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Contar a Lei

François Ost

Prólogo:

A proposta do autor é de repensar o Direito. Um novo direito para um novo século, pois
aquele “vê-se abalado em suas certezas dogmáticas e reconduzido às interrogações essenciais.”
(p. 9). Para tanto, Ost busca na literatura o fio capaz de reconduzir o direito junto à comunidade,
a fim de que recupere sua magia de antanho. Isso, contudo, não será uma tarefa fácil, uma vez
que a desconfiança dos poetas se manteve desde a época de Platão.
O filósofo grego, segundo o autor, já manifestava os “perigos” que aqueles
representavam na República e nAs Leis. Na primeira, “os guardiões multiplicam as providências
contra as seduções da poesia - uma poesia que poderia nos fazer recair na infância. O mais
seguro será ainda banir os poetas da Cidade: sua arte corruptora, que mistura o verdadeiro e o
falso, faz ver os mesmos personagens ora grandes ora pequenos, evoca fantasmas e não se atém à
distinção do bem e do mal. Num Estado regido por leis sábias, não deve haver lugar para essa
espécie de arte que alimenta o elemento mau da alma - aquele que comercia com o sensível e
com o prazer.” (p. 10).
Entretanto, o próprio filósofo grego confessa que, em verdade, os juristas e os poetas são
rivais na arte dos dramas, uma vez que somente um “‘código autêntico de leis pode encenar
naturalmente.’” (p. 11) - (PLATÃO. As Leis. VII, 816-817). Platão reconhece, então, a a tragédia
que seria o mundo do direito e de suas leis.
Apesar deste reconhecimento, a relação entre direito e literatura continua abalada
inclusive em tempos modernos, o que faz com quem Ost proponha a reconciliação entre ambos,
mesmo que entre eles exista um vasto oceano de divergências, sobre as quais o autor discorre:
1. “Enquanto a literatura libera os possíveis, o direito codifica a realidade, a institui por uma
rede de qualificações convencionadas, a encerra num sistema de obrigações e
interdições.” (p. 13). A literatura é a responsável por “pôr em desordem as convenções,
suspender nossas certezas, liberar possíveis - desobistruir o espaço ou liberar o tempo das
utopias criadora. Obviamente, esse efeito passa pelo momento do negativo: para abrir, é
preciso primeiro abalar ou mesmo abater.” (p. 13). Segundo Ost, é função da literatura
criticar o meio social no qual está inserida, o que pode ocorrer através do cômico e do
risível, da tragédia e da análise científica. O primeiro é o gênero que se destaca, que pode
tratar das mazelas do direito tanto de forma direta quanto indiretamente: “em vez de
incriminar frontalmente a escassez do direito (o reinado da arbitrariedade e o poder bruto
da força), a narrativa sugere desordens a que conduz o excesso de direito - o direito
aplicado ao pé da letra.” (p. 14). É o caso, por exemplo, de O Mercador de Veneza. O
segundo, de acordo com Ost, se sobressai nas tragédias onde as mulheres lutam contra a
lei dos homens em prol dos seus mortos - como é o caso de Antígona. E o último se
revela pela análise da realidade, como, por exemplo, em César Birotteau de Balzac, onde
escritor trata da Lei de Falências francesa de 1807 e que, dez meses após a publicação do
livro, foi modificada devido às críticas feitas por Balzac em sua obra de ficção. Também
se incluem nesse rol Tolstoi e Dostoievski. Em conclusão, tem-se que “essa ‘indisciplina’
literária que se insinua nas falhas das disciplinas excessivamente bem instituídas realiza
assim um trabalho de interpelação do jurídico, fragilizando os pretensos saberes positivos
sobre os quais o direito tenta apoiar sua própria positividade.” (p. 15).
2. A segunda diferença entre direito literatura reside no fato de que a primeira “explora,
como laboratório experimental do humano, todas as saídas do caminho”. (p. 15). Em
outras palavras, é função da literatura a indução a novos olhares sobre os outro e sobre o
mundo, abalando nossa zona de conforto.
3. A terceira diferença diz respeito ao “estatuto dos indivíduos de que fala cada um desses
discursos.” (p. 16). Ost afirma que o direito institui papeis já definidos às pessoas a fim
de que seus atos possuam eficácia jurídica. Esses papéis - persona romana -, embora
constituam uma ficção, são rígidos, o que mitiga drasticamente a natural pluralidade
comportamental dos homens. É o caso, por exemplo, do “bom pai de família”, do
“profissional diligente”, do “cidadão médio”, etc. (p. 16). Por outro lado, a literatura
quebra com este esquema inflexível do direito, pois os personagens literários se
caracterizam pela “ambivalência de sua natureza” que se imiscui com a “ambiguidade das
situações que eles enfrentam.” (p. 17). Para o autor, “é comum que esses personagens
ambivalentes conheçam todo tipo de metamorfose.” (p. 17). Ademais, “enquanto o direito
consagra papéis normatizados, a fábula joga sistematicamente com as mudanças de
escala.” (p. 17). O direito estabelece respostas prontas, padronizadas, enquanto que a
literatura incita à “busca interior”, respostas que se alteram de acordo com cada
indivíduo.
4. A quarta diferença, por fim, se encontra no fato de que “enquanto aquele [o direito] se
declina no registro da generalidade e da abstração (a lei, dizem, é geral e abstrata), esta [a
literatura] se desdobra no particular e no concreto.” (p. 18). Ost se questiona se a
“imersão no particular não é o caminho mais curto para chegar ao universal.” (p. 18).

Retorno dialético:

Ost discorre acerca da tese de C. Castoriadis, para o qual “o direito não se contenta em
defender posições instituídas, mas exerce igualmente funções instituintes - o que supõe criação
imaginária de significações sociais-históricas novas e desconstrução das significações instituídas
que a ela se opõem. De maneira inversa, e simetricamente, a literatura não se contenta em atuar
na vertente instituinte do imaginário, ocorre-lhe também apoiar-se sobre formas instituídas.” (p.
19).
Para o autor, o direito esconde no fundo de suas normas as diversas atribulações da
sociedade, que se consubstancializam em interesses e práticas divergentes. A fim de manter a
estabilidade social, “nas histórias contadas e pleiteadas no tribunal, tecem-se a cada dia novas
intrigas que são como a mediação entre a ficção oficial do código e as ficções urdidas pelos
personagens singulares da vida real. Não é raro, nessas condições, que um demandador obstinado
ou um litigante imaginativo obtenha o benefício de uma interpretação inovadora ou mesmo uma
reorientação da jurisprudência que anunciará talvez uma mudança da própria lei. De resto, seria
um erro representar-se a lei sob a forma de um espartilho rígido que não dá nenhuma margem de
ação aos atores: muitas delas, ao contrário, adquirem uma forma supletiva, impondo-se apenas na
falta de outra opção adotada pelos particulares” (p. 20).
Todo esse conflito diário que se transforma em novas interpretações e aplicações da lei é
chamado pelo autor de “‘imaginário jurídico’”, termo empregado originalmente por Arnaud (A. -
J. Arnaud. Critique de la raison juridique. Paris: LGDJ, 1981, p. 333 e s.), sociológo do direito
que “coloca, com acerto, em tensão com as formas oficiais do direito estabelecido ou positivo.”
(p. 20). O “imaginário jurídico” lida com todo o conteúdo sociológico submerso dentro da esfera
do direito, o “‘infra-direito’, gerador das mais diversas formas de costumes, hábitos, práticas e
discursos que não cessam de agir, de certo modo, sobre os modelos oficiais do direito instituído.”
(p. 20).
“De maneira inversa, pode-se afirmar que a literatura não é alheia às normas e às formas
instituídas. Certamente seu registro é o da história individual, mas isso não significa que seu
alcance não seja coletivo ou mesmo universal.” (p. 20-1). A literatura também auxilia na
construção linguística de representações políticas e jurídicas relacionadas com a sociedade,
induzindo assim a novas formas de pensamento crítico, como é o caso, por exemplo, de
Shakespeare, escritor de diversas peças de cujo plano de fundo era um cenário político.
Além disso, “uma terceira pedra de toque das relações que a literatura mantém com as
normas e formas instituídas diz respeito ao domínio da ética. Certamente a literatura se preserva
dos discursos edificantes e não cessa de submeter nossos códigos, nossos estereótipos e nossas
prédicas a um eficaz questionamento.” (p. 22). Essa relação com a ética faz com que possibilite à
literatura se desvincular do conceito ideológico de justiça “para liberar a justiça como valor,
relembrando à instituição sua real vocação.” (P. 23).
O autor revela, então, a dialética do direito e da literatura: “uma dialética que, como
convém, atravessa cada um dos pólos opostos. Em vez de um diálogo de surdos entre um direito
codificado, instituído, instalado em sua racionalidade e sua efetividade, e uma literatura rebelde a
toda convenção, ciosa de sua ficcionalidade e de sua liberdade, o que está em jogo são
empréstimos recíprocos e trocas implícitas. Entre o ‘tudo é possível’ da ficção literária e o ‘não
deves’ do imperativo jurídico, há, pelo menos, tanto interação quanto confronto. Essa tese
essencial é sem dúvida o postulado mais central do movimento ‘direito e literatura’, como
lembra James Boyd White (WHITE, James Boyd. From Expectation to Experiente. Essays on
Law and legal Education. Ann Harbor: The University of Michigan Press. 2000, p. 53 e p. 72),
um dos seus principais representantes nos Estados Unidos. Em vez de opor um direito,
linguagem racional do poder, a uma literatura, fantasia recreativa que obedece a critérios
exclusivamente estéticos, procura compreender a inspiração comum de ambos.” (p. 23-4).
Esse ponto de convergência entre as esferas jurídica e literária representam um ponto de
intersecção entre dois universos paralelos, organizados de acordo com suas próprias leis. Isso
prova o argumento de Platão de que o direito é “a maior das tragédias.” (p. 11 - As Leis). Sendo
assim, “os juristas aprendem na faculdade que o direito se origina no fato: ‘ex facto ius oritur.’
Para a reflexão - e será o propósito deste livro demonstrá-lo - seria mais exato dizer: ex fabula
ius oritur - é da narrativa que sai o direito.” (p. 24).
Diante desse contexto de mútuo auxílio, Ost se questiona: “o que ganha o estudo do
direito nesse confronto com o espaço literário?” (p. 25) Para o autor, afirmar que a literatura
apenas possibilita o incremento de uma “cultura humanista” seria reduzir o potencial da
contribuição da Literatura ao Direito. Ost afirma que “muito mais fundamentalmente, há de se
esperar da literatura uma função de subversão crítica” (p. 25), o que faz através do
empoderamento do outro, o qual retrata o sistema jurídico “de fora”.
“Em alguns casos é uma função de conversão fundadora que a literatura assume, sem que
tenha necessariamente buscado: a narrativa faz-se ‘fundadora’ - como a maior parte das que
estudamos neste livro -, não apenas se dando a ‘pensar’, mas também a ‘valorizar’ e em seguida
‘prescrever.’” (p. 26).

