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XI Encontro de Pesquisa em Ensino de Física – Curitiba – 2008 1

A NATUREZA DA CIÊNCIA EM LIVROS DIDÁTICOS DE FÍSICA

NATURE OF SCIENCE IN PHYSICS TEXTBOOKS


Cibelle Celestino Silva1, Cassiano de Rezende Pagliarini2

1Universidade de São Paulo/Institu to de Física de São Carlos /cibelle@ifsc.usp.br


2Universidade de São Paulo /Instituto de Física de São Carlos/pagliarini@gmail.com

Resumo

Pesquisas atuais na área de ensino de ciências têm enfatizado a importância


de uma formação científica humanística que seja ampla e geral, mais significativa
para estudantes em todos os seus níveis de ensino. Assim, considerando o âmbito
das pesquisas sobre as potencialidades do uso da história da ciência no ensino e a
importância de se ensinar sobre a natureza da ciência, torna-se relevante pesquisar
a presença desses conteúdos nos livros didáticos de física. Sendo assim, este
trabalho analisa como a história da ciência é apresentada por alguns dos mais
populares livros didáticos de física para o ensino médio no Brasil, bem como as
concepções sobre a natureza da ciência envolvidas nestas narrativas históricas.
Geralmente, a história da ciência encontrada nos livros didáticos é distorcida e
simplificada, o que se chama de pseudo-história, reforçando alguns conhecidos
mitos científicos e transmitindo falsas concepções acerca da natureza da ciência a
estudantes e professores. Nesta análise, também buscamos verificar a influência de
documentos e programas norteadores, como os PCN e o PNLEM, nos conteúdos de
HFC nos livros analisados .

Palavras-chave : História da Ciência, Natureza da Ciência, Livros Didáticos,


Pseudo-história, Mitos Científicos .

Abstract

There is agreement in Brazilian and international science teaching


community concerning the relevance of teaching history and notions of nature of
science at high-school level. Influenced by academic researches, history of science
and concepts about nature of science were included in Brazilian scientific curricula
during the last decade. Indeed, textbooks play an important role in science
education, and usually are the main didactic tool used by teachers and their pupils,
performing a big influence on the nature of science taught at classrooms. The
present paper analyses how and which kind of history appears in some of the most
popular Brazilian physics textbooks, focusing on the concepts concerning the nature
of science brought by these historical narratives. Generally, these books present
pseudo-history, what reinforces myths about scientists and mislead teachers and
students on their understanding of the nature of science. Finally, we discuss some
perspectives and actions towards the improvement of the quality of historical and
philosophical contents in textbooks.

Keywords: History of Science, Nature of Science, Textbooks, Pseudo-


History, Scientific Myths.
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Introdução

