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O Figurino como objeto sensível na criação do espetáculo

“Sob os Olhos dos Outros”

Clarice Macieira1

Orientador: Prof. Ms. Eduardo Andrade2

Introdução

O figurino é evidentemente um meio de narração, ele


permite definir a personagem, e a inserção em uma
realidade do espetáculo. Graças ao figurino é possível
determinar grupos, de acordo com seus status, e
demarcar a temporalidade do espetáculo, assim como a
evolução das personagens3

                                                                                                                       
1
Bacharel em Interpretação Teatral, Curso de Graduação Em Teatro , EBA/UFMG.
2
Professor Mestre Eduardo Andrade, Curso de Graduação em Teatro, EBA/UFMG.
3
  Tradução nossa do original em francês: “Lors d'une création de costumes, je fonde toujours ma
recherche sur deux impératifs: le sens et le corps. Le costume est évidemment un outil de narration, il
permet de définir le personnage, de l'inscrire dans une réalité propre au spectacle. Grâce au costume, on
détermine des groupes, des accords et des répulsions, on marque aussi la temporalité du spectacle,
Este artigo tem o propósito de avaliar o processo de criação do espetáculo “Sob
os olhos dos outros”, no qual o figurino é colocado em foco, como força motriz do
processo de criação. Pretende-se investigar as funções e possibilidades do figurino, não
apenas como vetor ativo na constituição do discurso cênico, mas como instrumento
atuante no processo de criação. Assim é que as reflexões a respeito do figurino serão
feitas através de minhas percepções como atriz ao longo do processo de montagem do
exercício prático, apresentado como trabalho final do Curso de Graduação em Teatro da
EBA- UFMG.

Ao longo de minha formação acadêmica, busquei sempre o cuidado com a


caracterização e com a parte plástico-estética em meus trabalhos. Percebi o quanto os
elementos visuais do espetáculo, principalmente o figurino, eram signos fortes para sua
leitura e, por isso, deveriam ser levados em consideração nos processos criativos.
Passei, então, a estudar como o figurino poderia influenciar nos exercícios cênicos
realizados em sala de aula e, mais ainda, afetar o meu corpo e trabalho como atriz.

Paralelamente aos estudos individuais, tive a oportunidade de exercer o papel de


figurinista em alguns projetos. Participei de dois espetáculos de formatura e assinei o
figurino da cena curta “Av. Central”, apresentada no Festival de Cenas Curtas do
Galpão Cine Horto (BH/MG). Essas experiências foram decisivas para que eu
continuasse minha pesquisa direcionada ao figurino teatral e à roupa como elemento
significante, tanto no teatro como na sociedade.

A proposta de montagem do espetáculo “Sob os olhos dos outros” partiu desse


interesse em investigar as possibilidades criativas das roupas. Todas as cenas foram
construídas através de improvisações em que as roupas estiveram presentes, sendo
vestidas ou transformadas em cenário e objeto de cena. As improvisações foram
baseadas em alguns textos que refletiam de alguma forma sobre a questão de gênero,
como “Do sol Nascente” de Grizelda Gambaro, além de trechos da “Política” de
Aristóteles e “Meditações” de Descartes. Entendemos que a construção do “ser mulher”
e do “ser homem” são muito mais uma construção social que propriamente uma

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                           
l'évolution de ses personnages”. Retirada do site: http://www.julie-d.levillage.org/costumes.htm.
EMERECIANO, Juliana. A comunicação através das roupas: uma compreensão do design de moda além
da superficialidade, Salvador, Revista Design em Foco, vol.II número 001,p.11
condição dada. Além disso, percebemos o quanto a construção da imagem e da
concepção do que é feminino ou masculino, na sociedade, perpassa a roupa.

Para a análise do espetáculo e do processo, primeiramente, optamos por dizer da


importância da roupa no contexto social, cultural, e nas definições de gênero para,
então, realizar um breve panorama da história do figurino e suas funções. Em seguida,
há o relato do processo e de como as roupas, e o figurino propriamente dito, vieram a
modificar o estado e o corpo dos atores, bem como a construção dramatúrgica.

