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Carlos Nogueira: José Saramago: A Literatura e o Mal.


Lisboa: Edições Tinta-da-China, 2022, 416 pp.

Paulo Roberto Nóbrega Serra (FOCO.UNTL – CLP / CIAC – Ualg)

Meses depois do volume de en-


saios José Saramago: A Escrita Infinita,
organizado por Carlos Nogueira, a
Tinta-da-China publica, no centená-
rio do nascimento de José Saramago
(1922-2022), um novo ensaio dedica-
do à obra do autor português laureado
com o Prémio Nobel da Literatura em
1998.
José Saramago: A Literatura e o
Mal, vencedor do Prémio Literário
Vergílio Ferreira 2022, versa a proble-
mática do mal e o papel individual de
cada cidadão-leitor na construção do
bem comum, a partir da obra sarama-
guiana.
Numa altura em que proliferam
reedições da obra de Saramago, excertos de obras adaptados a livros ilustra-
dos infantojuvenis, álbuns fotográficos, e demais literatura crítica, podemos
perguntar o que pode a leitura deste ensaio trazer de novo. Carlos Nogueira
responde justamente a essa questão na Introdução, quando afirma que “A
repetição, o lugar-comum e a desistência a curto ou a médio prazo são riscos
inevitáveis para quem decidir estudar uma obra com um sucesso crítico tão
acentuado e uma força criativa e estética tão imponente” (p. 9).
Afirma Carlos Nogueira que “Toda a obra de José Saramago equaciona
o problema da definição, das manifestações, das características e das causas
do mal.” (p. 11) Este ensaio pretende assim contribuir para a compreen-
são da problemática do mal, baseando-se quer na produção literária de José
Saramago, quer em testemunhos e textos que fazem parte da sua ação cívi-
ca enquanto autor, “apoiado na sua escrita, na ação individual e na prática
social e política (numa palavra: na vida ética)” (pp. 11-12). É importante
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relembrar que o mal não é um tema inédito em literatura, e muito menos na


filosofia, nomeadamente na produção literária que se seguiu ao Holocausto
e que tentava compreender como aconteceu o impossível.
São assim estes os dois grandes propósitos que se interligam e en-
formam “este olhar para a obra literária de Saramago à luz da questão do
mal, em diálogo aberto com a História, a Religião, a Filosofia, a Política,
a Antropologia, a Sociologia, a Psicologia, a Medicina, etc.” (p. 12). Por
isso mesmo, para que esta não seja uma análise fragmentada, ou demasia-
do reducionista, centrada apenas na prosa, o ensaísta e professor Carlos
Nogueira intenta um diálogo informado, não só à luz de alguns autores do
século XX (Orwell, Primo Levi, etc.), mas também sob o prisma de leituras
que fogem ao escopo exclusivamente literário. Apesar de “ser sabido que
na filosofia contemporânea não há propriamente um número significativo
de bons e estimulantes tratados sobre este tema” (p. 14), Carlos Nogueira
releva como marcos balizadores desta análise o pensamento de autores vá-
rios, como Susan Neiman, que prossegue na linha de raciocínio de filóso-
fos como Rousseau e Arendt. O autor dialogará ainda com autores como
Kant, Hannah Arendt, Tzvetan Todorov, Eduardo Lourenço e George
Steiner. Destacam-se, sobretudo, Miguel Real e António Marques, autores
de, respetivamente, Nova Teoria do Mal. Ensaio de Biopolítica (2012), e A
Filosofia e o Mal. Banalidade e Radicalidade do Mal de Hannah Arendt a
Kant (2015). Ambas as obras, realçadas como recentes e inovadoras, são
apontadas pelo ensaísta como “marcos na filosofia e no ensaio sobre o
mal”, assumindo-as como “referências transversais e fecundas a todo este
meu ensaio” (p. 15).
Nogueira alerta-nos, contudo, para um aspeto curioso, clarificando
que a palavra mal não é, na verdade, muito utilizada por Saramago ao longo
de toda a sua obra, quer literária quer não-literária. Entenda-se o vocábulo
mal como “sinónimo de crueldade, violência, tortura, fome, egoísmo, ambi-
ção” (p. 27). Por outro lado, o mal em que Saramago atenta não se limita ao
que reside nos defeitos ou falhas, ainda que temporárias, da fraca condição
do ser humano. A Saramago interessa sim, e sobretudo, “o mal substantivado
na História em instituições como a Inquisição, a Monarquia e outros pode-
res (como o poder ancestral dos senhores do latifúndio alentejano)” (p. 21).
Ou mesmo o mal disseminado pelos mercados neoliberais. Mas Saramago
intenta igualmente refletir sobre “o mal como categoria não-acidental do
humano, antes em manifestação contínua e sempre em vias de se intensi-
ficar em múltiplas e (im)previsíveis formas, e também como categoria tão
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inscrita na nossa natureza como o bem (presente em sentimentos, atitudes e


