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Morto de Deleite

O ensaio "Thinking Against Oneself" de E.M. Cioran começa:

Devemos a quase totalidade de nossas descobertas às nossas violências, à


exacerbação de nosso desequilíbrio. Mesmo Deus, na medida em que nos intriga, não
será encontrado em nossas profundezas mais íntimas, mas sim no limite exterior de
nossa febre, no ponto preciso em que, nossa raiva colidindo com a sua, um choque
resulta, um encontro que é igualmente ruinoso para ele e para nós. Ferido com a
maldição anexa aos atos, o homem violento não força sua natureza, não vai além de
si mesmo, exceto para reentrar furiosamente, enquanto agressor, seguido por suas
empreitadas, que vêm para puni-lo por tê-las erguido. Não há nenhuma obra que não
retorne contra seu autor: o poema esmaga o poeta; o sistema, o filósofo; o evento, o
homem de ação. Alguma forma de autodestruição, respondendo à sua vocação e a
realizando, está em funcionamento no âmago da história; apenas salva a si mesmo
aquele que sacrifica dons e talentos a fim de que, desembaraçado de sua qualidade
enquanto homem, seja capaz de pavonear-se até o ser. Se eu aspirar a uma carreira
metafísica, não há nenhum preço ao qual eu seja capaz de proteger minha identidade,
não importa o quão mínimos sejam os resíduos que permanecem, é necessário que
eu os liquide; assim como, pelo contrário, se eu me aventurar em um papel na história,
a tarefa que eu assumo para mim mesmo tem que exasperar minhas faculdades ao
ponto em que eu me estilhace nelas. Sempre se perece através do eu que se assume:
carregar um nome é reivindicar um modo exato de colapso.

Fiel à sua aparência, o violento não é desencorajado, ele começa novamente,


obstinadamente, porque ele é incapaz de dispensar o sofrimento. Ele é levado a
devastar outros? Este é o desvio que ele toma emprestado para retorquir à sua própria
devastação. Sob seu ar seguro, sob suas fanfarras, está escondido alguém que está
enfatuado com infortúnio. Assim, é entre os violentos que são encontrados os inimigos
do eu. E somos todos os violentos, os enfurecidos que, tendo perdido a chave para a
quietude, temos acesso apenas aos segredos da laceração.1

Cioran cita a máxima de Lao Tzu 'a vida intensa é contrária ao Tao' e compara a tranquilidade
da vida modesta à sede de êxtase aniquilador que possuiu o mundo Ocidental. Contudo, ao
reconhecer a compulsão de sua herança Ocidental, ele nota 'Eu posso prestar homenagens
a Lao Tzu mil vezes, mas é mais provável que me identifique com um assassino'. Nossa
cultura, ele argumenta, é essencialmente fanática.
Kant começou algo bastante novo na história da filosofia Ocidental, ao adaptar o
pensamento a uma rigorosa austeridade. Ao contrário de Descartes, para quem a dúvida era
apenas um desvio para um edifício mais seguro de conhecimento, Kant comprometeu seu
pensamento com a renúncia. Seguindo Lutero, ele se preparou contra as seduções da
'prostituta da razão', perseguindo uma doutrina ascética que ele batizou de 'filosofia crítica'.
Sua grande tentação era escrever um 'sistema de razão pura' - a filosofia construtiva que

1
E. M. Cioran, The Temptation to Exist, tr. R. Howard (Chicago: University of Chicago Press, 1998),
33-4 (tradução adaptada).
NÚMENOS COM PRESAS

Hegel alcançou em sua Lógica - mas ele não sucumbiu e foi para sua cova com sua
virgindade especulativa intacta. Sua obra madura era uma flagelação perpétua de desejo
dialético. Não foi com os escolásticos, mas com Kant, que a filosofia saboreou as delícias
ferozes do martírio.
Em 1790, o ano em que a Crítica do Julgamento de Kant foi publicada, a Revolução
Francesa estava em seu pico máximo. O iluminismo havia atingido o clímax em uma
insurreição alinhada com um projeto secular de redenção. Em sua Filosofia do Direito, Hegel
descreve estes eventos como se segue:

Esta é a liberdade do vazio, que se eleva a uma paixão e toma forma no mundo;
enquanto ainda permanece teórica, ela toma forma no fanatismo Hindu da
contemplação pura, mas quando ela se volta para a prática real, ela toma forma, na
religião e na política igualmente, como o fanatismo da destruição - a destruição de
toda a ordem social subsistente - como a eliminação de indivíduos que são objetos de
suspeita de qualquer ordem social, e a aniquilação de qualquer organização que tente
surgir novamente das ruínas.2

Tal é a fúria insaciável que encontra sua voz, no mesmo período, nos escritos literários e
políticos do Marquês de Sade. Mas comparando Sade com Kant, não é óbvio que é o Marquês
- apesar de sua obsessão com orgia e massacre - que é o mais excitado pela violência. Hegel
retrata o espírito migrando de Paris para Königsberg, fugindo de seu frenesi aniquilador em
direção a uma negação moderada ou concreta. Ele sugere que Kant recuou da negatividade
extrema do republicanismo deísta. Mas, assim como o ancien régime, os Jacobinos também
acharam necessário aprisionar Sade e reprimir o delírio místico de seu ateísmo. Então, é
igualmente possível sugerir que, na medida em que Kant se afastou da Revolução Francesa,
foi porque o secularismo basicamente contido e utilitário dela falhou em saciar a sede de
extinção dele.
Vale a pena lembrar que um olhar de relance para a filosofia de Kant foi o suficiente
para levar Kleist ao suicídio e que Schopenhauer encontrou nela o imperativo ético de que a
existência fosse negada. Talvez nenhum destes escritores fosse eclesiástico o suficiente para
apreciar as crueldades macabras que Kant explorou. Pois Kant era um santo consumado, um
homem alegre. Ele não era um estoico, mas, antes, fiel a sua herança cristã, um voluptuário
da derrota.
Entre outras coisas, Kant é o primeiro filósofo do prazer intolerável. Em sua
Antropologia, publicada em 1798, ele escreve:

A satisfação é o sentimento da promoção, a dor, aquele da obstrução, da vida. Mas a


vida (de animais) é, como os médicos já notaram, um jogo contínuo do antagonismo
dos dois.

2
GW.F. Hegel, Grundlinien der Philosophie des Rechts (Frankfurt am Main: Ullstein, 1972), 22; para
uma tradução recente em inglês, vide também Elements of the Philosophy of Right, tr. H. B. Nisbet
(Cambridge/NY: Cambridge University Press, 1991), Introduction, § 5, 38.
MORTO DE DELEITE

Desta forma, antes de toda satisfação, deve haver primeiro a dor; a dor é sempre a
primeira. Porque, o que procederia de uma promoção contínua da força vital, que não
se deixa elevar acima de um certo nível, além de uma célere morte por deleite?3

O prazer desinibido não tende ao benefício do organismo, mas, antes, à sua imolação. Ou,
mais precisamente, a melhoria da vida está intrinsecamente ligada à sua abolição. A vida não
é consumida pela morte em seu ponto de maior depressão, mas em seu pico, e,
inversamente, é apenas o freio fornecido pelo sofrimento que preserva o organismo em sua
existência. É a dor que poupa a vida para algo além de um deleite imediato e aniquilador.
Então, Kant sugere que o prazer é a combustão da vida e nós sobrevivemos ardendo sem
chama.
Foi genialidade de Kant combinar o santo com o burguês. Ele não estava imune à
predominante prática ascética de nossa era: a acumulação. Se o prazer deve ser suspenso,
isto é, pelo menos em parte, porque ele deveria ser capitalizado. Algumas páginas depois na
Antropologia, ele implora:

Jovem! Preze o trabalho; recuse-se a satisfação, não a fim de renunciar-lhe, mas,


antes, para mantê-la tanto quanto possível em prospecto! Não insensibilize a
receptividade a ela por gozo prematuro! A maturação da idade, que nunca deixa a
privação de qualquer prazer físico ser lamentada, irá, neste sacrifício, lhe assegurar
um capital de contentamento independente dos acidentes da lei natural.4

