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Os Miseraveis - Victor Hugo
Os Miseraveis - Victor Hugo
OS MISERÁVEIS
Victor Hugo
Tradução e notas
REGINA CÉLIA DE OLIVEIRA
Introdução
OS MISERÁVEIS
PRIMEIRA PARTE
FANTINE
I
LIVRO : UM JUSTO
I. O senhor Myriel
II. O senhor Myriel torna-se Monsenhor Bienvenu
III. Para bom bispo, bispado difícil
IV. Obras semelhantes às palavras
V. Como Monsenhor Bienvenu fazia suas batinas durarem muito
tempo
VI. Quem lhe guardava a casa
VII. Cravatte
VIII. Filosofia depois de beber
IX. Retrato do irmão feito pela irmã
X. O bispo em presença de uma luz desconhecida
XI. Uma restrição
XII. Solidão de Monsenhor Bienvenu
XIII. Em que acreditava
XIV. O que pensava
LIVRO V - A DECADÊNCIA
I. História de um progresso no ramo dos vidrilhos pretos
II. Madeleine
III. Somas depositadas no banco Laffitte
IV. O senhor Madeleine de luto
V. Vagos clarões no horizonte
VI. O Pai Fauchelevent
VII. Fauchelevent torna-se jardineiro em Paris
VIII. A senhora Victurnien despende trinta e cinco francos com a
moral
IX. Sucesso da senhora Victurnien
X. Continuação do sucesso
XI. Christus nos liberavit
XII. A ociosidade do senhor Bamatabois
XIII. Solução de algumas questões de polícia municipal
LIVRO VI - JAVERT
I. Início do repouso
II. Como Jean pode tornar-se Champ
SEGUNDA PARTE
COSETTE
LIVRO I - WATERLOO
I. O que se encontra vindo de Nivelles
II. Hougomont
III. O dia 18 de junho de 1815
IV. A
V. O quid obscurum das batalhas
VI. Quatro horas da tarde
VII. Napoleão de bom humor
VIII. O imperador faz uma pergunta ao guia Lacoste
IX. O inesperado
X. O planalto de Mont-Saint-Jean
XI. Mau guia para Napoleão, bom guia para Bulow
XII. A guarda
XIII. A catástrofe
XIV. O último esquadrão
XV. Cambronne
XVI. Quot libras in duce?
XVII. Deve-se achar que Waterloo foi bom?
XVIII. Recrudescência do direito divino
XIX. O campo de batalha à noite
LIVRO VI - O PETIT-PICPUS
I. Viela Picpus, número 62
II. A obediência de Martin Verga
III. Severidades
IV. Alegrias
V. Distrações
VI. O pequeno convento
VII. Algumas silhuetas daquela sombra
VIII. Post corda lapides
IX. Um século sob um escapulário
X. Origem da Adoração Perpétua
XI. Fim do Petit-Picpus
TERCEIRA PARTE
MARIUS
QUARTA PARTE
LIVRO II - ÉPONINE
I. Le Champ de l’Alouette — O Campo da Cotovia
II. Formação embrionária dos crimes na incubação das prisões
III. Aparição ao Pai Mabeuf
IV. Aparição a Marius
QUINTA PARTE
JEAN VALJEAN
I. A sala de baixo
II. Outros passos para trás
III. Eles se recordam do jardim da rua Plumet
IV. A atração e a extinção
SOBRE A TRADUTORA
A PENA DE VICTOR HUGO EM OS
MISERÁVEIS: ROMANCE
HISTORIOGRÁFICO E REPARAÇÃO
SOCIAL
Jean Pierre Chauvin1
O HOMEM
O FRANCÊS VICTOR-MARIE HUGO (1802 – 1885) tinha vinte e nove
anos quando O corcunda de Notre-Dame foi editado; e sessenta quando Os
miseráveis foi lançado, em maio de 1862.
Publicada por uma editora sediada na Bélgica (A. Lacroix,
Verboeckhoven & Cie), a obra contou com uma intensa divulgação, com
meses de antecedência, promovida substancialmente por intermédio dos
antigos reclames:3 anúncios publicitários em jornais, nas seções
reservadas a crônicas ou folhetins.
Em termos comerciais e culturais, tratava-se de um feito
extraordinário, àquela altura, tendo em vista o alcance e os meios
relativamente limitados com que os livros eram divulgados, especialmente
na imprensa. O autor testemunhou uma verdadeira revolução no próprio
modo de se divulgar uma obra literária, neste caso, com pendão para o
drama e a história.
