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Direita e esquerda na história:

considerações pontuais acerca de


alguns casos de dislexia conceitual
Muniz Ferreira*1

Um dos componentes fundamentais da ofensiva combinada das di-


reitas neoconservadora e neoliberal na atualidade brasileira é a demoniza-
ção das forças de esquerda e a reivindicação de todos os méritos históricos,
econômicos e conceituais para si próprias. Elemento constitutivo da onda
contrarrevolucionária, que tem varrido a maior parte do mundo desde o final
dos anos 1980, este expediente fraudulento constitui a manifestação ideoló-
gica e discursiva dos propagandistas da perenidade da ordem burguesa,
no sentido de impugnar preventivamente todos os esforços de recomposi-
ção das forças anticapitalistas nos terrenos político, social e intelectual em
escala local, regional e mundial.

———————
* Muniz Ferreira é professor do Departamento de História e Relações Internacionais da
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRJ).
MUNIZ FERREIRA

Manejando sistematicamente a massiva supremacia que exercem


sobre os meios de comunicação, a indústria cultural e outros instrumentos
de formação da opinião pública, ventríloquos e escribas, comunicadores e
artistas midiáticos, acadêmicos enquadrados e pretensos filósofos têm-se
colocado a serviço das mais impressionantes revisões histórico-conceituais
comprometidas com a realização do objetivo mencionado. Inscrevem-se
neste repertório geral as tentativas de apresentar o fascismo e o comunismo
como fenômenos políticos não apenas equivalentes em sua suposta malig-
nidade, mas também integrados ao mesmo hemisfério político: aquele ocu-
pado pelas forças de esquerda.
Os breves apontamentos seguintes visam oferecer argumentos para
a desconstrução desta insidiosa alquimia discursiva, a qual, pretendendo
redefinir os termos do debate histórico político, não tem logrado produzir
outra coisa, senão um patético exemplo de dislexia conceitual.

Direita e esquerda — conceitos dinâmicos

As elaborações originais dos conceitos “direita” e “esquerda” defi-


niam diferentes atitudes adotadas em face da Revolução Francesa. Sua
acepção preliminar nomeava as diferenciações, no âmbito do próprio pro-
cesso revolucionário, entre as forças sociopolíticas interessadas em acelerar
e aprofundar os aspectos mais radicais (no sentido de resolver pela raiz os
problemas identificados pelo projeto revolucionário) das forças que, ado-
tando uma postura de gradualismo e moderação, comprometiam a execu-
ção dos próprios objetivos proclamados na agenda da revolução. Tomando
como referência uma prosaica distinção entre os lugares habitualmente ocu-
pados pelos representantes jacobinos (esquerda) e girondinos (direita) no
interior da Assembleia Nacional, as designações diferenciavam projetos po-
líticos e apoios sociais substancialmente distintos.

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A furiosa oposição, que não hesitou em recorrer à invasão militar,


apresentada pelo mundo aristocrático europeu aos acontecimentos france-
ses, ratificou e cristalizou a confrontação entre um campo político revolucio-
nário burguês e popular, de esquerda, e outro aristocrático e contrarrevolu-
cionário, de direita. Deste modo, a contraposição inicialmente referida ao
debate parlamentar francês adquiriu contornos internacionais ainda mais ní-
tidos e profundos. A uma esquerda revolucionária popular e patriótica (pa-
triotes foi uma das designações que os revolucionários atribuíram si mesmos
em contrapartida aos emigrés, aristocratas que partiam para o exílio) contra-
punha-se agora uma direita nobiliárquica e transeuropeia.
A derrota militar dos exércitos bonapartistas, portadores dos últimos
vestígios institucionais do espírito revolucionário que se apoderou da França
em 1789, possibilitou a cristalização de uma ordem continental politicamente
autocrática e elitista e ideologicamente contrarrevolucionária. O diktat im-
posto pela Convenção de Viena ao mundo europeu, que reivindicava a legi-
timidade dinástica como critério para o reconhecimento dos governos, con-
solidou, em caráter definitivo, o confronto irreconciliável entre as forças polí-
ticas republicanas, jacobinas e democráticas de esquerda e os poderes mo-
nárquicos, absolutistas e conservadores de direita. Com a incorporação das
forças socialistas, assentadas nos interesses classistas e nas reivindicações
operárias, ao território das esquerdas, a partir de 1830, configurou-se, em
sua quase totalidade, o campo político da esquerda europeia oitocentista,
restando como ressalva a volatilidade histórico-política da vertente liberal em
suas oscilações de percurso.
Desde o seu advento no século XVII inglês, o liberalismo político se
apresentava como alternativa à concepção democrática da soberania popu-
lar (no terreno filosófico, conceito elaborado a partir da noção rousseauniana

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de Vontade Geral), sacralizando, desde sempre, os direitos naturais do indi-


víduo em contraposição aos direitos soberanos do Estado. Ao assentar o
sistema político sobre o contrato entre os cidadãos, não hesitou, no entanto,
em hierarquizá-los entre aqueles aptos a constituírem o governo civil (os pro-
prietários) e os privados de tal aptidão (os não proprietários), renomeados,
nos escritos de John Locke como cidadãos “ativos” e “passivos”.
No contexto da Restauração Monárquica Francesa (1815-1848) e da
Primavera dos Povos de 1848, o liberalismo, através da pena de pensadores
continentais, como Benjamin Constant, consolidou sua completa dissocia-
ção das perspectivas jacobinas, republicanas e democráticas. Apegando-
se à defesa da monarquia constitucional e aos sistemas censitários de re-
presentação política, descomprometeu-se até mesmo com a defesa do su-
frágio universal. Diferenciando as liberdades políticas próprias da democra-
cia clássica em detrimento das liberdades individuais características da mo-
dernidade, descomprometeu-se com a defesa dos direitos exercidos na es-
fera pública em troca da garantia da intocabilidade da esfera privada.1
Este deslocamento da consciência liberal do território republicano,
democrático e radical e sua reconciliação gradativa com as forças políticas
aristocrática e conservadora repercutiu também na esfera intelectual e cul-
tural. Ao aderir, na esfera da cultura, aos formalismos artísticos, ao esteti-
cismo aristocratizante, ao culto da intimidade à sombra do status quo, abriu
caminho para a ofensiva das forças da reação no âmbito do pensamento,
possibilitando um assalto aberto à Razão emancipatória e a sua desfigura-

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1
CONSTANT, Benjamin. Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos (1819). Revista
Filosofia Política, n. 2, 1985.