As pesquisas atuais na área de ensino de ciências têm enfatizado a


importância de uma educação científica mais contextualizada e humanística que
possa ser útil a todos os cidadãos e não apenas aos que lidam diretamente com
conhecimentos científicos em sua vida profissional. Na busca de diferentes
metodologias e abordagens no ensino discutidas na área de ciências, tem-se dado
grande atenção ao uso da história e filosofia da ciência (HFC), sendo as suas
tentativas, justificativas, pontos favoráveis e contrários, implicações e os possíveis
resultados, algumas das preocupações atuais de pesquisas na área de ensino de
ciências (MARTINS, 1990; PEDUZZI, 2001). Podemos dizer que, numa perspectiva
geral, o trabalho em sala de aula com tópicos e lições sobre HFC é uma das
estratégias que pode contribuir de forma inestimável para promover um ensino
científico mais contextualizado, humanizando o conteúdo a ser ensinado,
favorecendo uma compreensão mais ampla dos conceitos científicos e também
sobre a forma como a ciência opera e sua relação com a sociedade (MATTHEWS,
1994; McCOMAS et al., 1998).
Atualmente, o livro didático assume um papel crucial na educação,
particularmente no ensino de ciências, uma vez que é a ferramenta base na relação
entre o trabalho didático e os conteúdos ensinados pelos professores e também
para os alunos, sobretudo fora da sala de aula. Desta forma, considerando o
contexto das pesquisas sobre as potencialidades do uso da história da ciência no
ensino e a importância de se ensinar sobre a natureza da ciência (NdC), além de
não som ente seus resultados, torna-se importante pesquisar a presença desses
conteúdos nos livros didáticos, dada sua grande influência no ensino e também o
fato de que o livro didático não é desprovido de conteúdos desse tipo.
Neste trabalho analisamos como a história da ciência é apresentada por 16
coleções didáticas, incluindo vários dos mais populares livros didáticos de física para
o ensino médio no Brasil, bem como as concepções sobre a natureza da ciência
envolvidas nestas narrativas históricas. Embora seja quase senso comum afirmar
que os livros didáticos estão repletos de erros e problemas, tanto do ponto de vista
de conteúdo quanto de abordagens metodológicas, não encontramos estudos que
analisam os conteúdos históricos e as noções acerca da NdC induzidas por eles em
uma ampla gama de livros de física tomando como parâmetro as influências das
políticas curriculares recentes espelhadas nos Parâmetros Curriculares Nacionais
(PCN) e Programa Nacional de Livro Didático para o Ensino Médio (PNLEM).

A pseudo-história da ciência e os mitos históricos

Numa aula de qualquer uma das disciplinas científicas no ensino médio,


grande parte, e talvez até sua totalidade, da atenção didática dispensada pelo
professor fica a cargo de conteúdos específicos compostos de conceitos e
resultados prontos, deixando de lado importantes discussões históricas e filosóficas.
Discussões estas que poderiam esclarecer alguns aspectos obscuros em certas
teorias científicas, além de derrubar alguns dogmas muito comuns sobre a natureza
da ciência.
A inserção da HFC no ensino abre portas para diversas novas possibilidades
que favorecem a contextualização sócio-cultural dos conteúdos abordados, tais
como a importância de idealizações científicas, o papel da criatividade e do poder de
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abstração do ser humano, bem como questões sociológicas, como o contexto


político, social e econômico de sua época e influências das crenças dos cientistas
(MATTHEWS, 1994). Desta forma, entende-se que trabalhando com sua história e
filosofia valoriza-se o caráter dinâmico da ciência, mostrando aos estudantes sua
dependência de contextos históricos e culturais, e assim derrubando conhecidos
mitos, humanizando os famosos gênios e ainda mostrando que o conhecimento
científico atualmente aceito é passível de transformaç ões (SILVA, MARTINS, 2003).
Se por um lado, aspectos histórico-filosóficos contribuem nessas questões
para promover o ensino de ciências, por outro a sua ausência e, sobretudo seu mau
uso, acabam por gerar visões distorcidas da natureza da ciência (SILVA,
PIMENTEL, 2007). Narrativas históricas distorcidas dão sustentação a visões de
senso comum sobre a ciência, que são baseadas em concepções empírico-
indutivistas e passam a idéia de que a ciência seria composta de verdades
inquestionáveis. Por isso argumentos de autoridade e de verdade científica são
costumeiramente invocados em diversas explicações.
As falsas impressões sobre a natureza da ciência que cercam alunos e
professores são, muitas vezes, frutos da má qualidade dos elementos de história e
filosofia da ciência presentes no ensino. A história da ciência presente no ensino
secundário e também na cultura é distorcida e demasiada simples, é a chamada
pseudo-história, sendo uma de suas características marcantes aqueles estereótipos
de senso-comum sobre o que é fazer ciência e sobre os cientistas (ALLCHIN, 2004).
Considerando esses estereótipos, a primeira importante característica ou
percepção sobre a ciência que vem à mente da maioria dos estudantes talvez seja a
existência de um método científico universal, o qual todas as pessoas que façam ou
desejam fazer ciência devem seguir. De uma maneira geral esses passos comuns
que são seguidos pelos cientistas se apresentam da seguinte maneira: um primeiro
estágio onde é necessário definir o problema a ser estudado; por meio de algumas
informações anteriores sobre o problema, se existentes, deve-se então formular uma
hipótese; em seguida vem um dos momentos cruciais do método científico onde se é
necessário fazer rigorosas medições e observações acerca do problema estudado
para assim ser possível um teste rigoroso da hipótese formulada; finalmente,
confirmada ou não a hipótese, tem-se as conclusões onde se comunicam os
resultados obtidos (McCOMAS, 1996).
Ainda dentro destes estereótipos acerca da ciência e seu método, outras
diversas concepções falsas podem emergir. Dentro do próprio método talvez esteja
o fato de que dados e evidências coletados rigorosamente resultarão na produção
de conhecimento científico. Este procedimento empírico-indutivista trás a idéia de
que a simples observação culmina na obtenção de uma nova lei ou teoria científica
puramente de maneira mecânica. Fica assim claramente perdida a importante lição
de que a ciência não tem nenhum método universal, sendo os fatores humanos da
ciência perdidos, tal como a imaginação, criatividade e até mesmo os erros
cometidos ao longo de seu desenvolvimento (WHITAKER, 1979).
Por fim, outro grande erro de concepção presente nestes estereótipos de
senso comum reside no fato de que ciência está em busca e sempre alcança uma
verdade absoluta. Desta maneira, seu caráter dinâmico, temporal e dependente do
contexto fica totalmente desfigurado, pois, segundo estas concepções, os resultados
aceitos hoje são os corretos, e, portanto, definitivos.
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Como destacado em (MARTINS, 2006), diversos exemplos de pseudo-