Deleites renunciados serão transmutados e redimidos. Isto é mais do que um pouco mendaz,
uma vez que, mesmo ao final do século XVIII, havia se tornado intrínseco à acumulação de
capital que ela fosse interminável. Não se capitaliza aquilo que nunca será gasto. É apenas
com a referência ao sobrenatural, a um prazer para além da lei natural - que é debilmente
descrito como um 'contentamento' [Zufriedenheit] - que esta passagem chega perto da
negação santificadora. Pois é mera hipocrisia empregar argumentos utilitários para justificar
a austeridade exigida por uma ética de acumulação, que requer um desequilíbrio incessante
entre trabalho e gozo. Tal argumento só poderia ser convincente se esta austeridade fosse
meramente provisória, como uma negação que será, por sua vez, negada. Se se deve
fornecer ao capital uma justificativa absoluta - e a necessidade disso poderia não ser
necessariamente sentida - ela não será encontrada na economia, mas na religião, como
sempre foi no passado. Apenas a religião fala o tipo de linguagem que poderia possivelmente
afirmar a perda conclusiva de prazer terreno, tal como aquela que é representada pela
subordinação do consumo ao acúmulo de recursos produtivos.
A única apologética coerente de austeridade burguesa é chamada de 'martirologia'.
Um exemplo, bastante brando, é a descrição da paixão de São Vicente dada em The Roman
Martyrology:

Em Valência, na Espanha, na província de Tarragona, [a morte] de São Vicente,


Diácono e Mártir, que, sob o mais perverso governador, Daciano, sofreu prisão, fome,

3
I. Kant, Schriften zur Anthropologie. Geschichtsphilosophie, Politik und Pedagogik (Frankfurt am Main:
Suhrkamp, 1968), 231; para uma tradução recente em inglês, vide Anthropology from a Pragmatic Point
of View, tr. & cd. R. B. Louden (Cambridge/NY: Cambridge University Press, 2006), Part I, Book II, §
60, 126.
4
Ibid., 237; 133.

3
NÚMENOS COM PRESAS

a cremalheira, a torção de seus membros, brasas vivas, a cesta de ferro, fogo e outros
tipos de tortura; e, como recompensa de seu martírio, ele partiu para o céu.5

Uma versão mais chocante, encontrada em The Passions of the Martyrs de Delahaye, nos
diz mais sobre a imaginação da cristandade do que sobre sua história. Ela descreve como
um certo São Jorge (não o inglês) consumou seu martírio:

São Jorge é pendurado, esfolado ao ponto de expor suas entranhas, esticado e


puxado por quatro máquinas, esfolado novamente, atormentado por sal em sua ferida
aberta, pregado pelos pés a um cadafalso, dilacerado por seis ganchos, jogado em
uma banheira e imerso a golpes de garfo. Ele sofre tortura na roda, que está equipada
com espadas e facas, ele é esticado em uma cama de bronze; chumbo derretido é
derramado em sua boca, uma pedra coberta de chumbo é rolada sobre sua cabeça e
membros. Ele é pendurado de cabeça para baixo, uma grande pedra ao pescoço,
acima de uma fumaça espessa e sufocante ... Ele é serrado em dois e jogado em um
caldeirão de chumbo derretido e piche. Ele é chicoteado com tiras de couro. Um barril
vermelho em brasa é colocado em sua cabeça. Suas laterais são esfoladas e ele é
queimado com tochas. A espada finalmente termina seu martírio.6

Em The Book of Martyrs, John Foxe faz algumas observações mais gerais sobre o martírio:

É maravilhoso ver e ler os números incríveis de inocentes cristãos que foram mortos
e atormentados, alguns de uma maneira, outros de outra, como diz Rabanas, 'alguns
mortos à espada; alguns queimados com fogo; alguns açoitado com chicotes; alguns
esfaqueado com garfos: alguns presos à cruz ou à forca; alguns afogados no mar;
alguns, suas peles arrancadas; alguns, suas línguas cortadas; alguns apedrejados até
a morte; alguns mortos pelo frio; alguns mortos de fome; alguns, suas mãos cortadas
ou de outra forma desmembrados’. Dos quais Agostinho também diz: 'Eles foram
amarrados - presos - mortos - torturados - queimados - massacrados - cortados em
pedaços', etc.7

Discutindo os poderosos inimigos dos primeiros cristãos, Foxe observa:

Tampouco estavam estes tiranos contentes com a morte apenas. Os tipos de morte
eram vários e horríveis. O que quer que a crueldade da invenção do homem pudesse
conceber para castigar o corpo humano era posto em prática contra os cristãos.
Ardilosos mecanismos, clamores de inimigos, prisão, açoites e flagelos, estiramentos,
dilacerações, apedrejamentos, chapas de ferro aplicadas aos seus corpos em brasa,
profundas masmorras, rodas de tortura, estrangulamentos nas prisões, os dentes de
animais selvagens, grelhas, patíbulos e forcas, arremessos sobre os chifres de
touros...8

5
The Roman Martyrology (London: Burns, Oates & Washbourne, 1923).
6
H. Delahaye, Les Passions des Martyrs et les genres littéraires (Bruxelles: Bollandistes, 1921), 286.
7
John Foxe, The Book of Martyrs, ed. G.A. Williamson (London: Seeker and Warburg, 1965).
8
Ibid.
MORTO DE DELEITE

Mas os discursos teológicos na tradição Ocidental são redentores e, assim, exigem um final
feliz. Um exemplo é aquele dado por Foxe em seu comentário sobre a morte de São
Lourenço:

Tal é a sabedoria e providência de Deus que o sangue de seus queridos santos (como
boa semente) nunca cai em vão ao chão, mas traz algum crescimento: tanto aprouve
ao Senhor trabalhar no martírio deste santo Lourenço que, pela constante confissão
deste digno e valente diácono, um certo soldado de Roma, sendo convertido à mesma
fé, desejou de imediato ser batizado por ele; pelo que foi chamado ao juiz, açoitado e
mais tarde decapitado.9

Estes exemplos têm que ser usados cuidadosamente, porque Kant aprendeu com o
Protestantismo e com o secularismo a necessidade de disciplina interna, de modo que, em
um nível sem precedentes filosóficos, ele se tornou a fonte de sua própria acusação. Na era
moderna, o martírio tem que se tornar mais sistemático, independente de acidentes
psicológicos e históricos ou, para usar a palavra de Kant, autônomo. Kant descreve esta nova
experiência passional como sublime, e a teoria correspondente a ela será encontrada em sua
Crítica do Julgamento.
A teoria de Kant sobre o sublime é um ponto extremo na história do misticismo
ocidental. Ela está preocupada com o deleite sobrenatural experimentado pelo eu quando
intui a divisão de si mesmo. A tarefa que Kant define para si mesmo é aquela de captar a
conexão entre a parte animal finita do ser humano (sensibilidade) e sua parte moral
transcendental (razão). Ele argumenta:

entre o domínio do conceito natural, enquanto sensível, e o domínio do conceito de


liberdade, como suprassensível, há um grande abismo, de tal modo que não é
possível passar do primeiro para o último (por meio do emprego teórico da razão),
como se fossem tantos mundos separados...10

Em sua teoria do sublime ele propõe uma resolução para este dilema, que depende do
conceito de violência [Gewalt]. Ele insiste: 'a natureza humana não está, por seu movimento
próprio, de acordo com o bom, mas somente em virtude da violência que a razão exerce
sobre a sensibilidade'11. Ele usa a palavra 'imaginação' para se referir ao processo pré-
consciente que capta a matéria-prima da sensação e a molda em um todo coerente. A
imaginação é a faculdade de apropriação, que assimila passivamente o material recebido a
conceitos básicos, constituindo objetos de experiência. Na primeira Crítica, Kant chama esta
função de 'esquematismo'. Ela é a vitalidade primária do organismo, o vigor animal básico no
qual o sujeito está enraizado e sobre o qual a possibilidade de conhecimento repousa. Se o
sujeito deve encontrar deleite na excruciação de sua animalidade, é a imaginação que deve
suportar a fúria da paixão sagrada, e é de fato isto que Kant argumenta:

9
Ibid.
10
I. Kant, Kritik der Urteilskraft, in Werksgaube, ed. W. Wieschedel, vol. 10 (Frankfurt am Main:
Suhrkamp, 1968), 14; para uma tradução recente em inglês, vide I. Kant, Critique of the Power of
Judgement, ed. P. Guyer, tr. P. Guyer, E. Matthews (Cambridge/NY: Cambridge University Press,
2000), Introduction, II, 63.
11
Ibid., 124; 154.