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ção instrumentalizadora, como no exemplo paradigmático do social-darwi-


nismo de Herbert Spencer, companheiro de viagem do vitalismo nietzschi-
ano, ambos antecipadores da ética e da estética fascistas do século XX.2
É evidente, no entanto, que nem todos os integrantes da corrente
liberal percorreram todas as estações desta trajetória sinuosa. No próprio
Reino Unido de Locke e Spencer — onde o liberalismo se encarnou em um
partido político, no sentido peculiar atribuído a esta expressão no século XIX,
uma tendência da esquerda Whig se permitiu uma aproximação com o ope-
rariado cartista, para a apresentação de proposições ao parlamento volta-
das para a ampliação do direito ao sufrágio. Em outras partes — na Rússia,
por exemplo —, liberais se ergueram contra o absolutismo tzarista, man-
tendo vivo o imaginário antidespótico que animou esta corrente em sua in-
fância política na Europa Ocidental. Em linhas gerais, entretanto, as suces-
sivas concessões, recuos e conciliações com as forças do velho mundo,
praticados pelos segmentos mais representativos da consciência liberal eu-
ropeia, abriu caminho para uma ofensiva geral das forças conservadoras e
reacionárias na virada do século XIX para o XX. Ao proceder desta forma,
propiciou a ocorrência de fraturas irreversíveis que, a partir de então, cindi-
riam o território liberal em uma esquerda política adjacente ao campo demo-
crático e radical, um centro político aderente ao status quo, e uma direita
cúmplice das vertentes mais retrógradas e antipopulares.
Por outro lado, ao manifestar sua compatibilidade com o conserva-
dorismo no terreno da política, a direita liberal iniciou um movimento, o qual,
ao término de várias décadas de aproximações, tensões, atritos e conver-

———————
2
MAYER, Arno J. A burguesia se inclina. A força da tradição: a persistência do Antigo Regime.
São Paulo: Companhia das Letras, 1987. Ver também: SCHORSKE, Carl E. Viena Fin-de-Siècle.
São Paulo: Unicamp; Companhia das Letras, 1988.

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gências, acabou por emprestar seu programa econômico privatizante, indi-


vidualista e antioperário para ser colocado em prática por governos de con-
fissão conservadora ou neoconservadora.3
Resta dizer que a esquerda — configurada no processo da Grande
Revolução, primeiro em suas variantes democrática radical, republicana e
jacobina; mais tarde igualitária e comunista —, na Conspiração dos Iguais
liderada por Grachus Babeuf, também seguiu seu rumo. Impulsionada pela
sensibilidade social de intelectuais e reformadores humanistas como Saint
Simon, Fourier e Robert Owen e pela militância política de homens como
Louis Blanc e Auguste Blanqui uma nova esquerda socialista foi adquirindo
forma. Com a adesão de Marx e Engels ao movimento em meados dos anos
1840 e a posterior reelaboração teórico política da teoria socialista em um
sentido revolucionário e proletário, a ala mais radical do campo da esquerda
passou a ser ocupada pela vertente comunista e sua concorrente anar-
quista. É este amplo leque de forças de esquerda, dos jacobinos aos comu-
nistas, passando por anarquistas e blanquistas, que protagonizou a mais
importante experiência de exercício de poder pelas massas populares, in-
cluindo seu núcleo proletário na segunda metade do século XIX: a Comuna
de Paris. Acontecimento impactante, que provocou, como resposta, um re-
crudescimento elitista e conciliador no campo liberal; autoritário e antipopu-
lar no âmbito conservador, e propiciou um deslocamento de forças situadas
na ala direita desta corrente para posições ainda mais reacionárias e regres-
sivistas (tradicionalismos religiosos e seus derivados políticos).4

———————
3
Cf. GOOBY-TAYLOR, Peter. Welfare, hierarquia e “nova direita” na era Thatcher. Lua Nova, n.
24, set. 1991.
4
BRESCIANI, Maria Stella. O pensamento político conservador após a Comuna de Paris. In:
BOITO JR., Armando (Org.). A Comuna de Paris na História. São Paulo: Xamã, 2001.

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A corrente conservadora, como o nome indica, surgiu como expres-


são política da defesa dos princípios, valores e instituições políticas carac-
terísticas da Europa do Antigo Regime. Autocrática, anti-igualitária e elitista,
representou a encarnação, como já foi dito, da mais fidedigna reação do
mundo aristocrático europeu à Revolução Francesa. Os princípios funda-
mentais, que advogou desde a sua gênese foram os seguintes: a) a preemi-
nência da ordem sobre as liberdades, tanto individuais quanto coletivas; b)
privilégio da autoridade sobre a representação política; c) prioridade da le-
gitimidade do poder de Estado em relação às demandas procedentes do
tecido social.5
Em suas origens, visceralmente antiliberal e antidemocrático, para
não dizer antioperário e antissocialista, o conservadorismo, em sua irradia-
ção continental e evolução temporal, incorporou novos componentes à sua
matriz inicial. Destarte, em sua sedimentação no interior dos mundos medi-
terrâneo, latino e católico incorporou outros elementos a sua identidade po-
lítica, como o paternalismo hierárquico; a rejeição romântica da moderni-
dade; a defesa do direito divino dos reis, a prédica da monarquia católica: a
combinação do integrismo teológico com o elitismo político social, o organi-
cismo social como doutrina, e o corporativismo como programa de reestru-
turação das relações entre o capital e o trabalho, de modo a prevenir a luta
de classes.6
Do mesmo modo, no cenário histórico do mundo germânico seten-
trional tendo como eixo central o Reino da Prússia, uma variante específica
do conservadorismo político estabeleceu seus contornos no curso do pro-
cesso de unificação alemã concluído em 1871 com a criação do Império

———————
5
Cf. MAYER, op. cit., 1987.
6
STERNHELL, Zeev. A modernidade e seus inimigos! In: STERNHELL, Zeev (Org.). O eterno
retorno: contra a democracia a ideologia da decadência. Lisboa: Editorial Bizâncio, 1999.

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Hohenzollern. Tratava-se de uma vertente que, ao combinar conservação e


transformação, modernidade e tradição, instituiu a chamada “via prussiana”
do desenvolvimento do capitalismo mundial. Destacou-se, nesta vertente, a
nação, não mais compreendida como a expressão da soberania popular
(como no discurso dos revolucionários franceses de 1879) nem como encar-
nação política da substância abstrata e genérica do Volk (povo), como pos-
tulado pelos românticos e pangermanistas. A questão da nação se resolvia
com a constituição do Estado, estabelecendo a equivalência conceitual
Staat-Nation, sem espaço para veleidades “utópicas” e românticas do tipo
Nation=Volk.7
Mais de um século depois, no mundo anglo-saxão, o conservado-
rismo conheceu um novo surto de aggiornamento em sua cultura política,
combinando o recrudescimento de sua oposição à modernidade sócio-polí-
tica (democracia, socialismo) e cultural (modernidade, iluminismo) com a in-
corporação plena da plataforma liberal na economia, agora, na verdade,
neoliberal.8

Direita, militarismo e práticas exterministas

A utilização massiva das instituições repressivas do Estado e de for-


ças militares na coibição das classes subalternas em rebelião e no controle
dos setores populares em situações normais é tão antiga quanto a existência
do Estado e da luta de classes. Na época contemporânea, a militarização
da política pelos detentores do poder constitui uma regularidade inscrita no

———————
7
BENNER, Erica. Really existing nationalisms: a post-communist view from Marx and Engels.
Oxford: Clarendon Press, 1996.
8
Cf. GRAY, John. Falso amanhecer: os equívocos do capitalismo global. Trad. Max Altman. Rio
de Janeiro: Record, 1999.