De início, apenas a primeira parte do livro (Fantine) foi
estrategicamente colocada em circulação, semeada em diversas cidades da
França. O título vendeu enorme quantidade em questão de dias, o que
revelava o poder da imprensa e o alcance do romance, uma das obras mais
conhecidas do autor.
Desde então, o nome de Victor Hugo passou a ser associado ao
consumo de literatura pela massa, possivelmente devido ao tema (de
feição moral), e em função da linguagem (à época, considerada popular)
empregada pelo escritor.
Hugo foi um polígrafo, no amplo sentido do termo. Além de influente
político em seu tempo, dedicou-se ao teatro, à poesia, ao romance e ao
gênero memorialístico. Ele também tinha talento para o desenho e a
pintura. Tratava-se de um homem erudito e profundo conhecedor da
história de seu país; respeitado também como crítico literário, e que se
tornou o porta-voz dos escritores românticos.
Um de seus textos mais conhecidos é o prefácio que escreveu para
Cromwell, peça teatral de sua autoria publicada em 1827, com que estreia
na dramaturgia. Naquela ocasião, ele tinha vinte e cinco anos e alguns
livros de poesia, que já ultrapassavam as fronteiras de seu país. Franco
defensor da liberdade formal, o escritor atacava os adeptos do
Classicismo, ainda em vigor na França.
A combinação de gêneros, em um mesmo e volumoso livro de teor
predominantemente ficcional, como é o caso de Os miseráveis, parece
responder aos anseios do próprio poeta, dramaturgo e romancista, que
desde muito jovem defendia a liberdade de composição ficcional e se
mostrava em desacordo com as teorias a respeito da distinção dos gêneros
(lírico, épico, dramático), proposta pelos antigos greco-latinos,
especialmente a partir de Aristóteles (384 – 322 a.C.)
A relevância de sua obra, que não se restringia ao seu país de origem,
foi enorme, possivelmente também em função de seu posicionamento nas
letras e na esfera pública. Vale recordar que o autor foi um severo
contestador do Império de Napoleão III, o que lhe valeu o auto-exílio, em
Guernsey — território da Coroa Britânica, já naquele tempo.
O episódio é sobremodo conhecido e beira o extraordinário. Hugo
deixou Paris em 3 dezembro de 1851, no dia seguinte ao golpe de estado
impetrado por Luís, sobrinho do antigo imperador Napoleão I. Lá ele
permaneceria por quase duas décadas, o que, de acordo com seus
biógrafos,4 teria possibilitado que concluísse a redação de Os miseráveis,
inclusive.
O poeta Manuel Bandeira5 registrou o fato de o escritor ter regressado
“a Paris depois da queda de Napoleão III”, em 1870, tendo sido “eleito
para a Assembléia Nacional”, onde se converteu “numa espécie de ídolo
da democracia”.
Deputado vinculado à Segunda República, após a volta do exílio, na
década de 1870, Victor Hugo foi eleito Senador. Há notícia de que cerca de
dois milhões de habitantes teriam seguido o seu enterro (ROBB, 2000).
Em 1885, sua “morte (…) provocou um luto universal; seu enterro foi uma
apoteose, e o corpo esteve sob o Arco do Triunfo antes de ser conduzido ao
Pantheon”. (BANDEIRA, 1946, p. 100)
No Brasil, pelo menos três leitores de sua obra se deixaram contagiar
vivamente pelo diálogo com os seus poemas, artigos, peças teatrais e
romances: o político, orador e escritor cearense José Martiniano de
Alencar (1829 – 1877); o advogado e poeta baiano Antônio Frederico de
Castro Alves (1847 – 1871), ambos ligados ao Romantismo; e o escritor e
carioca Joaquim Maria Machado de Assis (1839 – 1908), considerado
nosso maior escritor do século XIX.
A OBRA
Os miseráveis provavelmente seja uma das narrativas mais extensas e
populares do Ocidente, dentre aquelas publicadas em seu tempo. Esta
informação é especialmente digna de nota, tendo-se em vista que o livro
foi lançado em etapas distintas.
Nos anos que se seguiram ao estrondoso êxito de vendas, na França
(1862), costumeiramente as numerosas edições da obra em língua
portuguesa traziam o romance dividido em alguns volumes.