5
NÚMENOS COM PRESAS

aquilo que, sem sucumbirmos em quaisquer refinamentos de pensamento, mas


simplesmente ao ser apreendido, excita o sentimento do sublime, pode parecer ser
frustrante para a nossa faculdade de juízo, inadequado à nossa faculdade de
apresentação e uma violação da imaginação, mas ainda assim, e por conta disso, ser
julgado ser tanto mais sublime.12

A sublimidade evocada por uma experiência está em proporção direta à devastação que ela
causa na imaginação. Porque a dor resultante da derrota da imaginação, ou a parte animal
da mente, é a tensão que impulsiona a mente como um todo para o êxtase da experiência
sublime. O prazer sublime é uma experiência da impossibilidade da experiência, uma intuição
daquela parte do eu que excede a intuição por meio de uma falha imolante da intuição. O
sublime só é abordado como um desastre patológico.
O caráter paradoxal da experiência sublime kantiana é sem dúvida condicionado, em
parte, pela extrema severidade do problema metafísico que ela foi projetada para resolver.
Quando sensibilidade e razão, o empírico e o transcendental, são distinguidos com o rigor
em que Kant insiste - como se fossem dois mundos separados - dificilmente é surpreendente
que a ponte entre elas exiba pressões desmesuradas. Para além de tais questões filosóficas
modernas - de fato, gerando-as - existem efeitos históricos mais profundamente enraizados
em jogo, e, à frente entre estes, está a afirmação platônica-cristã de um desejo supra-terreno.
A experiência sublime deve ser um erotismo anti-patológico, em que o corpo cobiça as
convulsões agonizantes que se originam de sua própria negação. A tensão da sublimidade
não é meramente o sintoma de contradições teóricas, mas, também e de maneira mais
básica, a chave para o poder de persuasão do sublime. Pois é apenas por causa deste caráter
paradoxal - ou tensão - que o sublime promete saciar a furiosa sede de violência que guia o
entusiasmo religioso e, ao fazê-lo, oferecer as delícias da ruptura catastrófica.
É crucial para a maneira em que a sublimidade funciona na obra de Kant que ela seja
subsumida sob o conceito mais geral de julgamento estético. Assim como o julgamento
sintético a priori da relação da imaginação com as ideias praticamente constitutivas e
teoricamente reguladoras da razão pura, ela cai dentro do domínio mais abrangente do
julgamento estético, que é a exposição transcendental da relação entre imaginação e
conceitos em geral, o que, desta forma, também inclui os conceitos puros teoricamente
constitutivos do entendimento, assim como seus conceitos empíricos. A subsunção
caracteriza a tendência idealista da teoria de Kant, uma vez que o desinteresse é estabelecido
como uma pressuposição do julgamento estético e a questão de sua geração é evitada. Não
é nem mesmo que a razão transcendental é meramente pressuposta por Kant, pois ela é
pensada como nada mais do que a pura pressuposição. Mas a pureza ou abstração absoluta
que sustenta tal conceito de razão é a ausência de todo conteúdo intuitivo, de modo que a
palavra pureza - por exemplo - também opera simultaneamente em outro registro (psico-
religioso); empregada, na verdade, como um nome parcamente velado para aniquilação. Ir
contra o idealismo que obscurece este funcionamento efetivo ou patológico envolveria uma
investigação genealógica quanto à emergência do desinteresse, e é isto que guia uma leitura
materialista de Kant em direção à questão de seu misticismo.
Ao reservar sua discussão da violência sublime até que tenha estabelecido a
pressuposição de desinteresse, Kant justifica a excruciação da animalidade a partir do
exterior. O martírio da imaginação é descrito como racional em vez de racionalizante, como
irrelevante para a constituição da razão. Uma decifração materialista desta revisão requer

