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URY CHERKI

A TORÁ DA
HUMANIDADE
A MENSAGEM UNIVERSAL DO JUDAÍSMO
*
Índice

Prefácio à Edição Brasileira ............................ 9

1. O Significado da Vida ................................... 11

2. O Significado da História ............................ 25

3. Moralidade ....................................................... 41

4. A Essência da Alma ....................................... 51

5. Os Mandamentos ........................................... 59

6. A Torá Escrita e a Torá Oral ........................ 69

7. A Terra de Israel .............................................. 81

8. Israel e as Nações ........................................... 91

9. O Ser Humano e a Sociedade ..................... 109

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O Significado da Vida

Antes de discutir o significado da vida, devemos re-


fletir sobre o propósito de falar sobre esse tema. Afinal, por
que não viver nossas vidas de forma simples, sem buscar o
significado por trás de tudo? Pois é possível resumir a vida
da seguinte forma: nascemos, vivemos, e no final, morre-
mos. Qual a razão de buscar algum propósito para isso?
Na realidade, é difícil imaginar alguém que não se
pergunte sobre o significado da vida. Platão e Aristóteles,
os filósofos gregos clássicos, consideram que o espanto é
o primeiro estágio que antecede o pensamento e a refle-
xão. Se nos habituarmos a questionar o cotidiano óbvio
e previsível, e não tomarmos nada como certo, tudo que
surgir em nosso caminho promoverá espanto e admira-
ção. Começaremos a refletir e descobriremos a nossa pró-
pria ignorância. Em meio à reflexão, nos lembraremos de
que houve um momento em que não estávamos presentes

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neste mundo, até que, de repente, passamos a estar, o que


nos levará a questionamentos como: O que estamos fazen-
do aqui? Por que não estamos em algum outro lugar? E se
eu não tivesse nascido? É assim que a Filosofia demonstra
que questionar o significado da vida é parte integral da
condição humana.
É interessante observar que a Torá chega à mesma
conclusão. No feriado judaico de Pêssach, em que come-
moramos o Êxodo do Povo de Israel do Egito, uma das
principais obrigações desta festa é ensinar a história em
questão aos nossos filhos. Para nos orientar sobre a me-
lhor forma de fazê-lo, a Hagadá – o livro utilizado nesta
ocasião – argumenta que há várias maneiras e diferencia
entre quatro “tipos” de filhos: o “sábio”, o “mau”, o “in-
gênuo” e “o que ainda não sabe como perguntar”. O que
caracteriza os primeiros três é o fato de eles fazerem per-
guntas, para as quais, então, a Hagadá apresenta respostas
adequadas. Já o quarto filho, “o que não sabe como per-
guntar”, recebe um tratamento diferente, pois o problema
que a Hagadá – e de certa forma, a tradição oral judaica
– identifica é justamente esta incapacidade de questionar.
Se ele não sabe perguntar, devemos começar por ensiná-lo
a fazer isso! Somente então haverá ocasião para respostas.
Dentre as três perguntas que sim foram formuladas,
qual delas é a melhor: a do “sábio”, a do “mau” ou a do “in-
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gênuo”? Os nossos estudiosos preferem a do “ingênuo”.


A caracterização “ingênuo” (tám) não representa aquele
cuja pergunta reflete ignorância, mas sim, ingenuidade e
curiosidade (temimút e temihá). O “ingênuo” está intriga-
do com este mundo. Sua pergunta na Hagadá é: “O que é
isso?”. Ele busca entender o sentido das coisas. Por isso,
a resposta dada a ele, dentre todas, é a mais abrangente e
significativa: “Explique a ele: ‘o Eterno nos tirou com mão
forte da escravidão do Egito’.”
Ou seja, tanto a filosofia grega – representando aqui
a sabedoria humana tradicional – quanto a tradição oral
judaica nos encorajam a questionar. Pode ser que não en-
contremos respostas, mas pelo menos saberemos como
perguntar.
Mas será que a ingenuidade é positiva?