história, que transmitem os estereótipos acima discutidos, estão presentes tanto no
ensino de ciências como na cultura popular. A pseudo-história tem uma estrutura
que utiliza diversos artifícios retóricos que podem ser identificados, sendo estes
responsáveis pela existência de alguns conhecidos mitos sobre descobertas
científicas. Dentre inúmeras características presentes nos mais populares mitos,
podem ser destacadas algumas que formalizam sua arquitetura: grandiosidade dos
cientistas; idealização sobre algumas realizações; drama afetivo durante seu
desenvolvimento; e seu caráter justificativo implicando sempre em uma “moral da
história”. Assim, a partir desses elementos podem-se identificar algumas narrativas
com caráter pseudo-históric o que não devem ser utilizadas no ensino,
principalmente aquelas que tratam os cientistas como grandes gênios, onde suas
idéias são construídas única e exclusivamente a partir de sua extrema capacidade,
perdendo-se as contribuições externas e as influências sócio-culturais e retratando
apenas seus traços caricaturais e dramas pessoais (ALLCHIN, 2003; 2004).

História e Natureza da Ciência e m livros didáticos: categorias de


análise

No contexto educacional do ensino médio, o livro didático é uma ferramenta


de grande importância, uma vez que assume o papel de um suporte estável para a
atividade do professor dentro da sala de aula. Ele ainda funciona como uma fonte
segura de conhecimento, tanto para professores e alunos, sendo para ambos a
referência principal fora da sala de aula.
A análise foi realizada preocupando-se com a quantidade e qualidade de
conteúdos históricos existentes e também com sua forma de apresentação e
abordagem dentro da proposta didática de cada livro. Outro ponto importante foi a
preocupação em estar atento em relação à presença ou indícios de pseudo-história,
mitos científicos e relatos acerca do “método científico”. Em sua maioria, a busca e
coleta de dados foram realizadas na Biblioteca do Livro Didático da Faculdade de
Educação da Universidade de São Paulo (BLD-FEUSP). Outras obras foram
encontradas no acervo da Biblioteca do Centro de Divulgação Científica e Cultural
(CDCC-USP-SC) de São Carlos. Com a intenção de buscar subsídios para uma
discussão mais profunda acerca de alguns conteúdos e abordagens históricas de
livros didáticos de física para o ensino médio, analisamos dezesseis coleções
didáticas (identificadas por letras, de A até P) editadas desde a década de 1980 até
os dias atuais1.
Para proceder a análise das coleções de livros didáticos, foram construídas
categorias principais, subdivididas em subcategorias, visando contemplar a
diversidade de abordagens históricas encontradas e até mesmo conteúdos que têm
estreita relação com a divulgação de noções acerca da natureza da ciência. As três
categorias principais ficaram assim definidas: a primeira em relação à forma como
materiais históricos são encontrados na coleção didática; a segunda diz respeito às
idéias veiculadas acerca da natureza da ciência; e, por fim, a última categoria
considera a qualidade da informação histórica apresentada.
Dentro da primeira categoria, encontramos livros didáticos onde o conteúdo
historiográfico fora apresentado de três diferentes maneiras. A primeira se

