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Espírito e Dentes

Um Post-Mortem Preliminar
O Espírito (Geist) é estigmatizado por uma desconstrutibilidade múltipla: como uma
substancialização do Dasein, um antônimo da matéria, um correlato da lucidez fônica, ou um
símbolo de reflexividade, autopresença, pura inteligibilidade, espontaneidade, etc. No curso
de sua história recente, esta palavra foi inflada por Hegel ao meio cósmico de transação - o
lubrificante superaquecido de eventuação global - e, então, traficado à beira da inutilidade
pela cultura que o sucedeu, antes de finalmente sucumbir a uma irreparável marginalização
pelos avanços científicos da psicologia experimental e comportamental, neurologia,
neuroanatomia, ciência cognitiva, cibernética, inteligência artificial, até que se torne um
sentimentalismo, uma metáfora vaga e periferizada, uma piada ... um alvo barato, se poderia
pensar. Há aqueles que permaneçam leais o suficiente aos discursos canônicos da filosofia
Ocidental para argumentar que o logocentrismo está secretado na terminologia implementária
de informação, digitalidade, programa, software e controle. Mas quanto ao espírito! - esse só
pode ser paródia ou nostalgia. Quem ainda poderia usar tal palavra sem humor ou desdém?
O Espírito é menos uma palavra enganosa ou perigosa do que ridícula; um Celacanto das
palavras. Ainda assim ele persiste: a marca de uma apalhaçada incompetência na morte.
Tal incompetência tem sua doutrina, rituais e liturgia, suas ortodoxias e heresias. É
toda a prolongada recusa do impessoal sumarizada como 'fenomenologia'. Seja do alto-clero
(Hegel) ou do baixo-clero (Husserl), a fenomenologia é a ideologia definitiva da propriedade;
empregando sistematicamente o modo interrogativo a fim de destilar tudo a que a
subjetividade apropriada não pode reclamar responsabilidade e, desta forma, consolidando a
dimensão humanista da filosofia Ocidental de forma cada vez mais rígida. Toda essa corrente
gradualmente compila uma prova tentativa da impossibilidade da morte, uma conflação
ontológica do acesso à realidade com a propriedade (psyché, cogito, Selbsheit, Eigenlichkeit,
Jemeinigkeit), um espiritualismo perpetuamente reformulado. Sócrates, Descartes, Husserl:
todos rasos, todos egoístas, todos urgindo ainda mais às planícies do profano. É por isso que
estão tão bem colocados para lucrar com a morte de Deus (um evento no qual eles não
tomaram qualquer parte - pelo contrário; o egoísmo obsessivo do teísmo sempre lhes
apelara). A fenomenologia é uma negação programática (redução ao pessoal) da
exterioridade que, após se tornar um reflexo semissolipsista de autoafirmação, se pergunta
com genuína ingenuidade por que a alteridade veio a apresentar tais problemas. Se o espírito
desaparece grandemente entre Hegel e Husserl é porque, comparado ao ego transcendental,
ele parece um pouco conivente demais com o exterior.
Ao contrário de Heidegger e Derrida, eu não vejo nenhum avanço, recuperação ou
sofisticação ocorrendo na leitura husserliana de Kant. A redução fenomenológica da
aparência [Erscheinung] ao Schein evidencial é uma decisão dogmática que desarma o
ceticismo provisório da filosofia crítica, retirando-a ainda mais da profunda epoché do
NÚMENOS COM PRESAS

desconhecimento: o vasto abrupto descoberto confusamente por Pirro de Élis, o reprimido da


civilização monoteísta. A suspensão ou parentesiação husserliana não é pirrônica, mas
socrática; uma reserva de julgamento que está subordinada à apoditicidade, ao saber o que
se sabe mesmo que nada mais (ao duvidar enquanto um poder do sujeito). Epoché, chaos,
Noite Antiga, morte, como quer que isso/ela seja chamada, o caminho até lá não é obra nossa.
A suspensão é para ser descoberta, não realizada.
Então o que se deve pensar de uma différance que radicaliza, desconstrói ou subverte
uma suspensão assim esmagada sob uma dogmática fenomenológica? O que é que nos
levaria neste caminho, se não aquilo que aparece (no sentido de Kant, não de Husserl) como
a pretensão humanista - o espírito - do filosofar representacional? Tal suspensão é, claro, um
desvio, uma evitação, mas dificilmente inevitável. Pelo contrário, é peculiarmente deliberada;
meticulosamente valorizando uma tendência filosófica específica (que perpassa Husserl),
obliterando uma outra (a bifurcação Schopenhaueriana de pós-Kantianismo) e diligentemente
transferindo sinais da última para a primeira (Nietzsche lido através de Heidegger!!!). A Seção
7 de Sein und Zeit é exemplar aqui, com sua insistência em uma leitura evidencial da
fenomenalidade, descartando, desse modo, toda a problemática do pensamento de
Nietzsche em um único gesto casual. Qual o sentido do insistente tema da ficção nos escritos
de Nietzsche, após tal movimento ter sido feito? Qual o sentido do enigma? (Nós sempre já
possuímos o significado do ser embutido na estrutura da existência, Heidegger sugere, é
meramente que nós ainda não sabemos que sabemos. Questionar é recordar. Sócrates sorri.)
Nós não sabemos ainda, um não ainda que pode ser dilatado corrosivamente;
frustrando o fim da metafísica, interminavelmente adiando a verdade. Bocejos se tornam
dificilmente controláveis. Importa o que sabemos ou jamais saberemos? Não nos
esqueçamos que a filosofia é também psicologia primaz; que nossas mais elevadas
especulações estão apenas colhendo em uma região minúscula do lodo variegado incrustado
em uma partícula de poeira. Uma preocupação obsessiva com tais insignificâncias é um
paroquialismo insípido. O que importa é o Desconhecido: a matriz escapográfica ecoada
espectralmente pelo prefixo negativo, esparramada em imensa indiferença a todos nossos
"aindas". Além das gesticulações antropoides do saber, a suspensão não é diferençável da
morte, e a morte ("a morte de alguém", como nós tão ridiculamente dizemos) não pertence a
uma ordem que pode ser atrasada. Nosso Socratismo atingiu tal pináculo de profanidade que
nós realmente imaginamos que ela esperaria por nós?