A Indumentária como forma de expressão cultural

A indumentária é objeto ao mesmo tempo histórico e


sociológico e para Roland Barthes, principalmente se constitui
ou diz respeito a um valor. Então, é em nome da regra de usos,
imposições, proibições, tolerâncias e transgressões que o
vestuário deve ser descrito, nas suas relações e valores culturais.
Para ele, a indumentária, é ao mesmo tempo, sistema e história,
ato individual e instituição coletiva (CORTINHAS, 2010, p.22)

Os diversos significados adquiridos pelas roupas ao longo do tempo podem ser


explicados pelo motivo primordial ao qual nos vestimos. Segundo os estudiosos da área
de Moda, o homem passou a se vestir por três motivos essenciais: adorno, pudor e
proteção. No entanto, a maioria parece concordar que o caráter de enfeite emprestado
pelas roupas é o motivo principal que levou a humanidade a se vestir. A questão
utilitária da vestimenta, como forma de proteção contra as adversidades do clima, não
justifica o fato de que em regiões de clima quente existam povos que se cubram. O
argumento de que o pudor é uma motivação para andarmos vestidos também não é
válido, uma vez que há tribos em que o corpo é adornado, mas não há a presença de
roupas. Segundo Juliana Emereciano (Op. Cit.), “As duas outras motivações – pudor e
proteção – apesar de terem adquirido grande importância posteriormente, só foram
descobertas quando o uso das roupas se tornou comum”. A origem da roupa diz sobre a
importância do adorno corporal como forma de expressão de uma cultura, de postos
hierárquicos e servindo de mediação entre o indivíduo e a sociedade da qual faz parte.
Vestir-se passou a ser um dos meios pelas quais a humanidade se expressa e produz
significados.
A roupa foi, ao longo da história, nas sociedades ocidentais de classe, indicador
de gênero, de hierarquia, posição social, religiosidade e da profissão exercida. Tais
indicações eram claramente projetadas através da roupa utilizada. O rufo, por exemplo,
tipo de gola do período Elisabetano, composta por tecidos engomados e plissados,
representava nobreza, enquanto o tamanho da gola distinguia os nobres entre si, de
acordo com suas determinadas nomeações.

Além disso, a roupa funcionou como ferramenta de controle social e de


manutenção de valores. O ideal feminino do século XIX, por exemplo, era de que a
mulher fosse “frágil” e de que sua função fosse voltada, intrinsecamente, para a
instituição familiar. As roupas, à primeira vista, reforçavam tal estereótipo. A
construção da imagem de “progenitora” e de “indefesa” através das roupas, se dava pelo
uso de diversas anáguas e saias, espartilhos muito apertados de forma estrangular a
cintura e aumentar o tamanho das saias. Os espartilhos eram usados desde cedo,
chegavam a provocar desmaios e, com o tempo, deformavam o corpo. O uso da
crinolina4 e da anquinha5 conferiam o volume e o formato arredondado aos quadris,
simbolizando a fertilidade.

No século XX, a partir da década de 1920, a roupa feminina se liberta da


crinolina e das anquinhas, bem como dos espartilhos. No entremeio das duas grandes
guerras houve a necessidade do corte nos gastos com tecidos e na exuberância das
roupas femininas e, por conta disto também, as saias se tornaram mais curtas e o corte
das roupas mais flexível, de modo que as mulheres pudessem sair para trabalhar e o
resultado na aparência se tornasse mais ou menos homogêneo.

No pós-guerra, a valorização da saia enquanto definição de feminino esteve em


voga com a criação do New Look de Dior e, posteriormente, nos anos 1960 e 70, a
moda seguiu tendência muito mais andrógena tanto para mulheres quanto para homens:
o corte das roupas foram alargadas nos anos 1970, comportando a ideia de esconder o
corpo feminino, enquanto que os homens passaram a usar cabelos compridos.

                                                                                                                       
4
A crinolina foi um tipo de armação para sustentar e conferir volume das saias sem a necessidade do uso
de anáguas. Eram confeccionadas com crina de cavalo, barbatanas de baleia ou ferro. Foi utilizada na
segunda metade do século XIX, sendo posteriormente substituída pela Anquinha.
5
O traje proposto por Amélia Bloomer no século XIX consistia em calça sobreposta de saia, porém foi
ridicularizado em público.

 
Interessante notar que a androgenia feminina desde a década de 1970 é comumente
aceita, enquanto que o contrário continua sendo um tabu.