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Os livros analisados estão no anexo 1.
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caracteriza pela ausência de material de cunho histórico (1.1). Já a segunda tem


como característica aquela apresentação específica e isolada, isto é, os conteúdos
históricos têm seu lugar próprio durante o desenvolvimento do texto, seja em seções
introdutórias e textos complementares ao final de capítulos ou até mesmo em
“boxes” separados, inseridos próximos a discussões de assuntos correlatos ao longo
do livro (1.2). Por fim, a história da ciência também foi encontrada nos livros
didáticos com seus conteúdos, abordagens e discuss ões diluídas ao longo do texto,
juntamente com o desenvolvimento formal de teorias, conceitos, definições e
equações de um livro ordinário de física (1.3).
A segunda categoria analisa quais idéias acerca da natureza da ciência são
veiculadas nos livros e divide-se em três diferentes subcategorias. A primeira delas
(2.1) é caracterizada por menções implícitas ao método, isto é, quando eram apenas
apresentados os seus procedimentos de forma diluída ao longo do texto, enquanto
que a segunda (2.2) por menções explícitas, ou seja, quando o livro discutia seus
procedimentos denominando-o de “método científico” ou ainda “método
experimental”, etc. Já a terceira subcategoria é aquela onde a natureza do
empreendimento científico é discutida como uma construção humana, destacando
as diversas contribuições e que não existia método único e universal para construir e
se fazer ciência (2.3).
Por fim, na terceira e última categoria, aquela onde a atenção foi dirigida
para a qualidade das informações históricas apresentadas pelas coleções didáticas,
emergiram quatro diferentes subcategorias. A primeira delas é relativa aos livros
onde uma história demasiada simples foi encontrada, caracterizada pela presença
apenas de datas e notas bibliográficas curtas sobre os cientistas e alguns de seus
estudos (3.1). A segunda subcategoria diz respeito à abordagem histórica
encontrada nos livros conhecida como “historiografia Whig” (3.2). A terceira é
relativa à pseudo-história, ou seja, àquela história da ciência que contém elementos
distorcidos e indícios de características dos mitos científicos (3.3). Por fim, a quarta
e última subcategoria é aquela onde os conteúdos históricos complementam a
abordagem do conteúdo científico de maneira satisfatória, com discussões
interessantes e transmitindo valores históricos pertinentes ao ensino de física (3.4).
A tabela 1 apresenta uma síntese das categorias e subcategorias usadas na
análise. A tabela 2 apresenta de forma simplificada uma visão geral de como as
dezesseis coleções didáticas analisadas se inserem nas categorias e subcategorias
de nosso estudo.
Notamos então que na primeira categoria, com exceção da coleção C (1.1),
todas as coleções analisadas possuem conteúdos históricos, que são apresentados
em “boxes” e seções específicas, como em introduções históricas ou textos
complementares ao final do capítulo (1.2). Em cinco coleções (D, F, H, I e P)
notamos também uma sobreposição com a subcategoria 1.3, já que em
determinados assuntos o conteúdo histórico apresentou-se diluído ao longo do texto
além de suas seções específicas.