Parte I: Lobos
Conforme eu continuar a estudar este texto, em outros lugares, com uma paciência
mais decente, espero um dia ser capaz, além do que uma conferência me permite
hoje, fazer justiça a ele, ao também analisar seu movimento, seu modo ou seu status
(se ele tiver um), sua relação com o discurso filosófico, com a hermenêutica ou com
a poética, mas ainda o que ele diz sobre Geschlecht, a palavra Geschlecht, e também
sobre o lugar [Ort], assim como sobre a animalidade. Por enquanto [l'instant], eu sigo
unicamente a passagem do espírito.1

1
J. Derrida, De l'esprit: Heidegger et la question (Paris: Galilee, 1987), 137; vide também, J. Derrida,
Of Spirit: Heidegger and the Question, tr. G. Bennington, R. Bowlby (Chicago: University of Chicago
Press, 1989), 87.

2
ESPÍRITO E DENTES

Estas são as palavras de um homem que está confiante de que sobreviverá por um tempo
considerável. Não há qualquer urgência discernível aqui, bem menos brusquidão, desespero
ou qualquer uma das intensidades cruas da pressa. Em vez disso, há a agora familiar retórica
da leitura atenta; a simultânea realização e prescrição de cuidado diligente, deliberação,
conscienciosidade e devoção textual reverencial. Uma certa discussão intertextual intricada
sobre o espírito se desenrola, a um passo langoroso, inspirado por princípios não
interrogados de decência e justiça. Tudo é mediado por elucidações, reelucidações,
elucidações de elucidações anteriores, conduzidas com meticulosa cortesia, mas nunca
desatento à cumplicidade do conceito de elucidação com a história da metafísica desde
Platão até o parágrafo anterior de De l'esprit. Nosso autor não deve ser apressado a
pronunciamentos prematuros sobre questões de tanta seriedade quanto o discurso filosófico,
a hermenêutica ou a poética. Tampouco está ele preparado para descender a tamanha
crueza superentusiasta de examinar mais do que uma das palavras de Heidegger em um
único livro. Última de tudo, como tantas vezes tendeu a ser, vem uma promessa de levar a
sério o problema da animalidade, sobre o qual - se Deus e primordialidades espirituais afins
quiserem - deveria vir a ser escrito um dia.
Provavelmente, é relativamente incontroverso concluir a partir disso tudo que Derrida
não é um lobisomem. Lobisomens são dissipados dentro de um espiral homolúpica que os
distancia absolutamente de toda preocupação com decência ou justiça. Suas fisiologias ferais
estão mal adaptadas aos estados depressivos conducentes à seriedade ética. Em vez disso,
eles são impelidos pelas extremidades da tensão libidinal que fragmenta seus movimentos,
rompem suas trilhas com descontinuidades irregulares e infestam seus nervos com uma
malaise ardente, de modo que cada gesto é assado em uma estufa de ferocidade. Criaturas
de epidemia em vez de hermenêutica, os lobisomens tendem a ser muito brutos, mas aí, eles
não vivem tanto quanto os desconstrucionistas. O luxo de atrasar o problema da animalidade
não está aberto para eles.
Na página 141 de De l'esprit, Derrida se desculpa por uma instância muito moderada
de impolidez textual que ele descreve como 'precipitação de uma forma indecente'2. Neste
pensamento de 'precipitação indecente', ele chega mais perto do impulso dominante da
poesia de Trakl do que em qualquer outro ponto do livro; mais próximo também, se poderia
argumentar, do que Heidegger jamais chega. Uma evasão, que talvez seja constitutiva da
decência hermenêutica, é exemplificada quando, ao se tomar algum tempo interpretando a
poesia de Trakl, se evita sucumbir à pestilência que ela comunica. Os escritos de Trakl são
vetores licantrópicos de impaciência, de doenças espasmódicas, porque eles são as relíquias
virulentas de uma precipitação indecente, um aborto, um impacto de meteorito. Trakl gastava
muito pouco tempo com qualquer coisa. Sobrevivendo, como ele fez, até a idade de vinte e
sete, ele teve muito pouco tempo para gastar.
Trakl confessa sua licantropia na primeira versão de Passion, a versão inconfessa,
em que ele escreve que:

