeit728). Contudo, isto não é tão relevante, pois, o que importa nesse
pensamento, é precisamente o efeito que ele suscita nos que nele crê, visto que é “no levar a
sério a hipótese do retorno cosmológico, que realmente tal pensamento pode apresentar-se

724
FW/GC, 341.
725
O pensamento ou a proposta do eterno retorno das mesmas coisas poderia igualar-se ou assemelhar-se ao
momento de reflexão pré-morte, já que, segundo Michel Foucault (2006, p. 582 – suprimimos), “Quando nos
experimentamos como se estivéssemos no momento de morrer, podemos [...] lançar um rápido olhar sobre o
conjunto do que foi nossa própria vida. E a verdade, ou melhor, o valor desta vida poderá aparecer”. Nos parece
certo que o pensamento do eterno retorno também é capaz de trazer à tona o valor da vida vivida por cada um de
nós. Todavia, por ser um pensamento ético e trágico, o simples descobrimento do valor de nossas vidas não é o
bastante, já que o eterno retorno nos exige um posicionamento perante à vida, afirmá-la ou negá-la.
726
Toni Llácer, El superhombre y la voluntad de poder, p. 90.
727
Afirmação baseada na interpretação de Toni Llácer (El superhombre y la voluntad de poder, p. 90) que coloca
que “uma hipótese como a do eterno retorno deve ser entendida como um ‘simulacro’ explicativo que não tem
pretensão de verdade, como, por exemplo, a lei da gravitação universal”.
728
Ou probabilidade (Wahrscheinlichkeit) (cf. NF/FP de 1881, 11[203], in: Fragmentos póstumos, Vol. II, p. 805).
134

como o maior desafio para aquele que com ele se depara”729. A mensagem dele possibilita
provocar, como visto na segunda parte do aforismo, duas reações contrárias: i) uma reação
afirmativa que sugere um homem alegre e que ama a vida que vives e ii) uma reação de pavor
que indica uma negação da vida, isto é, indica que este homem não ama a vida que vives e que,
por isso, se prostraria e rangeria os dentes e amaldiçoaria o demônio. Nos parece certo pensar
que muitos homens, dos mais diferentes tipos, viriam a sucumbir diante deste pensamento, pois
“só quem ama dionisiacamente a vida – isto é, para além do bem e do mal – é capaz de suportar
e, mais ainda, desejar o pensamento segundo o qual as mesmas coisas retornam precisamente
como elas foram, são e serão”730. Se considerarmos aqueles que vivem a vida na esperança de
uma outra vida no além, podemos afirmar que, ao serem tocados por tal pensamento, estes
viriam a desistir de viver, porque tal pensamento põe um fim no para-além-da-vida. Assim, se
o eterno retorno da vida não for “afirmado, querido, desejado, [...] [isso] pode tornar-se o
pensamento mais [...] [sombrio] e mais pesado; pode tornar-se um pensamento niilista, dar
náusea e oprimir”731. Em resumo, a tese de que não há nada para-além-da-vida-terrena a não
ser a sua mais absoluta recorrência eterna, pesaria sobre alguns como o maior dos castigos.
Já foi apresentado que o ideal ascético consistiria em um remédio que aliviaria a
ausência de sentido da existência ao propor uma vida melhor no para-além-da-vida enquanto
salvação e redenção ao sofrimento vivido nesta vida, porém, ao realocar “no lugar da metafísica
e da religião, a doutrina do eterno retorno (este como um meio de criação e seleção)”732,
Nietzsche dilui todo para-além e valoriza a vida. Lembremos que, “na doutrina de Zaratustra,
o homem não morreria para ascender a Deus, para ser deus junto a Deus. A vida eterna no outro
mundo daria lugar ao eterno retorno neste mundo: transcendência terrena, ‘não metafísica’”733.
É somente por meio dessa realocação, que já é um claro simbolismo da transvaloração, que é
possível valorizar a vida, pois “é imprescindível que o homem, não possuindo outra vida além
desta, a afirme. Não temos escapatória: estamos condenados a viver inúmeras vezes e, todas
elas, sem razão ou objetivo; tudo o que nos resta é aprender a amar nosso destino”734.
Essa afirmação, sobre o viver a vida sem uma razão ou objetivo, é a imagem
aterrorizante da forma mais extrema de niilismo. Já comentamos um pouco sobre ela, mas