As versões destinadas ao público brasileiro indicam que esta tendência
se manteve, a exemplo da edição de 1957, organizada pela Editora das
Américas, em sete tomos; a edição de 1962, capitaneada pela Edigraf, com
três volumes; e a presente reedição, a cargo da Martin Claret, que reuniu
os volumes nesta edição especial.
O romance estrutura-se em cinco “Partes”. A “Primeira” [Fantine], a
“Segunda” [Cosette] e a “Terceira” [Marius] contêm oito livros, cada. A
“Quarta” [S. Diniz], ocupa quinze livros; e a final, “Quinta” [Jean
Valjean], apresenta outros nove.
Ao leitor de nossos dias, cabe o alerta quanto às seções em que a obra
está dividida. O termo livro é uma denominação de teor clássico,
vinculada, originalmente, aos tratados de Retórica, Filosofia, História,
Matemática e Ciências, legados pelos pensadores greco-latinos da
Antiguidade.
A Bíblia católica, para mencionar outro exemplo milenar e conhecido
universalmente, está agrupada de maneira relativamente similar. Os livros
que nomeiam as Escrituras preservam a mesma denominação, com o
intuito de facilitar o agrupamento dos textos reunidos no Antigo e Novo
Testamento.
Seria interessante ponderar o fato de Victor Hugo ter concebido tal
estrutura para a obra — com a ajuda, ou não, dos editores belgas. Seria o
resultado algo, até certo ponto, usual, decorrente de uma longa tradição de
edições com o mesmo formato? A disposição dos capítulos do romance
residiria, por outro lado, em uma maneira de obter máxima coerência entre
o teor moralizante do livro e o seu propósito didático?
Ora, na forma como a obra está organizada, a ordenação de suas
“partes”, “livros” e “capítulos” tanto permite obedecer a linearidade
narrativa, quanto possibilita que o leitor retome a leitura, em caráter
pontual, dedicando novo olhar a respeito de determinados episódios de sua
preferência.
O propósito didático do romance pode ter aproximado ainda mais o
escritor de seu público. Vale lembrar que Hugo passou a maior parte da
vida lutando pelos ideais libertários, durante o turbulento cenário cultural
e político vivenciado pela França pós-napoleônica. Ele falava em nome do
povo, de si mesmo e dos demais escritores românticos. Razão pela qual os
manuais de história da literatura são unânimes em veicular a imagem de
um escritor coerente com os ideais que defendia em sua longa carreira
pública.
No âmbito da linguagem empregada no romance, é particularmente
interessante observar que, em muitos momentos, os episódios de Os
miseráveis se aproximam de um franco lirismo, tipicamente romântico,
como reparou Otto Maria Carpeaux.6
À primeira vista, a dicção hugoana revela um aparente contraste com o
formato clássico do próprio gênero em que o romance estava inserido. No
entanto, o teor da história vivida por Jean Valjean desfaz rapidamente uma
eventual confusão entre forma, expressão e conteúdo.
Um sinal disso está no fato de o enredo não se restringir ao caráter
exclusivamente romanesco. Em determinados capítulos, parecemos tomar
contato com um autêntico tratado sobre os vícios e virtudes,
contabilizados por personagens enigmáticos, sob a voz de um narrador
onisciente, que de tudo e todos sabe: tanto dos indivíduos quanto do
contexto social que os cerca.
O fato de Victor Hugo ter sido grande conhecedor da história de seu
país certamente é algo que se deveu ou consolidou durante sua extensa
carreira como deputado e senador. Escrito em um longo período de tempo,
o tom romanesco da obra frequentemente se aproxima da linguagem de
um verdadeiro manual de história do cotidiano — vide os detalhes
testemunhados pelo próprio autor —, deslocando Os miseráveis para além
do plano estanque, fixo ou estável da pura ficção.
No que diz respeito ao enredo, trata-se de um extenso e prazeroso
universo que, a despeito do apelo popular, revela várias marcas da
erudição hugoana. Em meio à variedade de cores, lugares, situações e
personagens, a pena de Victor Hugo ora resvala para o dado histórico, ora
para o ficcional; ora estamos diante de um romance tradicional de matriz
épica; ora, diante de cenas cândidas, aderentes ao lirismo romântico.
Como não nos sensibilizarmos com a figura do bispo Myriel de Digne,
em sua sublime generosidade e bondade, na condição de homem religioso?