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tempo da longa duração. A invasão militar, a formação de coalizões agres-


sivas e um quarto de séculos de guerras sucessivas contra a França, revo-
lucionária primeiro e bonapartista depois, foram os expedientes empregados
sem qualquer constrangimento pelas potências aristocráticas europeias
para alcançar a restauração da monarquia absolutista no território francês.9
Execuções em larga escala, mobilização de destacamentos militares
contra populações civis, fuzilamentos sumários de lideranças revoltosas fo-
ram os expedientes utilizados pelas forças da ordem no sistema internacio-
nal da Convenção de Viena, para esmagar as reivindicações nacionais, po-
pulares e operárias, tanto na Primavera dos Povos como nas guerras de li-
bertação do povo italiano ou na Comuna de Paris. Inversamente, foi através
de guerras sucessivas, as quais manifestavam um poder destrutivo que au-
mentava direta e proporcionalmente com a incorporação das descobertas
científicas e a evolução dos recursos industriais aplicados à arte da guerra,
que as classes aristocráticas associadas aos estratos superiores das bur-
guesias resolviam suas pendências com os de baixo e administravam as
relações entre si. Uma nítida ilustração disto são os conflitos bélicos interes-
tatais ocorridos sob a vigência do “sistema de segurança coletiva” pactuado
na Convenção de Viena: Guerra da Criméia (1853-1856); Guerra Austro-ítalo-
francesa (1859-1860); Guerra dos Ducados, entre a Alemanha e a Dina-
marca (1864); Guerra Austro-Prussiana (1866); Guerra Franco-Prussiana
(1871) e, finalmente, a guerra que implodiu aquele sistema, A Primeira
Guerra Mundial (1914-1918).10

———————
9
LOSURDO, Domenico. A revolução, a nação e a paz. Estudos Avançados, v. 22, n. 62, 2008.
10
HOBSBAWN, Eric. A construção das nações. In: ________. A era do capital. São Paulo: Paz e
Terra, 1996.

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Como resultado destes desenvolvimentos, dois elementos de


grande importância histórica se consolidaram no interior do mundo das
ideias de então. Em primeiro lugar, o militarismo, alimentado pela crença na
utilização da força como o recurso mais eficiente para solucionar disputas e
contenciosos entre os Estados. A mais característica corporificação desta
concepção foram a aristocracia Junker da Prússia, conduzida através de
sucessivas operações militares, ao comando do Império Alemão (em 1871),
e a condição de potência ascendente no sistema de poder mundial no final
do século XIX.11
O segundo elemento foi o nacionalismo. Na época das guerras tec-
nológicas (metralhadoras, encouraçados, submarinos e aviões de combate),
com capacidade crescente de provocar danos à própria população civil e
letalidade sem precedentes, tornou-se indispensável a disseminação de ide-
ologias que mobilizassem para a morte exércitos de milhões de pessoas e
persuadisse outros tantos milhões de civis a suportarem as vicissitudes e
privações produzidas pela guerra. Para este propósito, foram elaboradas,
ou resgatadas, duas diferentes modalidades de ideologias nacionais. A pri-
meira combinava elementos discursivos de caráter estatal com um compo-
nente acessório conservador ou liberal.12 Em sua narrativa, o Estado encar-
nava o espírito da nação, por vezes uma obra da providência, por outro, o
paraíso idealizado da comunhão dos cidadãos para além das barreiras de
classe riqueza e poder. Uma segunda tomava emprestado motivos e repre-
sentações da cultura romântica, retratando o Estado-nação como a cristali-
zação do espírito nacional, frequentemente entendido como a unidade de
destino, de tradição e cultura, de língua, de confissão e de sangue.13

———————
11
HOBSBAWN, Eric. A era dos impérios. São Paulo: Paz e Terra, 2009.
12
Cf. MAYER, op. cit., 1987.
13
HOBSBAWN, Eric. Nações e nacionalismo desde 1780. São Paulo: Paz e Terra, 2013.

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Neste ponto, é essencial recuperar as formas através das quais as


forças de esquerda resistiam, rejeitavam e se opunham a estas construções
ideológicas das classes dominantes. Às mistificações nacionalistas de ex-
tração romântica ou estatista, as esquerdas democráticas, republicanas e
jacobinas, de base crescentemente pequeno-burguesas e não mais burgue-
sas, recuperavam o seu conceito original de nação como a expressão da
soberania popular. Acepção esta que continuaria a se manifestar, ao longo
do vindouro século XX, nos movimentos anti-imperialistas e de libertação na-
cional do chamado mundo periférico.14
Já as esquerdas operárias e socialistas apresentavam como alterna-
tiva aos nacionalismos e militarismos das classes dirigentes suas perspecti-
vas internacionalistas (“Os operários não tem pátria”, a não ser quando as-
cendem ao poder e se convertem em “classe nacional”, imediatamente an-
tes de se engajarem, na condição de agentes propulsores, ao processo da
revolução mundial) e antimilitaristas (“paz entre nós, guerra aos senhores”),
contrapondo aos projetos das classes dirigentes de lançar os trabalhadores
uns contra os outros nas guerras, a solidariedade internacional dos trabalha-
dores contra as classes dirigentes no cenário mundial.15
Nem mesmo a transformação de uma parcela da liderança do soci-
alismo mundial em linha auxiliar do nacionalismo e do militarismo estatais,
às vésperas, durante e depois da Primeira Guerra Mundial, invalidou esta
descrição. A reorganização do movimento socialista no pós-Primeira Grande
Guerra com a criação da Internacional Comunista ratificou e consolidou as

———————
14
LOSURDO, Domenico. A Revolução, a nação e a paz. Estudos Avançados, v. 22, n. 62, 2008.
15
Sobre a Primeira Internacional ver: COLE, G. D. H. Historia del pensamiento socialista, v. II.
México: Fondo de Cultura Económica, 1975. A respeito da Segunda, ver: CARONE, Edgard. A
II Internacional pelos seus congressos (1889-1914). São Paulo: EDUSP, 1993.

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distinções político-ideológicas anteriores: a uma direita burguesa-aristocrá-


tica nacionalista e militarista, continuou se opondo uma esquerda operária
internacionalista, antimilitarista e revolucionária.16

As direitas após a Primeira Grande Guerra

A Primeira Guerra Mundial, além de materializar as mais disparata-


das distopias militaristas, românticas e exterministas, produziu também im-
plicações políticas e ideológicas multifacetadas. Uma delas foi propiciar os
elementos germinais para uma nova síntese entre o nacionalismo romântico
e o militarismo aristocrático estatal. Da inusitada experiência vivida por com-
batentes de diferentes procedências e condições sociais nas trincheiras das
linhas de combate, forjou-se uma narrativa, que reconheceu aí as bases de
reconstrução do sentimento nacional através de um “romantismo de aço”,
calcado na generalização da Fronterlebnis (experiência do Front). Em seu
desdobramento, esta construção intelectual serviu de esteio a toda uma con-
cepção, que combinava o elogio da modernidade técnica com o culto da
“alemanidade”; rejeitava os cosmopolitismos de orientação liberal e os soci-
alismos de extração marxista e proletária, oferecendo os componentes ide-
ológicos e discursivos para o advento de uma nova direita nacionalista, con-
trarrevolucionária e, pela primeira vez, mobilizadora de massas.17
O segundo aspecto foi o lançamento das bases para a implantação
de políticas estatais de contrainsurgência preventiva e permanente, para as
quais as direitas seriam de grande valia. O ponto de partida foi o triunfo bol-
chevique no outubro russo de 1917, seguido pelos levantes revolucionários

———————
16
Cf. LENIN. A guerra e a social-democracia da Rússia. Lisboa, Portugal: Edições Avante, 1977,
pp. 557-564.
17
GRAMSCI, Antonio. Sobre el fascismo. México: Ediciones Era, 1979.