729
Luís Rubira, Nietzsche: do eterno retorno do mesmo à transvaloração de todos os valores, p. 151-152.
730
Roberto Machado, Zaratustra, tragédia nietzschiana, p. 123.
731
Roberto Machado, Zaratustra, tragédia nietzschiana, p. 132 – suprimimos e acrescentamos.
732
NF/FP de 1887, 9[8], in: Fragmentos póstumos, Vol. IV, p. 237.
733
EH/EH, Posfácio, p. 127.
734
Scarlett Marton, Nietzsche: a transvaloração dos valores, p. 67.
135

vejamos como ela se atrela ao eterno retorno. Esse atrelamento foi feito por Nietzsche em uma
anotação sobre “o niilismo europeu” (Der europäische Nihilismus735), que diz o seguinte:

Pensemos esse pensamento em sua forma mais terrível: a existência, assim


como é, sem sentido e alvo, mas inevitavelmente retornando, sem um final no
nada: “o eterno retorno”. Esta é a forma mais extrema de niilismo: o nada (o
‘sem sentido’) eterno”.736

Essa forma extrema de niilismo é a equivalência do niilismo exibido pelo adivinho na


segunda parte do Zaratustra, onde este afirma que “proclamou-se uma doutrina, que uma fé
acompanhava: ‘Tudo é vazio, tudo é igual, tudo foi’”737, isto é: nada tem sentido, assim, tudo é
vazio; tudo retorna ininterruptamente da mesma forma e na mesma sequência, assim, tudo é
igual ao que já foi; todo viver é em vão, já que não há uma salvação para-além-da-existência-
terrena. Nesse sentido, por acreditarmos no eterno retorno738, que possibilita o niilismo extremo,
“tornamo-nos, todos, secos; e, se caísse fogo sobre nós, seríamos reduzidos a cinza: – sim,
cansamos o próprio fogo. [...] Em verdade, já estamos cansados demais para morrer; agora
continuamos acordados e vivendo – em câmaras mortuárias”739. Eis aí o sentimento que tomaria
conta dos que recusassem o eterno retorno da vida. É-nos lícito afirmar, portanto, que a
cogitação do eterno retorno das mesmas coisas, exibida tanto pelo demônio da Gaia Ciência
quanto pelos animais de Zaratustra na seção O convalescente, pode acabar por desencadear a
forma mais horripilante de niilismo: a eterna recorrência de uma vida sem sentido. No entanto,
aos que amam a vida e que se transformam em afirmadores dela a ponto de falarem ao demônio:
“‘Você é um deus e jamais ouvi coisa tão divina!’”740, tal pensamento não proporciona o
sentimento do em vão do niilismo extremo, pelo contrário, visto que afirmar o eterno retorno
esgotaria o niilismo, pois até a falta de sentido da vida é afirmada, é querida e é desejada, já que
depende da ausência de sentidos a criação de novos sentidos, não mais baseados em
transcendências, mas com base na própria vida. A vida, à vista disso, tornar-se-ia critério de
avaliação extramoral. Este é um possível desafio que se esconde entre a doutrina do eterno
retorno: superar o niilismo, ou seja, superar a falta de sentido da vida depois da consumação da
morte de Deus e do fim da ideia salvacionista para-além-da-vida, transvalorizando, – isto é:

735
A íntegra do referido fragmento está em Fragmentos póstumos, Vol. IV, p. 164-168.
736
NF/FP de 1886, 5[71], in: SNER, p. 383.
737
Za/ZA, II, O adivinho.
738
Este acreditar no eterno retorno é algo como se esse pensamento tomasse conta daquele que com quem ele
depara-se, assim como colocado pelo demônio na segunda parte do aforismo 341 da Gaia Ciência.
739
Za/ZA, II, O adivinho – suprimimos.
740
FW/GC, 341.
136

