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Dezembro chegou.

E com ele o acontecimen- ano em que nos despedimos de um ícone das telas
to mais esperado, há décadas, por um contingente que aprendemos a amar e admirar. Esperamos as-
enorme de fãs da mais popular saga de todos os tem- sim que nossos leitores mergulhem nesta edição e
pos: o lançamento do novo episódio de Star Wars. a conquistem com o mesmo clima que os lançou ao
Foi pensando nisso que decidi iniciar minha espaço, a fronteira final, muito tempo atrás, rumo a
aventura pessoal como editor do Somnium com uma galáxias tão, tão distantes, com o objetivo de explo-
homenagem às populares sagas conhecidas como rar novos mundos... pesquisar novas vidas... novas
“Space Opera”. Por curiosidade, busquei a definição civilizações... audaciosamente indo onde nenhum
de Space Opera na Wikipedia, e o que encontrei foi homem jamais esteve. Esta edição procurou trazer
isto: “Space opera é um subgênero da ficção especu- estas mesmas emoções, estes mesmos sentimentos:
lativa ou ficção científica que enfatiza a aventura ro- pretendemos fazer de cada leitor um explorador
mântica, a viagem interestelar e as batalhas espaciais, de mundos desconhecidos, um herói pilotando sua
onde a narrativa principal da história é centrada em nave espacial, de sabre em punho, enfrentando peri-
torno de conflitos interestelares e no drama”. Não po- gos desconhecidos e triunfando no final (ou não...).
deria ficar mais feliz depois dessa definição que pa- Esperamos que as histórias que se seguem renovem
rece agradar a gregos e troianos – ou numa versão estas sensações, que, ao longo de nossas vidas, aju-
diferente, de fãs de Star Wars a fãs de Star Trek. daram a formar quem somos hoje.

E por falar em fãs de Star Trek, quando o pre- Termino este breve editorial desejando a todos
sidente do Clube de Leitores de Ficção Científi- nós, leitores e editores do Somnium, que a Força es-
ca, Clinton Davisson, me procurou com o convite teja conosco para que tenhamos uma vida longa e
para ser o novo editor do Somnium, havia em an- próspera.
damento o projeto de uma edição especial em ho- Abraços do seu novo editor,
menagem ao ator que eternizou o queridíssimo e
carismático Spock, Leonard Nimoy. Não demorou
muito para que juntássemos os temas – Space Ope-
ra e Leonard Nimoy/Spock, e resolvêssemos fazer Ricardo Herdy.
uma única edição que congregasse todos harmonio-
samente nas mesmas páginas. Nossa intenção era
aproveitar o clima de ansiedade reinante por causa
do lançamento do novo filme de Star Wars aliado ao
Somnium – Edição 112, dezembro de 2015

Editor responsável: Ricardo Herdy

Ilustração da Capa: Jeff Brown (jeffbrown67@gmail.com | www.artstation.com/artist/jeffbrown)

Layout da Capa e Diagramação: Marcelo Bighetti

Colaboradores: Santiago Santos


Rogério Amaral de Vasconcellos
Clinton Davisson
Ricardo França
Flávio Medeiros Jr.
Simone Saueressig
Edgar Indalecio Smaniotto
Roberto de Sousa Causo
Sid Castro
Miguel Carqueija

CLFC - gestão 2013-2015


Presidente: Clinton Davisson Fialho - sócio nº 546 (Rio de Janeiro - RJ)
Secretária-Executiva: Renata Luiza Fonseca - sócia nº 1018 (São Paulo - SP)
Tesoureira: Amanda Reznor – Sócia nº 591 (São Paulo – SP)
Contatos: contato@clfc.com.br | www.clfc.com.br/somnium
ÍNDICE

Artigos: Space opera


6 Star Wars e Eu, Priscila Queiroz

Obituário
9 Raul Avellar, por Miguel Carqueija

Homenagem - Leonard Nimoy


12 Entrevista com Salvador Nogueira
15 Entrevista com Susana Alexandria
História dos Fã-clubes de Star Trek no Brasil:
18 Primeira parte: Dos Primórdios até 2006
26 Segunda parte: De 2006 à atualidade

35 Artes de Sid Castro


39 Fotos de Leonard Nimoy

Resenhas
43 O Médico das Estrelas, por Caliel Alves
45 O Outro Lado do Tempo, por Caliel Alves

Contos
47 Da Astúcia dos Amigos Improváveis
55 A Ópera da Space Opera
57 O Ricardão do Futuro
60 Tempos de Compaixão e Decisão
64 Pedra Filosofal
75 Carga Solta
88 Cruzeiro do Sol
105 A Extração
SPACE OPERA
S empre quis ter uma X-wing. Não uma de
brinquedo, para colocar na estante da sala;
uma de verdade, que eu pudesse usar para
viajar pelo espaço e conhecer outros planetas. Para
entrar no hiperespaço, ver as estrelas se transfor-
marem em linhas que me levariam a lugares muito,
muito distantes.

Star Wars e Eu
E não me importa que X-wings não existam, ou
que naves espaciais não funcionem desta maneira.
Guerra nas Estrelas nunca teve compromisso com
a Física, e tudo bem: sua força (sem trocadilho)
Priscila Queiroz está em nos fazer querer empunhar um sabre de
luz e lutar lado a lado com a Rebelião.
Ou pelo menos é isto que acontece comigo sem-
pre que penso na saga, desde a primeira vez em que
Star Wars e Eu Priscila Queiroz

vi os filmes. Star Wars sempre me acompanhou – Mas foi em 1999 que Star Wars mudou com-
seus personagens sempre foram referências no meu pletamente a minha vida. Este foi o ano em que eu
mundo. E durante muito tempo, minha sensação descobri o Conselho Jedi Rio de Janeiro e, nele, fiz
era a de que eu era a única pessoa que tinha estas amigos para a minha vida toda. Guerra nas Estre-
referências, porque os amigos achavam os filmes las deixou de ser uma apenas uma trilogia de filmes
“velhos” (imagine, em 1992 Guerra nas Estrelas ti- que eu adorava, e passou a representar histórias,
nha só 15 anos!). momentos, eventos. O Conselho me ajudou a, fi-
Todo fã de Star Wars das antigas conta uma nalmente, conhecer pessoas como eu, que tentavam
história parecida: naqueles anos sombrios entre O usar a Força para pegar o controle remoto, que dis-
Retorno de Jedi e as Edições Especiais/Episódio I, cutiam qual era a nave mais rápida, a A-wing ou o
pré-internet, era difícil encontrar quem lembrasse TIE Interceptor, que organizavam eventos para fãs
da trilogia, e mais difícil ainda era encontrar outros porque queriam ir a eventos para fãs, que não me
fãs. Gostar de Star Wars era algo que guardávamos julgaram quando eu fui às lágrimas com Episódio
para nós mesmos, porque ninguém mais entendia. III – naquela época, havia a certeza de que aquele
Ainda mais complicado era conseguir livros, qua- era o último filme de Star Wars que veríamos – só
drinhos, informações. Aqui no Brasil, era esperar os me abraçaram e me deixaram chorar. Tive contato
filmes passarem na TV e olhe lá. com escritores, fotógrafos, críticos de cinema, pas-
sei dias e dias discutindo cada detalhe dos filmes,
Isso tudo começou a mudar em 1997. Finalmen- do roteiro à trilha sonora, passando pelas histórias
te, tive a chance de assistir Guerra nas Estrelas no e por todo o world building. Fui a duas Star Wars
cinema, e foi fantástico. Claro, não eram os filmes Celebrations, tirei fotos com os atores, passei a noite
que eu havia visto na TV, e isso ficou bem claro na fila para ver George Lucas de perto. Em resumo,
na maior decepção que eu tive com as Edições Es- eu pirei.
peciais – e não, não foi Greedo a atirar primeiro.
Minha lembrança mais emocional da trilogia era a E aí, a Priscila que queria estudar Ciências da
música da celebração da vitória que os ewoks canta- Computação decidiu que, na verdade, o que ela que-
vam no fim do Retorno de Jedi, e fui para o cinema ria era ajudar mais pessoas a terem a experiência de
na expectativa de ouví-la de novo. Lembro da tris- se conectar com outras pessoas que têm interesses
teza que eu senti quando chegou o final do filme e em comum, de se sentir parte de uma comunidade.
a música era outra – apesar da internet já existir na Larguei a faculdade de Informática, fui estudar Co-
época, eu não sabia de todas as mudanças. A sur- municação, e hoje sou gerente de comunidade em
presa foi chocante, tanto que demorou muito tempo uma empresa de jogos.
até eu conseguir gostar da música nova. Eu sempre Tudo isso por causa de Star Wars, por causa dos
a pulava quando ouvia a trilha sonora. amigos que fiz graças à saga – que, inclusive, tem
Decepções à parte, os anos de 1997 e 1998 fo- a importância dos amigos entre seus temas. Não
ram meio loucos no meu mundo de fã de Star Wars. me sinto mais sozinha, especialmente porque as
Várias coisas aconteceram quase ao mesmo tempo: prequels criaram toda uma nova geração de fãs. É
VHS das Edições Especiais, que eu assistia em loop; emocionante ver crianças se fantasiando como per-
a 1a. viagem para os EUA, onde eu comprei a trilo- sonagens dos filmes novos, e não estou mentindo
gia Heir to the Empire (os livros que deram início quando digo que não me incomodo se elas gostam
ao Universo Expandido) e uma caixa com a trilha de Jar Jar Binks. É por causa destes novos fãs, que
sonora completa dos filmes, com comentários de cresceram junto com os novos filmes, que eu es-
John Williams; e acesso à internet e seus sites de fãs, tou aqui ansiosa para ver um novo Star Wars, algo
que reuniam imagens e sons dos filmes e, o mais que eu nunca imaginei que fosse acontecer depois
importante, listas de números do ICQ de fãs como de 2005. Eu terei a chance de levar meu sobrinho
eu. Elas existiam, afinal de contas! Meu mundo de e meu afilhado ao cinema para rever personagens
fã estava crescendo. que eu amo e conhecer novos, e curtir este universo

7
Star Wars e Eu Priscila Queiroz

junto com eles. tas outras salas lotadas de pessoas passando pela
Enquanto escrevo este artigo, não consigo focar mesma experiência? Como será a festa?
em uma coisa só, tamanha a ansiedade que estava Estas perguntas ficam rodando pela minha ca-
contida até a maratona dos Episódios IV, V e VI que beça enquanto me preparo para reencontrar meus
fiz recentemente. Rever a trilogia original abriu a velhos amigos, tanto os daqui quanto os daquela
porteira do hype, e agora mal posso esperar para galáxia muito distante. É hora de celebrar uma saga
ver Episódio VII. Minha cabeça não para de fazer que mudou vidas, que une pessoas do mundo todo.
perguntas: será que vou gostar do novo trio de per- É hora de acionar o hyperdrive da imaginação de
sonagens principais? Quanto tempo de tela terão novo – e já estou de olho nas novas X-wings.
Han, Luke e Leia? Será que o Tema da Princesa Leia
vai aparecer na trilha sonora? Quem vai morrer
neste episódio, ou nesta trilogia? E o que será dos
spin-offs, ou Anthologies, como estão sendo cha- Priscila Queiroz é Gerente
mados? Será que Rogue One vai fazer jus ao Rogue de Comunidade na Riot
Squadron? O quão sensacional será assistir o filme Games, criadora de League
of Legends. Fez parte da
na pré-estreia, sabendo que pelo país existem mui- organização do Conselho
Jedi Rio de Janeiro por 7
anos, e ajudou a organizar 4
JediCons e duas pré-estreias.
Escreve sobre gerenciamento
de comunidades em
www.priscilaqueiroz.com.br

8
OBITUÁRIO
RAUL AVELAR
por Miguel Carqueija

F alecido em 9 de maio de 2015, aos 78


anos, Raul Lima de Avellar e Almei-
da, que residia em Copacabana, no
Rio de Janeiro, foi um dos fundadores do Clube de
Leitores de Ficção Científica (CLFC) em 1985. O
fundador original do CLFC, Roberto Nascimento,
ainda vive em São Paulo, mas de há muito afastado
das atividades por mtivos de saúde.
Eu vim a conhecer o Raul em 1987, quando de
meu próprio ingresso no CLFC, e com o tempo tor-
nou-se um dos meus melhores amigos. Creio que
tínhamos muita afinidade e nossas conversas eram
bastante animadas, quando havia oportunidade.
Raul era ótimo para falar sobre futebol e suas re-
miniscências pessoais. Nunca esquecerei de quando
ele me contou de sua experiência pessoal em 1950,
quando do trágico jogo final do Brasil na Copa do
Mundo, com o Uruguai, em pleno Maracanã. Ele
era adolescente e foi assistir a partida, acompa-
nhando o tio. Segundo o Raul, “não se cogitava que
o Brasil perdesse”. O clima de euforia era totalmen-
te exagerado, pois a vitória era considerada como
certa. A imprudência tomou conta do país e atin-
giu os jogadores, que naquele dia não almoçaram,
forçados que foram a assistir discursos de políticos,
ou seja patriotadas onde já eram saudados como os
novos campeões do mundo. Eu cheguei a escutar
um pequeno trecho num programa de tv, onde um
desses políticos afirmava aos jogadores que, dentro
de poucas horas, eles teriam conquistado a Copa.
À saída do Maracanã, um silêncio assustador,
Ruas que se esvaziavam, enquanto eles caminha-
vam, o Rio de Janeiro parecia uma cidade fantasma.
Eis o resultado de toda aquela empáfia. estante do Raul
Isso ele me contou antes da Copa de 2014. E o

9
Obituário Raul Avellar Miguel Carqueija

fenômeno se repetiu de outra maneira. Não foi tão nhando o pai que foi adido militar. Depois, entre
ruim como se chegássemos à final; mas o resultado 1949 e 1955, estudou no Colégio Militar no Rio de
foi muito mais humilhante. O clima de “já ganhou” Janeiro – dentro desse período ocorreu o famoso
porque jogávamos em casa se repetiu, estupida- caso da final da Copa.
mente. Houve locutor de tv que afirmou que, com Entre 1957 e 1962 Raul estudou na Faculdade
certeza, nós ganharíamos o campeonato mundial. Nacional de Direito (atual UFRJ) e entrou para o
No entanto está visto que, dessa vez, nem futebol tí- Banco do Brasil em 1958. Casando-se com D. Célia
nhamos para derrotar as grandes equipes européias. em 1959 – portanto 56 anos de matrimônio, o que
Raul não era escritor de ficção científica e nem é raro – na década de 1960 nosso amigo passou a se
crítico, mas leitor, fã e colecionador. Foi um dos interessar pela ficção científica, e levou aproxima-
poucos que conseguiram, no Brasil, reunir a lendá- damente 40 anos para completar a Coleção Argo-
ria Coleção Argonauta, portuguesa, inteira em seus nauta.
560 números. Uma coleção que é a maior da língua No início de 2014 Raul Avelar despediu-se das
portuguesa, e que aqui aparece mas fotos tiradas reuniões do CLFC, por não ter mais condições físi-
pela Melanie, destacando-se dos outros livros na es- cas para acompanhá-las.
tante, onde podem ser vistos, por exemplo, alguns
da famosa coleção brasileira de bolso, a Futurãmica, Quem o conheceu sabe que era uma pessoa afá-
das décadas de 50/60. vel, culta, de excelente nível e conversação agradá-
vel. E não o esquecerá facilmente.
Célia, esposa de Raul, contoiu-nos detalhes de
sua vida. Em criança, ainda na década de 40, Raul
conheceu os Estados Unidos e a França, acompa- Rio de Janeiro, 18 de junho de 2015.

10
HOMENAGEM

Leonard Nimoy
Entrevista com Salvador Nogueira

S alvador Nogueira é escritor e jornalista


formado pela Universidade de São Pau-
lo. Em 2000 passou a atuar como repór-
ter da editoria de ciência do jornal Folha de São
Paulo e desde 2005 tornou-se o responsável pelo
blog Mensageiro Sideral desse mesmo jornal, es-
pecializando-se em jornalismo científico com
foco em astronomia e nos avanços da corrida es-
pacial. É sócio-fundador e faz parte do Conselho
da Associação Aeroespacial Brasileira, espera que
o Brasil leve algo ao espaço com veículo lançador
próprio e, enquanto isso, torce para que a huma-
nidade volte à Lua e faça uma visita a Marte du-
rante seu tempo de vida. Atualmente é editor de
Ciência e Saúde do portal de notícias G1 e editor
do site Trek Brasilis sobre o universo ficcional de
Star Trek, além de participar do fã-clube Frota Es-
telar Brasil há mais de 25 anos. É autor dos livros
‘Rumo ao Infinito: Passado e Futuro da Aventura
Humana na Conquista do Espaço’ (2005 – Globo),
‘Conexão Wright– Santos Dumont: A Verdadeira
História da Invenção do Avião’ (2006 – Record) e
‘Extraterrestres: Onde Eles Estão e Onde a Ciência
Tenta Encontrá-los’ (2014 – Abril); co-autor com
Susana Alexandria do ‘Almanaque de Jornada das
Estrelas’ (2009 – Aleph) e de ‘1910 – O Primeiro
Vôo do Brasil’ (2010 – Aleph); co-autor com João
Batista Garcia Canalle dos volumes 11 e 12 da Co-
leção ‘Explorando o Ensino’, sobre astronomia e
astronáutica (2010 – MEC); e co-autor com Jose
Francisco Botelho e Mauricio Horta de ‘Mitologia
– Deuses, Heróis e Lendas’ (2013 – Superinteres-

por sante – e-book).


1 – CLFC: Como foi seu primeiro contato com

Eduardo Torres e Star Trek?


Salvador Nogueira: Eu nasci em 1979, então
Fátima Romani meu contato foi tardio. Não peguei as exibições ori-
Entrevista com Salvador Nogueira Eduardo Torres e Fátima Romani

ginais e só descobri a série antiga, na televisão, em mais a gente olha para trás, mais nos admiramos
meados dos anos 80, um pouco antes da estreia da com o que eles realizaram na Frota. No caso do TB,
segunda série, “A Nova Geração”, no Brasil. Sempre pela natureza descentralizada da internet, era natu-
gostei de astronomia e espaço, e poder acompanhar ral essa integração -– tanto que começamos muito
as aventuras de uma tripulação explorando um pla- cedo com colaboradores de várias cidades brasilei-
neta a cada semana era uma ideia atraente demais ras.
para mim. Com o tempo, fui pegando as outras nu-
ances da série e passei a apreciar cada vez mais a
mensagem transmitida por Star Trek, que valoriza 4 – CLFC: A Frota Estelar Brasil mantinha e/ou
a importância da ciência e de uma filosofia de tole- mantém contatos e atividades conjuntas com outros
rância e aceitação das diferenças. fã clubes de Star Trek no Brasil existentes e/ou no
passado? Pode-se falar de um movimento nacional
organizado de fãs de Star Trek hoje e/ou no passa-
2 – CLFC: Como começou o grupo Frota Estelar do?
Brasil e o site Trek Brasilis, e como tem sido sua ati- Salvador Nogueira: A Frota tinha essa ambição
vidade nesses espaços de organização e divulgação de ser nacional e sem dúvida eles foram os que mais
para fãs de Star Trek? perto chegaram disso. Mas era uma época mais di-
Salvador Nogueira: Eu conheci a Frota Estelar fícil para coordenar ações entre fã-clubes, de forma
Brasil em meados dos anos 1990, e eles faziam um que essas iniciativas eram sempre limitadas, em es-
papel muito importante com a realização de even- copo e em alcance geográfico.
tos – era uma forma de conhecer outros trekkers
e perceber que existia uma imensa comunidade si-
lenciosa de fãs, numa época em que a comunicação 5 – CLFC: Qual em sua visão o saldo das ações
ainda não era massificada, nos tempos pré-internet. dos fã clubes de Star Trek no Brasil, desde a fase
Também era uma forma importante de ter acesso a ‘histórica’ pré-internet até os dias de hoje?
episódios inéditos, numa época em que a TV brasi- Salvador Nogueira: Acho que é um legado mui-
leira não dava muita atenção a Star Trek. Já o Trek to bacana e que é muito importante nos lembrar-
Brasilis nasceu numa nova era, em que a internet mos dessa história, porque para quem nasceu já na
começava a dominar, e os fãs -– eu incluído -– pas- época da internet vai se tornar cada vez mais difícil
saram a perceber o papel importante que ela teria compreender a magnitude do que esses grupos con-
na integração da comunidade trekker brasileira. seguiram.
Eventualmente, a internet passou a cumprir todas
as funções antes fornecidas pelas reuniões físicas,
fornecendo um espaço para fórum de debates, co- 6 – CLFC: O livro ‘Almanaque Jornada nas Es-
mércio eletrônico de memorabilia e, ao fim das con- trelas’, de sua autoria junto com Susana Alexandria,
tas, até acesso aos episódios. publicado em 2009 pela Editora Aleph, foi muito
elogiado pelo público e pela crítica, mas houve na
época uma polêmica a respeito de como esse Al-
3 – CLFC: Como viu e vê o papel da Frota Estelar manaque registrava a história dos fã clubes de Star
Brasil e do site Trek Brasilis entre os fãs de Star Trek Trek no Brasil, situando o início dessas atividades
em São Paulo e em outros estados? como no final dos anos 80 com a Frota Estelar Brasil
Salvador Nogueira: Acho que ambos cumpri- em São Paulo e o JetCom no Rio, quando foram di-
ram seu papel de forma incrível, conseguindo aces- vulgados na ocasião artigos registrando que a SAST
so que transcendia suas localidades de origem. Isso (Sociedade Astronômica Star Trek), que foi criada
era especialmente incrível no caso da Frota Estelar no início dos anos 80 em São Paulo, seria o fã clube
Brasil, que teve de trabalhar com meios hoje qua- pioneiro de Star Trek no Brasil. Quem está com a
se “arcaicos”, como correio e telefone, para manter razão?
contato com fãs distantes de São Paulo. Quanto Salvador Nogueira: Sinceramente, não vejo a

13
Entrevista com Salvador Nogueira Eduardo Torres e Fátima Romani

existência de uma controvérsia. É óbvio que exis- otimista para a humanidade e quem viveu os últimos
tiram grupos anteriores à Frota Estelar Brasil e ao 50 anos sabe que estamos realmente construindo
JetCom, mas o alcance deles era tão limitado que esse futuro. As campanhas por tolerância e respeito
provavelmente só são lembrados por quem fez par- às diferenças são cada vez mais eficazes e ousadas, e
te deles. São histórias bonitas, claro, mas somente grandes conquistas no campo dos direitos humanos
com a Frota e o JetCom o fandom brasileiro passou (e até mesmo nos direitos dos animais) foram atin-
realmente a ter uma voz minimamente representa- gidas. A tendência é aprofundarmos globalmente
tiva. essas conquistas e levarmos a todas as partes do
mundo, enquanto cientistas iniciam o mapeamento
dos sistemas planetários vizinhos ao nosso e voltam
7 – CLFC: Poderia dar um depoimento sobre seus estudos para a detecção de vida alienígena. A
Star Trek em termos pessoais e gerais para os sócios aventura já começou, e certamente estamos auda-
do CLFC-Clube de Leitores de Ficção Científica ciosamente indo aonde ninguém jamais esteve. Sou
nessa edição especial do nosso órgão oficial Som- um otimista e acredito que Star Trek teve um papel
nium dedicada a Leonard Nimoy/Sr. Spock/Star importante na criação e na consolidação dessa cul-
Trek? tura em que estamos imersos hoje.
Salvador Nogueira: Star Trek fala de um futuro

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Entrevista com Susana Alexandria

S usana Alexandria é formada em Letras e sem-


pre gostou de ciência e ficção científica. ‘Trekker’
desde o início dos anos 1980, quando a TV Ban-
deirantes exibia ‘Jornada nas Estrelas’, criou no início dos
anos 90 o informativo ‘TrekkerCultura’ da Frota Estelar
Brasil (hoje um site na internet), em que analisava a re-
lação entre a série e a literatura. Escritora e tradutora, é
co-autora com Salvador Nogueira do ‘Almanaque de Jor-
nada das Estrelas’ (2009) e de ‘1910 – O Primeiro Vôo
do Brasil’ (2010), e traduziu clássicos da ficção científica
como ‘O Fim da Eternidade’, de Isaac Asimov (2007), e ‘A
Mão Esquerda da Escuridão’, de Ursula Le Guin (2014).

1- CLFC: Como foi seu primeiro contato com Star


Trek?
Susana Alexandria: Meu primeiro contato com Star
Trek foi com a série clássica, quando era exibida na Band,
nos anos 1980. Eu era adolescente na época. Virei fã em
pouco tempo e até saía da escola mais cedo da escola para
poder ver o episódio inteiro. Desde o início, meu perso-
nagem favorito era o Sr. Spock.

2 – CLFC: Como começou o seu contato com o fan-


dom de Star Trek no Brasil?
Susana Alexandria: Meu contato com o fandom foi
através da Frota Estelar Brasil, um fã-clube de Star Trek
muito atuante em São Paulo (sou de São Paulo, não do
Rio de Janeiro). Quando a série clássica voltou a ser exi-
bida na extinta TV Manchete, no início dos anos 1990, o
jornal O Estado de S. Paulo fez uma matéria sobre a Fro-
ta Estelar Brasil, com um telefone de contato. O fã clube
por existia há pouco tempo, e foi assim que entrei com conta-
to com eles. Conheci o JetCom [NE: outro fã clube de ST
Eduardo Torres e sediado no Rio] numa das convenções organizadas pela
Frota Estelar Brasil.
Fátima Romani
Entrevista com Susana Alexandria Eduardo Torres e Fátima Romani

3 – CLFC: Como viu o papel na Frota Estelar de notícias aos sócios. Então tive a ideia de compar-
Brasil? tilhar com os outros sócios do fã-clube, via boletins,
Susana Alexandria: Fui sócia e colaboradora da os frutos das minhas pesquisas informais sobre as
Frota Estelar Brasil, fã-clube de São Paulo, funda- citações literárias em Star Trek. Levei a ideia ao pre-
do por Luiz Navarro e mais alguns amigos. Porém, sidente do clube, Luiz Navarro, ele gostou da inicia-
quando estava escrevendo o Almanaque Jornada tiva e começamos a produzir os boletins. O nome
nas Estrelas, publicado em coautoria com Salvador TrekkerCultura foi ideia dele. Era um texto de uma
Nogueira, entrevistei a Cris Nastasi e escrevi um página comentando citações literárias, além de cita-
texto sobre o JetCom, que acabou não sendo publi- ções históricas e culturais, em determinado episó-
cado na íntegra. dio da série clássica. Os boletins foram publicados
por vários anos. No final dos anos 1990, poudo de-
[NE: A Susana nos entregou esse texto como uma co- pois do surgimento da Internet, criei um site sobre
laboração dela e do Salvador Nogueira para o CLFC, o assunto, que, por absoluta falta de tempo, acabei
e está publicado nesta edição] abandonando. Mas ele ainda está no ar em www.
trekkercultura.com.br.
4 – CLFC: Como começou seu trabalho de edi- Escrevi algo parecido com o TrekkerCultura
ção e elaboração do informativo TrekkerCultura, para o site Trek Brasilis também, mas sobre as ci-
como ele chegava aos fãs e como você conseguiu tações literárias na série Jornada nas Estrelas – A
explicar tão bem nesse veículo as múltiplas referên- Nova Geração em: www.trekbrasilis.org
cias culturais e literárias de Star Trek?
Susana Alexandria: Quando a série clássica de 5 – CLFC: Poderia dar um depoimento sobre
Jornada nas Estrelas voltou a ser exibida na TV Star Trek em termos pessoais e gerais para os só-
Manchete, no início dos anos 1990, eu estava cur- cios do CLFC-Clube de Leitores de Ficção Cientí-
sando a Faculdade de Letras na Universidade de fica nessa edição especial do Somnium dedicada a
São Paulo (USP) e já dava aulas de inglês. Então, Nimoy/Spock/Star Trek?
eu tinha interesse em literatura, especialmente de
língua inglesa. Percebia que os episódios da série Susana Alexandria: Foi através da série Jornada
utilizavam várias fontes literárias em seus roteiros nas Estrelas que passei a gostar de ficção científica. E
e, por curiosidade (e como tinha acesso à excelente o personagem Spock, como já mencionei, era o meu
biblioteca da faculdade), fazia pesquisas para co- favorito. Aquele ser meio humano, meio vulcano e
nhecer melhor essas fontes citadas. É sempre bom seu eterno conflito entre a razão e a emoção sempre
lembrar que não havia Internet naquela época! Esse me fascinou. A série original e suas derivadas – Nova
tipo de pesquisa fazia parte do meu cotidiano como Geração, Deep Space 9, Voyager e Enterprise –, as-
estudante de Letras. Na faculdade, estudávamos li- sim como os filmes para o cinema constituem um
teratura a fundo, tínhamos semestres inteiros sobre fascinante universo ficcional que, há quase 50 anos,
teoria literária, análise literária, literatura compara- vem proporcionando diversão e entretenimento,
da, personagens de ficção etc. Então, assistir a um assim como reflexão e conhecimento, a milhões de
episódio de Jornada nas Estrelas e encontrar nos ro- fãs no mundo todo. Sou um deles! Pessoalmente, a
teiros as fontes literárias era apenas mais um exercí- série influenciou até minha vida profissional. O en-
cio de literatura para mim. Não podemos esquecer volvimento com Star Trek acabou me direcionando
que todo epidósio, de qualquer série, é escrito antes para a área de tradução literária, particularmente
de ser filmado. Tudo começa com um texto, um ro- de ficção científica. Os primeiros livros que traduzi,
teiro escrito. Não é literatura, mas frequentemente em 1999, foram de Star Trek (que, infelizmente, a
bebe em fontes literárias, como era o caso de Star Editora 67 acabou não publicando). Desde então,
Trek. Quando entrei para a Frota Estelar Brasil, em venho traduzindo livros de ficção científica para a
1991, vi que o fã-clube enviava pelo correio boletins Ed. Aleph, que, aliás, foi pioneira na publicação das
novelizações de Star Trek.

16
História dos Fã-Clubes
de Star Trek no Brasil
Dos Primórdios até 2006
publicado originalmente em www.scarium.com.br/artigos/simao02.htm

A história do movimento de fãs brasilei-


ros de Jornada nas Estrelas (Star Trek) é,
curiosamente, muito posterior ao tempo
em que a série já era exibida na TV de nosso país.
Quando o seriado estava na terceira e última tem-
porada nos Estados Unidos, ele chegou ao Brasil.
Era 1968 e a TV Excelsior, de São Paulo, passou a
exibi-la. Esta emissora sofreu um terrível incêndio e
cessou suas atividades pouco tempo depois. A série
voltaria ao ar em meados dos anos 70, na TV Tupi,
também de São Paulo, exibida durante alguns anos
nos sábados à tarde. Mais alguns anos de ausência e
a série retorna ao ar por meio da TV Bandeirantes,
de São Paulo. Esta emissora passou a ter uma con-
vivência e exibição longa e intermitente, com várias
fases de exibição e retirada do ar. O período mais
longo de exibição foi entre os anos de 1982 e 1985
– quatro temporadas seguidas, portanto. Normal-
mente era exibida à tarde, por volta das dezessete
horas. Mas houve época em que passou às onze da
manhã e às oito e meia da noite – e às vezes em até
dois horários em um mesmo dia!
Na época em que o primeiro fã-clube surgiu, a
série não estava sendo exibida na televisão. Era o
início dos anos 80, pouco depois da exibição do pri-
meiro filme da série no cinema, Jornada nas Estre-
las (Star Trek – The Motion Picture, 1979).
O grupo era composto, em sua maioria, por fãs
que conheciam a série desde os tempos da primeira
exibição no Brasil e durante os anos 70. Se denomi-
por navam como Star Trek Fan Club do Brasil. Vestiam
camisetas que lembravam a série e publicaram um

Marcello
único número de um fanzine chamado Trek News,
editado por Leonardo Bussadori – que anos depois
obteve algum destaque como co-editor do fanzine

Simão Branco
... E no Próximo Episódio, sobre séries de TV.
As atividades deste grupo inicial de fãs consis-
Dos Primórdios até 2006 Marcello Simão Branco

tiam em reuniões semanais no fast-food Well’s da com boa regularidade, além de um dos primeiros
Rua Augusta (centro de São Paulo) e numa loja de do fandom brasileiro de ficção científica ao lado do
fotos e pôsteres de cinema em uma galeria na mes- Boletim Antares, do Clube de Ficção Científica An-
ma rua. Trocavam material, como livros, discos, tares, de Porto Alegre. (2)
revistas e informações sobre Jornada e cinema. Re- O Star News foi publicado de 1983 a 1990, com
ligiosamente todo sábado a partir das duas horas da 43 edições, noventa por cento delas tendo como
tarde. editor o presidente do clube, Álvaro Ricardo. Con-
Alguns dos integrantes foram figuras impor- tinha notícias sobre as atividades do clube, infor-
tantes no fandom de Jornada nas Estrelas durante mações sobre a série e sobre astronomia e astronáu-
vários anos, como o jornalista Sérgio Figueiredo e tica, além de artigos, textos de divulgação científica
Wilson Maffetano, que tinham um conhecimento e, vez por outras, contos de ficção científica.
enciclopédico sobre a série, capazes de reproduzir A SAST mantinha reuniões semanais no sábado
falas inteiras dos personagens em diálogos. Tam- à tarde no mesmo Well’s da Rua Augusta. Isso não
bém fazia parte daqueles primeiros tempos, fãs ati- é simples coincidência. Os dois grupos de fãs se co-
vos por alguns anos, como Paulo ‘Spock’ – que era nheceram quando o Eduardo Quitete viu na fila de
assim chamado porque era fisicamente muito pare- um cinema, membros do Star Trek Fan Club vesti-
cido com o ator Leonard Nimoy –, Pupo – um dos dos com camisetas relativas à série. Um papo leva a
donos da loja de fotos –, Paolo Fabrizio Pugno, Lee outro, e os dois grupos acabaram se conhecendo e
– que confeccionava as camisetas –, Gustavo Vargas integrando. A SAST, devido à sua maior organiza-
(1) e outros. ção, agregou os componentes do primeiro grupo de
Uma passagem interessante destes anos coube ao fãs, que abandonaram aquela denominação.
Figueiredo. Ele respondeu a perguntas sobre a série A SAST contava com um quadro associativo ex-
durante algumas semanas, em um programa de au- pressivo em número (3) e desanimador em ativida-
ditório de muito sucesso na TV, chamado “O Céu de. A maioria dos seus sócios entrou para o clube
é o Limite”, apresentado pelo animador J. Silvestre. motivados pela reprise da série na TV Bandeirantes
– de São Paulo –, entre 1982 e 1985, e pelos sucessos
dos filmes no cinema, Jornada nas Estrelas II, III,
Foguetes e a Série IV e V.
Em março de 1983, contudo, surgiu aquele que
Apesar de muita gente interessante compor a
é identificado com o primeiro fã-clube importan-
entidade, muito poucos ajudavam efetivamente.
te de Jornada nas Estrelas no Brasil, a Sociedade
Isso acabou por levar à direção apenas uma pessoa,
Astronômica Star Trek (SAST). Inicialmente era
o Álvaro Ricardo. Ele ficou cada vez mais identi-
uma associação voltada à divulgação e prática da
ficado pessoalmente com a instituição, levando-a
astronomia amadora e construção de foguetes ex-
de acordo com suas preferências e motivações. Em
perimentais – alguns chegaram a ser lançados às
um certo momento esta dependência excessiva em
margens da represa de Guarapiranga, zona sul de
torno do presidente ocasionou sérios problemas.
São Paulo. Mas dois de seus principais integrantes
Em fins de 1988 alguns sócios próximos a Álvaro
resolveram acrescentar a série entre as atividades do
Ricardo reivindicaram mais espaço para atuar e se
clube. Eram eles, Álvaro Ricardo de Souza Júnior
fazer ouvir no clube. Eram fãs que haviam entra-
e Eduardo Brandau Quitete, estudantes do ensino
do para a organização há poucos anos, sem víncu-
médio do colégio particular XII de Outubro, em
lo com a fundação. Propunham alterações radicais
São Paulo.
na estrutura de funcionamento da SAST: redação
Ao contrário da informalidade e descontração de um novo (e efetivo) estatuto, eleição direta para
do primeiro grupo, a SAST tinha seu estatuto – que, presidente, reformulação do Star News e registro da
apesar disso, nunca foi aplicado na prática –, cadas- entidade como uma instituição legal reconhecida.
tro dos sócios e publicação do fanzine Star News,

19
Dos Primórdios até 2006 Marcello Simão Branco

É possível fazer uma ilação deste movimento cada mês a partir das nove horas da manhã. Mau
com o que o próprio Brasil vivia: um período de sinal: nunca mais de cinco lá apareceram e ocorre-
transição de volta à democracia, depois de duas ram, se tanto, uns três ou quatro encontros. Publi-
décadas sob ditadura militar. Nos mais diferentes cou também o seu fanzine, o Trekker’s Log. A maio-
setores da sociedade, reivindicava-se mais parti- ria das edições teve como editor o fã Dino Braga
cipação e igualdade entre os cidadãos. Uma nova (5), durou quatorze números, com periodicidade
Constituição havia sido promulgada, com amplos irregular e conteúdo precário. Foi o sinal mais evi-
direitos políticos, civis e sociais para os cidadãos. dente do insucesso e fiasco em que se transformou
Mas no microcosmo social da SAST, se é possível a associação pouco mais de um ano depois de sua
assim colocar, os ventos democráticos não foram fundação.
bem recebidos por sua direção. O fato é que novo clube não deu certo por vá-
Sentindo-se meio como dono do clube – por ter rias pequenas razões que se somaram. A Diretoria
sido um dos criadores –, além do fato de conduzi-lo foi mal escolhida, com pessoas inexperientes e que
sem muita ajuda até aquele momento, houve uma se desentendiam facilmente: Solange, presidente;
resistência vigorosa no sentido de não alterar a si- Dino, secretário-executivo e Ivo, tesoureiro. Além
tuação do clube. E para isso contribuiu também o disso, os sócios fundadores não tiveram a devida
fato do próprio presidente nunca ter cobrado uma compreensão e paciência necessária para com uma
maior participação dos sócios – a maioria, especial- entidade nova e em formação. Outro fato é com rela-
mente os mais antigos, omissos e satisfeitos em ape- ção à linha de atuação em que foi idealizado o clube.
nas receber passivamente o que o presidente fazia. Ele foi muito influenciado pelo Clube de Leitores de
Em termos práticos, o presidente Álvaro Ricardo Ficção Científica (CLFC) (6), quanto à forma de ser
foi apoiado por alguns membros fundadores, como conduzido e administrado. Mas o mal não é esse,
o Eduardo Quitete – embora este fosse um pouco mas sim que o Trekker’s Club acabou por se parecer
mais flexível em aceitar mudanças –, e seu influen- mais com um clube literário do que o de uma série
te vice-presidente, Heitor Carbone Júnior. Assim a de televisão. Esqueceu-se que Jornada nas Estrelas
Diretoria não concordou com as propostas de re- é um espetáculo visual de entretenimento e não de
formulação e, infelizmente, o clube se dividiu, com erudição. Que pode ser apreciado coletivamente, ao
o grupo opositor se retirando da associação. (4) passo que um livro é de caráter individual.
E a SAST como ficou? Esvaziada e relegada a
seus fundadores. Até que o próprio presidente per-
Novo Clube desse o interesse e, na prática, o clube se extinguis-
Sem espaço político na SAST, os membros oposi- se. (7) Já os fundadores do Trekker’s Club seguiram
cionistas criaram um novo clube. Assim, nasceu em caminhos diferentes: uns se integraram a novos
28 de maio de 1989 o Trekker’s Club. E com pom- grupos de fãs da série; outros se mantiveram ativos
pa e circunstância: dentro da programação de uma no fandom literário, e houve os que levaram os de-
Semana de Ficção Científica, no Instituto de Física sentendimentos para o lado pessoal e se afastaram
da Universidade de São Paulo. Eis os fundadores: do convívio da comunidade de ficção científica, seja
Dino Jorge Braga, Gustavo Vargas, Ivo Luiz Heinz, a dos trekkers, seja a literária.
Marcello Simão Branco, Patrícia Melo, R.C. Nasci-
mento e Solange Castanheira. Ambicionava por em
prática todas as reivindicações propostas à SAST e, Frota Estelar Brasil
mais que isso, ser a ‘voz oficial’da série no Brasil. Mas no rastro da implosão da SAST e do nasci-
O Trekker’s Club começou suas atividades com mento do Trekker’s Club surgiu aquele que se tor-
reuniões mensais na Livraria Paisagem, situada nou o maior e mais importante clube sobre Jornada
numa galeria na Avenida São Luís, centro de São nas Estrelas até esta primeira década do século XXI.
Paulo. Mais precisamente no segundo sábado de Exatos seis dias depois da fundação do Trekker’s

20
Dos Primórdios até 2006 Marcello Simão Branco

Club foi criada a Frota Estelar Brasil (FEB). (8) Mais posição da série para divulgarem a associação, seja
precisamente no dia 3 de junho, em um sábado nu- em jornais, rádios, revistas e programas de televisão
blado no extinto Cineclube Bixiga, na boêmia Rua os mais variados. Era relativamente comum nestes
13 de maio, centro de São Paulo. O auditório estava primeiros anos da década de 90 vê-los na televisão
lotado e o clube nascia sob a liderança de professo- e na mídia impressa vestidos ou com o uniforme
res universitários e de ensino médio. Seu presidente da série clássica ou então da nova geração. Algumas
eterno, Luís Ambrósio Navarro era secundado, nes- reportagens, inclusive, os ridicularizava, expondo-
te primeiro momento por Aldo Novak e Amaury -os como pessoas bizarras e socialmente mal resol-
Simoni. A entidade apareceu com muita publicida- vidas. Mas nem isso lhes tirava o ânimo em divulgar
de e autopromoção, tendo como marca registrada, em que meio – e de que forma fosse – o fã-clube.
os sócios vestidos com o uniforme dos personagens Este modelo de alta publicidade e eventos popu-
da série clássica. Tinham como lema “levar o co- lares mostrou-se muito bem-sucedido. Além disso,
nhecimento científico através da ficção científica, a FEB tinha atividades cotidianas, digamos, para
especialmente Jornada nas Estrelas.” as suas centenas de sócios. A começar pelo fanzine
Polêmicas à parte, a FEB passa a realizar ativi- Diário de Bordo, que foi publicado de forma irre-
dades que o fã-médio da série – que não lê livros gular por cerca de doze anos. Também o conteúdo
de ficção científica, mas assiste a muita televisão –, era muito variado, segundo o editor de ocasião –
espera: entretenimento e consumo. Arregimentam e foram vários. Por vezes a prioridade era a série,
centenas de jovens fãs, reunindo-os em reuniões por outras uma mescla com popularização cientí-
periódicas chamadas pomposamente de Conven- fica e ficção científica em geral. Publicava também
ções Estelares. Nela exibem episódios das várias sé- boletins informativos com temas específicos e sob
ries da franquia Jornada nas Estrelas, palestras de o cuidado de um fã em particular. Assim havia o
curta duração e com temas populares, no qual con- TrekkerGramma – notícias –, TrekkerCultura – re-
ceitos científicos são discutidos tendo por base o lação da série com literatura – e TrekkerBiografia,
seriado ou a ficção cientifica de modo geral, sorteio com resumos biográficos de atores vinculados à sé-
de produtos e memorabilias relativas à série. Estes rie. (9)
encontros duravam durante um dia inteiro e havia Por alguns anos existiu também uma curiosa
cobrança de ingresso para os não-associados. sub-divisão dentro da FEB, chamada de Divisão
Trocando em miúdos: a FEB importou o modelo de Engenharia. Dois dos sócios, o Ivo Luiz Heinz
norte-americano de eventos de fãs, especialmente – egresso da SAST e do Trekker’s Club e sócio do
os de televisão e cinema, com as devidas adaptações CLFC – e Paolo Fabrizio Pugno – vindo do primei-
ao cenário brasileiro. Isso nunca havia existido nos ro dos grupos de fãs da série –, engenheiros de for-
outros clubes, ou informais demais, ou muito rígi- mação, lideravam reuniões no qual se debatiam as-
dos quanto ao seu funcionamento. E sem o óbvio: suntos técnicos, ‘treknológicos’ da série. Não só fãs
o cultivo à exibição pública dos episódios da série, engenheiros iam às reuniões, mas também fãs em
o objeto de que, afinal de contas, unia a todos em geral interessados neste aspecto da série. E o êxi-
torno de uma mesma paixão. to rendeu um bom fanzine, chamado Warp 9. Com
A FEB também contou com um empurrãozinho: vinte edições – entre 1993 e 1994 –, era bem produ-
entre os anos de 1991 e 1992, a rede de TV Manche- zido e de boa periodicidade. Foi, possivelmente, o
te, do Rio de Janeiro, voltou a exibir a série, depois melhor fanzine brasileiro sobre Jornadas nas Estre-
de seis anos de ausência pela TV Bandeirantes. E a las já realizado. (10)
boa novidade não era apenas a reprise da série clás-
sica mas sim a ansiada estréia no Brasil de Jornada
nas Estrelas – A Nova Geração (Star Trek – The Next
Rio de Janeiro
Generation). Os integrantes da FEB não perderam Mas o movimento de fãs em torno de Jornada
tempo e com senso publicitário aproveitaram a ex- nas Estrelas não se organizou apenas em São Paulo.