Dois lobos na sinistra Floresta


Nós misturamos nosso sangue em um abraço pétreo
E as estrelas de nossa raça caíram sobre nós.3

2
Ibid., 141; Derrida, Of Spirit, 87.
3
C. Trakl, Das dichterische Werk (Munchen: Deutscher Taschenbuch Verlag, 1972), 216; para uma
tradução recente em inglês, vide G. Trakl, Poems and Prose: A Bilingual Edition tr. Alexander Stillmark.
(Illinois: Northwestern University Press, 2005), 82.

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NÚMENOS COM PRESAS

A palavra 'raça' nesta tradução precipita o sentido de Geschlecht de uma forma indecente.
Na completa ausência da conscienciosidade hermenêutica, são os fatores epidemiológicos
apenas que compelem isto. Para se tornar um lobisomem, deve-se ser mordido por um outro
lobisomem e, no caso de Trakl, parece que este foi Rimbaud, que escreveu: 'É bastante
evidente para mim que eu sempre fui de uma raça inferior. Eu não sou capaz de compreender
a revolta. Minha raça nunca se agita, exceto para a pilhagem: como lobos sobre a besta que
não mataram'4.
Ser um lobisomem é ser inferior pelos critérios mais básicos de civilização. Não
apenas a disciplina da responsabilidade política é alheia a eles, também o é toda a história
de trabalho na qual tal disciplina está incorporada. Rimbaud observa, resolutamente o
bastante: 'Eu tenho um horror de todos os ofícios'. Em geral, pode-se dizer que esta raça é
marcada por uma profunda inferioridade espiritual. Comparada à devoção, moralidade e
laboriosidade de seus superiores, ela exibe apenas preguiça, desobediência e uma repressão
anormalmente malsucedida de todos aqueles traços do inconsciente que Freud descreve
como 'resistentes à educação' e entre os quais não há nada remotamente associado nem à
decência, nem à justiça: 'Eu nunca fui deste povo; eu nunca fui um cristão; eu sou da raça
que canta sob tortura; eu não entendo as leis, eu sou um bruto'5.
Esta é a 'raça amaldiçoada'6 de Trakl assim como de Rimbaud, comunicando seu
sangue sujo em espaços selvagens de desarticulação bárbara. Eternamente abortando o
prospecto de uma subjetividade transcendental, os inferiores nunca são capturados pela
reciprocidade contratual ou por seu concomitante universalismo moral. Eles não são mais
empregáveis do que são psicanalisáveis, alheios tanto à legalidade quanto ao incentivo.
Incapazes de fazer promessas - mesmo a si próprios - eles estão excluídos de toda
possibilidade de salvação. A ânsia por tais regressões pagãs é indizível. É apenas com o
maior rigor que os superiores reprimem os desejos violentos que os atraem para devires
inferiores; virar fêmea, negro, irresponsável e nômade, virar um animal, uma planta, um
espaço cadavérico do sol.
Em sua fase final, o Império Austro-Húngaro se tornou uma máquina para a geração
de devires homolúpicos: fermentando intensas trajetórias de regressão entre as raças eslavas
dos Balcãs e dos Cárpatos, traduzindo-as para o alemão e então condensando-as sob a
pressão da repressão exacerbada no núcleo de cultura vienense. O que explodia nas histerias
dos pacientes de Freud era um irresistível vulcanismo de se tornar inferior, cujos fluxos de
lava petrificada mapeavam o caráter regressivo do desejo. Os blocos migrantes de tensão
sumarizados no inconsciente Freudiano são muito menos uma questão de Édipo do que dos
mongóis; daqueles que alimentavam seus cavalos com o mundo do espírito conforme
inundavam a civilização como uma enchente. Se o inconsciente está estruturado como uma
língua é apenas porque a língua tem o padrão de uma praga.
Entre os escritos de Trakl estão dois poemas de guerra e talvez apenas dois. Um é
Grodek - em homenagem ao campo de batalha sobre o qual o exército Austro-Húngaro sofreu
uma grande derrota nos estágios iniciais do conflito - e é talvez o mais amplamente conhecido
dos escritos de Trakl. É este poema que inclui o verso, tão importante tanto para Heidegger
quanto para Derrida, em relação à 'chama escaldante do espírito'7. O outro é intitulado No

4
A. Rimbaud, Collected Poems, tr. O. Bernard, (Harmondsworth: Penguin, 1986), 302.
5
Ibid., 308
6
Trakl, Das dichterische Werk, 82.
7
Ibid., 95; Trakl, Poems and Prose, 106.