Sobre sabedoria e ingenuidade


O Rebe Nachman de Breslav, mestre chassídico que
viveu há 200 anos, escreveu muito sobre o assunto de cren-
ça e dúvida. Em uma de suas histórias, intitulada O Conto do
Sabido e do Ingênuo, ele conta sobre dois amigos que cres-
ceram num vilarejo polonês. Como o título do conto revela,
um era sabido e o outro era ingênuo (tám), e estas caracte-
rísticas os definiam de forma tão plena que todos, inclusi-
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ve o registro de moradores local, se referiam a eles como


“Sabido” e “Ingênuo”; seus nomes sequer eram lembrados.
Sabido e Ingênuo eram extremamente próximos, ape-
sar de viverem vidas tão diferentes. Sabido estudou todos os
tópicos do conhecimento humano e tornou-se um erudito,
enquanto o amigo permaneceu em sua ingenuidade.
Ingênuo casou com uma mulher que compreendia
seu atributo. Quando ele pedia a ela que lhe servisse uma
refeição, ela lhe trazia uma batata, e quando ele pedia uma
sobremesa, ela trazia mais uma batata. E quando ele pe-
dia um prato especial para o Shabat, ela trazia uma batata
também. Ele sempre exaltava as comidas excepcionais da
sua esposa e elogiava: “Sua comida é excelente, especial-
mente deliciosa.” Quando ele pedia que ela aprontasse
uma vestimenta distinta em honra ao Shabat, sua mulher
lhe entregava um simples casaco de lã, que ele ostentava
como se fosse um traje social. O Ingênuo era feliz e estava
satisfeito com tudo que possuía.
Enquanto isso, Sabido era um estudioso renomado e
foi viajar pelo mundo. Ele cursou universidades na Itália,
tornou-se um médico respeitado e então voltou ao seu vi-
larejo natal.
Um dia, o rei daquela região estava analisando os re-
gistros dos cidadãos quando notou na lista os nomes de
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Sabido e Ingênuo. “Que coisa estranha, pessoas com no-


mes tão curiosos. Vou convocá-los ao palácio”, ele decidiu.
O rei enviou mensageiros para buscá-los – para Sabido,
um mensageiro inteligente, e para Ingênuo, um mensa-
geiro de correspondente singeleza. O mensageiro singelo
chegou ao vilarejo e disse a Ingênuo:
– O rei está convocando você ao palácio.
– Você tem certeza? – Ingênuo perguntou.
– Sim, tenho – respondeu o mensageiro.
– Não é uma brincadeira? – Ingênuo questionou.
– Não – confirmou o mensageiro.
Feliz, Ingênuo chamou sua esposa e lhe contou:
“Querida, o rei me convocou ao palácio, eu preciso ir!”
Ingênuo acompanhou alegremente o mensageiro até a
residência real. O rei observou que o súdito era bondoso
e honesto, e ofereceu a ele um posto de trabalho. Com o
tempo, trabalhando num local tão elevado e exposto a as-
suntos de alta complexidade, Ingênuo passou a absorver
aquele conhecimento. Ele aprendeu, galgou postos mais
altos e importantes, até tornar-se um dos maiores sábios
da região e conselheiro próximo do rei.
Enquanto isso, o mensageiro inteligente chegou ao
vilarejo e disse a Sabido:
– O rei está convocando você ao palácio.
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– Como assim?! – exclamou Sabido. – Por que moti-


vo o rei precisaria falar comigo? Que assunto pode ser tão
importante?
– Eu falei pessoalmente com o rei e ele me ordenou
chamar você – o mensageiro respondeu.
– Você acredita mesmo ter falado com o rei? Devem
ter lhe enganado, indicando alguém que não era realmen-
te o soberano real. Sabe o que eu acho? Não há rei nenhum!
– Sabido concluiu.
Sabido e o mensageiro se alegraram com a ideia de
que eram os únicos que sabiam da verdade, enquanto
todos os outros viviam uma ilusão. Foram viajar pelo mun-
do e caçoar das pessoas que acreditavam que o rei existia.
Em suas viagens, acabaram enfrentando diversos proble-
mas e a situação deles se complicou.
O tempo passou e, em determinada ocasião, Ingê-
nuo foi chamado para resgatar Sabido, seu velho amigo.
Ingênuo disse:
– Sabe, desde que nossos caminhos se separaram,
eu alcancei uma alta posição no palácio real.
– Mas não existe um rei! – Sabido exclamou.
– Claro que existe! – respondeu Ingênuo, porém seu
amigo não acreditou.
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Apesar de frustrado com a negação do companhei-


ro, Ingênuo resgatou Sabido, restabelecendo a antiga ami-
zade, e eventualmente o amigo intelectual também se tor-
nou um fiel súdito do rei.

O Rebe Nachman explica que Sabido foi salvo graças


à amizade de infância entre ele e Ingênuo. Qual o significa-
do desta conclusão?

O ponto inicial da existência de uma pessoa – a pri-


meira coisa que ela consegue se lembrar – exerce uma in-
fluência muito forte sobre o resto de sua vida. Se nos lem-
brarmos de nosso estado primitivo de inocência, toda a
sabedoria que viermos a adquirir nos permitirá manter a
vitalidade e a vivacidade presentes na ingenuidade. Po-
rém, caso esqueçamos a nossa modéstia, poderemos vir
a nos confundir e a nos perder em labirintos de parado-
xos filosóficos.