Categoria Subcategoria Definição


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1.1 Não possui nenhum conteúdo histórico


Em relação à forma
de apresentação do Contém “boxes” e seções específicas sobre a história
1.2
material histórico da ciência ao longo dos cap ítulos

1.3 O conteúdo histórico aparece diluído ao longo do texto

Discussões que fazem menção implícita ao “método


2.1 científico”
Em relação às idéias
de natureza da 2.2 Discussões explícitas sobre o “método científico”
ciência veiculadas
2.3 Discussões mais sofisticadas sobre a NdC

Contém apenas menções e breves notas biográficas, a


3.1 respeito de cientistas e suas realizações, ao longo dos
capítulos
Em relação à Abordagem histórica que valoriza apenas os
qualidade da 3.2
conhecimentos aceitos atualmente (história whig)
informação histórica
apresentada 3.3 Presença de características dos mitos científicos

3.4 A história da ciência complementa satisfatoriamente a


abordagem do conteúdo científico
Tabela 1. Categorias principais com suas subcategorias e definições.

Já com relação à segunda categoria percebemos uma maior distribuição das


coleções didáticas entre as subcategorias possíveis. Novamente, a maioria das
coleções foi classificada, sendo que apenas as coleções C, L e M não possuíam
nenhum tipo de conteúdos relativos à natureza da ciência e assim não foram
classificadas nesta segunda categoria, referente às idéias acerca da NdC. Entre as
demais notamos que nove dentre as treze coleções que possuíam discussões
referentes à natureza da ciência a fizeram de forma a apresentar idéias sobre o
método científico, sendo sete de forma explícita, onde eram mencionados como
“método científico” ou ainda “método experimental”. Em apenas quatro coleções (H,
I, K e P) foram encontradas discussões onde a ciência era tratada como algo mais
complexo, de caráter humanístico, e que não obedecia a um método rígido,
ressaltando as influências externas e seu caráter dinâmico.

Em relação à forma Em relação às idéias


Categoria de apresentação do de natureza da Em relação à qualidade da
material histórico ciência veiculadas informação histórica apresentada
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Subcategoria 1.1 1.2 1.3 2.1 2.2 2.3 3.1 3.2 3.3 3.4

A A A A A
B B B B

D D D D D D
E E E E
F F F F F F
G G
H H H H
Coleção I I I I

J J J J J
K K K K K
L L L

M M M M
N N N N
O O O O O
P P P P P

Tabela 2. Distribuição das coleções analisadas de acordo com as categorias explicitadas acima.

Considerando a última categoria, onde a análise foi feita com relação à


qualidade da história da ciência encontrada, percebemos uma grande sobreposição
de subcategorias em praticamente todas as obras didáticas. Assim como na primeira
categoria, onde houve sobreposição de subcategorias para certas obras, um
assunto tratado pela coleção vinha acompanhado de uma história da ciência que se
caracterizou por certa subcategoria enquanto em outros assuntos a história
acompanhada encaixou-se numa outra subcategoria.
Nesta terceira categoria, a sobreposição pode ser considerada maior,
principalmente no que diz respeito às subcategorias 3.2 e 3.3, uma vez que, quando
abordando de maneira histórica um conceito ou teoria várias coleções a fizeram
olhando para eles com olhos do presente (historiografia “whig”) enquanto que
quando contextualizando a vida e obra de certo cientista, muitas coleções lançaram
mão de características dos mitos científicos já discutidos anteriormente.
Por outro lado e ainda caracterizando ess a sobreposição de subcategorias,
algumas coleções apresentaram em determinados assuntos uma história da ciência
de forma a complementar de maneira satisfatória o conteúdo a ser ensinado (3.4).
Em menor número, porém também povoada por coleções didáticas, a 3.1, que diz
respeito àquela história simplificada e baseada em pequenas notas biográficas
datadas, também foi caracterizada por exemplos em alguns casos.