4
ESPÍRITO E DENTES

Leste e esboça a mesma figura libidinal na Primeira Guerra Mundial que os escritos de Freud
das duas décadas subsequentes. Essa figura traça o deslocamento do processo primário de
agressão impessoal contra o complexo eu-Deus-cidade - contra a civilização - para o eixo
bem mais contido da competição armada entre nações. A guerra sublima a onda de morte
licantrópica da mesma forma que um sonho sublima o desejo inconfessável; permitindo que
algo permaneça adormecido. Neste sentido, No Leste é o desfazer de um poema de guerra
e tem a qualidade de pesadelo associada a algo descascado; tal como a desintegração da
carne de um crânio, ou a abertura de um cadáver para revelar uma massa obscenamente
fervilhante. Este movimento de desilusão violenta é resolutamente delineado no poema
Confissão:

E conforme as máscaras caem de cada coisa


Eu vejo apenas ansiedade, desespero, ignomínia e epidemia,
A tragédia da humanidade não tem nenhum herói,
Uma peça vil, representada sobre covas e cadáveres.8

A segunda estrofe de No Leste termina com os espíritos dos feridos - dos erschlagenen,
próximo, talvez, de um Geschlecht - suspirando entre as sombras das cinzas outonais e, até
este ponto, No Leste poderia ainda ser um poema de guerra. Ainda seria possível para o ego
saborear essas estrofes pela armadilha de sublimação que eles colocam para tanatropismos
impessoais, sacrificando as vítimas de conflitos inibidos como uma imagem onírica pesarosa.
A terceira e última estrofe, contudo, é algo bastante diferente:

A selva espinhosa cerca a cidade


De passos sangrentos a lua caça
Mulheres aterrorizadas.
Lobos selvagens rompem o portão.9

O selvagem, a base de um substantivo no primeiro verso da estrofe, retorna como um adjetivo


no último. Uma multiplicidade indeterminada de lobos efetua uma ruptura nos limites da
cidade, transmitindo sua exterioridade positiva para seu núcleo. Não mais interpretável como
política, como a guerra entre cidades, estados ou outras totalidades civilizadas, a violência
do Leste recai em um movimento desenfreado de erosão. Sangue, a lua e mulheres são
coagulados por um intenso abalo sísmico menstrual que estilhaça a diferença apropriada
entre vida e morte, integridade e dissolução, periodicidade e choque. O que Trakl, em Grodek,
chama de 'sangue esquecido' recupera seu sentido sagrado, na regressão que transmuta o
sangue político-eticamente impregnado do soldado moribundo em fluxo selvagem
categoricamente alheio.
A matéria selvagem fica intocada por sua diferença em relação ao espírito, na medida
em que isto supostamente depende de uma disjunção lógica. As pseudointerioridades da
cidade não são menos permeáveis a ela do que os espaços incultos marcados pelos
civilizados para seu exílio. Os passos [Stufen] sangrentos de No Leste são apenas uma
variante entre as muitas encontradas nos escritos de Trakl: 'passos de loucura'10, 'passos

8
Ibid., 147.
9
Ibid., 94; Trakl, Poems and Prose, 124.
10
Ibid., 43.

5
NÚMENOS COM PRESAS

musgosos', 'passos arruinados', 'os passos da floresta'11. É uma linguagem de gradação,