Quando nos anos 1980 surge a noção do homem metrossexual, que cuida de sua
aparência, a primeira chamada nas revistas de moda aponta para o fato de que o uso de
roupas coloridas pelos homens, em detrimento a roupas sóbrias, não afetaria sua
masculinidade. Ao ressaltar que o fato de que se cuidar não torna um homem
homossexual, a revista reforça o que diz Miguel Vale de Almeida:

a masculinidade não é simétrica da feminilidade, na medida em que as


duas se relacionam de forma assimétrica, por vezes hierárquica e
desigual. A masculinidade [portanto] é um processo construído, frágil,
vigiado, como forma de ascendência social que pretende
ser.”(ALMEIDA apud KLANOVICZ, 2008, 1995:17)

A ambiguidade ao se vestir, ainda que seja relativamente aceita no vestuário


feminino e aos poucos venha conquistando os guarda-roupas masculinos, não foi capaz
de quebrar barreiras de gênero. A sociedade continua delimitando e concebendo as
imagens do masculino e do feminino através das roupas, sendo que apenas peças
específicas são capazes de transpor os limites do que é considerado aceitável para um ou
outro sexo.

A roupa no universo ficcional: funções e possibilidade do figurino

No universo ficcional o figurino exerce a função de narrar, visualmente, certas


características da personagem. Assim como a roupa, as indicações de gênero, status,
hierarquia e gostos pessoais são refletidos e estão presentes nos figurinos, de modo que
o espectador possa construir uma história a partir do que vê.

Até o século XIX, os figurinos se limitavam a ser meramente ilustrativos,


representando tipos específicos facilmente identificados pelo público. A partir da
ascensão do naturalismo, o figurino passa a ser visto como elemento que caracteriza a
personagem segundo sua posição social, expressando características psicológicas
próprias de cada personagem. Os simbolistas, por sua vez, esforçaram-se para que os
figurinos estivessem integrados à imagem do espetáculo, de forma que as cores e
formas tivessem coerência com os outros elementos cênicos.
Ao longo do século XX, o figurino, assim como os demais elementos visuais do
espetáculo, estabelece-se como um vetor ativo na construção do sentido da cena,
incorporando novas funções. Os textos teatrais apresentam uma complexificação das
personagens, do ponto de vista de um detalhamento de suas estruturas psicológicas, e
uma ilustração meramente tipificada dos figurinos não atende mais aos questionamentos
postos em cena. Nasce a profissão do figurinista, que deverá estar atento às várias
funções atribuídas ao figurino.

Para Patrice Pavis, o figurino assume a função primeira de caracterizar a


personagem, revelando seus traços psicológicos, “estilo, preferências individuais ou
meio social” (PAVIS, 2010, p.164). Trata-se de um elemento capaz de nortear o
espectador em relação à personagem quanto ao sexo, à profissão, posição hierárquica,
classe social, religião, sendo também um meio de indicar o tempo e o espaço da ação. O
figurino auxilia não só na construção da personagem em si, mas contribui para o
entendimento geral do espetáculo, permeando a dramaturgia.

Nesse sentido, o figurino funciona como um elemento significante, estando


inserido no grupo dos signos não-linguísticos, de caráter visual (assim como o cenário, a
maquiagem, os gestos e a movimentação do ator) que compõe a cena. Juntamente com
os signos linguísticos e auditivos (a palavra, o ruído, a entonação e a trilha sonora), eles
trabalham simultaneamente de forma a reforçar, complementar ou contradizer
informações. Assim, do ponto de vista semiológico, tudo o que compõe a cena significa
e funciona para a melhor compreensão e adequação ao todo do espetáculo.

Os signos no Teatro utilizam-se de sistemas significantes empregados em todas


as atividades humanas, sejam elas artísticas ou não: signos da natureza, das profissões, e
dos diversos campos de conhecimento. O figurino, como sistema significante, relaciona-
se com a história do vestuário, uma vez que a roupa sempre foi um aspecto relevante na
vida em sociedade. Ele estabelece um jogo interno em que a coerência deve existir tanto
com a obra quanto entre os figurinos, e também um jogo externo em que se relaciona
com aspectos da vida. Rosângela Cortinhas afirma que:

Seja qual for a corrente estética da natureza da encenação, o figurino


participa com seu duplo jogo: no interior do sistema da encenação,
definido a partir de semelhanças ou oposições das formas, materiais e
cores em relação aos outros figurinos e em relação com a realidade
exterior, na equivalência com o contexto social e histórico do
espetáculo. Ele tem suas funções multiplicadas e está integrado ao
trabalho teatral. O figurino carrega sobre a cena um jogo maior: o
mundo espetacular de uma cultura.(CORTINHAS, 2010, p.34)

A roupa esteve sempre atrelada aos costumes e às relações humanas.