inverter e virar do avesso –, a polaridade mundo-além, onde o solo, que outrora era pobre,
voltará a ser ubertoso e proporcionará a criação de valores a partir do amar-viver-aqui, ou seja,
“é preciso que comece uma era trágica, onde o homem não mais buscará o sentido do mundo
por trás do mundo e aprenderá atribuir seu próprio valor às coisas. Neste sentido, o niilismo não
só é indispensável, como é preciso que se viva este período”741.
Assim, enquanto a forma mais extrema de niilismo equivaleria à repetição eterna de
uma vida sem significado, o eterno retorno seria “a mais elevada forma de afirmação que se
pode em absoluto alcançar”742, uma vez que ele, enquanto um pensamento seletivo, somente
seria “capaz de selecionar [...] aqueles capazes da afirmação trágica da vida, isto é, capazes de
uma afirmação incondicional da existência em tudo o que ela possa ter de dor, sofrimento,
tragédia e também de alegria”743. Estes selecionados serão novos legisladores capazes de criar
novos significados, isto é, seriam niilistas completos. Em uma anotação, Nietzsche registra que,
embora a morte do fundamento possa ser entendida como o mais terrível dos eventos, ele
também pode ser entendido como a maior fonte de esperança, isto é: a morte de Deus “para o
adivinho [é] o acontecimento mais terrível, [...] [todavia] para Zaratustra o mais feliz e [mais]
pleno de esperança”744. Para o adivinho, tal evento trará o grande cansaço, entretanto, para
Zaratustra – o primeiro a vencer o niilismo passivo745 e, portanto, “o primeiro niilista perfeito
da Europa746, [...] que já venceu o niilismo nele mesmo”747 –, o surgimento do Übermensch.
Portanto, com o Sim ao eterno retorno, consagra-se – para alguns – o niilismo completo,
isto é, o niilismo ativo, “entendido como a capacidade de afirmação da existência mesmo em
seu caráter trágico”748. Esse caráter trágico corresponde a “uma lógica da afirmação múltipla,
portanto uma lógica da pura afirmação, e uma ética da alegria”749 que “possui dois princípios
que constitui a alegre mensagem: querer = criar, vontade = alegria”750. É a partir do querer ≡
vontade que Nietzsche alicerça o seu projeto de transvaloração. Em Da redenção, Zaratustra
afirma que o querer liberta, contudo, este querer ≡ libertador se encontra preso: “como se
chama aquilo que mantém em cadeias [...] o libertador? [o] ‘Foi assim’”751. Portanto, a prisão
que prende o querer do homem é o foi, ou seja: o que já aconteceu. O homem que não se torna

741
Gustavo Arantes Camargo, Nietsche por uma ética trágica, p. 142.
742
EH/EH, ZA, 1.
743
Gustavo Arantes Camargo, Nietzsche: por uma ética trágica, p. 163 – suprimimos.
744
NF/FP de 1885, 2[129], in: Fragmentos póstumos, Vol. IV, p. 116 – suprimimos e acrescentamos.
745
Cfr. Za/ZA, III, Da visão e do enigma e O covalente.
746
Observe que estamos nos referindo a Nietzsche por meio de Zaratustra, seu alter ego.
747
NF/FP de 1887, 11[411], in: Fragmentos póstumos, Vol. IV, p. 489 – suprimimos.
748
Gustavo Arantes Camargo, Nietsche por uma ética trágica, p. 144.
749
Gilles Deleuze, Nietzsche e a filosofia, p. 29.
750
Gilles Deleuze, Nietzsche e a filosofia, p. 127.
751
Za/ZA, II, Da redenção – acrescentamos e suprimimos.
137

criador ≡ Übermensch ≡ niilista completo é o homem obcecado pelos acontecimentos do


passado752 e que, por não conseguir esquecer ou digerir o peso do foi, ressente e não se abre à
afirmação ≡ trágico que o eterno retorno exige. Pode-se distinguir o homem ressentido por meio
destas frases: aquilo que aconteceu não deveria ter acontecido! Ou: aquilo que aconteceu
poderia ter acontecido de outra forma! Ou: eu não deveria ter feito aquilo!... Este homem
ressente cada momento e como o tempo não retrocede isto o enraivece. “E assim, de raiva e
despeito, vai rolando pedras e vinga-se naquilo que não sente, como [ele], raiva e despeito”753,
quer dizer: vinga-se da vida, cria deuses e mundos para negar o que lhe causa sofrimento. Esse
homem niilista, que não vê nenhum valor na vida, não poderá suportar o peso do eterno retorno
das mesmas coisas, pois tal pensamento só será suportado por quem deseja a vida da mesma
forma, sem aumentar ou retirar, quer dizer: todo grão de areia da ampulheta da existência deve
voltar na mesma ordem e sequência. Nesse sentido, somente alguém que tenha coragem para
dizer: “Era isso a vida? Pois bem! Outra vez!”754 seria capaz de suportar o eterno retorno. Essa
é afirmação daqueles que se transformam em Übermensch ≡ criador diante do eterno retorno,
isto é, Übermensch surge na afirmação de tudo aquilo que um dia já foi vivido.