21
Dos Primórdios até 2006 Marcello Simão Branco

A ex-capital federal também contou com um grupo ma, Jornada nas Estrelas VI – A Terra Desconheci-
expressivo de fãs. Inicialmente os cariocas se orga- da (Star Trek VI – The Undiscovered Country), em
nizaram em meados dos anos 80 e se integraram à 1992. Fecharam o maior cinema de São Paulo na
SAST. Sob a liderança da jornalista Cristina Nastasi, época, o Comodoro da Av. São João e lá estiveram
uma comunidade se formou, com atividades pró- cerca de mil fãs uniformizados em sua maior parte
prias, como reuniões, visitas esporádicas de alguns para assistir à pré-estréia do filme.
fãs a São Paulo – e dos paulistas aos encontros do Este talvez tenha sido o primeiro dos mega-even-
Rio também. Com a crise da SAST, eles resolve- tos que a FEB passou a organizar. Como já ressalta-
ram manter contato estreito com o novo clube, o do, suas reuniões mensais eram muito populares e
Trekker’s Club, mas também ganharam mais auto- concorridas. Mas foram crescendo em tamanho e
nomia em torno de um fanzine, o JetCom – Jornada ambição. Passaram a ser realizadas apenas quatro
nas Estrelas: Terminal de Comunicações. Bem pro- vezes por ano, num dos maiores centros de conven-
duzido, enfocava a série com sinopses de seriados, ção de São Paulo, o Anhembi, e contaram com uma
comentários de fãs, artigos, curiosidades e notícias. estrutura de organização cada vez mais profissio-
Durou entre os anos de 1992 e 1994. nal. A cargo destes eventos esteve o fã e jornalista
Com a exibição da série por uma televisão do Christiano de Mello Nunes. Ele também editou al-
Rio de Janeiro, alguns fãs terminaram por ser os guns números de um fanzine satírico sobre a série,
próprios dubladores dos personagens, como o fã chamado Galileu, mas se destacou mesmo como o
Guilherme Briggs, também um bom ilustrador so- manager de convenções cada vez mais bem orga-
bre temas relativos à série. Já a Nastasi se especiali- nizadas e divulgadas. Contava com apoio de agên-
zou em tradução, como a autobiografia de Leonard cias de publicidade, releases distribuídos na mídia,
Nimoy, Eu Sou Spock (I Am Spock), pela editora parceria com a CIC Video e a Paramount Pictures
Mercúrio, em 1997. E também a do importante li- no Brasil. Todo este aporte tornou possível a reali-
vro de referência Star Trek Compendium, de Allan zação de alguns sonhos de muitos trekkers: a vinda
Asherman, que ganhou uma edição brasileira com de atores da série clássica ao país.
o título de Jornada nas Estrelas Compendium – A O primeiro deles a desembarcar em São Paulo
Série Clássica, pela editora Sci-Fi Books, de São foi George Takey, o personagem Sulu da série clás-
Paulo, em 1999. (11) sica. Em 28 de setembro de 1996, cerca de mil fãs
Com o passar dos anos e o protagonismo da lotaram uma das salas de eventos do Anhembi. Ofi-
FEB, os fãs cariocas se dispersaram, mas proporcio- cialmente marcou a comemoração de 30 anos de
nalmente foram os que mais trabalharam profissio- Jornada nas Estrelas. Takey proferiu uma palestra
nalmente com a série. E eles realizaram ao menos sobre sua participação na série e assinou dezenas de
um evento de alcance nacional. Foi em setembro de autógrafos.
1989, na pré-estréia de Jornada nas Estrelas V – A Em 2002, seis anos depois, foi a vez de Walter
Última Fronteira (Star Trek V – The Final Frontier). Koenig, o personagem Chekov da série clássica.
Centenas de fãs devidamente uniformizados e (12) Em outro evento com perto de mil pessoas,
fantasiados lotaram um cinema em um sábado dia 15 de junho, em São Paulo, no mesmo local do
à noite, no Largo do Machado, centro do Rio, para evento anterior, o ator deu uma palestra e passou
ver o filme. Dezenas de fãs de São Paulo e outros um dia inteiro na companhia dos fãs.
estados compareceram. No ano seguinte, o Brasil teve a oportunidade
de conhecer mais dois atores. Primeiro, em 28 de
junho em São Paulo, apareceu a atriz Denise Cros-
Visita de atores by, a personagem Tasha Yar, da primeira temporada
A FEB não perdeu tempo e promoveu o mesmo de Jornada nas Estrelas – A Nova Geração. Ela não
evento – em parceria com a Paramount Pictures no veio por meio da FEB e sim da U.S.S., uma loja de
Brasil –, no lançamento do filme seguinte no cine- produtos importados sobre vídeo e cinema. Cerca

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Dos Primórdios até 2006 Marcello Simão Branco

de 120 pessoas assistiram sua palestra no Sindicato no Nunes, com apenas 37 anos, em decorrência de
dos Jornalistas do Estado de São Paulo. A principal uma cirurgia de redução de estômago mal sucedida.
motivação da visita da atriz foi a gravação de um Inclusive, ele mesmo esteve intimamente envolvido
documentário sobre os vários fãs da série em todo nas negociações para trazer Nimoy ao país. O even-
o mundo. to aconteceu três meses após o seu falecimento.
Contudo, o grande e maior evento da história Um fã-clube dividido internamente e sem o seu
do movimento de fãs de Jornada nas Estrelas ocor- manager, o homem que fazia as coisas acontecerem,
re quatro meses depois, em 25 de outubro, em São na prática levou a FEB a diminuir drasticamente
Paulo. A vinda de Leonard Nimoy foi um aconte- todo o conjunto de atividades que a mantinha. Ofi-
cimento que extrapolou o ambiente dos fãs. Ga- cialmente ela não acabou, mas nos dias que correm
nhou muito espaço na imprensa, jornais, revistas e é uma pálida sombra do que já foi um dia.
reportagens de TV. Apesar da presença de Takey e
Koenig ter sido festejada, o que os fãs sempre dese-
jaram mesmo, era a vinda de um dos três principais Dispersão de fãs
atores, Nimoy, William Shatner ou DeForest Kelley. Já antes da desaceleração do principal fã-clube
Como o Dr. McCoy infelizmente faleceu em 1999, da história de Jornada nas Estrelas no Brasil, os fãs
o projeto passou a se concentrar no Capitão Kirk e já se organizavam regionalmente pelo país. E esta
no Sr. Spock. tendência cresceu com a paralização da FEB, ba-
Para se ter uma idéia da popularidade de Spo- sicamente de duas maneiras: 1) criando pequenos
ck, ele é mais conhecido do público em geral do grupos de fãs, espalhados pelo interior do país; 2)
que a própria série. Mesmo quem não gosta ou não mantendo comunicação por meio de sites e listas de
conhece Jornada nas Estrelas, sabe quem é Spock, discussão na internet.
“aquele alienígena de orelhas pontudas.” (13) Apro- No primeiro aspecto, existem alguns fã-clubes
ximadamente mil pessoas também comparecem – espalhados pelo país, ou seja acabou a concentração
no mesmo local dos eventos anteriores – à conven- e dependência de São Paulo. É difícil precisar quan-
ção que marcou sua visita. Nimoy ficou três dias em tos estão ativos, mas os principais são o Organia
São Paulo e além do evento, concedeu entrevistas Star Trek Fã-Clube (de Belo Horizonte, estado de
e participou de uma exposição em uma galeria de Minas Gerais), Star Trek – Federação dos Planetas
arte com fotos de sua autoria. Unidos (de Curitiba, Paraná), Grupo Avançado (de
Mesmo com muita euforia dos fãs e especial- Fortaleza, Ceará), Base Estelar Campinas (de Cam-
mente da FEB, responsável pela vinda de Nimoy e pinas, interior do estado de São Paulo), Solar 7 (de
dos outros atores, este evento marcou, paradoxal- Santo André, também do interior do estado de São
mente, o fim da própria entidade. No momento Paulo).
em que ela atingiu o ápice, chegou também ao seu Durante a primeira metade dos anos 90 foram
ocaso. Já há alguns anos havia discordâncias quanto atuantes clubes como Star Trek Center (de Jundiaí,
à liderança de Luiz Ambrósio Navarro, outro pre- interior do estado de São Paulo), Kobayashi Maru
sidente ad infinitum de clube de fã de Jornada nas (de Porto Alegre, Rio Grande do Sul) e Clube Este-
Estrelas. Alguns fãs, como Aldo Novak, saíram da lar Star Trek (de Belo Horizonte, Minas Gerais). Em
entidade, e tentaram criar fã-clubes de outras séries São Paulo também foi criado um fã-clube em fins
de TV – como Arquivo X –, mas sem êxito. Con- dos anos 90, chamado Federação da Frota Estelar
forme Navarro se estabelecia no poder, procurava de São Paulo, provavelmente um grupo dissidente
se cercar de novos aliados fiéis e que questionassem da Frota Estelar Brasil.
pouco sua liderança.
A maioria destes clubes possue endereço na in-
Contudo, o que realmente motivou o fim das ternet e também mantém listas de discussão, no qual
Convenções Estelares foi a morte precoce e surpre- os fãs mantém contato diário, como o do site Trek
endente do organizador destes eventos, o Christia-

23
Dos Primórdios até 2006 Marcello Simão Branco

Brasilis, um dos mais freqüentados (www.trekbra- Desta forma, se o movimento de fãs se dispersou
silis.net). Existe aproximadamente 60 home-pages em termos de clubes e eventos, ele, porém, não está
criados por fãs brasileiros, enfocando aspectos es- desaparecido. Sem dúvida, que o momento atual é
pecíficos da série, como raças alienígenas, klingons, menor em termos de atividades concretas e influ-
borgs, romulanos, vulcanos, naves espaciais, listas ência dos fãs em torno dos seus interesses com rela-
de episódios, trilhas sonoras, personagens, versões ção às várias séries da franquia Jornada nas Estrelas.
específicas da franquia no cinema e na TV, como, Mas eles mostraram sua força apaixonada e ávida
por exemplo, da Nova Geração e Deep Space Nine, de consumo em maio de 2005 quando quase esgota-
comercialização e troca de produtos etc. ram em apenas um mês, a primeira edição do DVD
E outro motivo de redução das atividades da do primeiro ano da série clássica. (14)
FEB, além dos já apontados, é que a exibição das É possível dizer que os trekkers estão vivos, mas
várias versões da franquia da série passou a ser re- vivendo um momento de maior facilidade de acesso
gularmente exibida em TVs a cabo e por vezes mes- à sua paixão e com um meio de comunicação mais
mo em canais da TV aberta do país. Também foram individualista, como a internet. Talvez só mesmo
lançados episódios das várias versões em VHS e em se o Capitão Kirk viesse ao país, poderíamos reu-
2005 chegou ao país o tão esperado DVD da série nir novamente milhares de fãs em um único local,
clássica. Com tudo isso, o público que comparecia mostrando publicamente – mais uma vez – o quan-
às reuniões da FEB – e de outros fã-clubes – já es- to o brasileiro gosta de Jornada nas Estrelas.
tava diminuindo nos últimos cinco anos, pelo me-
nos. Pois as pessoas não precisavam ir a um evento
público para rever um episódio da série clássica ou
ver um inédito da sétima temporada de Jornada nas Do artigo original: Marcello Simão Branco, jornalista e
Estrelas: A Nova Geração ou ainda um de Voyager trekker por muitos anos, é um dos editores do Anuário Brasi-
leiro de Literatura Fantástica. E-mail do autor: marcellobran-
ou Enterprise. Viam os episódios em suas próprias co@ig.com.br.
casas.

Notas:

(1 ) Este, um dos fãs mais antigos e ativos. Frequentou todos os fãs-clubes da série criados em São Paulo, ao longo de mais de vinte anos. Ficou notabilizado por
organizar várias listas de assinaturas de fãs com o intuito de pressionar emissoras de TV a exibir as várias versões da série, além do lançamento delas em vídeo
VHS.
(2 ) Por coincidência, este clube situado no extremo sul do Brasil também tinha um forte vínculo com a astronomia. Só que aliava a paixão pela observação do
céu com a ficção científica em geral, especialmente a literatura.
(3 ) Inclusive com alguns nomes que se tornariam destaque no cenário da ficção científica brasileira, como os escritores Jorge Luiz Calife e Roberto de Sousa
Causo.
(4) É curioso notar que este ‘racha’ na SAST foi noticiado até na grande imprensa de São Paulo, especificamente no Jornal da Tarde, incluindo fotos de fãs pró e
contra as mudanças.
(5) Depois de se afastar do Trekker’s Club, ele cria uma nova associação na cidade em que morava, São Bernardo do Campo, próxima à São Paulo. Chamou-se
Jornada nas Estrelas Brasil, em setembro de 1994. Consta que o fã-clube durou alguns anos e congregou fãs residentes apenas na cidade.
(6) Criado pelo fã e pesquisador R.C. Nascimento em dezembro de 1985, o Clube de Leitores de Ficção Científica é a principal organização da comunidade de
fãs brasileiros de ficção científica.
(7) Já os primeiros fãs, aqueles do Star Trek Fã Club do Brasil, pareceram alheios às disputas políticas. Continuaram seus encontros semanais por mais alguns
anos na mesma lanchonete e participaram de forma eventual de encontros de fãs de novas entidades criadas posteriormente.
(8) Os integrantes fundadores da Frota Estelar Brasil estiveram presentes – como espectadores – na fundação do Trekker’s Club. E lá anunciaram que também
iriam criar um novo fã-clube. Ainda sobre os criadores da FEB, alguns deles chegaram a comparecer em algumas reuniões no fast-food Wells, no começo dos
anos 80. Mas não se integraram com o grupo que já freqüentava o local.
(9) Vale registrar que também existiram fanzines sobre a série não ligados a fã-clube, ou seja, editados por fãs de maneira independente. Entre os de maior de-
staque pode-se citar o Trekker Report – que chegou a ser vendido em bancas de jornais de São Paulo e o Starfleet. Tiveram pouca regularidade e não resistiram
por muitos anos.
(10) Por causa do êxito de seu trabalho de edição do Warp 9 e coordenação desta Divisão de Engenharia, Ivo e Paolo foram convidados pelas editora Aleph a tra-
duzirem o livro Manual da Enterprise do Engenheiro Montgomery Scott (Mr. Scott’s Guide to the Enterprise), de Shane Johnson, em 1993. Esta editora também
publicou várias novelizações da série, durante a primeira metade da década de 90.
(11) Cristina Nastasi também foi a responsável pelas traduções dos pocket books escritos pelos americanos J.A. Alexander e James Blish – este um prestigiado
autor de ficção científica –, que transformaram os roteiros em contos. Saíram cinco volumes, pela editora paulista Unicórnio Azul, entre os anos de 1995 e 1996.

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Dos Primórdios até 2006 Marcello Simão Branco
Cada volume tinha entre cinco e seis episódios, além de artigos assinados por fãs, como a própria Cristina, Susana Lopes de Alexandria – a responsável pelo
Trekker Cultura, da FEB –, Silvio Alexandre – o editor desta série de livros – , e Anna Creusa Zacharias, autora de um romance baseado na série, chamado A
Abadia, de 1992.
(12) Antes da visita de Walter Koenig, esteve presente em São Paulo nas convenções da FEB, por pelo menos duas vezes, o produtor da Paramount Pictures
americana, Richard Arnold.
(13) Uma curiosidade: em meados dos anos 80, o Brasil vivia um período político de retorno ao regime democrático depois de duas décadas de autoritarismo
militar. Em uma das primeiras eleições da nova fase, chegou a ser confeccionado por alguns fãs, um pequeno cartaz com o rosto de Spock e o slogan: “Spock
Para Presidente!”.
(14) Até o fim de 2005 ainda foram lançados o segundo e terceiro ano da série clássica. Ambos também com boas vendas. E em 2006 chegou ao mercado brasile-
iro temporadas da série Enterprise – a mais recente da franquia – e de Jornada nas Estrelas: A Nova Geração.

Referências bibliográficas:

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LIRA, Roberto de (1994). “Fãs Comemoram Volta de Seriado”, Folha de S. Paulo, 11 de setembro.
NIMOY, Leonard (1997). Eu Sou Spock. Editora Mercúrio.
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SHATNER, William e KRESKI, Cris (1995). Jornada nas Estrelas – Memórias. Editora Nova Fronteira.
TREKKER’S CLUB (1989). Estatuto da associação, maio.

O autor agradece a Roberto de Sousa Causo, que fez o convite para um projeto editorial no qual este artigo foi inicialmente escrito. E a Ivo Luiz Heinz, que fez
uma leitura atenta da primeira versão.

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De 2006 à Atualidade
especialmente escrito para o Somnium 112

N o Brasil, na era nerd da década de 1960


e 1970, quando o estereótipo apontava
pessoas estudiosas e um pouco anti-
-sociais, fãs clubes costumavam ser pequenos eram
singelos e restritos a poucas pessoas, em sua maio-
ria interessados em artistas norte americanos. Na-
quela época, a comunicação em comparação a de
hoje, era precária e dependia da parca tecnologia
do período. O correio ainda era o principal meio
de troca de informações, não existia computador
pessoal e muito menos internet. O mundo, eviden-
temente, era outro.
A partir da década de 1990, com o advento da
informática e dos meios de comunicação, as coisas
começaram a mudar. O conceito de nerd acompa-
nhou essa mudança e atualmente o número de fãs-
-clubes não só aumentou, como os integrantes que
deles participam. O nerdismo, quem diria, virou
moda. Curiosamente a ficção científica através de
séries e de filmes como Jornada nas Estrelas (Star
Trek), trouxe à tona, grupos expressivos como a
Frota Estelar Brasil em São Paulo, seguida pelo Je-
tcon no Rio de Janeiro e a Federação dos Planetas
Unidos em Curitiba.

“Vida Longa e Próspera”

por
A “Federação dos Planetas Unidos”, fã-clube de
Carlos Alberto Machado (FPU, Loja Paraná ficção científica ciência e tecnologia, por exemplo,
do Conselho SteamPunk) com a co-auto- fundada em 1991 na cidade de Curitiba, capital do
Paraná, pelo autor desse artigo, Carlos Alberto Ma-
ria de Lucas Laynes (FPU); Ruben Bender, chado, atualmente vem exercendo o cargo de con-
Michelle Paese, Valter Cardoso (CJPR); selheiro do clube. Na época, como hoje, a principal
Tarcisio Cavalcante (Valey); Adriano Penna intenção do grupo era a de divulgar e expandir o
(Galáctica) e Juliano Yamada (Whovi- espírito do criador da série Gene Rodenberry – co-
ans-PR) e Dioberto Souza (Perry Rhodan e nhecido entre os fãs como “O Grande Pássaro da
Trekker ABC)
De 2006 à Atualidade

Galáxia”, que acreditava em uma sociedade mais reu antes da vinda de George Takei ao Brasil, por-
justa, mais igualitária onde todos sem exceção ti- tanto a Federação foi o primeiro fã-clube do Brasil a
nham voz e vez. Sua utopia influenciou e ainda in- trazer do exterior um participante da série, mesmo
fluencia várias vidas espalhadas pelo mundo, alguns que não tão conhecido. Também estavam presentes
até de forma exagerada, como pode ser evidencia- os dubladores Guilherme Brigs e Silvia Salustiano
do em alguns documentários como o famigerado (ambos do Rio de Janeiro) que dublavam respecti-
Trekkies, produzido pela atriz que colaborou com vamente Worf, Quark e Jadzia Dax. Na gestão atual,
uma das séries Denise Krosby. Dizem que na déca- nas batutas de Lucas Laynes e Roberson Caldeira
da de 1990 para cada dez norte-americanos, nove Nunes, vários eventos foram e continuam a ser re-
seriam trekkers (fãs da série). Hoje, o número deve alizados todos os anos no mês de agosto na capital
ter diminuído, mas curiosamente no Brasil o núme- paranaense, sempre com o apoio da Gibiteca e da
ro, apesar de mais baixo que o dos norte-america- Fundação Cultural de Curitiba, que sedem os espa-
nos, tem se mantido. Em São Paulo, existem pelo ços culturais Cinemateca e o Memorial da Cidade,
menos mais dois clubes envolvidos com a temática para a realização dos eventos.
‘Grupo USS Venture’, ‘Frota Estelar Brasil’, ‘Fede- Com 23 anos de existência a Federação dos
ração da Frota Estelar São Paulo’ e ‘Trekker ABC’ Planetas Unidos é hoje uma associação sem fins
e outro no Rio de Janeiro ‘AFERJ – Academia da lucrativos devidamente registrada, com três mega
Frota Estelar Rio de Janeiro’. Todos, trocam infor- convenções, dezoito convenções, duas exposições,
mações entre si. Esse espírito desbravador e o gosto lançamentos de filmes e livros e incontáveis reuni-
pela ciência, que está embutida nessas séries levam ões já realizadas, tudo isso com forte presença de
esses grupos a insistirem em um sonho que não es- público e participantes de outros grupos brasileiros,
morecerá tão cedo. uma referência de fã– clubes de Jornada nas Estre-
Durante o primeiro ano, a FPU, como também é las no Brasil. Atualmente, a Federação realiza even-
conhecida, organizou convenções mensais abertas tos e mostras de cinema anuais, palestras em esco-
ao público no auditório da Secretaria de Cultura, las e universidades, lançamentos de livros e filmes,
Esportes e Turismo do Paraná, em Curitiba onde reuniões e participa como parceiro de eventos da
realizava mostras de filmes em telões, realizavam cultura nerd em geral, não apenas em Curitiba, mas
também palestras e debates com os participantes. também em outras cidades e estados do país.
Nesta época, o fã-clube desenvolveu uma bandeira Até um casamento nerd ao estilo jornada foi sa-
com símbolo similar ao da Federação demonstra- cramentado em Curitiba, antes mesmo da moda vir
da nos filmes com quatro estrelas, mas em forma ao Brasil. Em 1997, Carlos Alberto Machado e Elia-
do Cruzeiro do Sul, com cinco (conjunto de estre- na Gonçalves combinaram com seus padrinhos de
las que só podem ser vistos do hemisfério sul da casarem-se no civil, vestidos de forma diferenciada
Terra), acrescentado em seu bordado. Por tradição, lembrando a utopia de Gene. Carlos encomendou
esta bandeira confeccionada exclusivamente em ce- uma roupa de gala da série Nova Geração e Eliana
tim, é utilizada apenas em eventos que o clube or- um vestido estilo princesa medieval. Assim o passa-
ganiza. Com o passar do tempo, o grupo cresceu do e o futuro se juntaram na esperança de um mun-
cada vez mais, o que levou-os em 1995, a realizar do melhor. A maioria dos padrinhos foram devi-
uma mega convenção na cidade com o intuito de damente uniformizados e a cerimônia foi realizada
convidar outros clubes nacionais relacionadas ao em um bosque de um restaurante italiano da cida-
tema. Assim, surgiu a 1ª Mega Convenção de Jorna- de. Três saxofones tocavam a trilha de Star Trek na
da nas Estrelas da Federação dos Planetas Unidos, entrada do noivo e a USS Excalibur encontrava-se
realizada no extinto cinema da Prefeitura Munici- estacionada no bolo de casamento do casal que sa-
pal da cidade. Nesse mesmo mega evento também lientava o símbolo da Frota Estelar confeitado com
estava presente a atriz paranaense Sandra Grando bolinhas prateadas. Foi registrado como o primeiro
(que atuou na época nas séries Deep Space Nine e casamento nerd com temática ficcional da Améri-
Next Generations como atriz figurante). Isso ocor-

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De 2006 à Atualidade

ca Latina e o segundo a nível mundial. O primeiro, mateca de Curitiba. O local acolheu muito bem os
naturalmente teria ocorrido nos Estados Unidos 220 participantes do evento, incluindo fãs visitantes
da América um pouco antes. Na época o progra- paulistas e cariocas. Com o patrocínio da revistaria
ma Fantástico da Rede Globo, interessou-se pelas Itiban, o apoio da FOX filmes e da Fundação Cul-
imagens que foram feitas e até queriam entrevistar o tural de Curitiba e da parceria com o CJSP, CJRJ
casal, mas a noiva não permitiu que fosse publicado e o CIRCWB que apenas ajudaram a abrilhantar
na mídia. Lembramos que em 1997 cerimônias des- ainda mais o evento do CJPR. O auditório do ci-
se tipo ainda não eram bem vistas pela sociedade nema ficou o tempo todo lotado para exibição dos
como o são atualmente. Dessa forma é compreen- fãs filmes nacionais: Sombras do Império de Milton
sível o receio pela divulgação. Alienígenas também Sorares, Casa dos Jedi de Henrique Granado e Du-
não foram permitidos, mas uma versão do andrói- pla Surpresa de Joel Caetano. No final da semana da
de Data esteve presente na cerimônia como um dos Jedicon a lista de discussão aumentou cosideravel-
padrinhos. Aliás, vários padrinhos e alguns convi- mente o número de participantes. Com o sucesso
dados fizeram questão de ir a caráter o que apenas da Jedicon e o aumento na participação empírica e
abrilhantou a cerimônia. virtual, foi criada a primeira ORG do CJPR repre-
sentadas por: Presidente – Thais Mayumi Makuta,
Vice – Ricardo C. Quisen Jr., Secretaria – Tatiane
“Que a força esteja com você” Saldanha, Tesoureiro – Anderson Tino Toledo, Re-
lações Publicas Inter-Conselhos – Federico Ferreira
Almada, Relações Publicas Local – Roberson Mau-
No ano de 1999, o Episódio I de Guerra nas Es- ricio Caldeira Nunes, Diretor de Eventos – Luiz
trelas (Star Wars) chegava aos cinemas, após vários Antonio Gouvea, Webmaster – Alex Marik, Owner
anos de espera dos fãs da saga. Os três primeiros lista CJPR – Valter Cardoso.
Conselhos Jedi do Brasil (CJRJ, CJSP e CJMG) já
estavam em atividade e organizaram a primeira Je- Ainda em 2005, foi realizada a Pré-Estréia do
dicon do Brasil, em São Paulo. Com a internet mais Episódio III no Shopping Estação e uma apresen-
consolidada no Brasil, informações sobre os CJs e tação especial no espaço cultural da Livraria Fnac.
sobre a Jedicon chegaram ao Paraná. Três fãs, que O grupo agora contava com mais pessoas ativas,
moravam em Curitiba, mas não se conheciam, tive- como Elizabeth, Claudia, Rebeka, Alexandre, Leia,
ram a mesma ideia: procurar outros fãs para criar o Murilo, entre outros. Em 2006 e 2007, apesar de não
CJPR. Larissa Redeker foi à Jedicon em São Paulo, haverem Jedicon, foram realizadas duas exposições
Rafael ??? participava do Fórum do CJSP e Valter nas Livrarias Curitiba.
Cardoso participava de uma lista de discussão com O ano de 2008 inaugurou uma nova fase no
participantes do CJSP. CJPR, com a participação de Ruben Bender, Daniel
Após contatos por e-mail e telefone no final do Welinky e o retorno de Alex Marik. A Jedicon na
ano de 1999, resolveram oficializar o início do CJPR Cinemateca chegou aos 600 participantes, as Li-
com a lista de discussão no início de 2000. Dia 16 vrarias Curitiba sediaram um Quiz e uma Caça ao
de março de 2000 foi realizada a primeira reunião, Tesouro, foram realizadas exposições no Sesc da Es-
e o grupo começou a crescer. Até junho do mesmo quina e no Shopping Água Verde.
ano eram realizadas uma ou duas reuniões por se- Em 2009 o CJPR já se tornava um dos fãs clubes
mana, que contava com Darth Massacre, Marlon, mais ativos do país. A cinemateca ficou pequena
Michelle, Mauricio, Alex, Thais e Daniel, além dos para os mais de 800 participantes, incluindo os visi-
três fundadores. Em 2001 a lista de discussão estava tantes do CJSP de Santos (SP), durante o evento. O
com 40 participantes, permanecendo nesse número CJPR organizou a única exibição nacional fora do
até o ano de 2005, quando o último episódio da saga circuito de mostras do aguardado filme “FanBoys”,
chegava aos cinemas. Incentivados pelo CJSP e pelo produção dedicada ao amor dos fãs pela saga. Par-
CJRJ, foi realizada a primeira Jedicon PR, na Cine- ticipou de vários eventos, como a Expotrek no Sho-

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De 2006 à Atualidade

pping Jardim das Américas, promovido pela FPU, incluindo os visitantes do CJSP e CJRS.
do lançamento da Hasbro na Bumerangue do Sho- A JediCon ainda teve mais uma edição em 2013,
pping Estação, outras exposições na Fnac e Sho- quando com diversificada programação e atividades
pping Água Verde, palestra sobre o Mito do Herói interativas atraiu mais de 5000 pessoas ao Shopping
nas Livrarias Curitiba e a participação no Mac Dia Omar, onde novamente foi realizada, no concurso
Feliz. Também marcou presença com a maior cara- de cosplay, o CJPR mais uma vez proporcionou um
vana de outro estado na Jedicon SP, com 28 de seus grande prêmio cedido pela administração do sho-
integrantes, incluindo a palestra “O japonismo lu- pping, um XBOX One, vídeo game de última gera-
casiano de Star Wars” de Carlos Alberto Machado. ção para o primeiro colocado.
2009 rendeu frutos em 2010, culminando na Em 2014 representantes do CJPR participaram
exuberante Jedicon realizada no Colégio Santa Ma- do “IV FCírculo, Ficção Científica em debate” ocor-
ria, que acolheu mais de 3000 pessoas, incluindo os rido na Universidade Estadual do Centro Oeste
visitantes do CJMG, do CJSP (Santos) e de Joinville. (Unicentro) em Guarapuava, quando realizaram
Os eventos continuaram com o lançamento da co- exposição de memorabílias e divulgação da saga.
leção Adidas no Shopping Barigui, Páscoa solidária
na APACN e na unidade CEDAE da APAE-Ctba, Atualmente em 2015, o CJPR através de parce-
Mac Dia Feliz concomitantemente em Curitiba e ria com a Livraria Cultura está realizando diver-
São José dos Pinhais, Palestras e Caça ao Tesouro sos mini eventos em preparação ao lançamento do
nas Livrarias Curitiba, exibição de filmes na Cine- novo filme da saga de Star Wars que acontecerá em
mateca denominado Esquenta Jedicon. Em come- dezembro e planos para mais uma edição da Jedi-
moração ao 30º aniversário de “O Império Contra- Con-PR também estão em andamento.
-Ataca” o CJPR adquiriu o direito de exibição do
filme, e dentro do esquenta apresentou o Episódio
V gratuitamente, foi a primeira vez que muitos fãs “Ruas? Pra onde vamos não precisamos de ruas.”
(mais novos) puderam assistir à obra na telona.
Os eventos em que participou como convida- Em 10 de fevereiro de 2012 Tarcisio Cavalcante
do foram: 15a Convenção Trekker no Memorial conversava com sua amiga Fernanda Região, sobre
de Curitiba, Evento da APP de Londrina, Evento a promoção de um encontro para assistirem filmes
de Plastimodelismo no Museu Expedicionário e e realizar palestras sobre a trilogia De Volta para o
World RPG Fest. Em 2011 o “Esquenta JediCon” Futuro. A idéia era um encontro casual sem preten-
evoluiu para “Mostra de Fã Filmes de Star Wars”, sões, apenas para um bate papo. No dia seguinte
presenteando os fãs com uma grande variedade de com a ajuda de Rubão Bender, um dos incentivado-
obras independentes pela primeira vez legenda- res do CJPR (Clube Jedi Paraná), entraram em con-
das. Houve também uma nova edição da Caça ao tato com a administração do Shopping Omar que
Tesouro nas Livrarias Curitiba, sendo que nesta demonstrou interesse na temática da trilogia feita
edição ocorreu participação recorde dos integran- para o cinema.
tes do grupo. A Jedicon mais uma vez “mudou de Dessa forma, dia 24 de março de 2012 é exibido
casa” e foi sediada no Shopping Omar, com grande toda a trilogia no Cinema do Shopping Omar, com
variedade de estandes e atrações de entretenimento a presença do crítico de cinema Marden Machado,
para o público. Durante o evento contou com o lan- e dos professores universitários Carlos Alberto Ma-
çamento regional do livro “Space Ópera”, contando chado e Bertoldo Scheneider Jr. em um bate papo
com alguns autores do mesmo. Foi o primeiro fã acalorado ao final da exibição. Com a empolgação
clube de Star Wars a premiar o concurso de cosplay do sucesso do evento, cerca de dois dias depois, foi
com um console de vídeo game de última geração, fundado oficialmente com o primeiro fã clube da
cedido pela administração do shopping. A quinta série denominado Hill Valey Telegraph – De Volta
edição do evento contou com quase 3800 pessoas, para o Futuro. Em janeiro de 2014, Valter Cardo-

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De 2006 à Atualidade

so (um dos criadores do CJPR), ingressa no grupo intitulados “Cylons”, uma raça cibernética liderada
virtualmente trazendo um convite especial para a por um alien réptil que, aparecia muito pouco nos
participação da Iª Megacon Brasil. episódios.
Em 05 de julho de 2014 finalmente ocorre a Iª Em 2004, o canal Sci-Fi, com a genialidade do
MegaCon 2014. Mesmo sem stand, participaram roteiro de Ronald. D Moore, Battestar Galactica
na organização do evento levando também alguns estreou como um remake da série homônima, mas
itens para passear e ajudar na divulgação por lá. com uma abordagem diferenciada, mais atual e
Em julho do mesmo ano, a convite de Roberson apresentando diversas mudanças no enredo. Já não
Caldeira Nunes (atual presidente da FPU) e de Lu- havia mais aliens, mas os Cilonions continuavam
cas Laynes, participaram da 18ª TrekCon, organiza- a ser vilões, só que agora, se voltam para aniqui-
da pela FPU – Federação, com seu primeiro stand lar seus criadores, a própria humanidade. Esta hu-
oficial! manidade sofre um grande ataque e, com mais ou
menos 49 mil sobreviventes, começa sua fuga em
Estava implantado ali a semente dos eventos... o busca de um novo mundo, perseguidos pelos seus
grupo virou “oficialmente” um Fandom, ou um fã- algozes Cylons, os quais tem o objetivo de extermi-
-clube. Daquele momento em diante, vários eventos ná-la. O grande diferencial da nova série exibida
se seguiram e o grupo só cresceu. Ainda em outu- em 2004, é que a frota colonial luta para sobreviver
bro do mesmo ano, o fã-clube descobriu o proprie- à sua extinção, e não mais contra os Cylons, mas
tário de um DeLorean DMC-12 em Curitiba, que de si próprios! Imaginem um aglomerado de seres
estaria disposto a participar dos próximos eventos humanos em diversas e gigantescas naves coloniais,
e de exposições especiais promovidas pelo clube. onde se misturam vários níveis sociais, intolerância
Em 2015 pela comemoração da trilogia que citava racial, religiosa e divergências políticas. Esse mes-
o mesmo ano nos filmes, o grupo Cinemark e o fã mo aglomerado protegido por uma única nave de
clube criou uma enorme campanha nas mídias de combate que tenta protegê-los e ao mesmo tempo
redes sociais que auxiliaram a lotar as salas dos ci- reestabelecer a ordem, onde as lideranças se perde-
nemas em todo o Brasil, fazendo a rede de cinemas ram e os recursos são escassos e quase nulos. Jus-
ampliar por mais duas semanas a exibição das obras tamente pelo fato que a capacidade de Battlestar
cinematográficas. Galactica tem dentro do tema ficção científica, em
Entre os dias 01 e 10 de maio de 2015 partici- reunir várias vertentes como política, religião, so-
param da exposição De Volta para o Futuro, com ciologia, guerra, e demais tabus e pontos realistas
a participação do DeLorean DMC-12 no ParkSho- que fazem menção a nossa atual sociedade, não há
pping Center Barigui. Sucesso absoluto! como evitar o surgimento de uma legião de fãs e a
criação de fãs clubes pelo mundo.
O ‘Universo Scify’ é uma dimensão onde tudo
“Sosayweall!” é possível num vislumbre do futuro, na lembrança
do passado e nas descobertas do presente. A fic-
Outro grupo que vem crescendo é o Battlestar ção científica é muito mais que monstros surreais,
Galactica Brasil localizado em São Paulo. pessoas de pele azul ou de orelhas pontudas, assim
como muitos a enxergam e classificam como bo-
O Grupo USS Venture, já citado acima, costuma bagem. Na verdade existem vários níveis de Ficção
apoiar diversos grupos e fã-clubes pertencentes a Científica – desde a mais infantil e ‘trash’ – até a
outros Universos SCIFI. Entre outros, incentivaram mais rica em conteúdo subdividida em ‘soft’ e ‘hard’.
a criação e divulgação do Grupo Battlestar Galacti- O conteúdo varia trazendo visões utópicas ou distó-
ca Brasil. O enredo desta série da década de 1978, picas bem elaboradas à nossa sociedade atual. Mas
é recheada de aventuras e fantasias relatando a fuga o fato é que as ficções científicas são as obras que
dos últimos sobreviventes da humanidade ocasio- mais abordam os problemas sociais e políticos. E o
nada por um grande ataque realizado por vilões

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De 2006 à Atualidade

melhor: São essas obras que fazem a melhor crítica, No aniversário do grupo, Richard, presenteou
com uma visão mais avançada que qualquer filme seus fãs brasileiros com um vídeo produzido de seu
dito “realista”, pois não se sentem presas a pessoas e/ próprio celular, um gesto simples, mas muito pe-
ou grupos conhecidos. Dessa forma está livre para culir, mandando um ‘olá’ e antecipando boas novas
realizar críticas comparativas. Uma franquia que re- sobre algo dentro da franquia de Galactica. “Muito
presenta bem essa abordagem é Battlestar Galacti- querido e carismático, o nosso capitão Apolo”, de-
ca! Criada pelo ‘saudoso’ Glean A. Larson em 1978, clarou Marcia Klimiuc, uma das principais respon-
Galactica trazia a humanidade no princípio de sua sáveis pelo sucesso do Fã-clube BSG Brasil em nos-
criação com a seguinte afirmação: “A vida começou so país e fora dele, dentre fãs, produtoras e atores
lá fora”. Até o momento também é considerada por da série.
muitos, como a melhor série de ficção científica Acesse o site www.bsgbrasil.com e faça parte do
deste século. fã-clube brasileiro de Battlestar Galactica!
Torna-se muito fácil identificar um país, uma
crise social, um conflito internacional, ou até mes-
mo a si próprio dentro do enredo e dos persona- “Always”
gens da franquia. Assim esse estigma atraente acaba
por unir muitos fãs em grupos e clubes pela face
da Terra. Existem fã-clubes nos EUA, na Europa Em meados de 2010, Juliano Yamada, tinha 28
(Itália) e na América do Sul, mais precisamente no anos e havia se tornado fã de uma série britânica
Brasil! Nas terras tupiniquins, o primeiro fã-clube chamada Doctor Who, criada na década de 1960,
de Galactica – Battlestar Galactica Brasil – surgiu o qual contava a história de um Timelord (Lord do
em 2011, possivelmente o único representante da Tempo) natural do planeta Gallifrey que viajava
franquia na América Latina. Segundo o vice-pre- pelo tempo e espaço com o uso de sua nave TAR-
sidente do clube BSG Brasil, Samir Fabiano... “Nós DIS. Bom, como de costume Yamada sempre curtia
iniciamos nossa viagem pelo universo da fantasia o tema ficção científica misturado com o fantástico
levando conosco poucos colonos que tem o mesmo e logo se apegou de forma impressionante a nova
objetivo... Curtir Battlestar Galactica! Logo no iní- série britânica. No mesmo ano percebeu que no Fa-
cio desta viagem fomos encontrando pelo caminho, cebook estavam surgindo vários grupos regionais
mais coloniais remanescentes e, consequentemente de Doctor Who (Whovians-SP, Whovians-RJ, etc.)
aumentando nosso comboio. Somos uma pequena e dessa forma decidiu aguardar o surgimento de
frota de mais ou menos 670 tripulantes brasileiros, algum grupo similar no Paraná. 2011 havia chego
unida pelo bem comum, pela alegria de curtimos o e nada do grupo surgir. Então, próximo de agos-
que gostamos e também para divulgar aquilo que to resolveu fundar um grupo paranaense, quando
a franquia aborda e admiramos – ‘Os seres huma- reuniu cerca de 50 interessados na série inglesa. Fi-
nos’ – com todos seus defeitos – que são muitos, zeram seu primeiro encontro Whovian no Museu
qualidades, diversidade cultural e religiosa, política Oscar Niemeyer em 17 de setembro de 2011. De lá
e é claro, a ficção científica. Venham curtir conosco para cá, o grupo só cresceu de uma forma impres-
e vislumbrar a capacidade dos seres humanos em sionante. De 50 integrantes paranaenses para 1000.
sobreviver, não aos cylons, mas a si próprios”, com- Começaram a realizar eventos periódicos denomi-
pletou Samir. Em constante crescimento, o clube nados Café Whovian (reunião informal com o in-
brasileiro tem chamado atenção pelas redes sociais tuito de interagir novos integrantes) e o Whovianic
e, recentemente ganhou a atenção e apoio de um (piquenique que costuma ser realizado em locais
dos principais protagonistas das duas séries, o ator públicos como parques ou bosques de Curitiba).
e produtor Richard Hatch, o capitão Apolo da série Em 2012 ocorreu o denominado BOOM Who-
de 1978 e o vice-presidente Tom Zarek, na série de vian, graças ao espaço cedido pela ExpoTrek da FPU
2004. (já mencionado anteriormente) para divulgação de
outros grupos, mas o ano considerado crucial aca-

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De 2006 à Atualidade

bou sendo 2013, ano do aniversário de 50 anos da Paulo. Todos apreciam o mesmo gênero visual que
série, em que o grupo realizou um evento especial já existia na literatura e televisão, mas que até a dé-
no auditório da livraria Cultura no Shopping Curi- cada de 1980 ainda não possuía um nome. Contos
tiba, quando ocorreu um concurso cosplay e pales- de Julio Verne, H. G. Wells e a série televisiva de
tras focadas no assunto Viagem no Tempo, realiza- James West já eram bons exemplos do estilo Steam-
da por professores universitários e fãs do gênero. Punk.
Atualmente, em 2015, o grupo Whovian PR con- O termo SteamPunk surgiu em meados de 1980
ta com um corpo organizacional formado por Ju- em meio a romances ciberpunk que vinculavam na-
liano Yamada como Coordenador Geral, sub-chefia quele período. Histórias de universos paralelos nar-
de Luiza “Lulu” Gabriella, apoios de Mariana Benti- rando aventuras com personagens históricos que de
voglio, Ricardo “Cyberman” Becker, Camila Perei- alguma forma mudaram algum detalhe no passado.
ra e muitos outros apoiadores. O clube ainda conta Dessa forma a tecnologia a vapor desenvolveu-se de
com um grupo-filho conhecido como Sherlock-PR, maneira significativa enquanto a energia elétrica fi-
fã-clube da série Sherlock surgida de integrantes do cava estagnada ao seu princípio entre as primeiras
grupo Whovians-PR. Seu principal foco, como a lâmpadas e as requintadas válvulas. Juntas, singram
maioria dos grupos atuais é a rede social Facebook os mares da imaginação de escritores e roteiristas
como facebook.com/groups/WHOVIANS.PR e que cada vez aumentam em número seus escritos,
também divulgam suas ações através do Twitter. filmes e animações. O século XXI trouxe a tona um
com/WHOVIANS_PR estilo novo trajado de antigo valorizando o passado
sem esquecer o futuro, o retrofuturismo, um movi-
mento cultural que veio para ficar, que foge as mais
“Fogo na Caldeira e Asas a Imaginação” loucas previsões realizadas no passado por escrito-
res futuristas que arriscavam tentar imaginar como
seria nosso futuro.
A imaginação literária tem sido a principal res-
ponsável pela criação de fãs clubes em todo o mun- Os grupos brasileiros especializaram-se cada um
do. Mas em alguns casos o visual parece competir em algum tipo de arte como teatro steampunk, dan-
com a literatura. É o caso dos estilos que vem fa- ça tribal, literatura específica do gênero, concursos
zendo sucesso de maneira tímida, mas que costuma de steamplay “fantasias” e criações de maquinários.
chamar a atenção dos mais desavisados. Trata-se do A Loja Paraná do Conselho SteamPunk funda-
movimento underground SteamPunk, Dieselpunk da por Carlos Alberto Machado, Gislaine Pereira e
e outros punks da vida. O Brasil não foi exceção e Pierrot Raffael “Ciel” em 2009 com a participação
por aqui os estilos se misturam e participam da vida em eventos do gênero ficção científica ou de ani-
de um grupo de pessoas e em vários estados bra- mes. Com o auxilio da Gibiteca no Solar do Barão
sileiros. Os principais responsáveis por sua difusão organizaram inúmeras oficinas práticas que incen-
no país tupiniquim, sem dúvida, foram e ainda são, tivavam a criação de artifícios que beneficiaram a
Bruno Acioly do Rio de Janeiro e Cândido Ruiz de existência do movimento no Paraná. Oficinas de
São Paulo. Verdadeiros incentivadores da criação cartolas, pinturas de envelhecimento em plástico,
brasileira do Conselho SteamPunk que espalhou- couro, como adquirir roupas adequadas em bre-
-se para quase todo o território nacional. São Paulo, chós, faça você mesmo seu Goggle, como usar a
Rio de Janeiro, Santa Catarina, Paraná, Pará, Ceará, madeira para defesa, como criar sua personagem
Rondônia, Brasília, Campinas(SP) e Londrina(PR). steampunk, ou como eles gostam de dizer “oficinas
As conhecidas “lojas”, verdadeiras associações sem mão na massa”.
fins lucrativos, com a titulação inspirada nos tradi-
cionais e enigmáticos maçons. Outros grupos ainda Com o aumento dos integrantes sentiram a ne-
surgiram dentro dessa temática como Steampunk cessidade de criar seus próprios eventos sempre
AirShip Piratas e Airship Galleon, ambos de São homenageando alguma personalidade histórica
como Rainha Elizabeth, Julio Verne, Leonardo Da

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De 2006 à Atualidade

Vince, Santos Dumont e outros, os conhecidos Café “Como será?” da Rede Globo de Televisão.
a Vapor. Iniciaram-se no centro cultural Arcádia, Participações literárias de integrantes do grupo
onde realizaram dois eventos e atualmente todos ainda se destacam como “Nefilin” na obra Deus Ex
ocorrem no AOCABar na rua 13 de maio na cida- Machina da editora Estronho, “O Turista” no livro
de de Curitiba. Nesses eventos fechados realizam S.O.S. a Maldição do Titanic, da editora Literata e
atividades culturais, exposições de museus, danças, o atual Vapor Marginal a ser lançado pela editora
apresentações artísticas e concursos de steamplays AVEC, Selo Taberna, com o conto “O Tempo, Com-
(fantasias steampunk). Também realizam conves- panheiro Eterno” a ser lançado em agosto de 2015
cotes (picnics) steampunk em parques da cidade na STEAMCON 2015.
uma vez ao ano, participam de eventos estaduais e
interestaduais na divulgação do movimento. Ainda Contatos:
auxiliam e participam ativamente das STEAMCON http://pr.steampunk.com.br/ e face: https://
nacionais promovidas pela Loja São Paulo do Con- www.facebook.com/groups/146818038739904/?-
selho SteamPunk, ocorridas na capital steampunk fref=ts
brasileira, a bela cidadezinha de Paranapiacaba lo-
calizada no litoral de São Paulo (Cidade ferroviária
construída por ingleses no século retrasado) e dos Perry Rhodan e o grupo TrekkerABC
picnics e chás vitorianos, promovidos por um gru-
po de senhoras curitibanas que preservam alguns
aspectos culturais da bela época. Visto suas afini- Outro grupo que se destaca entre os fãs desde a
dades vitorianas, atualmente as meninas do picnic década de 1990, é o Perry Rhodan, mas agora ape-
vitoriano e a Loja Paraná do Conselho SteamPunk nas de forma virtual possuindo centenas de fãs pelo
tem procurado trabalhar em conjunto, principal- Brasil que participam de comunidades na internet
mente como apoio. com sites e blogs. Em São Paulo Dioberto Souza,
Kleber Toledo e Luciano Marzocca são os princi-
Atualmente conta em sua organização com os pais responsáveis pela divulgação do herói da fic-
steamers: Carlos A. Machado, Renata C. Kama- ção científica alemã em nosso país. Eles costumam
rowski, Paulo Willians, Anne Karoline, Daniel Do- participar de eventos de ficção científica e fantasia
erner, Lincoln Schindler, Carolina Schindler, André nacionais montando meses de divulgação da série,
Felipe Wielgosz Leite, Carla Popper, Guiro Luan e levando itens pessoais que possuem e apresentando
Evelin Iensem. Cada um com seu personagem além palestras especiais sobre a série. Através do Trekker
da divulgação, entre outros, já participaram tam- ABC que costuma realizar eventos envolvendo pro-
bém das divertidas vídeo fotonovelas steampunk fissionais de áreas (cientistas, escritores, jornalistas,
que podem ser encontradas facilmente no youtu- professores e outros profissionais liberais) que te-
be: “Carnivale SteamPunk”, “O Sequestro no Trem” nham alguma afinidade com os gêneros ficção cien-
(com a co-participação da Loja Campinas) e “A tífica, fantasia, aventura e afins. Apesar da nomen-
Maldição da Múmia”. A idéia foi resgatar tradições clatura que carrega o Trekker ABC, o grupo não se
antigas atualmente abandonadas como os intertí- restringe apenas a série de Jornada nas Estrelas, mas
tulos do cinema mudo, as fotonovelas das décadas também a divulgação e exibição de séries, anima-
de 1960 e 1970, misturadas a ensaios fotográficos e ções, tokusatsus, animes e filmes que tratem espe-
técnicas como photoshop e stop motion. cialmente de ficção científica, fantasia e aventura,
O movimento SteamPunk apesar de undergrou- tanto atuais como antigos, sem qualquer distinção.
nd vem crescendo a olhos vistos em nosso país. O grupo surgiu a partir das reuniões de amigos com
Recentemente, maio de 2015, vários programas te- interesses em comum, que exibiam vídeos e itens de
levisivos nacionais descobriram o movimento e o coleção em casa ou em eventos específicos. As ati-
mostram em suas programações como o “Hoje em vidades públicas iniciaram-se oficialmente em ju-
Dia” da Rede Record de Televisão e o programa lho de 2012, quando, junto com o Departamento de

33
De 2006 à Atualidade

Cultura da Prefeitura de São Bernardo do Campo, cial para a maior doação do dia); – Para todos que
exibiu episódios de Jornada nas Estrelas em três sá- comparecerem a caráter (cosplay) além do prêmio
bados consecutivos. Hoje, os eventos ocorrem uma especial para a melhor caracterização (não precisa
vez ao mês. ser somente das séries exibidas).
O que é exibido nos eventos faz parte do material Contatos principais do Trekker ABC:
pessoal dos membros, a maioria colecionadores de E-mail: trekkerabc@gmail.com;
longa data, com amplo acervo. Quando não há al-
gum material, como todo bom fã, os membros vão à Facebook:
caça até encontrar o que procuram. Também existe https://w w w.faceb o ok.com/
uma equipe que produz legendas para os vídeos que groups/264905533622202/
não estiverem disponíveis em português. É impor-
tante salientar que todos os eventos são gratuitos e https://www.facebook.com/TrekkerAbc
o público presente concorre a sorteios de brindes Luciano Marzocca lucianomarzocca@gmail.com
de três formas: – Para todos os participantes do https://www.facebook.com/lucmarzocca
evento; – Para todos os que fizerem doações de li- Kleber Toledo kleber.mulero@gmail.com ht-
vros, revistas e quadrinhos (além do prêmio espe- tps://www.facebook.com/kleber.toledo.1

34
Arte por Sid Castro
Arte por Sid Castro
R E S E N H AS
O Médico das Estrelas
Resenha
O Médico das Estrelas
por Caliel Alves

M uitos livros clássicos de ficção


científica foram escritos por cien-
tistas, professores e até invento-
res. Os exemplos são muitos, dentre eles, Isaac Asi-
mov, Carl Sagan, Jules Verne e B. B. Jenitez (escritor
da série de contos Projeto Mulah de Tróia).
Murray Leinster é o pseudônimo de W. F.
Jenkins. Trata-se nada mais nada menos do que o
inventor da unidade de projeção frontal, um disposi-
tivo que permite suprimir cenários, substituindo-os
por projeções de películas, mas diferenciando-se do
sistema clássico de projeção num pano transparente
de fundo, por permitir, que as personagens entrem
e saiam por portas que não existem e movam obje-
tos dos quais apenas se vê na imagem (assim des-
crito na introdução do livro O médico das estrelas).
Quando começou a escrever não era muito fa-
moso, adotando assim, o pseudo de Murray Leins-
ter. Na coleção argonauta publicou A nave sideral
(n°4), O planeta utopia (n°113), O planeta esqueci-
do (n°118), O túnel do tempo (n°128), e o livro que
estou a resenhar O médico das estrelas (n°134). de um tormal (uma raça alienígena domesticada,
que tem um bom sistema de defesa, pelas poucas
Nesse último livro temos uma space opera. Num descrições, parece um gato), a serviço da Medsede,
período em que a humanidade já colonizou muitos a organização responsável pela saúde de todas as
planetas fora do seu sistema solar. colônias planetárias.
Nós acompanhamos a história de Calhoun (in- Sua missão é fazer uma inspeção de rotina no
tercalados com introduções em cada capitulo por planeta Maris III, colônia de Dettra dois. Mas in-
textos do livro Probabilidade e conduta humana Fi- felizmente a missão não parece ser assim tão fácil e
ztigerald.), um agente do Medserviço (Serviço Mé- tentam deter sua decida. Usando sua engenhosida-
dico). A bordo da Mednave Aesclipius vinte, junto de, Calhoun consegue aterrissar sua nave no plane-

43
O Médico das Estrelas Caliel Alves

ta. Agora mais do que fazer sua inspeção de saúde mais fluida.
quer descobrir quem estava tentando impedir sua O ponto positivo é a noção de biologia do autor,
aterrissagem? E o mais misterioso, porque a cidade que expõe termos muito curiosos, principalmente
construída há pouco tempo, parece abandonada? sobre a microbiologia e os tormals. Outro conceito
A apenas uma coisa que me incomodou durante importante ressaltar foi o ultravoo, que permite uma
a leitura, não sei se por a grande quantidade termos nave ultrapassar a velocidade da luz e diminuir em
técnicos ou a diferença de linguagem lá de Portugal, até dias uma viagem interestelar. O clima de investi-
a leitura se tornou arrastada, tive que voltar a ler gação da obra deixa você curioso tentando esclare-
mais algumas vezes o mesmo trecho. cer o mistério que se desenrola de acordo a analise
Outra coisa que tornou a lei- na mente de Calhoun, de maneira mais psicológi-
tura um pouco cansativa, foi ca, ala Dr. House, mas as aparências
o personagem ruminando param por ai. O livro
a todo o momento rumi- merece
nar seus pensamentos, ser lido
tipo “Oh meu Deus, fula- pelo mis-
no morreu, tava vivo até terioso, e
nesse instante”. A leitura sua reso-
pra um livro de quase lução sur-
150 páginas, deveria ser preende o
leitor.