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na Alemanha, Áustria e Hungria nos anos 1918 e 1919. Vislumbrando nestes


acontecimentos russos o ingresso da Europa na época das revoluções pro-
letárias, desde então potencialmente apoiadas pelos recursos de uma enti-
dade estatal expressiva, classes dirigentes e governos europeus recorreram
a um vasto somatório de recursos tanto preventivos (concessões políticas e
econômicas) quanto repressivos e militares (mobilização de forças militares
regulares e irregulares contra os revolucionários). Esta foi a gênese de um
novo ciclo de militarização da política, na qual o combate ao inimigo revolu-
cionário interno passava a ser interpretado nos termos da guerra de destrui-
ção e extermínio máximo que acabara de ser travada, propiciando o inte-
resse de setores crescentes das classes dirigentes, que experimentaram
mais diretamente a “ameaça revolucionária” (Alemanha, Áustria, Itália, Hun-
gria) e dos setores sociais sob sua influência, nos novos movimentos direi-
tistas, que combinavam discursos e práticas militaristas (Corpos Livres, Ca-
pacetes de Aço, SA, Fasci di Combatimento, Cruz Flechada), com um nacio-
nalismo exacerbado, romântico, antioperário e antissemita.

De onde vem o fascismo?

Até o advento destes fenômenos políticos, todas as direitas euro-


peias eram, sem exceção, conservadoras e elitistas (estamos aqui falando
da política europeia anterior à Primeira Guerra Mundial). O chamado “popu-
lismo” [sic!] völkish não passava de uma corrente cultural sem representa-
ção no mundo da política partidária; porém, os ecos deste romantismo
völkish, conquanto politicamente derrotado no movimento de unificação da
Alemanha, ressurgiriam atualizados na República de Weimar através das
obras de autores como Friedrich e Ernest Jünger, Carl Schmitt, Werner Som-
bart, Oswald Spengler e Martin Heidegger.

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A principal função destes intelectuais de direita era demonstrar que


a idealização das virtudes inatas do Volk alemão poderia conviver com o
culto da autoridade estatal e a apologia da modernização industrial e tecno-
lógica. Era o Modernismo Reacionário, corrente intelectual que, ao reunificar
as principais vertentes do pensamento de direita alemão, preparou as con-
dições espirituais para o triunfo do nacional socialismo. Assim como seus
antecessores völkish do século XIX, os modernistas reacionários despreza-
vam as tradições radicadas no iluminismo: o pensamento calcado na razão,
o materialismo filosófico, a noção de luta de classe, o cosmopolitismo liberal,
a democracia representativa e o socialismo. Vislumbravam a existência de
dois tipos de comunidades nacionais, aquelas baseadas na unidade do san-
gue, no ímpeto das energias vitais primordiais e as que se fundavam no in-
telecto, na individuação e na multiplicidade. Valorizavam as primeiras em
detrimento das segundas, conduzindo suas formulações ao limite do anti-
intelectualismo e da reprovação daqueles que, segundo eles, “traíam o san-
gue com o intelecto”, preconizando, em lugar disso, “pensar com o sangue”.
Rejuvenescidos pelo contato com o esteticismo voluntarista de Nietzsche,
pelo social-darwinismo e pela Fronterlebnis (experiência do Front),18 milita-
ram na linha de frente de defesa da völkishkultur alemã, germinada na força
do sangue, da raça e do destino germânicos, contra as conspurcações da
Zivilisation desenraizada, sem alma, artificial.

———————
18
Alguns “modernistas reacionários”, em particular Ernest Jünger, que fora militar e combatera
nas trincheiras da Primeira Grande Guerra, identificavam na solidariedade construída no front,
nos laços de sangue instituídos entre os combatentes e no heroísmo patriótico dos que se
sacrificaram pela Alemanha as bases para a reconstrução da unidade da nação alemã. Não é
preciso enfatizar aqui em que medida tais formulações antecipam o discurso de Hitler e seus
seguidores. Sobre a vida e as ideias de Jünger e outros modernistas reacionários, ver: HERF,
Jeffrey. O modernismo reacionário. São Paulo: Editora Ensaio, 1993.

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Ideologia de vanguarda no campo da política da direita na época


de Weimar, o modernismo reacionário de matriz völkish definiu as balizas
essenciais da cultura conservadora germânica do século XX, anteceden-
do, preparando o terreno, enriquecendo o acervo ideológico do nacional
socialismo.
Os fascismos foram, assim, as primeiras direitas a adotarem um dis-
curso e um sistema de organização voltados para a mobilização de massas,
integrados por componentes discursivos "igualitários", nacionalistas (de per-
fil romântico) e até "anticapitalistas" (normalmente expressos nos ataques à
“plutocracia judaica” ou internacional). Tratava-se de uma estratégia que,
como já foi sugerido, visava derrotar a esquerda operária em lugares onde
ela havia alcançado substantiva representatividade entre as massas (como
na Alemanha e na Itália) e disputar espaço efetivo nos sistemas políticos de
representação ampliada da Europa do pós-Primeira Grande Guerra, que
avançava em direção ao sufrágio universal.
Na prática, o anticapitalismo fascista se limitava, como visto, ao com-
bate às burguesias "alienígenas" (judaica e anglo-americana), e seu igualita-
rismo encobria a reivindicação de uma organização social não mais base-
ada nas hierarquias provenientes do nascimento (aristocracia) e da riqueza
(burguesia), mas na "pureza racial' (na Alemanha) e na devoção à nação
(na Itália).19
Tudo isto, no entanto, jamais conheceu qualquer efetivação para
além do discurso e da dinâmica interna dos próprios movimentos. Uma vez
no poder, as tendências "pragmáticas" se sobrepuseram às “utópicas” e as
"revoluções fascistas" se dissiparam na acomodação às estruturas econômi-
cas, políticas e sociais pré-existentes. O exemplo histórico mais eloquente

———————
19
TOGLIATTI, Palmiro. Lecciones sobre el fascismo. México: Ediciones de Cultura Popular,
1977.

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disto foi a disputa interna do NSDAP, que resultou na Noite das Longas Fa-
cas, com a decapitação dos setores mais “inconformistas” [sic!] das SA e
do Partido Nazista.
Os fascismos, portanto, mudaram a direita no sentido de “conta-
miná-la” com discursos e mesmo práticas organizativas até então só utiliza-
das pelas esquerdas (anticapitalismo, igualitarismo e mobilização de mas-
sas), apesar do caráter farsesco, demagógico e incompleto daqueles.

O nazismo era “de esquerda”?