grau, Abstufung. Não quantidade em contraste com qualidade, nem a diferença entre as duas,
mas estratos heterogêneos de intensidade que - como as escalas dos teóricos do caos -
envolvem complexidade insolúvel, diversidade, protração indefinida em ambas as direções,
a falência de limites absolutos, uma economia de incomensurabilidade e um aborto
compulsivamente recorrente do conceito. A essência é impedida por um excesso insolúvel de
detalhes, no mesmo gesto eruptivo que infecta letalmente a transcendência com o retorno da
complexidade excitatória. As grandes simplicidades da cultura - identidade, igualdade,
absolutez, abstração - são imanentemente subvertidas pela massa patológica de ingredientes
insuperáveis. Não há nenhum conceito de particularidade que não seja teológico; alinhado
com o fantasma de um espírito transcendente que fica disjunto da ineliminável materialidade
de todos os processos de espiritualização - para roubar o termo de Nietzsche.
Que a matéria é volatilizada em diferentes graus de espiritualização não é, de modo
algum, dependente de causalidades espirituais de qualquer tipo. Entre a selva e a polis está
uma história selvagem - uma genealogia - e não uma história política. A regressão não é um
desfazer do trabalho da cidade, mas um retorno da criatividade impessoal. Mais
precisamente, o trabalho da cidade nunca foi nada além de uma retranscrição mendaz das
reais metamorfoses que reemergem em devires licantrópicos.
A inferioridade não é nenhum tipo de carência ou empobrecimento, mas uma carga
libidinal positiva que potencializa espiritualizações. Qualquer coisa que dormite na
esterilidade da pseudoabsolutez está certa em temer os inferiores e as poderosas regressões
que lavam para longe as muralhas que represam sequências intensivas. A raça amaldiçoada,
vivendo como bestas, cujas veias são inflamadas por uma menstruação cósmica, nunca
entrou no grande projeto da civilização, que começa com o uso do fogo para manter os
animais selvagens à distância. Em vez disso, eles deixam um rastro causticado e enegrecido
em sua esteira enquanto irresponsavelmente protraem a trajetória da animalidade. Em suas
mãos, o próprio fogo se perde; tornando-se sujo, epidêmico e regressivo. Não é, para eles, o
fogo humanizador, nucleante; a lareira, o fulgor protetor e alimentador, um foco que abrange
a diferença dentro de si mesma, o fogo do familial e do familiar. O fogo dos inferiores é a
chama solvente que se espalha incontrolavelmente, queimando as arquiteturas sombrias da
transcendência na louca verdade da exterioridade. É o fogo de desperdício, dissipação,
desumanização, de uma fertilidade mais profunda e áspera do que pode ser abrangido pela
indústria do homem. Este fogo lupino - o elemento apolítico na guerra, literatura, psicose e
catástrofe - cria espaço para as propagações impessoais da selva.
Uma questão abrupta: Trakl era cristão? Sim, claro, às vezes ele se tornava um
cristão, entre uma confusão geral de devires - virar um animal, virar um vírus, virar inorgânico
- assim como ele também era um anticristo, um poeta, um farmacêutico, um alcoólatra, um
viciado em drogas, um psicótico, um leproso, um suicida, um canibal incestuoso, um necrófilo,
um roedor, um vampiro e um lobisomem. Assim como ele virou sua irmã e também um
hermafrodita. Os textos de Trakl estão rabiscados pelo monoteísmo redentor, assim como
estão manchados de fluidez narcótica, roídos por ratos, craterados pela artilharia russa,
carbonizados e esburacados por detritos astronômicos. Trakl era um cristão e um ateu e
também um satanista, quando ele não era simplesmente morto-vivo ou, de alguma outra
forma, inumano. Talvez seja mais preciso dizer que Trakl nunca existiu, exceto enquanto um
campo de batalha, um reservatório de doenças, o cemitério de uma igreja desconsagrada,

11
Ibid., 54.

6
ESPÍRITO E DENTES

como algo que expira de uma overdose massiva de cocaína no chão de um hospital militar,
enganado de lucidez pelo ataque lancinante de diferença basal.

Parte II: Ratos


Henrik Ibsen sabia algumas coisas sobre ratos, 'eles que são os odiados e perseguidos dos
homens'12. O fato de uma aliança entre ratos e desejos era evidente para ele e, quando
perguntam à esposa rato de O Pequeno Eyolf, onde seu amado está, ela responde: "Lá
embaixo entre todos os ratos"13. Quão habilmente ele indica o registro dos ratos sobre a
claustrofobia edipiana do lar burguês:

Esposa Rato: [faz reverências à porta] Implorando seu mais humilde perdão, senhoras
e senhores ... mas vocês têm alguma coisa roedora nesta casa?

Almers: Nós temos ...? Não, eu acho que não.

Esposa Rato: Porque se você tivesse, eu ficaria feliz em lhe ajudar a se livrar dela.

Rita: Sim, sim, nós entendemos. Mas não temos nada desse tipo.14

Quão desesperados eles estão para não acreditar! "Aqui não é lugar de ratos, este é o interior,
pureza, civilização, filosofia ... não queremos saber de nada desse tipo".
Ler não é uma coisa só. É sempre possível interpretar o movimento entre estratos,
pratos, terraços, em termos espirituais; uma questão de simulacro, representação, metáfora,
comentário e interpretação. Deus é como e ao contrário de um homem, que é como e ao
contrário de um animal, que é como e ao contrário da matéria inorgânica. Esta é uma
arquitetura de transições supraterrestres, diferença transcendental, verticalidade absoluta,
golfos de essência, disjunção logicizada, infinitizada, purificante. Não há uma única alternativa
a tal esquema, mas uma multiplicidade imprudentemente proliferada de alternativas;
complexos espaços-esponja apodrecidos por linhas de insinuação. Há sempre uma dimensão
de imanência; uma toca, um fio, um caminho para o contágio. Os andares de uma casa se
emprestam à estratificação social e, assim, à metáfora filosófica e teológica; o porão
representando o lugar dos servos, da animalidade, do inconsciente. O que é reprimido, neste
caso, não é o porão em si - o inferno não é reprimido, mas exibido - mas as paredes ocas, a
calha lá fora, o sistema arterial de tubos, dutos e respiradouros, tudo que facilita a corrupção
do espaço verticalmente articulado pela semi-horizontalidade de uma dimensão insidiosa.
Leis, revelações e preces, ou - em um nível mais baixo - comandos, mensagens e relatórios,
parecem estabelecer as relações definidas entre estratos, que são idênticas à justiça. As
palavras de Deus passam para baixo, nível a nível, mediadas de forma determinada em cada
estágio. Inerente a tal espacialidade é sua subversão, uma ordem mais básica e complexa
de distâncias, porque o Paraíso não deixa de ter seus buracos de rato, seu sistema de esgoto,
toda uma arquitetura impessoal caracterizada pela heterogeneidade porosa. Parece provável