As paixões que instituem as cidades:

Ost inicia o subtítulo com uma frase encontrada em Antígona, de Sófocles: “As paixões
que instituem as cidades, o homem as ensinou a si mesmo.” (p. 27). O que o escritor grego quer
dizer é que “na origem das instituições políticas e dos códigos, há pulsões, aspirações, todo um
jogo de paixões. Por outro lado - segundo motivo de espanto -, a edução que transformou essas
paixões em leis cívicas. (...) E o que Sófocles assinala é que esse imaginário é primeiro e acima
de tudo político: ele forja as significações coletivas que vão assegurar o vínculo social.” (p. 27).
Sendo assim, a lei se origina das paixões presentes nos laços da comunidade, o que
denota a inexistência de algum determinismo ou de pura lógica racionalista. “A cidade escapa a
toda determinidade desse gênero: é da imaginação instituinte que ela procede, das grandes
narrativas que o homem conta-se a si mesmo.” (p. 27).
Para explicar esse fenômento, Ost recorre a Castoriadis (CASTORIADIS, C. L’
Institution imaginaire de la societé. Paris: Seuil, 1975, p. 457-498) e ao seu conceito de “magma
de significações”: “um conjunto de significações imaginárias sociais que conferem um sentido
específico aos dados da experiência; e ainda: as mais importantes dessas significações são
literalmente ‘constitutivas’ da realidade que elas fazem advir ao nomeá-las: é o caso do pontífice,
por exemplo, cuja existência e o papel só se compreendem em relação à instituição ‘Igreja’, ela
própria referida a uma narrativa fundadora (Revelação, Escrituras…). Assim que ganham corpo,
essas significações sociais imaginárias são arrastadas num processo histórico feito de momentos
de estabilização e de cristalização (formam então o ponto de vista interno imanente ao mundo
comum instituído), seguidos de momentos de auto-alteração (quando fazem ouvir as forças
centrífugas dos imaginários concorrentes).” (p. 28).

ADENDO:
A teoria de Castoriadis diz respeito à busca de novos paradigmas nas ciências sociais
em face da crise moderna. Ele põe no centro da discussão a capacidade imaginativa do ser
humano como fato essencial ao desenvolvimento civilizatório. Para tanto, ele cria o conceito de
magma de significações.
“Existe uma dimensão fluida, aberta (criadora) da realidade, presente especialmente no
mundo das significações, no inconsciente, e no social-histórico, que não é captada pela lógica
identitária.
Contrariamente à sistematização, característica da lógica identitária, segundo a qual o
mundo deve ser organizado de forma coerente e absoluta (conjuntista), a lógica dos magmas
aponta para o mundo sempre aberto, próprio das significações imaginárias. Combinar estas
duas dimensões da realidade, a conjuntista e a magmática, constitui uma contribuição das mais
significativas de Castoriadis para o debate contemporâneo.
A elaboração teórica do conceito de imaginário radical, a partir de 1964-5, está ligada à
convicção profunda de Castoriadis de que o psiquismo humano e o social-histórico não podem
ser “derivados” ou “explicados” a partir dos fatores biológicos ou físicos. Isto é, não podem ser
reduzidos ao primeiro estrato natural15, regido pela lógica conjuntista. Castoriadis está
convencido que os domínios do psíquico e do social-histórico introduzem um novo tipo de ser,
mais próximo das multiplicidades inconsistentes que das realidades meramente conjuntistas.”

Fonte: http://www.ufrrj.br/seminariopsi/2009/boletim2009-1/losada.pdf

“Esse processo de auto-alteração é o movimento mesmo da história, a respiração dialética


do instituinte e do instituído. (...) Reserva de significações em potência, o magma pertence
indefinidamente determinável: por numerosas que sejam as significações determinadas que deles
se obtiver, nenhum esgotará sua fecundidade.” (p. 28).
“A história das grandes Declarações dos direitos do homem é muito reveladora a esse
respeito: no Preâmbulo de cada uma delas se achará um relato, ora muito desenvolvido, ora
reduzido a algumas linhas, que evoca o que deverá figurar doravante como o momento de forte
da comunidade (uma revolução, uma declaração de independência…) ou o que liga a um passado
imemorial fundador.” (p. 29). Exemplo disso é o Bill of Rights, a Declaração de Independência
dos Estados Unidos, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Essa tese remete à
“fabulação justificativa” de José Calvo (Godoy).
Ademais, “a técnica anglo-americana do julgamento em diálogo com os precedentes
contribui também, de forma decisiva, para dar crédito à imagem de um direito que se constrói
por sedimentações sucessivas e fidelidade à identidade do sistema jurídico.” (p. 30).
Depreende-se, portanto, que a tese de Ost acerca do direito “contado” traça um paralelo
com o poder das narrativas míticas que consolidam as bases de cada sociedade, no sentido de que
“uma comunidade política está ligada a um imaginário histórico partilhado, e o quanto de sua
memória e sua capacidade de projeto são devedoras da interpretação do mundo produzida pelas
narrativas fundadoras.” (p. 29). Daí a importância da coerência da narrativa jurídica, como
demonstra Dworkin.
“Compreende-se melhor, nessas condições, o sucesso da tese de R. Dworkin (L’Empiire
du droit. Paris: PF, 1994, p. 250 e s.) que apresenta o direito como uma prática social
argumentativa cujos protagonistas buscam fortalecer a integrity - compreendida menos como
consistência lógica do que como coerência narrativa, fidelidade (criadora, porém) à história da
moralidade política da comunidade. É dentro desse quadro que o filósofo do direito norte-
americano pôde propor sua célebre metáfora que compara o trabalho dos juízes à escrita de um
‘romance em série’: cada caso sendo, para o magistrado qe dele se ocupa, a ocasião de escrever
um novo capítulo da história jurídica da nação, sob a dupla exigência do respeito à integrity do
direito e à necessidade de particularizar da melhor maneira a solução proposta.” (p. 30).

A obra de arte: contracriação, desafio, aposta:

Aqui o autor discorre acerca de um conceito de obra de arte e que será empregado em sua
teoria do “direito contado.” Para tanto, lista uma série de características essenciais à sua
natureza:
1. Enigmática/estranha: “ela suspende nossas evidências cotidianas, coloca o dado à
distância, desfaz nossas certezas, rompe com os modos de expressão convencionados.
Entregando-se a toda espécie de variações imaginativas, ela cria um efeito de
deslocamento que tem a virtude de descerrar o olhar. Tudo se passa como se, por ela, o
real desse à luz novos possíveis que ele mantinha até então enterrados em suas
profundezas.” (p. 32). Diante de sua natureza de Shiva - destrói para construir -, Ost
afirma que a obra de arte é “um sentido que adquire forma” (STEINER, G. Réelles
présences. Les arts du sens. Paris: Gallimard, 1995, p. 225).
2. Sentido que adquire forma: continuando, “a narrativa não se contenta de evocar o mundo
possível que ela visa; de uma certa maneira, lhe dá vida e consistência, e por meio dos
recursos de sua matéria própria, a linguagem. Linguagem da qual o autor se reapropria e
mobiliza a serviço de seu projeto de criação: o estilo, o fraseado, os tropos, tudo isso
contribui para a formação de um ‘idioleto’ pelo qual se anuncia a singularidade da obra.
Forma e fundo indissociavelmente unidos cooperam então para a transformação de todos
os códigos, a começar pelo da linguagem, a fim de traduzir a marca distintiva da obra:
sua irredutível autonomia.” (p. 34).
3. Contracriação: O autor afirma ainda que Steiner concebeu uma teoria radical para a qual
“a obra de arte é sempre, de algum modo, uma contracriação: um desafio ao mundo
herdado, à natureza circundante, à herança cultural, e a aposta de que ainda está por ser
dito algo de essencial que irá remodelar toda essa massa para fazer sair dela, enfim, um
mundo novo.” (p. 32-3).
4. Renovação: “a obra de arte é sempre, num certo aspecto, exercício de memória ou de
renovação: como se, ao liberar uma forma nova, o artista revelasse o vestígio de um
sentido, a lembrança de uma forma que adormecia na memória coletiva.” (p. 33-4).
5. Dupla inversão: Ost argumenta que “a verdadeira medida da radicalidade desse gesto
poético pode ainda ser notada na dupla inversão a que ele conduz: inversão do possível e
do real, inversão do singular e do universal.” (p. 34). Acerca da primeira, “a obra de arte,
como narrativa de ficção, testemunha (...) que o próprio real não é senão uma modalidade
do possível.” (p. 34). Sobre a segunda, refuta-se a lógica de que o particular somente
existe se incluso e submisso ao universal, uma vez que através do particular conseguir-se-
ia “bagunçar” o todo organizado, diversificando-o. “A obra de arte certamente não refuta
a verdade estabelecida - faz algo melhor: ela a multiplica infinitamente.” (p. 35).

Ost insiste no fato de que a obra de arte deve ser recebida por seus destinatários, a fim de
que não se torne asséptica e estéril (a arte pela arte), bem como que ela rompa com o pré-dado,
pois somente assim está apta a promover a revolução que pretende, independentemente de qual
for a área designada. Com o escopo de completar sua função, Ost recorre à tese de Ricoeur
(RICOEUR, P. Temps et récit, t., I. Paris: Seuil (Essais), 1983, p. 106 e s.) intitulada “tríplice
mímesis” (p. 35). É com fundamento na tríplice mímesis que o autor desenvolverá seu esboço de
teoria do “direito contado”.
De forma suscinta, analisar-se-á os três tipos diferentes de mímesis:

Mímesis I: “por mais inovadora que seja, a disposição da intriga sempre se opera sobre o
fundo de uma pré-compreensão partilhada do mundo da ação. Um léxico comum, uma gramática
implícita traduzem essa estrutura que torna inteligível a interação humana (...). Por sua vez, essa
estrutura já é o objeto, na experiência comum, de uma mediatização simbólica; nela, a ação
aparece desde o início carregada de significações e provida de avaliações que formam, elas
próprias, sistemas: tal gesto é interpretado como um rito, que tem lugar num ritual, o qual por sua
vez remete a um culto que, em última instância, reflete uma cultura - toda uma rede simbólica é
implicitamente mobilizada para interpretar o gesto mais anódico. Tudo se passa, portanto, como
se a experiência humana estivesse desde o início repleta de significações simbólicas e, diz
Ricoeur (RICOEUR, P. Soi-même comme un autre. Paris: Seuil, 1990, p. 183), como que à
espera de narrativa. Esses fragmentos de história, essas intrigas potenciais que esperam apenas o
contador para dar-lhes forma e sentido, estão já orientados pelas mais variadas regras de
significação (o código simbólico) e mesmo por regras constitutivas que engendram práticas
novas com valor convencional (...). Sem falar ainda de regra moral, a prática suscita todo tipo de
regras que orientam e até mesmo estruturam o comportamento (...) que, se não fossem por essas
regras, mostrar-se-a aleatório e desprovido de sentido.” (p. 36-7).