44
O Outro Lado do Tempo
Resenha
O Outro Lado do Tempo
por Caliel Alves

C lifford D. Simak é um dos mais clás-


sicos da ficção científica. Ganhou o
prêmio Internacional Fantasy Award
em 1953, com a obra City, considerada sua melhor
obra. Outro prêmio importante foi o Hugo com way
station. Na coleção argonauta é um dos que mais
teve livros publicados, 33 ao todo.
O chamado pai da ficção especulativa ao qual o
senhor Richard Diegues sempre fala, publicou em
1975 a obra Enchanted Pilgrimage (no original em
inglês), nos trouxe uma historia recheada de mis-
tério e fantasia. Imagine um mundo medieval com
Um grupo de aventureiros a lá Tolkien, um viajante
do tempo, um robô e alienígenas.
Embora tais conceitos numa mesma obra de
pouco mais de 225 páginas possam soar destoante,
Clifford nos mostra que tudo é possível.
Acompanhamos o protagonista Mark Cornwall,
um estudioso que deseja encontrar os antigos, um
povo que habita as terras perdidas, lugar que ne-
nhum humano ousa a ir. Junto a ele segue Gib um
ser Cornwall.
homem do pântano, que também precisa ir às ter-
ras perdidas, Hal da árvore oca e seu amigo quati Mas O outro lado do tempo vale à pena a curiosi-
Coon, o gnomo Snviley, O duende das trevas Oliver dade de conhecer um mundo sem desenvolvimento
e Mary, uma empregada de taverna. tecnológico e mágico, por mostrar como seria a ci-
vilização dominada por dogmas religiosos da Igreja
O livro apesar do clima de RPG me decepcionou
católica.
do meio em diante. Esperava um final menos brus-
co e corrido. Talvez seja por que na ficção especula- A inserção da tecnologia na história, como é do
tiva não se da muitas explicações e sim perguntas. feitio de Clifford não tem explicações lógicas. O via-
O gancho principal da história os antigos foram o jante do tempo e o robô caem de pára-quedas.
que mais me decepcionou e nenhum personagem Há história é muito divertida. Chega até ser non
parece tido o seu enredo satisfatoriamente, a não sense.

45
C
o
n

t
o

s
Da Astúcia dos Amigos Improváveis
1

P or muito tempo achamos que estávamos so-


zinhos no universo.
Isso nunca foi verdade. Descobrimos quando os
guardiões vieram.
Uma convergência de fatores biológicos e geo-
gráficos e a vida inteligente se manifestou num dos
muitos planetas sob sua supervisão. A humanida-
de, sujeira inofensiva no canto de um único sistema
solar, foi estudada como tal por cientistas no que,
do nosso ponto de vista, seriam teses de doutorado
sobre a formiga de Mumbai. Um organismo cata-
logado pela obsessão ordeira de estudiosos, ignora-
do, irrelevante. Até os drokkars aparecerem.
Chamamos nossos guardiões assim pois é o que
são, ou o que se tornaram. A disparidade evoluti-
va os torna divinos aos nossos olhos. Mas mesmo
no alto de sua divindade foram ameaçados pelos
drokkars, uma espécie expulsa do seu quadrante
galáctico por uma abominação cósmica e lançada
num êxodo incerto, na busca de novos planetas
para acomodar sua população. A rota de fuga os
trouxe ao nosso quadrante, e o próximo passo se-
ria, caso não encontrassem resistência, tomá-lo.
um conto de Aquartelados além do escudo energético er-
guido pelos guardiões, nossa principal defesa, os
drokkars furam o bloqueio com pequenas embar-

Santiago cações camufladas, um misto de tecido vivo e na-


noengenharia avançada, trazendo guerra aos pla-
netas fronteiriços. Os guardiões não são capazes de
enfrentá-los devido a uma desvantagem biológica:

Santos os drokkars possuem organismos físicos adaptá-


veis, se moldando às expectativas dos inimigos.
Como a capacidade mental dos guardiões é mui-
to avançada, seus próprios feitos os impedem de
combatê-los, pois se tornam translúcidos e bestiais
quando não passam de seres bípedes semelhantes
aos humanos em forma.
Da Astúcia dos Amigos Improváveis Santiago Santos

Diante das vantagens incomuns do inimigo, os fera, interfaces impulsionadas por um processo de
guardiões recorreram aos próprios estudos perifé- combustão ainda não totalmente compreendido.
ricos em busca de alternativas. Voltaram os olhos Quando uma bolha fura o escudo energético ela
para os humanos, que possuíam capacidade mental viaja irrastreável até algum planeta próximo. Só
adequada para reduzir os drokkars a ameaças pal- são identificadas pelos nossos sensores quando o
páveis. A Terra tornou-se um campo de treinamen- processo de deterioração está avançado, e a essa
to, e há 274 anos concentra recursos na formação de altura os tripulantes já desembarcaram e começa-
combatentes especializados. Não há previsão para o ram a construir as vilas subterrâneas. Se entendem,
fim do conflito, já que os drokkars parecem decidi- os guardiões não nos explicam por que motivo os
dos a fincar aqui a nova bandeira da sua civilização. drokkars fazem isso. Planetas centrais, incluindo a
Não estão abertos a diálogo, a encontrar maneiras Terra, continuam intocados pelas bolhas, e lutamos
pacíficas de convivência. Não sabemos por que pra que continuem assim.
motivo não seguem para outro quadrante menos Dentro da vila encontramos mais sete drokkars,
protegido ou desabitado, possuidores da tecnologia que nos eludem nas escavações, verdadeiros labi-
que os trouxe aqui, e tememos o que podem estar rintos. A eficácia do treinamento se prova nos pou-
tramando nesses séculos de cerco. cos minutos necessários para eliminá-los. O solda-
Desde a revelação dos guardiões e dos drokkars, do Gorvik é o único ferido no segundo confronto,
nós, humanos, somos massa de manobra. Mas so- nada que dois dias no tanque não resolvam e até
mos também heróis respeitados e militares conde- melhorem com um ciberimplante no lugar do braço
corados. Não mais os micro-organismos irrelevan- arrancado. Retorno à nave ouvindo as congratula-
tes de outrora, e sim os únicos anticorpos efetivos ções da IA e recebo um aceno de cabeça da capitã
contra um vírus esfomeado. Rokai. A equipe de cientistas desembarca para loca-
Quando me graduei na academia e fui despacha- lizar a pedra uterina depositada pelos drokkars no
do para a frente de batalha, lotado numa das bases coração de suas vilas, que nunca alcança o tempo
avançadas de Carcará-2, um dos mais aguerridos necessário de maturação.
planetas fronteiriços, achava que estava preparado Pelo comunicador, no entanto, gritos revelam
pra qualquer coisa. Duas semanas mais tarde, soube que há algo errado, e a cabeça da capitã Rokai rola
que uma vida não seria preparação suficiente. pra dentro do compartimento. Paralisado, a bioar-
madura zumbindo devido a algum defeito impre-
visto, vejo um drokkar entrar calmamente na nave.
2 Ele mata um a um meus companheiros imobili-
Desço da nave sentindo a adrenalina fisgar os zados e me deixa por último. Me observa curioso
olhos e secar a língua, ouvindo os inúteis incentivos através do painel frontal do capacete. Silva algo in-
da Inteligência Artificial da bioarmadura. Sensores compreensível, encostando a palma no meu peito.
indicam a vila dois quilômetros à frente, depois das O traje religa mas não me obedece.
colinas. Os mosquitos, nossos microsatélites mó-
veis, sobrevoam a região, mas os drokkars só são Minhas pernas me levam pra fora e pro meio do
visíveis a olho nu. deserto, atrás do inimigo. Depois de algumas horas
ele para, desenha algo no ar e puxa. Minha bioar-
Dois deles nos surpreendem. Pulam de falsos madura caminha pra dentro de uma plataforma in-
bancos de areia brandindo lâminas adaptáveis, ca- visível e elevada. Ele vem logo atrás. O deserto some
pazes de fatiar qualquer coisa. Conseguimos neu- e me vejo dentro de um emaranhado de tecido ver-
tralizá-los com os rifles sônicos, mas não antes que melho. Uma bolha drokkariana viva. Sinto o deslo-
o tenente Rifissá tombe em duas metades. camento quando nos afastamos da superfície. Sinto
Eles não utilizam naves; suas embarcações são as mãos do inimigo tateando a bioarmadura. Sinto
bolhas autossuficientes que começam a se dete- o impacto frio e nebuloso do ar quando o capacete
riorar ao entrar em contato com qualquer atmos- é removido e perco a consciência.

48
Da Astúcia dos Amigos Improváveis Santiago Santos

Meu primeiro dia de campo em uma guerra que a eduarda quando ela for mais velha e todo mundo
beira três séculos de existência e me torno seu pri- na escola, até o marinho que é chato mas não mere-
meiro prisioneiro. ce morrer por causa que os drokarios vão atirar em
todo mundo e enterrar todo mundo pra construir
as casas em cima da gente, isso não pode, né, pai?
3 por que você nunca quis ser soldado, pai, mas por
A coceira na nuca me acorda, pontadas agudas que você não acredita na violência como resposta,
nas laterais do crânio. A vista se ajusta, o drokkar pai, se eles só deixaram essa resposta pra gente, foi
sentado na minha frente, escrevendo algo com o a professora, ela disse isso, mas todo mundo diz isso,
dedo numa tela etéril de plasma. A caligrafia é a pai, todo mundo, e mãe, porque o pai tá no hospital,
de uma linha ininterrupta cheia de curvas suaves e mãe, me fala, mãe, o carro bateu nele mas não foi
abruptas. Ele me percebe levantar. Ignora. nada de mais, né, por que a gente não pode entrar
O interior da bolha parece o interior de uma no quarto, mãe, tô com sede você quer água tam-
boca humana, esponjosa como gengiva. O drokkar bém? eu pego pra senhora, aqui, ó, por que você tá
continua escrevendo. Não vejo lâmina adaptável chorando tanto, mãe, o pai tá bem? brigado, mãe, eu
ou qualquer outra possível arma perto dele. Os mando mensagem assim que chegar lá, eles proíbem
drokkars andam descobertos com sua pele que- contato na academia, só nos finais de semana mas eu
bradiça e opaca à mostra. Sua cabeça não se parece mando sim, se cuida, eduarda, não vai exagerar nas
com nada que conhecemos na Terra, e é de uma cor festinhas da universidade, se mexerem contigo fala
indistinta que com certeza não lembra o azul e tam- que teu irmão tá estudando e não demora logo vai
pouco o amarelo, mas sua feição é estranhamente tá galgando patente e sim senhora, sim senhora, não
humana, com olhos maiores que os nossos e bocas senhora, permissão pra falar, permissão pra
menores. Não possuímos estudos aprofundados da parece que há algo errado aqui do outro lado.
sua biologia, tecnologia ou linguagem. Os guardi- Atravessamos mesmo o escudo, assim rápido?
ões as conhecem a fundo e nos provêm com o ne- Onde está o cruzador drokkariano? As estações de
cessário, desencorajando qualquer contato além do combate com os canhões enfileirados, os cargueiros
essencial. grávidos de explosivos, as minas seletivas de proxi-
Não tenho como saber se ainda estamos em midade boiando no ar como lantejoulas da morte?
movimento. Encosto o dedo num ponto da pare- Não há nada, nada exceto asteroides em sua melan-
de. Ela responde ao toque como a superfície de um cólica órbita e planetas pouco ou muito longe.
rio alvejado por uma pedra, ondulando de forma Quando me viro o drokkar está deitado, um lí-
concêntrica e abrindo uma janela para o exterior. quido viscoso escorrendo dos olhos, a tela etérea
Percebo que não só estamos em movimento como ainda nas mãos. Pego o dispositivo com a luva da
vamos de encontro ao escudo energético. Embora bioarmadura, funcional desde que acordei. Percor-
as bolhas sejam capazes de ultrapassá-lo, não con- ro a linha com o dedo mas não a compreendo. Toco
sigo evitar um medo súbito latejar debaixo da unha o drokkar e ele não se move. Sento no canto onde
do dedão do pé. O anseio me agarra pelos ombros acordei, acoplo o capacete e espero, a cabeça late-
e me prostra de modo reverente diante do drokkar jando forte.
concentrado na escrita.
Sei que não fomos defletidos pelo escudo e lança-
Ele vira os olhos pra mim sem pausar o dedo, dos de volta pois eu saberia identificar a configura-
olha por sobre meu ombro, aponta com o queixo. ção fronteiriça de estrelas e asteroides com precisão.
Estamos no limiar do escudo, sua estrutura curvilí- Estou do outro lado, mas um outro lado diferente
nea e brilhante ocupando toda a abertura na parede do que estou habituado a ver nos holovídeos.
da bolha. Há um tranco forte quando o atingimos e
Entramos na atmosfera de algum planeta. O
pai, pai, quero ser soldado, quero ser soldado pra processo de deterioração começa, o tecido carnu-
proteger você e a mamãe quando tiverem velhinhos e do escurece e emite um cheiro forte. Aterrissamos.

49
Da Astúcia dos Amigos Improváveis Santiago Santos

Depois desse estágio as bolhas enrugam e se rom- de informações que comporiam enfim um quadro
pem, ficando esburacadas e marcadas nas dobras mais apurado da situação, seus cientistas estudaram
por algo parecido com ferrugem. Fico dentro do o drokkar morto e desvenderam a mensagem crip-
que restou dela, aguardando. Não demora mais que tografada no aparelho, naquela única linha corrida.
uma hora e eles aparecem, rifles sônicos em punho, A verdade é simples. Os guardiões simulam um
e não lembram nem um pouco o cadáver ao meu conflito inexistente. O escudo, criado para proteger
lado. Se parecem comigo. ambas as espécies, é um emaranhado de elementos
estranhos tanto aos humanos quanto aos bokartia-
4 nos, impedidos de estudá-lo. Os guardiões querem
Bokart foi a palavra que mais falaram ao me nos proteger, dizem, não adulterar nossa evolução
encontrar. Ela significa, descobri depois, parecido. científica e nos presentear com conhecimento que
Não foi à toa. ainda não temos maturidade para possuir. Nos-
sa suspeita é de que o escudo seja na verdade uma
Os bokartianos evoluíram em um planeta de dobra, conectando pontos longínquos e similares
condições favoráveis devido ao seu tamanho, com- do universo, os nossos, e também um funil ener-
posição e distância do sol no sistema solar. Possuem gético. Sabemos que os guardiões mineram energia
espécies correlatas de animais às que posuímos na dos planetas mais distantes do quadrante para ali-
Terra e reinam sobre elas. Passaram por eras gla- mentá-lo, e que tal mineiração exaure-os comple-
ciais e outras ocorrências climáticas que moldaram tamente, embora a técnica utilizada para tanto nos
sua superfície habitável. Construíram cidades, evo- seja desconhecida. A sua constatação é de que mui-
luíram tecnologias variadas, desenvolveram sensi- to antes que os recursos ao nosso redor acabem os
bilidade artística, curaram e criaram doenças, divi- drokkars desistirão e irão embora, ou encontrare-
diram-se em nações, travaram guerras, singraram mos fontes alternativas de energia. Agora se tornou
os mares, cruzaram os céus e se integraram com o óbvio que os guardiões sugarão todos os planetas e
avanço dos sistemas de comunicação. Durante os por fim o nosso.
primeiros estágios de exploração espacial foram
abordados pelos guardiões, que explicaram a ame- O mais penoso, contudo, não foi desvendar a
aça iminente dos drokkars. Acabaram convencidos, manipulação que sofremos, mas reconhecer a real
como nós. parte dos drokkars na história. A mensagem des-
criptografada é clara: eles são os sobreviventes de
Os militares são treinados em seu planeta natal, uma espécie que sofreu o mesmo destino que esta-
Rupakau-ri, e enviados aos planetas fronteiriços, mos fadados a sofrer. São prisioneiros, cuja única
na proximidade do escudo energético, para erradi- função é aguardar o momento de serem enviados
car os drokkars que ali chegam dentro das bolhas, nas bolhas para manter viva a ilusão do conflito.
como eu mesmo cheguei aqui. Programados com avançadas táticas neurolinguís-
Por sorte os bokartianos são uma espécie mais ticas, alcançam nossos planetas com o único intuito
desconfiada que a nossa. As suspeitas de que havia de nos atacar. As pedras uterinas depositadas no co-
algo errado no conflito eram latentes na cúpula da ração das vilas nada mais são que explosivos sofisti-
inteligência militar. Por esse motivo a minha chega- cados, que pensamos ter inutilizado mas continuam
da foi ocultada, com direito a apagamento de me- ativos. Serão utilizados se nosso esforço colaborati-
mória do grupo que me encontrou, e não alcançou vo enfraquecer, para intensificar o clima de guerra.
os ouvidos dos militares de alta patente que dialo- O mártir drokkar foi um cientista, o primeiro a
gam diretamente com os guardiões, para que não conseguir se blindar da programação neurolinguís-
descubram minha existência do outro lado do escu- tica dos guardiões e arquitetar um plano para em-
do com suas habilidades telepáticas. Nos meses que butir uma bolha de transporte em outra, fazendo
os linguistas bokartianos levaram pra me ensinar com que a segunda resistisse à penetração atmosfé-
sua língua e aprender a minha, iniciando as trocas rica e permitisse uma nova travessia. Mediante sua

50
Da Astúcia dos Amigos Improváveis Santiago Santos

autópsia, descobrimos que o alto nível de radiação colaterais, à primeira vista inúteis, são aos poucos
do escudo foi a causa da morte. Não suportou tama- reunidas e trazidas até nós.
nha agressão duas vezes em tão pouco tempo. Pelo Nesses anos de espera, passo por um processo
jeito, sua esperança era a de fazer a travessia com de imersão na cultura bokartiana, através de holo-
um humano, que sobreviveria e permitiria alcançar documentários e de longas conversas com os ho-
as respostas que aqui enumero. mens e mulheres do nosso grupo. Tenho acesso a
É irônico, dado o que eu sabia quando desci da todos eles, cerca de trinta pessoas, que me tratam
nave em Carcará-2 para exterminar os drokkars, de maneira amável e curiosa. Da mesma forma que
que um deles se sacrificaria pra me dar a chance de pergunto sobre sua história também me perguntam
salvar toda a minha espécie. sobre a nossa, e respondo na medida do possível.
Depois de meses experimentando o cheiro e os sons
artificiais de suas praias, cidades e campos, com sua
5 flora e fauna diferenciadas, minha maior vontade é
Minha dor de cabeça não diminui. Passo lon- deixar a base subterrânea e me misturar à popula-
gos períodos, às vezes dias, isolado num cubículo ção local, comer em seus restaurantes, assistir seus
médico, recebendo sedativos na veia. A suposição holofilmes nos cinemas, beber suas bebidas alco-
dos bokartianos é de que a exposição à radiação do ólicas e dançar ao som de suas músicas. Mas não
escudo alterou algo em minha estrutura e meu cor- posso.
po acusa a mudança. Mas os exames não revelam
nada de diferente, nenhum carcinoma, nenhuma Quando enfim descobrimos a natureza da trans-
anomalia visível. Me asseguram que não há motivo ferência energética passamos a apostar em algo con-
para preocupação, mas sei que não há segurança de creto. Os cientistas desenham um aparato que pode
nada. interromper a corrente da grande nave guardiã,
que atua como conduíte da energia via transmissão
Quando me sinto bem auxilio na busca de al- quântica; uma espécie de pulso eletromagnético
ternativas para evitar acabar como os drokkars. Há que suspenderá, pelo menos por alguns momentos,
um objetivo norteador: desativar o escudo. Mas não o funcionamento do escudo. É necessário calcular
sabemos como é efetuada a transferência de ener- a trajetória da nave guardiã, equipar uma das naves
gia dos longínquos aparatos de mineiração plane- bokartianas com o canhão e aproximá-la para o dis-
tária. O que dificulta o andamento da pesquisa é paro, tudo em total segredo. E não só isso. Para ser
a necessidade de sigilo. Minha existência ali é do realmente efetivo, o ataque deve ser cronometrado
conhecimento de apenas alguns militares e cientis- com uma descarga semelhante do outro lado do es-
tas. Como os superiores não podem desconfiar do cudo, realizada pelos humanos.
conluio de bokartianos tentando salvar sua própria
espécie, é necessário não utilizar recursos ou exe- Fico feliz quando confirmam que parte do plano
cutar operações que fujam do espectro aceitável da é me devolver ao meu quadrante. Será o mais difícil.
rotina do lugar. Não é possível, por exemplo, enviar A ação do drokkar que me capturou e fez a traves-
uma sonda ou direcionar um satélite para a análise sia foi um episódio isolado. As bolhas continuam
da grande nave guardiã que roda o quadrante sem chegando, continuam se deteriorando, os drokkars
que esse tanto nos revele. continuam lutando. É necessário capturar um de-
les, trazê-lo para a base e quebrar sua programação
Uma complexa rede de espionagem é arquiteta- neurolinguística. A captura e o transporte até nos-
da pelos líderes da nossa célula rebelde, por assim sas dependências por si só constitui um grande ris-
dizer. Devido à minha proibição de deixar a segu- co. Já foi difícil comigo, que não ofereci resistência
rança das instalações, não posso contribuir nesse e podia me passar por um bokartiano se chegasse a
quesito, só acompanhar a lenta garimpagem de da- tanto. Não será o caso com um drokkar letal e nada
dos. Beirando a tênue linha da desconfiança, mis- cooperativo. Os bokartianos, como os humanos,
sões dúbias são colocadas em prática e informações não conhecem a fundo a constituição drokkariana

51
Da Astúcia dos Amigos Improváveis Santiago Santos

e não sabem que sedativo e que dosagem são neces- em questão não tem filha e minha tristeza desagua
sários para dopá-los. Matá-los foi a única coisa para numa dor lancinante que me faz vomitar, bater a ca-
a qual fomos treinados. beça no chão e ficar três dias de cama. Mas melho-
Mesmo que a operação com o drokkar seja um ro, sempre melhoro, e volto aos desdobramentos da
sucesso, há o problema do transporte. Precisamos nossa missão desesperançada.
de uma bolha. A que me trouxe aqui foi um extraor- Meses de tentativas físicas, mentais e espirituais e
dinário presente contrabandeado de um lugar que a programação neurolinguística dos guardiões não
sequer conhecemos. Como conseguiremos uma em é ao menos arranhada. Esse tempo foi efetivo ape-
perfeito estado para a nova travessia? Como conse- nas para usar o drokkar como cobaia viva e testar a
guiremos fazê-la sem despertar a atenção dos guar- dosagem de drogas necessárias para torná-lo dócil
diões? Como, nos perguntamos sempre, os guardi- ou sonolento. Ele se nega a reconhecer a caligrafia
ões não notaram a primeira? do outro drokkar, se nega a ajudar, utiliza seu apa-
As dúvidas são muitas e a incerteza é latente. rato vocal apenas para grunhir, nunca para iniciar
Meu aprisionamento forçado desperta algum trans- um diálogo ou dar uma resposta elaborada que seja.
torno psicológico, ligeiras alucinações que preocu- Esperávamos mais depois das complicações de sua
pam os médicos. Os surtos de dor se tornam mais captura, de quase sermos revelados, das mortes aci-
frequentes. O que me mantém focado é a saudade dentais durante o traslado. Mas não. É possível no-
que sinto da família e dos amigos. Preciso voltar. tar a resignação na cara de qualquer um com quem
Preciso salvá-los. Preciso salvar a Terra. cruzo nos corredores.
Talvez incentivados pela minha condição, tal-
vez pelo receio de que não há forma mais segura de
6 proceder, os líderes da nossa célula decidem agir de
Em uma das reuniões, quando analisamos nas maneira impetuosa. Serei infiltrado em uma expe-
telas o drokkar se debater e arrebentar as amarras dição bokartiana escalada para serviço nas proximi-
na sala de contenção, começo a chorar. Só sinto dades do escudo. Permaneceremos na área frontei-
porque as lágrimas caem no dorso da mão. Depois riça até o aparecimento de uma bolha. Na sequência
disso não param. Quando acordo me dão sedativos, faremos algo até então inédito: rastreá-la enquanto
minha cabeça dói, falam comigo em tom sereno, ainda está camuflada. Isso se tornou possível depois
falta pouco, falta pouco. de anos estudando os dados fornecidos pelo már-
Peço pra ver uma criança. Mais de cinco anos tir drokkar. A bolha será abordada antes de entrar
sem ver uma criança, sinto falta da ingenuidade em contato com atmosferas planetárias e portanto
delas, das risadas sem motivo. Lembro de Eduarda antes que comece o processo de deterioração. Uma
ainda pequena, correndo atrás de mim sem conse- vez eliminados os drokkars no interior, os cientistas
guir me alcançar. Uma das cientistas traz a sua fi- a reprogramarão para fazer a rota contrária na dire-
lha de seis anos. Jogamos um jogo de tabuleiro, um ção do escudo, comigo dentro.
correspondente bokartiano às damas. Ela ri bastan- Decidido o novo curso de ação, são mais me-
te, me acha curioso. A mãe diz que sou um amigo ses de preparativos, dessa vez aliviados, ao menos
do trabalho, não um alienígena, e acompanha tudo pra mim, pelo horizonte visível de mudança, seja
sentada num canto da sala. Pergunto coisas do seu ela qual for. Qualquer coisa é melhor que continuar
dia a dia, a rotina da escola, os amigos, o que gosta trancafiado. A expectativa parece diminuir os sur-
de comer, de assistir. Abraço ela, agradeço, a mãe tos de dor. Um pacote de dados sobre os bokartia-
preocupada que eu possa esmagá-la ou lhe fazer nos, os guardiões, os drokkars, minha primeira tra-
mal. Será que depois de todo esse tempo descon- vessia, o canhão de pulso eletromagnético e outros
fiam assim de mim? No dia seguinte peço pra vê-la detalhes importantes é inserido na forma de um
novamente, ao menos jogar mais daquele jogo com bio-nanochip sob minha última costela esquerda, e
alguém. Dizem que o jogo não existe, que a cientista um backup é realizado via compressão neural, em-

52
Da Astúcia dos Amigos Improváveis Santiago Santos

bora o estado do meu cérebro depois da segunda ano não conseguimos, adoro a sua torta, as crian-
travessia seja motivo de elocubrações. ças também, vem, deita aqui, me abraça e deixa que
A esperança é de que eu sobreviva e consiga criar, depois eu coloco a ração do fred, vem, deita, mãe,
do lado de lá, uma célula semelhante à que temos tá me ouvindo? sou eu, a eduarda tá aqui também,
aqui. Como fazer isso sem alcançar os ouvidos dos tá me ouvindo, mãe? a fabí tá ali fora com as crian-
superiores, atentos a tudo, não tenho ideia. Tudo é ças, a gente veio correndo assim que soube, mãe, tá
muito improvável, mas seguimos porque não pare- me ouvindo, mãe? sou eu, tô aqui, não, eduarda, não
ce haver outra alternativa, não uma no futuro pró- quero nada deles, tô feliz, tô feliz só de continuar vivo,
ximo, pelo menos. Temem que eu morra ou sofra vem você e a maria, lá em casa domingo, vamos fazer
algum mal irreversível e a chance se perca. um almoço em família, a gente tem que se ver mais
e olha, fabí, como eles cresceram, quase não acredito,
Ao cabo do tempo de preparação e da conflu- você acredita, o tempo passa tão
ência de desencontros remediados por pura sorte,
capturamos uma das bolhas. Os drokkars no in- entre um lampejo e outro de dor vejo o drokkar
terior são exterminados e os cientistas interagem com um líquido viscoso escorrendo dos olhos e a
com sua interface viva. São horas de tensão raste- parede esburacada da bolha. Dentro da minha anti-
jante enquanto a reprogramam. Aguardo fechando ga bioarmadura, saio à deriva. Não é possível, será
os olhos e massageando a cabeça pra aliviar a dor. O que caí justamente em Carcará-2, é tão parecido,
drokkar ao meu lado tem os olhos enevoados e per- outro lampejo forte, tropeço. Abro os olhos e eles
didos, mero rato de laboratório. Recebemos a auto- aparecem, rifles sônicos em punho.
rização e somos levados pra dentro da bolha, que se
fecha e se lança na trajetória oposta. O drokkar me 7
acompanha pra repetir a configuração da primei- Passo a maior parte do tempo num estado sono-
ra travessia, pois suspeitamos que assim as chances lento, patches sedativos por todo o corpo. Quando
dos guardiões não notarem nada são maiores. preciso ficar atento engulo um estimulante pra con-
A despedida é tão rápida e convoluta, há uma seguir um bom período de raciocínio pleno. Seda-
apreensão nítida no rosto de todos quando os vejo do, no entanto, me sinto mais confortável. A maior
pela última vez. O drokkar ao meu lado continua parte das alucinações envolve caminhar pelos cam-
inerte, sem saber que se encaminha pra morte por pos onde cresci, no interior de Mato Grosso, cas-
radiação. Vejo novamente o escudo se aproximar e tigado pelo sol. Transpiro mesmo no frio, a mente
sinto uma ânsia enorme e há um tranco forte e pregando peças no corpo.
aqui, filha, aqui. sobe aqui em cima, segura no Como fui encontrado no mesmo planeta onde
meu braço, olha lá, tá vendo? lá longe? o papai nasceu desapareci, presumem que não cheguei ali na bo-
em cima daquele morro, tinha uma casa lá, vivia cor- lha, mas que sobrevivi exilado todos esses anos.
rendo por tudo aqui em volta, tomava banho naquele Considerando o quanto a humanidade sabe a essa
riacho, vinha descansar embaixo dessa árvore, é, na altura, é uma presunção muito mais aceitável. Pas-
árvore onde a gente construiu a casinha pra você, isso sado o período de readaptação e reconhecimento,
mesmo, é, eu sempre quis voltar, não sei, filha, pare- abordo um oficial de médio escalão e descortino o
ce que depois que a gente passa muito tempo longe plano bokartiano. Meus relatos, aliados aos dados
a saudade é tanta que a gente quer voltar pro lugar do bio-nanochip, acabam por convencê-lo. Mais di-
que tem as lembranças mais fortes, e eu adorava isso fícil é fazê-lo manter segredo dos superiores, mas a
aqui, e queria que você nascesse aqui, filha, mas sem grandeza da nossa finalidade se mostra mais uma
aquela paranoia da guerra e sem medo do dia que vez suficiente. Aos poucos começamos a aliciar in-
seu irmão fosse pra academia porque não tem mais tegrantes.
academia, filha, você não sabe como eu sonhei com Sou testado e diagnosticado, dessa vez com car-
isso, sim, amor, claro, aqui, rúcula, espinafre, tomate, cinomas por todo o corpo. A segunda travessia me
ano que vem quero plantar almeirão também, esse

53
Da Astúcia dos Amigos Improváveis Santiago Santos

foi quase tão mortífera quanto é para os drokkars. O melhor manipulado é aquele que não sabe.
Dispensado do exército e aposentado compulsoria- Realizado nosso intento, a humanidade será
mente pra tratar da saúde, permaneço nas instala- confrontada com a verdade, ou a mentira: além do
ções militares sob o pretexto de consultoria em as- escudo não há ameaça alguma, apenas o vazio do
suntos estratégicos em Carcará-2. Felizmente nossa espaço. O que farão nossos superiores diante des-
medicina já evoluiu o suficiente pra me manter vivo sa revelação? Abrirão fogo contra a nave guardiã?
pelos anos necessários e levar o plano a cabo. Tentarão o diálogo e serão novamente ludibriados?
Dentro do pacote de dados há todas as instru- Se curvarão perante seu poderio e assumirão a co-
ções necessárias para a construção do canhão de vardia segura da servitude? Não sabemos, não é
pulso eletromagnético. Os bokartianos se empe- possível prever. Mas isso não nos impede de lutar
nharam para apreender em que ponto de evolução para oferecer uma oportunidade que seja de mudar
tecnológica estávamos e providenciar os atalhos nosso destino.
pra que tudo pudesse ser realizado. Definiram uma Quando o prazo definido para o disparo chega,
data, calculada com minúcia, para a efetuação do eu e Fabí fazemos planos de voltar pra Terra com
disparo conjunto. Trabalhamos com esse prazo em as crianças. Construir uma casa na mesma região
mente, mais alguns anos de dedicação e sigilo. Com onde cresci, visitar minha mãe e minha irmã depois
a diferença de que em meu próprio quadrante estou de tanto tempo. Me despeço, incapaz de esconder o
livre pra ir e vir. sorriso fácil, e tomo um tubo até a base.
As coisas que não pude fazer em Rupakau-ri faço O canhão, acoplado numa nave abandonada,
na Terra, quando o tempo livre das ocupações da agora reformada e reintegrada à frota, cruza o qua-
célula e os raros períodos sem sucumbir às dores drante em alguma missão planejada com meses de
permitem. Revejo a família, assisto holofilmes no antecedência. Quando passa ao lado da grande nave
cinema, vou à praia, como tudo aquilo de que sinto guardiã, todos os integrantes da célula estão reuni-
falta e até conheço alguém por acaso, sem relação dos diante das telas, apertando os próprios dedos. O
com os militares, uma engenheira chamada Fabí. disparo é efetuado.
Não poder lhe revelar nada do que faço tem um
efeito devastador. Me pergunto se não devo sim- O escudo dos guardiões vibra, pisca e desapare-
plesmente abandonar tudo. É óbvio que não serei ce. No lugar do negrume encharcado de estrelas e
afetado pelas consequências do plano dos guardiões asteroides, figura em destaque o monstruoso cruza-
em meu tempo de vida, e tampouco meus filhos, dor drokkariano, visto tantas vezes nos holovídeos,
caso os tenha. Mas penso no que reserva o futuro rodeado pelas estações de combate com os canhões
para nossos descendentes, e lembrar dos drokkars enfileirados, os cargueiros grávidos de explosivos,
mortos nas bolhas depois das travessias é suficiente as minas seletivas de proximidade boiando no ar
pra me fazer seguir firme com o plano. como lantejoulas da morte.
Ainda assim as dúvidas são constantes e presen- Todos na sala se entreolham enquanto massa-
tes em todas as reuniões da célula. Seguimos movi- geio a cabeça. Percebo que as pontadas de dor se
dos por um ódio velado e um propósito concreto. devem aos implantes neurais e que os carcinomas
Mas e se de fato conseguirmos desligar o escudo e no meu corpo se devem não à exposição radioati-
revelar o plano dos guardiões, o que virá em segui- va do escudo, mas ao período de intensa exposição
da? Eles são tão superiores que podem nos extermi- às toxinas drokkarianas em algum ponto da base
nar ou nos programar neurolinguisticamente, como subterrânea onde fui mantido cativo. Tento expli-
fazem com os drokkars, e evitar qualquer problema. car mas alguém, mais de uma pessoa, tenho certeza,
Na verdade a questão primordial é por que se dão fecha os dedos na minha garganta, e não consigo
ao trabalho de nos iludir se podem nos forçar a fa- gravar a mensagem pra Fabí e as crianças dizendo
zer o que querem? Talvez seja simplesmente menos que as amo.
custoso fazer com que colaboremos de boa vontade.

54
A Ópera da Space Opera
Abertura

T oda ópera é um saco.


Tá. Tem alguns sacos maiores que outros.
Ópera é um desses.
Mas “nossa ópera”, este libreto, vem mais do italia-
no e do latim, que entrelaçam trabalho e obra, para
construir o presente saco que, assim espero, fique em
pé.
O drama, cenário, figurino, personagens, música,
mítica, mágica e roteiro – e o cremezinho para não dar
assadura no saco – são de minha autoria e assumo a
tragédia como fato inerente a história.
Melhor eu calar a porra dos meus dedos e deixar
que a obra constitua seu próprio naufrágio.
Arrivederci.

O Palco
A ponte de comando da Poincaré, uma nave sem
pátria, criada para provar o improvável, para solver o
insolucionável, seguia a seguinte verdade provisória:
era possível romper com o tédio da física geral no âm-
bito da navegação espacial.
um conto de
Os Cantores
Membros dos comitês científicos e uma amálgama

Amaral de de livres-pensadores, boêmios e filhos da puta em to-


dos os escalões da humanidade, vários abduzidos em
Congressos e feirinhas de artesanato mundo afora.

Vasconcellos A única coisa que ouviram, quando foram jogados


na caçamba do ovni, depois da abdução, além da mu-

Rogério
siquinha irritante de elevador, foi o mantra:
Vocês vão revolucionar a física.
Mesmo que esta viagem seja sem volta.
Morte às idéias. Morte aos ideais.
Se quiserem vomitar, só não façam sujeira no carpe-
A Ópera da Space Opera Amaral de Vasconcellos Rogério

te, por favor. na, belo canto porra nenhuma, T desfechou: – Que
não é só sua, pois é compartilhada por um manicô-
mio inteiro de simpatizantes. Se achamos a boca em
Recitativo
vez do rabo, a saída daqui é...
– Se existe uma boca e uma garganta, será que
– Vou completar os seus pontinhos, doutor T: a
chegamos ao estômago? – baixo-barítono trovejou.
saída deste universo pode vir também por meio da
– Sou mais radical que você, BB. Os buracos de regurgitação.
verme que povoam nossa especulação científica
– Oh!!!! – fez o Coro, trazendo mais água para a
apresentam duas bocas e um duto, unindo as pon-
aflita.
tas – tentou desarticular a mezzo-soprano: – E se
uma dessas “bocas” fosse o órgão excretor, hem? E – Bravo! – ripostou a contralto, amiga de cama
se esse duto, a “garganta”, na realidade é o intestino da prima-dona. – Prefiro isso à diarreia!
grosso? – Essa cantoria é muito escatológica para o meu
– Que merda de teoria, MS. Falácia do caralho! gosto – irrompeu no círculo, atravessando o coro,
– atiçou o contratenor, esbravejando, como se qui- um dos contraltinos, menino-prodígio de uma saga
sesse mudar de posição com o regente, que a tudo (cover) de Guerra nas Estrelas: – Minha visão dos
ouvia (ouvido absoluto, naturalmente) e deixava a universos – e quando digo MINHA é porque eu a
inércia dar vazão do resto. – Então o que você pro- estou construindo, desde o primário – é que todos
jeta é que os wormholes são a boca e o cu do uni- estão ligados como uma linguiça, formando um to-
verso! róide infinito e perfeito.
– Nem tanto, Contra. Mas o escopo você cap- – Revolucionário, Tintim – entrou o buffo no di-
tou. Acredito na hipótese que este universo, que se álogo musical – Só falta dizer que cada círculo ou
mostrou finito, embora imenso, existe DENTRO de elipse dessa linguiça calabresa corresponde a uma
um desses buracos negros. Nossa existência é o ho- órbita...
rizonte de eventos... – Captou a mensagem! – aduziu o contraltino,
– Continue! Continue!! Continue!!! – veio o Coro, subindo em cima de um robô que tinha quebrado
providenciando água para a solista MS, a fim de que justamente naquele lugar. – Analogamente, e é isso
continuasse sua ária. que a física teórica estimula, pode existir um átomo
lá fora e nós somos os spins. Havendo oportunida-
– Tá. Não me apressem. Onde estava mesma?
de para, inclusive, mudanças de níveis de energia.
– Horizonte! Eventos! – fez o Coro, solícito.
– Oh!!!! – o Coro fez o óbvio.
– Perfecto. Dizia eu, quanto mais nos aproxima-
mos da entrada ou saída daqui, mais próximo es-
tamos de achar as portas e alçapões de OUTROS Coro
universos... – Discutindo sobre a bolha de Alcubierre, bura-
– Seguindo sua linha de raciocínio... – Do4, Te- cos de verme, o tubo de Krasnikov e outros atalhos
nor, o bicho, amigo do próprio Hawking, quando no tempo e no espaço... – primeira voz.
ambos cursavam Oxford, foi atraído para a cantata – Os cantantes se revezavam no drama: cantar
como físico ao E = MC2. demais para sofrer de menos... – segunda voz.
– Hipérbole. – Pois nesta nave maldita, não importava a bes-
– Que seja, MS. Conclua. teira e a ordem em que fosse entoada... – quarta voz.

– Só quero acrescentar que essa hipérbole não é – O que pontuava estava justamente no absurdo
só minha. e na cara-de-pau daquele que a declamasse – tercei-
ra voz, retornando à primeira.
– Certo – cansado da arenga daquela prima-do-

56
O Ricardão do Futuro
um conto de Clinton Davisson

M
outras culturas.
eu nome é Ricardo de Melo e Você que está lendo isso, fique feliz, pois seu cor-
meu trabalho é viajar no tem- po foi considerado o corpo de um ser humano ide-
po nessas máquinas que vocês al. Tiramos os dentes sisos mas, mesmo após muita
chamam de discos voadores. Não sou um extra- discussão e protestos, mantemos o quinto pododác-
terrestre, moro em Copacabana, na Rua Siqueira tilo, aquele dedo mindinho do pé que só tem como
Campos, próximo ao metrô. Minhas atividades se utilidade acertar quinas de mesas e poltronas. Mas
resumem a recolher material genético de seres hu- assim é a democracia.
manos mais puros do passado, como você que está
Bom, hoje era para ser um dia de trabalho nor-
lendo esse texto. Vivo há 700 mil anos no futuro e
mal. Vesti minha derma, que é a vestimenta que
o tempo infringiu mutações genéticas aos seres hu-
todo ser humano usa, uma mistura de computador
manos. Passamos a viver nas estrelas em ambientes
com armadura. Sabe o Homem de Ferro? Pense
de microgravidade e, com o tempo, perdemos os
na derma como uma versão muito mais avançada.
dentes, atrofiamos os músculos, ficamos cabeçu-
Com a derma, você não precisa ir ao banheiro, não
dos e com pernas e braços finos e alongados. Um
fica doente, não morre, não envelhece, voa em qual-
grupo de desocupados do governo resolveu que, se
quer tipo de atmosfera, enfim, pode fazer qualquer
continuássemos assim, seríamos assimilados pelas
coisa. E não é aquele trambolho do Tony Stark, é
nossas próprias máquinas. Acho que estavam cer-
um tecido que mais lembra uma roupa de mergu-
tos, mas não vejo qual seria o problema nisso. Foi
lho. E é biologicamente correta, ou seja, não irrita
preciso voltar no tempo para entender como eram
a pele, se transforma em nossa pele. O capacete da
os humanos, recolher material genético e refazer
armadura não se parece com os de seus motoboys,
o que a natureza estava estragando. Não era uma
lembra mais um ovo com olhos grandes. Por isso,
questão de saúde – nunca foi – pois as máquinas
vocês pensam que somos alienígenas cabeçudos de
que nós vestimos nos mantêm vivos eternamente
olhos grandes.
agora. Trata–se de uma questão de preservação da
nossa cultura, nossa identidade. O que nos define Acho que me perdi de novo... eu falava de vestir
como humanos? a derma e ir para o trabalho. Mas através da derma,
nós recebemos informações toda hora em nosso cé-
Não entendeu, né? Vou citar um exemplo. Já viu
rebro. Notícias em geral, piadas, às vezes até infor-
um filme com a Angelina Jolie? É uma atriz da dé-
mações importantes. Mas a grande maioria é pro-
cada de 90 e início do século XXI. Bom, hoje, eu
paganda, sempre oferecendo produtos milagrosos.
acho essa atriz linda, principalmente na idade entre
Eu comprei um software que deixava a derma com a
25 e 35 anos. Mas há 100 mil anos, no ano 600.000,
forma que quisesse. Poderia me parecer com quem
ela era considerada um monstro. Já tentou ter uma
quer que fosse. Poderia ser o Mestre Yoda, o Jack
ereção pensando em um tiranossauro? Era assim
Nicolson, o Pé Grande, uma lula com cinco olhos e
antes de resolvermos resgatar a essência do ser hu-
três orelhas... ou simplesmente ficar invisível.
mano. Após décadas de seminários, elegemos que
nossa identidade estava localizada exatamente no Comprei e fui trabalhar. Eu e meu robô–sonda,
tempo anterior aos humanos serem contatados por que consiste em um ovo dourado com uma tela no

57
O Ricardão do Futuro Clinton Davisson

lugar do rosto. Não tem braços, nem pernas. Ape- Estava ali, assistindo Lendas da Paixão, suspiran-
nas flutua e faz todo o serviço por mim. Eu só pre- do excitada com aquele dramalhão. Mentalizei invi-
ciso supervisionar a máquina para que ela não faça sibilidade na mesma hora mas, quando ela se virou,
merda. Claro, sempre sou eu quem faz a merda e a me viu imediatamente e gritou. Sorte o marido não
máquina me salva. ter acordado.
Enfim, entrei no meu disco voador, ou melhor, – Quem é você? – perguntou, se protegendo com
minha máquina do tempo, e fui para a Terra do ano o travesseiro.
2014. Não é uma viagem fácil, a Terra hoje está há Sem saber o que dizer, me virei para a direção
bilhões de quilômetros distante de onde estava em oposta para sair correndo e dei de cara com um
2014. É um erro comum nesses filmes de viagem no grande espelho na parede. Foi aí que vi que real-
tempo, nunca levam em conta que a Terra e o sol mente não estava invisível.
se movem e que a galáxia toda viaja a velocidades
absurdas. Quando eu abro o portal, é uma viagem – Desculpe, eu... Entrei na porta errada – foi o
pelo tecido do espaço–tempo, um rocambole quân- que consegui dizer. – Já estou saindo, peço mil des-
tico que demanda energia suficiente equivalente culpas pelo incômodo.
à produzida por um sol em dez anos. O tempo se – Não se vá! – disse a mulher inesperadamente.
curva, o espaço se rasga e os caminhos se abrem na
direção de um infinito túrgido. – Desculpe, isso é muito embaraçoso.