12
Henrik Ibsen, The Oxford Ibsen, vol. 8 (London: Oxford University Press, 1966), 49.
13
Ibid., 49.
14
Ibid., 46.

7
NÚMENOS COM PRESAS

que Deus insistiria em um ar-condicionado e um elevador de carga. Independentemente do


seu rosto celestial, Jahweh ainda tem mordidas de rato em sua bunda.
Nem Heidegger nem Derrida tem qualquer tempo para os ratos de Trakl, mas isso não
os impede de pulular em todo lugar, exagerando o poder licantrópico de infiltração. Isso deve
ser admitido; os ratos não são muito espirituais, mas se houver um local, Ort, que focalize na
poesia de Trakl, por que não seria o pátio que Trakl repetidamente popula com ratos? Os
ratos não são, enquanto anti-historicismo positivo, cruciais para a força poética de Trakl? Por
que Heidegger nunca menciona o soberbo poema Os Ratos de Trakl, um texto que funciona
como um núcleo verminoso para todo um padrão de infestação. Talvez seja porque a
diferença se torna inaceitável quando ela se move rápida e imprevisivelmente, sibilando para
a humanidade por entre dentes manchados de peste.
Certamente não é porque os ratos são indiscerníveis, apesar de sua fluidez
ilocalizável. Eles guincham, assobiam, brigam, remexem e traquinam. Quando os ratos
irrompem em Sonho e Desarranjo, por exemplo, que é talvez o poema mais devastador e
licantrópico de Trakl, eles não são meramente vislumbrados - muito menos ignorados ou
exterminados - mas encorajados pela personagem central do poema, que lhes alimenta em
um gesto de bela traição contra a humanidade. Não que seja apenas a populosidade que lhes
dê um privilégio especial, corvos são igualmente predominantes dentro dos escritos de Trakl
- e também têm um poema seu próprio - ao passo que sapos e morcegos serão encontrados
em números incríveis. É o hediondo talento dos ratos de decompor interioridades que lhes dá
vantagem; abrindo a 'casa do pai' apodrecida pelo incesto - e, com ela, os recessos mais
intensamente carregados da escrita de Trakl - às depredações da alteridade feral.
Apesar de seus preconceitos humanistas, Hans Zinsser, em seu livro Rats, Lice and
History, escreveu deliciosamente sobre os ratos. Ele observa:

É um fato curioso que, muito antes que pudesse ter havido qualquer
conhecimento a respeito do caráter perigoso dos roedores como portadores
de doenças, a humanidade já temesse e perseguisse estes animais. Sticker
coletou uma grande quantidade de referências sobre este assunto, a partir da
literatura antiga e medieval, e encontrou muitas evidências no folclore da
Europa medieval que apontam para o vago reconhecimento de alguma
conexão entre a peste e os ratos. Na antiga Palestina, os judeus consideravam
todas as sete variedades de camundongos (akbar) imundas e tão inadequadas
para a nutrição humana quanto eram os porcos. Os adoradores de Zoroastro
odiavam ratos aquáticos e acreditavam que a matança de ratos era um serviço
a Deus. Também é significante que Apolo Smintheus, o deus que deveria
proteger contra doenças, também era mencionado como o matador de
camundongos, e os bispos da Igreja Católica primordial suplicaram a santa
Gertrudes para que ela protegesse contra a peste e os camundongos. O ano
de 1498, Sticker nos diz, foi um ano severo da peste na Alemanha, e haviam
tantos ratos em Frankfurt que um assistente era estacionado por diversas
horas por dia em uma ponte na cidade e ordenado a pagar um pfennig para
cada rato trazido. O assistente cortava o rabo do rato - provavelmente como
um método primitivo de contabilidade - e jogava os corpos no rio. Heine, de
acordo com Sticker, fala sobre um tributo imposto sobre os judeus de Frankfurt
no século XV que consistia da entrega anual de cinco mil rabos de rato. Um
folclore originário de uma série de partes diferentes da Europa, durante a

