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A substância do amor, de José Eduardo Agualusa

Ela ainda o amava: "O amor é apenas o princípio do ódio." Dizia estas coisas terríveis com
uma convicção que assustava as amigas. Não, já não o amava, como o podia amar?
(Dizia isto em prantos.)
"O amor? O amor é uma vertigem. Fechamos os olhos e quando os abrimos o nosso amor
5 quer-nos matar. O amor está para o ódio como a flor para o fruto. Há amores que não
frutificam, é verdade, são amores menores. O grande amor passa. Só o ódio fica."
Dizia isto com furor. Rasgou todas as fotografias. A seguir voltou a colá-las. Precisava de
ver o rosto dele para melhor o poder odiar.
As amigas tinham a certeza: "Tu ainda o amas." Ela encolhia os ombros: "Os corais", dizia,
10 "são os animais mais inteligentes da criação porque se reproduzem sem que haja necessidade
de qualquer contacto entre o macho e a fêmea."
Depois Ele telefonou. Mandou-lhe flores. Ofereceu-lhe, no Natal, um vestido espantoso – e
acertou no número e na cor e Ela achou-se linda quando se viu ao espelho. "O ódio", explicou às
amigas, "é uma vertigem. Fechamos os olhos e quando os abrimos o nosso ódio quer-nos
15 beijar."
Voltou a colocar as fotografias nas molduras. E sempre que as amigas lhe perguntavam
pelos corais Ela sorria: "não, não, os corais, pensando melhor, não devem ser uma das formas
de vida mais inteligentes do planeta. Não há no mundo nada melhor do que o aconchego de um
abraço."
20 Teria sido um falso ódio ou seria aquilo, pelo contrário, um amor espúrio? Ela passara do
pessimismo mais feroz a um otimismo à prova de bala: "o verdadeiro amor é contraditório."
Agora tinha a certeza de que seria feliz para sempre – e infeliz algumas vezes:
– É preciso conhecer a noite para apreciar o dia.
As amigas cansaram-se dos seus aforismos. Uma irritou-se:
25 – Achas que sabes realmente tudo sobre o amor?
Ela estava tão feliz que não se importou. Não sabia, claro, porque "todo o amor é um
mistério". Mas estava feliz e a felicidade fazia-lhe bem à pele: "Deviam isolar a substância do
amor e colocá-la nos cremes de beleza." Também deixara de sentir dores de cabeça e passara a
dormir melhor. Decidiu mudar-se para casa dele. Amava-o tanto que aceitou o cão dentro de
30 casa (detestava cães). Amava-o tanto que se conformou com o facto de Ele não fazer a barba
todos os dias. Foram de férias a Cuba e quando regressaram Ela descobriu que estava grávida:
– Eventualmente – explicou às amigas –, os corpos dilatam com o amor.
Com isto, sim, toda a gente concordou.

AGUALUSA, José Eduardo – A substância do amor e outras crónicas. 3.ª ed. Alfragide: D. Quixote, 2009. 978-972-20-
3722-8. pp. 57-58

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