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RESUMO: O presente artigo busca tecer considerações sobre a voz de Milton Nascimento, na clave de reflexão
da crítica cultural contemporânea. Essa discussão importa-nos enquanto estratégia interdisciplinar de pensar
manifestações orais como a canção, na cultura brasileira.
ABSTRACT: The present article aims to make some pointing about Milton Nascimento voice in the light of
contemporary cultural criticism. This discussion concerns as an interdisciplinary strategy to think about oral
manifestation in Brazilian Culture.
Key-words:
O que importa mais profundamente à voz é que a palavra da qual ela é veículo se
enuncie como uma lembrança; que esta palavra, enquanto traz um certo sentido, na
materialidade das palavras e das frases, evoque (talvez muito confusamente) no
inconsciente daquele que a escuta um contato inicial, que se produziu na aurora de
toda vida, cuja marca se apagou em nós, mas que, assim reanimada, constitui a
figura de uma promessa para além não sei de que fissura.
(ZUMTHOR,2005,p.64)
Não é novidade que Milton Nascimento seja considerado uma unanimidade. Discursos
divulgadores e legitimadores de seu canto não faltam nos meios midiáticos, desde sua
primeira aparição, no festival da TV Excelsior do ano de 1965. No entanto, entender sua
trajetória artística a partir desse lugar, em certa medida, mitificado no cenário musical
brasileiro significa, de antemão, movimentarmo-nos por algumas canções em sua voz,
tentando identificar quais mecanismos sócio-culturais levaram-no, através da voz, a ocupar
essa posição especial, que o fez ser referendado por tantos nomes no Brasil e do mundo, como
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Graduada em Letras, especialista e mestranda em Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora,
instituição na qual pesquisa a interface literatura/canção, orientada pelo professor Alexandre Graça Faria, com
fomento da FAPEMIG. fabriciadovalle@gmail.com
Elis Regina, por exemplo. Para ela, se Deus tivesse voz, seria a de Milton. Talvez coubesse ao
próprio artista perguntar-se que voz ou que Deus seria ele, como forma de colocar-se
criticamente diante de sua produção musical. Entretanto, interessa a nós, como pesquisa em
processo, saber que voz de Deus seria essa, buscando relacioná-la a três dimensões: a própria
voz, ao movimento (Clube da Esquina) e a marca Milton Nascimento. No presente artigo,
ficamos com apontamentos possíveis à própria voz.
Pensar a voz de Milton compreende ir além das acepções fisiológicas e neurológicas
da mesma e vislumbrá-la como capacidade de aglutinação de várias outras vozes – “verdade a
se entrelaçar (...) / Numa saudade, sem tempo e fim” (NASCIMENTO & TUNAI,1982,disco
Ânima). Nesse sentido, ela tende a funcionar como lugar de mediação das possibilidades de
contato estético estabelecidas pelo horizonte musical que as canções que ele interpreta trazem
consigo. Referimo-nos ao horizonte musical, em aproximação ao horizonte de expectativa
pensado por Jauss, uma vez que, as relações que se dão nas canções apontam para o universo
interpretativo de si mesmas, de Milton, dos seus conhecimentos de mundo e do de seus
ouvintes. Dessa forma, trafegamos pela escuta de alguns de seus fonogramas, buscando
identificar ideias de voz, haja visto que, Milton Nascimento, na maioria das vezes, é intérprete
das canções feitas, sobretudo, em parceria com Márcio Borges, Fernando Brant e Ronaldo
Bastos. Isso se torna significativo, em seu caso, para pensarmos a possibilidade da autoria ser
estabelecida como parceria, de maneira diferenciada, roubada, apropriada e falsa, através da
textura do falsete e aberturas de vozes de Milton. Constituindo-se, assim, o próprio lugar de
mediação e afunilamento de sentidos, na especialidade de cada uma de suas interpretações ou
próprio corpo das canções as quais empresta a voz, atravessada por diversas outras vozes.
Na canção “Aconteceu” (Milton Nascimento), disco Barulho de Trem (1964) a voz é a
“a beleza de contar”. No disco Milton Nascimento de 1967 “nosso canto que é de paz” em
“Irmão de fé” (Milton Nascimento e Márcio Borges), “a voz nas estradas” em “Travessia”
(Milton Nascimento e Fernando Brant), “viver cantando o dia tão quente que faz” em
“Canção do Sal” (Milton Nascimento), “uma voz cantando o amor” em “Maria,minha fé”
(Milton Nascimento), “um novo canto” em “Outubro” (Milton Nascimento e Fernando
Brant). No disco Courage (1969), “corpo sem lugar” em “Vera Cruz” (Milton Nascimento e
Márcio Borges), canções que explodem da garganta em “Rio Vermelho” (Milton Nascimento,
Danilo Caymmi). Em Milton Nascimento (1969), “voz que o tempo não levará” em
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Ver livro O Atlântico Negro.