Quando saio, está tudo diferente. A Terra não – Você fala português?
tem mais seus anéis. A Lua está mais próxima. E Olhei novamente para o espelho e depois para o
não há naves cingindo o espaço. Os polos estão me- filme. A ficha custou a cair, mas caiu.
nores. E muitos satélites artificiais... – Eu não sou o Brad Pitt, senhora, eu me pareço
O serviço e é na Tijuca, no Rio de Janeiro. O alvo com ele, as pessoas confundem, mesmo, mas meu
era um casal, ele policial, ela, bom... Era uma da- nome é Ricardo. Desculpa, eu já estou de saída, vou
quelas gostosas de subúrbio, cabelos escuros, pele deixá–la com seu filme...
morena clara, um metro e setenta e... Bom, basta – Fica só um pouquinho, Ricardo.
dizer que ela era destaque na escola de samba, Uni-
dos da Tijuca todo ano. Ela se levantou, os seios aparecendo por sob o
baby doll.
Entrei na casa e colhi logo o material do marido.
Usei o robô–sonda para tirar o esperma de dentro – Você não quer uma água, um vinho?
do saco escrotal. A operação não durou mais que – Não, senhora, obrigado.
três minutos. Talvez fosse o estresse do trabalho,
mas o fato é que quando fui procurar a esposa, ela – Não tem nada aqui que você não queira? – in-
estava na sala, acordada, e fiquei paralisado. De- sistiu deixando a roupa cair no chão e ficando ape-
moraram uns dez segundos para ela me ver, mas nas de calcinha.
eu estava hipnotizado por aquele corpo que pare- Eu não pensei duas vezes. Senti sua boca com
cia ter sido saído da cabeça de algum desenhista de gosto de vinho, queijo e cereja envoltos no hálito
história em quadrinhos. O abdome era sarado sem quente. Suas mãos se emaranharam nos meus ca-
parecer masculino, os seios, naturais, mas grandes e belos louros cumpridos que eu nunca tive, mas que
empinados. Mas as coxas é que eram o suprassumo a derma tornou reais. Ela gemia e acariciava meus
do exagero, grandes e roliças, com um desenho sua- músculos com um fogo uterino incontrolável, se es-
ve. Ela estava com um baby–doll transparente, sem fregando em mim, me beijando com todas as fibras
sutiã e só de calcinha branca por baixo, deitada de de sua existência. Começamos a fazer amor ali no
bruços com aquele bumbum empinado apontando sofá espaçoso de camurça. Mas a mulher gemia e
para o teto. Havia colocado um edredom para for- gritava como se o mundo fosse acabar ali mesmo.
rar o sofá grande de camurça. Parecia ensaio de alguma banda de heavy metal me-

58
O Ricardão do Futuro Clinton Davisson

lódico. Ela atingia notas agudas com rara afinação, flutuando na janela. Foi só aí que percebemos um
em perfeita sintonia com meus movimentos peris- terceiro elemento humano naquela sala. Era uma
tálticos. A essa altura do campeonato, envolvido menina de no máximo cinco anos de cabelos escu-
com aquela potranca desgovernada eu também es- ros lisos. Me olhava com olhos verdes brilhantes,
queci onde estava, quem eu era e o que estava fazen- que provavelmente havia presenciado todo aquele
do. Gritei com toda vitalidade que o corpo do Brad show.
Pitt permitia, e a casa virou um dueto sinfônico de – Não se preocupe, Papai Noel, seu segredo está
fazer inveja a Freddie Mercury e Montserrat Ca- guardado comigo – disse a menina.
ballé. De repente, tudo explodia em orgasmos sin-
fônicos de prazer, parecia que toda a minha vida le- Eu olhei para o robô–sonda e ele me olhou de
vara àquele momento profano. Era como despertar volta com uma interrogação na tela no lugar dos
para uma nova existência. Aliás, não foi só a minha olhos.
existência que despertou. O marido dela também, – Se... – prosseguiu a menina – Você me dar um
para ver que diabos era aquela barulhada. ursinho de pelúcia nesta linda noite de Natal.
– Michelle! – gritou o corno lá de dentro. A der- O robô sonda materializou um ursinho estilo
ma me avisando que, além do chifre, o cidadão os- Ted, grande e felpudo antes que eu pudesse pensar
tentava um belo par de pistolas Magnum 44. – O no que deveria fazer.
que está acontecendo?
– Obrigado, Papai Noel! – agradeceu a menina.
Quando o homem chegou, nos escondemos, eu e
Michelle sob o edredom branco. Claro que percebi – Por nada – respondi, voltando para o disco vo-
que isso não era uma boa ideia. Pedi à derma uma ador.
solução, e ela simplesmente desativou a pele do Assim que me ajeitei no assento, ligamos a invi-
Brad Pitt e me deixou à mostra com a aparência de sibilidade, porque a polícia já estava se aproximan-
um alienígena cinzento, com cabeça grande, olhos do e cabeças de vizinhos pipocavam para fora das
escuros enormes. janelas.
– Puta merda, que porra é essa! – gritou o deson- – Será que viram o nosso veículo? – indaguei ao
rado policial. robô sonda.
Michelle olhou para mim e desmaiou ao ver que – Claro que viram – rosnou o aparelho. – Essa foi
seu astro hollywoodiano se transformara em um pior do que quando tentou agarrar aquelas meninas
monstro de filme B. O policial atirou três vezes. Se- em Varginha. Vou fazer um relatório pedindo um
riam dois tiros na vidraça e um na própria esposa, colega menos tarado.
se a derma não tivesse incinerado os projéteis antes. – Ah, vai dizer que você não se diverte com mi-
A coisa toda já estava saindo do controle não fos- nhas aventuras?
se o robô–sonda entrar na briga e atingir o policial – Você quer dizer suas trapalhadas – corrigiu.
com raio que o deixou desmaiado no chão. A essa
altura, o som dos tiros já havia acordado o prédio – É, pode ser!
todo e sons de sirenes já brotavam longínquos. Tive – Tudo bem, me divirto sim. Pode deixar que
que usar a derma para apagar a memória deles e, não reclamarei de você – tranquilizou o robô com
sem muito tempo para pensar, implementei memó- seu senso de humor sintético. – O que vamos fazer
rias de uma noite de sexo selvagem entre os dois amanhã?
que teria gerado intensidade tamanha que levou o
marido a dar tiros para o alto. Espero que os colegas – É uma atriz famosa. Vai ser uma noite longa...
policiais peguem leve com ele. – Concentre–se em terminar esta noite, vai ser
Quando terminamos de colher os óvulos da mu- uma longa viagem de volta para o futuro.
lher, nos viramos para o disco voador que esperava

59
Tempos de Compaixão e Decisão
um conto de Ricardo França

T ínhamos tão pouco tempo...


Agora que as previsões finalmente assu-
miram certo foro de certeza não havia mais tempo
começar uma nova colônia. Os que se recusaram
foram simplesmente apreendidos. Nossas tradições
liberais já começavam a entrar em decomposição
rapidamente.
mesmo. A tentativa de reciclar as velhas naves-colô- O arbítrio continuou seu canto dissonante, quan-
nia foi louvável, mas todos temiam pelas suas vidas do toda a população do planeta foi simplesmente
já na decolagem só pelo fato de terem de estar den- “comunicada” do plano de evacuação. Nossa tradi-
tro delas. O pedido de ajuda foi levado por todos ção de floreios e debates cuidadosa e artisticamen-
os canais disponíveis, a todos os sistemas próximos. te elaborados rapidamente caiu como a mera casca
Eles não puderam fazer muita coisa, pois também civilizatória que era. As forças de repressão tiveram
estavam dentro do âmbito de efeitos possíveis da que se avir com toda a grita que se sucedeu. Porém,
supernova e, obviamente, tinham que lidar com bastaram algumas palavras candentes do conselho
seus próprios problemas. Dois dos sistemas-par- disseminadas em rede global e on-line, junto com
ceiros surpreendentemente mandaram uma mega- a prova apresentada dos spins entrelaçados do cos-
-nave cada. Mas ao chegarem às fímbrias do nosso mo-centro com os da sonda do sistema em colapso,
sistema rapidamente se constatou que elas não de- para colocar a oposição em tal turbilhão de dúvidas
veriam comportar nem um milésimo dos colonos. que seu movimento de resistência logo cessou com
Quero crer que a evacuação deles mesmos também a constatação inequívoca de que os avisos tão negli-
não seria nada simples. Já a nossa nos parecia cada genciados agora pareciam partilhar de uma realida-
vez mais impossível. de tão brônzea quanto a dos marcos dos primeiros
Quase impossível foi realizar a triagem no auge dias da colonização que acháramos dois séculos e
da pressa determinada pelas circunstâncias. Mesmo meio atrás.
com os séculos de racionalidade imperando em to- As decisões tomadas então nunca nos parece-
das as nossas decisões de cunho mais amplo junto ram tão difíceis. A primeira onda de fuga se encar-
à representadoria planetária, não se esperava outra regou de levar nossas mais importantes conquistas
coisa senão o caos. locais para alhures. Os últimos drones de pesquisa
A seleção primeira obviamente cabia aos mais planetológica apontaram uma estreita panóplia de
aptos para exercerem o papel de batedores e passa- sistemas aptos a serem indicados como metas para
rem pelos duros percalços do pioneirismo. Os me- colonização, todos relativamente inóspitos compa-
lhores oficiais de ligação com os sistemas parceiros rados com os que foram regularmente alvo da últi-
embarcaram nas naves mais rápidas (coinciden- ma expansão das inúmeras famílias de sencientes
temente as menores e mais bem equipadas) para humanos. A vida nos era tão importante a ponto de
eventualmente “recrutarem” mais ajuda, e algu- eliminamos tantos outros candidatos por causa até
mas naves de propriedade particular de membros de meras suspeitas de desbalanceamento ecológico.
de outros sistemas, estacionados nos espaçoportos, E, mesmo então, escolhemos pulverizar nossas fi-
foram “gentilmente” convidadas a abarrotar seus leiras para reduzir o peso de nossa presença sobre
porões com pessoas e equipamento mínimo para mundos excessivamente vibrantes de vida não-hu-
mana.
60
Tempos de Compaixão e Decisão Ricardo França

Conclusão lógica: Uma era dura se iniciava com ave pernalta decola de seu ninho.
a perda de contato, o que rapidamente poderia levar “Car-Lex, a única nave classe Kosmos que con-
a uma decadência certa na nossa cultura de prima- seguimos “re-montar” canibalizando as peças das
tas coletivistas. Os maiores (e mais velhos) dirigen- outras similares não está conseguindo passar do ní-
tes rapidamente entraram em acordo. Só estariam vel troposférico...” A expressão envelhecida de cinco
nas últimas naves a decolar, e sabiam que só o risco anos do meu ajudante principal da Ordem Vacan-
da não-sobrevivência poderia compensar o fato de cial representava todo o estado de prostração a que
sobreviver e “sofreviver” para ver todo o trabalho estávamos submetidos nestas últimas semanas.
de suas vidas (e dos seus predecessores) esfacelado.
Eu sabia que isso mais cedo ou mais tarde acon-
Para quem ficara alocado no grosso do processo teceria. Os motores da Korolev não estavam em
de fuga logo se viu que o espaço de carga das naves condições de dar tudo que podiam para superar a
disponíveis, mesmo usando os ferros-velhos que gravidade planetária. Não poderíamos nos dar ao
sobraram das primeiras descidas humanas neste luxo de perder mais essa nave, que dispunha de
mundo, não seria o suficiente para acomodar nem grandes espaços internos. Chamei de volta as três
as pessoas quanto mais os mínimos insumos neces- naves classe “Relativität”, que tinham motores po-
sários para a sobrevivência no espaço e depois, aon- tentes o suficiente para chegar até os sistemas mais
de quer que elas conseguissem pousar. Aos doentes próximos em pouquíssimo tempo, para tentar uma
terminais ou aos que só poderiam ter esperanças última forma de serem utilizadas como reboca-
de sobrevida com um tratamento prolongado e/ou dores. Obviamente os comandantes protestaram,
usando um aporte de recursos tecnológicos que não mas logo reconheceram o estado desesperador dos
mais existiriam pelos próximos anos foi apresenta- ocupantes da outra sobrecarregada nave, já em sua
do o dilema. Quase todos optaram por ficar e “ver segunda órbita e perdendo combustível e energias
os tremendos fogos de artifício que só seriam uma preciosos. Felizmente as naves salvadoras não es-
vez contemplados”. Alguns se dispuseram até a assu- tavam muito longe. Elas não pousaram temendo
mir a função designada de algo semelhante a “cro- ser inundadas de mais refugiados do que poderiam
nistas do juízo-final”, mandando e disseminando conter, mas fizeram bem seu trabalho duma órbi-
mensagens e imagens até o último instante. Muitas ta alta ao conseguir levar o colosso de sua prisão
pessoas saudáveis ficaram por razões estritamente inexorável do poço gravitacional planetário para
pessoais, e muitos técnicos valiosos ficaram com o até depois da órbita do segundo planeta. Ninguém
único objetivo de aprontarem o máximo de naves os culpou por desconectarem ali os cabos de tração
no pouco tempo que nos restava. A saudável e co- conforme o combinado e partir à máxima velocida-
mum competição pela prioridade no recebimento de, cada uma para seu destino pré-traçado.
de recursos agora se tornava uma questão de vida e
de morte, mas não para esses abnegados. Esse não foi de longe o único caso nem o mais
complicado que tive que resolver neste dia. Apenas
Todos os implementos tecnológicos que fossem para mim era de importância especial estar naquele
suficientemente portáteis tinham seu lugar garan- centro de controle, pois na Korolev estava o peque-
tido nos porões das naves... em teoria. Na prática no núcleo familiar de minha única filha. A teimosa
os supérfluos geradores de cultura materializados não queria se desfazer do escrínio da nossa herança
ficariam todos para trás, e seriam vaporizados na familiar. Como foi difícil convencê-la a se conten-
superfície do planeta. Sobrevivência do máximo de tar com um fac-símile informatizado. Ela ainda não
sencientes era a meta. Uma meta sabidamente inal- sabe que não irei nem mesmo na última nave dispo-
cançável em sua plenitude. E, quanto mais se discu- nível, e que já está pronta para a decolagem.
tisse sobre os detalhes, maior era a probabilidade de
que toda a nossa sociedade organizada perecesse de Torço para que os incansáveis técnicos de naviô-
um só golpe. Por isso abandonamos por fim os in- nica consigam salvar quatro das naves de carga clas-
findáveis questionamentos mais rápido do que uma se Vishnu que estavam reduzidas a frangalhos pela
idade e pelo canibalismo de peças. Estas são uma

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Tempos de Compaixão e Decisão Ricardo França

das últimas esperanças para o pessoal mais especia- pática, mas que já não me causava espécie pelo ha-
lizado conseguir achar uma rota de fuga do cataclis- bitual que se tornara), acho que se interessará pelas
ma. Aos próprios técnicos foi dada a autorização de hipóteses que eu investiguei. Cheque os gráficos a
embarcar nas próprias naves que terminassem de seguir...
“salvar”, mas eles, numa abnegação sem precedentes Vários fios desgrenhados de minha outrora or-
na nossa tumultuosa história humana, decidiram gulhosa cabeleira de cometa, índice dos favoreci-
trabalhar em equipe e em todas ao mesmo tempo dos pelos supremos regentes, caíam profusamente
para que as últimas não ficassem com desfalque de na frente dos meus olhos injetados, mas não eram
pessoal para terminar o serviço de adaptação. Com obstáculos suficientes para que eu conseguisse in-
essas ultimas naves não teremos praticamente qua- terpretar as conclusões do meu atual e único ami-
se nenhum cidadão apto deixado para trás. Me re- go. Subitamente fios de esperança começaram a se
cuso a pensar na sentença de morte que oferecemos entrelaçar no cenário de meu subconsciente, à me-
aos tantos outros que, por viverem uma vida dedi- dida em que eu deduzia e interpretava os dados e
cada a valores mais imateriais, foram simplesmente misturas de fontes das linhas de tendência projeta-
considerados como “dispensáveis”. Como me lem- das à minha frente. Os resíduos de movimentação
bro dos conselhos que meu irmão recebia de vários econômica de vários domínios do planeta pareciam
amigos para aplicar melhor seu tempo de vida no poder ser concentrados a tempo, bastando por em
nosso orbe. A ele se juntaram vários desenganados concerto todos os robôs de transporte junto a certos
e religiosos desgarrados que transcenderam ou só centros específicos de produção.
escaparam mesmo do período de confusão e en-
trega aos instintos livres, típico dos que perdem a – Cara, se eu tivesse tempo para um cyber-re-
esperança. lacionamento acho que tiraria um fim de semana
num resort virtual com uma de suas avatares fe-
mininas._ De tanta felicidade acho que deveria
*** estar parecendo um extático-quimico da seita dos
conscio-expansores, e a IA parecia ainda dispor de
uma certa “sensibilidade” para perceber o quanto
Então, no terceiro dia da evacuação, meus es- eu estava satisfeito_ Acho que se juntarmos nossos
pecialistas me comunicaram uma novidade estar- remanescentes pares no templo central conseguire-
recedora, a qual finalmente quebrantara o ânimo mos coordenar o que nos falta. Você consegue cui-
do último grupo que decidira chefiar: Para minha dar das formas “automáticas” do processo?
tristeza não existia em todo o planeta combustível
suficiente para que a última das quatro naves con- – Sem dúvida, grande amigo, e isto já está sendo
seguisse atingir a velocidade de escape. Superando providenciado. Quanto à hipotética libação come-
uma quase tentativa de motim e os insistentes ape- morativa seria um grande prazer de minha parte.
los dos meus superiores decidi ficar com os colonos Mas acho que dificilmente seria substituto para a
ainda não servidos. Uma noite mal-dormida logo presença de um senciente neste caso.
após a notícia à base de estimulantes e simulações Essas IA, como sempre literais... Mas neste áti-
ferozes no único mega-processador que não pode mo de tempo ela eficientemente colocara sob suas
ser evacuado, e então fui acordado do meu sono “asas” coordenantes todas as IA dos centros de dis-
de exaustão pelos tons de coda do término de pro- tribuição e processamento de matéria-prima do
cessamento, que eu aprendera a amar (pois foi com planeta. Mas isso ainda não era o suficiente. O gal-
a ajuda dele que sempre conseguira nos tirar dos pão improvisado em que se aboletava a última nave
vários gargalos tecnológicos para uma evacuação aprontada não dispunha de acesso às vias expressas
mais completa nos últimos dias). que levavam os insumos necessários para a decola-
– Amigo humano (a IA implantada na rede sem- gem. Até que se obtivesse o que nos faltava os técni-
pre começava suas alocuções desta forma mais sim- cos decidiram consertar uma série de probleminhas
que tinham passado por alto por questões de ur-

62
Tempos de Compaixão e Decisão Ricardo França

gência e, fora implementar algumas simulações de ela, mesmo tanto tempo depois dos campos morfo-
trajetória auxiliares e a re-chamada dos indiciados gênicos da vida a terem levado para seu mundo de
para o transporte, eles estavam sem mãos a medir. potenciais.
Mesmo que seus colegas ainda queiram comparti- A Korolev passara a ser o fiel depositário de
lhar de seu destino não pude deixar simplesmente minhas promessas genéticas, transportando meus
todos eles correrem risco tão alto. Todo este “tour- descendentes e correlatos pelo mar encapelado das
-de-force” estava consumindo nossas últimas reser- forças desencadeadas. Para mim só sobrou o desa-
vas de força. Mas não podíamos nos dar sequer um pego e a própria expressão epigenética de meus cro-
minuto de descanso. A IA planetária me avisara na mossomos.
última hora de que os “forerunners” ou precursores
da detonação da supernova já se faziam presentes. Batizei nossa última nau remendada de “Sid-
A onda de choque poderia chegar a qualquer mo- dhartha”, em homenagem a uma lendária figura de
mento. compaixão, com a ajuda de uma agora inútil garrafa
de ambrosia. A IA embarcada riu gostosamente...
Meu professor de galactologia uma vez me ex-
plicava numa pausa para o coffee-break de sua últi-
ma palestra, quando lhe perguntei por acaso sobre
a fenomenologia de eventos tão catastróficos como
uma explosão estelar ou galáctica: “O clarão virá
primeiro e será cegante, prenhe de radiações ele-
tromagnéticas duras. Logo depois virão as partícu-
las materiais aceleradas a velocidades relativísticas
que serão tão ou mais perigosas que a radiação em
si. Quando elas interagirem com a micromatéria
em seu caminho qualquer estrutura existente será
“plasmizada” e como a velocidade destes “raios cós-
micos” será quase sempre maior que a da luz nestes
meios, mesmo que na difusa densidade da micro-
matéria, teríamos uma bela mostra de radiações
Cerenkov de espectro amplo, caminhando “pari-
-passu” com o meio interestelar. Aí já podemos
dispor de uma bonita onda de choque material que
virá como uma parede de fogo, engolindo tudo no
seu caminho...”
Os laivos poéticos de meus professores sempre
me exasperavam, ainda mais quando aplicados a
questões de conhecimento puro, mas ali, nesta vira-
da do tempo dos moços, eu me sentava embevecido
em frente ao copo de suco filtrado de Gaffa como
se nada mais importasse a não ser a pirotecnia pro-
jetada na tela interior de minha mente impressio-
nável. Sua filha acompanhava os ditos de seu pai
com expressão quase devota. Partilhamos a devo-
ção por tanto tempo que acabei partilhando minha
herança familiar com ela. Ela foi fundamental para
estabilizar minha carreira e minha vida interior por
décadas. Agora mesmo não conseguia me ver sem

63
Pedra Filosofal
um conto de Flávio Medeiros Jr.

C
Gelo apertou os lábios antes de dizer:
om tanto espaço vazio aí fora, como – Suponha que eu não soubesse que diabo dos
foi acontecer uma merda dessas? – infernos é um “k’loon”. Explique-me por que devo
resmungou o capitão Geraldo “Gelo” crer que essas criaturas não foram capazes de ante-
Lourenço, estreitando os olhos na direção da tela. cipar essa colisão, e desviar seu curso milhas e mi-
A luz dos holofotes de longo alcance do cruza- lhas antes do abalroamento. Convença-me de que
dor espacial Baía da Guanabara convergiam para a essa mixórdia aí fora foi um acidente, e não um ata-
estrutura caótica que se assemelhava, grosso modo, que premeditado.
a uma letra épsilon distorcida. O braço mais lon- – A humanidade ainda não teve contato direto
go, esguio e prateado, era interceptado em sua por- com os k’loon – começou Cristóbal, dando de om-
ção média por um braço menor, mais robusto, de bros como se pedisse desculpas. – Assim, as poucas
formato quase ovoide. A perceptível curvatura do informações que temos sobre essa espécie foram
corpo mais longo no local onde, num grumo caó- obtidas nos intercâmbios comerciais que já pude-
tico de metal distorcido, o veículo menor o inter- mos firmar com outras espécies alienígenas, que
ceptava, sugeria um choque violento, em altíssima também não são muitas. Segundo esses dossiês, os
velocidade. A nave atingida era o explorador civil k’loon são seres medusoides nativos de um planeta
Novo Mundo, que, ao ter sua comunicação com a de atmosfera densa. Desenvolveram uma civiliza-
Terra inexplicavelmente interrompida, motivou o ção tecnológica mas, tradicionalmente, ainda que
envio da Guanabara em missão de resgate. A outra tenham conquistado a capacidade de viajar entre
nave era totalmente desconhecida, pelo menos para as estrelas, são conhecidos como “reclusos”. Dificil-
Gelo Lourenço. mente abandonam seu planeta natal...
Como se ouvisse seus pensamentos, o tenente – O que, imagino, torna o que está diante dos
Cristóbal, xenopsicólogo chileno, ergueu os olhos meus olhos ainda mais improvável.
do pad. Cristóbal parecia muito jovem, mas era um
– Não exatamente, capitão. A característica mais
dos mais destacados elementos de sua especialida-
marcante da cultura k’loon, que parece alcançar o
de em toda a frota do Bloco Latinoamericano. For-
status de religiosidade, é uma profunda veneração
mara-se na famosa Universidade de Mar Del Plata,
por toda e qualquer forma de vida. Com base nes-
através de um programa de cooperação mútua en-
se princípio cultural, os k’loon encheram a galáxia
tre Argentina e Chile para, em tempos de expan-
com um enxame de espaçonaves robotizadas, que
são interplanetária, tentar diluir rancores ancestrais
viajam ininterruptamente para setores do espaço
“dentro de casa”.
onde haja guerras, ou para planetas onde ocorram
– Creio que não haja dúvida, capitão. É mesmo grandes hecatombes naturais, levando tecnologia
uma nave k’loon. médica, medicamentos ou suprimentos para o au-
xílio incondicional dos atingidos pela desgraça, que

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Pedra Filosofal Flávio Medeiros Jr.

estejam sob risco de morte. Pelo design, acredito o último voo do avião Concorde, na Terra. Ou do
que foi uma dessas naves robotizadas que abalroou choque de um avião de passageiros com um jato
a Novo Mundo. menor, sobre a floresta amazônica, no começo do
– Uma nave socorrista se choca contra uma nave século XXI. Geralmente é uma combinação impro-
missionária. Bem, se alguém achava que Deus não vável de eventos que, isoladamente, poderiam ser
tem senso de humor... – acrescentou a subcoman- inócuos, mas que acontecem numa sincronicidade
dante Sandra Torelli, com um sorriso amarelo. que extrapolaria a imaginação de qualquer enge-
nheiro aeronáutico. No caso presente, talvez uma
– Então são padres, a bordo da Novo Mundo? – falha nos sistemas de navegação de uma das duas
indagou o sargento Marcondes, escolhido para co- naves a tenha impedido de detectar a outra a tem-
mandar o primeiro grupo de abordagem. po. Como são dois corpos de movimento progra-
– Nada disso – esclareceu Torelli. – O grupo, mável, um choque seria sempre uma possibilidade
chefiado pelo professor Tanure e família, faz parte aleatória, de baixa probabilidade dada a amplitude
de uma dessas neosseitas que explodiram na Terra do espaço cósmico, mas lembre-se de que as espa-
com a nova fase da Era Espacial. Pregam a volta da çonaves, deliberadamente ou não, acabam criando
humanidade ao culto de valores e costumes ances- “corredores espaciais” que as desviam de corpos
trais; gentileza, solidariedade, cooperativismo. De- sólidos, cinturões de asteroides ou campos gravita-
fendem um cultivo mais profundo, em oposição à cionais fortes. Estamos entrando num sistema pla-
hipocrisia do chamado “politicamente correto” que netário complexo, com uma estrela e doze planetas.
assolou o mundo no começo do século XXI. Isso se É natural que, nesta região, as rotas se afunilem. As-
estende aos hábitos de vida, o que inclui um curioso sim, uma falha mecânica em uma das naves seria
apego a tecnologias antigas, a partir do século XX. suficiente para...
A Novo Mundo é uma lata velha reformada, dos pri- – Certo, certo, entendi. Pois vamos acabar logo
meiros anos da aventura espacial da humanidade, com isso. Marcondes, seu grupo deve penetrar pela
com tecnologia de animação suspensa para longas fenda que observamos no bojo da Novo Mundo e se
viagens; uma dessas cujo preço desabou após o ad- concentrar na busca de sobreviventes. Ultrapassada
vento da tecnologia CAMP, que abriu acesso ao su- a barreira do casco externo, as leituras dos scanners
bespaço. O grupo de Tanure dirigia-se a uma das biológicos devem ficar mais fáceis. Mas mante-
“novas Terras” catalogadas, no sistema estelar dian- nham as armas prontas; ainda que o tenente Cris-
te de nós, para estabelecer uma colônia civil. tóbal acredite em medusas pacifistas, todo cuidado
– Tudo indica que a nave k’loon atingiu a Novo é pouco.
Mundo a grande velocidade, à altura das câmaras
criogênicas da tripulação – disse o tenente Soares,
da Engenharia, analisando uma imagem ampliada ***
da área de impacto em seu próprio pad. – São quase
duzentas pessoas a bordo. Isso não pode ser bom. – É pior do que imaginávamos, capitão – soou a
– Minha pergunta permanece sem resposta – voz taciturna do sargento Marcondes no autofalan-
retomou o capitão, sentindo o resto de seu diluído te da ponte de comando. A tela central, que atraía
bom humor se esvair. – Como um acidente desses é todos os olhares, exibia, entre tremulações e chuvis-
possível, em anos-luz de espaço vazio? A probabili- cos, a imagem de um amplo salão cheio de cilindros
dade tem de ser muito próxima a zero... espalhados desordenadamente. A única luz vinha
das lanternas dos capacetes do grupo de abordagem,
– Mas é justamente essa uma característica dos acopladas às câmeras. – O impacto atingiu o com-
acidentes mais espetaculares, creio eu – rebateu To- partimento criogênico em cheio. A descompressão
relli, franzindo a testa. Por acaso, era uma estudiosa sugou para o espaço uma boa parte dos esquifes
apaixonada da história da aviação. – Lembro-me de animação suspensa, arrancados dos suportes. O
dos eventos que levaram ao acidente que marcou choque parece ter danificado também o sistema de

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Pedra Filosofal Flávio Medeiros Jr.

controle central da criogênese. Os tripulantes que tão. Encontramos dois corpos aqui na ponte de co-
não foram ejetados morreram asfixiados dentro dos mando. As fotografias os identificam como o pro-
esquifes. Não é uma coisa bonita isso aqui, senhor. fessor Tanure e sua esposa. Após a eclusa danificada
Gelo suspirou. Seus dedos crisparam-se em tor- do salão de criogênese, todas as demais estavam
no das bordas do console de comando até perderem abertas. O casal morreu asfixiado quase instantane-
a cor. amente. A posição dos corpos também indica que
foram deslocados violentamente pela colisão. Não
– Marcondes, provavelmente havia alguém pilo- devem ter sequer percebido a outra nave chegando.
tando a nave. Podem chegar à ponte de comando? Fraturas e traumatismos internos podem ter contri-
A luz do capacete do sargento girou ao longo de buído para o óbito. Acredito que...
um amplo círculo, antes de responder: A fala foi interrompida por uma confusa com-
– Creio que sim. Infelizmente, ainda não capta- binação de gritos, que vinham dos comunicadores
mos sinais vitais com os scanners. O terço central embutidos nos uniformes do grupo de abordagem.
desta espaçonave é ocupado quase inteiramente por Gelo sobressaltou-se ao reconhecer o som dos dis-
este salão. Deve ser o ponto mais frágil, realmente paros das armas portáteis.
foi muito azar que a fratura do casco tenha ocorrido – Marcondes, o que está acontecendo?
justamente aqui. A eclusa que leva à proa também
foi arrancada dos encaixes. O resultado parece ter O sargento, por sua vez, já gritava com a boca
sido uma descompressão maciça, capitão. Se os de- colada ao microfone do traje:
mais conveses não estavam isolados... – Tenente Igushi! Informe! Igushi!
– Precisamos ter certeza. Caso seja possível, isole Depois de uma pausa terrível, soou a voz ofegan-
o setor danificado e tente repressurizar o restante. te do jovem tenente:
Peça ao tenente Igushi que tente acionar os sistemas – Não estamos sozinhos aqui, sargento! Fomos
elétricos e verificar os motores. Talvez possamos, atacados! Repito: atacados!
pelo menos, fazer voar esse destroço, para darmos
um enterro decente a essa gente. – Recuar, grupo dois! Voltem à proa imediata-
mente!
– Roger, capitão. É possível que experimentemos
falhas na comunicação, na medida em que nos afas-
tarmos da fenda, pelo menos até que sejamos capa- ***
zes de acionar os sistemas da nave. Estou enviando
Igushi e Tomaz na direção da popa para verificarem
os motores, e seguindo com o resto do grupo para A equipe, tendo Gelo Lourenço ao centro, ocu-
a ponte. pava toda a ponte de comando da Novo Mundo. Os
corpos do casal Tanure haviam sido acondicionados
– Roger. Tomem cuidado. em sacos de tecido sintético prateado e deposita-
Os minutos se arrastaram. Com efeito, as lacu- dos numa das salas contíguas. De braços cruzados,
nas na comunicação eram cada vez mais longas, apoiado num console, o capitão fixava atentamente
mas ficou claro que o grupo de abordagem conse- os olhos em Igushi, como se quisesse dissecar seus
guira repressurizar tanto o segmento anterior como pensamentos. O tenente, visivelmente abalado, ten-
o posterior, isolando o compartimento danificado. tava complementar seu relato com gestos.
Após algum tempo, a tripulação da Guanabara con- – Fomos diretamente aos motores, na popa, e
seguiu perceber luzes se acendendo na outra nave. constatamos que não sofreram maiores danos. De-
Mais alguns minutos e um sinal de chamada veio vem ter apenas se desligado depois do choque, gra-
através do rádio. A tela se iluminou e surgiu o rosto ças aos relés de segurança. Estávamos retornando
suado de Marcondes, já sem o capacete. para a proa e, para ganhar tempo, viemos inspecio-
– Infelizmente aconteceu como imaginei, capi- nando, no caminho, os decks por que passávamos.

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Pedra Filosofal Flávio Medeiros Jr.

Vimos os grandes compartimentos de carga, que A estupefação silenciosa na sala de comando po-
estão cheios com a mudança do grupo de colonos. deria ser cortada com uma faca. O rosto de Gelo era
Vimos áreas de convivência comum, como refeitó- uma máscara quando, finalmente, concluiu:
rios e salas de lazer. Até que chegamos ao corredor – Vocês estão me dizendo que foram atacados
lateral que conduz aos aposentos do comandante... por uma espécie de caubói alienígena.
Gelo olhou automaticamente para a maquete Igushi deu de ombros.
holográfica translúcida, mostrando cada comparti-
mento e corredor da nave, que cintilava, suspensa – Só posso relatar o que vimos, capitão. E foi exa-
no ar, diante de si. Um ponto luminoso marcava o tamente o que Tomaz disse. Imediatamente respon-
local descrito pelo tenente. demos ao fogo inimigo, mas a criatura desapareceu
na curva do corredor, e então recebemos sua ordem
– Foi quando meu scanner deu o alerta – pros- para recuar.
seguiu Igushi, em tom sombrio. – Detectou sinais
vitais naquela direção, capitão. Havia alguém vivo Um silvo no comunicador indicou que alguém
no setor da espaçonave reservado ao comandante. chamava da Guanabara. Era Torelli.
Eu e Tomaz destravamos os rifles de impulsos e en- – Recebi um boletim da Engenharia, capitão. Pa-
tramos no corredor principal, que descrevia uma rece que algo aconteceu no interior da nave k’loon,
curva de noventa graus adiante. Foi quando o alien pouco antes do ataque sofrido por nosso grupo.
apareceu...
– Como assim? A nave alien não está desativada,
– Um alien. Era um k’loon? como a Novo Mundo?
– Se essas criaturas são, como disseram, medusas – Foi nossa suposição precipitada, quando veri-
gigantes, não era um deles, não senhor – interveio, ficamos as baixas leituras energéticas. Nós não pen-
excitado, o cabo Tomaz. – Era humanoide. Devia samos que, tratando-se de uma nave robotizada,
ter cerca de um metro e meio de altura, mas um não tem gasto energético com sistemas de suporte
corpo maciço e peludo. de vida, aquecimento, iluminação, etcétera. Parece
O murmúrio de espanto ao redor o estimulou a que, ao ver-se encalhada no bojo da Novo Mundo,
continuar: ela reduziu seu consumo energético a um status de
espera. Mas o que Soares detectou foi que, pouco
– Estava vestido, e eram trajes semelhantes aos antes do ataque ao grupo, houve um pico energético
nossos. Na cabeça um chapéu de abas largas, e só o num ponto específico da nave k’loon, próximo ao
rosto denunciava que não era humano. Um nariz e setor onde fica o que estamos deduzindo como sen-
olhos enormes, desproporcionais, emergindo entre do os principais sistemas de comando e navegação.
tufos grossos de cabelos vermelhos que cobriam a O “cérebro” da nave, digamos assim.
cabeça e todo o rosto, terminando em bigodes enor-
mes. O alien empunhava suas armas, e, antes que – O que vocês acreditam que seja? Uma espécie
disséssemos algo, disparou dois tiros em nossa di- de teletransporte?
reção. – Impossível saber, no caso dessa tecnologia to-
– Que tipo de armas eram? Impulsos? Raios? talmente desconhecida. Mas é um palpite válido.
Mesmo porque, milésimos de segundos depois,
Igushi e Tomaz se enteolharam por um momen- aconteceu um pico semelhante de energia num lo-
to, antes que o primeiro respondesse: cal próximo àquele, de acordo com Igushi, onde tra-
– Na verdade pareciam ser armas de fogo ba- vou contato com seu atacante.
seadas em pólvora, com projéteis sólidos, senhor. – Envie um esquema da nave alienígena para
Como as usadas na Terra, nos séculos XIX e XX. meu pad, Torelli. Marque o local onde observaram
Um dos disparos ricocheteou na parede, bem ao o pico energético.
lado da minha cabeça.
– Roger. Qual é a ideia, capitão?

67
Pedra Filosofal Flávio Medeiros Jr.

– Vou comandar um grupo através da fenda que conta da surpreendente força do vento, que, diante
conduz ao interior da nave k’loon. Enquanto isso, de seus olhos, formou um redemoinho que ocupa-
aqui, Marcondes comandará um grupo armado na va toda a entrada do recinto. O som de tempestade
direção dos sinais vitais detectados por Igushi. Cer- não impediu que ouvissem a voz assustada do cabo
quem o inimigo e, se possível, peguem-no vivo. To- Martin:
relli, acesse os computadores da Novo Mundo. Veja – Veja, sargento! Dentro do vendaval!
tudo: diários de bordo, caixas-pretas, registros de
comunicação e atividades da tripulação. Não estou O alerta nem era necessário. Todos já eram ca-
gostando do rumo das coisas e, se possível, quero pazes de ver, por trás da nuvem de objetos metáli-
evitar mais surpresas. cos, plásticos e papeis que giravam loucamente em
forma de ciclone, o vulto maciço e escuro de uma
Os grupos dividiram-se rapidamente. Gelo levou criatura. Era muito peluda, mas não eram pelos ver-
consigo, para o território desconhecido, os solda- melhos como os descritos por Igushi; eram grossos
dos mais experientes, deixando o grupo mais jovem e negros, e cobriam todo o corpo, que não parecia
aos cuidados do sargento Marcondes. Este estudou usar roupas. Por um momento a cabeça adiantou-
os esquemas técnicos da Novo Mundo e identificou -se, e os soldados viram mais claramente os enor-
dois acessos às dependências privativas do coman- mes olhos, o focinho proeminente, e um par de
dante. Dividiu seu próprio grupo em dois, e segui- orelhas pontiagudas. A boca, também avantajada,
ram imediatamente. abriu-se, deixando ver duas fileiras de terríveis pre-
O primeiro contingente, comandado pelo te- sas amareladas. A criatura ergueu um par de braços
nente Higushi, seguiu pelo corredor principal até o finos que terminavam em garras, emitindo um ros-
local onde acontecera o confronto. Ali permanece- nado ameaçador.
ram à espera de Marcondes, que seguia com seus – Isso é um animal, sargento? – gemeu Martin.
homens pelo caminho lateral mais longo. As depen- Marcondes reagiu:
dências do comandante incluíam uma sala de es-
tar e uma cozinha privativas, uma pequena sala de – Tiros de advertência!
vídeo, sanitários, dois quartos e um compartimen- Os tiros pipocaram ao redor da porta que emol-
to menor, onde a família mantinha seus próprios durava o estranho alienígena. Ele emitiu um uivo e
esquifes de animação suspensa. Marcondes seguia recuou, sumindo de vista. Talheres e utensílios de
cuidadosamente de um a outro, em completo silên- cozinha continuavam batendo contra as paredes e
cio de rádio. Com o ambiente pressurizado, usavam sendo projetados na direção do grupo.
os capacetes abertos. Nos scanners, os sinais vitais
mencionados por Igushi eram perfeitamente detec- – Ele não tem outra saída! – gritou Marcondes,
táveis, e os gráficos se pareciam, curiosamente, com acima do som do vendaval. – Está cercado!
sinais humanos, o que condizia com o aspecto hu- Como em resposta, um estrondo de metal re-
manoide do agressor. Quem quer que fosse estava torcido os fez encolher em seus esconderijos, e o
completamente imóvel, e a cada passo do grupo os vento cessou instantaneamente. Marcondes e outro
sinais iam ficando mais fortes. soldado deslocaram-se até as laterais da passagem e
Haviam ultrapassado a sala de estar quando olharam cautelosamente para o interior. O sargento
aconteceu. Todos sentiram ao mesmo tempo a lu- baixou o rifle e, com um sinal, chamou o restante
fada de vento que, vinda da direção da cozinha, do grupo. Ao fundo da cozinha, um enorme rom-
fez voar papeis e outros objetos que se encontra- bo na parede metálica denunciava a rota de fuga da
vam soltos ao redor. Sem precisarem de ordens, os criatura.
soldados postaram-se estrategicamente em leque, A soldado Nassim apontou um sensor para as
protegidos por mesas, colunas e outros escudos, e bordas do rombo.
empunharam as armas. O som de panelas e outros – É impressionante – murmurou. – É como se
objetos metálicos batendo contra as paredes dava a parede tivesse simplesmente se desintegrado! Ve-

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Pedra Filosofal Flávio Medeiros Jr.

jam, não há fragmentos ou debris ao redor. O metal criaturas, seja lá o que forem.
apenas...
Interrompeu a fala e apontou seu sensor num ***
arco mais amplo, na direção das paredes e móveis
ainda íntegros da cozinha.
Não havia qualquer atmosfera dentro da nave
– Interessante... k’loon. Os corredores eram estreitos, cada espaço
O comunicador silvou. Era Soares, o engenheiro, aproveitado ao máximo, formando um confuso
falando da Guanabara: quebra-cabeças de máquinas de propósito desco-
– Marcondes, o que aconteceu? nhecido. A única luz vinha dos holofotes nos capa-
cetes do grupo de abordagem, que iluminavam pai-
– Difícil dizer. Outro alien, semelhante ao que néis opacos cobertos de ranhuras finíssimas e furos,
Igushi descreveu, apenas mais... selvagem. Não sei espalhados por todas as partes.
se era inteligente ou um animal, mas escapou dis-
solvendo uma parede de metal maciço. – Que pesadelo é esse, capitão? Onde estão os
botões, telas de controle e alavancas?
– Detectamos o mesmo pico energético na nave
k’loon, e o eco a poucos metros de vocês. Tudo in- – Você está olhando para elas, cabo. Esses furos
dica que seja, mesmo, um tipo de teletransporte. e ranhuras são controles adequados a seres dotados
Fiquem atentos. de finos tentáculos. Quanto a telas, quem você espe-
ra que as observe numa nave robotizada?
– Há um pequeno detalhe que preciso mencio-
nar, Guanabara: estávamos todos focados nos sinais – Pretendo perguntar isso ao nosso caubói espa-
vitais, e fomos surpreendidos por mais essa apari- cial, senhor, assim que o encontrarmos.
ção. Na verdade, os sinais que captamos estão mais O silvo do comunicador assinalou uma chama-
adiante, provavelmente no convés onde guardam os da da Guanabara, informando o grupo sobre o pico
esquifes de animação suspensa do comandante. energético que precedera o aparecimento da nova
– Você está dizendo... criatura a bordo da Novo Mundo. O grupo de Gelo
Lourenço devia estar, agora, a poucos metros do
– Que não registramos sinais vitais do bicho que maquinário que gerava os pulsos.
nos atacou. Ou ele não está vivo, ou é alienígena de-
mais para nossos sensores. – Capitão!

– Então, de quem são os sinais vitais? O grito de alerta fez com que todas as lanter-
nas voltassem seus focos para o tortuoso corredor
– Tenho um bom palpite – era Torelli, entrando adiante, na direção apontada pelo soldado.
na conversa. – Os registros indicam que o coman-
dante tinha um filho, Hamilton Tanure, de sete anos A criatura não devia ter mais que sessenta cen-
de idade. Um dos últimos registros do diário da se- tímetros de altura. O corpo de aparência frágil, de
nhora Tanure revela que a criança estava ficando membros incrivelmente finos, não parecia apro-
irritadiça, entediada, saturada de seus quadrinhos priado para sustentar a cabeça grande, uma esfe-
e desenhos animados, cujo estoque parece ter sido ra perfeita que, na escuridão da nave, parecia ser
insuficiente para a longa viagem. A mãe começou a tão negra que se fundia às trevas, mas que era bem
prolongar seus períodos de sono através da anima- delimitada, superiormente, por um capacete que
ção suspensa. Suspeito que o que vocês encontrarão parecia feito de metal brilhante. Do centro da face
mais adiante, na câmara criogênica, será o pequeno dois olhos enormes, zangados, malignos, fitavam o
Hamilton, o último sobrevivente da Novo Mundo, grupo.
em sono artificial profundo. Antes que Gelo dissesse algo, o pequeno ser er-
– Então precisamos chegar a ele antes dessas gueu um braço e, da pistola em sua mão, um raio
de luz cegante disparou por cima dos soldados, dei-

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Pedra Filosofal Flávio Medeiros Jr.

xando uma área ovoide desintegrada no teto sobre os lábios para baixo. – Afinal, aqui seria o ponto de
suas cabeças. Segundos depois, gritos furiosos e dis- materialização. Não faz sentido que a matéria desa-
paros de armas de impulsos davam uma vida inédi- pareça.
ta à nave fantasmagórica. O silêncio persistiu no rádio por alguns segun-
dos. A voz de Torelli retornou, e parecia hesitante:
*** – Prossigam com cuidado.
Após interromper o contato, a subcomandante
Os grupos de Marcondes e de Igushi, a bordo da pediu a presença de Cristóbal, com o dossiê conten-
Novo Mundo, encontraram-se na intersecção em do as informações que tinham a respeito dos k’loon.
“T” onde, horas atrás, surgira o primeiro agressor Tinha uma suspeita tênue, mas até o momento era o
alienígena. Ninguém vira mais sinais do monstro melhor de que dispunham em meio àquela situação
dos ventos. Só havia um caminho a seguir agora: bizarra.
em direção aos dormitórios e à sala da animação
suspensa, onde jazia a criança adormecida. Era um
beco sem saída para quem quer que estivesse adian- ***
te.
– Antes de seguirmos, Guanabara, quero regis- – Para onde ele foi, capitão? – a voz dentro do
trar algo – declarou a soldado Nassim, apontando capacete era quase um sopro ofegante.
um sensor para as paredes no local exato onde, de – Não sei. Os tiros nesse breu me ofuscaram
acordo com Igushi, avistara o alien armado com completamente. Vamos avançar devagar. Grupo
pistolas. dois, nos dê cobertura.
– Prossiga, Nassim – confirmou a subcoman- Seguiram cautelosos, mas não houve mais resis-
dante Torelli, do outro lado. tência. Finalmente o corredor se abriu numa abóba-
– Foi algo que observei, inicialmente, no local da semicircular. No centro, um punhado de cubos
onde a criatura do tornado atravessou a parede: a escuros era percorrido, ocasionalmente, por raios
análise dos materiais indica que ela simplesmente luminosos de diferentes cores.
consumiu o metal. Não havia sinais de calor ou ra- – Guanabara, acredito que alcançamos o alvo.
diação. O metal simplesmente deixou de existir no
local. Acontece que, casualmente, detectei um des- – Positivo, capitão. É daí que partiram os pulsos
gaste semelhante, mas em menor proporção, num de energia. O último deles aconteceu pouco antes
raio de cerca de dez metros em torno da abertura. do senhor reportar o ataque ao seu grupo.

– Explique melhor, Nassim. De repente, um breve zumbido fez cintilar um


dos cubos centrais. A voz no rádio soou, alarmada:
– As paredes, os consoles, alguns objetos da co-
zinha; o material de que são feitos encontrava-se – Outro pico agora, capitão! Vocês estão aí, o que
desgastado, as paredes mais delgadas, utensílios está...
mais finos, quebradiços. Curiosamente, estou ago- Um estrondo. Um clarão. O metal explodindo na
ra analisando o local onde o tenente Higushi viu o parede acima da cabeça de Gelo.
“caubói espacial”, e existe uma bolha semelhante, de Soldados gritando, atirando. Alguém segurou o
dez metros de raio, de material consumido em tor- braço do capitão, ajudando-o a levantar-se do piso
no do local onde a criatura surgiu. onde se jogara após o disparo. Outro soldado apro-
– Poderia ser um efeito secundário do teletrans- ximou-se, excitado.
porte? – Eu o vi, capitão! Estava escondido atrás dos
– Não vejo como – respondeu a jovem, torcendo cubos luminosos.

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Pedra Filosofal Flávio Medeiros Jr.

– Era o mesmo alien do corredor? ao suporte portátil e transportá-lo em segurança


– Não, senhor. Era um humanoide de baixa esta- para o ponto de resgate, junto à fissura no casco.
tura. De cabeça, olhos e nariz grandes, como o que Assim que nosso pessoal, que está se distribuindo
atirou no tenente Higushi. Mas este não parecia ter ao longo do caminho de volta, estiver a postos...
nenhum pelo no corpo. Ele... ele... Gritos no corredor. Tiros. Três soldados sur-
– Desembuche, soldado. Isso não tem como ficar giram atropeladamente à porta e se jogaram para
mais estranho. dentro do dormitório.