Alguns exemplos

Com relação às discussões apresentadas pelas coleções didáticas acerca


da natureza da ciência e também à qualidade de seus conteúdos históricos, é
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interessante exemplificar alguns dos elementos encontrados, principalmente


confrontando aqueles que dão base para as concepções de senso comum sobre a
ciência com aqueles mais sofisticados e que tratam a ciência de forma mais
humana, inserida em toda uma diversidade de contextos.
Como vimos, a maioria das coleções didáticas apresentou discussões sobre
a NdC referindo-se ao método científico direta ou indiretamente, ressaltando apenas
seus “procedimentos” (2.2 e 2.1). Um exemplo interessante é encontrado na coleção
A, que ao se referir à ciência no capítulo introdutório de sua obra destaca que
[...] os cientistas, cada qual com os métodos de pesquisa da época e do lugar,
observam sistematicamente os fenômenos da natureza, tomam dados sobre as
grandezas físicas envolvidas e induzem as leis ou princípios. Eles procuram
estabelecer regras gerais para as explicações dos acontecimentos naturais [11].

Ao final deste capítulo introdutório o autor ainda faz uso de uma citação de
Willian Thompson de modo a finalizar sua discussão acerca da natureza da ciência,
designando certa autoridade à “ciência” por ele apresentada:
Tenho afirmado, muitas vezes, que, quando podemos medir aquilo do qual
falamos e exprimi-lo em números, ficamos conhecendo algo referente ao
assunto; porém, quando não podemos exprimi-los em números, nosso
conhecimento não é satisfatório nem frutífero; ele pode ser apenas um início
de conhecimento, mas nosso pensamento dificilmente terá atingido o
estágio científico, qualquer que seja o assunto em questão [11].
A coleção F também descreveu o desenvolvimento da ciência através dos
passos do método científico, porém de maneira mais enfática e dando maior
destaque a eles. Ela apresenta ao final de seu volume um apêndice intitulado “O
Método Científico”, discutindo qual o objetivo da ciência.
O objetivo da ciência é compreender a natureza. Precisamos de uma
metodologia para organizar as informações. O método científico é um
conjunto de procedimentos aceitos e utilizados pelos cientistas; é um
método de investigação que permite organizar os conhecimentos em forma
de leis, fazer previsões e descrever o que ocorre na natureza. [...]
Determinar o problema > Observar e coletar dados > Elaborar Hipóteses >
Desenvolver experimentos controlados (testar hipóteses) > Avaliar os
experimentos > Testar novamente > Elaborar conclusões (CABRAL, 2002).
Assim percebemos que diversas características da ciência são deixadas de
lado em abordagens simplistas e limitadas como as descritas acima. Além de sua
base empírica, a ciência também faz uso de argumentos não racionais, sendo todo
trabalho do cientista influenciado pelas suas crenças, expectativas, e principalmente
seus conhecimentos anteriores acerca da natureza. Existe, então, todo um plano de
fatores externos que influenciam o trabalho dos cientistas e, aliando isto ao caráter
empírico da ciência, não existe observação neutra e livre de preconceitos ou
pressupostos. Fatos estes que não são contemplados por descrições simplistas e
errôneas como a exemplificada acima.
Algumas coleções ainda fizeram o uso da pseudo-história da ciência
(subcategorias 3.2 e 3.3), o que também induz concepções equivocadas sobre o
desenvolvimento da ciência e também sobre sua natureza. A coleção A, ao
introduzir um capítulo sobre os princípios da dinâmica, tenta descrever as idéias de
Galileu Galilei sobre o movimento dos corpos, porém o faz de maneira simplista e
com a abordagem da historiografia “whig”, utilizando os conceitos, nomenclaturas e
idéias atuais; além de apresentar erros historiográficos grosseiros ao mencionar o
desenvolvimento da lei da inércia.
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Até a Idade Média, os homens acreditavam que um movimento só poderia ser


mantido se existisse uma força. Era um raciocínio incorreto, segundo o qual o estado
natural de um corpo era somente o repouso. Mas o italiano Galileu Galilei (1564-
1642) introduziu a idéia de que o estado natural de uma partícula não era apenas o
repouso, mas também o MRU. Segundo esse sábio, uma partícula, por si só, não
altera sua velocidade vetorial, ou seja, sob força resultante nula, não modifica seu
estado de repouso ou de MRU. Essa idéia, apresentada por Galileu, é a lei
conhecida como princípio da inércia ou 1ª lei de Newton, pois foi reestudada pelo
inglês Isaac Newton (1642- 1727) (SHIGEKIYO et al ., 1993).

