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A destinação universal dos

bens, primeiro princípio de


toda a ordem ético-social
Temos apresentado análises de alguns
pontos da Encíclica Centesimus annus
de João Paulo II, que completou 30
anos em 2021. "Um texto que
apresenta um capítulo inteiro sobre a
destinação universal dos bens, um
princípio da doutrina social católica
infelizmente bastante ignorado. Essa
ignorância dá ocasião não só à
instrumentalização político-ideológica
da fé cristã, como também a uma grave
distorção no modo como
compreendemos e vivemos as
implicações éticas da nossa fé", explica
Felipe Koller.

São João Paulo II em Angola, em 1992 

Vatican News

"Transformar a realidade social com a força do


Evangelho, testemunhada por mulheres e
homens fiéis a Jesus Cristo, sempre foi um
desafio e, no início do terceiro milênio da era
cristã, ainda o é. O anúncio de Jesus Cristo
«boa nova» de salvação, de amor, de justiça e
de paz, não é facilmente acolhido no mundo
de hoje, ainda devastado por guerras, miséria
e injustiças; justamente por isso o homem do
nosso tempo mais do que nunca necessita do
Evangelho: da fé que salva, da esperança que
ilumina, da caridade que ama. A Igreja, perita
em humanidade, em uma espera confiante e
ao mesmo tempo operosa, continua a olhar
para os «novos céus» e para a «terra nova»
(2Pd 3, 13), e a indicá-los a cada homem, para
ajuda-lo a viver a sua vida na dimensão do
sentido autêntico. «Gloria Dei vivens homo»:
o homem que vive em plenitude a sua
dignidade dá glória a Deus, que lha conferiu."
(Cardeal Renato Raffaele Martino, na
apresentação do Compêndio da Doutrina
Social)

Depois de “Na base da doutrina social, a


concepção cristã de pessoa” e “Buscar a
justiça, atravessar o conflito, custodiar a
dignidade: o caminho da doutrina social”, o
teólogo Felipe Sérgio Koller* dá sequência a
sua série de reflexões sobre o pensamento
social de São João Paulo II, tratando hoje da
"destinação universal dos bens, primeiro
princípio de toda a ordem ético-social":

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-8:17

"Na sua última Encíclica, Fratelli tutti,


publicada em 2020, o Papa Francisco abordou
entre outros temas uma das questões mais
centrais da doutrina social católica: a
destinação universal dos bens. Nos números
118 a 120 do documento, o Papa se dedica a
repropor a função social da propriedade —
mas, em alguns círculos, o tema caiu como se
fosse uma novidade, ainda que nesse trecho
Francisco citasse os Padres da Igreja,
nomeadamente São João Crisóstomo e São
Gregório Magno, e seus predecessores São
Paulo VI e São João Paulo II. É da Encíclica
Laborem exercens, do Papa polonês, que se
extrai, por exemplo, uma das ideias mais
relevantes a esse respeito: a afirmação de que
“o princípio do uso comum dos bens criados
para todos é o ‘primeiro princípio de toda a
ordem ético-social’, é um direito natural,
primordial e prioritário” (FT 120).

Estamos nos dedicando nos últimos meses ao


estudo de alguns pontos da Encíclica
Centesimus annus, também de João Paulo II,
que completou 30 anos em 2021. É um texto
que apresenta um capítulo inteiro sobre a
destinação universal dos bens, um princípio
da doutrina social católica infelizmente
bastante ignorado. Essa ignorância dá ocasião
não só à instrumentalização político-
ideológica da fé cristã, como também a uma
grave distorção no modo como
compreendemos e vivemos as implicações
éticas da nossa fé.

11/12/2021

A fé católica ensina que os bens da criação


têm um destino comum, e apenas a essa luz é
que é possível entender as diversas questões
que emergem na vida em sociedade, entre
elas o direito à propriedade privada. Como em
tudo na doutrina social da Igreja, o quadro
antropológico, isto é, a concepção de ser
humano em que se entende a questão da
propriedade não é nem o individualismo nem o
coletivismo: é a noção de pessoa, isto é, a de
sujeito único e irrepetível, aberto às relações,
que só se realiza na vida de comunhão. É uma
visão que, como já vimos, transborda a partir
da própria revelação de Deus como comunhão
trinitária.

Por isso, como escreveu Santo Tomás de


Aquino, citado por Leão XIII na Encíclica
Rerum novarum e por São João Paulo II na
Centesimus annus (n. 30), “o homem não
deve possuir os bens externos como próprios,
mas como comuns”. Na raiz dessa concepção
está o seguinte: “A origem primeira de tudo o
que é bem é o próprio ato de Deus que criou a
terra e o homem, e ao homem deu a terra para
que a domine com o seu trabalho e goze dos
seus frutos (cf. Gn 1,28-29)”, ou seja, “Deus
deu a terra a todo o gênero humano, para que
ela sustente todos os seus membros sem
excluir nem privilegiar ninguém”, escreve João
Paulo II (n. 31).

