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Ele acabou de sair. Segundo ele, para tomar um ar.

Eu fiquei em casa porque sabia que esse não era o real motivo e
que ele não queria companhia. Também não era de minha vontade acompanhá-lo.

Resolvi ler, lembrei que os livros ficam no porão. Terei que dar um jeito de arranjar uma lanterna, até porque lá não
tem iluminação. O porão era um quartinho que tinha a metade da área do nosso quarto. Por fim acabei não lendo
livro algum porque encontrei uma caixa lá. A caixa que trouxemos da mudança, na verdade a única caixa que
trouxemos com mudança. Trouxemos nela sete porta-retratos, três livros e um diário meu de infância, o resto ficou
na casa da minha mãe e na da mãe dele. Os móveis vieram numa caminhonete do meu tio. Era pouca coisa. Lembro
que fui na carroceria da caminhonete junto à mudança até nossa casa. Brayan ficou tão preocupado quando me viu
lá. Ele tinha combinado de esperar na casa. Tínhamos acabado de casar, acho que isso faz oito anos. Éramos bem
jovens, ele tinha dezoito e eu vinte anos, por mais que eu me apresentasse bem mais jovem que ele e isso não
fizesse jus a minha idade.

Peguei um porta-retrato de ferro da caixa, estava enferrujado. Pelo jeito tinha uma goteira bem no rumo da caixa.
Estragou a foto, mas ainda dá para julgar do que se trata o retrato. Eu e ele com orelhas extravagantes de coelhos e
nossos narizes tingidos de vermelho. Ele me abraçava enquanto eu fazia cara de emburrada. Me lembro desse dia.
Foi numa páscoa e era meu aniversário. Vi a data no cantinho da foto. Eu estava fazendo dezoito anos. Acho que ele
tinha derramado refrigerante na minha roupa temática de coelhinho. Por isso da minha cara emburrada.

Peguei outro porta-retrato. O retrato estava em bom estado. Não tinha sido estragado pela goteira. Provavelmente
ele tirou aquela foto enquanto eu dormia. Era meio que uma selfie comigo dormindo ao fundo e ele mostrando a
língua. Eu mais parecia um leão adormecido em meio aos lençóis.

Me lembro que quando éramos recém casados ele trazia meu café da manhã na cama. Ele me acordava cantando
um trecho qualquer de uma música preferida dele e elogiava o quanto meu cabelo parecia mais majestoso que a
juba de um leão.

Me dei conta agora de que o homem com quem casei não é mais o mesmo. Entretanto eu entendo, ou tento
compreender, que aquilo o impactou, impactou muito. E se não fosse por isso ele continuaria sendo aquele cara
alegre.

Folheei meu diário. As coisas da mudança continuavam ali desde quando nos mudamos. “12 de maio: Hoje ele me
pediu em namoro depois de anos me rondando com aquele jeito meigo e interessado. Espero que sejamos felizes
para sempre!” Eu li isso em uma página aleatória do diário. Se não me engano, eu tinha meus dezessete anos nessa
época. Examinei uma terceira foto. Nós dois com o nosso doguinho, Didi. Eu dando um beijo na bochechinha do Didi
e o Brayan nos envolvendo em um abraço, sorrindo para mim.

Ouvi o ranger da porta. Eu saio do porão. Ele voltou.

__ Encontrou os narcisos de que ela tanto gostava? -perguntei a ele.

__ Não, mas deixei rosas para ela. Trouxe para você também. – Ele me ofereceu o buquê corando.

Eu o abracei, ele retribuiu com um bem apertado, deixando o buquê cair atrás de mim. Ele começou a chorar
compulsivamente, soluçando. A essa altura eu também já chorava.

__ Vai ficar tudo bem, Brayan.

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