Anotações finais

i. Nietzsche suspeitou do que hoje sabemos: estamos adoentados de nós mesmos. Algo (etwas)
que somos passou a querer perecer; se autodesprezar (Selbstverachtung). Isso (es) criou
transmundos para olvidar seu sofrimento; o impulso soberano do homem (Mensch Selbst) ainda
quer, mas não quer no aquém, quer no além, quer ir para onde não há querer, onde não há
crescimento e devir: é um querer o nada (nihil), por isso também é um querer decadente.

ii. Se o homem se tornou desprezador (e tudo o que esse adjetivo zaratustriano pode exprimir)
é porque ele já não encontra-se inclinado a afirmar, dado que ele não se encontra doente apenas
por não possuir finalidades ou propósitos à existência transformista, mas sobretudo porque não
sabe vivê-la enquanto uma experiência estética e extramoral.

iii. A vida não é uma equação trigonométrica – as crianças bem sabem (ou suspeitam) disso –:
ela é uma experiência estética, é arte e, por consecutivo, é criação.

752
Cfr. a seção: “Tem boa memória?” e a seção: “Ou... sabes esquecer?”.
753
Za/ZA, II, Da redenção, [trocamos o pronome ‘ela’ por ‘ele’].
754
Za/ZA III, Da visão e enigma, 1.
138

iv. A psicofisiologia nietzschiana nos permite compreender que os caquéticos valores morais,
que norteiam o viver e o agir do homem moderno, expressam seu querer-perecer: um
contramovimento à vontade de poder, a uma hierarquia fisiológica saudável e afirmativa.

v. Ao dinamitizar os ideais que norteavam a sociedade, Nietzsche não se furtou a tarefa de


pensar novas auroras, mesmo que estas sejam postas com algum grau de abstração, elas não
são, por assim dizer, sem os pés enraizados no mundo, ao contrário: é pelo mundo e pelo querer
vivê-lo que pode o homem tornar-se amigo da vida, um criador, um ser-criança, isto é: um
movimento inicial, uma roda que gira por si mesma, um sagrado dizer Sim.

vi. O esquecimento é salutar – perguntem aos animais (ou lhes observem)!

vii. A educação é o caminho que o homem pode percorrer para ser si mesmo.

viii. O jovem que lê Zaratustra e permanece refém ao querer alheio, se tornará um bom adulto.

ix. Deus morreu! e nem tudo é permitido: o Estado, os filósofos, as sombras de Deus ainda
falam.

x. Culpar é uma necessidade psicológica de homens ressentidos.

xi. O homem jamais alcançará o patamar da idealidade, o Übermensch é a prova disso. O que
resta é ser uma constante superação, um devir, um querer-ser-mais-do-que-se-é.

xii. Bem-estar, felicidade e igualdade são moedas de troca de nossa submissão moral e social.

xiii. É preciso cautela ao viver em sistemas morais e utilitaristas que advogam ser necessário
que o homem aprenda a vencer na vida: há aí auto-engodo e degeneração fisiológica.

xiv. A linguagem é insuficiente quando se quer expressar alguma verdade.

xv. Sem o positivismo, Deus não teria sobrevivido.


139

xvi. Artefazer o mundo: eis um imperativo alegre, inocente e infantil.

xvii. A autopreservação é nossa melhor desculpa para não ousar viver e experimentar as
inúmeras possibilidades deste mundo e desta vida.

xviii. Enquanto a lógica ordena o mundo, a arte o embeleza.

xix. Generalização de obviedades: todos os seres humanos são amontoados de quereres. Todo
querer, embora imoral, é possível. Todo vir a ser é indomável. Todos somos arrebatados pelos
impulsos que pulsam em nós. Toda pulsão é viva. Toda arte é manifestação ou expressão
dalgum impulso. Os animais se falassem teriam salários, seriam mais domésticos, seriam mais
modernos. Contra todas as críticas, um querer-calar também é resposta. Todo conceito é vazio,
já que nada quer permanecer igual, nada é em si definido: tudo quer-ser-mais-do-que-se-é. Por
fim, todos Übermenschen são possíveis, assim como todas as Überfrauen também o são. Todos
os papéis de gêneros são imposições sociais, culturais, tradicionais, morais e/ou religiosas.

xx. O querer desprezar-se é sintomático.

xxi. Nossas verdades são convicções bem defendidas e, portanto, aceitas.


140

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