12
Ibid., 90; 129.
MORTO DE DELEITE

que a repressão - para usar uma palavra inadequadamente branda - preceda sua justificação.
Se se quer obter alguma influência sobre a sombria catedral de nossa história, junto com um
pouco de ar fresco, é importante começar com o sublime, em vez da contemplação estética
em geral, e ler o sublime como gerador, em vez de revelador, em sua relação com a razão.
Kant esboça dois tipos de sublimidade, um matemático e o outro dinâmico. Cada um
destes tipos está associado a uma violência específica contra a imaginação, que está
marcada para sacrifício devido a seu status como a representante transcendental - e, assim,
filosoficamente acessível - do corpo. O sublime matemático é o prazer sentido pela razão no
colapso da imaginação induzido pela intuição de magnitude, e o sublime dinâmico é o prazer
equivalente correspondente à intuição de poder. Em outras palavras, o sublime matemático
está associado com a insignificância do animal humano, e o sublime dinâmico, com sua
vulnerabilidade. A ressonância teológica destes termos não é, de maneira alguma, acidental.
A sublimidade tem três elementos; por um lado os dois elementos do sujeito: sua
sensibilidade ou animalidade e sua razão ou inteligência pura, e, por outro, um objeto que
soterra a imaginação e que é conduzido por entre as duas partes do sujeito como uma cunha.
O objeto que provoca o sublime é simultaneamente esmagador para a sensibilidade e
desprezível em relação à razão e, assim, serve para demonstrar a imensurável humilhação
da existência animal ante o sujeito transcendental. A oportunidade para o sublime dinâmico
repousa na força desmedida. Ele é a lúcida intuição do poder catastrófico e está tão
abertamente enraizado na intimidação brutal que Kant o associa à carnificina militar.
Mais sutil é o caso do sublime matemático. Dado o tempo, é necessário que a
imaginação seja bem-sucedida em unificar a inundação de sensações em um todo coerente.
Em outras palavras, a síntese temporal dilui o impacto da sensação e, uma vez que o tempo
é uma forma ideal de intuição, sua suficiência para este processo está transcendentalmente
garantida. O sublime matemático é o prazer resultante da obliteração de tal experiência
ordenada. Ele resulta quando a laboriosa construção da percepção organizada é
ruinosamente minada por meio do repentino colapso do tempo, com a correspondente
compressão da sensação em uma intensidade devastadora. A genialidade diabólica da
descrição de Kant vale bem a pena recitar:

A medição de um espaço (enquanto apreensão) é, ao mesmo tempo, uma descrição


dele e, assim, um movimento objetivo na imaginação e uma progressão. Por outro
lado, a compreensão da pluralidade na unidade, não do pensamento, mas da intuição,
e, consequentemente, a compreensão das partes sucessivamente apreendidas em
um piscar de olhos, é uma retrogressão que remove a condição temporal da
progressão da imaginação e torna a coexistência intuível. Portanto, uma vez que a
série temporal é uma condição da sensação interna e da intuição, ela é um movimento
subjetivo da imaginação, através do qual faz violência à sensação interna - uma
violência que deve ser proporcionalmente mais impressionante quanto maior for o
quantum que a imaginação compreende em uma intuição. O esforço, portanto, de
receber, em uma única intuição, uma medida para magnitudes que tomam um tempo
notável para apreender é um modo de representação que é destrutivo quando
considerado subjetivamente, mas, objetivamente, é necessário à avaliação da
grandeza e é, consequentemente, oportuno. Aqui, precisamente a mesma violência
que ocorre ao sujeito através da imaginação é estimada como oportuna para o
propósito total do sentimento.13

13
Ibid., 107-8; 142.

7
NÚMENOS COM PRESAS

Seria difícil delinear o desejo violento de consumar a pureza da razão na aniquilação da


animalidade de maneira mais resoluta. Isto não impede Kant de elaborar sobre estes horrores
por página após página, descrevendo a sublimidade como:

algo terrificante para a sensibilidade ... que, apesar disso tudo, tem uma atração para
nós, surgindo do fato de ele ser uma violência que a razão libera sobre a faculdade
da imaginação com vista a estender seu próprio domínio (o prático) e deixar a
sensibilidade olhar para fora, para além de si mesma, para o infinito, que é um abismo
para ela.14

Ele mais tarde adiciona isso:

uma função ordenada por lei ... é a característica genuína da moralidade humana,
em que a razão deve violar a sensibilidade.15