Entre descrever e prescrever, contar:

Mímesis III: “é o momento da refiguração, que implica, ao mesmo tempo, uma retomada
criativa da obra e uma transformação do leitor-espectador. É um desmentido, portanto, desta
asserção de R. Posner (POSNER, R. Droit e littérature. Paris: PUF, 1996, p. 419) - autor norte-
americano de um livro muito controvertido, Direito e literatura: ‘A literatura não tem influência
sobre o leitor, ela não o tansforma nem para o bem nem para o mal.’” (p. 38). De forma geral,
“entre o mundo do texto e o mundo do leitor, arrisca-se um confronto, às vezes uma fusão de
horizontes, e tanto mais quanto o leitor não é uma terra virgem, mas um ser já envolvido em
histórias, em busca de sua própria identidade narrativa.” (p. 38).
“Confrontado a essa demanda de re-significação, o leitor é chamado a desenvolver, como
bem mostra G. Steiner (STEINER, G. Réelles présences, op. cit., p. 27 e s. e p. 117 e s.), uma
leitura responsável - uma leitura que responde ao leitor e que responde ao texto.” (p. 38). O
sentido do termo responsabilidade, de acordo com Ost, remete a duas ideias: de responder ao
autor, num sentido psicológico e emocional, àquilo que a que ele espera (answerability); e no
sentido de responsabilidade moral pessoal e de boa-fé (responsability).
Diante da análise de Steiner, “uma tal leitura responsável e participante transforma o
leitor: a exemplo do anfitrião que livremente acolhe um visitante que se convida, ele é levado a
desenvolver uma ética do acolhimento (...).” (p. 38). “(...) Essa espécie de emoção [acolhimento
da proposta do autor] (essa mobilização do leitor) deve ser entendida como uma busca comum de
sentido que, através da obra, tenta dizer-se.” (p. 39).
O leitor, então, se sujeita a esse processo de acolhimento da obra e de uma leitura
responsável, o que poderá implicar dois efeitos práticos principais na sua pessoa, segundo
Ricoeur (op. cit., p. 319 e s.): “a aisthesis e a catharsis. A aisthesis é o gozo estético que
acompanha a suspensão do cotidiano e a surpresa produzida pelo despaisamento, pelo
desenraizamento da obra. Quanto à catharsis, tradicionalmente compreendida como purificação
(purgação) das paixões, ela desemboca numa espécie de clarificação, ou mesmo ensinamento,
obtida na experiência prática e das perplexidades éticas a que o leitor foi confrontado.” (p. 39).
“Nesse ponto da análise, compreende-se que a narrativa adquire uma dimensão ética: ela
não apenas assume as avaliações subjacentes à estrutura pré-narrativa da experiência (seja
denunciando suas imposturas, seja tentando elucidar suas ambiguidades éticas), mas também
exerce, como acabamos de ver, muitos efeitos práticos sobre o leitor, ele próprio sempre em
busca do sentido de sua própria história. Laboratório do julgamento ético em situação, a
literatura submete nossas convicções a diversas experiências de pensamento e de variações
imaginativas.” (p. 39). Aqui, então a literatura ganha uma dimensão prática, à medida em que
todos os elementos da vida social, todas as suas práticas, estão à mercê de uma análise e de um
julgamento livres de qualquer dogma moralista.
Ost observa para o seguinte: a literatura não trabalha com o campo moral - que, com o
tempo, se condensa em normas e em imperativos categóricos - mas sim com a ética, onde se é
possível discutir os valores de forma livre, sem necessidade de aplicação das sanções que as
normas morais implicam. A ética “deve ser compreendida como a busca da vida boa e dos
valores a ela associados.” (p. 40).
Em conclusão: “É exatamente nesse nível mediano [de discussão dos valores no plano
ético], entre o registro de fatos e gestos e a prescrição de regras, que a narrativa opera: ‘entre
descrever e prescrever, contar.’” (p. 40) - a frase é de Ricoeur (RICOEUR, P. Soi-même comme
un autre. op. cit., p. 199 e s.). Para o autor, a literatura e a ética sempre serão as responsáveis
pelas transformações nos elementos instituídos da sociedade. Os valores que ambas trazem ao
leitor - que cordialmente se deixa penetrar pela história contada - “deverão passar pelo crivo do
julgamento propriamente moral e suas exigências universalizantes, segundo a palavra de ordem
da deontologia kantiana. Passado esse teste, o valor, que nesse meio tempo terá composto com
valores rivais, assumirá a forma e, eventualmente a sanção, da norma instituída. Mas a ética e a
narrativa retomarão seu direito a partir do momento em que, por sua vez, essa norma (moral,
jurídica) for confrontada à prova do julgamento moral em situação. A prática (como a dos
tribunais) logo fará re-problematizar as normas assim definidas: surgirão conflitos de dever,
apresentar-se-ão situações inéditas que levarão quem decide a reatar com a sabedoria prática, e
às vezes com o trágico da ação: escolher não entre o branco e o preto, mas entre o branco e o
cinza ou, pior ainda, entre o cinza e o cinza, ou o cinza e o preto. Na suspensão do julgamento
normativo que se observa nesses casos, pode-se esperar que se faça ouvir então a voz do
narrador.” (p. 40-1).

O direito contado:

Nesse ponto, Ost inicia a explicação de sua teoria do “direito contado mediante o
apontamento das divergências entre aquela e a teoria clássica.” Segundo ele, “em vez de um
direito narrado, as faculdades de direito continuam ocupadas apenas com o direito analisado. A
teoria geral do direito ainda hoje dominante permanece amplamente analítica, de inspiração
estado-legalista e de método positivista.” (p. 41).
A teoria do direito clássica diferencia inflexivelmente o ser do dever-ser, responsável
pela máxima de que “do fato nasce o direito.” Isso emplica a separação rígida dos campos da
descrição e da prescrição, tornando o campo jurídico absolutamente formal e lógico-dedutivista.
Apesar de sua clausura positivista, Ost afirma que também há, na teoria do direito
clássica, certo espaço para narrativas, por mais exíguo que seja. O principal exemplo disso é a
norma fundamental kelseniana, responsável por conceder legitimidade ao sistema jurídico
vigente. Seu próprio inventor, Kelsen, confessara anos mais tarde que a grundnorm era uma
ficção, pois, de acordo com ele, não haveria outra forma de estabelecer a sistemática do direito
sem recorrer a uma abstração. Sendo assim, “a suposta ‘teoria pura’ do direito revela-se
tributária, ela também, de uma grande narrativa fundadora.” (p. 42). Outra narração/ficção que
Ost aponta é o estado de natureza, emblemático na teoria instituidora do Estado de direito.
Além disso, “a teoria analítica do direito entende apoiar-se, para aplicar a seguir suas
normas, numa base de fatos empíricos, devidamente estabelecidos por modos de prova fatuais.”
(p. 42). O autor alega que essa empiria jurídica é, em verdade, construída por uma série de
significações convencionalmente estabelecidas nos textos legais, como, por exemplo, a norma
civil francesa de que “os pombos dos pombais não são aves livres como o ar, mas ‘imóveis por
destinação.’” (p. 42-3). Para Ost, “o direito infunde seus possíveis no seio do real: é essa função
de nomeação que é própria do direito (muito antes que suas funções repressivas e reguladoras).
Nomeação que é ao mesmo tempo normatização e instituição no sentido de que, realmente aqui,
‘dizer é fazer.’ O direito identifica as pessoas e as coisas; literalmente ele as faz vir à existência
jurídica, não hesitando, por exemplo, em personificar corporações ou patrimônios.” (p. 43).
Logo, depreende-se que o direito cria papeis, nomeia práticas e institui medidas, o que não o
afasta do âmbito da ficção.
“Toda essa construção é doravante convencional, e a verdade que se lhe atribui é, ela
própria, construída ou interna à narrativa jurídica: far-se-á ‘como se’ tudo isso fosse verdade (...).
Compreende-se, nessas condições, que as ficções que proliferam no direito (a
extraterritorialidade das sedes diplomáticas, por exemplo), longe de serem uma exceção intrusa,
uma aproximação da qual seria melhor prescindir, exprimem com certeza a narrativa real da
discursividade jurídica como um todo.” (p. 43).
O autor alega que a teoria clássica do direito estuda as regras que este institui, e que são
essencialmente normas de conduta, ao passo que “a teoria do direito contado, instruída da teoria
dos atos de linguagem (Searle, Austin), sublinha antes a importância das regras constitutivas, que
não se limitam a regular comportamentos já existentes (trafegar à direita, parar ao sinal
vermelho), mas constituem literalmente os comportamentos por elas visados (...). Essas regras
constitutivas são, e é o ponto essencial, produtoras de instituições: elas habilitam os jogadores e
definem seus poderes respectivos, determinam os objetos em disputa, fixam os objetos do jogo. -
como as regras de xadrez” (p. 43).
Ost cita J. Ray (RAY, J. Essai sur la structure du code civil. paris: Alcan, 1926, p. 48 e
51) para corroborar sua visão de que todas as instituições do direito não apenas prescrevem as
condutas - no sentido de determinar o que se pode e o que não se pode fazer -, mas sim
determinam um conjunto de condições para que as ações humanas possuam eficácia jurídica, isto
é, passem a existir para o direito e possuam significado jurídico (p. 43-4).
“O direito, poder-se-ia dizer, escreve roteiros que deixam aos atores uma grande parte de
improvisação. É preciso, porém, que os atores concordem em ‘entrar no jogo’: é precisamente a
questão da força performativa - mais do que imperativa - que se atribui às normas jurídicas.” (p.
44). Assim, ao contrário da teoria clássica, “a teoria do direito contado, privilegiando o espírito
do direito, preocupa-se antes com a ‘coerência narrativa’ do raciocínio, e evidencia a importância
da interpretação dos textos e da natureza argumentativa das discussões jurídicas: já foi lembrado
a esse respeito a metáfora dworkiniana do julgamento como ‘escrita de um romance em série’.
(...) Como acontecia no direito antigo, em que as leis tinham o caráter de mininarrativas, e como
acontece hoje no direito jurisprudencial, o jurídico tem por vocação oferecer ‘modelos
narrativos’ que o juiz confronta ao relato construído a partir dos fatos da causa: fato e direito,
descrição e avaliação estão indissocialmente implicados a cada etapa do raciocínio
compreendido assim como ‘narrativização da pragmática.’ (JACKSON, B. fact and Narrative
Coherence. MErseyside: Deborah Charles, 1989, p. 1-6 e 89-129).”
“A teoria dominante do direito não se caracteriza apenas por seu caráter analítico; é
também profundamente marcada por uma concepção instrumental e utilitarista do racional.” (p.
45). Ost afirma que de acordo com esse utilitarismo se concebe o indivíduo sob uma perspectiva
de busca pelos seus interesses, como, por exemplo, “o homo economicus da teoria econômica,
que busca sempre maximizar sua satisfação, ou ainda o homo politicus da teoria política.” (p.
45). Todavia, “se pensarmos que o homem não é sempre, nem necessariamente, racional nesse
sentido, mas que busca também satisfações simbólicas porque adere a ‘significações imaginárias
instituintes’, um lugar deverá ser dado a um modo complementar de interpretação da sociedade,
do qual a teoria do direito contado constitui um elemento. (...) O jogo do direito é marcado pelo
menos tanto por comportamentos simbólicos quanto por cálculos estratégicos: nos processos
judiciais, os protagonistas buscam ao menos tanto ‘colocar-se em cena’, ‘dar-se em
representação’, obter um reconhecimento simbólico, quanto auferir essa ou aquela vantagem
pecuniária. O próprio político, que assume hoje de bom grado a forma do Estado-espetáculo, não
foge à regra.” (p. 45).
“Muitos outros aspectos poderiam ainda diferenciar direito analisado e direito contado.
Mencionaremos mais dois, que nos contentamos de evocar. No plano temporal, em primeiro
lugar, a teoria analítica, mais preocupada com estruturas do que com história, é incapaz de pensar
as transições jurídicas: um dado estado do sistema jurídico sucede a um outro como as imagens
de um filme que desfilam de maneira sincopada, às vezes com uma imobilização da imagem,
sem que se explique a sequência geral da história. Somente o direito contado, por integrar a
dimensão diacrônica do direito, tem condições de restituir o roteiro da narrativa.” (p. 46).
A outra diferença diz respeito à aplicação do direito: ao contrário da lógica dedutivista,
com suas “pirâmides de normas e escalonamentos de poder” (p. 46) que parte de premissas
universais para chegar a determinada conclusão em um caso concreto, o direito contado utiliza o
método indutivo, uma vez que “é a partir da história singular que o direito se reconstrói, é a partir
do caso particular que sua racionalidade é posta à prova.” (p. 46).