Paralelamente, o figurino, embora teatralizando as roupas, dialoga com a história do
vestuário em suas múltiplas significações construídas ao longo do tempo. À medida em
que a roupa é capaz de expressar características essenciais de uma cultura, o figurino é
igualmente capaz de potencializar a reflexão posta em cena sobre aspectos fundamentais
do comportamento humano. Questões centrais relacionadas ao comportamento e à
sociedade, como a concepção do gênero, quando levadas à cena, podem encontrar, no
figurino, um alicerce para apoiar e estruturar a discussão.

Propomos, a seguir, uma reflexão sobre o processo de criação do espetáculo


“Sob os olhos dos outros”.

A Importância do Figurino como objeto sensível na criação do espet´culo “Sob os


Olhos dos Outros”

No teatro, a troca de roupa abre o jogo para o ator ser outro sem
deixar de ser o mesmo, para poder viver um “significante
flutuante” onde o sentido vai sendo composto com o decorrer da
ação. (CORTINHAS, 2010, p.34)

O corpo, quando vestido, é moldado através das roupas. Sendo assim, é plausível
pensar o figurino como um elemento capaz de afetar não só a criação e a construção da
personagem, como também de acentuar a percepção do ator em relação ao seu corpo. As
capacidades expressivas são, então, ampliadas em função do figurino, uma vez que ele
pode atuar de forma a restringir ou ampliar movimentos. Para Pavis, “o figurino é tão
vestido pelo corpo quanto o corpo é vestido pelo figurino. O ator ajusta sua
personagem, afina sua subpartitura ao experimentar seu figurino: uma ajuda o outro a
encontrar sua identidade” (PAVIS,2010, p.164). A reflexão de Pavis reflete o que
buscamos ao longo do semestre na construção do espetáculo “Sob os olhos dos outros”:
um corpo diferenciado, modificado pela roupa e pelo figurino.
A estrutura proposta pelos dramaturgos/diretores Tomaz Yanomani e Adriana
Januário, a partir do que construímos em sala, era de um universo fantástico que,
mesmo beirando o surreal, dialoga com a realidade. Em cena estão os atores Bruno
Pontes, Fabiano Rabelo, Igor Leal e Clarice Macieira. A peça conta a história de dois
homens que nunca viram uma mulher (Bruno Pontes e Fabiano Rabelo) e, por isso,
fantasiam sobre como ela se parece, pelo vislumbre da silhueta de roupas femininas. As
mulheres haviam fugido, e a eles restava retalhar as roupas deixadas para trás,
representando aqui a opressão imposta pelas roupas e pela sociedade. Paralelamente, há
um homem que conhece o que é uma mulher, porém ele é cego e, portanto, não poderia
descrevê-las exatamente. O confronto se dá quando surge uma mulher que não se
reconhece como tal e que vai aos poucos sendo manipulada por cada um dos
personagens, até que se liberta e percorre caminhos na busca de sua identidade. Todos
os personagens mantem costumes que vão sendo colocados em cheque à medida em que
eles se encontram. O cego é um vendedor que carrega uma mala que, segundo lhe
disseram, nunca poderia ser aberta; um dos homens idealiza a mulher perfeita, que não
existe; o outro se descobre mulher a partir do momento em que entra em contato com
uma.

As improvisações eram, no início, muito influenciadas pela questão visual e pela


criação de imagens até que, posteriormente, foram acrescidas de falas e textos. Esses
experimentos iniciais resultaram em cenas do espetáculo: roupas jogadas pelo chão
compondo o cenário, a agressão através de roupas atiradas, acessórios que definiram as
personagens, como os óculos escuros para o cego (que mais tarde foi substituído por
uma boina que tapa os olhos do ator).