8
ESPÍRITO E DENTES

epidemia da grande peste, menciona gatos e cães, os inimigos hereditários de


ratos e camundongos, como guardiões contra a peste.15

Há um poder enorme na hierarquia dinâmica dos vetores mobilizados pelos ratos. Ela
combina a sutileza insidiosa dos líquidos com o deslocamento concentrado de sólidos
compactos; saturação com saltos. Ratos carregam pulgas que portam doenças, aumentando
a disseminação fluída de pragas com uma transmissão ferozmente descontínua. Para citar
Zinsser novamente:

Estudos realizados nos últimos anos parecem indicar que o vírus do tipo México-
Americano de febre tifoide, assim como da variedade endêmica na bacia
mediterrânea, está altamente adaptado a roedores e é carregado por estes animais -
ratos - durante os intervalos entre epidemias humanas; transmitida de rato para rato
pelo piolho de rato (polyplax) e pela pulga de rato (Xenopsylla) e, em ocasiões
convenientes, do homem para o rato pela pulga do rato. Por esta razão, Nicolle fala
sobre este como o vírus 'murino'.16

E um pouco mais adiante:

Do ponto de vista de todas as outras criaturas vivas, o rato é um incômodo e uma


peste não mitigada. Não há nada que possa ser dito a seu favor. Ele pode viver em
qualquer lugar e comer qualquer coisa. Ele se entoca por si mesmo quando precisa,
mas, quando pode, ele toma as habitações de outros animais, tais como coelhos, e
mata eles e seus filhotes. Ele escala e nada. Ele carrega doenças do homem e de
animais - peste, tifo, trichinella spiralis, febre da mordida do rato, icterícia infecciosa,
possivelmente febre aftosa e uma forma de 'influenza' equina. Sua destrutividade é
quase ilimitada.17

O primeiro elemento empírico a ser notado por qualquer teoria libidinal dos ratos é a
diversificação zoológica do rato em duas espécies. Estas são 'Rattus rattus, o rato preto,
caseiro ou de navio, e Rattus Norvegicus, o rato marrom-acinzentado, do campo ou de
esgoto'18, dos quais Schrewbury fala em sua History of the Bubonic Plague: 'Em comparação
com o rato doméstico, ele é menos ágil, mas bem mais voraz e ardiloso e, como é mais forte
e mais fecundo, ele é um inimigo muito mais formidável da humanidade'19. Durante o surto
de peste bubônica durante o século XIV, não foi apenas a intensa matança de populações
humanas ou a distribuição de vetores terminais que foi executada pelo R. rattus, que vivia e
se propagava em estreita proximidade com os humanos, mas também a disseminação de
longo alcance da praga, já que não se pensa que o R. Norvegicus tenha chegado à Europa
antes do século XVIII. Se isto é verdade - e a atual zoologia histórica não fornece qualquer
razão positiva para se duvidar - então pode-se afirmar com segurança que a peste negra,
além de sua precursora, que se encolerizou por todo o oriente próximo e na Europa durante

15
H. Zinsser, Rats, Lice, and History (Boston: Bantam Books. 1965), 142-3.
16
Ibid, 142.
17
Ibid, 150-1.
18
JF.D. Shrewsbury, A History of the Bubonic Plague in the British Isles (Cambridge: Cambridge
University Press, 1970), 7.
19
Ibid, 8.

9
NÚMENOS COM PRESAS

os séculos VI e VII, permanecerá o clímax de realização alcançado pelo R. rattus, que desde
então foi eclipsado. Zinsser mais uma vez:

assim como as civilizações estabelecidas da Europa Setentrional foram varridas pelas


invasões massivas de bárbaros do Leste, assim também a hegemonia do rato preto
foi eventualmente aniquilada com a incursão das hordas do rato marrom, ou Mus
decumanos - o asiático feroz, de nariz e cauda curtos que se espalhou pelo Continente
no começo do século XVIII...

O rato marrom, também, veio do Leste. Ele agora é conhecido como o rato 'comum'
e, por causa de uma noção errônea de sua origem, como Mus norvegicus. Sua
verdadeira origem, de acordo com Hamilton e Hinton, é provavelmente da Mongólia
chinesa ou da região a leste do Lago Baikal, ambos locais nos quais formas indígenas
que se assemelham a ele foram encontradas. Os mesmos autores citam Blasius, que
acredita que os antigos em torno do Mar Cáspio podem ter conhecido este rato.
Cláudio Eliano, um retórico romano do século II, em seu De Animalium Natura, fala de
'pouco mais do que Ichneumons, fazendo invasões regulares em números infinitos'
nos países ao longo do Cáspio, 'nadando por sobre rios segurando as caudas uns dos
outros'.