A teoria do direito contado se caracteriza pelo notável esforço de aproximar o campo


jurídico da sociedade, a fim de que seu distanciamento e frieza sejam mitigados pela
humanização que a literatura é capaz de proporcionar. No entanto, há dois riscos que o direito
contado se expõe: o subjetivismo exacerbado e o comunitarismo autoritário (p. 47).
Acerca do primeiro, Ost afirma que é possível controlá-lo: “contra o perigo de submersão
pela emoção (...), contra esse recurso não crítico à empatia e esses excessos de paixão cumpre
fazer valer, nesse caso, os méritos do formalismo jurídico, o estrito respeito dos procedimentos, a
absoluta necessidade de conformar-se a argumentos ‘intersubjetivamente válidos’: textos de
autoridade reconhecida e elementos de prova suscetíveis de discussão.” (p. 47).
“O segundo perigo consistiria, para uma coletividade fortemente reunida em torno das
narrativas fundadoras que lhe conferem identidade, memória e projeto, em desenvolver atitudes
regressivas de intolerância e de rejeição do outro, ou mesmo lançar-se em empreendimentos
integralistas: maquinações nacionalistas, purificações étnicas e outras guerras santas.” (p. 47).
Para lutar contra este risco, o autor sugere que a perspectiva ética dos juristas deve “submeter-se
ao duplo teste da universalização (o que vale para ti e para mim pode ser transposto a um outro,
ao socius abstrato, a um terceiro qualquer?) e da objetivação sob a forma de reescrita do valor
ético nos moldes da norma moral e jurídica.” (p. 47).
A ideia de Ost é pensar em um comunitarismo que respeite as diferenças intrínsecas de
cada sociedade, mas sem direcionar a uma volta à barbárie. “Sem renegar a tradição da qual se
fala, nem diluir -se numa ilusória identidade universal, cada protagonista passa a dialogar com
outras tradições: delineia-se assim um espaço público de discussão em que se aceita a
reconstrução crítica das próprias narrativas e o reconhecimento do outro.” (p. 48).

Direito da literatura e direito como literatura:

François Ost alega que é possível dividir os estudos de direito e literatura em três
campos: o direito na literatura, o direito da literatura e o direito como literatura. O direito da
literatura se atém à “maneira como a lei e a jurisprudência tratam os fenômenos de escrita
literária.” (p. 48). Já o direito como literatura “aborda o discurso jurídico com os métodos da
análise literária”, e o direito na literatura “se debruça como a literatura trata questões de justiça e
de poder subjacentes à ordem jurídica.” (p. 48).
Essas três perspectivas de estudo demonstram, de maneira geral, as diversas
possibilidades que a literatura pode ser empregada na análise do direito. Segundo o autor, o
direito como literatura “consta no programa de quarenta por cento das faculdades de direito
norte-americanas” (p. 49), e cita ainda a opinião de R. Weisberg (WEISBERG, R. “Herman
Melville, Vichy et la communication bienveinllant: trois leçons sur les rapports du droit et de la
littérature”, in Littérature classiques, nº 40, p. 397 e s.) acerca dos seus benefícios: “a capacidade
de escuta, a aptidão de fazer um discurso que leve em conta a sensibilidade dos ouvintes, o dom
de convencer tendo em vista atingir a meta que se fixou.” (p. 49).
Ost afirma que o direito como literatura constitui um campo de estudo incomensurável
que, embora não exista, na língua francesa, “uma síntese real” (p. 51), é muito desenvolvido nos
Estados Unidos. O que existe em francês são estudos relacionados à hermenêutica das leis e de
textos literários.
Em verdade, os grandes nomes do direito como literatura são James Boyd White com o
The Legal Imagination e Marthe Nussbaum com Poetic Justice. Boyd White, de acordo com o
autor, concebia o jurista como um “‘artista da linguagem’” (WHITE, J. Boyd. From Expectation,
op. cit. p. 76) - (p. 52). “Ele [o jurista] é consciente do caráter construtivo e fictício das
intepretações que propõe: uma opinião judiciária, uma defesa de causa, uma sentença são sempre
construções de possíveis jurídicos que envolvem a responsabilidade de seus autores.” (p. 52).
Com isso, “o direito deve ser imaginado no meio mesmo das relações de interlocução e das
demandas de reconhecimento que formam a trama do tecido social.” (p. 52).
Já acerca do direito da literatura, o autor alega que este ramo “não representa,
propriamente falando, um ramo específico do direito, mas sim uma abordagem transversal que
abrange questões de direito privado (direito de autor e copyright), de direito penal (toda a
variedade de delitos que se podem cometer ‘por meio da imprensa: injúrias, calúnias,
difamações, ultraje aos costumes, declarações racistas, atentado ao chefe de Estado - em algumas
legislações, ainda a blasfêmia), de direito público (liberdade de expressão e censura), e até
mesmo de direito administrativo (regulamentação dos programas escolares, das bibliotecas
públicas).” (p. 50).

O direito na literatura:
O importante aqui é que os textos escolhidos pelo autor “constituem à sua maneira
‘narrativas de instituição’, segundo a expressão de C. Castoriadis: monumentos literários que
criam magmas de significações sociais instituintes. Verdadeiras matrizes culturais, essas
narrativas engendram mundos novos (...), universos de narrações e prescrições constitutivos de
uma civilização jurídica.” (p. 56-7).
Ost trabalhará dentro desta perspectiva a partir de textos escolhidos com a finalidade de
demonstrar a evolução do direito, de forma cronológica, a partir das narrativas das mais variadas
culturas.

No começo era lei

O autor inicia o capítulo alegando que a lei instituída, escrita, sempre foi muito aclamada
na história da humanidade. Desde o Código de Hamurabi até o Código de Napoleão se depreende
que o conjunto de leis instituídas inaugura novas eras jurídicas e, por conseguinte, um novo
tempo. (p. 61).
Esse apreço pela lei fez (e ainda faz) com que se busque aquela que possa ser chamada de
“a mais perfeita”. De fato, suas características “naturais” denotam uma arte e uma sabedoria
compreendidas como a finesse da capacidade e conhecimento humano: “clareza, concisão,
coerência, autoridade, perenidade, universalidade e, obviamente, justiça” (p. 61) são seus
atributos notáveis que a fazem um criação digna de orgulho.
Contudo, a procura da lei perfeita implica a seguinte conclusão: apenas um autor
incomum é capaz de produzi-la (p. 62). E é justamente esta áurea mágica que envolve a lei que
Ost se propõe a analisar nos textos escolhidos para “contar” a história do direito. “O importante,
em última análise, como já sabia Platão, é ‘encantar’ as leis, mobilizar em proveito delas o
imaginário fundador e o afeto político - para que essas leis sejam amadas (o que é bem mais
importante que sua compreensão e mesmo que seu conhecimento) e, sendo amadas, sejam
obedecidas. Adivinha-se o parentesco íntimo que se estabelece, nesse plano realmente fundador,
entre a narrativa jurídica e a ficção literária, que se trate de reavivar o mito das origens ou
mesmo, mais prosaicamente, da própria lei escrita.” (p. 62).
Sendo assim, de forma suscinta (porque o autor trabalhará mais adiante com o tema), com
base na releitura da narrativa presente em Gênesis - onde ocorre a aliança do povo hebreu com
Deus -, Ost afirma que devido à dialética entre a heteronomia (lei proposta pelo outro) e a
autonomia (aliança livremente aceita pelo povo hebreu), “o conteúdo da lei (referimo-nos ao
objeto das prescrições: a proibição do assassinato, do roubo, do adultério…) conta muito menos
que as condições de recepção da lei.” (p. 63). Isso faz com que se chegue à seguinte conclusão: o
“sucesso” de uma ordem jurídica - compreendido aqui no sentido de livre observância da lei -
está mais relacionado à forma da recepção da lei pelo povo que a instituiu do que com o seu
conteúdo. Logo, é a relação do povo com a lei que possibilita a observância e a instituição do
direito.
Além do Gênesis, Ost também cita o mito de Protágoras como fundador da lei. Eis a
narrativa: os deuses encarregaram dois titãs, Epimeteu e Prometeu, de ensinarem a sobrevivência
aos homens e aos animais. Epimeteu concedeu a estes todos os dons de que tinha conhecimento,
dando a uns a velocidade, a outros a força e a astúcia, fazendo com que não restasse nada a
ensinar aos homens. Intervém então Prometeu, o responsável por dotar os homens com os
conhecimentos do fogo e das artes mecânicas para que conseguissem sobreviver à natureza.
“Graças a esses recursos, o fogo e as artes mecânicas, os homens de fato sobreviviam, mas
estavam submetidos a contínuas ameaças: isolados, eram presa dos animais selvagens; reunidos
nas cidades, guerreavam-se entre si sem piedade. Temendo assim o desaparecimento da raça
humana, Zeus encarrega Hermes de levar aos homens aidos e dikè o respeito e a justiça, ‘para
servir de regras às cidades e unir os homens por laços de amizade.’ Não sem esclarecer, a pedido
de Hermes, que a distribuição desses presentes se fará ‘entre todos’ e não a alguns em especial,
como é feito no caso da arte médica ou do talento artístico, por exemplo. De resto, todo homem
incapaz de respeito e de justiça será afastado ‘como um flagelo da sociedade.’” (p. 63-4).
Ost chama novamente a atenção para o tema da heteronomia/autonomia: enquanto Zeus
dá aos homens a relação com a lei (p. 65), os homens possuem o dever de participar das
deliberações políticas da pólis, tendo voz igual. O autor alega que a ideia de Protágoras remete à
nossa moderna “‘processualização’ da lei”, ou seja, a deliberação coletiva” (p. 65). Em outras
palavras, “se é verdade que a lei só existe quando discutida, ainda assim é preciso efetuar o
trajeto inverso ao qual o texto convida: a discussão só sera fecunda, por sua vez, se inscrita no
espírito de justiça e de respeito mútuo ofertado por Zeus aos homens.” (p. 66).
O que se percebe, por fim, com essas duas narrativas é que à lei instituída, mesmo que
pelo outro (heteronomia), importa mais a relação que os homens possuem com ela do que o seu
conteúdo. É justamente o relacionamento entre direito e homem que faz com que aquele ganhe
legitimidade e observância numa comunidade.
Ademais, depreende-se que a literatura possui uma dupla função no meio jurídico: a
primeira é a “narrativa fundadora”, isto é, “o que importa é mobilizar um imaginário fundador
em torno de uma lenda inaugural que diga a concórdia, a pacificação, a igual dignidade de cada
um e a solidariedade no seio da federação.” (p. 66); a segunda, por sua vez, performa quando a
“lei vai se comprometendo com toda espécie de vilanias, pequenas ou grandes. A literatura
retorna então o archote, mas desta vez num sentido crítico.” (p. 66-7).