A originalidade do nacional-socialismo consistiu em sua capacidade


de combinar tradições ideológicas até então divergentes e até concorrentes.
Por um lado, o nacionalismo romântico pangermânico, derrotado no pro-
cesso de formação do império alemão, e, por outro, o nacionalismo estatista
e militarista encarnados pela aristocracia Junker e os círculos políticos vin-
culados à dinastia Hohenzollern. Se, para uns, a nação era o Volk, para ou-
tros, era o Staat.
A reconciliação destas duas concepções no nacional-socialismo fez
do movimento o propositor de um novo nacionalismo romântico e panger-
mânico (o “romantismo de aço”) combinado com o nacionalismo estatista e
militarista de extração Junker. Tais fatores possivelmente explicam a apro-
vação dos círculos militar-aristocrático e monarquista da ascensão de um
ex-cabo austríaco e sua “horda de desclassificados sociais” das SA ao go-
verno do Reich (o ajuste de contas com a “horda” viria depois). Explicariam
também os crescentes atritos entre a liderança nazista e os representantes
dos demais setores das classes dirigentes alemães no período hitleriano
quando os objetivos de guerra e da política exterior do Estado alemão pas-
saram a se orientar por abordagens cada vez mais “ideológicas” e “utópi-

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MUNIZ FERREIRA

cas”, como na guerra de destruição total contra a URSS, na política de ger-


manização do Leste e nas demandas de uma instauração de uma “Nova
Ordem Mundial” de cariz racista-arianista.
O historiador inglês conservador Hugh Trevor-Roper se dedicou a
uma minuciosa análise das relações de Hitler com os integrantes e re-
presentantes das classes dirigentes alemãs, conceituadas por ele como
German Establishment.20
Com esta categoria, o historiador inglês denominava os estratos su-
periores das burocracias civil e militar do III Reich, os líderes políticos, a
diplomacia, em resumo, aquilo que outros autores antes dele já haviam clas-
sificado como a elite tradicional, cujas origens remontam ao processo de
constituição do Estado imperial sob a condução da dinastia Hohenzollern.
Estes personagens teriam desempenhado um papel fundamental na ascen-
são de Hitler ao poder em 1933, constituindo-se, num primeiro momento, em
seus fiéis servidores, para, mais tarde, padecerem amargas desilusões com
os rumos de sua política e se lançarem em sua oposição. A trajetória de
homens que, a partir de posições proeminentes no corpo diplomático e nas
forças armadas, participaram de conspirações para destituir o ditador ale-
mão exemplifica, para Roper, o destino deste estrato sócio-político.
O fator de aproximação entre o ímpeto belicoso e expansionista do
Führer e o programa conservador deste establishment fora seu comprome-
timento comum com a restauração do poderio alemão aniquilado pelas dis-
posições do Tratado de Paz de Versalhes. Ambos, tanto Hitler quanto os
conservadores alemães, desejavam a restauração do poderio militar do país.
Ambos aspiravam a uma ordem política autoritária, que expurgasse da so-

———————
20
TREVOR-ROPER, H. R. Hitler’s War Aims. In KOCH, H. W. Aspects of the Third Reich. Londres:
Macmillan Education, 1988.

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MUNIZ FERREIRA

ciedade e da política alemãs as forças “nocivas” e “alienígenas” do libera-


lismo, da democracia, do cosmopolitismo e do socialismo em ascensão na
República de Weimar, acalentando desejos de aquisições territoriais; esta
convergência, porém, terminava aqui.
Os objetivos dos representantes do establishment possuíam um ca-
ráter essencialmente limitado e restauracionista. Pretendiam o restabeleci-
mento das fronteiras do extinto império de Guilherme I, o que acarretava a
anexação da maior parte da Polônia. Talvez estivessem dispostos a ir “um
pouco além” — como de fato o foram — absorvendo a Áustria e os Sudetos,
fundamentalmente para preencher o “vazio” político deixado ali pela disso-
lução do império dos Habsburgo, mas no essencial suas demandas tinham
caráter conservador. Seguramente, detestavam a URSS, devido ao seu sis-
tema sócio-político, mas não estavam motivados a conquistá-la. Jamais co-
gitaram, acima de tudo, a necessidade de uma “revolução alemã”, mesmo
no sentido mais propriamente “contrarrevolucionário”, conforme a conce-
biam os nazistas. Ora, sendo o ponto de convergência o “revisionismo”21 do
sistema de Versalhes e o de divergência o “revolucionarismo” [sic!] ideoló-
gico nacional-socialista, ambas as perspectivas conviveram no interior dos
mecanismos de produção das políticas de Estado do Reich até que a imple-
mentação da agenda “ideológica” hitleriana fraturasse a aliança entre os
dois setores.
Da convivência entre conservadores e nazistas teria resultado um
sentido mais “pragmático” e “razoável” da política exterior do Reich. Da su-
premacia nazista dimanou uma política ideológica em seu caráter e em sua
condução. Para Roper, o divisor de águas entre estes dois momentos ocor-
rera, como não poderia ser diferente, por ocasião da guerra contra a União

———————
21
“Revisionismo” aqui diz respeito à revisão dos termos do Tratado de Versalhes, considerados
desfavoráveis ao Estado alemão.

DIREITA E ESQUERDA NA HISTÓRIA... | 41


MUNIZ FERREIRA

Soviética. Esta guerra — cujo empreendimento constituiu a quintessência do


milenarismo hitleriano e em cujo desenrolar seu poderio transitou do zênite
ao nadir — assinala o divórcio definitivo entre o projeto do establishment
conservador alemão e os objetivos internacionais do chanceler do Reich.
Neste projeto irredutível de hegemonia, nesta competição inadiável pela
anulação dos efeitos internacionais da revolução bolchevique através do po-
der da contrarrevolução alemã, investiu o autor do Mein Kampf todas as suas
forças vitais, o que lhe propiciou a visualização do Milênio ariano no mundo
e a experimentação do sabor cartaginês da derrota.
Mesmo o texto de Roper, que no âmbito da historiografia burguesa
é um dos mais avançados na investigação acerca da expressão dos interes-
ses sociais na política (materializado nas análises das relações do Chanceler
com as elites aristocráticas da sociedade alemã), silencia a respeito do po-
sicionamento e das perspectivas de um setor essencial da sociedade alemã:
os homens da grande indústria do período. Apenas um deles, o industrial
Fritz Von Thyssen é mencionado en passant, como exemplo da desilusão de
apoiadores de primeira hora do nazismo com os rumos adotados pela polí-
tica do Reich depois de 1939. A própria posição de classe do historiador
inglês o impediu de identificar nos propósitos belicistas e hegemonistas do
nazismo as aspirações e interesses do grande capital alemão.

Franquismo e Salazarismo foram fascismos tout court?

A originalidade do nacional-socialismo consistiu em sua capacidade


de combinar tradições ideológicas até então divergentes e até concorrentes.
Por um lado, o nacionalismo romântico pangermânico, derrotado no pro-
cesso de formação do império alemão, e, por outro, o nacionalismo estatista

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MUNIZ FERREIRA

e militarista encarnados pela aristocracia Junker e os círculos políticos vin-


culados à dinastia Hohenzollern. Se, para uns, a nação era o Volk, para ou-
tros, era o Staat.
Se considerarmos como modelares as experiências dos fascismos
alemão e italiano, observaremos que eles possuem uma dinâmica histórica
e uma anatomia comum. Nos dois casos um movimento ideológico e político
mobilizador extrapartidário (os Fasci na Itália, os Corpos Livres na Alema-
nha) antecederam o partido, que surgiu como uma força política mobiliza-
dora e orgânica no seio da sociedade civil antes de empolgar o poder de
Estado. Em ambos os casos, esta organicidade e a capacidade de mobili-
zação se assentaram na utilização intensiva de uma ideologia de pureza ra-
cial em um caso, de grandeza nacional em outro, bem como no carisma
pessoal do líder (o Duce e o Führer). Uma vez no poder, o traço mais saliente
do sistema sociopolítico colocado em prática nestes países foi a organiza-
ção corporativa do trabalho através dos sindicatos nacionais, que agrupa-
vam trabalhadores e patrões sob a bandeira da colaboração de classes e
da rejeição ao conflito social.
Se estas experiências nos fornecem o modelo, faltam alguns destes
aspectos tanto no caso espanhol como no português, senão vejamos. Tanto
no caso de Franco quanto no de Salazar faltaram: a) um movimento político
mobilizador pré-existente (a Falange Espanhola não foi criação de Franco,
mas aliada, e teve importância secundária durante o domínio franquista); b)
uma ideologia política própria ou uma síntese ideológica própria, o que fez
com que recorressem a um acervo de ideias já existentes, no caso, o nacio-
nalismo conservador/romântico e o catolicismo integrista, acarretando com-
promissos com as instituições que eram as suas encarnações na sociedade
— a monarquia e a Igreja, na Espanha de Franco, a Igreja católica, no Por-