Outro artifício bastante usado pelas coleções, com relação à pseudo-história,


foi a apresentação de mitos sobre episódios e personagens históricos (subcategoria
3.3). Em diversas coleções, textos complementares sobre alguns cientistas famosos
utilizaram aqueles elementos comuns que estão presentes nos populares mitos
históricos. Referências históricas sobre as vidas e obras de Einstein, Galileu,
Arquimedes, Franklin entre outros, os consideram grandes gênios, não relatando o
conhecimento e as colaborações científicas da época, a contribuição de vários
outros pesquisadores para o estudo dos mesmos assuntos, erros cometidos,
dificuldades enfrentadas, entre outros. Ainda sobre esses mitos, algumas de suas
contribuições à ciência foram totalmente idealizadas, resultando nas famosas
histórias sobre Galileu e o pêndulo, Arquimedes e a banheira (seu grito de “eureka”),
Franklin e a pipa, dentre outros.
Porém, há coleções em que tanto a história da ciência quanto a natureza da
ciência foram tratadas de forma razoavelmente satisfatória (subcategorias 2.3 e 3.4),
refutando as concepções de senso comum, principalmente em relação ao “método
científico” exemplificado anteriormente. A coleção I faz uma vasta discussão em seu
capítulo introdutório onde deixa claro que a física é uma construção humana. Nessa
discussão é a ciência tratada desde as formas primitivas de conhecimento, onde o
homem definiu a duração do dia, as estações do ano, a melhor época para plantar e
colher, etc, visando à melhoria da vida cotidiana, até a estrutura da ciência como
conhecemos hoje, organizadas em sociedades e academias. É esclarecido ainda
que “[...] as concepções dos físicos a respeito dos fenômenos naturais sofrem
reformulações ao longo do tempo” e que ocorrem “[...] mudanças revolucionárias na
forma de a física entender a natureza” (GASPAR, 2004).
Discutindo especificamente sobre a natureza da ciência, o autor descreve no
início da seção “Como a ciência funciona” que
[...] embora seja comum falar em um método científico, composto de uma série de
procedimentos que possibilitariam novas descobertas, é pouco provável que alguma
descoberta científica o tenha seguido com rigor.
A idéia de que hipóteses e teorias surjam da observação dos fatos ou da
experimentação não é verdadeira. Que fatos? Que experiências? A seleção de
determinados fatos ou a realização de determinadas experiências indicam que, na
verdade, as hipóteses e as teorias a investigar já existem. Em outras palavras, as
experiências são feitas ou os fatos são observados em razão de alguma hipótese
teórica previamente formulada.
Dessa forma, uma nova teoria pode dar a um fato cientificamente corriqueiro, como
um eclipse solar, uma importância excepcional. É o caso do eclipse solar que, em
1919, trouxe dezenas de cientistas de todo o mundo a Sobral, cidade do Ceará, local
privilegiado para a observação daquele eclipse. O objetivo era verificar se a luz sofre
atração gravitacional, fenômeno chamado na época de desvio de Einstein, previsto
na sua então recém-formulada Teoria da Relatividade Geral.
[...] Esse desvio de luz ao passar junto ao Sol já havia ocorrido centenas de vezes,
em todos os eclipses solares anteriores, mas nunca havia sido observado, até uma
previsão teórica dirigir a atenção para ele. Não é a observação que origina a teoria,
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mas, como o próprio Einstein dizia, ‘é a teoria que decide o que deve ser observado’
(GASPAR, 2004).