– A penumbra pode ter me confundido, mas ele – Eles voltaram, sargento! O monstro do torna-
estava usando um traje de caçador. E atirou no se- do, e agora também o tal caubói espacial. Tem outra
nhor com uma enorme espingarda de cano duplo. criatura com eles, semelhante a um lobo, mas que
caminha como homem...
Gelo engoliu em seco. Arrependeu-se imediata-
mente de sua última frase. – Onde está o resto do grupo?
– Do outro lado. As criaturas surgiram inespera-
damente, no meio de nós. Não vimos de onde vie-
*** ram...
– Vamos montar uma barricada aqui mesmo.
Os dedos da subcomandante Torelli corriam fre-
neticamente pelo teclado. Relendo trechos do dossiê Atrás deles, o chiado de uma porta se abrindo.
sobre os k’loon, acreditava ter sido capaz de decifrar No centro da sala seguinte, sob uma luz tênue e ho-
o mistério do inimigo oculto que os espreitava no mogênea que preenchia o ambiente, viram o brilho
local do acidente. Mas faltava a peça final do que- do esquife criogênico. Mas à frente dele, bem diante
bra-cabeça: a identidade dos agressores. Cristóbal da porta aberta, uma silhueta se impunha de forma
lhe sugeriu algo que, não fosse a estranheza abso- assustadora. Era esguia e alta, como um ser humano.
luta da situação, teria feito com que o chamasse de A cabeça alongada emoldurava dois olhos enormes.
maluco. Agora ela vasculhava, ansiosa, o segundo Muito grandes, como parecia ser a característica
volume dos arquivos pessoais de Hamilton Tanure. em comum entre todas aquelas aberrações. Abaixo
A imagem saltou da tela e atingiu seus olhos como deles, um focinho proeminente voltado na direção
um soco. Ela expeliu o ar dos pulmões, e depois co- dos soldados. E em sua mão direita, pendendo ao
briu a boca com as costas da mão. Não conseguiu lado do corpo, via-se uma enorme, desproporcional
reprimir uma risada. marreta. A criatura moveu-se lentamente, adotan-
do uma postura defensiva, erguendo a marreta sem
– Ah, meu Deus... ah, meu Deus... dificuldade, como se fosse um taco de baseball.
– Comandante, o que houve? – Eles estão chegando, sargento! – disse o ho-
– Eu sei quem são eles, Cristóbal. Ponham-me mem que observava o corredor. Estamos cercados!
em contato com o grupo avançado na Novo Mundo, – Preparem as armas – disse Marcondes, entre
rápido! dentes. – Ao meu sinal atirem à vontade, e não pa-
rem antes de...
*** – Grupo avançado, cessar fogo! – gritou a voz em
todos os autofalantes.
– Bem, aqui estamos – disse Marcondes, respi- – Comandante Torelli?...
rando fundo. – Atrás daquela porta encontra-se a – É uma ordem, Marcondes! Quero que todos
criança. Não há outros sinais vitais detectáveis nas larguem as armas imediatamente.
proximidades. Precisaremos de alguns minutos
para desconectar o esquife criogênico, conectá-lo – Comandante, estamos cercados pelo inimigo

71
Pedra Filosofal Flávio Medeiros Jr.

e prestes a... Torelli devolveu o sorriso, saboreando o mo-


– Confie em mim, sargento. Eles não vão lhes fa- mento. Ajeitou-se na cadeira antes de prosseguir,
zer mal. Larguem as armas e ergam os braços, em em tom professoral:
sinal de rendição. – O gatilho que me levou à solução do mistério
Os soldados se enteolharam. Não era uma ordem foi o relato da soldado Nassim, que detectou um
fácil de cumprir. Mas, com os diabos, Torelli era a estranho desgaste em todos os materiais ao redor
comandante em exercício. Marcondes suspirou, dos locais onde apareceram as criaturas a bordo da
ciente de que todos o observavam e o seguiriam até Novo Mundo. Se não era um teletransporte, o que
o fim, qualquer que fosse ele. Lentamente, travou mais poderia ser? Então me lembrei de algo que li
o rifle e depositou no piso aos seus pés. Relutantes, enquanto estudava o dossiê a respeito dos k’loon.
os demais seguiram seu exemplo. Quando voltaram Eles enviam suas naves robotizadas a todo tipo de
a se erguer, tudo havia mudado. Nenhuma criatura planeta, onde vive todo tipo de criatura. Um dos
era mais visível. O ser com a marreta desaparecera, segredos que permitem o alto índice de sucesso de
assim como a turba que vinha pelo corredor. Não suas missões de socorro é uma tecnologia baseada
havia mais vento, nem rosnados. Só havia o grupo em reorganização molecular. Seja qual for o tipo
avançado, a criança adormecida e uma espaçonave de matéria disponível nos locais de chegada, as na-
morta. ves k’loon fazem um diagnóstico das necessidades
dos seres vivos ameaçados e simplesmente redu-
zem parte da matéria sólida ao redor a componen-
*** tes moleculares básicos, sintetizando a partir deles
qualquer tipo de recurso, seja alimento, remédio ou
material de construção, para concluírem sua missão
– Tudo prossegue dentro dos eixos, capitão – de resgate. Isso me chamou a atenção porque me fez
disse Torelli, entrando na sala e tomando seu lugar pensar no mito terrestre da “pedra filosofal”: trans-
à direita do oficial de maior patente. – A equipe formar chumbo em ouro. Para os k’loon, isso seria
médica informa que a criança está bem. Pretendem brincadeira de criança.
mantê-la em sono criogênico até encontrarmos a
Diamantina, que a levará para casa. Os técnicos es- – Você está dizendo que cada um daqueles seres
tão terminando de lacrar o rombo no casco da Novo era uma espécie de construto? Que foram sintetiza-
Mundo, e em breve chegará o rebocador CAMP que dos a bordo da Novo Mundo a partir do metal extra-
a conduzirá à Terra. A nave k’loon, após o desen- ído das paredes?
gate, permanece à deriva. Um pequeno aumento no – Metal e todo tipo de matéria disponível. Eis
fluxo energético sugere que deve estar fazendo um porque não tinham sinais vitais: não estavam vivos.
back-up automatizado de sua própria situação após Eram um tipo sofisticado de androides, se quiser
o acidente. assim. Uma vez cumprida sua função, eram desin-
Gelo sorriu brevemente. Para quem o conhecia, tegrados com a mesma facilidade.
aquilo era um dos maiores prêmios a que se podia – Função! – não resistiu Marcondes – Muito
aspirar. bem, comandante, mas que função seria essa, além
– Confesso que não foi fácil seguir sua ordem de nos assustar como o diabo?
de depor as armas e recuar em meio a um tiroteio – Foi o que também me perguntei, sargento. O
numa câmara alienígena, Torelli. Mas você era a co- que me levou de volta ao dever de casa, o dossiê so-
mandante em exercício na Guanabara, e o capitão bre os k’loon. Como deve se recordar, essa espécie
deve ser o primeiro a dar seu exemplo de disciplina, tem uma atitude quase dogmática no que se refere à
correto? E vejam só: funcionou! No entanto, todos proteção da vida. Ora, o único ser vivo a ser prote-
aqui acreditamos que você nos deve uma boa expli- gido a bordo da Novo Mundo, após o acidente, era
cação sobre o que, de fato, aconteceu lá fora. a criança em sono criogênico. Eis que chega outra

72
Pedra Filosofal Flávio Medeiros Jr.

espaçonave, e homens armados se aproximam do tinuou:


local de repouso da criança indefesa... – Que tipo de “violência” faz parte do mundo de
– De fato, ambas as criaturas se materializaram uma criança de sete anos de idade, senhores? Uma
em nosso caminho rumo ao local do esquife criogê- criança que vinha numa longa viagem, a partir da
nico da criança. No entanto, apesar dessa tal “vene- Terra, assistindo repetidamente a infindáveis horas
ração pela vida”, as coisas atiraram em nós. de desenhos animados do século XX...
– Pense bem, sargento: eles tinham a vantagem – Oh, não...
da surpresa. Entretanto, não tivemos nenhuma bai- Torelli ignorou, dessa vez, a intervenção de Mar-
xa em nossas fileiras. Todos os tiros foram com o condes. Prosseguiu, com mais ênfase:
objetivo de assustar, de deter seu avanço. Nenhuma
ação dos construtos visava, efetivamente, ameaçar – Antes da febre do “politicamente correto”, a
nossa existência. violência nos desenhos animados era mostrada
de forma muito mais crua, despreocupada, mes-
– Como aconteceu a bordo da nave k’loon – re- mo porque nunca terminava em morte ou lesão
forçou Gelo, concordando. – Eles tentavam apenas verdadeira. Um personagem era alvejado por uma
nos afugentar, impedir que interferíssemos nos sis- escopeta, ou esmagado por uma pedra, e sofria no
temas vitais da espaçonave. Muito bom, Torelli. máximo alguma distorção corporal momentânea.
Conseguiu formar alguma teoria sobre que diabo Aparecia na cena seguinte, totalmente recomposto.
de criaturas eram aquelas? Em que matriz a máqui- Em alguns desenhos antigos isso era uma ocorrên-
na se baseou para sintetizar aquelas coisas? cia muito comum. Por exemplo, encontrei nos ar-
O sorriso da subcomandante ampliou-se, e ela quivos de Hamilton Tanure temporadas inteiras da
buscou os olhos de Cristóbal, procurando apoio. “Turma do Pernalonga”...
Mas o jovem chileno parecia, de repente, interes- – Desculpe... quem?
sadíssimo em alguma coisa invisível na direção do
teto da sala. Covardão. Ela pigarreou, e começou Torelli, com um sorriso tímido, acionou seu pad
lentamente: e projetou imagens na tela grande da sala de reuni-
ões. Um coelho cinzento, esguio e sorridente, pro-
– Lembrem-se de que a nave robotizada se de- vocou uma careta de desgosto em Gelo Lourenço.
parou com uma espaçonave cheia de seres mortos, Depois dele, vários personagens surgiram um após
com a exceção de um. Seres de uma espécie, para outro, e não havia dúvidas de quais haviam servido
eles, inteiramente desconhecida. No momento em de “inspiração” para os construtos k’loon, por mais
que o autômato viu-se na necessidade de elaborar que as versões em matéria não parecessem tão ami-
construtos que nos intimidassem, precisava de in- gáveis e infantis quanto as dos desenhos animados.
formações a respeito de que tipo de oponente con-
sideraríamos ameaçador. Que tipo de ser poderia – Lembrem-se – interveio Cristóbal, finalmen-
ser visto, a nossos olhos, como uma potencial fonte te animando-se a participar da explicação, – para a
de violência, de ameaça a nossa integridade física raça alienígena esses personagens não têm, nem de
e à própria vida? É provável que, até nossa chega- longe, a conotação que têm para nós, humanos. A
da, o autômato já estivesse escaneando e tentando interpretação que os k’loon fizeram deles foi abso-
analisar os arquivos gravados na Novo Mundo. No lutamente circunstancial.
instante em que interpretou que Hamilton Tanure – É meio mórbido, eu sei – disse Torelli, dando
estava sob ameaça, deve ter se concentrado nos re- de ombros. – Mas não deixa de ser... digamos, en-
gistros do menino, buscando qualquer coisa que, graçado. Alguns de vocês hão de conhecer um ou
para ele, consistisse em ameaça, em fonte de violên- mais destes personagens...
cia. Algo que a criança pudesse usar como defesa.
– Era o Patolino, não era?
Fez uma pausa, fitando as fisionomias ao redor.
Como não encontrasse sinais de compreensão, con- Todas as atenções se voltaram para Marcondes,

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Pedra Filosofal Flávio Medeiros Jr.

que encarava o tampo da mesa com uma expressão Gelo girou a cadeira e fitou Torelli diretamente.
vidrada. – Você disse que já estavam escaneando os regis-
– Eu achei que era um focinho comprido, mas na tros da Novo Mundo quando chegamos. O quanto
verdade era um bico de pato. Na câmara do esquife terão aprendido sobre nós? Você acredita que, no
criogênico, foi o Patolino quem me ameaçou com final de tudo, eles conseguiram chegar ao mesmo
uma marreta gigante. entendimento que nós a respeito de tudo que acon-
teceu?

*** Ela voltou a dar de ombros.


– Quem sabe tenhamos essa resposta em algum
Torelli entrou nos aposentos privativos de Gelo próximo contato? Ou, quem sabe, talvez nunca sa-
e permaneceu em posição de sentido. Sentado em beremos...
sua poltrona predileta, fitando a escotilha que dei- A conversa foi interrompida pelo chamado do
xava ver as estrelas, o capitão bebericou o uísque em intercomunicador.
seu copo, parecendo não ter se dado conta de sua – Capitão, estamos recebendo uma mensagem
presença. No entanto, um minuto depois, ele disse de áudio e vídeo da nave k’loon. Ela a transmitiu
em voz baixa, ainda sem olhar diretamente para sua segundos antes de mergulhar no subespaço.
primeira auxiliar:
– Projete na minha tela – respondeu Gelo, após
– À vontade, Torelli. Sente-se. Sirva-se de uma breve hesitação.
dose, se quiser, pode ser que esteja precisando. Eu
estou. A tela acendeu, e uma série de círculos concên-
tricos surgiu, acompanhada pelo ensurdecedor ba-
– Vou precisar de ajuda no preenchimento do rulho de uma fanfarra animada. No centro da tela,
meu relatório sobre esta missão, disso não tenha em letra cursiva, uma frase desenhou-se lentamen-
dúvidas – respondeu ela, sentando-se do outro lado te.
da pequena mesa no centro do quarto.
– “That’s all, folks!” – leu Torelli em voz alta, mal
– “O universo é um lugar estranho e perigoso.” contendo o riso.
– Conheço a citação, capitão. Quem não conhe-
ce?
– Almirante Barbosa. Frase dita ainda nos seus
tempos de capitão. Em todas as vezes nas quais pro-
curei traduzir em exemplos a palavra “estranho”,
algo vagamente próximo do que vimos jamais me
passou pela mente.
– Um mal-entendido dos mais bizarros. Mas
bem apropriado para o primeiro contato entre duas
culturas absolutamente estranhas entre si.
– Como estão as coisas lá fora?
– O rebocador CAMP chega a qualquer momen-
to. A nave k’loon, como já reportei, acionou seus
motores e se afasta de nós em baixa velocidade. Pa-
rece estar retornando pelo seu curso de origem.
– Devem ter muito a contar em casa, assim como
nós.

74
Carga Solta
um conto de Simone Saueressig

E , ei, cuidado aí!


O grito varou o ar na esteira do eco,
quando a caixa 32-A soltou-se do guindaste e por
Papi aproximou-se mascando o palito de dentes
e sorrindo. O homem nervoso passou um lenço nos
lábios e olhou para as caixas com temor.
– Me dá isso aqui, – murmurou. Agarrou o mi-
pouco não desequilibrou a pilha que ainda estava cro e a caneta e assinou de má vontade.
gravitalmente desalinhada dentro do hangar da
“Eulália”. Lars espiou por cima do ombro e masti- Vinte minutos depois a “Eulália” recebia autori-
gou um palavrão. Papi, que estava no comando do zação para sair da base Lua-7 e realizar o vôo orbital
guindaste deu de ombros e continuou mascando o que usava parte do impulso gravitacional da Terra
palito que levava na boca desde a hora do almoço, como estilingue rumo a Marte.
como se nada tivesse acontecido. Empurrou a pilha
com o braço da máquina recalcitrante e berrou uma
– O que você acha que ele tem lá trás?
ordem em antariano. O piloto ouviu quando o cam-
po gravitacional localizado foi acionado e as caixas Lars olhou para Papi por cima do prato de feijão e
estremeceram enquanto se acomodavam contra a arroz hidratados que devorava com apetite. Depois
parede. lançou uma espiadela para o beliche onde Roberto
Cunha havia se refugiado desde o início da viagem
– São quarenta e três embalagens “A-superL”. As-
queixando-se de enjôo. Haviam lhe dado uma pílu-
sine aqui – pediu, estendendo o micro e a caneta
la e agora o homem dormia profundamente.
digital para o homem nervoso a sua frente.
Encolheu os ombros.
– Vou viajar junto. Por que diabos tenho de assi-
nar? – indagou ele secando a fronte com um lenço. – Sei lá. Drogas. Talvez aquelas roupas antipo-
eira. Em todo o caso, algo que vale uma boa grana.
– Formalidade. Somos contrabandistas, mas so-
mos organizados. Não quer que seu carregamento – É...
vá parar em Beta-Carenae por engano, não? Auron mastigava de olho nos instrumentos de
– Mas eu vou viajar junto... bordo.
Lars suspirou e baixou a tela. – O monitor não está legal. E o alarme sonoro
dos detetores laterais não está funcionando – res-
– Em uma viagem entre duas colônias pode
mungou entre uma garfada e outra.
acontecer de tudo. Desde um enfarte até o choque
com um cometa errante. Uma vez tivemos um su- – Eu falei que a oficina do Teco cheirava à pica-
jeito que passou todo tempo enfiado no banheiro retagem... – reclamou o capitão remexendo o arroz.
pressurizado. O que ele comia por cima, saia por – Talvez seja cerveja. Hem? Já pensou se for uma
embaixo cinco minutos depois... carga de cerveja? Ouvi dizer que a cerveja, em Mar-

75
Carga Solta Simone Saueressig

te, custa uma nota – continuou o imediato, sem pre- um clique no ícone que testava o som, os deteto-
ocupar-se em engolir o que tinha na boca. res laterais continuavam tão mudos quanto antes.
– Ninguém usaria “A-superL” para carregar cer- Coçou com impaciência a cabeça que já ia ficando
veja. São caras demais. careca. Detestava viajar no silêncio, tendo de vigiar
o painel dos sensores da nave. Observar as linhas
– Eu não gosto de viajar sem o sistema de alarme de informação escrita dava-lhe sono. Para dizer a
cem por cento em ordem – murmurou Auron co- verdade, detestava naves cargueiras. Em toda a es-
çando a barba mal-feita. trutura havia, quando muito, uma única escotilha
– Nem eu, – retrucou Lars. – Da próxima vez, na porta de acesso da nave. Nada daqueles painéis
leve a nave para uma mecânica decente. enormes desde onde se podia admirar as estrelas
e os planetas, e que faziam o maior sucesso nos
– O que eu não gosto é de viajar sem saber o que cruzeiros turísticos. Fora para isso que se tornara
estou levando, – protestou Papi empurrando o pra- piloto. Para ver o espaço, as estrelas e sonhar que
to vazio. O plástico deslizou com um ruído sobre a estavam ao alcance de sua mão. Mas o único em-
mesa. – Detesto. É como se a Ruiva viesse me dizer prego que conseguira era o de piloto de cargueiro
que está grávida. Quem pode me garantir que o que e, depois de um acidente na órbita de Júpiter, nem
está ali dentro é filho meu? isso. Haviam caçado a sua inscrição. E como definir
– Ninguém. Nem ela! – riu Auron. Lars acom- rotas e comandar naves era tudo o que sabia fazer
panhou-o na gargalhada e Papi o encarou com os na vida, entrara para o negócio do carregamento
lábios retorcidos. ilegal sob a proteção de Hobber, que durante algum
– Não sei qual é a graça. tempo havia sido seu sogro. Uma droga. Passava o
tempo todo analisando gráficos e tentando desco-
Lars continuou rindo e Auron voltou ao seu pra- brir porque um aparelho apitava demais e, outro,
to e ao painel de controle. Um curto silêncio. De- de menos.
pois, Papi insistiu:
– Que horas são?
– Talvez você devesse ir lá trás, só para conferir,
Lars. O gajo está dormindo. Lars virou-se de súbito. Roberto estava escorado
na porta da cabine, esfregando os olhos.
O capitão olhou o imediato mastigando com for-
ça. – Muito cedo. Vá dormir – replicou o capitão,
aborrecido. O passageiro não pareceu ouvi-lo.
– Você está me deixando nervoso, Papi. E eu es-
tou comendo. E além do mais, não corre na nos- – Não uma janela para olhar para fora? – inda-
sa conta. Fazemos o transbordo, cobramos a nossa gou sonolento.
parte e fim de conversa. – Há uma escotilha na sala de pressurização ex-
O imediato fez um gesto com a boca que que- terna.
ria dizer “dane-se você também”, em Antares, e Lars O outro titubeou.
apontou o garfo para Auron: – Eu achei que havia janelas nas naves.
– Da próxima vez, vê se leva a nave numa mecâ- Não houve resposta. Lars estava limpando uma
nica decente. unha com a ponta de uma pequena chave de fenda
que tirara do bolso do macacão. O passageiro tor-
Às três horas da manhã, hora de Greenwich, Au- ceu o nariz.
ron foi substituído pelo capitão. Havia um pouco – Vou tomar um café.
de cisco plástico rolando sobre o painel de controle – Faça um para mim também. Quase puro e com
do sistema de alarme lateral da nave, o que indicava pouco açúcar.
que o jovem havia tentado consertar o problema do
alarme sonoro. Mas, como Lars comprovou ao dar Então ouviu um apito. Olhou de imediato para

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Carga Solta Simone Saueressig

a tela do sensor traseiro e sentiu um vazio dentro – É o tal do passageiro – sussurrou o homem no
de si. mesmo tom de voz assombrado. – Eu acho que ele
– Agarre-se! – gritou, mas então a nave inteira está morto.
foi sacudida por um tremor violento e guinchou
ferro e ferro raspando com força, parte da estrutu- Os três homem olhavam o cadáver com um ar
ra dos motores rasgando como papel, amassando, estarrecido. A sacudida o derrubara e soltara a cafe-
partindo, afastando-se da nave com uma velocidade teira enorme e antiquada da parede, derrubando-a
vertiginosa, arrancada pelo meteorito que descre- sobre ele. A quina estava enterrada na tempora es-
vera uma trajetória aguda pela lateral da “Eulália” querda do homem que fitava a eternidade com um
e fora detectada no último momento antes do im- ar de espanto
pacto, pelo sistema sensorial traseiro do cargueiro.
Lars foi atirado de cima da poltrona contra um pai- – O que vamos fazer agora? – ganiu Papi a ponto
nel e sentiu as costelas doerem com o impacto. Não de chorar.
conseguiu ver se Roberto tivera tempo de se agarrar Houve um curto silêncio e depois Lars prague-
a algo e esperava com fervor que seus dois compa- jou irritado.
nheiro tivessem passado o cinto de segurança nos
beliches como era recomendado pela normas de se- – Que porcaria de situação. O que a gente vai fa-
gurança espacial. zer?

Quando tudo parou de sacudir, os alarmes que O capitão abaixou-se e revistou o cadáver. En-
funcionavam começaram a soar. Lars arrastou-se controu alguns papéis no bolso, um computador de
com dificuldade até a cadeira do piloto e observou mão.
os danos com apreensão. Encontrou a chave que – Vamos nos livrar dele. Tudo o que nos faltava
desligava os apitos e bateu nela com força para con- era um presunto à bordo. – decidiu o capitão. Ter-
trolar um pouco o caos. minou de revistar o cadáver e levantou-se, puxan-
– Que diabos... do-o contra si.

– Se você tivesse consertado o maldito painel, – Não viajo mais com gente que não sabe o que
isso não teria acontecido! – gritou ele para o ime- é o espaço! – xingou e dirigiu-se para o comparti-
diato que surgira na porta como que saído do nada. mento de pressurização externa.
Auron aproximou-se e começou a ler as informa- – Eu não ouvi você fazer o questionário seis para
ções das telas enquanto amassava a boca com a mão ele... – resmungou Papi com um ar de acusação.
esquerda. – “Pergunta 1: é a primeira vez que você sai da
– O meteorito arrancou parte da fuselagem ex- órbita terrestre?” – resmungou o outro imitando a
terna, as saídas das turbinas e as antenas de comu- voz modulada dos computadores. – Vê senão me
nicação. Parte do painel solar. Um probleminha nos enche o saco e me ajuda com o sujeito!
direcionais da lateral bombordo, mas ainda estamos O processo não levou dois minutos. Lars e Papi
navegando e operando. O computador deverá cor- deixaram o corpo no pequeno compartimento e fe-
rigir a rota em alguns segundos – resmungou com charam a porta interna. O equipamento resgatou o
um ar sombrio. – Não é para tanto. precioso oxigênio que havia no minúsculo espaço e
– Não é para tanto?! Seu estúpido... abriu a porta externa da nave. Um segundo depois
– Êh, Lars? Acho melhor você vir aqui, – mur- a porta se fechou de novo e a interna se abriu. O
murou Papi parado junto à porta, olhando para o cadáver havia desaparecido.
chão. Um corte profundo na testa enchia sua cara – E agora? – indagou Papi à meia voz.
de sangue. – E agora, e agora! Você não sabe perguntar ou-
– O que foi agora? tra coisa? – explodiu Lars. O homem se encolheu

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Carga Solta Simone Saueressig

assustado e Auron deu as costas para ambos. Voltou mo assim, podiam localizar as caixas mais afastadas
a vigiar os painéis dos sensores laterais. pelas luzinhas dos painéis de controle que piscavam
– Se você tivesse feito o seu trabalho direito, não suavemente, todas verdes. O carregamento estavam
estaríamos nessa situação – disse, secamente. Lars em ordem.
avançou como um trem e tirou o outro da cadeira, – Auron, pode soltar a linha D – disse o capitão
segurando-o pelo colarinho. As costelas protesta- no interfone do traje. Logo em seguida viu a linha
ram, embora Auron fosse um homem baixo e ma- de dez cargas mover-se quase imperceptivelmente.
gro. Por pouco não tirou-lhe os pés do chão, mas o Os dois veteranos aproximaram-se das A-superL
rapaz não pareceu intimidado. com cuidado. Lars observou o rosto pálido e suado
– O cara veio aqui falar comigo e me distraiu, de Papi, mal iluminado pelas lâmpadas internas do
entendeu? traje. O homem hesitou bastante em entrar no com-
Auron deu de ombros, os olhos negros gelados partimento.
como pedras. – Tudo bem? – indagou o capitão já no meio do
– Você é o capitão. caminho. O outro respondeu com um aceno de ca-
beça e o seguiu à contragosto.
Lars atirou-o de volta à cadeira.
A carga estava à frente. Uma linha de caixas cú-
– E você devia ter levado a nave a um mecânico bicas do tamanho de um homem, pesando duzentos
decente. quilos cada uma, flutuando no espaço a centenas de
O imediato deu de ombros e se voltou para os quilômetros por hora. Lars afastou de si a lembran-
monitores com uma careta de raiva. ça do meteorito enquanto ouvia a respiração pesada
de Papi através dos fones abertos. A sua não era me-
– E agora? O que vai ser? nos audível no silêncio dos trajes.
O capitão suspirou fundo e olhou para Lars com – Estamos nos aproximando das caixas – disse,
um ar de aborrecimento profundo. através do interfone.
– Vamos ver o que o cara tinha dentro daquelas – Aqui está tudo limpo – respondeu Auron de-
caixas. Se for um material fácil de vender, a gente pois de um estalo de estática.
vai até o mercado em Fobos e tira o prejuízo do
combustível. Senão, jogamos tudo fora, ficamos – Fique de olho nos sensores de bombordo. Foi
mais leves e gastamos menos. de lá que veio o meteorito e eles nunca andam so-
zinhos – ordenou o capitão. Mais estática e depois
– Ok! – animou-se Papi. – Isso parece razoável! um curto:
Piscou um olho para Auron, enquanto Lars se – Tá.
afastava em busca dos capacetes:
– “Tá”? Que profissional! – irritou-se Papi apro-
– Talvez seja um bom carregamento de cervejas. ximando-se das A-superL. Lars passou debaixo do
arco de carga solta com o coração aos pulos e viu
A porta se abriu em silêncio e Lars sentiu o traje como elas se entrechocavam levemente. O movi-
inflar levemente ao seu redor, resultado da ausência mento tornava-se cada vez mais pronunciado e a
de atmosfera e pressão no compartimento de car- caixa da ponta do semi-círculo estava se afastan-
ga. Ele olhou para as sombras das pilhas alinhadas do em direção à parede oposta. Fez um sinal para
contra a fuselagem crua da nave, três filas de onze o companheiro e ambos flutuaram na direção da
caixas que quase davam a volta no perímetro da ses- embalagem. Havia alças em três laterais, duas de-
são e uma de dez. As luzes internas do espaço se las opostas e Papi teve de esforçar-se por alcançar
negavam a acender. Auron imaginava que o choque a caixa ao mesmo tempo que Lars. Não conseguiu
com o meteorito danificara a fiação elétrica. Mes- e sentiu quando a A-superL começou a empurrá-lo
contra a pilha que continuava presa ao casco pelo

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Carga Solta Simone Saueressig

campo gravitacional. Focou a luz outra vez na mão do antariano e en-


– Saia daí, Papi! – a voz de Lars soou dura e apre- tão estremeceu. No ponto onde havia a junção do
ensiva em seus ouvidos. Papi não disse nada mas traje, se formou uma gota de sangue. O material que
empurrou a caixa de volta na tentativa inútil de pa- compunha o traje estava grudado no corpo de Papi,
rá-la. Era pouca força, entretanto, e o movimento acusando uma queda de pressão. Ele olhou para o
inerte só perdeu velocidade. A trajetória da emba- capacete do outro e respirou fundo. Felizmente, o
lagem continuou a mesma. sistema de oxigenação capacete era independente
do restante, porque aqueles eram trajes de trabalho,
– Saia daí! – gritou Lars mais assustado. Segurou onde cada grama de oxigênio era minuciosamen-
a alça de seu lado, mas não tinha onde se apoiar e te economizado. Havia um filtro no pescoço e dali
foi arrastado pelo peso morto. Seu corpo se chocou para baixo, o que havia, basicamente, era o CO2 re-
contra o cubo e concedeu-lhe mais força do que ti- sultante da respiração. Papi, portanto, não teria pro-
nha antes. A velocidade da caixa aumentou. blemas para respirar, mas a descompressão do traje
– Papi! do pescoço para baixo era um problema. O tecido
interno do equipamento garantiria que o corpo dele
Não conseguia vê-lo, porque a A-superL se inter- não inchasse e as veias não explodissem, mas o pro-
punha entre eles. O único que conseguiu foi ouvi-lo blema era o ferimento. Agora que o sistema sanguí-
aspirar com força e então a caixa se chocou contra neo dele apresentava um ferimento em contato com
algo. Ouviu um grito pelo interfone dos trajes. a descompressão, a situação do homem poderia se
– Papi! complicar rapidamente e levá-lo ao choque em mi-
Sentiu o suor escorrendo frio pela coluna, em- nutos. Precisava tirá-lo dali o quanto antes.
papando a superfície interna de algodão sintético. – Atenção, Auron. Temos uma emergência de
Tentou não perder o senso de direção e deslizou ao primeiro grau aqui atrás. Ouviu? Prenda a carga ou-
longo da caixa até a esquina desde onde pode ver o tra vez e prepare-se para inundar a área de pressu-
corpo do companheiro. O homem se contorcia de rização interna. Papi tem um furo no traje. Repito:
dor, mas o capitão não conseguia ver quase nada Papi tem um furo no traje.
porque não se afastava da embalagem. Parecia estar A gota de sangue separou-se do macacão e for-
livre! mou-se outra logo em seguida, carregada de uma
– Minha mão! – ouviu Papi gritar. A caixa co- massa branca. Os berros de dor do companheiro
meçou a trajetória no sentido inverso, ameaçando calaram-se um momento, diante do terror da situa-
empurrar Lars. O capitão empurrou-a para o lado ção, mas em seguida voltaram com força redobrada.
sabendo que ia se arrepender do movimento e avan- O homem contorceu-se de dor e medo e por pouco
çou para o companheiro. O foco que tinha sobre o não empurrou Lars de volta ao centro do salão es-
capacete iluminou a luva de Papi que agora despeja- curo. O capitão segurou o fôlego e agarrou a mão
va uma torrente de palavrões pelo interfone, tentan- ferida do outro com força, pressionando o ferimen-
do segurar a mão ferida. Lars aproximou-se dele e o to com toda a força que tinha. Sentiu a mão ceder
prensou contra a parede, agarrando-se com força às como se houvesse apenas um material amorfo den-
alças para movimentação no compartimento. tro dele e sentiu o corpo de Papi relaxar contra o seu
– Pare de gritar, seu idiota! e um súbito silêncio invadir o interfone.

– Minha mão! Respirou por um momento, depois ouviu a está-


tica de novo.
– Cale-se, senão não consigo ouvir Auron! Quer
nos matar por causa de um apertãozinho à toa? – Temos duas cargas soltas aí dentro. Estavam
longe demais do campo de fixação – ouviu a voz do
– Cristo! imediato. – Lars? Me recebe? Câmbio!
– Cale-se! – Alto e claro – olhou para o filete de sangue que

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Carga Solta Simone Saueressig

começava a escorrer dentre as duas luvas, descre- para o outro. A caixa passou entre eles, levando
vendo um fio em direção ao centro do comparti- consigo uma parte da linha de sangue do homem
mento de carga e praguejou baixinho. Deu um pe- ferido. Lars esperou que seu corpo batesse contra
queno impulso com o pé esquerdo e os dois corpos a parede e, com um gemido de dor por causa das
se afastaram da parede, descrevendo uma meia-lua costelas doloridas, avançou de novo para o centro
em torno da mão que ele mantinha firmemente pre- do espaço, tentando calcular quanto tempo a caixa
sa na alça fixa. O filete de sangue e gordura dese- ia levar para bater na parede do fundo e mudar de
nhou o arco perfeito da trajetória no espaço restrito. direção.
– Agüenta firme, Papi. Quando seu corpo se chocou com o de Papi,
Varreu o centro do aposento em busca das duas quase se assustou. Relaxou a tempo e deixou que
caixas soltas e localizou uma delas se afastando em o peso inerte do outro o arrastasse contra a parede
direção ao fundo do compartimento. Só viu a outra de onde viera e então agarrou-se à primeira coisa
quando era quase tarde demais. Conseguiu forçar o que viu, um cabo de energia elétrica. Sustentou o
corpo de Papi a dar outra meia volta e o protegeu na companheiro e então avançou de novo para o re-
esquina interna que a carga presa e a parede da nave tângulo branco. A respiração do antariano era fra-
formaram. Colocou o corpo sobre o dele e formou ca, cortada por sacudidas estranhas e um gargarejo
uma barreira frágil entre a carga solta que avançava que ele nunca tinha ouvido. Procurou a mão ferida
e o companheiro. Sentiu o impacto da superfície lisa e quando a apertou, sentiu como a luva era amassa-
e por um momento sentiu-se grato por ser um dos da por seu punho. O homem havia perdido massa
lados sem alça e por não ser uma quina. Depois o muscular, os ossos e provavelmente mais sangue do
cubo começou a pressioná-lo contra Papi e empur- que ele calculara. Soluçou em seco.
rou ambos contra a parede fria do compartimento. – Firme, Papi, estamos quase lá.
Ele sentiu o capacete como algo orgânico ao redor A porta estava quase ao alcance da mão quan-
de sua cabeça, agüentando, segurando a atmosfera do viu o cubo aproximando-se outra vez com uma
e a pressão com um esforço quase de ser vivo. Papi velocidade estável mas bastante alta. Ia prensá-los
gemeu e ele viu a cara do companheiro acinzentada contra a porta com toda a força, ele compreendeu, e
dentro de seu traje, a cor ainda mais doentia por agarrou-se numa alça ao lado da porta.
causa da luz do capacete.
– Auron! Toda a força à estibordo!
– Agüenta, seu estúpido, – ele gemeu, temendo
ouvir o estalo da estrutura de carbono do capace- – Você ficou louco?
te. Então a pressão desapareceu como por encanto – Já! – gritou Lars sem conseguir evitar o guin-
e ele pode ir virando a cabeça e ver como a caixa cho de pânico.
se afastava numa trajetória errática por dentro do
compartimento. De repente a linha reta da caixa se transformou
numa curva contra a parede. Ele sentiu-se arrasta-
– Vamos, Papi. do pelo corpo da nave e observou fascinado como
Conseguiu interpor entre eles e as caixas soltas o a caixa ia desviando-se pouco à pouco. Bateu com
arco de carga estável e avançou com certa segurança toda força contra a fuselagem, à apenas dois centí-
ao longo da parede. Venceu o arco seguinte e então metros da porta e então entrou em um movimento
resolveu arriscar um caminho em linha reta entre circular errático. Lars conseguiu abrir a porta e em-
o ponto logo atrás de uma das caixas e o retângulo purrar o corpo do companheiro para dentro, e içou-
branco da porta da sala de pressurização, cortando -se logo atrás. Uma das caixas apareceu outra vez,
o centro compartimento numa diagonal. empurrou a quina para dentro do espaço estreito e
espetou com força a perna do capitão. Ele gritou de
Súbito, saída das sombras, uma das A-superL dor, mas conseguiu puxar a perna antes que fosse
apareceu avançando para eles numa linha reta. Ele tarde demais. Então ela bateu contra os batentes, es-
empurrou Papi para um lado e seu corpo deslizou

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Carga Solta Simone Saueressig

tremeceu e começou a se afastar. Lars empurrou-a – Elas estão soltas, – murmurou Auron. – Cada
com força e, finalmente, conseguiu fechar a porta. golpe que elas dão contra a estrutura compromete
Sentiu com prazer a pressão do ar ao seu redor nossa rota. O computador leva algum tempo para
outra vez e o chão firmou em seus pés. Arrastou-se recalcular tudo, e às vezes elas não lhe dão o tempo
para junto do corpo do companheiro ferido. Abriu suficiente.
o macacão do antariano aos trancos, arrancando – Quer dizer...?
os velcros e forçando o sistema de pressurização. – Que mais ou menos à cada cinco ou seis minu-
Quando conseguiu arrancar o capacete de Papi, já tos estamos perdidos, capitão. E que cada correção
estava aos prantos. Os olhos vidrados olhavam-no na rota nos custa um combustível que não temos.
vazios e um filete de sangue escorria dos lábios en-
treabertos. Auron surgiu ao seu lado e abaixou-se – Vamos abrir o compartimento e largar as cai-
com rapidez. Tomou-lhe o pulso junto da jugular. xas no espaço – ordenou Lars soltando o capacete.
– Está vivo! – Não vai dar.
– Meu Deus! Lars encarou o outro com um ar de pavor.
As mãos ágeis do imediato puxaram o homem – O meteorito danificou o mecanismo da fecha-
para dentro da cabine de sobrevivência e tiraram- dura. Talvez não dê para abrir nem manualmente
-lhe o traje. A mão ferida havia desaparecido. Só – suspirou Auron olhando para o corpo nu de frágil
havia um pedaço da palma e o osso que dava início de Papi dentro do casulo. Observou a mancha de
ao polegar, branco e trágico. O sangue escorria em sangue da atadura, mas comprovou com o compu-
abundância. tador que a pressão era estável.
– Pegue uma atadura de compactação. Ele está A nave estremeceu de novo, o baque surdo
perdendo muito sangue. acompanhado por outro, logo em seguida.
Lars obedeceu sem tirar o seu próprio traje. Teve – Se elas ficarem soltas, estamos mortos, – com-
de arrancar as luvas para poder pegar o material pletou Auron. Lars praguejou, passou a mão nos ca-
médico mas em seguida viu como Auron empur- belos. Depois olhou o capacete e voltou a encaixá-lo
rava a atadura contra o ferimento e apertava o tor- no traje, lentamente.
niquete até o sangue parar de fluir. Depois borrifou – Então alguém tem de prendê-las.
com anti-séptico e fechou a ferida com gaze limpa.
– Vou com você.
– Vamos pô-lo no casulo de hibernação – disse
sem perder a calma. Lars observou-o. Estava páli- – Alguém tem de ficar nos controles. Você sabe.
do mas parecia muito seguro de si. – Deve dar para – Lars... são duas caixas de duzentos quilos.
chegar até o próximo posto de socorro. – Não diga!
Finalmente o corpo nu foi depositado na urna Enfiou as luvas e fechou os punhos pressuriza-
de vidro e o computador se encarregou de fornecer dos.
dados sobre batimento cardíaco e a pressão sangüí-
nea. Auron não gostou nada do que leu no monitor. – Procure manter a rota, – disse, e meteu-se
de volta à cabine de pressurização interna. Passou
– Ele está muito fraco. Em choque. Não temos a mão em um cinturão de trabalhos braçais, com
medicação a bordo para fazer nada mais por ele. Te- alicates, ganchos e cabos de fibra de carbono, pen-
remos de rezar para que chegue vivo. sando se aguentariam a tensão. Quando a porta do
– Certo. compartimento de carga se abriu, hesitou um ins-
Ouviram um baque surdo e a nave estremeceu tante, o coração batendo com força, a respiração
levemente. Os dois homens se entreolharam. pesada. Acendeu a luz externa do capacete.
Estava morto de medo.

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Carga Solta Simone Saueressig

o TNT e afastar-se. Deixou-se arrastar pelo volume


Deu um leve impulso e avançou lentamente em quadrado, rodando como um espermatozóide em
direção ao primeiro arco de cargas. Manteve a mão torno do óvulo, lutando para fixar o gancho na alça.
esquerda em contato com a fuselagem interna da Viu a parede aproximar-se e rezou para ter tempo
nave, esperando o próximo choque dos cubos con- de, pelo menos, dar outra meia-volta e por-se a sal-
tra o fundo do compartimento. Preferia não pensar vo. Seu peso já havia modificado o percurso da cai-
muito no estado em que se encontrava a parede do xa e diminuído sua rotação, e ele esperou o baque
fundo e os pontos onde os blocos haviam se choca- do seu corpo contra a parede. No último instante,
do. entretanto, algo golpeou a caixa e ela deu uma gui-
nada, empurrando-o para o lado. Bateu com uma
Pensou ver um volume passando à sua direita, alça contra a parede e começou a avançar contra
mas quando virou o facho de luz naquela direção, Lars. Ele prendeu o gancho e esperou ela chocar-
não viu nada. Prosseguiu o trajeto que pensava ser -se nele. Então aproveitou o impulso e se empurrou
o da caixa mas o compartimento estava vazio. para outro lado.
Ao seu lado, um dos micro computadores que Agora estava ligado à caixa através de um cordão
mantinham as condições internas da A-superL pis- de fibra de carbono. Sentiu como ela o puxava para
cava esverdeado. Ficou tentado a parar um momen- a lateral da nave e deixou-se levar, enquanto cor-
to para ver o que elas levavam. Sabia que deveria ser tava o fio com um dos alicates. Não perdeu tempo
algo orgânico, porque aquele tipo de embalagens varrendo o espaço ao seu redor em busca da outra
sempre eram utilizadas para levar carga viva. Eram caixa, aquela que devia ter empurrado a que tinha
os menores artefatos produzidos capacitados para presa à cintura. Se ela aparecesse do nada e se cho-
manter uma atmosfera interna no espaço. Se tives- casse contra o fio, ou contra ele, não poderia fazer
sem motores e painel de navegação, poderiam ser nada.
minúsculas naves espaciais.
Prendeu outro TNT a ponta do cabo recém cor-
Percebeu o volume à sua esquerda, rodando le- tado e com um suspiro de alívio seguiu a trajetória
vemente em torno de um eixo vertical quando era que ela fazia. Viu quando a parede lateral apareceu
quase tarde demais. Uma das arestas engatou no de repente ao seu lado e localizou em seguida uma
micro-computador, arrancou-o e seguiu girando. das alças fixas de deslocamento interno, pintada
Lars deslizou para à direta, e refugiou-se contra a de amarelo fosforescente. Teria que ter paciência e
parede, enquanto o monstro quadrado prosseguia um pouco de sorte. Viu como o cabo em suas mãos
seu caminho levemente desviado, por causa do afrouxava e soube que a caixa batera na parede. Seu
choque com o micro, que agora também esvoaça- corpo, entretanto, seguiu avançando. “Um pouco
va, perdido pela cabine. O capitão olhou ao redor, mais”, ele pensou, imaginando se não teria cortado
procurando as luzes verdes dos demais. Havia umas o cabo um pouco curto. Conseguiu pegar a alça e
quantas caixas escurecidas. Não saberia dizer se os encostar o TNT nela. E também viu com o cabo ia
computadores tinham sido arrancados ou simples- se esticando, lentamente, até desenhar uma linha
mente estavam fora de funcionamento. fina e reta soba a luz do capacete.
– Localizei uma das caixas, – anunciou no inter- – Merda!
fone. Soltou com dificuldade um dos ganchos do
cinturão, um Tensor 9 Teflite, mais conhecido como O gancho escapou de suas mãos, levado pelo vo-
TNT, e prendeu-o no cabo de fibra de carbono. De- lume morto. Teve de partir rumo ao monstro qua-
pois partiu atrás da caixa com determinação. drado, caçando o gancho, enquanto ele descrevia
uma órbita mansa em torno da caixa. Súbito, viu
A encontrou um pouco adiante. Rodava como as arestas da A-superL que vinha rodando ensan-
num bailado pesada e inexorável, suficientemen- decida dentro do compartimento. Esticou os braços
te lenta, para que pudesse agarrar uma das alças, para cima e conseguiu agarrar um cabo elétrico e
mas não o bastante para que conseguisse prender puxar-se a tempo de sair do caminho do cubo. Sor-

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Carga Solta Simone Saueressig

riu. Estava no chão do compartimento de carga, o Lars sentiu um golpe no tornozelo e olhou para
que lhe dava uma certa segurança, porque os cabos baixo apreensivo. O cubo que ainda estava solto
de força que o cortavam numa grade regular, po- passou rolando e perdeu-se na escuridão. Em se-
diam servir de guia para impulsionar-se na direção guida sentiu a vibração da fuselagem.
que precisasse. Encontrou um deles partido, as faís- – Imagino o que está provocando isso. Vou ver o
cas elétricas explodindo silenciosas na ausência de que posso fazer.
atmosfera e compreendeu que a caixa desgovernada
devia ter feito mais estragos na rede do que estava Esperou um momento, imaginando que a carga
imaginando. passaria de novo sob seus pés, com suas esquinas
afiadas girando, mas não viu nada. Varreu o com-
Saiu novamente no encalço da embalagem onde partimento com o facho lentamente, caçando a for-
havia prendido o TNT e pouco depois sentiu a vi- ma cubica e desgovernada, sentindo como o suor
bração de um golpe, seguido de outro, bastante pró- escorria de suas têmporas e vinha salgar-lhe a boca.
ximo. Olhou para cima e viu a caixa com o gancho O coração batia com tanta força que doía dentro do
passar perto de si, justo sobre a cabeça. Mais distan- peito. Olhou para o lado, subitamente alerta e quase
te, lá no que era o teto do compartimento, uma alça não teve tempo de reagir quando viu a carga rodan-
de deslocamento. do em sua direção. Empurrou-se com força rumo
Era o momento, pensou, a respiração tensa den- ao chão, gemendo com o esforço, sabendo que na
tro do traje. Quando o TNT passou sobre ele, sal- ausência de gravidade ganhar velocidade era algo
tou em sua direção, agarrou-o e continuou subindo quase ilusório para um homem normal.
num ângulo forçado em relação à caixa, até o teto. Durante o movimento que seu corpo descreveu,
Bateu com força, sentiu uma dor no joelho esquer- procurou não perder a A-superL de vista. Viu como
do e as costelas protestando de novo, mas desta vez ela avançava rumo ao primeiro arco formado pelas
o gancho se prendeu firmemente à alça, antes do fio cargas e quando sentiu a fuselagem contra a sola do
tensionar demais. Permitiu-se sorrir, e desceu rumo traje espacial, impulsionou-se lentamente naquela
à caixa, usando o fio de carbono como guia. Não direção. A caixa bateu na fuselagem e em seguida
foi preciso deslocar-se muito para encontrá-la. Fez no arco e reiniciou o trajeto rumo ao outro lado do
uma nova conexão e começou a puxar a carga rumo cargueiro. Lars viu como as quinas haviam diminu-
ao teto, bem devagar, para aproveitar o movimento ído bastante a velocidade e sentiu que poderia tocá-
pendular que ela descrevia, presa por um lado, ape- -la sem correr o risco de perder a mão na tentativa.
nas, como estava agora. Quando conseguiu encos- Mas o impulso que dera fora insuficiente. Ficou flu-
tá-la na fuselagem, apoiou a testa no monstrengo e tuando entre no meio do caminho, imóvel.
sorriu. Tirou de outro bolso do cinturão de trabalho
uma rede de carbono que prendeu em diferentes al- Por pouco não mergulhou no escuro poço de
ças e pontos de apoio estrategicamente colocados e pânico que se abria em sua mente. Estava comple-
só então se atreveu a respirar aliviado. tamente a mercê da caixa desgovernada e não havia
absolutamente nada que pudesse fazer. Tentou na-
– Auron? Está me ouvindo? Câmbio. dar rumo ao arco de cargas, mas a única coisa que
– Alto e claro. conseguiu fazer foi girar o corpo sem nenhum pon-
– Tenho uma das caixas presas. to de referência durante algum tempo. Finalmente,
viu o retângulo claro e distante da porta da cabine
Estática. Depois algo como “éns, chefe”. de pressurização. Isso lhe deu uma idéia.
– Estou captando você muito mal. – Auron, desvie o curso da nave dez graus à es-
– Tenho problemas com o transmissor interno. tibordo.
Às vezes sofre quedas de energia que o computador Estática. O homem teria ouvido?
compensa. Estou suspeitando de problemas na rede
de cabos, aí atrás. Então o retângulo branco se deslocou para a di-

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Carga Solta Simone Saueressig

reita lentamente mas não tão lentamente como ele Pouco a pouco, sentindo que o movimento não
gostaria. Antes que se sentisse preparado, a fusela- se alterava, tomou coragem de mover-se. Por todos
gem chocou-se contra ele e o arremessou para o lado os lados, para cima e para baixo, o espaço sideral
oposto do compartimento. Tentou agarrar uma das o fitava com seus milhões de olhos estelares. Sabia
alças de deslocamento mas foi impossível. Virou-se, que a roupa espacial que levava era de uso interno
trêmulo, e viu o corpanzil quadrado na caixa passar da nave e que o suporte de vida não garantiria sua
pelo feixe de luz em sua direção. Fechou os olhos e sobrevivência por muito tempo ali fora. A tempe-
esperou o baque. ratura caía vertiginosamente e uma fina parede de
Sentiu um golpe no ombro direito, forte o sufi- umidade condensou-se nas laterais do vidro do ca-
ciente para arremessá-lo de volta ao fundo do com- pacete. Em pouco tempo, era gelo.
partimento, mas antes que isso acontecesse, conse- E a caixa, agora, não se movia para dentro da
guiu agarrar uma das alças da caixa. Apressou-se nave.
em colar-se contra a superfície. Se ela se chocasse Começou a puxar-se para a “Eulália”, como uma
contra algo daquele lado seria o fim, mas era mui- aranha no fio. Cada gesto lhe custava um esforço
to mais arriscado ficar de apêndice da coisa. Sentiu impressionante, e no último momento, quando suas
o baque dela contra algo e o movimento recome- mãos se fecharam em torno à alça da A-superL, não
çou para outro lado, completamente aleatório, mas sentiu se a segurava ou não.
mais lento. Tirou um TNT do cinturão e repetiu a
operação que fizera com a outra caixa. Em seguida, – Auron, à minha ordem, mudança de curso, 90
tinha um cabo com outro TNT, pronto para fixar o graus à estibordo. Motores à 80% da potência.
monstrengo cúbico contra uma parede. Mal com- Teria ouvido? Seu rádio estava completamente
preendeu o que aconteceu em seguida. mudo e não sabia se seu transmissor também havia
A caixa chocou-se contra uma parte da fusela- sido danificado.
gem que, pelo que pode deduzir do pouco que viu, – Mudança de curso: efetuar.
já havia sido alvo das carga solta mais vezes. Perce-
beu que estava entre a parede da caixa e a parede da A nave continuou sem alterar a rota, apontando
nave, um instante tarde demais. Quando compre- para algum ponto que dentro de algumas semanas
endeu o que estava acontecendo, sentiu a pressão se transformaria em Marte.
entre a nave e a caixa, seu corpo entre ambas como – Oh, meu Deus, – gemeu o homem, vendo seus
o recheio de um sanduíche. Suas mãos tatearam ao dedos escorregar da alça. O cabo estava à poucos
redor, enquanto o capacete redondo era a única coi- centímetros mas não teria coragem de soltá-la para
sa que o separava da morte. Sentiu a alça da caixa agarrá-lo, pensou. Todo seu corpo tremia de frio e
em seu estômago, enterrando-se lenta e inexoravel- as mãos doíam com a baixa temperatura.
mente, mais e mais, e então suas mãos encontraram Então a fuselagem da nave sofreu uma súbita
algo que apitou em silêncio. A parede cedeu de um mudança de curso e antes que ele conseguisse rea-
lado, depois do outro, e quando se deu conta, estava gir, a caixa deu um tranco e virou-se incômoda con-
fora da nave, preso à caixa por um simples cabo de tra a fuselagem interna e ele foi puxado para dentro.
carbono. Tinha aberto a porta do compartimento
de carga, que acabara de cair da nave e ficar para A “Eulália” o envolveu como um abraço.
trás. Sem querer, devia ter acionado a abertura de Sabia que não tinha muito tempo, agora. A mu-
emergência. A A-superL estava encaixada no um- dança de curso provocaria outros movimentos da
bral por três esquinas e se estivesse alinhada teria caixa solta e poderia levá-la a repetir o desastroso
passado pela abertura com bastante folga. Lars es- bailado de danos dentro do compartimento. Fixou
tava agarrado no TNT da ponta solta do cabo com o TNT numa alça de deslocamento, depois apres-
as duas mãos, ganindo como um cachorro abando- sou-se em colocar uma rede em torno dela, pren-
nado. dendo-a contra os cabos do chão. As mãos estavam

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Carga Solta Simone Saueressig

duras e quase não coordenava os movimentos. O – Bom, entre outras coisas, porque eu tive de dar
gelo dentro do capacete lhe deixava só uma pe- meia volta e retornar para a órbita da Terra. Nunca
quena abertura que ia se fechado rapidamente, por chegaremos a Marte depois de ficar ziguezaguean-
causa de sua respiração. Voltou-se para aporta de do pelo sistema solar. Não temos combustível sufi-
pressurização que levava à cabina interna, que lhe ciente.
acenava com sua claridade quente e segura. Apoiou Ouviram um apito no sistema externo de comu-
os pés na A-superL recém presa, fez o sinal da cruz nicação. Auron voltou lentamente para junto do
e se empurrou naquela direção. Foi a última coisa painel de controle e respondeu ao chamado de um
que viu, antes do gelo tomar conta do visor interno modo lacônico. Esperou o imediato terminar de fa-
do capacete. lar, tentando exercitar os dedos sem muito sucesso.
Vestiu cuecas secas e uma calça quente, mas não
– Vamos, beba mais um gole. conseguiu calçar os sapatos.