Pallas (1831), em sua Zoögraphia Rosso-Asiatica, regstra que em 1727 - um ano do


rato - grandes massas desses ratos nadaram através do Volga após um terremoto.20

Há duas variedades de rato, mas isto não deveria ser tomado como um presente para nossos
metafísicos, ou supostos antimetafísicos, que estão constantemente em busca de oposições
conceituais dicotômicas. A dualidade entre R. rattus e R. Norvegicus é do tipo 1, 2, ... não
0...1; ela não encerra nada, não atinge nenhum limite, não fornece nenhuma determinação,
negatividade lógica ou alternação. Os símbolos do deslocamento libidinal são complexos e
não diacríticos. Diferenciação alógica: preto e marrom, não preto e branco. Um, dois ...
primeiro a onda de R. rattus, efetiva por sua mesma, quase invisível para a Europa da idade
média, diferenciado talvez da ratazana (ela era chamada de mures majores)21, ½, 1, ...? E
então a onda de R. Norvegicus, um tipo diferenciado de rato, mas não um tipo oposto; antes,
um tipo que era mais inteligente e destrutivo, levando o processo rato um pouco mais além.
Longe de exigir o rato preto para sua determinação, o novo invasor asiático aniquila a
população anterior de ratos, estabelecendo-se como uma intensidade pura, como um
potencial para o desastre. Os ratos desdenham da discriminação, propagando sua diferença
por sobre um platô de excitação. Diferenciação dentro de uma série ilimitável, dissimilaridade
alógica, independência do diferendo e proliferação indiscriminada de não identidade; esta é
a 'lógica' dos ratos.
O caso de neurose compulsiva de Freud em 1909 - o 'homem-rato' - é contado por
seu capitão, fatalmente, como uma 'punição Oriental particularmente terrível' 22. Freud
descreve como isto foi relatado a ele na análise: 'o condenado é amarrado (ele se expressou

20
Zinsser, Rats, Lice, and History, 149.
21
Shrewsbury, History of the Bubonic Plague, 121.
22
S. Freud, Studienausgabe, Band VII: Zwang, Paranoia, und Perversion (Frankfurt am Main: S.
Fischer, 1982), 43; S. Freud, 'Notes Upon a Case of Obsessional Neurosis' (1909), in Three Case
Histories, ed. P. Rieff (NY: Touchstone, 1996), 11.

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ESPÍRITO E DENTES

tão pouco claramente que eu não consegui imediatamente adivinhar [erraten] em que
posição) - sobre seu traseiro, um pote era colocado, dentro do qual ratos [Ratten] eram
introduzidos, que - ele se levantou novamente e deu todos os sinais de terror e resistência -
cavavam para dentro'23. Esta é a 'punição do rato' [die Rattenstrafe], aplicada à Europa,
através de sua parte inferior, a partir do Leste. Sua peculiar insidiosidade, que Freud não
enfatiza, muito embora a assinale, é que adivinhar [erraten] o mistério [Rätsel] do Rattenstafe
é sofrê-lo. No próprio movimento de proeza, o gesto interpretativo imperial é tomado par
derriére por uma força libidinal impessoal de além do discurso representacional, seja lógico-
psiquiátrico ou orientalista. A imagem da violação anal que organiza o delírio do rato tem
todos os traços de uma formação de compromisso; uma sublimação da imprevisibilidade
absoluta em uma passagem linearizada, fortificada por um esfíncter sadisticamente investido
e ego-cooptado. A infiltração do rato é singularizada e descrita como um ataque frontal
invertido, despojado de sua fluidez, irretidão, heterogeneidade, como se fosse mera
delicadeza que obstruísse nossa compreensão do espaço verme. Não é a ambivalência
Edipiana que é solicitada por tal imagem, mas a misoginia racista que projetaria todos os
fluxos não domesticados em um eixo de expulsabilidade. O rattenstrafe é um desejo - e,
assim, uma idealização - porque é bem mais reconfortante para a estrutura anal-sadista do
humanismo do que a realidade da livre penetrabilidade do corpo ao longo de todos os seus
estuários insoluvelmente dimensionados.
A animalidade não é um estado, essência ou gênero, mas um espaço complexo
atravessado por viagens de todos os tipos. Trakl explora esta selva com uma vulnerabilidade
excruciante. A animalidade que Trakl encontra tem seus becos sem saída e fossas
estagnantes, tem seus devires humanistas e teológicos, mas também seus canais de fluxo
aberto; virar múltiplo, fluído, imprevisível, virar um inimigo da humanidade, devires lupinos e
murinos de todos os tipos. Estas sequências intensivas não podem ser isoladas ou
determinadas, uma vez que nenhuma fronteira impermeável resta para colocar os roedores
de Trakl em quarentena, separando-os dos sem nome. De se tornar uma ratazana e depois
um rato preto e depois um rato marrom, ou de se tornar a irmã de alguém e depois uma
matilha de lobos e depois um enxame de ratos. A eternidade da raça inferior de Rimbaud
compartilha suas doenças com a 'eternidade profunda, profunda' de Nietzsche, para a qual o
próprio adjetivo é dilacerado por ondas convulsivas de decadência. Um insondável abismo
de regressão ou recorrência se prolonga epidemicamente para dentro do corpo de Trakl. 'Eu
sou o verme da história'. Precipitação indecente.

23
Ibid., 44; 12.

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