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Brasil (os pássaros trazem)” (Milton Nascimento e Fernando Brant), “o caminho que vai dar
no sol” em “Bailes da Vida” (Milton Nascimento e Fernando Brant) e “profusão de coisas
acontecidas” em “Bela bela” (Milton Nascimento e Ferreira Gullar). E no disco Ânima (1982),
é “Teia de Renda” (Túlio Mourão e Milton Nascimento), “certas canções que ouço/ cabem tão
dentro de mim/ que perguntar carece/como não fui eu que fiz?” em “Certas canções” (Tunai e
Milton Nascimento), “a voz de todos nós” em “Essa voz” (Milton Nascimento e Fernando
Brant) e em “Ânima” (José Renato e Milton Nascimento) metavoz do projeto fonográfico do
artista de “atravessar fronteiras”.
Desse mapeamento sonoro do canto-voz em Milton, a voz busca o caminho que irá
dar no sol, empenhada em atravessar fronteiras e procurar verdades a se entrelaçar como
“Teia de Renda” (Túlio Mourão e Milton Nascimento), cabendo-nos questionar que caminho
e sol seriam esses a se cruzar com as parcerias musicais que se dão desde a elaboração e
gravação dos discos aos encontros com os hermanos musicais em busca da voz de todos nós
(“Essa voz” - Milton Nascimento e Fernando Brant). A voz de Nascimento catalisa várias
outras vozes, ao passo que as cristaliza lapidando sua procura toda, além de tudo “Ânima”
(José Renato e Milton Nascimento). Essa canção sugere o desenrolar de uma trajetória
musical, de forma a manifestar a fundamentação das escolhas vocais do intérprete, que da
travessia musical ao atravessamento de fronteiras com a voz, ressalta o querer da canção
como em “Rouxinol” do disco Nascimento (1997), onde não há como excluir a existência,
referida em seus grifos sobre a etimologia da palavra ânima. A existência de si que, como
voz, só tende a ser possível pelo fato dela ir ao encontro de outras vozes que acreditam na
canção por “valores de uma cultura” (ZUMTHOR,1995, p.61). Mas “E daí? (A queda)”,
referimo-nos à canção de Milton Nascimento e Ruy Guerra, presente no disco Clube da
Esquina II (1978). E daí que, pensar a voz em Milton Nascimento, incide no fato de
movimentarmo-nos para percebê-la como uma estratégia “quimeras”, tal como aparece a
palavra no corpo da letra da canção “E daí? (A queda)”. Nesse sentido, mais relacionada ao
canto como lugar de coexistência de muitas vozes que constituiriam a si mesmo e, a si mesmo
enquanto gesto de uma poética da voz que se dá nas relações que busca estabelecer com o
mundo. Desde o revisitar da tradição da canção brasileira como ir a “Suíte do Pescador”
(Dorival Caymmi) para compor com Márcio Borges “Hoje é dia de El-Rei” no disco Milagre
dos Peixes 1973. Ao contato com outros legados artísticos que irrompem como forças
suplementares ao intérprete, como a prosa e o cinema. Dessa maneira, estabelece tanto com a
voz como com sua discografia, procedimentos modais e polifônicos do cantar que angaria
diversas vozes para o modo de corpo que acaba sendo a voz de Milton Nascimento como
possibilidade única de cantar as canções que por ele são interpretadas.
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Abrimos um parêntese para pensar, como ponto de tensão, também em animus, que segundo o Dicionário
latino-português de Francisco Torrinha é “o princípio pensante (em oposição a corpus e a anima). Coração
(como sede da coragem, das paixões ou inclinações; vontade; inclinação; desejo; paixão. Pensamento; intenção;
disposição; sentimento. Razão; bom senso; atenção; memória. Caráter; condição.”
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Ver Travessia: a vida de Milton Nascimento de Maria Dolores, editora Record 2009.