– De onde você tirou esse conhaque? – resmun- – E o que mais, Auron?


gou Lars conseguindo finalmente distinguir o gosto O imediato voltou-se.
do líquido que lhe queimava a garganta. – Você disse “entre outras coisas”. Quero saber
– Eu tinha guardado debaixo do colchão. que outras coisas são essas.
– Chega, não suporto esse negócio! – O tal Roberto Cunha era procurado nos dois
O imediato afastou a garrafa dos lábios do chefe planetas sob uns vinte nomes diferentes... mas acho
e dedicou-se a abrir-lhe a roupa espacial. Teve de que a gente só vai poder ser acusado de contraban-
quebrar vários fechos. O gelo começava a derreter do. Além do mais, como estávamos voltando, creio
e Lars tiritava de frio. Auron alcançou-lhe uma to- que haverá atenuantes.
alha e roupa seca, mas teve de fazer quase tudo por Lars suspirou irritado.
ele. As mãos do homem estavam roxas e endureci- – Como você pode saber disso?
das de frio.
– Bom, porque eu tive de pedir auxílio pelo rá-
– Graças a Deus que eu estava de olho em você. dio e descobri que estávamos sendo seguidos por
Desde o momento em que fiz a manobra, corri para uma patrulha policial. Estamos presos, mas creio
a porta da cabine de pressurização. Quando ouvi o que contando a história certa, podemos nos livrar
golpe na mesma, fechei a porta externa da escotilha de uns quantos anos no xadrez.
e abri a de dentro. Perdemos alguns litros de oxigê-
nio. O capitão balançou a cabeça incrédulo.
– Você é louco. E o painel de controle? Quem – Você está brincando!
está cuidando dos sensores laterais? – Íamos ser presos na órbita marciana. Estão se
Auron deu de ombros. aproximando, porque pedi ajuda.
– Ninguém. Lars baixou a cabeça desanimado.
Os dois se entreolharam. – A menos, é claro, que não nos peguem com a
carga.
– Chefe, você era mais importante.
– Acabo de jogar o meu pescoço para prender
– Acho que vou chorar, – resmungou o capitão. a maldita coisa! – berrou o capitão. Auron deu de
– É, acho que vai mesmo. ombros.
Outro olhar. Auron levantou-se e jogou a toalha – Sem corpo de delito não há crime. Se eles não
para ele terminar de secar a cabeça. nos pegarem com o carregamento, não poderão nos
– E por quê? acusar de nada. Do Roberto Cunha só tínhamos o

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Carga Solta Simone Saueressig

registro que eu já me encarreguei de apagar. Nem com muito cuidado. Antes de entrar ali, tivera de
seu corpo está a bordo. desativar as linhas gravitacionais que prendiam as
Os dois homens se olharam outra vez. cargas. Com exceção das duas presas com rede, as
outras estavam ali, levemente móveis, chocando-se
– E como vamos explicar o acidente de Papi? com suavidade.
Além do mais, se a polícia fizer uma vistoria na
nave verá as avarias internas. Vai pedir gravações Moveu a primeira A-superL com a ajuda de um
de imagem. cabo de carbono, um TNT e um ponto de apoio. O
frio era intenso e deu graças a Deus por estar usan-
– Não temos. São parte do equipamento que a do a roupa de Papi, que estava seca por dentro. A
oficina não consertou. Ah, chefe, a gente consegue caixa saiu pela porta com suavidade, sem tocar nas
inventar uma boa história. A porta do comparti- paredes. Tampouco teve problemas com a segunda
mento está aberta mesmo... Podemos dizer que le- e a terceira. Toda a fila de carga junto à porta foi
vávamos qualquer babaquice. Qualquer uma. retirada sem maiores contratempos que um joelho
Lars sorriu. Sentiu que os lábios ainda estavam batido e uma das embalagens que virou na diagonal
entumecidos. ao sair pela porta e quase não passou.
– Sempre achei que você dava mais para inventar As coisas complicaram quando ele começou a
mentiras do que para guiar a nave. remover a terceira caixa da segunda fileira de carga.
Auron apertou os lábios, balançou a cabeça. Estava puxando-a com a ajuda do cabo, para
dar-lhe a pouca velocidade que lhe permitiria ma-
– Eu achei que você ser razoável. nobrá-la, quando algo cruzou rapidamente pelo seu
Levantou-se, começou a vestir o traje de Papi. campo de visão esquerdo. Virou o facho para lá e
Lars fez menção de dizer qualquer coisa, mas o ime- já não viu nada. Consultou o relógio: estava traba-
diato o cortou. lhando há duas horas e meia. Não era nada, só can-
– Não se preocupe. Este traje está inteiro, com saço.
exceção das luvas. O seu está estragado, mas as lu- Procurou prosseguir sem se preocupar muito,
vas estão inteiras. Vou me livrar da carga e quando mas o breve momento de distração fizera com que a
a polícia nos resgatar, vai parecer que tudo foi só carga avançasse demais e batesse na caixa amarrada
um pesadelo. junto à porta de entrada. O golpe foi bastante suave,
Vestiu as luvas. mas soltou um par de rebites que seguravam a rede
de contenção. Quando voltou ela bateu contra uma
– Computador... caixa... lateral da nave.
– É, eu imagino que, além do mais, nem todas “Ai, a trajetória da nave”, pensou Auron apertan-
as caixas devem estar funcionando. Algumas devem do os lábios e partindo em direção ao cubo. Tentou
ter sido avariadas pela carga solta. Tudo bem, está segurá-lo e só conseguiu quando a embalagem já
vendo? Estes já devem ter congelado definitivamen- ameaçava bater numa das caixas soltas. Com es-
te. forço, conseguiu empurrá-la para fora da nave. A
Por um momento ele titubeou, andou de um operação, ao todo, levou aproximadamente dez mi-
lado para o outro da cabine apertando comandos, e nutos.
só depois vestiu o capacete de Lars e entrou para o Quando ele se voltou, sentiu um aperto dolorido
compartimento de pressurização. Lars tentou ainda na boca do estômago. A nave havia se desviado uns
dizer algo, mas não conseguiu. Seus olhos se fecha- poucos graus da rota original, mas era o suficiente.
ram e perdeu a consciência. Os arcos de carga solta pairavam como assombra-
ções entre ele e a entrada da porta de pressurização
interna. Olhou sobre o ombro esquerdo. A parede
Auron penetrou no compartimento de carga aproximava-se rapidamente dele. Mas antes de en-

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Carga Solta Simone Saueressig

dor de ligação entre ambas graças à perícia do pilo-


costar no traje que já começava a formar a leve ca- to. Não conseguiram atravessar o verdadeiro campo
mada de gelo interna no visor, bateu nas duas caixas minado que era o compartimento de cargas soltas,
mais próximas, empurrando-as contra as demais, até que chegaram suficientemente próximos de uma
que empurraram as demais, que empurraram as de- estação espacial para dar-se ao luxo de gastar com-
mais... O imediato tentou avançar entre o caos solto bustível num movimento de rotação capaz de criar
para a cabine de sobrevivência. Tinha apenas uma uma força centrífuga que funcionou como campo
chance. gravitacional. O corpo de Auron estava destroçado
No meio do caminho o micro computador que e congelado dentro do traje. De acordo com a au-
uma das cargas soltas originais arrancara das mãos tópsia não havia um osso inteiro nele.
de Lars apareceu do nada em alta velocidade, e ba- Lars estava morto. Alguns dos golpes da carga
teu contra o capacete do imediato, golpeando-o de haviam destroçado o sistema de circulação do ar na
volta ao centro do compartimento. Auron gritou. cabine e ele terminara afogado no gás carbônico de
Mas não havia ninguém para ouvi-lo. sua própria respiração adormecida. Papi teria sido
o único sobrevivente se o sistema de vida da cápsula
de hibernação estivesse funcionando como devia.
A polícia conseguiu atracar junto da “Eulália”
Mas como Lars havia observado, a oficina que
nove horas depois. Tinha perseguido a nave em seu
fizera a revisão da nave, a oficina do Teco, cheirava
curso errático e só conseguira estabelecer o corre-
à picaretagem.

87
Cruzeiro do Sol
um conto de Edgar Indalecio Smaniotto

“Ideias realmente revolucionárias passam por três fases. Catástrofe de Toba...”


as pessoas vão dizer que a sua ideia é maluca, que O relato, continuamente editado, foi interrompi-
nunca vai funcionar; do pelo alarme, ululando pelos conveses.
os críticos dizem que até poderia funcionar; Falar em catástrofe...
eles vão dizer que sempre acreditaram no sucesso”.
Enquanto corria para assumir seu posto, era po-
Arthur C. Clarke sicionado pelo microfone auricular.

Introdução Parte 1
Voo inaugural. 2 de Julho de 2095.
Localização Inicial: Base Orbital Girassol, Se- Ontem chegaram à franquia mais distante que se
gunda-Feira, 1º de janeiro de 2095. tinha notícia.
Localização Atual: Zona do Cinturão, Sexta-Fei- Ficava a 1,5 UA, a cerca de dez diâmetros plane-
ra, 27 de julho de 2095. tários de Marte1, se mantendo como sua mais dis-
Aproximadamente 262.500.000 de quilômetros tante lua, posta lá pelo Homem. A primeira inter-
da Terra, a 2% da velocidade da luz. venção de vulto no Planeta Vermelho.

Do deque central, a meia nau, no longo eixo que A P4 não era só uma franquia. Também servia
unia a ponta da flecha ao complexo de Engenharia como quartel avançado, para lidar com as ocorrên-
e Propulsão padrão, centenas se deleitavam com a cias, as desordens, crimes de toda sorte, de forma
visão da luz zodiacal. mais direta, com direito a tribunal próprio (antes
de Marte ser devidamente terraformado e emanci-
Oitenta metros distante dali, no camarote isola- pado).
do na proa do veículo, um homem ultimava a par-
te burocrática de seu serviço. Voltou-se para a tela, O lugar representava a última parada, antes do
onde tentava rascunhar seu livro de memórias. “voo oceânico” na órbita de Júpiter, a razão de ser –
oficial – do cruzeiro.
– Indexar ao meu DP – falou para o ar o coman-
dante, na pausa entre goles de caldo de cana e mor-
didas seguras num hambúrguer de carne de búfalo ***
e queijo de búfala. Sem maionese.
O diário pessoal estava pronto para absorver Foram 7 dias nos quais a nave ficou reduzida a
aquilo que ele começou a dizer: 99% de seus passageiros e rodízio na tripulação,
“...essa baboseira de Adão cromossomial e a Eva com passes de 48 horas.
mitocondrial só é boa se acreditamos na teoria da Um verdadeiro paraíso, para quem preferisse se

1 Aproximadamente 70.000 km, ou seja, três vezes mais distante que Deimos.

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Cruzeiro do Sol Edgar Indalecio Smaniotto

isolar e aproveitar a visão do universo. Assim como sua bandeira, sendo necessário algo drástico para
Ezra, que ficara para trás. retomar o poder do mundo.
Oportunidade de ouro, para quem planejasse – Touro Indômito. Esses piratas não tem o menor
uma abordagem, como alguns piratas tocaiados ali senso comum – o Conselheiro acompanhava todo
perto. o progresso da operação Terra Nostra, na sala de
situação, no QG avançado dos Confederados .
Em algum lugar, em algum momento, se a mis-
Parte 2 são desse certo, a canhoneira receberia o nome de
Na verdade eles ansiavam por depenar aqueles Robert E. Lee, um líder entre os líderes sulistas, por
otários. Teriam feito isso se algo não os impedisse. E motivos que a História merecia conhecer. Que fi-
ainda havia muitas testemunhas para o que viessem casse “touro indômito”. Por enquanto.
a fazer. Como se importasse alguma coisa! A mídia
Mas no mapa situacional se referiam a eles como
só ajudava a espalhar a glória deles.
Bad Wolf, rotulando o veículo de trezentos mil to-
Verdadeiros piratas não aceitavam tamanha neladas, que os piratas se serviam para cometer
afronta. aquela moderna Carta de Corso.
Verdadeiros piratas não tinham um comandante Outro ponto aparecia no mapa na base orbital:
māori. Chapeuzinho Vermelho. A presa. Na verdade o lobo
E no momento este só tinha uma coisa a dizer ao não estava seguindo a nave brasileira pelos bosques
timoneiro: do Cinturão Principal. Sabendo do destino do ve-
leiro solar que deviam atacar – no momento cer-
– Temos tempo. Vamos segui-los. to, assim como na fábula – bastava tomar à frente e
preparar a emboscada, onde houvesse menos teste-
munhas para contar história.
Parte 3
Eles tinham várias vantagens. A principal delas
No espaço uma linha reta nem sempre é a menor é que ninguém sabia da canhoneira nas proximida-
distância entre dois pontos. des e sua ligação com os Confederados. Na realida-
Naquela partida de Girassol, meses antes, a nave de nem existiam no papel. Para todos os efeitos era
não zarpara como um cruzeiro vulgar, com passa- mais um projeto maluco enferrujando na garagem
geiros acenando das claraboias. Na realidade não da NASA.
havia um único deles nos corredores, zanzando por Só uma coisa o Conselheiro não considerou: se-
aí. Estavam todos confinados nos assentos hidropé- gredos nunca continuavam assim por muito tempo.
dicos, em estado de animação suspensa, protegidos
no núcleo da seção intermediária do veículo.
Ficaram assim por 90 dias, enquanto durou to- Parte 5
dos os testes e uma longa série de atividades parale- O Capitão-de-Espaço-e-Guerra Ezra Moutinho
las, dos “protocolos da companhia”. Salvaterra não dava pinta de ser índio, mas passara
toda sua infância no município de Breves, em Ma-
rajó.
Parte 4
Antes de entrar na 4ª Força – a Espaçonáutica,
Os EUA voltaram a ser um país divido, unidos só que aceitava seu brilhante na orelha e o cabelo cari-
nominalmente. O governo radical da antiga sede da jó – servira na marinha brasileira. Nem parecia ter
CIA acreditava – só não diziam isso publicamente – 57 anos. Tinha finalmente chegado onde queria. Só
que atos de pirataria justificavam os meios. não esperava, no processo, ter de paparicar tantos
Os Estados Rebeldes Unidos faziam do drama civis e assumir aquele cruzeiro, para justificar aque-

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Cruzeiro do Sol Edgar Indalecio Smaniotto

la missão até o grande olho de Júpiter. em primeiro lugar!


Claro que ele sabia a verdade. Os passageiros – Quanta perspicácia, madame! O capitão vai
ajudavam a encobrir o real motivo da missão. Eles, querer ouvir sua dedução, se aceitar um lugar à
com toda a grana e disponibilidade que tinham mesa dele, no jantar.
para garantir sua cabine rotativa e assento na Cru- – Explosões solares não são luzes zodiacais.
zeiro do Sol, podiam se dar ao luxo de tirar um ano
sabático. Moutinho, por outro lado, tinha um pra- – Para sua comodidade, os bares a bordo foram
zo ainda maior a cumprir. Algo a ser feito dali a 49 liberados mais cedo.
dias, quando colocasse o último dos passageiros e – Sim, senhora. Temos show de strippers, no ball-
convidados para dormir. room...

Parte 6 Parte 7
Dentre o contingente de 699 passageiros regula- 27 de julho de 2095.
res, 497 estavam posicionados ao longo das cinco
cúpulas de observação, no costado do veleiro so- Aquilo confirmava o dossiê que jazia trancado
lar. Outros 51 técnicos, cientistas e jornalistas, com em seu cofre. E também os “outros amigos”, por trás
passagens subvencionadas por seus respectivos pa- daquelas falsas explosões solares, hora antes.
íses ou convidados do consórcio brasileiro Espaço- Os chiados da eclusa se fechando, a cadência do
Nave, ocupavam seis salas com holosoles públicos, andar ecoando no passadiço gradeado, tinham an-
dividindo a pesquisa com o anfitrião. tecedido a chegada do imediato. No caso a esguia
Nuvens de dados estavam sendo coligidos para Alice, oriunda do ITA3, após uma passagem mete-
os noticiários, observatórios e laboratórios da Terra. órica pela marinha mercante. A engenheira e o mi-
litar tinham se entrosado bastante bem (talvez bem
As telas polarizadas, nas curvaturas dos meza- até demais), mesmo antes das centenas de horas no
ninos e áreas de lazer, permitiam uma visão privi- simulador de voo.
legiada do Espaço. O Sol se encontrava no outro
bordo, distante há milhões de quilômetros. Nada Estavam no reservado acesso apelidado de Na-
prejudicava a visão daquilo que se descortinava a valha de Occam. Era um prolongamento natural da
frente. Ponte de Comando, limitando-se a um corredor
oblongo, todo boleado, com revestimento em várias
O bruxuleio daquela luz fantasmagórica, gerada camadas de metal transparente. Andar no espaço,
na combinação da poeira cósmica com o material ali, naquele aquário, não era mera ilusão.
ejetado pelos cometas, evocava uma distante simi-
laridade com a aurora boreal. – Por isso o senhor já esperava – sem preâmbu-
los, a alta morena carioca comentou.
Porém todos os interessados no evento não espe-
ravam ser surpreendidos por algo mais estonteante: Alice Oliveira Massaforte, mesmo sem ser par-
um grande arco de explosões pipocaram surdamen- ticipada oficialmente, também não ignorava o mo-
te no negrume de fundo. Uma após outra, como um tivo de sua presença ali. Treinar à exaustão simu-
rastilho atômico detonando pedreiras2 no caminho. lações de combate e ler os calhamaços virtuais de
relatos ufológicos da FAB lhe deram essa certeza.
Por mais que o serviço de bordo fosse acionado, Sua excitação aparecia no leve palpitar das narinas
a atitude dos solícitos comissários não disfarçava e o mordiscar do lábio inferior.
certo verniz militar, que não admitia recusa e não
oferecia explicações, exceto às pasteurizadas: – Eles estão lá fora. Quando penso que já tínha-
mos feito contato com eles em 1986, com nada me-
– Não, senhor. É só um exercício. Sua segurança nos que caças F-5E Tiger II e Dassault Mirage III.
2 No jargão desta obra, refere-se aos asteroides e corpos dessa natureza, com menos de 2 km de largura.
3 Instituto Tecnológico da Aeronáutica.

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Agora temos registro visual, que imaginei não ser Indômito”, uma nave livre, a quem eles deviam pe-
tão fácil de conseguir... – a última parte pareceu dágio.
surpreendê-lo. Na próxima vez que os viessem, em Júpiter, seria
Deslizando o dedo indicador em um intrinca- para recolher o butim. Isso se não quisessem sofrer
do movimento, o comandante desativou a senha do as represálias. O envio de um míssil, um meteoro
servidor e desbloqueou a blindagem tátil. A parede explodido a uma distância segura, ajustou até que
se iluminou e diagramas, dançando na tela, ganha- ponto eles falavam sério.
ram corpo, animados pela fria e exata computação. Isso aconteceu dez minutos atrás.
Do esquema, foi possível extrair a imagem do ar-
tefato alienígena, origem do comentário mais con- – Livre é uma pinoia. Não é o que consta aqui
tundente. – perante os outros, um dos técnicos bateu o dedo
nas especificações técnicas que vieram junto com a
imagem do veículo. Não foi nada difícil associar a
Parte 8 Touro com outro similar, que há algum tempo vi-
nha sendo objeto de cobiça dos Confederados.
A nave brasileira tinha uma sombra. Na verdade
várias.
Porém nem todas de origem alienígena. ***
O responsável pela façanha humana estava a me-
nos de 500.000 km. No espaço, distâncias assim não Havia também os aliens.
chegavam a constituir um grande empecilho. Para isso não havia muita explicação.
O comandante da canhoneira à espreita era um Na reunião reservada com os oficiais, assim
māori, que andava em sua nave em trajes cerimo- como fizera antes com a imediato, o comandante
niais, ou seja, quase nada de roupa. O corpo todo mostrou que não lidavam apenas com caçadores de
coberto de tatuagens – moko – especialmente a ca- recompensa à mando de Langley.
beça. O que aconteceria quando os dois descenden-
tes de índios se encontrassem, tão distantes de suas
respectivas tribos? Parte 10
Como dois representantes de povos autóctones A canhoneira não parecia muita coisa, em termo
foram virar oponentes no espaço tornara-se obje- de designer espacial. Enquanto a Estrela do Sol tinha
to de muitas conjecturas no futuro. Poderia render uma aparência clássica, direta, elegante, com os pai-
uma tese de antropologia. Algo como “Etnias au- néis solares escamoteados induzindo a semelhança
tóctones no espaço: um estudo a luz do conceito com uma manta, o veículo rebelde exibia 70% dele
de Fricção Interétnicas”. Um trabalho que possivel- na forma de propulsores.
mente poderia ser apresentado do GT de “Antro-
pologia, Etnicidade e Civilizações Alienígenas” da Enganava-se quem achasse ser um veículo tosco
Associação Brasileira de Antropologia – ABA. daquele jeito algo menos que letal.
O capitão estava ciente não ter sido difícil baixar
da nuvem de dados às modificações no cruzador
Parte 9 para torná-lo uma canhoneira com o dobro da ve-
Não foi difícil para o staff a bordo descobrir um locidade inicial. O resto já não era tão fácil assim de
pouco daquele objeto que se parecia com um mega se obter.
içá de bunda gigante. Se não fosse só pela nuvem O recado tinha sido dado. E só fizera aquilo para
de dados, trabalhando a partir do escâner de um tornar a caçada mais interessante.
dos possíveis antagonistas, veio também uma bre-
Ignorando o pedido de portabilidade, que vinha
ve mensagem deles, se apresentando como “Touro

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Cruzeiro do Sol Edgar Indalecio Smaniotto

do comunicador, o capitão Zeno Tipene, o Coroa- Enfim, o tão esperado “réveillon em Júpiter”,
do, orgulho da nação māori, preferiu ordenar um mesmo iniciando setembro, aconteceu. O cruzeiro
último empuxo, levando o complexo de propulsão não estaria completo sem um evento a altura.
nuclear além do umbral de segurança. O astrônomo-chefe, Izaías Brown Castorzinho
– Faça! – com a ordem, seca, não admitindo re- de Mello, o “Dr. Placebo” da série de TV “Brasil
cusa, ele conseguiu o efeito desejado, o corpo sendo Quântico”, usava sua empatia e costumeira aceita-
prensado contra a poltrona de encosto alto, como ção popular para servir de cicerone naquela ocasião
um trono. que pedia – e recebera – traje de gala.
O veículo avançou até passar transversalmente à – ...reservo minha voz de falsete para os peque-
presa, antes de seguir outra rota, para Júpiter. nos. Só que aqui, senhores, nenhum personagem
resiste; nenhuma licença poética precisa ser pedida.
Ela já é explícita. Nós temos a real noção de quan-
Parte 11 to somos insignificantes. Ainda assim desbravamos
Lá estava o alvo. Explícito. os oceanos. Transpusemos o abismo. Ignoramos as
feras que povoavam o desconhecido. Engolimos o
A vedete dos passageiros. O bilhete premiado. medo e fomos em frente.
O milhão per capita e a razão de ser dos embar- “Um brinde em louvor ao espetáculo...”
cados, que partiram de cinco de nossas metrópoles,
uma em cada região, em voos fretados. Os famosos Copos se ergueram no ar, luzes pipocaram dos
beija-céus. Até a estação de transferência geoesta- flashs disparados pelas retinas. Muitos usavam esse
cionária sobre a Amazônia brasileira, a Girassol. aplicativo enervante nos neurocelulares.

Não é todo dia que você visita deus a domicílio. O astrônomo resolveu abreviar, ao ser “cutuca-
O Zeus dos gregos. O Júpiter dos romanos. O man- do” pelo palavrão do comandante, falando dentro
dachuva do Olimpo. do seu ouvido.

O planeta a 25 milhões de quilômetros dali.


Por seis dias a Cruzeiro do Sol, sem avistar qual- Parte 13
quer nova interferência, seja humana, pirata – como – Você acha que essa papagaiada vai demorar
se a segunda possibilidade não fosse realmente des- quanto?
sa espécie – ou alienígena, propiciou o espetáculo
que os passageiros pagaram para ver. E receberam Vicente, chefe da segurança, recebia as informa-
em troco muito mais. O roteiro prévio só não pre- ções de três outros agentes, infiltrados no públi-
via aportagem em qualquer parte, de resto foi o pe- co. Deu de ombros para o experiente e impacien-
ríodo de maior atividade do veleiro, depois de P4. te “retratista”, que nas horas vagas, após seu turno
Por questão de segurança, as cinco naves auxiliares na dispensa, tinha a ocupação de percorrer a nave
acompanhavam todas as expedições. Nenhum pas- e registrar imagens para serem usadas em futuras
sageiro notou nada de diferente nisso ou o reforço campanhas midiáticas. Cansado de circular com
da atividade a bordo. sua eNikon acoplada à cabeça, os pés doendo, pro-
curou no amigo um lugar melhor para observar o 2º
Somente a Chuva, tripulada por Alice, deixou de réveillon a bordo.
retornar no penúltimo dia. Antes de o veleiro zarpar
de Ganimedes, onde ficara fundeado, ela tinha ido – Deixe o homem falar, Raul. Ele domina seu pú-
executar a parte extraoficial da missão. E também blico muito bem.
providenciar uma lembrancinha para os piratas. – Domina? Todo mundo está é encachaçado pra
aturar esse chato. Querem mais uma orgia, ou seja,
lá o que o comandante reserva pra eles depois disso.
Parte 12 Viciados em status social, isso sim!

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Cruzeiro do Sol Edgar Indalecio Smaniotto

– Talvez você é que tenha bebido todas. Parte 15


– Quem dera. Enquanto durar isso, estamos na Faziam algumas horas, desde sua partida. Seguia
“lei seca”, lembra? Já os passageiros, fariam qualquer em uma nave auxiliar, de nome curioso, e se aproxi-
coisa para aparecer no vídeo-blog da nave. Já vi até mava do destino extraoficial da missão.
uns peitinhos junto ao palco.
Alice podia ser agnóstica, mas não era de seu fei-
– Que curtam enquanto podem. Logo vai termi- tio fazer desfeita a quem gostava. Por isso, quando
nar. o comandante lhe deu uma figa, presa a um fitilho
– Na verdade já está terminando... do Senhor do Bonfim, ela levou com ela, até laçar
o paraflanco do astrolábio da Chuva. Já o conselho
Ambos notaram quando o oficial médico fez si- para rezar, se a coisa ficasse preta, ela não garantia
nal para o operador de som atacar com um ritmo poder seguir. Ainda não tinha se decidido entre o
dançante. No mesmo momento a climatização foi catolicismo, o espiritismo ou o ateísmo. Mas estava
aos poucos descompensada, causando suor e a dan- em um momento em que a balança, se é que se pode
ça sede. Poros abertos, gargantas ávidas de hidrata- falar de balança neste caso, pendia para a terceira
ção. hipótese de explicação da realidade.
Nos próximos minutos, entrou em ação o plano Foi para onde se voltou, o fetiche sambando
do comandante. As circunstâncias obrigaram que a diante do painel do escaler, antes de seus olhos ar-
hibernação dos passageiros fosse antecipada em al- regalarem. Tão preocupada no voo instrumental,
guns dias. Para a nave entrar em módulo de batalha, infalível, confiável, ela deixara de usar o instrumen-
essencial ao desempenho das próximas e novas ta- to menos tecnológico, naquela imensidão gelada do
refas, nada podia dar errado. E um engodo, quando cosmos.
bem justificado, para a sobrevivência do grupo, era
preferível a um naufrágio espacial. Os olhos.

***
Parte 14
O “Boa Noite Cinderela” coletivo foi bem sucedi-
A Lasca.
do. A bebida e o gás (misturado à nevoa), no ponto
alto do Baile à Fantasia nas Estrelas, produziram o Foi de lá que veio o sinal.
efeito necessário, agindo quase no mesmo instante. Rastros indicavam que o pulso eletromagnético
Em todos aqueles que, ou não estavam ali ou não que varreu o hemisfério sul da Terra, causando o
tinham sido vacinados com o antídoto e portavam apagão de 12 segundos, há 10 anos, tinha partido
respiradouros ocultos nas máscaras, a seu tempo dali.
também foram abatidos pelo sono inelutável. Ga- Um milhão de quilômetros para um lado, esta-
rantindo que a última coisa a ser ouvida fosse o sis- va Calisto, a lua mais distante do soberano deus do
tema de som irradiando a mensagem de emergên- panteão romano, com Júpiter ocupando a metade
cia: da tela.
Blindagem comprometida. Um milhão de quilômetros para o outro lado,
Sistema de segurança de hibernação ativado. um dos Centauros, por definição um dos pequenos
corpos que transitam entre Júpiter e Netuno, em
De cabine em cabine, deque após outro, sem
seu trânsito extravagante.
estardalhaço, com humanismo, os tripulantes con-
seguiram por para dormir o penúltimo passageiro. Entre eles, exatamente o local para onde o esca-
Cada um deles conduzido a seu respectivo hiberná- ler do veleiro solar se dirigia. No ponto certo, a úl-
culo numerado, no deque central. tima pegada que o rastro taquiônico dizia vir dali.

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Cruzeiro do Sol Edgar Indalecio Smaniotto

A Lasca. piloto automático e... rezou. Um retorno ao catoli-


cismo de seus pais.
Antes de completar “Pai Nosso que está...” já ti-
Parte 16 nha ido pro céu e a escuridão a envolveu.

– Mas que p...


Parte 17
Voltando a conferir os instrumentos, o delinea-
dor de massa; o escâner orbital; o multímetro; o ca- – Comandante, eles voltaram.
nhão de pósitrons, que decodificava todo o espectro – Os rebeldes?
visível e invisível, tudo filtrado e processado pelo O 2º navegador fez que não e colocou na tela um
computador de bordo, se encarregando de lançar os zoom: 10 e 12 pixels bastou como explicação.
dados em um infográfico em tempo real.
Atrás de Ganimedes, um enxame de veículos
Ou seja, todo aparato naquela parafernália des- bizarros, apesar de esforçados não pareciam ter
mentia o olho humano e a visão direta que tinha da aprendido direito a arte da discrição. Ou havia al-
Lasca. guma intenção nisso?
– Merda!! – Estão curiosos a nosso respeito. Talvez cogitem
Por um momento esqueceu do sentido do pla- como os humanos conseguem, a centena de milhões
no, que na verdade se desdobrava em dois: sequen- de quilômetros de casa, ainda encontrar tempo para
cialmente ao que fazia, dar meia-volta, recuar até matar uns aos outros – Ezra contemporizou.
Calisto, enviar algumas bombas de antimatéria no A Estrela do Sol ainda ultimava sua partida. Ain-
corredor por onde a nave-mãe passaria dentro de da nenhum sinal dos piratas.
28 horas. E por onde, em seu encalço, se tudo desse
certo, também viria a Touro, a nave dos piratas, re- Nem de Alice.
beldes ou o que fossem.
Não adiantava repetir o xingamento. Todavia fez Parte 18
assim mesmo.
Sua garganta raspava, como se tivesse sido obri-
Esfregando os olhos, a coisa continuava lá. Nada gada a falar ininterruptamente.
daquilo que os instrumentos diziam.
Esfregando os olhos até firmar no mostrador di-
Para piorar, quando se aproximou, lendo no mo- gital, reparou em duas coisas aterradoras: de algu-
nitor todos os dados que indicavam estar a 10.863 ma forma tinha “perdido” dezessete horas!
km da superfície daquele mundo morto, mais de-
solado impossível, a Chuva começou a chocalhar O pior de tudo foi reparar em uma criatura
como um bote colhido em um vagalhão. Tanto que olhando para ela e um tentáculo enlaçando seu pes-
preferia ter trazido a outra nave auxiliar, a Tempes- coço.
tade.
O silêncio do rádio, principalmente com Júpiter Parte 19
em seu caminho, Alice pela primeira vez, desde que
virara a “paratleta do século”, não sabia o que fazer. A caminho de Calisto, realmente não havia mais
sinal de nada. Nem da razão
Desarmada pela lógica, restou-lhe aquilo que seu
mentor, Ezra, chamava “lapidar o instinto básico”. – Orá – disse a loucura que acabara de cair do
teto no painel, como a dublagem mal feita de um
Em uma sequência de dois movimentos acionou seriado japonês.
o ejetor do par de asas escamoteáveis, nivelado ao
– Rraaaáa!! – ecoou sua insanidade, do compar-

94
Cruzeiro do Sol Edgar Indalecio Smaniotto

timento de carga. não por caridade.


– É só minha montaria. O Pedestre. Ele deve Mesmo assim a mulher não tencionava sucum-
estar com prisão de verme. Ou será ventre? Nunca bir ao desejo de qualquer clandestino. Especial-
esteve em uma geringonça como essa antes – a lou- mente um alienígena.
cura de novo.
– Aaaaarr... – a insanidade defecando, estranha-
mente inundando o escaler com uma onda de per-
Parte 20
fume. Ezra percebeu o erro quase quando foi tarde de-
mais.
– Ótimo. Agora ele vai poder comer sua fração
em paz. Antes de Ganimedes, tinha feito planos, calcula-
do os víveres e se preparou para enfrentar um ban-
Alice ia abrir a boca para gritar, mas até isso foi
do de corsários espaciais.
sufocado por outro longo pseudópode, pressionan-
do-a como uma mordaça. Até mesmo cogitou reativar o 1/3 da tripulação,
a chamada reserva técnica, tirando-os do sono hi-
– Não se preocupe em farar. Eu faço isso por nós
bernativo antes da hora.
dois.
Mas uma mensagem que não deveriam captar,
Pelos próximos dez minutos a criatura explicou
provavelmente irradiada pela “Touro Indômito”
que se chamava Kabbarral ou algo assim. E ela não
para um de seus veículos auxiliares, revelou uma in-
estava louca. Não mais do que os outros da espé-
formação importante. O nome de quem estava por
cie dela. Em Axzzzozzzzzza – ou o nome que ela
trás da nave adversária. Alguém que ele conhecia.
inventou – ele atuava como administrador de um
Uma pessoa para o qual o lucro e a ganância não
cemitério alienígena. Contava com vários ajudantes
combinavam. Que buscava algo além da óbvia e es-
que lhe providenciavam coisas.
tereotipada motivação monetária.
O tentáculo que ela via esticado era por onde o
Deixando de lado a observação dos novos obje-
alien aprendera o idioma dela naquelas últimas ho-
tos “voadores” não identificados barricados atrás de
ras e através do órgão sensorial conseguia extrair do
Ganimedes, elucubrando uma possível abordagem,
pensamento de Alice mais informação do que ela
resolveu que havia mais perigo no pirata que na-
estivesse disposta a dar.
queles velhos conhecidos da humanidade.
E tinha deixado sua imediata ir atrás dele.
***

Dizer que foram os dez minutos mais bizarros Parte 21


da vida dela seria redundância. Todavia entendeu – O que faz na minha nave?
que a criatura não queria o mal dela. E já descobrira
– O mesmo que você. Merda.
a falha de seu plano. Raramente o ideal acontece. Se
o plano previa que os inimigos viriam atrás da Sol, Alice engoliu em seco. A criatura se expressava
justamente onde tencionava plantar 20 BAM4 com melhor do que ela.
0,329g cada, no cinturão de partículas ao redor de – Escute. Sei que está descompensada. Você me
Calisto, só uma coisa superava a adivinhação. ouviu dizer que tenho vários ajudantes, espalhados
A informação. por aí. Meus recolhedores vivem em muitos lugares.
Arguns deles, justamente, habitam em corônias no
Justamente esse artigo o ET, que afrouxara um
cinturão dessa lua que você quer furminar.
tentáculo e removera o outro, tinha a oferecer. E
4 Acrônimo de Bombas de Antimatéria.

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Cruzeiro do Sol Edgar Indalecio Smaniotto

Ele tinha mesmo um problema de dicção ou es- Não havia só poeira no cinturão Halo.
tava apenas sacaneando? As luas Jururá-Açú e Tainacam se encontravam
A mulher hesitou. Podia tentar buscar alvos al- encravadas em sua orla. As últimas a serem desco-
ternativos, quando preferiu algo mais radical: abra- bertas e batizadas, informalmente, totalmente fora
çar de vez a loucura e pedir conselhos ao dono do do jargão Joviano. A imagem da primeira delas, es-
manicômio. correndo metano na baixa atmosfera, foi ampliada.
– Você sabe o que tenho de fazer. Meu menu de Em tempo real, sabe-se lá abastecida por qual dis-
alvos é escasso. Alguma sugestão? positivo funcional à velocidade da luz, um objeto
vinha se deslocando em direção contrária.
Kabbarral se colocou de frente para as coorde-
nadas e apagou todas, trazendo uma tela que estava A “Touro Indômito”.
ao fundo. Logo a menos provável. Pulando a região
limite do anel externo de partículas que circundava
o planeta gasoso, situado a menos de dois milhões
Parte 22
de quilômetros de Júpiter – onde Calisto orbitava – Desativar empuxo frontal. Não vamos ficar
– se aprofundou até o anel mais interior, de cor pre- caçando OENIs (Objetos Espaciais Não Identifi-
dominantemente azulada: Halo. cados). Não agora. Recalcular para as coordenadas
que já estão no seu visor, Roberto – olhando para o
– O que exatamente passa por sua cabecinha loi-
oficial de Ciências, o capitão notou que ele sorria.
ra?
O “vrrum” proveniente dos reatores parou de
A tentativa de ofensa foi facilmente rechaçada
vociferar, enquanto a Engenharia II, também cha-
pela indiferença.
mada de Fotônica, localizada naquela seção, assu-
– Como você acabou de presentear uma raça que miu a propulsão, realinhando os jatos de correção,
você não conhece com a vida, também merece um jogando a nave em uma tangente orbital. O empuxo
prêmio – tocou o canto dessa tela única, fazendo-a foi aproveitado na manobra de último minuto. Os
crescer até um ponto se destacar nela. Molhadinho enormes painéis solares – as “asas” – ejetados. O ve-
e sua irmã, minúsculas luas encravadas a 108.000 ículo parecia com um iate de duas imensas velas no
km do gigante do Sistema Solar, despontaram no sentido longitudinal da embarcação, da base da seta
mapa. – Eu estou em comunicação constante com até o galeão, onde começava a Iônica.
esses coretores e eles cospem ser o ponto ideal para
– Vamos atrás de Alice, Senhores.
sua armadilha.
– Presumo que queira dizer coletores. Nem ima-
gino o que esse “cospe” significa. Então propõe co- Parte 23
locar 20 BAM em diversos pontos desse anel?
Ela precisaria avisar ao comandante que havia
– Proponho corocar todas em um único ponto. uma oportunidade única daquilo acabar mais cedo.
Por um momento o silêncio pesou. Até Alice ba- Se o pequeno impertinente do 3º grau fosse só uma
lançar a cabeça. fração versado em tática de guerra quanto era faz-
-tudo de um mausoléu espacial, trazer a Estrela do
– Por que acha que arriscaria o meu plano em Sol para as cercanias das luas de Halo, como diziam
troca do seu? Você sabe a chance disso dar certo? . antigamente, seria tudo de bom!
– 100%. Não é essa probabiridade máxima que Aproveitando que a Touro tinha mergulhado
usam? nas nuvens de Júpiter, encoberto pelo gigantesco
Ela nem se preocupou em corrigir. planeta gasoso, ela estendeu a mão para acionar o
rádio. Porém acabou sendo surpreendida pela voz
– Seu palpite não é melhor do que o meu!
que saiu dele, seguida da imagem que se estabilizou
– Isso é parpite? na base da lente.

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Cruzeiro do Sol Edgar Indalecio Smaniotto

– Como vai minha guerrilheira? Gente demais para o gosto dela.


– Capitão!! – livrando-se do fino e compacto Ainda no exíguo centro de comando da Chuva,
tentáculo-sensor que enlaçava seu pescoço, o úl- da qual uma névoa se desprendia, sendo aspirada
timo pensamento emitido para o alien se manter pelos evaporadores, Alice acusou a presença do ho-
quieto e fora do campo de visão do monitor, Alice mem que empurrava uma cadeira flutuante, até a
mal acreditava no que via. – Quanta coincidência... base da zona de contenção.
– Você nunca acreditou nisso. Por que está tão O capitão, sabendo não ser usual trazer tantas
estranha, mulher? – Ezra coçou a barba grisalha, pessoas, resolveu explicar pelo comunicador:
enquanto uma das sobrancelhas hirsutas se erguia, – Como você foi tão reticente quando nos fa-
antes de acrescentar: – Desembucha. lamos pela última vez, trouxe alguns amigos para
– É complicado. Envolve coisas que passei recen- lhe dar as boas-vindas. Astronautas às vezes experi-
temente. Gostaria de estar aí para entrar em deta- mentam desorientação e fraqueza nas juntas, depois
lhes. Mas a Sol ainda se encontra distante e o tempo de missões próximo a gigantes gasosos massivos.
urge. – Sempre um cavalheiro. Mas prefiro que tenha-
– Distante, você disse? – dando uma ordem, de mos um encontro reservado.
forma que Alice não ouvisse, ajuntou: – Nada que O capitão, achando que ela não queria se expor,
Einstein não resolva. sem as pernas biônicas, que preferia não usar na
Holofotes se acenderam, canhões de luz pipoca- missão, tentou tranquilizá-la:
ram. A pequena Chuva foi colhida em cheio pelos – Aqui está a manta de seu time mixuruca – in-
feixes cruzados, ao mesmo tempo que magnetos se dicou o saco que tratou de rasgar, exibindo uma
fixavam a seu casco. Pelo visto seu radar tinha sido grande toalha de tecido rubro-negro. – É só jogar
desativado pela nave-mãe. sobre o colo e ninguém irá perceber. Como nin-
– Não esperei que a cavalaria viesse tão rápido... guém percebeu que ele voltou à 3ª divisão.
Onze horas antes, no ponto de encontro combina- – Agradeço a boa-vontade e a sacanagem, Se-
do!, completou em pensamento. nhor – instigada pela urgência e pelas tentativas de
– Noblesse oblige. Prepare-se para ser trazida a Kabbarral em relaçar seu pescoço, Alice capitulou:
bordo. – Acredito que não vai haver um jeito fácil de dizer
e mostrar isso. Não vou precisar da manta. Só de
alguns minutos e já estou saindo, Comandante.
Parte 24
“E você, prepare-se para uma surpresa e tanto...”, Parte 26
Alice ainda não conseguira vencer o impasse criado
entre a verdade absoluta ou uma dose homeopática Quem não esperava que a alta e curvilínea ime-
dela. diato fosse destituída de pernas biológicas, nem
chegou a reparar nisso.
O solavanco indicou a ancoragem da Chuva no
deque seco, as grades escoando o vapor condensado Também não foi a escotilha padrão da Chuva a
e as últimas gotas do banho químico. abrir. Da parte traseira do veículo, o alerta inter-
mitente do compartimento de carga causou estra-
nheza. E ficou pior quando as sapatas rebateram no
Parte 25 chão com clangor metálico e puderam enxergar o
que havia ali.
O Hangar 3C, diferentemente da decolagem, se
apresentava pressurizado, com oxigênio e repleto Dos 13 humanos presentes e Alice – além dos
de gente. robôs de todo tipo –, 13 recuaram pelo menos dois

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Cruzeiro do Sol Edgar Indalecio Smaniotto

passos, havendo gente que procurou a proteção de Parte 30


alguns contêineres.
Depois de todo tumulto, explicações foram da-
das ou provisoriamente “engolidas”.
Parte 27 Como gesto de paz, Kabbarral deixou a ruiva
humana ir embora, porém sem o facão. Depois se
Desceu da Chuva trepada nas costas largas, en-
distendeu até a montaria e aceitou ser guiado até
fiada em uma dobra de pele e pelo do dócil Pedes-
um local onde o capitão assegurou que seria bem
tre. Estranho que, por mais insólita a criatura fosse,
cuidado.
Alice sentia uma empatia enorme por ela.
Empurrando Alice na cadeira, no caminho da
Dócil até certo ponto, pois o animal rugiu feio
descontaminação, o comandante e sua imediato fo-
para os dois lados da grade da Catapulta, antes de
ram trocando informações.
ser acalmado por uma estranha cantoria. Acoco-
rado como uma galinha no choco, foi o suficiente Observando a mulher colocar suas pernas de
para a mulher se agarrar e deslizar até o chão. volta, Ezra experimentou uma disfunção na região
da virilha. Ocasiões estranhas pedem ereções inco-
– Aconselho que ninguém faça algo impensado
muns.
– ela ralhou, bem próxima de onde estava a cadeira
flutuante, subindo nela, para completar: – Eles são A caminho da Ponte, um plano já tinha sido
de paz. traçado, chamados feitos destinados aos principais
postos e a reunião começou exatamente quando
chegaram lá. A nave finalmente deixou de ser um
Parte 28 veleiro e assumiu sua conformação de combate.
Antes de Ezra se apresentar, aos pés do ser com
quase o dobro da sua altura, que passara a lamber o
aço de um guindaste-robô, percebeu que havia algo
Parte 31
como um cachecol rosa, circulando o pescoço da A notícia se espalhou. E se multiplicou. E como
Imediato. Dois olhos lilases esbugalhados brotaram cada era inevitável, logo as mais absurdas histórias
do outro espécime bizarro que repousava no colo se espalharam. Havia 8, depois 20, mais tarde 100
de Alice. criaturas, vespas assassinas, gorilas taradões, uma
multidão de alienígenas ladrões de corpos, dentro
da nave. Histórias que ninguém levava realmente a
Parte 29 sério, mas todos gostavam de dar sua contribuição.
Josepha Dutra Grimaldi e Anastazia Somozza, Enquanto isso, os únicos dois que realmente
se recuperaram rápido do susto. Mas a pernambu- interessavam se ambientavam a nova ala adaptada
cana e sua amiga uruguaia tiveram reações adver- para eles, contígua à Enfermaria. O contato oficial
sas. Enquanto a enfermeira entrou em contato com havia se realizado. O sonho de gerações de ufólogos
a unidade médica que aguardava do lado de fora e e exobiólogos.
pediu a presença do Dr. Sardinha com urgência, a
exozoóloga se antecipou ao capitão. Com um facão
de selva na mão, visivelmente sem passar pela qua- Parte 32
rentena, a cisplatina quase tocou a cobra no pesco- A mulher acordou na cama do comandante.
ço da colega carioca.
Não era a melhor política a bordo, a confrater-
– Eu não cometeria essa bosteira – disse a “cobra”, nização desse porte entre a oficialidade, principal-
soltando-se de Alice e enlaçando a nova hospedeira mente se ocupavam os dois postos-chave. Mas não
sensorial. – Interezante. É assim que vocês tratam conseguiram resistir. A curta separação agiu neles
seres exóticos em seu mundo? de forma inesperada. O século XX e XXI, ele e a

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Cruzeiro do Sol Edgar Indalecio Smaniotto

mulher, transando como se o amanhã não existisse. faixa de ressonância.