A lei corrompida

É quando a lei se corrompe que a literatura deixa de ser narrativa fundadora para tornar-
se narrativa crítica, a fim de que o equilíbrio dos tempos instituintes retorne. Aqui o autor cita
algumas formas de crítica que a literatura assume: “a lei é contestada em seu princípio mesmo,
como se, por natureza, ela só pudesse ser absurda, injusta ou arbitrária” (p. 67); “a crítica à lei
visa em suas ambições reformadoras quando ela se opõe à resistência subterrânea dos hábitos e
dos costumes, dos quais a literatura se faz naturalmente eco” (p. 67); “outras vezes a acusação é
dirigida contra os abusos e absurdos das leis em vigor, mas o propósito possui uma vontade
reformadora” (p. 67); “outros textos ainda, e não são os menos interessantes, dedicam-se menos
a denunciar a lei do que o rigor inflexível de sua aplicação mecânica e literal. Como se, antes do
sociólogo, o literato tivesse sabido sempre que às leis repugna ma aplicação integral - mesmo, e
sobretudo, talvez às leis penais.” (p. 68).

O Sinai ou a lei negociada

Aqui o autor estudará mais a fundo a relação dialética entre a heteronomia e a autonomia
do direito hebreu a partir da releitura do Livro do Êxodo.
De acordo com Ost, o direito hebraico está vinculado à aliança que o povo fez com Deus
através da mediação de Moisés à época da escravidão no Egito. É justamente a aliança que
proporciona a relativização da heteronomia/autonomia, uma vez que Deus e homens aprendem
conjuntamente o a alteridade e o respeito à lei divinamente instituída (p. 70). A aliança significa
um “acordo de vontades”: enquanto os homens seguem à risca os mandamentos de Deus, Este
lhes concederá o paraíso e a vida eterna após a morte. Há aí um vínculo mútuo que até então não
havia sido estabelecido em termos de história humana: “em vez de uma afirmação autoritária da
lei, é de uma aliança que se trata; em vez de uma imposição unilateral de um mandamento, o que
se assiste é à negociação de uma lei dialógica.” (p. 70).
A autonomia advém da livre aceitação da lei de Deus para com seu povo, o que faz com
que seja internalizada individualmente, mitigando os efeitos da heteronomia. Assim, liberdade,
aliança e lei constituem uma relação dialética que subsiste enquanto todos estejam
comprometidos.
É justamente essa voluntariedade na aceitação da lei que estabelece seu caráter libertador
para o povo e para o indivíduo, e dessa aceitação surge a responsabilidade de cada um para com
o cumprimento da aliança feita - “é um trabalho sobre si mesmo” (p. 72). Aliás, os homens
assumem sua responsabilidade por se reconhecerem endividados para com Deus, e por isso
devem renunciar à vingança particular contra Ele a fim de que se reconheçam mutuamente como
o povo escolhido (rebanho). Ao advir da aliança a responsabilidade interpessoal, surge desse
vínculo confiança e, inclusive, amor de ambas as partes, denotando que este vínculo é mais do
que um “acordo”: há verdadeiro comprometimento com a aliança.
Ademais, o que identifica o povo hebraico é que sua história é “ao mesmo tempo
enraizada na memória do que foi e orientada pela promessa do que poderia ser, e que no entanto
volta a ser jogada a cada instante na incerteza da interlocução.” (p. 72).

Sobre o espaço do direito:


Além da aliança com deus e da responsabilidade que surge com sua aceitação, outros
aspectos de destacam para a compreensão do espaço do direito hebraico: “em primeiro lugar, é
muito significativo que a lei e a aliança do Sinai tenham lugar numa sucessão, que aparece
ininterrupta, de leis e de alianças sempre mais antigas: leis de Noé e, mais a montante ainda, a
interdição de consumir os frutos da árvore do conhecimento da felicidade e da infelicidade;
promessas feitas a Abraão, Isaac e Jacó, e, mais acima, a aliança selada com Noé e mesmo com
Adão.” (p. 73) Isso demonstra que, além de essencialmente insondável, “a antecedência radical
da lei (ou da aliança) aparece, portanto, como condição de possibilidade do direito: só há regra
positivamente instituída (ou contrato efetivamente concluído) porque a possibilidade da mesma
instituição é atestada pelo eco abafado de alianças muito antigas” (p. 73).
A segunda característica retirada da análise do Gênesis e do Êxodo é que o direito
hebraico é “essencialmente narrativo” (p. 73). Para Ost, isso implica duas conclusões: “de um
lado, o prescritivo só se produz no modelo narrativo: longe de ter necessidade ou de
inelutabilidade de uma lei natural, ele se arrisca no jogo da interlocução” (p. 74).
Por outro lado, “a narrativa dos acontecimentos não é a crônica de peripécias quaisquer,
alheias ao ouvinte ou ao leitor; se fazem sentido para ele no momento e no lugar onde se
encontra, é porque são portadores de uma exigência normativa que o constitui, o interpela e já o
compromete” (p. 74). Em outras palavras: “como se o texto constituísse a iniciação à sua própria
leitura: quando Moisés se mostra, com o povo, capaz de escuta, é também o leitor que é
convidado, em ressonância, a percorrer o mesmo caminho. O leitor ideial, em todo caso, aquele
que o texto postula como o ‘bom entendedor’, saudado porque sabe ocupar a postura - ética, no
caso - ue permite desenvolver todas as virtudes da mensagem” (p. 74). O autor ainda cita J.-P.
Sonnet (“Le Sinaï dans l’evénement de la lecture”, in Nouvelle Revue théologique, maio-junho
de 1989, p. 321).

A saída do Egito ou o pressentimento do direito:

Fica claro que o autor escolheu as narrativas hebraicas justamente porque destacam pela
sua “inovação” na história da humanidade: a saída do Egito foi pleiteada junto ao faraó como um
direito à liberdade (p. 75). De fato, não houve fuga ou qualquer ato vergonhoso, mas sim um
povo que reivindicou diretamente ao faraó sua libertação através da linguagem jurídica.
Havia tantas diferenças entre os mundos egípcio e hebreu que os tornavam inconciliáveis.
O faraó representava o “protótipo dos soberanos cosmocratas e autodivinizados” (p. 76) cuja lei
é essencialmente um comando que não enseja espaço para o diálogo. Sua figura era poderosa e
distante, quase etérea, e seu culto era esotérico e monopolizado pela classe sacerdotal. Não havia,
pois, espaço para o povo na produção do direito.
Em contrapartida, Moisés e os hebreus simbolizavam uma nova ordem, embasada na
abertura e no diálogo que empreendiam com Deus. Diante dessa flexibilidade, a lei não era
autoritária, imposta por uma figura incompreensível e distante, mas sim “um ensinamento que
pede para ser comunicado, difundido por todos” (p. 77). Os cultos também foram
“democratizados”, uma vez que todos os chefes de famílias estavam incumbidos de glorificar
Deus sem a intermediação de sacerdotes (p. 77), o que demonstra uma “horizontalidade”
religiosa entre todos.
Para Ost, é o ato de relembrar as alianças historicamente feitas com Deus e Abraão, Isaac
e Jacó que proporciona força suficiente ao povo de Israel a fim de rebelar-se contra a escravidão
egípcia, o que só pode ser feito mediante a (re)narração dos laços que uniam Deus ao povo
hebreu. Em outras palavras, “pra levar adiante a história e reavivar a aliança, há obrigação de
contar: narrativo e prescritivo juntam-se” (p. 77, nota de rodapé).
Embora a linguagem jurídica tenha sido primeiramente utilizada por Moisés junto ao
faraó com o escopo de reivindicar a liberdade hebraica, o líder egípcio não lhe deu ouvidos, já
que não reconhecia qualquer indício de legitimidade no pedido de Moisés.
Diante dessas circunstâncias, Moisés (e Deus) não teve outra escolha a não ser predizer e
lançar as dez pragas sobre o Egito, cujo último ato foi a morte de todos os primogênitos de todas
as famílias egípcias, o que demonstra o caráter simbólico da medida num regime político
baseado na linhagem sanguínea divina. Este é, segundo o autor, o “momento da virada: Israel
volta as costas à lei que oprime e, lançando-se no desconhecido do deserto, assume o risco da ‘lei
que liberta’. É preciso fugir, primeiro, e fazer a experiência do vazio para encontrar a via da
justiça” (p. 79).
Ost ressalta que esse “momento da virada” somente foi possível diante de um “prévio
engajamento” (p. 79) do povo hebreu que se concretizou através da relembrança das alianças
anteriormente feitas com Deus, o que, por sua vez, apenas se viabilizou mediante a obrigação de
contar acima mencionada. Além disso, o engajamento prévio corresponde ao primeiro passo da
responsabilidade e o primeiro ato jurídico (p, 79), embora ainda exista apenas um “princípio de
direito.”

A travessia do deserto ou a escrita da lei dialógica:

A fim de o povo hebreu não esquecesse de suas origens e não abandonassem a aliança,
uma vez que o peso da liberdade parecia excessivo àqueles que, devido a tantos anos de servidão,
haviam se acomodado ao trabalho forçado - o que Draï (DRAÏ, R. La Traversée du désert.
L’invention de la responsabilité. Paris: Fayard, 1988, p. 26) denominou de “‘Egito interior’” (p.
79), “duas medidas são tomadas: o respeito ao repouso hebdomadário (...) do sabá e a instituição
dos juízes (...).” (p. 80).
“A lição é clara: a legalidade só pode fazer sentido para homens livros, ou, melhor ainda:
para homens constantemente re-liberados. Quanto à instituição dos juízes (...), ela responde à
necessidade de uma difusão do direito no povo, de uma reapropriação da regra do julgamento
pelos represententantes das tribos e das famílias, a fim de que não seja monopolizada por
Moisés. Observaremos, de passagem, esse paradoxo, aliás muito frequente na história do direito,
de uma precedência do juiz sobre a lei; não é isso o indício suplementar de que a lei jamais se
enuncia num vazio jurídico? É sobre um fundo de expectativas, de múltiplas formulações
prévias, de negociações sobre o seu conteúdo (pois, antes de sentenciar, o juiz deverá ter ouvido
as teses opostas dos litigantes), que ela acabará por aparecer.” (p. 80).
Em conclusão, podemos dizer que a narrativa no direito auxilia (ou quem sabe
estabelece?) a instauração das leis nos corações dos homens, uma vez que estes acabam por
reconhecer a legitimidade do direito posto, aceitando-o. Sendo assim, foi todo um contexto de
(re)contagem das tradições de um povo que possibilitou a instituição da lei hebraica, cuja
produção se deu de forma dialética entre Deus e a comunidade escolhida.