Este tipo de abordagem, certamente é um avanço em relação a maioria dos


livros didáticos. No entanto, ainda apenas alguns parágrafos acerca da NdC não é
suficiente para que o assunto seja tratado de forma adequada em sala de aula, pois
concepções equivocadas de estudantes e professores acerca da ciência não são
simples de serem mudadas. É necessária uma abordagem explícita (Akerson et al.
2000, Bianchini & Colburn, 2000, Khishfe & Abd-El-Khalick, 2002) destes assuntos
através de atividades que chamem a atenção e realmente discutam a questão.

Considerações Finais – desafios e perspectivas

Neste artigo buscamos verificar a influência de documentos e programas


norteadores, como os PCN e o PNLEM, nos conteúdos de HFC nos livros
analisados. Por esta análise de livros didáticos de física para o ensino médio,
percebemos que com relação à história e à natureza da ciência é comum
encontrarmos discussões demasiadas simples e que transmitem concepções de
senso comum sobre a ciência. Seus conteúdos são baseados na chamada pseudo-
história, sendo sua tônica uma abordagem através da historiografia whig e
elementos dos populares mitos sobre cientistas famosos.
Porém, vimos também que algumas coleções possuem conteúdos e
discussões mais sofisticadas acerca da história e natureza da ciência (coleções
inseridas nas subcategorias 3.4 e 2.3). Podemos atribuir esta relativa melhoria nos
conteúdos de HFC nos livros didáticos a uma influência de dois programas nacionais
de educação no Brasil: os PCN e o PNLEM. Os Parâmetros Curriculares Nacionais
(PCN), de 1997, são diretrizes curriculares baseadas em habilidades e
competências que os alunos devem ter ao completar cada ciclo do ensino. Nessas
diretrizes vemos claramente a influência de um ensino mais humanístico, cultural e
cidadão em todas as áreas de conhecimento, inclusive na disciplina de física. Já o
Programa Nacional de Livros para o Ensino Médio (PNELM), de 2007, avalia livros
que serão adquiridos pelo governo federal para a utilização no ensino publico
brasileiro. O fato de os livros serem avaliados considerando critérios sobre a forma
como a natureza da ciência é apresentada e também a presença da história da
ciência, entre outros critérios de qualidade, força as editoras e os autores de livros
didáticos a mudarem a qualidade como estes conteúdos são apresentados. Assim
nota-se uma mudança de abordagem dos livros didáticos de física, em relação aos
conteúdos de história e NdC, da última década até os dias atuais. Nesta análise, isto
ficou exemplificado já que alguns autores melhoraram os conteúdos sobre a HFC e
a NdC presentes em suas obras mais recentes em relação a obras antigas e
anteriores ao PCN, como no caso das coleções P e M .
Os exemplos discutidos acima, evidenciam o grande desafio e o longo
caminho que devem ser percorridos tanto por autores de livros didáticos,
educadores e historiadores para que a inserção de conteúdos de HFC nos livros
seja feita de forma satisfatória. Para isso devem ser considerados aspectos relativos
à seleção, pertinência e correção das informações históricas presentes. Além disso,
como muito bem aponta Martins (2007), as abordagens metodológicas para inserção
de HFC no ensino também precisam ser pesquisadas em mais detalhes. Apesar de
defesas da importância da inserção da HFC no ensino já serem feitas desde a
metade do século XIX (WHEWELL 1954), atualmente há pouca colaboração entre
historiadores, educadores, cientistas, professores e políticos. No entanto,
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acreditamos que vários dos problemas aqui apontados poderiam ser superados caso
houvesse um trabalho em conjunto entre estes quatro atores, com particular ênfase
nos professores, tanto do nível fundamental quanto universitário, já que estes são as
peças chave para o sucesso de inovações em sala de aula.

Referências

AKERSON, V. L.; ABD-EL-KHALICK, F. ; LEDERMAN, N. G. Influence of a


Reflective Explicit Activity-Based Approach on Elementary Teachers'
Conceptions of Nature of Science. Journal of Research in Science Teaching,
v. 37, n.4, 295-317, 2000.
ALLCHIN, D. Pseudohistory and pseudoscience. Science & Education, v. 13, n. 3,
p. 179-195, 2004.
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