“Importa salientar também que a justiça de


um sistema sócio-econômico e, em
qualquer hipótese, o seu justo
funcionamento, devem ser apreciados, no
fim de contas, segundo a maneira como é
equitativamente remunerado o trabalho
nesse sistema. Quanto a este ponto, nós
chegamos de novo ao primeiro princípio de
toda a ordem ético-social, ou seja, ao
princípio do uso comum dos bens. Em
todo e qualquer sistema,
independentemente das relações
fundamentais existentes entre o capital e o
trabalho, o salário, isto é, a remuneração
do trabalho, permanece um meio concreto
pelo qual a grande maioria dos homens
pode ter acesso àqueles bens que estão
destinados ao uso comum, quer se trate
dos bens da natureza, quer dos bens que
são fruto da produção. Uns e outros
tornam-se acessíveis ao homem do
trabalho graças ao salário, que ele recebe
como remuneração do seu trabalho. Daqui
vem que o justo salário se torna em todos
os casos a verificação concreta da justiça
de cada sistema sócio-económico e, em
qualquer hipótese, do seu justo
funcionamento. (Carta Encíclica Laborem
exercens - João Paulo II)”

A questão da propriedade individual se


entrelaça com a destinação universal dos
bens da criação através do tema do trabalho.
É pelo trabalho que o ser humano cultiva a
terra e a si mesmo, fazendo dela morada
habitável para todos — casa comum. Daí o
fato que o vínculo entre terra e trabalho esteja
na origem de toda sociedade humana. É o
trabalho o elo que liga o direito relativo à
propriedade individual ao princípio absoluto
da destinação universal dos bens. O trabalho,
exercido em favor do bem comum, é a razão
de ser da propriedade individual.

São João Paulo II explica: “O homem realiza-


se através da sua inteligência e da sua
liberdade e, ao fazer isso, assume como
objeto e instrumento as coisas do mundo e
delas se apropria. Neste seu agir, está o
fundamento do direito à iniciativa e à
propriedade individual. Mediante o seu
trabalho, o homem empenha-se não só para
proveito próprio, mas também para os outros
e com os outros: cada um colabora para o
trabalho e o bem dos outros. O homem
trabalha para acorrer às necessidades da sua
família, da comunidade de que faz parte, da
nação e, em definitivo, da humanidade inteira”
(n. 43).

22/10/2021

Na base da doutrina social, a concepção


cristã de pessoa

É nesse sentido que João Paulo II, procurando


ler a situação do seu tempo à luz dos
princípios da doutrina social da Igreja, elenca
o que há de positivo no modelo de economia
empresarial que se consolidava. “Organizar
um tal esforço produtivo, planejar a sua
duração no tempo, procurar que corresponda
positivamente às necessidades que deve
satisfazer, assumindo os riscos necessários:
também esta é uma fonte de riqueza na
sociedade atual. Assim aparece cada vez mais
evidente e determinante o papel do trabalho
humano disciplinado e criativo e — enquanto
parte essencial desse trabalho — das
capacidades de iniciativa empresarial”,
escreve ele (n. 32).

No entanto, isso envolve, por um lado, o


cuidado das sociedades para que as pessoas
tenham acesso efetivo a esse mundo de
possibilidades e, por outro, o reconhecimento
dos limites aos quais deve se circunscrever
esse tipo de atividade. A economia de
mercado precisa de controle social e estatal,
porque sozinha não dá conta de tutelar e
promover os valores fundamentais da pessoa,
podendo se voltar contra o ser humano,
reduzindo o seu trabalho e ele próprio a
simples mercadoria. “Há necessidades
coletivas e qualitativas que não podem ser
satisfeitas através dos mecanismos do
mercado; existem exigências humanas
importantes que escapam à sua lógica; há
bens que, devido à sua natureza, não se
podem nem se devem vender e comprar”, diz
João Paulo II (n. 40).

Quando a economia não está a serviço da


liberdade humana integral, “é correto falar de
luta contra um sistema econômico”, diz João
Paulo II (n. 35). Uma vivência autêntica da fé
cristã necessariamente transborda no desejo
por uma sociedade mais justa e solidária em
todos os níveis — uma genuína “civilização do
amor”, como gostava de dizer São Paulo VI. “É
necessário, por isso, esforçar-se por construir
estilos de vida nos quais a busca do
verdadeiro, do belo e do bom, e a comunhão
com os outros homens, em ordem ao
crescimento comum, sejam os elementos que
determinam as opções do consumo, da
poupança e do investimento”, afirma a
Centesimus annus (n. 36).

Como tudo na vida cristã, também a


propriedade é algo que só se compreende e
se justifica à luz de uma vida de comunhão. E
nisso João Paulo II é bem enfático: “A posse
dos meios de produção, tanto no campo
industrial como no agrícola, é justa e legítima,
se serve para um trabalho útil; pelo contrário,
torna-se ilegítima, quando não é valorizada ou
serve para impedir o trabalho dos outros, para
obter um ganho que não provém da expansão
global do trabalho humano e da riqueza social,
mas antes da sua repressão, da ilícita
exploração, da especulação e da ruptura da
solidariedade no mundo do trabalho.
Semelhante propriedade não tem qualquer
justificação, e constitui um abuso diante de
Deus e dos homens” (n. 43)."

*Felipe Sérgio Koller, leigo, teólogo, Mestre e


Doutorando em Teologia pela PUC-PR,
professor dos cursos de especialização da
Faculdade São Basílio Magno, em Curitiba, e
da Católica de Santa Catarina, em
Joinville,  co-fundador da Oficina de Nazaré
(@oficina.de.nazare no Instagram), um projeto
que fala da espiritualidade cristã nas redes
sociais.

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