Oréstia ou a invenção da justiça:

(ÉSQUILO, L’Orestie, trad. e introd. e notas por Daniel Loayza. Paris: Garnier
Flammarion, 2001).

O autor escolheu a tragédia de Ésquilo para instaurar um mito fundante em relação ao


Areópago, tribunal ateniense responsável por julgar as causas de direito. Na época em que foi
redigida - século V a.C. -, Atenas estava passando por um momento político complicado: embora
se caracterizasse como o berço da democracia, a verdade era que as elites ainda monopolizavam
o poder político, que se situava nas mãos dos juízes do Areópago, membros da aristocracia e os
responsáveis por guardar as leis atenienses. A fim de mitigar sua influência, Efialtes “consegue
fazer votar pela assembleia do povo um decreto que limita doravante a competência do Areópago
aos crimes de sangue.” (p. 109). A partir daí, o poder político concentrar-se-ia na Assembleia dos
Quinhentos.
É claro que essa mudança drástica desagradou a elite, que se insurgiu a ponto de ameaçar
a cidade com a invasão de exércitos estrangeiros (p. 109). “Juntamente com o poder da
aristocracia, a referência à tradição, às leis imemoriais, à antiga partilha dos deuses estava sendo
abalada em seus fundamentos.” (p. 109). Sendo assim, Ésquilo escreve sua tragédia com o
escopo de, através da recomposição do imaginário político, chegar à moderação de posições,
uma vez que o radicalismo somente poderia trazer consequências nefastas à pólis (p. 110).
Com base nessas informações, segue a análise feita por Ost da peça grega.

Uma composição polifônica:

O autor alega que não há apenas um discurso reinante na peça, isto é, aquele que narra a
passagem do direito privado à vingança ao direito público. Junto com este se encontram mais
quatro vozes que apontam para uma “composição polifônica” (p. 110), que são:
1. Transformação da justiça do direito privado à pública;
2. Posição política a favor da moderação (entre a Assembleia dos Quinhentos e a
aristocracia);
3. Primeiras noções a respeito da responsabilidade individual, que inexiste na cultura grega
antiga;
4. Entrelaçamento entre deuses e homens e a nova aliança (“drama divino” p. 111);
5. Poder do discurso: “liberação da palavra” a partir, principalmente, da alteração das
Erínias em Eumênides (p. 112);

Início da peça: Agamêmnom:


Ésquilo narra o drama cujo início remonta a períodos anteriores à guerra de Troia.
Segundo o coro, ao partir o Atrida para as terras dos Teucros em busca de vingança ao rapto de
Helena, muitos crimes foram deixados sem a devida punição em Argos, a cidade onde reinava
Agamêmnom, entre os quais se destacam o sacrifício de Ifigênia, sua própria filha, em prol de
obter ventos favoráveis à navegação até Ília (p. 113); o “banquete de Tiestes”, cujo irmão Atreu,
pai de Agamêmnom, ao descobrir que Tiestes e sua mulher haviam cometido adultério, matou os
próprios sobrinhos e mandou cozinhá-los e servi-los num banquete em homenagem ao irmão,
que os comeu sem suspeitar de nada (p. 116); a morte de milhares de homens gregos que
seguiram Agamêmnom para lutar numa guerra cujos enormes esforços não valiam a causa e que
cometeram atrocidades sob o muros de Tróia; os próprios troianos, que segundo Ésquilo,
“pagaram duas vezes por sua culpa” (p. 116).
Diante de tantas atrocidades cometidas, o povo reage, a mulher (Clitemnestra) o trai com
Egisto e a cólera divina se abate sobre os Atridas: Argos vivia num período de dificuldades, e a
tragédia já havia sido pressentida e anunciada na voz do coro.
A partir daí começa uma série de vinganças cujo propósito é fazer justiça aos crimes
cometidos no passado, sendo que a concepção de justiça que vigia na época do pré-direito era
exatamente a lógica da Lei do Talião. Nesse período, não há responsabilidade individual: a
responsabilidade é sempre coletiva, o que significa que os descendentes não estão livres do ciclo
de vinganças que se inicia com o cometimento de um crime.
Aliás, o que se percebe com essa lei é que não há qualquer diferença entre direito e
vingança (p. 118): “em virtude desse princípio, ninguém tem escolha senão a posição da vítima
ultrajada e do vingador ultrajante; todos parecem permanentemente esperar ou temer o
aparecimento das Erínias vingadoras. E, tão logo se obteve justiça, se é levado, por um estranho
movimento de reversibilidade inerente ao próprio talião, a ocupar o lugar do maldito insolente,
(...) vítima já designada da próxima vingança (...).” (p. 118).
O que se tem no talião é uma “causalidade necessária”, uma vez que “cada crime é
interpretado como justa e necessária vingança de um crime precedente.” (p. 118). Além disso, a
responsabilidade pelo crime nunca é individual, no sentido de que, por se caracterizar como uma
vingança, o espírito daquele que foi morto está presente no momento do ato de “justiça”. Isso de
dá, como cita Ost, quando Clitemnestra mata Agamêmnom e anuncia que “por intermédio de seu
braço, foi ‘o antigo flagelo vingador de Atreu que golpeou’ (v. 1 501)” (p. 120).
Aliás, o próprio Agmamêmnom sacrificou sua filha em prol de uma boa navegação não
porque a ideia lhe surgiu “do nada” em sua mente, mas porque o adivinho do reino assim o
predisse no momento dos preparativos para a viagem. Poder-se-ia afirmar que houve, em termos
modernos, uma responsabilidade compartilhada, ou seja, uma incitação ao homicídio.
Com a inexistência de um conceito que atribua liberdade às ações humanas, tampouco há
um direito racional capaz de propor um discurso dialético e argumentativo, pois, em última
análise, não há a separação entre divino e mundano.

As Coéforas ou a vingança consumada:

Nesta segunda parte do drama, há uma alteração radical no tempo da peça: agora não
mais se fala em crimes impunes cometidos no passado, mas sim da vingança que está por vir
contra Clitemnestra devido ao homicídio de seu marido, Agamêmnom. Essa mudança é
simbolizada pela substituição dos personagens do coro: antes este era formado por anciãos;
agora, por mulheres prisioneiras que clamam por vinganla, como é o caso de Electra, filha de
Clitemnestra e Agamêmnon exilada no palácio e desdenhada pela mãe (p. 123).
São as Coéforas que incitam à vingança de Orestes, filho também exilado que retorna a
Argos para o funeral do pai, a fim de que ele cumpra o seu destino. “Mas mesmo essas forças
conjugadas não seriam suficientes para a tarefa se a elas não se juntasse - convém insistir, porque
essa situação tornou-se muito dificilmente compreensível para os nossos espíritos modernos - o
espectro de Agamêmnon, o espírito vingador de seu cadáver. Este terá sido despertado por todo
tipo de imprecações, súplicas e juramentos, palavras mágicas altamente performativas cuja noção
perdemos quase inteiramente, mas às quais os antigos atribuíam poderes consideráveis.” (p. 123).
Vale ressaltar que a lei do talião é essencialmente inflexível e impiedosa: embora aquele
que vingasse o crime estaria fadado a padecer da mesma causa, se acaso não cumprisse com o
seu dever também sofreria os piores castigos: seria considerado - pelos mortos e pelos deuses -
um fora da lei, um errante entre os vivos (p. 124-5). Sendo assim, não há qualquer escapatória do
destino, já que tanto os homens quanto o sobrenatural esperam pelo desfecho inalterável de um
ciclo de vinganças.
Acerca das Coéforas, Ost interpreta que as imprecações e lamentações que elas despejam
sob o túmulo de Agamêmnon se equipara à “queixa” moderna, “a palavra sendo escolhida de
propósito para juntar ao sentido de deploração o significado quase judiciário de ‘demanda’
dirigida a um terceiro para que se faça justiça.” (p. 125). Entretanto, o talião é tão paradoxal que
busca o remédio do mal em sua própria causa, o que o autor denomina de “automedicação em
vez de recurso a terceiro” (p. 126). Dentro dessa lógica, além de provocar uma causalidade
sucessiva infinita, faz com que, reversamente, todos aqueles que procuram a vingança “adotem a
identidade de serpentes” (p. 127). O que isso implica? Ora, que as posições de justo e injusto se
invertem sucessivamente, demonstrando, paradoxalmente, a falta de justiça dessa lei.

As Eumênides e o julgamento de Orestes:

A terceira parte do drama esquiliano concentrar-se-á no “drama divino” entre novos


deuses e deidades antigas, que debaterão acerca da legitimidade da lei posta no mundo dos
homens. É aqui que aparecem Atena, Apolo e as Erínias, bem como se altera o espaço da peça:
agora a história não mais se passa em Argos, mas sim em Atenas.
Orestes, após vingar a morte de seu pai matando a sua mãe, é perseguido pelas Erínias de
Clitemnestra, que nada mais são do que a personificação da lei do talião, anunciando o seu
inevitável destino: a morte. Com o intuito de livrar-se de sua sentença, Orestes busca o auxílio de
Apolo, que originalmente o havia incitado à prática da vingança contra a sua mãe. Apolo, então,
na qualidade de seu advogado, acompanha Orestes à deusa Atena para clamar por justiça (p.
131). Ost chama a atenção ao fato de a causalidade do talião ter sido modificada: Apolo, ao
confessar à Atena que a autoria do crime de Orestes era, em verdade, dele, uma vez que havia
incitado Orestes a matar Clitemnestra, altera o ciclo sucessivo de vinganças que estava ocorrendo
na família do Atrida. No entanto, as Erínias, simbolizando o pré-direito, rejeitam seu argumento,
clamando à deusa pela autoridade de castigar Orestes.
Para resolver a questão, Atena inicia a “instrução processual” do caso Orestes (p. 133).
Este começa sua defesa, mas se embabaca, o que faz com que Apolo intervenha no julgamento
na qualidade de advogado. Todavia, as Erínias fazem de tudo para que Orestes não fale, bem
como trocam insultos com Apolo, impondo assim o comando firme de Atena, que ouve toda a
defesa.
A deusa Atena, por outro lado, não se sente apta a julgar o caso e, para resolver o
impasse, institui um tribunal composto por juízes humanos, mas inspirado pelo respeito às leis e
pela justiça (seu espírito) de nome Areópago. Em seguida, Atena estabelece os princípios que
deverão guiar todos os julgamentos feitos no Areópago, uma vez que sua instituição é perpétua,
ou seja, a partir de então vigerá para todo o sempre (p. 138-9). Dentre eles está o de que se
houver empate na votação, o réu será absolvido (in dubbio pro reu).
As Erínias chiam e discordam veemente: se Orestes for absolvido então todos os crimes
estariam permitidos, sublinhando “o papel que o temor do castigo desempenha no necessário
respeito às leis.” (p. 135). Porém, para esta questão Atena já possuía uma resposta: “‘Nem
anarquia nem despotismo’ (v. 525-526), eis o segredo da justiça e a garantia de uma existência
harmoniosa.” (p. 135).
Após o discurso da defesa e da acusação, os juízes iniciam a votação e Atena vota por
último, a fim de não influenciar os demais. O veredicto da deusa é favorável a Orestes, o que
absolve-o e desagrada as Erínias. Estas, sentindo-se ultrajadas e humilhadas, lançam uma série
de maldições e ameaças à pólis cujo conteúde seria, em resumo, o fim do povo ateniense. Diante
desse quadro, Ost afirma que Atena também foi a responsável por instituir a persuasão (p. 138),
isto é, o convencimento através das palavras, já que após um longo discurso a deusa consegue
finalmente convencer as Erínias a fazerem parte da cidade e, com isso, impedir sua vingança
sobre os homens. Com a aceitação daquelas, transformam-se em Eumênides, agora responsáveis
por inspirar nos homens o respeito às leis mediante o medo da sua sanção (noção de retribuição
remanescente até os dias atuais no direito penal). Esse fenômeno da inclusão das Erínias à cidade
e de sua renomeação é intitulado pelo autor de “superação que conserva” (p. 140).
No entanto, a dupla causalidade continua vigendo dentro dos novos moldes do Areópago,
apesar de Atena indicar a existência das nossas “atenuantes” da pena, como no caso de cometer o
crime movido por grande cólera (p. 139).
Por fim, de acordo com a visão de Ost, toda a peça de Ésquilo conta a “invenção da
justiça” (p. 140), onde os quatro temas anteriormente citados se entrelaçam e, juntos, formam
uma narrativa que institui o início da justiça em Atenas, narrativa essa capaz de tocar o coração
dos atenienses justamente porque eles se identificam com ela, uma vez que Ésquilo genialmente
utilizou das raízes culturais da pólis para justificar uma estrutura nova.
Assim, o autor alega que essa narrativa trouxe um direito inédito tanto no plano
procedimental - com a instauração do Areópago e do julgamento pautado na discursividade, na
razoabilidade e na produção de provas - quanto no plano substancial - este será melhor analisado
a seguir.