A condução dos exercícios partiu dos diretores Tomaz Yanomani e Adriana


Januário, e de conversas que tive com ambos. Assim, os atores puderam vivenciar a
roupa sob diversos aspectos, experimentando usar roupas femininas em contraste com
seus corpos masculinos, vestir uma peça só em duplas e perceber o corpo diferenciado
por isso. O manejo com as roupas no nosso trabalho procurou seguir o que Rosângela
Cortinhas coloca como definição do figurino, “um elemento capaz de metamorfosear o
comportamento do ator”.

Já no sexto ensaio procuramos improvisar com personagens selecionados da


obra “Do sol Nascente”, dentre outras, como “Romeu e Julieta” e “Medéia”. As
improvisações eram realizadas em duplas e consistiam em um jogo de sedução. Cada
ator sabia previamente se era ele o “seduzido” ou o “sedutor”, porém não tinha
conhecimento de quem seria seu parceiro em cena, já que as personagens a serem
interpretadas eram sorteadas no início do jogo. Constatamos que, além da postura
corporal do ator, a caracterização através do figurino era o que norteava o trabalho de
forma que descobríssemos quem era quem e como nos portar diante de tal ou qual
personagem. Interessante notar também que algumas peças de roupa se repetiam na
caracterização dos personagens: o Tísico, da obra de Grizelda, era sempre representado
por uma túnica de cor bege, de aparência desgastada. Mas porque não escolhíamos outra
peça de roupa? A questão do status social e as indicações pertinentes ao figurino
começavam a aparecer.

Houve momentos em que escolhemos peças de roupas específicas para trabalhar


com elas. Assim surgiram os esboços dos personagens do espetáculo, em momentos
diferentes. Em uma das improvisações, o ator Bruno Pontes escolheu um vestido, porém
manteve uma qualidade corporal masculina. Foi um momento interessante, pois
visualizamos a desconstrução do vestido como elemento essencialmente feminino. No
espetáculo, há uma cena em que ele transforma a própria camisa social em vestido,
ressignificando a roupa.

A concepção dos figurinos efetivamente só passou a ser delimitada depois que


as personagens se tornaram mais evidentes em seus trejeitos, ações e aspectos. A
substituição dos óculos escuros por uma venda, e depois pela boina, se deu tanto pelo
trabalho do ator quanto por sugestões minhas. O cego é uma figura que diz ter tudo do
mundo em sua mala, mas, no entanto, não é capaz de fazer escolha. Trata-se de um
personagem fundamentalista, que não escolhe seguir os seus desejos, mas obedece ao
que os outros dizem, sendo moldado visualmente pelo olhar e gosto alheio. Para esta
personagem, escolhemos um figurino que refletisse seu caráter indeciso e obediente:
composto de duas gravatas sobrepostas, uma boina que veda propositalmente os olhos e
a roupa em tom único.

Ao longo do espetáculo, de modo geral, optou-se por colocar todos os


personagens vestidos de terno. O terno é para nós um signo forte do masculino uma vez
que o simples uso de calças por mulheres já foi considerado transgressivo e inadequado,
mesmo que sobreposta de saia6. Para a minha personagem, escolhemos um terno com
corte masculino, branco com listras pretas, como de um prisioneiro; os atores Bruno
Pontes e Fabiano Rabelo vestem ternos sóbrios, sem cor; as únicas roupas coloridas são
as femininas, que os rodeiam na “fábrica de retalhos”. O fato de eu ser uma mulher
usando terno (signo masculino) faz com que os outros personagens não me reconheçam
como tal, pois não me pareço em absoluto com o que imaginaram através dos vestidos e
saias. Ademais, estas personagens não conseguem conceber que uma mulher tivesse o
corpo como o deles, humano.

A personagem do ator Fabiano Rabelo configura-se como um homem sério,


moralista, e que enxerga a possibilidade de exercer poder sobre a mulher, segundo seu
sexo. Portanto, o figurino foi escolhido como mais conservador, de cores sóbrias. Ele
tenta insistentemente enquadrar a mulher “como ela deveria ser”, vestida com saias de
todos os tipos.

Por fim, temos a figura da esfinge, que caracteriza um ser atemporal. Composta
por dois atores (Igor Leal e Bruno Pontes), a esfinge veste-se de branco, como em um
cerimonial e imagens são projetadas sobre o figurino. Há dois contrapontos: o ator que
fica na base (Bruno Pontes) veste uma calça-saia até os pés que se abre como se fossem
patas. Ao mesmo tempo, o ator que está no suporte de cima também traja um figurino
que alonga seus movimentos, remetendo à ideia da águia e do leão que compõem a
esfinge em várias mitologias, como a Grega e a Egípcia.