Daqui, vemos a importância da ingenuidade e da


simplicidade antes de progredir rumo à sabedoria. Apesar
de intelectualmente limitada, a ingenuidade é extrema-
mente valiosa como complemento e equilíbrio ao conhe-
cimento. Desta forma, sabedoria e ingenuidade, juntas,
são o caminho para o verdadeiro conhecimento e com-
preensão de Deus.
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Qual o propósito da vida?


Voltemos agora ao significado da vida.
Quantos propósitos a vida pode ter? Há três possibi-
lidades: (1) nenhum, (2) um, ou (3) muitos. A primeira pos-
sibilidade, de que não há propósito para a vida, é precária,
pois os seres humanos buscam sentido. Indivíduos que não
encontram nenhum propósito, muitas vezes não permane-
cem vivos. O fato de continuarmos vivos é um sinal de que
sim há um propósito, consciente ou subconsciente, que dá
sentido à vida.
Se é assim, de acordo com as possibilidades men-
cionadas, deve haver um objetivo, ou talvez mais de um.
Porém, quando alguém tem mais de um objetivo na vida,
pode acabar numa armadilha. No momento em que admi-
tir mais de uma meta, terá de dividir sua dedicação e isso
gerará um conflito. Podemos considerar, portanto, que a
felicidade plena só pertence àqueles que possuem apenas
um propósito.
Com a quantidade de objetivos equacionada, cabe
a nós investigar sua natureza. Este propósito deve ser
próximo e alcançável ou distante e dificilmente acessí-
vel? Um objetivo muito simples poderá decepcionar. Por
exemplo, quem tem como meta de vida plantar uma ár-
vore, no segundo em que concluir esta tarefa, irá se per-
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guntar: “E agora?” Por outro lado, um objetivo muito am-


bicioso pode levar o ser humano a renunciar de todo o
resto para consegui-lo. Consequentemente, o ideal é ter
um propósito abrangente, mas que inclua metas ou es-
tágios intermediários, para eventualmente alcançar esse
objetivo maior.
Qual é este propósito abrangente? De acordo com
o Maimônides, o objetivo da vida de cada ser humano é
conhecer Deus, cada qual de acordo com sua habilidade,
e que todas as nossas capacidades e intenções sejam dire-
cionadas a esta meta. Devemos observar que o Maimôni-
des não disse “servir a Deus”, no sentido de cumprir Seus
mandamentos, mas sim, “conhecer Deus”. Cumprir Seus
mandamentos é essencial para conhecê-Lo, mas este não
é o objetivo final. Esse raciocínio indica ao nosso intelecto
que, caso direcionemos nossa vida a este propósito, en-
contraremos a verdadeira felicidade.
É a isso que se referiu o profeta Jeremias (9:22-23):

“Assim disse o Eterno: Não se glorifique o sábio por sua


sabedoria, nem o forte por sua força, nem o rico por
suas riquezas! Antes, se glorifique em Me entender e
em Me conhecer. Pois Eu sou o Eterno, que pratico mi-
sericórdia, retidão e justiça na terra; porque nisto Me
deleito – diz o Eterno”.
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O Maimônides explica: Sábio é aquele que aborda


questões sobre sociedade e moralidade. Forte é quem to-
nifica o corpo para tornar-se fisicamente poderoso. Rico
é o que acumula poder financeiro e político. Todas estas
coisas não servem ao ser humano como propósito de vida,
apesar de serem importantes. Propriedade e riqueza, for-
ça física e sociedade são importantes mas não se relacio-
nam ao valor inerente ao ser humano. O profeta continua:
“Antes, se glorifique em Me entender e em Me conhecer...”
– conhecer Deus é o propósito da vida humana.
Porém, para que não concluamos que o propósito
é de natureza puramente espiritual, Jeremias acrescenta:
“... Eu sou o Eterno, que pratico misericórdia, retidão e jus-
tiça na terra; porque nisto Me deleito – diz o Eterno” – ou
seja, conhecer Deus leva à construção de uma socieda-
de moral, com gentileza, justiça e caridade. Desta forma,
estes dois mundos aparentemente distintos se unem: o
mundo espiritual de conhecimento do Divino e o mundo
físico, de sociedade, retidão, lei e compaixão.

Por que as pessoas sofrem?