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MUNIZ FERREIRA

tugal de Salazar. Subsistem também muitas dúvidas em relação à importân-


cia do carisma pessoal, senão de Franco, pelo menos de Oliveira Salazar).
Por fim, não existiu um partido político franquista ou salazarista de massas
antes da chegada de ambos ao poder. Por estes motivos, prefiro considerar
que os dois ditadores ibéricos foram fascistizantes e filo-fascistas, mas não
fascistas, no sentido mais rigoroso e conceitualmente preciso da palavra.22

A redução e identificação do nazismo ao comunismo no mundo


ocidental do pós-Segunda Grande Guerra

Os elementos inovadores do nazismo e do fascismo em relação às


direitas que os precederam foram astutamente distorcidos pelos ideólogos
da direita liberal no período da Guerra Fria, para identificar os inimigos de
então, os comunistas, com os inimigos do passado, os fascistas. Em suas
elaborações mais refinadas, como nos textos de Hannah Arendt, a causa
comum de fascistas e comunistas (ambos “totalitários”) era a negação do
indivíduo e das liberdades individuais, a estatolatria e a ambição de estabe-
lecimento do "poder total" sobre a sociedade. Esta, com variações e notório
empobrecimento argumentativo nos nossos dias, tem sido a base ideológica
das mais do que duvidosas tentativas de redução e equiparação do fas-
cismo ao comunismo e a caracterização de ambos como fenômenos “de
esquerda”.
A contribuição de Hannah Arendt à reflexão acerca do fenômeno to-
talitário de modo geral — e do nacional-socialismo, em particular — tem sido
amplamente reconhecida e valorizada nos campos da práxis política e das

———————
22
Acerca do franquismo e sua relação com a Falange Espanhola, ver: BREA PEDREIRA, Ana et
al. Historia de España contemporánea. La Coruña: Baía Edición, 1997. Sobre o salazarismo,
ver: REZOLA, Maria Inácia. A igreja católica nas origens do salazarismo. Locus: Revista de
História, v. 18, n. 1, Juiz de Fora, 2012, pp. 69-88.

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MUNIZ FERREIRA

ciências humanas. Sua conceituação do totalitarismo e a tentativa de empre-


endimento de sua genealogia histórico-política têm desempenhado uma fun-
ção estimulante seja no apoio, seja na contestação às suas teses por parte
dos estudiosos quer do nazismo, quer do stalinismo. Contudo, suas interpre-
tações do caráter e dos processos de concepção e implantação da política
externa da Alemanha hitleriana carecem de sustentação historiográfica. Pro-
duzida no quase imediato pós-Segunda Grande Guerra (1951) nos Estados
Unidos, sua obra não foi beneficiada pela interação com uma cultura mais
aberta aos novos horizontes da investigação histórica, como a vertente his-
toriográfica francesa nucleada pelos Annales. Ao basear suas conclusões
na apreciação de fontes até então consideradas alternativas, como livros de
memórias, relatos, correspondência, discursos e textos de doutrinação polí-
tica, careceu a autora, sobretudo, de um instrumental teórico-metodológico
que lhe possibilitasse uma apropriação mais crítica dos documentos que lo-
grou consultar. Ademais, Totalitarismo, o paroxismo do poder — uma pro-
posta ambiciosa de abordagem teórico-política da problemática do poder
total — antecede em praticamente uma década o adensamento da interlocu-
ção acadêmica e historiográfica sobre a variante germânica do fascismo.23
Para além destas tentativas de interpretação, o estabelecimento de
equivalências estruturais entre o regime soviético e o nazismo esteve a cargo
de historiadores vinculados a uma corrente revisionista da historio-
grafia. Esta vertente, que teve na obra do historiador alemão Ernest Nolte
seu principal expoente, interpretava o hitlerismo como mero reflexo do
“comunismo”.24

———————
23
FERREIRA, Muniz. “Do passado vem a tempestade”. Notas historiográficas sobre as políticas
externas do Terceiro Reich Alemão. Caderno de Estudos e Pesquisas, ano VIII, n. 19, jan.-abr.,
2004.
24
Acerca das interpretações historiográficas de Nolte, ver o artigo de Demian Melo no
blogue Junho, intitulado “Ernst Nolte e a historiografia revisionista”. Disponível em:
<http://blogjunho.com.br/ernst-nolte-e-a-historiografia-revisionista>. Acesso em: 02/09/2017.

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MUNIZ FERREIRA

Para Nolte, as principais ações da liderança nazista foram interpre-


tadas como reações aos atos da União Soviética. Até mesmo o holocausto
judeu teria sido uma reação à eliminação, causada pelos bolcheviques, das
antigas classes dirigentes russas e aos supostos massacres soviéticos na
Ucrânia. Das elaborações de Nolte emana não a caracterização do nazismo
como fenômeno “de esquerda”, mas a justificativa do nazismo como reação
ao comunismo e os primórdios de uma construção discursiva que igualará
os crimes comprovadamente praticados pelos nazistas a supostos delitos
de igual proporção imputados aos soviéticos. Tal operação discursiva per-
seguiria a produção de uma ratificação historiográfica para as justificativas
de caráter defensivo e reativo com as quais os próceres do III Reich procu-
raram justificar seus arreganhos, inclusive diante do Tribunal de Nuremberg.
Mais tarde, em suas obras e nas de seus consortes e sucessores, os mas-
sacres de pessoas, atribuídos aos governos comunistas, ultrapassariam lar-
gamente os praticados não só pelos regimes fascistas, mas também as víti-
mas do colonialismo, das intervenções militares e das guerras desencadea-
dos pelas potências imperialistas. Uma audaciosa operação de whitewa-
shing historiográfica e midiática, com fortes repercussões em nossos dias.
Seguindo a via aberta pelos artífices da equiparação entre nazismo
e comunismo iniciada pelos teóricos do totalitarismo e do revisionismo, a
historiografia conservadora dos EUA conduziu, já na década de 1970 do
século XX, tais elaborações a um novo patamar. Se o revisionista Ernest
Nolte realizara a defesa histórica do fascismo apresentando-o como um fe-
nômeno político que simplesmente reagia às ameaças e ações agressivas
do “comunismo soviético”, coube a Robert Contest e outros expoentes da
historiografia conservadora estadunidense tentar comprová-lo localizando
um holocausto soviético, o Holodomor.25 Ora, argumentar que um dos piores

———————
25
Ver a este respeito: LOSURDO, Domenico. Stalin: história crítica de uma lenda negra. Rio de
Janeiro: Editora Revan, 2004.