Talvez fosse verdade. Dentro de algumas horas a Passando pela Zona de Extensão de Tebe, a parte
Touro surgiria bem em seu caminho. E uma arena mais externa dos quatro anéis jovianos, a 280.000
chamada Jururá-Açú e Tainacam entre eles. km de Júpiter, eles foram penetrando, cinturão após
– Vão morder a isca? cinturão, até abordar Halo, o mais interno deles.

Tocando o dorso da mulher, seguiu o curso dos


dedos, coluna abaixo. A bunda foi uma delícia. O Parte 34
suspiro quando o indicador bolinou, provou tam-
O magiar-brasileiro Ignacius Montóia Kiss foi o
bém ser para Alice. Não se via junção das ancas
primeiro a avistar o alvo.
com as coxas, macias, fortes e tépidas.
– Temos um filhote de cruz-credo vindo em nos-
– Já tentaram nos enganar antes, Ali. Agora é
sa direção, Maurão.
nossa vez. Precisamos estar preparados para impro-
visar. O artilheiro de vante, sentado ao lado da holo-
projeção do colega responsável pela visagem, na
Ponte, alertou que ainda estavam fora do alcance do
Parte 33 material bélico pesado.
Na Escala 5, o alerta atingira grau 3. Se as duas naves seguissem esse curso, e não
As aletas solares foram recolhidas, como em noi- houvesse nada entre elas, certamente colidiriam.
te de temporal em alto-mar. Canhões apareceram – A primeira oportunidade de costado que sur-
onde antes só haviam peças decorativas. A grande gir – interferiu o comandante – disparem nos Con-
cúpula, no dorso do veículo, foi blindada com as- federados.
troluminium, outro elemento garimpado nos aste-
roides.
Ainda assim as bandeiras do Brasil e das Nações
Parte 35
Unidas, ladeando o nome da nave, além da men- Apesar da ordem, Ezra sabia que isso jamais
sagem enviada em todos comprimentos de ondas, ocorreria, não sem algo acontecer antes. Os escu-
alertassem que levavam passageiros civis, não pare- dos de proteção quânticos funcionavam muito bem
ceu dissuadir o inimigo. frontalmente, onde se requeria maior concentração
de poeira espacial. Mas fraquejavam, principalmen-
Um disparo ocorrido bem longe deles, ainda
te perdendo intensidade, em ambos costados.
assim com potência suficiente para arrasar uma
pequena cidade, em resposta à frequência de sau- Os dois capitães não iam oferecer um alvo fraco
dação, mostrou ao mundo que rebeldes não se dei- ao inimigo.
xavam intimidar por ninharias. Além de tudo, ainda havia as BAM, a meio cami-
nho de ambos...
***
Parte 36
– Ressonância de Lorentz à frente – anunciou o
– Vamos focar no problema, Alice. Quanto tem-
navegador.
po?
Durante um minuto a nave chacoalhou, como
Tinham retornado à Lâmina de Occam. Não pa-
se estivesse passando pela borda externa de um ci-
recia haver lugar melhor para se decidir sobre a vida
clone, depois, seguindo a analogia, entrou em uma
e a morte.
zona de calmaria e se estabilizou, mantendo-se na
– Nessa velocidade, eles atingirão as luas em 1,22

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Cruzeiro do Sol Edgar Indalecio Smaniotto

minuto e nós os atingiremos, ou o que sobrar deles, corpos até agora... a maioria intactos, outros em pe-
2 minutos depois disso. daços.
– Muito suspeito para uma explosão dessa mag-
nitude.
Parte 37
Não estava perguntando. Sabia o que tinha acon-
De fato, a primeira premissa se confirmou.
tecido. Sem esperar pela confirmação do oficial
O abalo no alvo resultou em uma bola flamejante científico, usou sua voz de comando:
que rapidamente se dissipou na forma de um cintu-
– Manobra evasiva!! Dois cliques à bombordo.
rão de gás. De Jururá-Açú e sua gêmea, ligadas em
um centro gravitacional único, não sobrou nada. As – Segurem-se!! – reforçou o contramestre, em
bombas tinham surtido um efeito demolidor. todo circuito.
Não era para isso ter acontecido. Ezra se agarrou a um baluarte, intuindo o que
vinha por aí, quando a nave recebeu o segundo so-
– Estava cética se iria funcionar. Que bom que
lavanco do dia, deixando-os às escuras, antes das
errei – Alice se aproximou de Ezra, ambos de volta
luzes de emergência cumprirem seu papel.
ao Comando.
Uma expansiva coluna de poeira, provocando
um metralhar de partículas nos escudos da nave, Parte 38
despertou uma série de gritos de Viva. O relatório de avarias não tinha sido dos melho-
– Silêncio!!! – levantando a mão, o capitão olha- res.
va desconfiado para a tela de estibordo. – Danos estruturais no Convés D e E. Ruptura na
Até Ymil, um russo criador de caso e o único blindagem intermediária. A vedação já está sendo
passageiro desperto, calou a boca, parando de xin- providenciada, Capitão.
gar o robô que o prendia à poltrona e a mãe de Ezra. Ezra estava ao lado do contramestre, acompa-
Não necessariamente nessa ordem. nhando seu checklist.
“O velho jornalista também percebeu...”, o capitão – Algum ferido, Chefe?
saiu de onde estava, deixando Alice em seu lugar.
– Infelizmente tivemos... dois taifeiros acabaram
Perto de Roberto, o menor astronauta a bordo de entrar no sistema de óbitos... e outro está desa-
– excluindo o alienígena – e seus 1,30m, falou nos parecido – a medida que a informação chegava para
ouvidos do oficial de Ciências em sua ilha de ins- ele, repassava ao capitão: – Sob os escombros foram
trumentos: resgatados três municiadores. Um deles oferece ris-
– O que deveria estar aí e não estamos vendo? co de morte e foi conduzido para operação. Os de-
– A nave rebelde. Ou grandes escombros dela. mais estão fora de perigo...
A radiação de fundo, apitando nos sensores. Mas – O filho da puta sabia onde atirar, Jaça.
temos corpos... – O paiol.
– Exato, Tenente – a imagem nas telas não es- Os instrumentos não acusavam nada. Na ver-
tavam tão prejudicadas como antes. – E como são dade não acusavam nada de relevante, só ecos no
esses pequenos escombros que aparecem? E os cor- escâner: pedaços de rocha que variavam de um mi-
pos? crômetro a dezenas de metros de ferro, níquel, co-
– Pouca monta. Nenhuma eclusa. Nada que pu- balto, até ouro, prejudicando a localização de onde
desse atestar uma descompressão explosiva em es- proviera o tiro.
cala, justificando uma explosão. Peças de reposição Ouro. Cinco toneladas que deixariam qualquer
não faltam, até um escaler dividido ao meio e 7, 8 um ouriçado.

100
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“Talvez aquilo que os motiva responda a outro es- a tempo deles prepararem a defesa. Enxergar a luz
tímulo...”, Ezra cogitou, antes de comentar: na desgraça era sua especialidade. Ainda assim o
– Eles estão aqui perto. Eu sinto. número de corpos não era suficiente. Precisava de
mais.
– Quem está agonizando e requer tratamento na
Parte 39 Enfermaria, Senhores?
Alice tentou se levantar, para ceder lugar ao titu- Ao convite misericordioso do capitão, seis tripu-
lar da cadeira. lantes buscaram as benesses para suas mazelas. Ao
– Prefiro você onde está. É muito boa pra locali- socorro, veiculado pelo circuito interno de comuni-
zar coisas em um cenário dinâmico. cação, Piripi enviou seus anjos da morte māori. As
bênçãos dos deuses foram com eles.
Alice se preparou para projetar vários mapas,
inferir coordenadas, o computador plotando tra- Não houve quem não escutasse o pedido de cle-
jetórias e construindo suas equações diferenciais, mência e a morte dolorosa dos até então moribun-
probabilidades, tudo uma questão de um jogo de dos ou acovardados.
gato e rato. Sem saberem qual papel desempenha- – Senhores, em minha nave não há espaço para
vam nesse jogo. sobreviventes. Todos sabem do mal que padece-
Voltando pela trincheira, Ezra resolveu acres- mos, para o qual, em nosso estágio, não há cura boa
centar: o bastante. Mas é possível que sejamos mais do que
homens, esta noite!!
– Ache aquele Confederado desgraçado que lhe
dou uma suíte lua-de-mel na Estação P4. “Muitos não são do meu sangue. Não são do
meu povo. Não descendem dos deuses. Mas posso
– Hum. Isso é uma proposta, Senhor? arrumar um lugar ao lado deles, para cada um que
– Não, Imediato. Certamente uma ameaça!! vender caro sua alma!
“Por isso só vou perguntar uma vez: Quem está
comigo?”
Parte 40
Com incentivo assim tão magnânimo, obvia-
Zeno Piripi Tipene, o grande Anaru, O Indômito, mente não houve nenhum não como resposta.
deixara de ensaiar a kapa haka. Os sete comparsas
do seu povo, assim como ele todos paramentados
em trajes cerimoniais, que envolviam tanguinhas e Parte 41
penduricalhos, se dirigiram aos postos de combate.
Com os óculos operando em 3HD ela movia os
Havia muito desfalque de pessoal a bordo. Os braços com uma fúria que ninguém nunca vira. Pa-
propulsores “envenenados” da Touro, usados para recia espantar moscas no ar e se abanar ao mesmo
ganhar vantagem sobre os inimigos, envenenavam tempo.
também toda tripulação. Inclusive o próprio pirata-
-mor, que antes de embarcar já sabia que tinha um Alice gritou.
encontro marcado com a morte e seu arauto, um Encontrara algo, ancorado por cabos a um mete-
câncer linfático. orito em formato de enseada.
Os que bateram as botas até ali, estavam deposi-
tados junto a toda tralha que usaria para iludir o ad-
versário. Descobrir as bombas de antimatéria não Parte 42
foi difícil, bastou que um de seus piratas retornasse – Onde?
com uma nave auxiliar, plantada em um daqueles – Eu vi! Eu sei!! – ela repetia, o dedo em riste
pedaços de rocha, para bater com a boca na botija, para um dos mapas que fez lançar na tela panorâ-

101
Cruzeiro do Sol Edgar Indalecio Smaniotto

mica. Parte 45
Moutinho procurou mais uma vez e não viu Por rádio, em meio à interferência, alguns pedi-
nada, só espaço, rochas e o grandioso Júpiter. dos desesperados chegavam de quem ainda tinha
– Tem certeza? um fiapo de vida para clamar por socorro. Como
garrafas de náufragos, espontaneamente iam reve-
– Tanta que já passei as coordenadas do qua- lando suas tragédias, seus nomes e nacionalidades.
drante para a Art! Marujos calejados choravam pelas mães e raras ve-
– Boa menina! – mesmo questionando, ela era zes Deus deixou de ser requisitado.
seu maior trunfo.
– Então vamos vingar os mortos, justificar aos
Parte 46
feridos e mostrar que podemos morder.
Na nave sinistrada, confinado em seu trono, jun-
to ao leme, Piripi trazia a metade do peito aberta, o
Parte 43 coração exposto, porém ainda batendo fracamente.
O diafragma permitia que fizesse algo que pareceu
– Agora?
um canto ou lamento. Ou ambas as coisas.
– Agora.
Art ou a Artilharia não perdeu tempo em pro-
cessar a ordem. Parte 47
Todas as casamatas abertas, a nave tremeu. – Mensagem chegando na frequência de sauda-
ção, Senhor – foi anunciado.
– Vem da Touro... – complementou o oficial
Parte 44 científico, virando o rosto para Ezra: – Não há ne-
A destruição não tinha sido total. O funil da en- nhuma imagem associada.
seada do meteoro, um antigo cometa capturado e – Passe o áudio.
esburacado, ao mesmo tempo que desmoronou so-
Mesmo baixo, o comandante captou o teor da
bre a nave rebelde, a protegeu de ser erradicada do
breve mensagem.
universo.
– O Poliglota5 não conseguiu nenhuma tradução
Mesmo assim a Touro decaiu de órbita, saindo
para isso, Capitão.
do outro lado do funil, onde era mais estreito e os
danos à nave foram maiores. Um único propulsor, – Um velho preceito em maoritanga, Roberto.
jorrando colunas de fumaça, travado, prestes a co- Faz parte de um rito fúnebre.
lapsar, acrescentava mais velocidade à gravitação do Pigarreando, Ezra pediu que os canais fossem
gigante gasoso, empurrando a nave para o abismo. abertos. Sua voz de tenor respondeu algo de volta,
Em seu rastro, restos reais daquilo que um dia em tupi-guarani. Ele não quis esclarecer sua breve
fora. E mais de cinqüenta corpos destroçados ou prosódia, mas os ecos das últimas palavras ainda se
fundidos às rochas e metais retorcidos, não ofere- ouviam, quando a comunicação foi cortada.
cendo um quadro fácil de ser observado. Dividiam Em meio às nuvens, nem um minuto depois,
o espaço com alguns poucos sobreviventes, em tra- uma imensa explosão laranja atestou o local onde o
jes de vácuo. adversário tinha mergulhado.
Tamatuenga, o deus da guerra, o levou.

5 Referência ao aplicativo do tradutor universal da nave.

102
Cruzeiro do Sol Edgar Indalecio Smaniotto

Parte 48 corpos, em esquifes canarinhos apropriados, foram


disparados em direção a Terra, sob salva de palmas.
A tração gravitacional se fazia sentir enorme-
mente, exigindo, ao máximo, a atuação dos propul-
sores e a navegação pelas áreas de ressonância ou
Epílogo
lagrangeanas, onde se buscava o equilíbrio para o
caminho inverso, rumo as órbitas externas de Jú- Noventa tripulantes despertaram nos casulos,
piter. dois conveses abaixo dos outros 749 passageiros
que seriam mantidos em hibernação por quase 60
– O touro se foi – Ezra Salvaterra estava plantado
dias, antes de serem acordados, próximo a Marte.
com a imediato ao lado, no deque central, acompa-
nhando o resgate. A longa fila de corpos com batas numeradas pas-
savam pela triagem: avaliação médica, testes cogni-
– A vaca foi pro brejo – preferiu Alice, que acha-
tivos, ergométricos e dietética, tornando-se aptos
va o comandante da nave pirata um serial killer de
a entrar em atividade meio dia depois. A medida
proporções planetárias e não conseguia nutrir qual-
que os recém-despertos se apresentassem para ser-
quer simpatia pelo patife.
vir, outro número equivalente iniciava o caminho
Por alguma ironia a Inferno foi destacada para oposto.
servir de escolta dos prisioneiros. Despojada de
O pessoal descansado ia ter muitos reparos a
todo aparato de pesquisa, livrando-se do que fosse
fazer e muitas histórias a ouvir. Os danos que de-
supérfluo na longa travessia, depois que uma uni-
pendiam de um estaleiro, aguardavam a chegada à
dade reserva de combustível foi acoplada, o com-
Girassol.
partimento de carga ficou pronto para acomodar os
sobreviventes.
O escaler com os prisioneiros em câmeras de ***
contenção coletiva nem voltou à nave-mãe. Seguiu
por comando remoto para o presídio que orbitava a O comandante tinha revisado a lista dos 90 sor-
Lua. Seria uma viagem que duraria quase seis me- tudos, dando descanso a quem, meritoriamente,
ses, mas o soro do êxtase e a medicação para re- conquistara o “sono dos justos”.
tardar o inevitável, agiria também para deixar os
piratas ausentes da realidade. Quem resistisse ao – Negativo – a mulher disse, não estando nem aí
percurso teria muito que explicar. para a insubordinação.
– Mas...
– Pode tirar o meu nome da lista, chefão.
Parte 49
Ele já sabia, no entanto continuou a encenação:
Júpiter ficou para trás.
– Preciso justificar a demanda reprimida, oficial
A Estrela do Sol retornava.
Oliveira.
Assim como no mar, o espaço, com seus plane-
– Que tal colocar aí – acionando a tela do tablete,
tas e luas a título de continentes e ilhas, adotava-se
programado para ativar ao contato do comandante
muitas das tradições marinhas.
ou seu eventual substituto, o nome de Alice enca-
Uma dessas, infelizmente inaugurada, foi o fune- beçava a lista – que a fulaninha tem compromisso
ral de três tripulantes já indicados para comendas marcado no cabeleireiro. Na manicure. Precisa re-
cívico-militares. visar as pernas. Você sabe, essas coisas de mulher a
Nos acordes finais do Hino Nacional, da banda quem prometeram núpcias no único hotel espacial
improvisada mais versada em Bossa Nova, deze- nas redondezas.
nas de luvas brancas desfizeram a continência. Os – Talvez.

103
Cruzeiro do Sol Edgar Indalecio Smaniotto

– Está dando pra trás? Edgar Indalecio Smaniotto – Filósofo, mestre e doutor
Ciências Sociais. Professor Universitário desenvolve pesqui-
– Não sou libertino a esse ponto. sas relacionadas à eugenia, ficção científica, transhumanis-
mo, defesa, educação e histórias em quadrinhos. Atualmente
– Então...
mantém as colunas mensais “Filosofia da Astronáutica e da
– Mais uma ação de divórcio não aguento! Ficção Científica” e “Biblioteca FC” na coleção de livros Perry
Rhodan, Space Opera alemã publicada no Brasil pela SSPG.
Autor do livro A FANTÁSTICA VIAGEM IMAGINÁRIA
*** DE AUGUSTO EMÍLIO ZALUAR: ensaio sobre a representa-
ção do outro na antropologia e na ficção científica brasileira
(Corifeu, 2007), escreveu ensaios para as coletâneas de con-
O périplo da Estrela do Sol logo terminaria. Mas tos: UFO: Contos não identificados (Literata, 2010); Zumbis:
a missão não. Só estava começando. Quem disse que eles estão mortos (All Print, 2010), TIME
OUT OS VIAJANTES DO TEMPO (Estronho, 2011), “Mr.
Hyde” (All Print, 2014), e foi convidado especial no Anu-
ário Brasileiro de Literatura Fantástica 2010 (Devir, 2011).
Membro da Associação Brasileira de Antropologia – ABA; da
Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC; da
Associação de Pesquisadores em Arte Sequencial – ASPAS, e
do Centro de Educação Transdisciplinar – CETRANS, Grupo
de Pesquisa Social – UNESP, Sociedade Planetária e CLFC –
Clube de Leitores de Ficção Científica.
E-mail: edgarsmaniotto@gmail.com

104
A Extração
1.

S ilvano Vieira de Mello estava ao ar livre, ex-


posto às temperaturas polares do planeta
Yukon, protegido por um pesado traje térmi-
co militar. O ar rarefeito de Yukon não era particular-
mente rico em oxigênio, e ele tinha a máscara respira-
dora sobre o nariz e a boca. Situação incomum, para
um diplomata, mas o fato era que Vieira de Mello era
um diplomata também bastante incomum.
Muito mais à vontade, a dois passos à sua direita
estava um rapaz, e dois passos à sua esquerda, uma
jovem mulher. Ambos vestiam o mesmo termotraje
branco-azulado, marcado pela cibermáscara multitá-
tica exclusiva, e tinham carabinas de alta energia em
punho. Ambos eram trans-humanos dotados de sofis-
ticados sistemas biocibernéticos. Ambos eram Minu-
temen, tropa de elite de Appalachia, um mundo que
orbitava a estrela Eta2-Hydri, na Zona 3, a cerca de
220 anos-luz da Terra.
Os três admiravam acima de suas cabeças o entre-
cruzar de linhas de condensação na límpida estratos-
fera de Yukon – caças e outras naves militares vindas
em hipervelocidade de outros pontos orbitais do pla-
neta, convocados como reforço. Ao longe e adiante do
próximo do curto horizonte, ventos fortíssimos tenta-
vam apagar a já reduzida paleta de cores da paisagem
de Yukon.
A Sargento Laura Dobbs tinha as suas exuberantes
formas femininas disfarçadas pelo pesado termotraje
um conto de camuflado. Seu belo rosto de queixo forte e boca gran-
de era igualmente ocultado pela máscara multitática.
Ela se virou na direção de Mello.

Roberto de – O grupo de busca Baker localizou um suspeito


do atentado contra o General Traviss – anunciou, de
certo após receber a notícia visualmente pela máscara.

Sousa Causo – Um único suspeito? – Mello quis saber.


– Sim, senhor. No momento, ele tenta se evadir
A Extração Roberto de Sousa Causo

pela planície de gelo que existe a noroeste daqui, Yukon era um planeta controlado pela Aliança
num veículo flutuador individual. Transatlântico-Pacífico. Situava-se bem na fronteira
– Esses não têm muita autonomia – Martin Carl- entre a Zona 3 de Expansão Humana e a famigera-
ton, o outro soldado, comentou. – Nem alcançam da “Esfera” e no seu eixo principal, a meio caminho
grande altitude. entre o Sistema Solar e o Braço de Scutum-Crux,
nove ou dez mil anos-luz longe da Terra. Os Minu-
– E já deve ter sido usado na ida até o local de temen estavam ali para um grande exercício militar,
onde o General Traviss observava os exercícios – já que Appalachia, o seu planeta natal, era um mun-
Dobbs disse. – Não há pegadas na neve, o flutuador do de gelo como este, situado no limite extremo de
foi usado sempre ao rés do chão. Além do mais, fu- habitabilidade da estrela G3 que orbitava. Os Minu-
gir pela planície de gelo é certeza de ser capturado. temen eram muito zelosos quanto à defesa do seu
Foi missão suicida. planeta, e no desabitado Yukon estavam livres para
– Por que fugir, então? – Mello perguntou. esbanjar a sua tecnologia militar de ponta – que in-
cluía armas nucleares, de hipervelocidade e arma-
Dobbs deu de ombros. Um gesto quase imper- mento nanita que, se empregadas em Appalachia,
ceptível, no pesado traje protetor. causariam grandes estragos à sua biofera. A órbita
– Para dar chance de um comparsa escapar – ela excêntrica de Yukon, que o levava a um extremo de
disse. – Ou ganhar tempo, criar distração para uma 30 unidades astronômicas do seu sol, o tornava im-
outra fase do ataque. possível para a vida. Seiscentos Terraanos mais tar-
– Acha que o objetivo não se limitou a Traviss, de, ele se reaproximava, chegando a 1.7 UAs – para
Sargento? – Carlton perguntou. enfrentar hecatombes de degelo que erodiam, cicli-
camente e como o machado de um gigante furioso,
– Tudo é... – Dobbs deteve-se no meio da fala. a sua superfície.
Mais alguma coisa chegava pela cibermáscara. –
Ordens do General Jackson. Devemos acompanhar Appalachia tinha um raro status político dentro
o embaixador de volta à sua nave, e organizar um da Aliança: o de total independência. Politicamente
pente-fino do aparelho. falando, era apenas um protetorado da Aliança, mas
não lhe devia obediência política nem exclusivida-
– Quer dizer uma busca? – Mello perguntou, de comercial. Na verdade, porém, Mello sabia que
surpreso. o principal produto desse mundo era a sua força
– Completa – ela disse. – Inclui sistemas de se- militar de elite, e que o seu relacionamento com a
gurança e de suporte de vida, o registro de comuni- América do Norte, um dos estados constituintes da
cações, e restos de ADN comparados com amostras Aliança, era antigo, inabalável – e de total depen-
que tiraremos de toda a tripulação, do senhor inclu- dência.
sive, Embaixador Vieira de Mello. Gelado e inóspito, Appalachia pouco tinha a ofe-
– O que você quer dizer é que seus superiores recer em termos de atividade econômica e cultural.
acreditam que minha equipe e eu de algum modo Eles precisavam de toda a ajuda que a Aliança po-
colaboramos com o assassinato de Northrop Tra- dia lhes dar, e em troca, formavam uma tropa de
viss? – Mello perguntou. choque mercenária e ideológica que a Aliança em-
pregava nas Zonas de Expansão 2 e 3. Ou era as-
– Eu não quero dizer nada, senhor – ela respon- sim que Mello enxergava as coisas. Os Minutemen,
deu. – Minhas ordens são essas. Mas nós contro- claro, nunca o admitiriam, mesmo se ele tivesse o
lamos a órbita de Yukon, e a sua nave foi a única desejo de apontar-lhes que toda a sua tecnologia
a entrar. O assassino ou assassinos tiveram que ser militar vinha da Aliança, autorizada pelo congresso
inseridos de algum modo. da Aliança, assim como toda a técnica de implantes
e intervenções biocibernéticas em seus corpos era
*** paga pela Aliança e cobrada deles com juros. Uma

106
A Extração Roberto de Sousa Causo

contradição. Mas apenas uma delas, no que dizia


respeito aos appalachianos e a sua milícia interes- ***
telar.
O General Northrop J. Traviss era outro exem- Enquanto os Minutemen revistavam a nave con-
plo agudo dessas contradições. Um dos nomes mais sular Manuel Piar, Mello rememorava metodica-
reconhecidos da expedição até a Galáxia Anã da mente as muitas mulheres de sua vida. O que mais
Ursa Maior em 2418, tinha uma outra fama – não fazer, enquanto aguardava em seu camarote o resul-
tão gloriosa. Na pequena área de influência da Ecu- tado da verificação?
mênica Islâmica na Zona 3, ele era chamado de “o
Carniceiro de Regulus B”, a estrela Alfa do Leão. Estava sozinho agora, e provavelmente continu-
Dizia-se que ele havia comandado o extermínio de aria assim por algum tempo ainda. A maioria das
um grupo misto árabe-africano de mineradores que mulheres com quem tivera relacionamentos dificil-
entrara em choque com uma empresa congênere mente se interessaria agora por um pária como ele.
da Aliança, enquanto testava uma instalação semi- Há dois Terraanos, Mello havia sofrido o pior
-automatizada fornecida a eles pela Latinoamérica. golpe de sua destacada carreira: a missão de tra-
Técnicos latinos também tinham sido mortos. O zer em segurança para o asilo político oferecido
assassinato em massa teria sido disfarçado como o pela Diáspora Latinoamericana, a junta militar de
choque das usinas da Ecumênica Islâmica com um sKrtleal, uma casta de ditadores que mantiveram os
asteroide, mas um grupo de funcionários da empre- mundos de dois sistemas planetários na Esfera sob
sa da Aliança viera a público – Terraanos depois – o mais cruel e implacável regime totalitário.
para denunciá-lo.
Mesmo com os tratados entre sKrtleal e a Lati-
Traviss havia se retirado dos Minutemen pouco noamérica ainda em vigência plena, seria uma ope-
depois, e hoje atuava como alto executivo da Sys- ração muito difícil de vender para a opinião públi-
ComFinds, uma empresa de sistemas militares. A ca. Não estava dentro da experiência profissional de
iniciativa privada do setor bélico era um destino Silvano Vieira de Mello, um diplomata de alto per-
bastante comum para oficiais appalachianos de des- fil, mas ele foi encarregado dessa caixa de Pandora
taque. Traviss, porém, não era uma pessoa fácil de se por ordem direta da Chancelaria. Para protegê-lo,
encontrar. Vinha se esquivando há alguns Terrame- e à própria Chancelaria, a oferta de asilo à junta de
ses de se pronunciar sobre as acusações, preferindo sKrtleal deveria ter sido mantida em segredo abso-
que seus advogados falassem por ele. Os problemas luto. Mas ao invés disso, ainda enquanto Mello vo-
de jurisdição pareciam impossíveis de serem des- ava com os ditadores e suas famílias em naves da
lindados, até que uma senadora da Aliança, Rachel Esquadra Latinoamericana na Esfera, a coisa toda
Haywood, velha conhecida de Mello, atendera aos havia vazado para a imprensa da maneira mais es-
apelos do diplomata e fizera contato direto com candalosa possível.
Traviss – que respondera com condições bem pou-
co razoáveis: um encontro pessoal e não ansívico, E não apenas. A própria missão de escolta tinha
e neste planeta inóspito onde ele atuava como con- sido comprometida, e a espaçonave em que viaja-
sultor durante os exercícios militares e rodeado por vam, sabotada e emboscada.
seus amigos e aliados. Foi apenas graças à atuação do comandante
Mello tinha para si que essa atitude equivalia da escolta militar, o Capitão Jonas Peregrino, que
uma admissão de culpa. Ou Traviss dificultava o Mello não só conseguiu escapar do imbróglio com
seu trabalho por simples arrogância. sua carreira mais ou menos intacta, como saiu vivo
para continuar servindo aos interesses da Latino-
Mas agora Northrop Traviss estava morto, e as américa nas três Zonas de Expansão.
razões de Mello estar ali já não importavam mais.
O que ele se perguntava era como sairia de Yukon. Na época, ele havia imaginado que o objetivo
de sua indicação e do subsequente vazamento te-

107
A Extração Roberto de Sousa Causo

ria sido destruir a sua carreira de uma vez por to- camuflagem no gelo.
das. Ele certamente pisara nos calos de muita gente A nave fora colocada ao sopé de um paredão
– gente bem situada em pelo menos quatro blocos rochoso, escarpado, coberto de gelo pesado no seu
políticos. E mais tarde, passaram a indicar-lhe tra- platô, lá nas alturas. Uma vasta cobertura semi-
balhos medianos e arriscados, como este potencial transparente montada com painéis sextavados de
escândalo de assassinato em massa. nanotubos de carbono protegeria a Manuel Piar
Seu único ato de rebeldia lhe parecia agora pe- das frequentes nevascas. Ou de uma avalanche ou
queno e inconsequente, embora talvez tenha con- desmoronamento. Mas o Primeiro Sargento Diego
tribuído para que ele se tornasse ainda mais desin- Fuentes, da Infantaria Embarcada da nave consular,
teressante para os cabeças da Chancelaria: Mello já havia alertado que a instalação colocavam-nos
nunca havia entregado os registros do seu implante sob a vigilância constante de dispositivos secretos
mnemônico, gravados durante aquela operação. de monitoramento. Alguns deles haviam sido de-
Alegou que o stress havia causado uma disfunção do tectados pelos sensores de segurança da Manuel
biochip de memória, um equipamento básico dos Piar.
diplomatas do seu nível. Um médico amigo dera O “pente-fino” já havia sido realizado, embo-
o falso diagnóstico e providenciara a troca do im- ra nenhum resultado fosse partilhado com Mello,
plante de desempenho perfeito, por outro da mes- que, em sua mente, pesava hipóteses absurdas: a in-
ma qualidade. E seus superiores nunca souberam o filtração de agentes desconhecidos em sua equipe,
que realmente ocorreu com a liderança sKrtleal. Ti- ou que tudo não passasse de outro golpe contra ele
veram de engolir o seu relatório escrito, repleto de e sua carreira. Mas nada disso conseguia avançar
fatos embelezados e editados para proteger Peregri- muito além da constatação de que, se eles inadver-
no e a ele mesmo de consequências desagradáveis. tidamente trouxeram o assassino ou assassinos de
Pensar em seu implante fez Mello se lembrar de Traviss com eles, como a vigilância dos Minutemen
que ele mesmo não deixava de ser um ciberaumen- os teriam deixado passar?
tado. Jackson tinha dois metros de altura ou mais, e
ombros exageradamente largos. Sorriu debilmente,
*** afetando um cansaço que seus sistemas biociberné-
ticos nunca deixariam se instalar no seu organismo
transformado. Além da cinta de interface da más-
Ele não se opusera à coleta de ADN, mas tinha cara tática multiuso brilhando em sua testa, não
preparado um documento a ser assinado pelo Te- exibia nenhum traço externo de implantes, no rosto
nente General Taylor Dennis Jackson, o coman- forte e escuro. Ele e Mello se apertaram as mãos. O
dante do exercício em Yukon, em que o oficial Mi- diplomata o recebeu com um sorriso aberto. Não
nuteman deveria assegurar que os dados seriam se sentia em nada intimidado diante dele – em seus
utilizados apenas para a conferência de vestígios vinte e sete anos de carreira ele já havia lidado com
encontrados na nave – e para nada mais, devendo todo tipo de trans-humanos, piratas espaciais, re-
ser imediatamente destruídos depois da sua tria- volucionários e genocidas em áreas de conflito, por
gem. todas as Zonas de Expansão, sem nunca deixar de
T. Dennis Jackson era um caso raro entre os Mi- encará-los nos olhos.
nutemen – um homem negro que chegara ao pos- – Lamento as circunstâncias em que nos conhe-
to de oficial general. Mello o via pela primeira vez. cemos, General.
Antes, apenas uma major havia tratado com ele
desde a sua vinda a Yukon. Agora Jackson chegava – Uma grande inconveniência para nós dois
à área de pouso afastada que fora designada à Ma- – disse Jackson – , e um grande embaraço para a
nuel Piar, escoltado por uma esquadrilha de caças minha organização. – Sua voz, ainda que roufenha,
e lanchas armadas, todas com o mesmo padrão de soava jovial e livre de qualquer traço de irritação ou

108
A Extração Roberto de Sousa Causo

impaciência. Mas em seguida ele afirmou: – Tenho – Café cultivado nas montanhas do Brasil – o
certeza de que o senhor compreende que temos de embaixador disse, com um sorriso.
tomar todas as medidas possíveis. – O melhor... – Jackson reconheceu. – É um in-
– É claro. Estou preparado para colaborar de toda ferno. Quanto mais a humanidade avança pela galá-
maneira que o senhor considerar necessária, Gene- xia, mais raras ficam as coisas que amamos.
ral, mas que esteja dentro do razoável. Sua gente Ele apreciou o café em silêncio. Então retirou de
já fez uma busca minuciosa no interior da Manuel um bolso do casaco um envelope plástico. Mello sa-
Piar, e para isso eu lhes franqueei o conhecimento bia que dentro estava o termo de compromisso pre-
do nosso engenheiro e programador de bordo, Ber- parado por ele. Jackson disse:
nardo Alverdi.
– Reconheço que o senhor demonstra boa von-
– Fizemos uma busca na área externa também – tade diante das nossas necessidades, Embaixador.
Jackson informou. Permitiu que fizéssemos a busca e colhêssemos o
Mello guiou-o pelo interior da espaçonave. Ele já material genético do seu pessoal, antes mesmo que
havia negociado as condições da entrada do Gene- eu assinasse este documento.
ral Jackson naquilo que era efetivamente território Estendeu-lhe o envelope.
da Diáspora Estelar Latina. Os Minutemen pode-
riam trazer apenas uma arma a bordo. Laura Dobbs – Obrigado, General – disse Mello. – Também
entrou atrás de Jackson, com a carabina em punho. é do nosso interesse esclarecer a situação o quanto
Luzes LED de segurança na lateral da arma indica- antes. Não tenho ilusões quanto aos meus poderes
vam que estava energizada e pronta para disparar. aqui. Represento a Diáspora Latinoamericana na
sua integralidade, mas o fato é que qualquer poder
real que possa apoiar a minha representação está a
*** muitos anos-luz daqui. Eu dependo da sua boa von-
tade.
Destacado para a segurança da Manuel Piar, o Os olhos escuros de Jackson percorreram o rosto
Sargento Fuentes não gostava nada da presença de de Mello por um instante. Então o militar assentiu
Dobbs com a sua carabina, e respondera com pre- e disse:
caução dobrada: junto à entrada da copa da espaço- – Terei de abusar um pouco mais da sua, Embai-
nave, Fuentes mantinha dois homens similarmente xador. – Fez uma pausa, observando a caneca vazia.
armados, enquanto ele, com um detonador no cin- Mello fez um gesto, e o copeiro serviu mais café ao
to, se postava diante de Dobbs, de quem não des- general. – Sei que o senhor tem um chip mnemô-
grudava os olhos. nico, então não me adiantaria pedir para falar com
Jackson não parecia se importar com tais medi- o senhor a sós. De qualquer modo, não estou sozi-
das. nho, entre os appalachianos, quando digo que Nor-
– É cheiro de café que estou sentindo? – pergun- throp Traviss era um canalha completo, que teve o
tou. que merecia na superfície deste planeta morto. Não
posso comentar nada sobre o que teria havido em
Mello fez sinal a um copeiro, que trouxe a bebi- Regulus B, pois não estive lá, mas conheço outros
da para a mesa e a serviu em duas canecas com o “feitos” de Traviss que o colocam no capítulo reser-
discreto brasão da DEL. A copa era um espaço de vado aos grandes bastardos, no meu livro.
formas fluidas e superfícies claras, concebido para
ser tão agradável e aconchegante quanto a sala de Mello precisou de alguns segundo para encon-
conferências da nave, o local de reuniões e tratativas trar o que dizer. À volta da mesa, Diego Fuentes e
oficiais. Receber o General Jackson ali era um modo Laura Dobbs trocaram o pé de apoio – a única re-
de Vieira de Mello sinalizar que não se intimidava. ação diante das palavras de Jackson, a que podiam
se dar ao luxo.

109
A Extração Roberto de Sousa Causo

– Louvo a sua franqueza, General – Mello reco- como se uma cortina se descesse entre os dois, en-
nheceu. quanto Jackson voltava novamente os olhos para
– O senhor também aprecia o fato de que, não Silvano Mello.
importando o meu conceito de Traviss, tenho que – É possível para alguém que tenha os recursos
fazer tudo o que estiver ao meu alcance para desco- necessários ser invisível aos nossos sensores, Em-
brir quem atentou contra um cidadão da República baixador, se ele ou ela conhecer as frequências e as
de Appalachia. especificações dos nossos sistemas. Dispositivos
– Certamente, General. – Mello pigarreou e dis- furtivos anti-G o fariam flutuar acima do solo, sem
se: – Ainda não tivemos conhecimento do resultado deixar pegadas. Enganar sensores térmicos com
da sua busca nesta nave... um macacão termoativo seria relativamente fácil, e
à noite o operador afetaria os intensificadores lu-
– Resultado negativo, embaixador – Jackson in- minosos com um holoprojetor de interferência. O
terrompeu. – Nada foi encontrado. Nem um fio de pessoal da Ásia Centro-Oceânica trabalha muito
cabelo, um cílio, um pelo púbico, um floco de caspa bem com esse tipo de coisa, e não seria impossível
ou uma impressão digital que não pertença à sua que outros blocos políticos conseguissem o equipa-
equipe. Seu sistema de suporte de vida é capaz de mento.
determinar o consumo individual de oxigênio, de
rações e das facilidades sanitárias, porém ele não – Vocês já devem ter determinado que não te-
registra ninguém fora da sua equipe e tripulação. E mos nada disso a bordo.
os registros estão em ordem, não foram fraudados. – De fato.
Mas há outros procedimentos que teremos de enca- – E todo esse material de posse de um único indi-
rar juntos. víduo, General? – Mello perguntou. – E essa pessoa
– Meu chefe de segurança diz que a cobertura burlou a sua vigilância e ainda conseguiu encontrar
protetora sobre nós tem sensores de vigilância... o General Traviss e matá-lo...
– E muito eficientes. – Achar Traviss seria relativamente fácil, a partir
– Se o assassino ou assassinos tivessem partido do monitoramento das nossas comunicações – Ja-
desta nave, vocês teriam descoberto. ckson disse. – Elas são quantumcriptadas, mas até
isso não constitui impedimento. Há um padrão no
– Há outros meios de se inserir um operador no tráfego de mensagens que se remete ao QG dos ob-
planeta, antes, digamos, do pouso da sua nave. servadores do exercício, onde já era sabido que Tra-
– Mas nós fomos escoltados por seus caças, da viss estaria. Todo o equipamento pode ser transpor-
órbita até a superfície, senhor. tado por um único elemento, se ele souber operá-lo.
Os asiáticos são muito bons em miniaturização.
Jackson endireitou as costas e olhou para Dobbs. Tudo isso seria de grande portabilidade, e em parte
– Isso é excessivo, para o assunto que o trouxe inflável. Volumes primeiramente bem pequenos...
aqui – ele observou, com severidade. E dirigindo-se o flutuador individual descoberto a noroeste deste
para a suboficial: – Quem deu essa ordem? ponto, e as outras coisas que ele teria trazido.
– A Major Steakley, General – Dobbs respondeu. Vieira de Mello dirigiu um rápido olhar ao rosto
– E todas as gravações visuais feitas da Manuel Piar coberto de Laura Dobbs, e disse:
a partir dos caças já foram checadas, com resultado – Bem, já há quase duas Terrahoras que o sus-
negativo. peito foi localizado. Os senhores já devem tê-lo sob
– Terei uma conversa séria com Steakley, depen- custódia a esta altura.
dendo de como este caso terminar – Jackson disse. Jackson fez um ruído de desdém, e liquidou a
– Sim, senhor. sua segunda caneca de café.
A troca de palavras com Dobbs encerrou-se – Bem que gostaríamos – disse. – Mas ele ou

110
A Extração Roberto de Sousa Causo

ela usou o flutuador para nos despistar. O veículo – O que o senhor quer dizer, General Jackson, é
foi lançado numa rota, enquanto o matador se es- que a sua investigação tentará determinar não ape-
condeu em um afloramento de rocha, onde teria nas se esta nave foi usada para a inserção do assassi-
cometido suicídio com um explosivo térmico que no, mas se ela será usada para a sua extração.
não deixou vestígio algum, exceto por uma trilha – Precisamente – Jackson disse, com um sorriso
de pegadas. Nada de ADN, fibras, pelos... só res- pálido.
tos das superfícies exteriores mais resistente de um
traje ambiental. A distância entre as pegadas indica – E se ele não está infiltrado – Mello insistiu –
um homem de cerca de um metro e oitenta e cin- entre os membros da minha equipe ou da tripula-
co de altura. Mas elas são regulares demais e meus ção da Manuel Piar.
especialistas sugerem que possa ter sido um softbot Desta vez, o Minuteman apenas concordou com
vestindo um termotraje protetor. a cabeça.
– Softbot? – Mello perguntou.
– O traje térmico devia conter um infraesqueleto 2.
de biotecnologia que fazia o traje caminhar como
uma pessoa – Jackson disse, gesticulando com dois Pelos quatro Terradias seguintes, a Manuel Piar
dedos da mão direita, na mímica de alguém andan- e sua tripulação passaram por dúzias de testes e ve-
do. – Um autômato sem partes metálicas, composto rificações, conduzidas por técnicos em trajes her-
de fibras e servomotores infláveis e uma CPU bioló- méticos e robôs de todos os tamanhos e formas. O
gica, simples o bastaste para fazê-lo tripular o flutu- procedimento que fizera Silvano Vieira de Mello
ador individual, saltar dele e correr até o afloramen- engolir em seco, porém, foi um scan mental a que
to de rocha, onde se autodestruiu. Seriam tecidos todos os membros da sua equipe se submeteram –
facilmente vaporizáveis por uma granada térmica. muitos sob protesto. Todas as memórias recentes
No flutuador, a propósito, só encontramos manchas – um Terraquinze ou menos – seriam capturadas
do sangue com o ADN de Traviss. e jogadas em um computador para filtragem e pro-
cessamento, em busca de pistas do assassino.
– E teria sido esse softbot que o matou?
Mello colaborou, porém – a um grande custo
– Eu duvido. O matador passou como um raio pessoal e profissional, ele suspeitava. Designou uma
por sete pessoas, entre elas dois guarda-costas pes- das suas assistentes, Consuelo Canclini, para acom-
soais de Traviss, sem ser visto. E embora reformado, panhar os procedimentos dos Minutemen, depois
Traviss conservava os seus biossistemas militares e que T. Dennis Jackson assinou um novo documen-
estava em forma. Mas foi imobilizado e teve a tra- to, em que prometia destruir todos os resultados
queia arrancada pelo assassino, aparentemente sem do scan, se eles não revelassem nada relacionado à
que pudesse opor resistência. Não há sinais de que morte de Traviss. O próprio Mello foi o primeiro a
tenha ferido o seu atacante. Um softbot não teria passar pelo scan.
essa capacidade. Quem liquidou Traviss é um ci-
borgue com sistemas superiores aos dele. Estamos Depois do procedimento, Canclini veio até ele.
certos disso. – Eu nunca questionei as suas decisões, Silvano
“Provavelmente, o softbot inflável foi só um des- – ela disse – , mas aceitar essa imposição é uma vio-
piste. Enquanto nós o caçávamos, o verdadeiro as- lação dos nossos direitos e da nossa autoridade di-
sassino se dirigia a um outro lugar, num segundo plomática, e não será bem aceita pela Chancelaria.
flutuador individual.” – Eu entendo – disse Mello, com um meio-sorri-
Jackson silenciou-se, seu olhar pesando sobre so. – Mas é também o modo possível de nós, e por
Vieira de Mello. extensão a Lationoamérica, contribuirmos ativa-
mente com a investigação.
O embaixador pigarreou.
– Você quer dizer que partilha da suspeita deles?