O que perguntaríamos para Deus, caso o encontrás-
semos? Eu perguntaria qual a razão do sofrimento hu-
mano. Já foram dadas diversas respostas a esta pergunta,
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entre elas a visão cristã de que o ser humano sofre em pu-


nição ao “Pecado Original”.* Este ponto de vista é extrema-
mente pessimista. A doutrina do Pecado Original admite
que a condição primária e fundamental do ser humano se
rebaixou e que não há qualquer esperança de restabelecê
-la sem ajuda externa. Esta é a base da teologia cristã, que
busca salvar o ser humano do declínio, sem confiar a ele a
habilidade de se reerguer sozinho.
Já o judaísmo descarta qualquer relação ao Pecado
Original. É verdade que o estado espiritual do mundo, de
forma geral, decaiu em consequência da transgressão de
Adão e Eva, porém é o ser humano que tem a capacidade
de escolher, pois ele possui total e absoluto livre-arbítrio.
Assim, da mesma forma que pode destruir, o ser humano
pode consertar e se restabelecer. Ele não precisa do mito
da salvação para se reerguer. Este é o significado mais
profundo do versículo bíblico (Deuteronômio 30:19), que
pode, a princípio, parecer trivial: “Escolherás, pois, a vida.”
Todas as outras doutrinas demonstram, direta ou
indiretamente, admiração à mortejá que esse mundo não

* Doutrina cristã que pretende explicar a origem da imperfeição hu-


mana do sofrimento e da existência do mal através da queda do ser
humano, baseado na passagem bíblica em que Adão e Eva consomem
do fruto da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal apesar da proi-
bição Divina, e que isso seria algo congênito e hereditário para todos
os seres humanos. (N. do T.)
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vale tanto a pena. A nossa passagem por aqui só nos traz


sofrimento, doença e decepção, e portanto, a melhor coisa
é se afastar dos assuntos mundanos.
A Torá, por sua vez, nos diz (ibid.): “Tenho dado pe-
rante vós a vida e a morte”. Não é estranho pensar que
uma pessoa normal optaria pela morte, pois esta traz
alívio ao sofrimento deste mundo. Mas a mensagem pode-
rosa do texto judaico está na conclusão daquele versículo:
“... e escolherás, pois, a vida, para que vivas tu...”. Ou seja,
o Criador do mundo deseja santificar Seu nome justamen-
te no contexto de vida deste mundo, para unir ambos os
mundos espiritual e físico. E, portanto, existe uma missão
especial de santificar a vida. Isso pode ser realizado, entre
outras formas, pelos mandamentos, que lidam com to-
dos os aspectos da vida e concedem significado às diver-
sas esferas da existência humana. Que incrível, portanto,
é viver! Há tanta alegria nesta mensagem, apesar de todo
sofrimento humano.
Na história do pecado de Adão relatado na Torá, há
um trecho interessante que normalmente passa desperce-
bido: o homem é ordenado a comer da Árvore do Conhe-
cimento, como está escrito “De toda árvore do jardim po-
des comer” (Gênesis 2:16) – “toda árvore” inclui também
a Árvore do Conhecimento. Em seguida, o versículo con-
tinua: “mas da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal
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não comerás, pois no dia em que dela comeres morrerás!”.


Ou seja, a proibição não foi de comer da Árvore do Conhe-
cimento de forma definitiva, mas sim, você deve comer
dela sem morrer. Como é possível fazer isso? Tomando
um antídoto contra a morte: a Torá, chamada também de
Árvore da Vida.
Assim, o pecado de Adão não foi comer da Árvore do
Conhecimento, mas sim, comer dela antes de se alimentar
da Árvore da Vida. Traduzindo esse “código” para a lingua-
gem cotidiana: você precisa se preencher de valores, de
sentido, comendo primeiro da Árvore da Vida.
Os nossos sábios dizem que a Torá é a Árvore
da Vida: “é como árvore da vida a quem a ela se apega”
(Provérbios 3:18) e, ao agir desta forma, todos os aspectos
do conhecimento tornam-se bênçãos. De forma contrária,
quando buscamos antes de tudo o conhecimento, sem
estarmos protegidos por um sistema de valores pessoais,
enfrentamos perigos intelectuais. Uma vastidão de conhe-
cimento não contribui para o sentido da vida; na verda-
de, pode bloqueá-lo. E isso é incrivelmente importante:
precisamos primeiro nos conectar à Árvore da Vida.
Através desta conexão, não apenas podemos expandir
nossa capacidade intelectual, mas somos obrigados a co-
mer da Árvore do Conhecimento, quando ela está funda-
mentada na Árvore da Vida.

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