Ato de direito:

Ost defende que a instituição do Areópago na peça de Ésquilo simboliza um verdadeiro


ato de direito: Palas, ao negar o juramento como forma jurídica, funda o tribunal e sua lei “para
sempre” (p. 143). O ato “inscreve-se no futuro anterior de uma legitimidade retroativa: o
Areópago terá sido desde sempre legítimo, a partir do momento em que se inscreve numa
lealdade em relação a um juramento e a uma lei de Atena que terão sido desde sempre
instituídos.” (p. 143).
Em verdade, esse ato de instituição se dá a posteriori, isto é, foi a voz de Atena que
decide o julgamento de Orestes, responsável pela instauração de um novo direito: o de ser
absolvido onde antes vigia a inflexibilidade do talião. Ademais, a deusa estabelece as regras do
julgamento antes de iniciá-lo, dentre as quais está presente a de que, no caso de empate,
prevalece a defesa. O autor afirma que essa norma de fato vigia em Atenas à época de Ésquilo,
bem como Aristóteles a havia justificado sob o argumento de que a existência de dúvida no júri
era suficiente para inocentar o acusado, uma vez que a defesa estaria sempre em desvantagem
argumentativa em relação à acusação (p. 144).
Apesar de a peça narrar uma passagem importante no direito ateniense - a instauração de
um tribunal de julgamento cujo intuito é romper a lógica do talião -, Ost afirma que não se deve
interpretar a obra de Ésquilo com olhares demasiados modernistas, já que não houve, de fato,
uma ruptura completa entre o sistema antigo e o novo no direito ateniense. A partir de uma
análise pontual, o autor defende que o talião continuou, de certa forma, a existir dentro da lógica
“racionalista” e argumentativa imposta pelo Areópago. Prova disso seria a incorporação das
Erínias à pólis sob o nome de Eumênides, situação que demonstra a “continuidade dialética” do
sistema vindicativo (p. 146).
O autor desenvolve essa tese da “continuidade dialética” através de três proposições: “I) a
vingança apresenta aspectos positivos que fazem dela uma forma muito difundida de pré-justiça;
II) a superação operada pela fundação do Areópago é uma Aufhebung (progresso que integra o
antigo ultrapassando-o ao mesmo tempo) mais do que uma liquidação da vingança; III) a justiça
‘moderna’ e pública apresenta aspectos negativos, no mínimo desvios possíveis, que as tragédias
gregas ulteriores não deixarão de evidenciar.” (p. 146).
A respeito da vingança, Ost a diferencia do “sistema vindicativo”, sendo este “o objeto de
uma codificação consuetudinária rigorosa suscetível de contê-lo [a vinganã] dentro de limites
aceitáveis.” (p. 146). Sendo assim, “a vingança pertence por um duplo aspecto à dikè: ela se
inscreve sob o código de honra de sociedade de iguais e, por outro lado, traduz o cuidado de
restaurar a reciprocidade das trocas que a afronta desequilibrou.” (p. 146).
Corrobora a visão do sistema vindicativo o fato de que nem sempre o mal era combatido
com mal, uma vez que, em alguns casos, se era possível “indenizar” o dano ou ainda repará-lo de
outra forma. O autor também cita o argumento de Aristóteles de que a vingança é o ato dos
homens livres e está ligada à honra (p. 147).
Além disso, o sistema vindicativo possibilita a alteração das posições ocupadas pelo
vingador e pelo autor do ultraje (p. 148). Em outras palavras, significa que a noção de vingança
continuará vigente na sociedade grega clássica, pois “tanto o juiz (...) quanto o justiceiro (...) são
vistos como vingadores (...), defensores da honra das pessoas ultrajadas.” (p. 148). Ost afirma
que essa concepção de justiça privada continuará vigente até muito tarde na história do direito,
quando então o Estado monopolizará a força coercitiva. Aliás, é justamente por esse monopólio
da força que o Areópago se destaca.
Conforme já foi dito, o que a continuidade dialética demonstra é que as Erínias foram
transformandas em Eumênides e incorporadas à pólis, onde passaram a ser objeto de veneração.
Essa passagen caracterizaria que o ponto em comum entre ambas as entidades é justamente o
pavor das leis (p. 149-50), tese que Ost retira de K. Reinhardt (Eschyle. Euripede, p. 171). Isso
significa que as leis são as responsáveis pelo desenvolvimento da sociedade e, por isso, sua
infração deve ser punida com castigos temíveis aos homens (noção de retributiva da pena?).
Diante dessa concepção, o autor conclui que a justiça sempre dependerá de um pouco de
violência (p. 150). Essa interpretação vem de J. Bollack e P. Judet (“La dissonance lýrique…”,
op. cit., p. 211) e compreende que “o talião deve ser autonomizado como uma instância arcaica,
já que ele está na violência que o direito utiliza para se impor.” (p. 150-1). Por fim, “a integração
das Erínias no núcleo da cidade e a irrupção de sua ‘filosofia’ no ato constitutivo do Areópago
vêm oportunamente compensar o déficit de historicidade e de singularidade que o ideal
processual expresso pelas novas instituições apresenta” (p. 151).
“Desse ponto de vista, as Erínias representam, na argumentação, o peso das razões tiradas
da história sempre singular das pessoas, os direitos da memória, as coerções de seu destino, os
laços (...) de sangue e de família - todo um conjunto de elementos que pesam muito no processo,
que é preciso saber ultrapassar e racionalizar, certamente, mas que seria ilusório e mesmo
perigoso pretender ignorar” (p. 151-2).
Outro fator importante disposto na obra de Ésquilo é a importância dos rito, já que “ele
mobiliza todos os recursos do rito a fim de reavivar a autoridade necessária para manter a
violência à distância, essa autoridade que é a energia sempre disponível do ato de fundação que o
rito tem precisamente por função lembrar e cujo relato é feito por Ésquilo.” (p. 150).
Acerca ainda as Erínias como símbolo da memória da comunidade e dos indivíduos em
relação à sua história em conjunto com o discurso argumentativo e racionalista instituído pelo
Areópago, Ost conclui que “assim é traçado o caminho do processo moderno como delicada
articulação entre, de um lado, uma lógica deliberativa que restringe o campo dos destinos
singulares e das morais comunitárias, mas se expõe aos perigos da abstração vazia e mesmo às
violências da razão, e, de outro lado, uma lógica narrativa que reconhece as pessoas (a começar
pelas vítimas), mas se arrisca sempre a se encerrar na repetição de uma violência em espelho” (p.
152).
Ademais, Ésquilo concebe uma nova forma de justiça, compreendida pelo autor como a
sua forma mais elevada: o perdão - que é “ao mesmo tempo gesto de memória e uma aposta no
futuro” (p. 152). O perdão se mostra com a absolvição de Orestes.
Por fim, pode-se dizer quea mensagem de Ésquilo se resume a: “na democracia é dada
confiança ao procedimento, os deuses limitando-se - mas é o essencial - a lembrar suas condições
de possibilidade: respeito às leis e temor do castigo no que se refere ao direito, justiça e
moderação no que se refere à política” (p. 163).