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massacres praticados pelo regime hitlerista teve um correspondente sovié-


tico significa minimizar a malignidade do nazismo, negando sua responsa-
bilidade exclusiva pelo maior de seus crimes. Denunciar um suposto holo-
causto praticado pelo regime soviético contra a população ucraniana elimina
a singularidade do genocídio do povo judeu e equipara, fraudulentamen-
te, fenômenos políticos diametralmente opostos. Ocioso dizer que este su-
posto holocausto jamais foi comprovado empiricamente e, por isto, rejeitado
pelos historiadores acadêmicos situados fora do âmbito revisionista e ultra-
conservador.

O neoconservadorismo

Em sua versão intelectualizada e ideológica, o neoconservadorismo


emana, de forma essencial, das elaborações de Leo Strauss, um pensador
e professor universitário nascido na Alemanha, ao final do século XIX, radi-
cado nos Estados Unidos no final da década de 1930, fugindo da persegui-
ção nazista. Dez anos mais tarde, já como docente nas universidades de
Chicago e Stanford, Strauss elaborou uma filosofia política que conjugava a
crítica da modernidade política ocidental (Maquiavel, Hobbes, Rousseau e
Hegel), o resgate dos valores e ideias da democracia grega e a reivindica-
ção da restauração do direito natural e dos princípios transcendentes da
religião revelada como pilares para a refundação da democracia liberal. Seu
pensamento foi acolhido por um setor da elite intelectual norte-americana
que, a partir dos anos 50 do século XX, fora assombrada pelo fantasma da
decadência dos valores e da desagregação das energias vitais de seu país
pela influência das concepções e políticas liberais e progressistas.26

———————
26
Sobre Leo Strauss e o neoconservadorismo, ver: ANDERSON, Perry. Spectrum: de La dere-
cha a la izquierda em el mundo de las ideas. Madri: Ediciones Akal, 2008.

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Como alternativa, foram lançadas as bases de um projeto de restau-


ração da coesão das elites sociais e políticas e de conservação do poderio
mundial dos EUA, tendo por base o regate dos princípios tradicionais da
cultura e do modo de vida norte-americanos supostamente sob ataque. A
solução era o combate às ameaças tanto dentro quanto fora do país, man-
tendo a sociedade mobilizada e consciente de sua individualidade nacional
e da superioridade de seu modo de vida, alegadamente acossados por seus
inimigos. Tais ideias encontraram apoio junto aos círculos mais direitistas do
partido republicano e entraram em complexa simbiose com o pensamento
religioso fundamentalista a partir do final dos anos 1970. Seu primeiro mo-
mento de esplendor se deu durante a era Reagan, com seus ataques aos
direitos civis, o keynesianismo às avessas, a corrida armamentista e a con-
frontação com o “comunismo” — leiam-se: as experiências de transição so-
cialista e os movimentos revolucionários ao redor mundo.

Neonazismo e neofascismos em tempos de contrarrevolução


planetária

O ciclo de contrarrevoluções, que a partir de 1989 se abateu sobre


o Leste Europeu, representou a culminação de uma ofensiva das forças re-
acionárias em nível mundial, capitaneadas pelos governos republicanos de
Reagan e Bush pai nos EUA entre os anos 1981 e 1992. Os episódios mais
emblemáticos desta vigorosa onda (neo)conservadora na política mundial
foram a demolição do Muro de Berlim e a reunificação alemã em 1989 e a
desagregação da União Soviética em 1991. Com a humilhante capitulação
sem resistência dos regimes de transição socialista e a ascensão das forças
comprometidas com a restauração capitalista, instaurou-se um clima propí-
cio ao fortalecimento sem precedentes e ao ressurgimento das mais empe-

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MUNIZ FERREIRA

dernidas concepções e correntes políticas da direita mundial. Os protago-


nistas dos processos de restauração burguesa/capitalista, em seus esforços
no sentido de demolir as realizações dos regimes derrotados, remover do
imaginário social qualquer apreciação favorável às experiências histórico-
sociais encerradas e disseminar ideias e valores adequados aos novos tem-
pos, criaram um ambiente cultural fecundo para o ressurgimento do ra-
cismo, da xenofobia, do anticomunismo em suas várias manifestações, e do
fascismo.
Ainda que o reordenamento político gerado pelas restaurações pri-
vilegiassem, na maior parte dos casos, os sistemas liberal-representativos,
sob clara hegemonia conservadora o caldo de cultura para a rápida difusão
de posições de extrema direita se espalhou por todo o corpo social. Desta
forma, grupos políticos, oficiais ou informais, encontraram estímulo para a
reivindicação de tradições aristocráticas e monarquistas, religioso-integris-
tas, colaboracionistas e até abertamente nazistas e fascistas. Seja na agluti-
nação de jovens delinquentes skinheads, seja no retorno de setores religio-
sos intolerantes e antissemitas, seja na atuação institucional-parlamentar de
grupamentos orientados por agendas ultraconservadoras, a restauração re-
presentou, no terreno político cultural, um movimento impetuoso de retorno
ao passado.
Porém, não apenas nos países antes comprometidos com as expe-
riências de transição socialista o ciclo regressivo se fez sentir. Mesmo na
Europa Ocidental liberal-capitalista, o Zeitgeist ultrarreacionário e fascisti-
zante foi perceptível. Ali, a base material para o crescimento das correntes
reacionárias foi gerada pelos representantes políticos e ideológicos do
grande capital, em seus esforços no sentido de fazer recuar conquistas eco-
nômicas e sociais das classes trabalhadoras, obtidas nas quatro décadas
anteriores, solapando as bases do Estado de bem-estar social e preparando

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o capital para os processos de reestruturação produtiva sob hegemonia ne-


oliberal. O recuo frequentemente desorganizado das forças de esquerda
(socialistas, comunistas, esquerda trabalhista), oferece terreno para a ofen-
siva acelerada das forças de ultradireita, sejam elas de extração tradiciona-
lista e fascistizante (França, Espanha), ultranacionalistas e filo-fascistas (In-
glaterra, Alemanha, Áustria) ou “neopopulistas” [sic!] de direita (Holanda,
Bélgica, Dinamarca, Itália). Praticamente em toda a Europa Ocidental, verifi-
cou-se um avanço liberal-conservador na política, uma consolidação gra-
dual do predomínio das forças de direita e ultradireita e a desfiguração da
centro-esquerda social-democrata, convertida em força auxiliar da direita
conservadora-liberal, em suma, o recuo da influência e/ou o isolamento po-
lítico das forças de esquerda e ultraesquerda.
Nos dias de hoje, em alguns destes países ocidentais, o neofas-
cismo, fragmentado no aspecto organizativo e marginalizado politicamente
pela hegemonia liberal-conservadora, não vai além de uma constelação de
ajuntamentos marginais políticos e jovens de instrução e de emprego pelas
políticas neoliberais. Em outras circunstâncias, manifesta-se sob a forma de
partidos políticos, clubes e associações culturais integrados à institucionali-
dade existente. Nestes últimos, sua retórica e seus métodos são adaptados
à atmosfera política e intelectual dominante, atualizando e por vezes refor-
mando suas ideias centrais. Deste modo, principalmente no mundo de fala
alemã, as concepções mais diretamente referidas no nacionalismo român-
tico (völkish) e no pangermanismo cedem espaço para o nacionalismo
xenófobo, o racismo comunitarista (europeu) e diferencialista (ariano). A de-
fesa aberta do nazismo e seus malfeitos é dissimulada pelas impostações
revisionistas.
Porém, em um arco mais amplo de questões sociais e culturais, a
prédica e a atuação dos grupos neofascistas na disputa pelo coração das

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MUNIZ FERREIRA

massas tomam forma na condição de uma exacerbação do conservado-


rismo. Nos temas referentes aos direitos civis, liberdade de escolha e livre
orientação sexual, estas formações perfilam, sem maiores surpresas, com
as demais forças conservadoras do mundo no combate ao direito ao aborto,
na oposição às reivindicações feministas, na pouca sensibilidade para com
as questões ecológicas e na condenação do homossexualismo. Estes gru-
pos costumam defender políticas de “tolerância zero” para delitos menores,
reivindicando penas draconianas para pequenos furtos, ao passo que fazem
vistas grossas para os crimes financeiros e escândalos de corrupção.
Quando conseguem representação nos parlamentos, seus porta-vozes de-
fendem a reeducação pelo trabalho para viciados em drogas e opõem-se
decididamente a que se reduza para menos a idade legal para a prática de
atividades homossexuais.

