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Questões Aprofundadas em Ensino de Música

Alguns professores acreditam que só devem ensinar música. Consideram técnica um tema
simples e pouco inspirador, que o aluno deve aprender por ele próprio. Que seria da Catedral de
S. Pedro de Roma, se Bramante não se tivesse preocupado com um assunto tão prosaico como
os alicerces?
Vitaly Margulis

Comentário

O duelo que se tem vindo a fabricar entre a música e a técnica não é mais do que isso -
uma criação recente, desnecessária e irreal. Uma não existe sem a outra. Uma serve a outra (de
formas mais óbvias do que outras). São duas velhas amigas que andam de mãos dadas pelo
passeio da experiência artística. O aforismo de Margulis fala por si.

Uma das mais recentes formas de esculpir jovens artistas passa por uma sobre-
valorização do que é espiritual (leia-se “musical”), a custo da sub-valorização dos recursos que
tornam essa “musicalidade” possível. O que é, portanto, essa “musicalidade”? E como chegar a
ela?

Trabalhar uma obra “musicalmente” trata-se de trazer à consciência coisas que já se


sentem, mas estão desorganizadas dentro de nós. Trata-se de darmos ouvidos ao que nos é
mais íntimo. A única coisa que nos vai fazer crescer como artistas nesse sentido é a experiência
em si. É deixarmos certas capacidades amadurecerem naturalmente, sem pressa de chegarmos
a um resultado absolutamente nal em relação a uma obra em especí co. Para isso é preciso
tempo: para nos podermos relacionar com o nosso corpo espiritual.

Ora, quando se fala em técnica, quer-se trazer à luz todas as ferramentas que não
conhecemos (nem teríamos forma de conhecer, não nos fossem elas apresentadas), necessárias
para traduzir aquilo que o nosso corpo espiritual quer partilhar com o mundo. Nela, a intuição não
tem um resultado tão e caz. Entramos aqui na relação com o nosso corpo físico.
Será a razão pela qual se tem insistido tanto no desenvolvimento deste corpo espiritual
uma pseudo-terapia pessoal pelo dé ce de con ança no corpo físico? Vivemos num tempo
riquíssimo em interpretações diferentes da mesma obra e não seríamos humanos se não
sentíssemos medo. O medo do artista no século XXI é a falta de originalidade na sua arte ou,
mais especi camente, falta de “musicalidade”. Esse medo pode, facilmente, tornar-se uma
obsessão e essa, claro está, passará para os alunos. Será justo da nossa parte pedirmos a
alunos mais novos que compreendam a forma como vemos a música? Alunos que não tiveram
ainda muitas das experiências que tivemos, muitos dos amores pelos quais rimos e chorámos,
relações interpessoais que nos ajudaram numa metamorfose para o que somos hoje?

Seria, talvez, igualmente interessante preparar os alunos para que pudessem experienciar
o mundo pelos seus próprios olhos, dando-lhes apenas ferramentas para o fazerem. Ou seja,
seria importante fazer um trabalho que os prepare tecnicamente para a música que os espera,
partilhando a nossa relação com ela mas não impingindo neles a mesma relação. Até porque a
nossa relação com a música é directamente in uenciada por variadíssimos factores (o sítio onde
a aprendemos, a idade com que a ouvimos pela primeira vez, as pessoas com quem acerca dela
falámos, etc.), mas a nossa relação com o nosso corpo é muito mais objectiva e de ne uma
fundação importantíssima para que lhe consigamos dar vida.

Estimular o corpo espiritual sem desenvolver o corpo físico resulta num desequilíbrio que
poderá ser perigoso - a música depende, também, da sua execução técnica. Estes dois corpos
não podem ser separados. E essa é uma realidade defendida pelos grandes músicos da história
da música.

Pedro Lopes (Nº 4100083)

Mestrado em Ensino da Música - Variante Instrumento (Piano)


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