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Segundo Carpeaux em O livro de Ouro da história da música – da Idade Média ao século XX, “as qualidades
características do coral gregoriano são a inesgotável riqueza melódica, o ritmo puramente prosódico,
subordinado ao texto, dispensando a separação dos compassos pelo risco, e a rigorosa homofonia (...), a
contradição de acompanhar fielmente o texto litúrgico (...) e a presença de tão rica matéria melódica (...) que
levaria à divisão de vozes (...): primeiras tentativas de música polifônica”.
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Ver Sentimental demais: a voz como rasura de Júlio César Valladão Diniz.
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O ser especial é nesse sentido, o ser comum ou genérico, e isso como a imagem ou
rosto da humanidade. A espécie não subdivide o gênero, mas o expõe. Nela,
desejando e sendo desejado, o ser se faz espécie, se torna visível. E ser especial não
significa o indivíduo, identificado por essa ou aquela qualidade que lhe pertence de
modo exclusivo. Significa, pelo contrário, ser qualquer um, a saber um ser tal que é
indiferente e genericamente cada uma de suas qualidades, que adere a elas sem
deixar que nenhuma delas o identifique. (AGAMBEN,2007,p.53)
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Voz com a que procura se imitar a voz do soprano. Em termos musicais a voz humana mais aguda e, portanto,
feminina.
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Ver A canção no século XX de Luiz Tati.
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Havia uma expectativa de caráter programático em relação aos artistas e que gerava
constantemente uma postura inquiridora no público e na imprensa, formando esse
contexto em que o trono da música brasileira se tornava um lugar de verdadeiro
desconforto para o cantor ou compositor popular.
(RAMOS,2008, p.284)
E no caso Milton não fora diferente. “Comecei a conversar com o Gonzaguinha já faz
muito tempo. E eu dizia que sempre, e ainda digo, se for realmente assim, eu tiro meu time de
campo, vou não sei pra onde, mas vou” 9. Esse ir não sei pra onde parece não parece ter
elvado Milton encontrar-se perdido, como nos versos da canção “C lube da Esquina”, e ter
fragilizado a costura da teia musical proposta com seu canto – de entre o lírico e o épico (re)
significar o cancioneiro popular e outras linguagens artístico-musicais atrelando-se à canção
como meio de transformação social. Muito embora seja recorrente em sua discografia o
vocábulo luta e ele remeta a um certo tom de “desleixo” estético por nos lançar às canções de
protesto, percebemos em Milton a coexistência sensível de uma voz politizada que se faz
mediadora das canções. Essa sensibilidade mediada por ele no momento da interpretação que,
somada ao ritmo próprio de cada canção perpassa pelo seu ritmo pessoal e é trazida ao
ouvinte que também a (re) significa conforme as relações que é capaz de estabelecer com ela
esvazia-se de potência em detrimento dos adornos vocais, aglutinando ao engajamento
político o ser sensível da canção como possibilidade última de síntese, conforme sugere
Caetano Veloso
...o que só Minas pode trazer: os frutos de um paciente amadurecimento de impulsos
culturais do povo brasileiro, o esboço (ainda que bem-acabado) de uma síntese
possível (...) Em Minas o caldo engrossa, o tempero entranha, o sentimento se
verticaliza (...) E Milton Nascimento foi – é – o pólo catalisador, o próprio lugar de
inspiração do movimento.
(FERRAZ, 2005, p.90)
Dessa maneira, parece possível afirmar que várias forças, das mais diversas ordens
culturais, vieram construindo uma relação de impenetrabilidade e incompreensão do projeto
de canção mediado por sua voz, instaurado como algo quase que da ordem mítica. Um projeto
“quimeras” (“E dái” Clube da Esquina II – 1978 – Milton Nascimento e Ruy Guerra) que de
modo sensível busca estabelecer através do canto “outros outubros” (“O que foi feito
deverá”,Clube da Esquina II – 1978 – Milton Nascimento e Fernando Brant) para o “Gran
Circo” (Milton Nascimento e Márcio Borges) chamado Brasil, através do gesto canto-voz.
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Idem.
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Apelido dado a Milton Nascimento.
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com o fato de que essa movimentação entre sua singularidade endeusada e o seu arrastar de
vozes para o esquecimento deve ser compreendido como estratégias de fixação da sua
discografia ao longo do tempo e através da oralidade da palavra entoada.
Referências:
DISCOGRAFIA:
1964 – Barulho de Trem – Dex Discos do Brasil
1967 – Milton Nascimento – Codil
1969 – Courage – CTI
1969 – Milton Nascimento – Odeon
1970 – Milton – Odeon