comportamentos como a empatia, a compaixão e o altruísmo).” (pp. 21-22)
Em contrapartida, concluirá Nogueira, no final do livro, baseado na-
quilo que Saramago declarou em diversas ocasiões, “não podemos resignar-
nos a aceitar passivamente o princípio segundo o qual somos impotentes pe-
rante um sistema mundial inumano que difunde a desigualdade, a diferença,
a desumanidade. Cada um de nós pode e deve ser um fator de construção
de uma nova humanidade, em vez de acatar, ou promover, as circunstâncias
(socioculturais, políticas e biológicas) que nos condicionam. O mal é um
labirinto habitado por muitos minotauros puramente humanos, inclusive
por cada um de nós. Deste lugar não se sai para o paraíso, mas não estamos
condenados a reduzir-nos ad aeternum a um seu reflexo” (p. 406).
A solução para o mal do mundo, ainda que pareça sempre insuficiente
e provisória, reside designadamente na (re)construção de cada um de nós e
das instituições que nos assistem.
Em termos de natureza formal, o ensaio José Saramago: A Literatura e
o Mal reparte-se em seis grandes seções ou capítulos, sendo que alguns deles
se subdividem.
No primeiro capítulo, «Terra do Pecado: o “fator Deus” no primeiro
Saramago», atenta-se na leitura daquele que é considerado o primeiro ro-
mance do autor, apesar de ter sido publicado mais tarde. Carlos Nogueira
faz uma leitura atenta desta obra que, afirma, é “um romance único” no
contexto da literatura portuguesa dos anos 40 do século XX, “ao pôr tão em
destaque a mundividência de uma mulher e a violência sexista que toda a so-
ciedade exerce sobre ela” (p. 33). Ao longo de cerca de 25 páginas, Nogueira
intenta demonstrar como a “interioridade desta personagem feminina é ob-
jeto de uma atenção minuciosa ao longo de todo o romance, e isso é bem
elucidativo dos propósitos do autor-narrador, que quer privilegiar os efeitos
da religião na visão feminina do mundo e da sociedade e nos comporta-
mentos de uma mulher como Maria Leonor” (pp. 33-34). É importante e
curioso fazer notar que, muito recentemente, a Porto Editora anunciou a
reedição deste romance de Saramago, justamente no dia 16 de novembro,
data em que José Saramago celebraria o seu centésimo aniversário. O livro de
estreia do Nobel, publicado em 1947, que conhecemos primeiro como Terra
do Pecado, chega agora às livrarias com o título A Viúva. Era esse o título que
Saramago pretendia desde sempre para o seu livro, sem nunca se ter confor-
mado com a alteração imposta pelo editor da altura. Mais importante, ao
contrapormos estes dois títulos tão distintos, percebemos verdadeiramente
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a essência deste romance, cujo mercado editorial ditou que tivesse um título
que é, afinal, parcial e pode mesmo influenciar o próprio leitor, contribuin-
do para um julgamento da protagonista Maria Leonor.
Ao pensar no tratamento da temática do mal em Saramago – seja ele
o mal político, o mal religioso, entre várias outras manifestações possíveis
–, poderemos pensar, quase instantaneamente, no Ensaio sobre a Cegueira.
Todavia, o objeto deste ensaio vai muito mais longe. Entre as várias obras
que Nogueira trabalha, sob a problemática apontada, incluem-se: Os Poemas
Possíveis, O Ano de 1993, Alabardas, Levantado do Chão, O Ano da Morte de
Ricardo Reis, O Evangelho segundo Jesus Cristo, A Caverna, etc.
Haverá ainda espaço para um capítulo dedicado a «José Saramago co-
munista na literatura de cordel brasileira», mediante uma leitura compara-
tista com o folheto de cordel José Saramago: Vida e Morte, do autor brasileiro
Medeiros Braga.
A leitura da obra saramaguiana que Nogueira propõe neste ensaio vai
além do diálogo entre a obra do Nobel e as noções da filosofia sobre o mal,
até porque não é sua intenção argumentar que o propósito de Saramago fosse
“isolar e explicar definitivamente a propriedade ou as propriedades intrínse-
cas do mal” (p. 14). Como, aliás, afirma o ensaísta, noutro passo, Saramago
nunca reduz o problema do mal “a fórmulas maniqueístas e triviais” (p. 19).
Carlos Nogueira procurará justamente evidenciar ao longo deste ensaio, me-
diante uma atenta leitura ilustrada por diversas passagens, que nas obras de
Saramago “há uma procura constante de explicações para a natureza do mal,
não apenas (o que, nas grandes obras, já não é pouco) uma representação (e
uma apresentação) dos seus efeitos” (p. 14).
Em jeito de conclusão, destaque-se a forma como muitas vezes o en-
saísta, cuja escrita é aqui assumida na primeira pessoa, tenta dotar a sua
análise com uma fundamentada e humilde confiança, como acontece na
seguinte passagem ilustrativa: “Quero avançar com segurança e clareza, sem
ceder ao impulso das generalizações que ficam sem resposta” (p. 26). E, para
isso mesmo, ao longo do seu texto crítico, é imperativo fundear o seu dis-
curso e análise no próprio texto do autor, recorrendo sempre que possível
a frases ou a citações do próprio Saramago, como libelo contra uma crítica
monológica e tergiversadora, como apontava logo na Introdução deste livro,
numa passagem tão importante que a aproveitamos para assim concluir. E,
também com estas palavras, demonstrar justamente como este ensaio cuja
leitura aqui propomos é de leitura essencial:
“Acredito tanto na boa crítica literária como abomino a má. Aquela
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faz-me querer continuar a ler, a pensar e a escrever, esta desanima-me e quase


me derrota. A primeira é um diálogo entre o crítico e uma obra, a segunda
é um monólogo ou nem isso, porque muitas vezes nem o crítico sabe mi-
nimamente do que está a falar. Sabe apenas estar a acumular palavras sobre
palavras quase sem qualquer sentido e sem outra finalidade que a de dizer
(ou proclamar) ter escrito qualquer coisa de sublime” (p. 11).

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