As experiências descritas com a utilização do figurino foram apenas alguns


exemplos das possibilidades criativas do figurino. Escolhemos narrar os mais
interessantes, no entanto, houve outros vários experimentos (alguns mais proveitosos
que outros) não relatados aqui. O processo de criação foi afetado pelas roupas em
diversos sentidos, desde o primeiro ensaio até a definição de quais seriam os figurinos
em cena. Obtivemos como resultado um balanço positivo quanto à presença da roupa ao
longo do semestre de ensaio; ela foi influente na composição do cenário, na construção
das personagens pelos atores, na descoberta de corpos diferenciados, e na desconstrução
da roupa enquanto signo social, dentre outras coisas. Notamos também que partir da
roupa como motivação para as improvisações, nada impede que o texto surja nem que o
trabalho com uma obra dramatúrgica, no sentido literário, seja minado. O resultado em
                                                                                                                       
6
 A calça só foi totalmente aceita para mulheres no final dos anos 1970.  
cena não faz, senão, traduzir em figurino o que a roupa nos trouxe enquanto elemento
significativo nos ensaios.

Considerações Finais

Assim como os demais elementos visuais da encenação, a criação do figurino


acontece normalmente na fase final da produção de um espetáculo. É comum vermos
processos de criação cênica em que somente após a definição estrutural do desenho da
encenação, luz, cenário, a maquiagem e o figurino são convocados a entrar no processo,
de modo a realizar uma espécie de vestimenta final do espetáculo. No entanto, o que
percebemos a partir experiência analisada é que o figurino não se limita a ser
significante apenas quando posto em cena, no que diz respeito à recepção do espetáculo,
mas revela-se aliado ao longo do processo criativo em diversos aspectos.

Quanto à discussão de gênero, notamos que ainda existe forte influência das
roupas no que diz respeito às fronteiras que existem entre homens e mulheres. A
androgenia no vestuário é ainda tabu no vestuário masculino e feminino, embora seja
mais aceitável no segundo caso. A construção das imagens de homens e mulheres ainda
aparecem enquadradas no estereótipo da “mulher frágil” e do “homem viril”, e essas
construções permeiam a roupa na medida em que à mulher cabe o vestido e ao homem a
calça.

Concluímos, portanto, que o figurino é um elemento cênico significante dentro


do conjunto teatral, sendo potencializado à medida em que emite signos que se
modificam ao longo da ação. Para além da obra teatral e de sua importância na
construção visual do espetáculo, e das diversas leituras possíveis através da roupa, o
figurino exerce papel igualmente grandioso para o ator no trabalho de criação.

A montagem do espetáculo “Sob os olhos dos outros” foi uma experiência única
na minha formação, uma oportunidade de vivenciar o figurino e a roupa em primeiro
plano, e deixar com que estes elementos afetassem o trabalho.

Referências
CORTINHAS, Rosangela. Figurino: um objeto sensível na produção do personagem,
Dissertação de Mestrado, UFRGS, 2010.

CRAINE, DIANA. A moda e seu papel social: Classe, gênero e identidade das roupas.
São Paulo: Senac /São Paulo, 2006.

EMERECIANO, Juliana. “A comunicação através das roupas: uma compreensão do


design de moda além da superficialidade”. Salvador/BA: Revista Design em Foco,
vol.II número 001.

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PAVIS, Patrice. Dicionário do Teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999.

____________. A Análise dos espetáculos. São Paulo: Perspectiva, 2010.

ROUBINE, Jean-Jaques. A linguagem da Encenação Teatral. Rio de Janeiro: Jorge


Zahar Ed., 1998.

STEFANI, Patrícia da Silva. Moda e comunicação: A indumentária como forma de


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TADEUSZ, Kowzan. Os signos no Teatro- Introdução à Semiologia da arte do


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XIMENES, Maria Alice. Moda e arte na reinvenção do corpo feminino no século XIX,
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SITES:

http://www.julie-d.levillage.org/costumes.htm- Acessado em setembro 2011.

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