Antígona: no começo era a minha consciência

Neste capítulo Ost trabalha com a noção de desobediência civil diante da rejeição
consciente do direito oficial (aquele posto pelo Estado) - em especial, quando se trata da
liberdade.
O “instituto” da desobediência civil é previsto pelo Estado de Direito e pelo artigo 2º da
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão como direito de resistir à opressão (p. 175). O
autor defende que existem inúmeras formas de se insurgir contra as arbitrariedades do poder, e
que vão desde a própria desobediência civil até a revolução armada, e que esse conceito de
revolução se designa no sentido de “operar um retorno às fontes, em direção a esses direitos
originários.” (p. 175). É dessa concepção de direito ideal - nos termos utilizados por Ost - que
engendra personagens como Antígona, que se sobrepõem às leis estatais em prol de uma justiça
transcendente a elas.
Assim, a desobediência civil seria um retorno a princípios anteriores ao direito
positivado, “invocando, ontem, ‘as leis não escritas dos deuses’, hoje, a irrecusável dignidade da
pessoa humana.” (p. 174). O ato de voluntariamente se colocar contrário às leis do Estado denota
uma liberdade de consciência do indivíduo que ultrapassa o conceito de justo instituído pelo
poder, e foi justamente em prol da defesa dessa liberdade que muitas revoluções modernas
ocorreram. Aliás, somente com o tempo a liberdade de convicção foi concebida e positivada
como direito fundamental.
‘É ao se apoiarem nesses princípios fundadores que os ‘desobedientes civis’ entendem
denunciar uma lei, um julgamento, uma política administrativa ou policial (...).” (p. 175). Aliás,
o autor alega que embora o ato de desobediência civil se caracteriza pela não utilização da
violência, “nem todas as revoltas são necessariamente não violentas, e nem todas se baseiam em
normas ou valores reconhecidos no seio da sociedade em que se exercem.” (p. 178).
Diante dessas considerações preliminares, passamos à análise da pela de Sófocles.
Existem muitas interpretações feitas a respeito de Antígona. Apesar de existirem
divergências, todos concordam que a personagem é um dos maiores modelos de resistência à
opressão do poder, resistência que “só aparece como um remédio último quando todas as outras
saídas, jurídicas e políticas, fecharam-se.” (p. 183). Isso porque “tanto o justo legal como o bem
político podem eles próprios se revelar injustos e maus se acabam por se absolutizar, esquecidos
do espaço terceiro, instituinte (e, nesse sentido, indisponível), no seio do qual operam.” (p. 183).
Embora o ato de Antígona seja amplamente interpretado como a oposição existente entre
direito natural e direito positivo, Ost prefere chamá-los por outros termos (menos redutivos):
direito ideal e direito em vigor. Ademais, o ponto de partida para a análise da peça se dá através
da seguinte premissa: “toda justiça origina-se por uma denegação - a recusa da injustiça.” (p.
184).
Para além das concepções tradicionais sobre o que representaria Antígona e Creonte
(desde a oposição entre universos totalmente distintos e inconciliáveis até interpretações
psicanalíticas cujo intuito é sondar os desígnios da personagem), Ost faz uma lista de termos com
conotação jurídica utilizados pelos personagens principais (p. 191). Dentre elas, as que se
destacam são dikè, nomos e nomina. Dikè “personifica uma justiça mais moderna e mais
humana. Significando também regra e castigo, Dikè é com frequência representada sobre as
urnas funerárias: íntima de Hades, o deus dos infernos, ela se preocupa com a justiça reservada
aos mortos - a ligação com o argumento de Antígona é evidente. Antígona refere-se a ela várias
vezes, em passagens decisivas, como a uma exigência superior de equidade.” (p. 194). Nomos é
“lei” e “é lançado por cada protagonista no sentido conforme a suas ideias. Na origem, nomos é a
regra que preside às partilhas, a norma que diz o limite (...). Definindo assim o que cabe a cada
um, nomos não estava fixado em nenhum domínio preciso antes do século V, aplicando-se tanto
aos cânones musicais e aos ritos religiosos quanto aos costumes locais.” (p. 194-5). Somente
com a instituição da democracia em Atenas é que o termo começou a designar “norma fixa”, e é
nele que se concentram as dúvidas a respeito da escolha da autonomia em detrimento da
heteronomia - como até então vigia na Grécia clássica (p. 195). Nomima, por sua vez, designa as
leis divinas não escritas: a lei natural que vige entre todos os gregos. “As leis comuns às cidades
gregas asseguradas por um consenso universal.” (p. 196).
A partir dessas diferenciações, Ost declara que “o nomos político só tem validade dentro
do quadro traçado pelas nominas divinas e imemoriais - aquelas que, no caso, exigem o
cumprimento, segundo o desejo dos deuses subterrâneos, dos ritos funerários aos restos mortais.”
(p. 196). Podem-se resumir as posições dos protagonistas nos seguintes termos: “para Creonte,
chefe político da cidade recentemente empossado, o nomos, a lei do Estado, exprime-se em
éditos e proclamações (kèrugma); significa uma série de regulamentações ou medidas destinadas
a ‘policiar’ o corpo social. (...) Para Antígona, ao contrário, o nomos político encontra sua
legitimidade, mas também seu limite, no respeito às exigências de Dikè, a equidade, a justiça
tradicional e não escrita dos deuses que as regras consuetudinárias mais fundamentais (nomima)
exprimem.” (p. 197).

Uma leitura dicotômica:


Como já dito, as interpretações clássicas de Antígona versam sobre a dicotomia entre os
universos inconciliáveis personificados por Creonte e Antígona. O primeiro se destacaria por ser
“prisioneiro de uma concepção estreita de bem público e da lei, insensível às diversas exigências
da pólis, à variedade de seus componentes (...), aos limites de validade da ordem política.” (p.
199). “A partir do momento em que o vínculo político é entendido como relação unilateral de
dominação, e a lei como expressão da vontade do chefe, é uma polis unidimensional, rígida e
estática que Creonte defende,” (p. 199).
Já Antígona, por sua vez, possui um apego desmensurado pelos laços de família e uma
fidelidade rígida a uma justiça divina que não abre espaço para a compreensão das exigências da
polis (p. 200). É um personagem que praticamente rompe com a vida cívica, tornando-se solitária
e incompreendida.
Esses dois universos somente estão em harmonia, de acordo com a interpretação de Hegel
(HEGEL, G. W. F. La Phénomenologie de l’esprit, trad. J. Hyppolite, t. II, Paris, Aubier-
Montaigne, s.d., p. 14-43) discorrida por Ost, quando estáticos: “o resultado desse confronto
trágico será a destruição mútua e o desaparecimento dessas duas essências, igualmente vencidas
pelo destino.” (p. 201).
Por isso, o autor defende que a proposta de Sófocles não é de escolher entre o direito
posto e o direito ideal, mas sim de “preservar as condições de seu confronto permanente.” (p.
205).

Um direito ideal: procedimental ou substancial:

Para Ost, a função da tragédia é fomentar o debate entre as leis postas e a sua justiça
inerente. “Com efeito, é possível que uma regra seja justa em seu princípio, mas se revele injusta
em situação (...)” (p. 206): nesse caso, a sua interpretação poderia ser dosada pelo procedimento
judiciário, que poderia criar uma exceção à regra. Já nos casos em que a lei é injusta na origem, o
procedimento legislativo deve ser invocado para revogá-la ou modificá-la.
Este seria o intitulado “mérito procedimental” (p. 206) da relação dialética entre ambos
os mundos. Entretanto, não é apenas no campo procedimental que se revela tal mérito: o “mérito
substancial” se expõe como resultado da discussão de valores substanciais no sentido de
constituição da intersubjetividade humana - “as relações dos sexos, das gerações, dos vivos e dos
mortos - que forma como que um dado indisponível a partir do qual, mas não para além ou
contra o qual, se inscreve a ação cotidiana.” (p. 207). É o direito posto encontrando legitimidade
na história da comunidade: “(...) é preciso compreender que essas construções não se elevam
senão sobre um terreno previamente aplainado pelas interdições civilizatórias originárias cujo
eco ensudercido ressoa ainda na poesia trágica.” (p. 207).
Nesse sentido, o desafio do direito ideal é “lembrar o quadro transcendental da
intersubjetividade humana, o indisponível fundador que não cessa de ser reinterpretado, mas que
não poderia ser rejeitado sem uma exposição ao caos primitivo. Limites são assim traçados à
autonomia política e ao domínio do direito em vigor.” (p. 208).
Apesar de Sófocles, na perspectiva de Ost, sugerir que essa via dialética poderia ser
utilizada pelos protagonistas da tragédia, não é esse o desfecho dado a uma história onde os
universos cujos personagens representam sejam tão fechados. Creonte deixa o mundo de pernas
para o ar quando condena Antígona viva ao mundo dos mortos e deixa Polinices (seu pai/irmão)
morto no mundo dos vivos. “Creonte encarna ao mesmo tempo os poderes legislativo, executivo
e judiciário: ele elabora a lei, conduz a acusação, assegura a instrução do processo, pronuncia o
veredicto, concede ou recusa o indulto. Essa confusão dos poderes talvez pudesse ser
compensada pelo exercício de uma defesa digna desse nome, mas os que argumentarão em favor
de Antígona logo terão sua palavra desqualificada e se verão reduzidos ao silêncio: Hêmon, o
coro e Tirésias farão sucessivamente essa experiência.” (p. 212).
Além disso, Creonte é um juiz parcial, pois Antígona é, antes de tudo, sua sobrinha e faz
parte do seu próprio genos. Sua paixão cega contrária à causa dela aumenta sua parcialidade,
pois a acusou sem ao menos ouvi-la antecipadamente. Ademais, a sentença dada por Creonte é
irrecorrível, sem contar na impossibilidade de indulto (p. 213).
“O universo de Creonte é estritamente unidimensional: sua concepção do direito se reduz
à reafirmação compulsiva da lei. A ideia de que uma lei, aceitável em seu princípio, possa
tornar-se injusta com o tempo ou em razão das circunstâncias lhe escapa totalmente.” (p. 213).
Em Creonte há a falta do que o autor chama de “prudentia jurídica”, ou seja, a ponderação entre
a lei posta e o caso concreto: “é o juiz, terceiro imparcial socialmente instituído, que é confiada a
tarefa de levar em consideração a singularidade do casu, mas sem perder de vista o princípio
abstrato inscrito na regra.” (p. 209).
O que se depreende, em conclusão, é que a legitimidade do direito aplicado ao caso de
Antígona perpassa ao campo político: possui Creonte autoridade para manter o decreto expedido
contra a opinião do povo? (p. 214). Para o autor, a ficção literária utiliza um cenário político
generalizado para que possa ser interpretada em qualquer cidade grega. Em outras palavras,
“indícios suficientes ligam-na [a tragédia] à realidade presente para tornar plausíveis e
significativos os debates políticos que ali se desenrolam, mas elementos suficientes sugerem o
caráter estrangeiro dessa polis para que a crítica sofocleana - especialmente quanto aos limites da
autonomia política - não se choque de frente contra seu auditório ateniense.” (p. 215).

Regime político de Creonte

Na peça, não se discute a legitimidade do poder de Creonte, que reina soberanamente


com o apoio de uma aristocracia. Dentre os princípios do reinado de Creonte se destacam o
prevalecimento do bem público acima de tudo; a ausência de qualquer influência sobre suas
decisões; divisão entre amigos e inimigos do estado, numa lógica maquineísta (p. 215).
Apesar de esses princípios demonstrarem uma nova razão de estado frente à lei dos
genos, Creonte logo revelará seu verdadeiro caráter: “(...) incapaz de levar em conta qualquer
outra dimensão que não política, mas também reduz, por outro lado, o vínculo político a uma
relação de dominação, o que faz que não cesse de reafirmar seu poder pessoal contra cada um de
seus interlocutores, sucessivamente suspeitos de atentarem contra sua supremacia.” (p. 216-7).
Em sua conversa com o filho Hêmon, Creonte “revela a face oculta de sua ideologia
política. Esta se reduz, em última instância, a uma concepção disciplinar das relações políticas - a
disciplina devendo reinar tanto na família, molde no qual se formam os futuros cidadãos, quanto
na cidade.” (p. 217). Ou seja, o cidadão deve ser dócil e submisso na concepção de Creonte.
Outro fator que reitera o caráter extremamente autoritário de Creonte é a não presença do
povo na tragédia. A ausência do povo junto com uma heroína mulher leva à conclusão de que
“todos aqueles que, habitando do lado do informal e do noturno, encarnam a face oculta do
político (...), a grande ameaça de anarquia (...).” (p. 219).
Creonte é surdo ao diálogo e “acaba por colocar todo mundo fora da lei” (p. 220), pois se
autodelega um poder que inclui decidir, inclusive, o que é injusto. Logo, o medo toma conta e
substitui o vínculo social; medo que só Antígona e Hêmon souberam aniquilar (p. 221). Creonte
apenas entende a linguagem da força. A conclusão de Sófocles, segundo Ost, é a de que a
política deverá ser sempre um jogo de deliberação e discussão, havendo a “(...) necessidade de os
articular permanentemente (...).” (p. 221).

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