Conclusão: nazismo “de esquerda” para “libertários” de direita, um


duplo caso de dislexia

No espectro político da chamada “nova direita brasileira”, adquirem


visibilidade crescente as ações, discursos e propostas dos chamados “liber-
tários de direita”. Já em sua autodesignação, esta vertente manifesta seu
descompromisso com a lógica conceitual e sua ausência de escrúpulos na
apropriação de um adjetivo elaborado muito anteriormente para a denomi-
nação de posicionamento político e ideológico profundamente distinto. Com
efeito, a expressão “libertário” passou a ser empregada, no final do século
XIX, para definir concepções, propostas, grupos e organizações políticas
integradas ou adjacentes ao campo da esquerda revolucionária, que demar-
cavam suas posições em face dos socialismos tanto de inspiração marxista
quanto reformista, através da prédica da destruição imediata do Estado, no

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processo de superação da ordem burguesa-capitalista sem qualquer perí-


odo intermediário e sem a realização de quaisquer pré-condições. Seu nítido
pertencimento à esquerda era enfatizado nos substantivos aos quais habitu-
almente se encontrava associado: anarquismo libertário ou socialismo liber-
tário. Sua utopia societária apontava não apenas para a eliminação completa
do Estado e todas as formas de dominação política, mas também, a exemplo
de outras correntes socialistas e revolucionárias, para a supressão do capi-
tal, da propriedade privada e do Estado no processo de transição para uma
sociedade autogestionária, formada pela livre associação dos indivíduos.
Atribui-se a Antonio Gramsci a afirmação segundo a qual o anar-
quismo teria as suas origens primevas na tradição liberal, e não no socia-
lismo. Determinados autores, como Max Stirner e Henry David Thoreau —
um, teórico da completa autonomia do indivíduo em face do Estado e da
sociedade e o outro, propositor da tática da desobediência civil contra o
poder da autoridade estatal —, foram reivindicados, ao longo do tempo,
tanto por anarquistas quanto por liberais. Os “libertários de direita” de nos-
sos dias encenam sua vinculação à linhagem ideológica e intelectual anar-
quista, ao verbalizarem a proposição de um “anarcocapitalismo” [sic!], ba-
seado na plena liberdade individual e na rejeição do poder do Estado; po-
rém, sua nebulosa identificação com os seguidores de Bakunin e Malatesta
se dissipa prontamente na enunciação das bases materiais de seu projeto
social: a propriedade privada como suporte da liberdade individual, a regu-
lação da vida social pelo mercado, como sucessora do poder do Estado.
Organizados desde 1971 em um partido político nos Estados Unidos
e exercendo sua influência em significativas áreas da vida política e cultural
daquele país, os “libertários de direita” apresentam-se como um dos sub-
produtos da Contracultura dos anos 1960. Em seus aspectos exteriores esta
vertente ideológica paga tributo à atmosfera do tempo que a originou. Da

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Nova Esquerda estadunidense constituída naqueles anos, recebeu a influên-


cia da rebelião contra os elementos programáticos e organizativos das tra-
dições políticas que se cristalizaram, ao longo do século XX, naquela socie-
dade norte-americana. De seu apreço pelo “novo” emerge sua determinação
em se diferenciar do “velho” liberalismo estadunidense, acomodado às re-
gras do New Deal desde a década de 30, “leniente” em face das políticas
“intervencionistas” e reguladoras, “cúmplice” do acordo do Estado com os
sindicatos de trabalhadores. Como “libertários”, porém, demarcam posição
em face do neoconservadorismo crescente na sociedade estadunidense
das últimas décadas contrapondo as interdições e reações contra reivindi-
cações e direitos já conquistados de mulheres, negros e homossexuais, a
intocabilidade dos direitos individuais, desde que devidamente assentados
sobre a propriedade, a riqueza e o poder de compra de cada um.27
Em termos gerais, os “neolibertários” atualizam os temas do pensa-
mento liberal do século XIX, já reciclado pela intervenção dos autores da
Escola Austríaca do pensamento econômico de meados do século XX e pe-
los neoliberais monetaristas das últimas cinco ou seis décadas. Requen-
tando antigas utopias individualistas, mercadocêntricas e antiestatistas, fa-
zem-no, entretanto, parcial e condicionalmente. Rejeita toda e qualquer in-
tervenção do Estado no processo de regulação das atividades econômi-
cas(até mesmo no que se refere ao monopólio da moeda e da implementa-
ção de políticas monetárias), nas relações entre o capital e o trabalho, nos
processos de produção e redistribuição da riqueza produzida socialmente;
porém, não podem dispensar o exercício do papel coercitivo do Estado na
repressão aos indivíduos, grupos, movimentos e classes sociais que não

———————
27
Cf. AUGUSTO, André Guimarães. O que está em jogo no “Mais Mises, menos Marx”. Dispo-
nível em: <http://marxismo21.org/wp-content/uploads/2015/04/Mises-Marx.pdf>. Acesso em:
02/09/2017.

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aceitem as regras contratuais da sociedade do “livre mercado” ou desres-


peitem o princípio da soberania absoluta da propriedade privada, defen-
dendo até mesmo “ditaduras temporárias” e formas aristocráticas de exercí-
cio do poder.
Na noite mercantilizada dos indivíduos proprietários, todos os Esta-
dos intervencionistas são vermelhos e pardos. Assim, os fascistas, elogiados
um dia por Mises, como uma alternativa válida para a defesa do capital e da
propriedade, converteram-se depois em furibundos inimigos das liberdades,
individuais e econômicas, portadores de concepções autoritárias, “populis-
tas” e “estatistas”, de extração socialista, do mesmo tipo da de seus arqui-
inimigos, os comunistas. Estava instaurada uma das mais espetaculares sim-
plificações conceituais da história do pensamento político de todos os tem-
pos: a inscrição dos fascismos no campo das esquerdas e a identificação
orgânica e estrutural entre fascistas, socialistas e comunistas.
Por mais persuasiva e convincente que esta infundada redução
possa parecer aos olhos e ouvidos de pessoas dotadas de intelecto pregui-
çoso, ou pouco instruído e suscetível ao poder da propaganda, ela evidencia
o esgotamento dos recursos imaginativos da consciência liberal, na época
de realização de suas mais sombrias distopias. O máximo volume de sua
reverberação precederá o canto de cisne da credibilidade das agências e
sujeitos que tiverem tido a infelicidade de apregoá-la.

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