Tal é o mundo de violência gótica em que o iluminismo atingiu seu crescendo; filósofos
festejam nos palácios da razão e luxuriam-se nos gritos que lhes atingem das masmorras da
sublimidade. Kant gostaria que acreditássemos que este consumo sacrificial da animalidade
meramente expõe a verdade transcendentalmente estabelecida da razão em relação ao
corpo ou, antes, em desprezo frenético por ele. A sublimidade seria uma negação final, quase
gratuita. Seria a confirmação, em vez da geração, da supremacia absoluta gozada pela parte
de nós que compartilhamos com os anjos sobre a parte que compartilhamos com as bestas.
Não obstante, ele realmente nos ensinou algo bastante diferente, se nossos estômagos forem
fortes o suficiente para isso.
A razão é algo que deve ser construído e o local de sua construção exige, primeiro,
uma demolição. O objeto desta demolição é a capacidade sintética a que Kant se refere como
a imaginação e que ele exibe como a inteligência natural ou astúcia animal. Esta é a
capacidade de agir sem a autorização anterior de um poder jurídico, e é apenas através da
crucificação da inteligência natural que o animal humano vem a se prostrar ante a lei
universal. Kant é bastante explícito sobre isso na segunda Crítica; apenas é moral aquilo que
nega totalmente toda influência patológica, pois a moralidade não deve nunca negociar com
a estimulação empírica. O bem moral kantiano é o monopólio total do poder nas mãos da
razão, e a razão encontra sua principal definição enquanto elemento suprassensível do
sujeito e, assim, enquanto fundamentalmente negativa. Em outras palavras, a moralidade é
precisamente a impotência da animalidade. Este não é o discurso da jurisdição civil, porque
pressupõe o silenciamento prévio do réu. É mais parecido com o discurso da estratégia militar
em grande estilo, que insiste em subjugar absolutamente o inimigo antes de ditar os termos
e para o qual a própria ideia de negociação já cheirava a humilhação e derrota. Nas próprias
palavras de Kant (da Fundamentação da Metafísica dos Costumes):

Desta maneira é que o homem reclama para si uma vontade que não deixa nada
entrar em suas contas se pertencer meramente a seus desejos e inclinações, mas,
contrário a estes, concebe como possíveis para ele, de fato necessários, atos que só

14
Ibid., 115; 148.
15
Ibid., 120; 151.
MORTO DE DELEITE

poderiam ocorrer após todos os desejos e estimulações sensíveis terem sido


ignorados.16

Aqueles com um gosto pelo macabro podem encontrar este tema obsessivamente reiterado
dentro da filosofia prática de Kant. É difícil imaginar que pudesse ser controverso sugerir que
o imperativo categórico pressupõe uma vivissecção.
O anti-utilitarismo de Kant é uma marca de sua integridade enquanto moralista na
tradição Ocidental. Ele não mascara o caráter perenemente severo da submissão moral a fim
de adular o hedonismo boçal dos ingleses. Ele sabe que a moralidade só é boa se doer. É
por isso que se refere aos deleites do sublime - onde a moralidade chega mais próximo de
tocar a si mesma - como um 'prazer negativo' [negative Lust], o que não é, de forma alguma,
o mesmo que desprazer [Unlust]. O Desejo Negativo é um prazer sentido na negação de um
prazer primário, isto é, no desprazer da imaginação. Pois a razão programaticamente se
ensurdeceu para os uivos do corpo, e é apenas por meio do desvio estético do sublime que
os efeitos devastadores de sua soberania podem vir a ser gozados.
A susceptibilidade não beneficia um moralista. Uma certa aspereza é necessária se
você impediria a vida de morrer de deleite. Tanta aspereza, na realidade, que a investida
patológica em direção à morte se redescobre no processo de sua própria extirpação rigorosa;
sublimada no tanatrópico frenesi da razão.

16
I. Kant, Kritik der Praktischen Vernunft / Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, ed. Wilhelm
Wieschedel, vol. 8 (Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1968; para uma tradução recente em inglês, vide I.
Kant, Groundwork for the Metaphysics of Morals, tr., ed. A. W. Wood (New Haven/London: Yale
University Press, 2002), Third Section, 73.

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