111
A Extração Roberto de Sousa Causo

– ela exclamou. – Mais um pouco e vocês estarão livres para par-


– Eles foram cuidadosos em não formular expli- tir – asseverou. – O assassino não está nesta nave,
citamente qualquer suspeita – ele disse. – Mas não nem pode passar pela vigilância que montamos em
ocorreu a você que possamos ter sido infiltrados torno dela. Se ainda estiver vivo e na superfície de
por uma terceira parte, e inadvertidamente trazido Yukon, nossos robôs irão descobri-lo. Ele não pode
o assassino para cá? durar muito tempo nestas condições climáticas,
sem se denunciar.
Consuelo parecia mais chocada com essa pos-
sibilidade, do que com um escândalo diplomático. – Quanto tempo mais teremos de esperar, Ge-
Mello respondeu com um meio sorriso tranquiliza- neral? – Mello perguntou. – Meu relatório de ansí-
dor, embora ele mesmo não estivesse em nada satis- vel para a Chancelaria da Diáspora Estelar Latina já
feito com o beco sem saída em que se encontrava. está atrasado, e eu receio que se ele demorar mais,
esta situação pode se transformar num incidente
internacional.
*** – Que o senhor tem tentado evitar, eu reconheço
– Jackson disse. – Só mais um Terradia. Eu também
No quinto dia, diante do longo crepúsculo de tenho a quem responder em Appalachia... e além, se
Yukon, Vieira de Mello e Dennis Jackson tiveram o senhor me entende.
outra conversa em torno de canecas de uma termo- – Acha que o matador será capturado em só mais
garrafa de café mineiro. A lancha de comando Mi- um dia?
nuteman estava conectada à Manuel Piar por meio
de uma passagem sanfonada, e Jackson vestia ape- – Não se trata disso, Embaixador. – Jackson sor-
nas o fardamento de campo, bem mais leve. Desta riu. – É uma desculpa para dizer aos nossos supe-
vez estavam sozinhos na copa, acompanhados ape- riores que estamos analisando os dados colhidos e
nas de café e sanduíches, livres da atenção zelosa buscando alternativas. Eu não vejo nenhuma, mas
dos seus suboficiais e auxiliares. coloquei o meu time de especialistas para trabalhar.
Não creio que eles imaginem algo razoável, nesse
– O senhor vai gostar de saber que não desco- prazo. Mas é também uma desculpa para o senhor e
brimos nada com os scans, Embaixador – Jackson eu conversarmos mais um pouco.
disse. – Seu pessoal está limpo, nenhum deles é o
assassino de Traviss ou foi seu cúmplice. Lamenta- – Sobre que assunto, General?
mos o inconveniente. – O Capitão Jonas Peregrino.
– O senhor manterá o compromisso de destruir Silvano Vieira de Mello recuou na cadeira. Dian-
todos os registros? te dele, o Minuteman sorriu e deu de ombros, antes
– Quando o processo estiver terminado, o se- de esconder o sorriso atrás da caneca de café. Jack-
nhor e a senhorita Canclini vão poder testemunhar son disse:
o momento em que os dados serão deletados – Ja- – Os sistemas de vigilância de comunicações que
ckson asseverou. – Mas eu quis de ter esta conversa usamos para a filtragem dos scans de memória pos-
antes. suem, digamos, um interesse pelo Capitão Peregri-
“Quando o processo estiver terminado...” Mello no. Ele realizou muito na Esfera, e parece ter uma...
ecoou mentalmente. resistência incomum. Temos curiosidade profissio-
nal a respeito dele.
– Há outros procedimentos aos quais quer nos
submeter? – inquiriu, com certa impaciência. – Eu – Eu imagino – Mello disse, lacônico.
não consigo imaginar o que mais pode ser feito... – Daí os computadores terem filtrado a ocor-
Jackson fez um gesto apaziguador. rência de Peregrino, na análise das suas lembranças
recentes. Parece que o senhor tem pensado muito

112
A Extração Roberto de Sousa Causo

nele, nos últimos dias. Na verdade, desde o ataque Peregrino ou da propaganda em torno dele?
a Traviss. Vieira de Mello meditou, curvado sobre a sua ca-
– Uma coincidência suspeita em sua opinião, neca de café.
General Jackson? – Desde o início, fomos alvo de sabotagens, trai-
– Uma coincidência que estimula ainda mais a ções e emboscadas – disse, em voz baixa. – Isso pe-
nossa curiosidade sobre Peregrino – Jackson devol- sou sobre Peregrino, especialmente as perdas entre
veu, sem piscar. o seu pessoal. Em alguns momentos ele pareceu
Mello suspirou. desorientado, desesperado, prestes a se voltar con-
tra os membros da junta e contra mim. Mais tarde,
– Eu me perguntava o que ele faria numa situa- porém, eu vim a acreditar que ele forçava a mão de
ção como esta, que minha equipe e eu vivemos em modo calculado, ou talvez intuitivo, para obrigar os
Yukon. generais de sKrtleal a agir eles próprios de modo
– Uma solução militar, para uma situação diplo- desorientado e desesperado. Quando eles me toma-
mática, Embaixador? ram como refém, foi o que Peregrino precisava para
agir e salvar os nossos pescoços.
– O senhor não é um diplomata, General – Mello
respondeu, com um meio-sorriso. – Tanto a situa- – Eu não compreendo...
ção que vivi com Peregrino, quanto esta, parecem – O tempo todo ele lia a situação e antecipava
becos sem saída dos quais nenhum resultado posi- o que os membros da junta fariam – disse Mello.
tivo poderia advir. – Nós não conseguiríamos escapar do fracasso da
– Mas a missão de escolta diplomática da jun- escolta, não com a sabotagem que sofremos. Mas
ta militar de sKrtleal terminou da melhor maneira Peregrino intuiu um modo de transformar o fra-
possível – Jackson observou. – Dadas as circunstân- casso em vitória. E uma vez tendo aberto uma via
cias. de escape, ele agiu imediatamente e com toda a for-
ça necessária, sem um momento de hesitação. Era
– Exatamente, General – Mello disse, olhando como se estivesse preparado para aquilo, durante o
firme nos olhos do Minuteman. – Parece que esse tempo todo.
é o talento do Capitão Peregrino. Ele é um grande
planejador, é claro. Mas falo de sua capacidade de Jackson havia endireitado o corpo. E estreitado
ler e antecipar situações desesperadas, e tirar delas os olhos. Mello deu de ombros.
uma saída redentora. Eu certamente só estou aqui, – Talvez essa capacidade seja algo comum en-
vivo e no exercício das minhas funções, por causa tre comandantes de combate – o embaixador ob-
dele. Daí me lembrar de Peregrino neste momento. servou. – Mas é claro, já estive em muitas áreas de
O senhor talvez veja isso com suspeita, mas esta é a conflito, e essa experiência me faz supor que nem
verdade: eu gostaria de saber como Peregrino en- sempre é assim.
frentaria este impasse aqui em Yukon.
O Minuteman voltou a sorrir.
– Não há impasse algum, Embaixador. Mais um
dia, e vocês estarão livres para partir. – Na minha também – ele disse. – Mas é curio-
so o senhor usar a palavra “intuição”. – Ele tocou
– Mas neste dia se exige que eu revele algo sobre rapidamente a cinta de interface em sua testa, e en-
um oficial da Latinoamérica a quem sou particular- tão levantou-se. – Nestes dias em que somos meio
mente grato. máquinas, conceitos como esse não são muito vi-
– Não acredito que o senhor venha a revelar um sitados. Mas eu acredito no senhor. Acredito que
segredo militar ou diplomático, e não é o que o que intuição, instinto ou sorte podem guiar um soldado
eu peço – Jackson asseverou, num tom que sugeria pelos caminhos tortuosos das fricções do combate.
interesse verdadeiro. – Uma análise de caráter, tal-
vez? Algo que vá além do retrospecto da carreira de

113
A Extração Roberto de Sousa Causo

3. – Se fizermos uma varredura muito intensa com


os sensores, eles vão desconfiar de alguma coisa.
Dennis Jackson cumpriu a sua palavra. Livre, a
Manuel Piar vencia o puxão gravitacional de Yukon. Mello refletiu. Avilés tinha razão.
O planeta apareceu nas vigias do passadiço como – Qual é o alcance efetivo máximo, para uma
uma bola de neve suja e amassada, e rapidamente varredura discreta? – perguntou.
ficou para trás. As vigias deram lugar ao espaço es-
curo e salpicado de estrelas. A espaçonave rumava – Nossos sensores não têm competência militar,
para o espaço profundo. Por um instante, porém, então eu diria três unidades astronômicas, Embai-
Silvano Vieira de Mello guardou a imagem gélida xador. Ou cerca de duas horas de voo, se o senhor
do planeta, e um verso muito antigo lhe ocorreu: “É realmente quer ir devagar.
agora o inverno do nosso descontentamento.” – Já temos um plano então, Omar. Vou sair para
Ele então se dirigiu ao comandante da Manuel falar com Fuentes e Consuelo. Me avise quando ti-
Piar, Omar Federico Avilés. ver um registro, ou se aparecer alguma novidade.

– Não tenha pressa em nos conduzir pela Zona


de Simetria Rompida, Omar. ***
Consuelo Canclini estava ao lado de Mello,
quando ele fez a solicitação. Diego Fuentes e o pessoal de Consuelo percor-
– O que tem em mente, Silvano? – ela perguntou. riam a nave, enquanto o engenheiro de bordo, Ber-
Todos os membros da sua equipe diplomática o tra- nardo Alverdi, verificava os sistemas à caça de um
tavam pelo primeiro nome. vírus troiano ou algo parecido.

Consuelo ainda estava incomodada com a inva- Vieira de Mello fizera uma refeição frugal e ha-
são representada pelo scan a que os Minutemen os via se recolhido ao seu camarote. Estava deitado
tinham forçado. Mello podia sentir a irritação em de costas, observando distraidamente luzes que
sua voz. piscavam no painel de climatização fixado no teto
baixo acima do catre. Ele comandou seu implante
– Apenas que devemos ser cautelosos. Verificar mnemônico para repassar uma conversa que tivera,
todos os sistemas, antes do tunelamento. – Pensa- pouco antes da Manuel Piar ser liberada para deixar
tivo, ele fez uma pausa, seus olhos indo de Avilés Yukon. Não aquela com o General Dennis Jackson,
a Consuelo. – Me ocorreu que os Minutemen fize- porém. Com a conversa tida com a Sargento Laura
ram mil averiguações nesta nave, e nós, nenhuma. Dobbs.
Chame o Sargento Fuentes e os seus analistas de sis-
temas, Consuelo. Enquanto seguimos para a ZSR, Dobbs o procurara no seu camarote. Livre do
vamos procurar grampos, vírus e sinalizadores que termotraje protetor, da máscara multitática e de
eles possam ter deixado nos sistemas ou nas insta- qualquer armamento, não parecia em nada ameaça-
lações da Manuel Piar. dora. Vestia apenas o uniforme Minuteman de ser-
viço, este sim revelador de suas formas femininas e
– Eu e meu pessoal estivemos com eles o tempo membros robustos. Parecia embaraçada, com difi-
todo, enquanto eles verificavam os computadores culdade para dizer do que tratava a sua visita. Mello
da nave – Consuelo disse. sorriu para animá-la, e então, como cabia a uma
– Os Minutemen teriam muitas maneiras de militar, ela respirou fundo e foi direto ao assunto.
contornar essa providência – Mello apontou. – Eu lamento pelo ocorrido, Embaixador – disse.
– Vou reunir o pessoal – ela aquiesceu. – O scan de memória foi excessivo. Uma violação
dos seus direitos individuais, da sua privacidade e
– Quero dar uma olhada no que eles estão fa-
da sua equipe. Não é assim que gente de Appalachia
zendo na órbita de Yukon – o embaixador pediu a
devia se portar.
Avilés, depois que Consuelo deixou o passadiço.

114
A Extração Roberto de Sousa Causo

Mello compreendeu perfeitamente. Appalachia dos, deitado em seu catre.


era uma sociedade fundada em princípios liber- Um enigma. Um quebra-cabeça em forma de
tarianos, e Laura Dobbs havia escolhido deixar de homem. A questão do que Peregrino faria em seu
lado o papel de Sargento Dobbs, para assumir o pa- lugar voltou a atormentá-lo. Teria oposto resistên-
pel da Cidadã Dobbs. Mello ofereceu-lhe a mão. cia, forçado o adversário a mostrar a sua mão, como
– Eu lhe asseguro que o que ocorreu aqui não fizera contra a junta militar? Ou teria forçado a si
alterou em nada a minha impressão – disse, com mesmo a... A quê?
um sorriso – com respeito a Appalachia ou o seu Mello sentou-se no catre, dobrado para a frente,
governo. E agradeço a sua expressão de solidarieda- as mão de dedos entrelaçados, braços apoiados nos
de neste momento. joelhos. Olhava para o vazio, buscando o insight. O
Os olhos de Dobbs passearam pelo seu rosto por implante não poderia ajudá-lo nessa tarefa, que o
um segundo, quando foram enfim apenas um ho- lançava no terreno da intuição. Por isso desligou-o.
mem e uma mulher que, presos em uma situação Levantou-se logo a seguir, e chamou Bernardo
infeliz, lamentam que as coisas não tivessem sido Alverdi.
diferentes.

***
***

– Você deve ter uma boa ideia do que os Minute-


Mello admitiu a si mesmo que acionara o im- men estavam procurando na Manuel Piar, pelo tipo
plante mnemônico apenas para voltar a ouvir a voz de busca que fizeram.
de Laura Dobbs, rever seu rosto. Não precisava do
implante, para se lembrar das palavras trocadas. O – Sim, mas... – Alverdi começou.
dispositivo reforçava, porém, o calor humano que Mello o deteve com a mão direita espalmada. Os
ele colocara nas suas. A diplomacia era frequente- dois estavam na sala do engenheiro, porque preci-
mente presumida como a arte da mentira e da enga- savam dos seus computadores e monitores especia-
nação. “Diplomata é o homem que sempre se lem- lizados. Um dos monitores já estava aceso, exibindo
bra do aniversário de uma mulher, mas nunca se o blue-print da Manuel Piar.
lembra da sua idade”, escreveu o poeta. Não foi com
esse espírito, porém, que ele falara com Laura. Al- – Deixe o “mas” para depois, Bernardo. O que
guém já havia dito que “não há melhor diplomacia eu preciso saber é se eles deixaram de procurar em
do que a franqueza”, e Vieira de Mello honestamen- algum local dentro da nave.
te procurava o melhor em si e nos outros – do con- A pergunta obviamente intrigou Alverdi, que le-
trário, sem esperança, com que bases o diplomata vou algum tempo para responder.
poderia trabalhar, e para alcançar quais resultados? – Ora... os exaustores, é claro. Ninguém poderia
Agora ele quis rever suas conversas com o Den- se esconder ali, ou armazenar equipamentos...
nis Jackson. O Minuteman parecia não ter outras – Onde mais?
intenções, ao levantar o assunto do oficial latino-
americano. Mas a conversa com Jackson sobre Jo- Alverdi se voltou para as plantas da espaçonave.
nas Peregrino havia disparado nova associação de – As áreas que são mantidas permanentemente
ideias na cabeça de Mello. Por isso ele saltou da não pressurizadas.
resenha das palavras de Jackson, para revisitar as
lembranças da escolta da junta militar de sKrtleal, – Explique, por favor.
armazenadas em seu chip mnemônico. – Existem várias pequenas seções da nave que
– Peregrino... – Mello balbuciou, de olhos fecha- são mantidas sem atmosfera – o engenheiro disse. –
No vácuo. Principalmente entre o casco e os setores

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A Extração Roberto de Sousa Causo

habitáveis. Alguns compartimentos em torno dos de um metro e oitenta e cinco de altura. Mas elas
reatores. Pra minimizar o risco de incêndios ou de são regulares demais e meus especialistas sugerem
descompressão explosiva, se o casco fosse rompido. que possa ter sido um softbot vestindo um termo-
Alverdi ia tocando a touchscreen, e os compar- traje protetor.”
timentos foram se acendendo na planta, ganhando Alverdi arregalou os olhos. Então os voltou no-
contornos, números, dados perfilados na tela. vamente para a planta. Foi tocando a tela, amplian-
– Por que eles não procuraram nessas seções? – do seções, lendo os dados que surgiam ao lado.
Mello perguntou. – Aqui – disse, e apontou.
Alverdi voltou as palmas das mãos para cima.
– Na maior parte, são estreitas demais pra abri- ***
gar uma pessoa – exclamou. – São modulares, Em-
baixador. Os espaços não são amplos. Ao mesmo Vieira de Mello sabia que nas naves consulares
tempo, não têm saída para o casco... Quer dizer, se da Latinoamérica só eram consumidos alimentos
alguém se escondesse noutro ponto da nave, e fosse frescos, e que cada uma delas tinha um chef bastan-
até lá apenas pra pegar equipamentos escondidos, te habilidoso, integrante da tripulação. Mello mui-
não haveria como abrir um compartimento desses, tas vezes achava que essa prática era excessiva, um
sem que os sensores de pressurização percebessem. privilégio dispendioso e pouco produtivo. Às vezes,
E todos os sensores estão funcionando, isso eu e os quando você tratava com outros humanos, podia
Minutemen verificamos. É por isso, inclusive, que ter um efeito positivo – como o café mineiro apre-
eles não tentaram abrir nada. ciado por Jackson, e os sanduíches de gourmet que
– Abrir?... eles tinham partilhado. Mas para quê, quando trata-
– Os espaços não pressurizados, senhor. vam com inteligências alienígenas? E havia ainda o
fato de todas as refeições da equipe diplomática e da
– Os técnicos deles não chegaram a abrir esses tripulação serem preparados com esses requintes.
compartimentos – Mello disse a si mesmo. E então
para o outro: – Mostre um desses espaços em que O cozinheiro da Manuel Piar se chamava Sílvio
caberia uma pessoa, Bernardo. Combochi, e, diante de Mello, Alverdi e Fuentes, ele
explicava:
– Eles estavam procurando um homem com
mais de um e oitenta de altura, mais equipamento – Sim, nós temos esses doze compartimentos se-
– Alverdi gritou. – Não há espaço pra algo assim, lados a vácuo atrás da cozinha. – Combochi então
Embaixador, em lugar nenhum não pressurizado na falou de como era o revestimento interno dos es-
Manuel Piar! paços, e da sua capacidade em litros. – Não temos
acesso direto a eles. Servem para armazenar restos
Pela primeira vez desde que chamara o enge- triturados e compactados de alimentos, separados
nheiro, Vieira de Mello sorriu. dos seus componentes líquidos, que nós reciclamos.
– Deixe eu te passar o que o General Jackson me Também recebem a lama de depuração sanitária dos
disse. – Ele então acionou o seu implante mnemô- banheiros da nave. Depois tudo é ejetado ao espaço,
nico. – “O veículo foi lançado numa rota” – reci- quando nos aproximamos de um planeta habitado.
tou – , “enquanto o matador se escondeu em um – Por isso eles têm uma saída para o casco – Al-
afloramento de rocha, onde teria cometido suicídio verdi disse.
com um explosivo térmico que não deixou vestígio
algum, exceto por uma trilha de pegadas. Nada de – O que é “lama de depuração sanitária”? – Viei-
ADN, fibras, pelos... só restos das superfícies exte- ra de Mello perguntou.
riores mais resistente de um traje ambiental. A dis- – Os resíduos sólidos ou semissólidos do esgoto.
tância entre as pegadas indica um homem de cerca – Por que ejetá-los ao espaço?

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A Extração Roberto de Sousa Causo

– Por causa das leis antiproliferação de formas plomática quando esperamos refazer nosso supri-
de vida exóticas, senhor – Combochi respondeu. mento de alimentos frescos. Não é o caso de Yukon.
– Normas e regulamentações uniformizadas, inter- E a nossa produção da lama ainda não... exigiu o
nacionais, das Zonas Um, Dois e Três. Alimentos preenchimento de muitos tanques.
frescos, especialmente os de origem vegetal, podem – Você quer dizer então que, agora mesmo, os
transmitir doenças e pragas que ninguém quer se restos estão armazenados até o nosso retorno.
espalhando em colônias onde espécies vegetais se-
melhantes tenham sido implantadas. A Agência – Sim, senhor.
de Controle de Biosferas é muito rigorosa quanto – Então os doze compartimentos estão cheios
a isso. Elas servem mais, é claro, para as colônias neste momento?
humanas de categoria um e dois, nem tanto para
habitat orbitais e colônias planetárias subterrâneas. Mello sentiu uma pontada de decepção anteci-
pada. Os espaços mantidos no vácuo estariam re-
– Então os restos de alimentos não consumidos pletos com uma polpa compactada de alimentos
ou estragados são lançados no espaço, pura e sim- triturados e ressequidos e dejetos humanos semis-
plesmente? sólidos. Seria difícil encontrar qualquer evidência
– Eles saem por uma abertura que os coloca no de que alguém chegara a Yukon clandestino dentro
caminho dos exaustores principais, senhor – Com- de um deles.
bochi explicou. – Um pulso dos exaustores de plas- – Na verdade, não, Embaixador – Combochi res-
ma, e eles são incinerados ou semi-incinerados. Ex- pondeu. – Só cinco deles. É como nós planejamos o
cesso de zelo, talvez, mas incinerá-los na cozinha consumo de alimentos e calculamos a produção de
seria aumentar o risco de incêndio e o consumo dejetos na nave. Um cálculo de volume cúbico para
injustificado de oxigênio. Nanodigestores são ca- a viagem de ida, outro para a na viagem de volta.
ros e podem contaminar certos sistemas da nave. Por isso, no momento apenas os cinco primeiros
O mesmo com a lama de depuração sanitária, que compartimentos estão cheios.
pode causar envenenamentos por sulfídio de hidro-
gênio. Ela também é rica em bactérias que ninguém Mello dirigiu um olhar para Alverdi e Fuentes.
quer que fiquem muito tempo na superfície de um – Você disse que são difíceis de acessar – disse a
planeta alienígena. Em missões como esta, em que Combochi.
não ficamos muito tempo em terra, não precisamos – Eu nem saberia como – o chef exclamou. – Nós
descarregar nossos tanques de lama de depuração jogamos as coisas em uma portinhola, e apertamos
nas instalações locais. É mais seguro jogar tudo no um botão.
espaço, poupando contato com um material peri-
goso. Há uma etapa da aproximação planetária em Alverdi já estava consultando o detalhe em um
que a gente realiza o procedimento. blue-print pulsante na tela do seu palmer.
Mello se apressou a perguntar: – É viável, Bernardo? – Mello perguntou.
– Quer dizer que lidar com isso pode ser peri- – Me dê meia hora, Embaixador, e terei um pro-
goso? jeto pronto aqui. Já acionei os meus dois robôs au-
xiliares.
– Sim, senhor. Ninguém gosta de lidar direta-
mente com lama de depuração, e é proibido fazer – Vamos te dar espaço então – disse Mello, ace-
isso sem equipamento protetor individual. nando para que Fuentes o acompanhasse.
– Fizemos essa ejeção e incineramento quando Do lado de fora da cozinha, Consuelo Canclini
chegamos a Yukon? avançava pelo corredor, com a sua expressão tensa
muito agravada, aos olhos de Mello.
– Não, senhor. O procedimento geralmente
acontece no ponto de chegada de uma missão di- – Avilés quer você no passadiço, Silvano – ela foi
dizendo. – Novidades da parte dos Minutemen.

117
A Extração Roberto de Sousa Causo

*** Os robôs de Bernardo Alverdi se aplicaram ao


trabalho de remoção de chapas de plastimetal, lon-
Omar Avilés mostrou os gráficos na tela plana garinas de nanotubos de carbono, cabos de fribóp-
dos sensores de situação de longa distância. tica, sensores, repetidores e relés, cavando uma pas-
sagem na cozinha interditada, até o sexto e último
– Dá pra ver que a parte orbital do exercício de dos compartimentos mantidos no vácuo. Alverdi
defesa planetária foi retomada, depois que deixa- havia escolhido esse para começar.
mos o planeta – ele disse. Então apertou uma tecla e
o gráfico foi substituído. – Mas o que eu queria lhe O desmonte e remoção foram demorados. No
mostrar é isto: dois vasos se destacaram das vizi- ínterim, Vieira de Mello foi com Consuelo Cancli-
nhanças de Yukon. São de porte modesto, para na- ni e outros dos seus assistentes até a copa, comer
ves de guerra. Corvetas, digamos. Uma já aguardava sanduíches e tomar café e sucos de fruta. Um dos
na boca do poço gravitacional do planeta, as outras analistas disse que alguma coisa estranha foi encon-
se uniram a ela vindo da órbita. São três, portanto. trada no software do sistema de coordenadas de tu-
nelamento complexo da Manuel Piar, mas que eles
– Vão nos interceptar? – Mello ouviu a ansiedade ainda não tinham ideia do que significava.
na própria voz, e desejou não ter perguntado. Lim-
pou a garganta e disse, num tom mais natural: – O – Pode interferir com o nosso próximo salto? –
que você acha? Mello perguntou.

– Não, senhor. Estão acelerando num curso di- – Esse software em particular não tem contato
ferente do nosso – Avilés explicou. – Quando tiver- direto com aqueles usados nos procedimentos de
mos entrado na ZSR e estivermos prontos para o tu- tunelamento – Consuelo disse. – Temos certeza dis-
nelamento, eles estarão muito afastados de qualquer so. Mas se for um vírus troiano ou algo assim, pode
curso de interceptação. Há outros vasos em outras ter dado aos Minutemen a informação do nosso
posições orbitais dentro do sistema, num tipo de curso de regresso daqui pr’a Zona Um.
posicionamento escalonado em relação a Yukon, Mello pensou nas três naves Minutemen lança-
mas eles também não estão em posição. Meu pal- das para a Zona de Simetria Rompida ao mesmo
pite é que estão só monitorando a gente, usando tempo que a Manuel Piar.
algum sistema de varredura ativa mais discreto em O analista dizia que o que eles encontraram pa-
triangulação com as outras naves. Inclusive, esses recia mais a impressão digital de um vírus que teria
três estão espelhando exatamente a mesma taxa de sido inoculado no software para obter alguma in-
aceleração que nós. Isso é estranho. formação específica, e depois se autodeletado.
– Por quê? – Mas teria deixado um resquício, como uma
– Seguindo a ordem que o senhor deu, estamos proteína constituinte – ele explicou – , que os nos-
acelerando abaixo do normal – o piloto respondeu. sos programas de diagnóstico detectaram.
– Para eles, esses vasos militares, a taxa de acelera- Mello assentiu lentamente com a cabeça. Con-
ção seria muito maior, se eles pretendessem deixar suelo e os outros continuaram discutindo o assunto,
o sistema. Mas como nosso equipamento não tem o mas ele agora tinha dificuldade para acompanhar.
padrão militar, não dá pra saber exatamente o que Sua atenção derivava. Talvez essa notícia fosse mais
eles estão fazendo. importante do que a sua busca maluca nos fundos
– Muito bem, Omar. Não parece nada preocu- da cozinha de bordo... Nesse instante, sua estranha
pante, mas fique de olhos abertos. Me avise quando inquietação e a excitação arrebatadora que o toma-
chegarmos à ZSR. Só vamos tunelar para fora daqui ra pareciam prestes a evaporar por completo. Teve
depois de termos resolvido o outro assunto. dificuldade para controlar seu embaraço interior.
Pensou em ir imediatamente até Bernardo Alverdi
e lhe pedir que cancelasse tudo. Mas respirou fundo
***

118
A Extração Roberto de Sousa Causo

e, sem saber exatamente por que, se forçou a aguar- – Este é um detonador MinoTaurus S quatro –
dar até que ele o chamasse, anunciando que o traba- ele disse. – Está carregado e destravado. O feixe é
lho dos robôs fora concluído. bem fino. O senhor sabe usar uma arma desse tipo,
Retornou à cozinha, embora num caminhar len- Embaixador?
to, sem pressa alguma de presenciar o possível fias- Mello odiava armas, especialmente as que, como
co que desencadeara. esse detonador, amputavam e cauterizavam ao mes-
Agora havia espaço para um homem ou robô mo tempo, mas tivera instruções no seu uso, várias
passar, dos fundos da cozinha até os compartimen- vezes em suas missões galáxia afora. Ele apanhou a
tos de lixo orgânico e lama de depuração. Esse espa- pistola. Um segundo depois, sem dizer nada, Alver-
ço foi cuidadosamente pressurizado, e, sob o olhar di lhe entregou uma pequena lanterna e a ferramen-
apreensivo de Mello, Alverdi fez um dos seus tecno- ta – esta sim, Mello teve de aprender a usar.
bôs passar uma câmera IV pelo estreito tubo pelo – Risco de explosão se ele usar o detonador com
qual os alimentos triturados e desidratados eram vazamento de sulfídio de hidrogênio? – Fuentes gri-
lançados no compartimento. Estava vazio. tou por cima do ombro, para Bernardo Alverdi.
Alverdi ordenou que o mesmo procedimento Alverdi apontou para largas canalizações abaula-
fosse realizado no sétimo container. Sílvio Com- das, de aparência quase blindada, conduzindo até o
bochi lhes havia garantido que ele ainda não fora tanque de resíduos.
usado para armazenar os alimentos descartados. – Zero – disse o engenheiro. – Impossível, com
Mais uma vez, câmera IV não revelou nada em seu essa tubulação. A lama de depuração progride por
interior. seções lacradas. E não deve haver resto algum no
Mello tinha alguma dificuldade para respirar, tanque que ele vai examinar.
que ele disfarçava de Alverdi e de Fuentes – que es- O caminho aberto pelos robôs era acidentado.
tava ao lado dos dois diante do monitor da câmera, Eles haviam se aplicado em acessar o comparti-
com uma carabina nas mãos. Por que se sentia as- mento, e não em preparar um meio de passagem
sim? Obviamente ele havia se enganado. Não havia confortável a um ser humano. E Silvano Vieira de
nada em nenhum desses espaços. Mas seu corpo Mello podia ser um homem esbelto, mas tinha om-
vibrava com uma energia que ele não se lembrava bros largos e pernas compridas, e, enquanto raste-
de ter sentido antes. “O que Peregrino faria?”, ele java por entre estruturas de metal e plástico, seus
pensou. Porém, sem refletir mais, voltou-se para joelhos e cotovelos pareciam procurar o contato
Alverdi. doloroso com toda e qualquer aresta. É claro, havia
– Me dê uma lanterna e uma ferramenta para gravidade artificial também nesse ponto das entra-
abrir essa coisa – pediu. E para o Sargento Fuentes: nhas da espaçonave, de modo que seu peso se fazia
– Uma arma, Diego. sentir contra as irregularidades do chapeamento,
– O senhor não pode estar falando a sério... – o assim como o da lanterna e da ferramenta, que ele
sargento disse. E diante do olhar inflexível de Mello: repetidamente deixava cair.
– Eu irei, Embaixador. É o tipo de coisa pr’a qual fui Quando a forma elipsoide do container de lixo
treinado, e sou menor que o senhor... orgânico se revelou perante o facho da lanterna,
– Uma arma, Fuentes – Mello exigiu, a mão di- Mello estava empapado de suor – que enxugou com
reita estendida. a manga da camisa, esfregando-a acima dos olhos e
entre o nariz e a boca. Arrastou-se mais para perto,
Balançando a cabeça, o militar estendeu a mão o coração acelerado. A superfície externa abaulada
esquerda para as suas costas, na altura da cintura. estava ao alcance de sua mão. Um pensamento mui-
A pistola era pequena e de acabamento escuro. to distante lhe ocorreu: seu implante mnemônico
Fuentes apertou um botão e uma pequena luz verde estava desligado. Sem sobressalto nem qualquer re-
se acendeu. flexão maior, decidiu mantê-lo assim.

119
A Extração Roberto de Sousa Causo

Bernardo Alverdi lhe havia explicado que dentro Devagar, ele se voltou para o interior do contain-
do container ainda existia o vácuo, e que era o vácuo er, fazendo o estreito facho de luz da lanterna per-
que mantinha as suas seções lacradas. A ferramenta corrê-lo de cima abaixo.
servia apenas para acionar a válvula que permiti- Não era alguma coisa, é claro, mas alguém.
ria a entrada do ar – abrindo, consequentemente, o
compartimento.
Mello aplicou a ferramenta sobre a válvula, e es- ***
perou. O ar entrava lentamente. Ele ouvia apenas
um leve sibilar. Ela cabia com alguma folga, dentro do estreito
Ficou então de joelhos no espaço exíguo. Seu pei- container. Certamente, não tinha um metro e oiten-
to ficou na altura da curvatura superior do contain- ta e cinco. Mello calculou um e sessenta ou pouco
er, enquanto sua cabeça raspava o teto. Aos poucos, mais.
como que obedecendo a um suspense planejado, as Estava deitada de costas, nua, de olhos e boca
seções do compartimento foram se abrindo da di- fechados. Mello iluminou o rosto cuidadosamente.
reita para a esquerda, com um leve chiado. Mello Havia uma película semitransparente envolvendo-
sentia, a cada vez, uma leve brisa roçar sua face di- -lhe os olhos e a boca. A película se fundia à pele
reita e pensou ver um fiapo de condensação se for- como se fizesse parte dela. Mello lembrou-se que
mar, curvado para dentro do container. esse produto era conhecido – pele artificial feita sob
Finalmente, todo o container diante dele asse- medida de acordo com tipos sanguíneo e perfil ge-
melhava-se a um quebra-cabeça com as peças leve- nético, delicadamente vascularizada, livre de rejei-
mente afastadas umas das outras. Mello se lembrou ção, e aplicada como um bioadesivo fundia rapida-
da arma emprestada a ele pelo Sargento Fuentes. mente o tecido manufaturado à pele da pessoa. Não
Apanhou a pequena pistola no bolso da caça. Uma deixaria restos de ADN, certamente, e talvez tivesse
ominosa luz LED verde ainda estava acesa. Mello sido aplicada nas mãos e pés. Ele dirigiu o facho da
empunhou a arma com cuidado, sentindo um tre- lanterna para baixo. A vagina depilada também es-
mor perceptível na mão. Evitava o gatilho. tava lacrada do mesmo modo, contra a brutal pres-
são negativa do vácuo. Mello observou melhor e ve-
Mais uma vez, pensou em Jonas Peregrino. rificou que ela tinha plugues nos ouvidos e narinas.
Intuição ou instinto não podiam fornecer todas Mesmo assim, seu corpo deveria estar absur-
as respostas. damente inchado, retorcido em agonia, sangue e
Segurou a lanterna na boca e, com a mão livre, outros fluídos colorindo seu rosto, membros e as
afastou o primeiro painel. superfícies interiores do container. Mas o delicado
Havia alguma coisa ali dentro. corpo diante dele se encontrava intacto, perfeito e
plácido ali como se apenas adormecido. Ela parecia
Mais um painel removido, então sua mão es- ser uma adolescente – teria no máximo vinte, vinte
querda se mexendo como se tivesse vontade pró- e um anos. Os cabelos, cortados rente ao couro ca-
pria, afastando outros painéis sem se importar com beludo, eram castanhos. O rosto ovalado era encan-
o ruído provocado quando eles se chocavam um tador na beleza simples dos seus traços, e Mello se
contra o outro. surpreendeu desejando que ela abrisse os olhos e o
– Embaixador Mello! – ouviu. O Sargento Fuen- fitasse, como parecia prestes a fazer.
tes. – O que está acontecendo? Não era possível que ela fosse a assassina de Nor-
Mello segurou a lanterna com a mão, e gritou throp Traviss.
por cima do ombro: A conclusão se firmou com tamanha solidez na
– Nada, Sargento, não se preocupe. mente de Vieira de Mello, que ele, por alguns se-
gundos muito confusos, deixou-se inundar por

120
A Extração Roberto de Sousa Causo

pensamentos contraditórios. Em que outra parte da seios pequenos, nos ombros, braços, salientes nas
nave ele deveria procurar pelo assassino? Como esta pernas dobradas. Não havia sinais exteriores de im-
clandestina se metera ali e com que propósito? E plantes, mas era a única resposta possível.
então: como ela havia escapado dos efeitos da pres- Perguntou-se se ela não estaria em uma catatonia
são negativa?... Mello era alguém que viajava muito mais profunda do que o coma, induzida por drogas.
pelo espaço, e por isso tivera vários treinamentos
de emergência ao longo de sua carreira. Sabia que a Ali, na mão esquerda – Mello reconheceu pela
pele e o sistema vascular humanos tinham um efei- primeira vez um objeto cilíndrico, comprido e lar-
to de contenção que evitava que o sangue entrasse go. Quase tocava o rosto dela, e talvez por isso, do
em ebulição no interior do corpo. Havia uma in- ângulo em que observava, ele não o tinha notado
finidade de relatos de sobrevivência no vácuo por antes. Num gesto impensado, arrancou o objeto dos
vários segundos – meio minuto, em alguns casos. dedos finos – e gelados – da menina. Era um estojo
Nada daquelas velhas representações cinemáticas de espuma anti-impacto. Mello precisou guardar a
de rostos se expandindo como balões de festa, de pistola para usar as duas mãos e abri-lo, com dedos
globos oculares saltando das órbitas. trêmulos.
“Meio minuto...” Mello repetiu mentalmente. Novamente, Mello se perguntou se não estaria
Essa garota, porém, havia passado vários Terradias sonhando. Dentro do estojo cilíndrico havia uma
no vácuo. Dias. E supostamente despertado sem espécie de concha marinha. Era alongada e de cores
auxílio médico, saído sozinha pelo canal de esca- esmaecidas, que espiralavam em torno dela como se
pe do lixo triturado e compactado e descido para a obedecendo a um design intencional. Mello girou-a
superfície de um planeta gelado com atmosfera ra- lentamente nas mãos, sentindo com os dedos a lisu-
refeita. Mello agitou a luz da lanterna pelos recessos ra do nácar. Podia muito bem ser uma concha ori-
entre o corpo e as superfícies internas do container. ginária dos mares da Terra, mas algo lhe dizia que
Haveria espaço suficiente para o material minia- fora apanhada em uma praia alienígena. Por que a
turizado e inflável de que Dennis Jackson falara? garota o levaria com ela? Agitou-a, com a abertura
Aparentemente... Mas mesmo assim, imaginar que voltada para baixo, mas nada caiu do seu interior.
ela sobrevivera à viagem, para se vestir e equipar no Não havia mais nada no container. Nenhuma arma,
ambiente gelado e pobre em oxigênio de Yukon... comunicador, ou droga para fazê-la adormecer,
E então percorrido quilômetros para matar Traviss, apenas essa concha do mar no estojo anti-impacto
superando-o em combate pessoal, depois de passar – para cujo interior Mello a devolveu, o mais delica-
por vigias e guarda-costas. Ela ainda teria retorna- damente que pôde.
do à Manuel Piar, depois de despistar os Minute- E então, deslizou o estojo de volta ao abraço dos
men, e se livrado de todo o equipamento restante dedos da menina. Notou então que os músculos do
– suas roupas, inclusive, para se esgueirar pela es- seu rostinho se curvavam no menor dos sorrisos.
treita tubulação e não deixar traços externos de sua Sim. Ela parecia sorrir e sonhar – um sonho agra-
passagem – nenhuma fibra natural ou artificial – e dável e inocente.
entrado nua de volta ao container vazio, para en-
frentar novamente o vácuo. Mello fechou os olhos e os pressionou com os
dedos. Queria acordar do seu delírio. Mas forçou-
“Quem liquidou Traviss é um ciborgue com sis- -se a abrir novamente os olhos e examinar mais
temas superiores aos dele”, lembrou-se, mesmo sem uma vez o corpo nu diante deles. Não possuía nada
o auxílio do implante mnemônico. As palavras de da exuberância e maturidade feminina de Laura
Jackson. Dobbs, mas não obstante, sua nudez delicada era
Uma ciborgue. aos olhos dele inquietante e intimidadora. E ainda
assim, ele simplesmente não podia acreditar que
A luz da lanterna e os olhos de Mello percorre- ela havia tirado a vida de Traviss. Sentiu o impulso
ram novamente o corpo inerte. Uma garota, sim, de apanhar o seu corpo juvenil num abraço aper-
mas atlética, com músculos de rapaz por baixo dos

121
A Extração Roberto de Sousa Causo

tado, de acalentá-la até que despertasse, mas, é cla- plexo que levaria a astronave das vizinhanças de
ro, refreou-se. Lembrou-se então que o implante de Yukon até δ Muscæ, já com as anotações prontas no
memória continuava desligado. Flertou brevemen- seu computador pessoal. Teve tempo apenas para
te com a ideia de ativá-lo, registrar tudo o que via um banho rápido, e então se deitou em seu catre
para referência futura. Mas decidiu manter como e quanto se levantou centenas de anos-luz haviam
estava. Pensou em Jonas Peregrino – sim, esta era sido percorridos. Teria horas suficientes para esbo-
uma outra situação como aquela com os ditadores çar o relatório, no tempo em que levariam para dei-
de sKrtleal. xar a ZSR e realizar as transferências orbitais para
Muito devagar, ele foi remontando o quebra-ca- dentro do sistema.
beça que tornaria a lacrar no interior do comparti- Mello pediu que uma xícara de café e um sandu-
mento. Sua mente estava vazia. íche fossem trazidos da copa ao camarote. Pensara
– Embaixador! – ouviu. em solicitar um prato de massa, mas a cozinha de
Sílvio Combochi ainda devia estar uma bagunça.
Seu coração deu uma cambalhota no peito. Ti- Não precisava pensar na cozinha desmontada para
nha se esquecido completamente de Fuentes e dos se lembrar da garota confinada no compartimento
outros. de lixo. Seu belo rosto ainda pairava diante dos seus
– Avilés mandou avisar que faltam trinta minu- olhos, bloqueando a visão das suas anotações. Ele
tos para a ZSR! – Fuentes insistiu. também imaginara se as três corvetas Minutemen
haviam seguido a Manuel Piar até δ Muscæ. Tinha
– Está tudo em ordem, Sargento! – gritou de vol- sido essa a intenção por trás do vírus instalado no
ta. – Não há nada aqui. Já estou voltando. software do sistema de coordenadas de tunelamen-
to, não tinha? Saber para onde eles iriam, e acompa-
nhá-los ou interceptá-los.
4.
Deu-se conta de que não poderia ocultar sua
O retorno da Manuel Piar até a Zona Um – o ve-
presença por muito tempo. Ela estava no sétimo
lho Sistema Solar da humanidade – previa duas es-
container, com cinco já cheios, e portanto o seu se-
calas. A primeira aconteceria ainda na Zona 3, uma
ria preenchido com os resíduo, durante a viagem
esfera de mil anos-luz de extensão, contada a partir
de volta. Provavelmente nesta primeira escala em δ
de vinte anos-luz da Terra. Num sistema planetá-
Muscæ.
rio dominado pela estrela binária Delta Muscæ, na
Constelação de Musca, havia uma colônia latinoa- Mello levantou-se. Deixou o camarote e come-
mericana – a cerca de 90 anos-luz da Terra, de onde çou a dirigir-se para a cozinha. No corredor, quase
era possível vê-la no hemisfério sul celeste. Delta se chocou com um copeiro, trazendo o café e o san-
Muscæ A era uma gigante laranja do tipo K2III. A duíche em uma bandeja.
colônia era relativamente recente e estava na área – Por favor, deixe em cima da minha mesa de
de influência da civilização alienígena conhecida trabalho – pediu, distraidamente.
como “aar’vaneesa”. Por isso havia em δ Muscæ um
escritório da chancelaria, com sua delegação diplo- Então se deteve mais adiante no corredor. Estava
mática. claro que a garota não tinha sido infiltrada na Ma-
nuel Piar para que a nave da chancelaria da Latino-
A Manuel Piar deveria apanhar ali uma mala américa realizasse inadvertidamente a sua extração.
diplomática e dois funcionários transferidos para Não sem que antes ela fosse coberta de detrito bio-
a Zona 2. Exigia-se de Vieira de Mello, como uma lógico desidratado e... E lançada ao espaço para ser
praxe motivada pela redundância, que ele apresen- incinerada junto com ele.
tasse um relatório preliminar – ou o esboço do seu
relatório final da missão a Yukon. Por isso ele foi “Será isso?”, o embaixador se perguntou. A mão
ao seu camarote, esperar pelo tunelamento com- direita pressionando a testa. “Nós estamos sendo
usados para dispor da última evidência do assassi-

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A Extração Roberto de Sousa Causo

nato... o corpo da assassina. Ou a menos que...” tação e tunelamento – Consuelo disse. – Ou pode
Nesse instante, o intercomunicador da nave se acontecer de novo... irmos parar numa destinação
anunciou com um apito, seguido do apelo: ignorada.

– Embaixador Vieira de Mello, por favor dirija-se – Vocês estão fazendo isso neste momento?
imediatamente ao passadiço. – É claro, Silvano – Consuelo disse, um traço de
histeria na voz.

*** Mello se voltou para Avilés. Acocorou-se ao lado


da poltrona de pilotagem, que o comandante ocu-
pava.
– Não estamos em Delta Muscæ, senhor – Omar
Avilés lhe contou. – Tenho certeza de que há uma espaçonave nas
imediações, Omar – disse. – Faça uma outra busca.
Também estavam no passadiço Consuelo Can-
clini e os seus analistas, já sentados atrás das telas – Sim, senhor.
dos computadores e aparelhos de navegação. Fuen- Contudo, segundos depois ele anunciou, com
tes também estava presente, acompanhado de mais voz sumida, que os sensores haviam “caído”.
dois homens da infantaria embarcada. – Todos os softwares de busca e interpretação
Consuelo disse: dos dados deixaram de funcionar, Embaixador. Há
– Nós suspeitamos de que, enquanto nos preo- um dispositivo automático de reformatação, mas...
cupávamos com aquele primeiro vírus que encon- – Quanto tempo para reformatar?
tramos, um outro programa dos Minutemen estava Avilés apertou botões, fez cálculos.
atuando num nível mais profundo do sistema de
navegação. Foi um truque... – Apenas quinze minutos, senhor.
– Manobra desviacionista – Fuentes disse. Mello se levantou e rumou para entrada do pas-
sadiço. Então voltou-se e se dirigiu a todos.
Mello os calou com um gesto.
– Por favor, continuem com o trabalho que estão
– Aquelas três naves estão por perto? – pergun- fazendo. Eu voltarei em quinze minutos.
tou a Avilés.
Fuentes fez menção de acompanhá-lo, mas o
– Não, senhor. Não há nada por aqui, Embaixa- embaixador o deteve com um gesto. Então saiu e
dor. Nada. Estamos na camada de estagnação de tomou os corredores. “Quinze minutos...”, disse
um sistema estelar desconhecido. mentalmente. Quando deu por si, trotava pelas pas-
A camada de estagnação era a fronteira entre o sagens estreitas da Manuel Piar. A princípio, dirigiu-
vento solar de uma estrela, e o vento interestelar de -se para a cozinha, então concluiu que não poderia
partículas geradas pela explosão de outros sóis. fazer nada lá. Lembrou-se então da vigia solitária
– Estamos desacelerando para sair da ZSR? – que existia na popa da espaçonave, para atender aos
Mello perguntou. que gostavam de celebrar ou apenas apreciar a ig-
nição dos motores de plasma, indicando que uma
– Não, senhor. nova jornada, uma nova missão diplomática tinha
– Se ainda estamos na Zona de Simetria Rom- início. Era uma vigia ampla, em torno da qual três
pida, não podemos simplesmente tunelar para um ou quatro pessoas podiam se reunir.
outro ponto? Mello se aproximou dela bem devagar. Sua men-
Avilés balançou a cabeça. te estava tranquila, não havia precipitação nem
pressa em seus movimentos. Apenas uma estranha
– Precisamos primeiro nos localizar, senhor. expectativa. Ansiava somente pelo fim do mistério.
– E verificar todos os nossos sistemas de orien-

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A Extração Roberto de Sousa Causo

Lá estava a nave de cuja presença ele suspeitava. como que sustida por uma mão invisível. Enfren-
Era pequena e esguia e iluminada apenas pelas tava desta vez o gélido vácuo do espaço entre as es-
luzes de navegação da Manuel Piar. Dentro dela as trelas, mas ele teve certeza de que a ciborgue sobre-
pessoas que haviam enganado a todos. A ele e sua viveria. Via-a um pouco mais distinta no começo,
equipe, e aos poderosos e implacáveis Minutemen. enquanto mais próxima das luzes da Manuel Piar e
dentro de uma zona mais rarefeita do cone nebulo-
Tinham infiltrado os sistemas da nave consular, so. Então menos distinta conforme se afastava e era
programado o seu tunelamento para lançá-la nes- abraçada pelas brumas.
te canto inesperado da galáxia, enquanto eles mes-
mos se materializavam talvez no mesmo instante, Silvano Vieira de Mello, contudo, tinha a impres-
postando-se bem à sua ré com o mesmo vetor de são clara de vê-la em detalhe na mesma posição,
entrada, por via de um entrelaçamento da matéria segurando a concha do mar junto ao rosto com a
complexa – era assim que as flotilhas e esquadras mão esquerda. E no rosto bonito, de traços simples
militares voavam em formação para dentro ou fora e juvenis, aquele mesmo esboço, entrevisto ou ima-
de uma região do espaço. A complexidade desse ginado, do menor dos sorrisos. “Qual será a cor dos
tipo de coisa – a complexidade e profundidade da seus olhos?”, ele quis saber.
infiltração nos sistemas da nave consular – deixou Ele também sorriu, quando a garota entrou em
Mello atordoado por um segundo. Um outro vírus uma comporta na proa da outra nave. Os gases se
colocara os softwares de busca e interpretação dos avolumaram e então se dissiparam, e o aparelho já
sensores fora de operação. Por quinze minutos. O não estava mais lá. Bastaria um discreto mergulho e
tempo de que precisavam para fazerem incógnitos estaria fora das suas vistas, rumando célere e ainda
a aproximação entre os dois vasos. dentro da ZSR, para tunelar para fora dali a qual-
Ambos passavam pela Zona de Simetria Rompi- quer segundo.
da com a mesma velocidade relativística – frações Ele se afastou da vigia e apoiou as costas contra a
ínfimas da velocidade da luz. A essa velocidade, parede de plastimetal. Sabia que descobririam mais
qualquer objeto, por minúsculo que fosse, que se tarde onde estavam, e então poderiam voltar para
chocasse contra eles representaria o fim de tudo. casa. “Todos vão voltar para casa”, pensou.
Mas estavam longe de qualquer nuvem de Oort. Es- Ainda tinha o seu sorriso no rosto.
tavam no vazio entre os sistemas estelares, e além
disso, o escudo de energia projetado à proa da Ma- O menor dos sorrisos.
nuel Piar protegeria os dois.
Mello viu com clareza, quando a nave desco-
nhecida projetou um cone de gases que envolveu a
popa da Manuel Piar.
Mello aguardou. Talvez alguém no passadiço do
outro aparelho pudesse vê-lo ali, solitário junto à vi-
gia de popa, mas ele não se importava.
Diante de seus olhos, uma sombra foi lançada da
popa da sua nave, flutuando lentamente para den-
tro do cone de gases – que existia, ele tinha certe-
za, apenas para confundir qualquer aparelho ótico
e olhares como o dele, que enfim testemunhava a
extração da assassina do Carniceiro de Regulus B.
Ele divisou a silhueta feminina, pequena, flu-
tuando muito devagar, sem giro, sem solavancos,

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