A primeira seção do romance, que gira em torno da sofrida biografia de
Jean Valjean, segue até a acolhida de Fantine: uma ex-prostituta que
deixara a filha Cosette com outra família, por absoluta falta de condições
financeiras.
À medida que a história avança, acompanhamos a aproximação entre
Valjean e a filha de Fantine. Durante o período em que residem em Paris,
Jean e Cosette vivem como pai e filha — uma belíssima relação de
empréstimo que serve a contrastar vivamente com os olhos frios, duros e
afiados de Javert — o implacável inspetor de polícia que vive no encalço
do antigo prisioneiro.
Para além da angústia provocada pela severa perseguição ao
protagonista, deve-se lembrar a figura de Thérnardier, cujas ações são
presenciadas por Marius. Eis aqui um novo antagonismo, por obra dos
coadjuvantes, que parece reproduzir em escala menor os dissabores
sofridos pelo protagonista, quase sempre ao alcance das mãos do inspetor.
Vale relembrar o desejo indisfarçável do escritor em imiscuir uma
quantidade considerável de elementos de matiz histórico em meio às
peripécias de suas criaturas. Na terceira seção do romance, em que
deparamos com o personagem Marius, há, inclusive uma detalhada
explicação a respeito do sargent de ville — figura comum em Paris, na
época em que o romance foi publicado, por sinal.
A menção direta às características e atribuições deste sargento da
cidade (ou comissário local, em uma tradução menos literal da expressão)
colabora com a impressão, por parte do leitor, de que Jean Valjean, Fantine
e Cosette são criaturas desamparadas que parecem ter brotado do mundo
real, mas alçadas a uma segunda chance, no plano da fábula, e sob o juízo
de um leitor em seu favor.
Nesta e em outras ocasiões, o narrador veste a máscara de historiador e
se dirige ao leitor empírico, o que contribui para uma sobreposição de
papéis, como se o propósito do livro fosse extrapolar o plano da narração.
Seria uma pura ficção? Victor Hugo falaria conosco pela voz de seu
narrador?
De uma coisa podemos nos certificar: a narração em terceira pessoa
seria um artifício bastante adequado para, simultaneamente, conceder
maior liberdade formal ao livro, sem que o escritor precisasse abandonar
algumas das convenções inerentes ao gênero composicional.
Dado o forte componente moral do romance, o leitor é conduzido ao
longo da narrativa a adotar o ponto de vista do narrador, em sua franca
benevolência com relação às densas e dramáticas criaturas que compõem
aquele universo.
Provavelmente por esse mesmo motivo, em recente leitura sobre a
obra, o filósofo e historiador Renato Janine Ribeiro7 fizesse alusão ao
caráter solidário, embutido nas mensagens transmitidas pelo escritor, sob
a forma de episódios pautados pelo sofrimento e caracterizados pela
penúria material e pela iniquidade social, que vitimam os personagens.
O romance parece traduzir o apelo autoral da esfera empírica para o
plano da ficção. Estaríamos perante uma demanda de Victor Hugo para que
atentássemos para a miséria dos homens, naquele momento histórico?
Ao mesmo tempo em que comunica detalhadamente a feição e o
destino vivenciado pelas personagens, a intriga está de tal forma arraigada
às criaturas que precisamos estabelecer um movimento constante, para
além de nosso costumeiro papel de leitores passivos.
Talvez assim, possamos encarar as mazelas vivenciadas por aquelas
criaturas, como uma experiência que não se pode repetir, nem mesmo em
termos históricos.
Ora, tendo em vista o caráter moralizante e didático do livro;
considerando-se a característica híbrida desta obra, a oscilar entre a ficção
e a realidade de um determinado tempo e espaço, a literatura revela-se,
como poucas vezes, uma possibilidade edificante. Sob esse aspecto, não se
trata de ler meramente para passar o tempo, mas para municiarmos a nós
mesmos, sob o respaldo do ingrediente romanesco.
Dir-se-ia que esta obra pretende demover o leitor de seu confortável
espaldar, sorvendo o seu café, ao abrigo das intempéries que acontecem
nas ruas. O narrador está à beira de sugerir que se tome alguma atitude,
com o fito de minorar as dificuldades enfrentadas por aqueles que não
frequentam os mesmos ambientes que os próprios leitores, aliás.
No plano da expressão, o ritmo ondulante da narrativa — rica em idas
e vindas; encontros e desencontros; fugas e rara calmaria, casa-se à
instabilidade emocional dos personagens. Talvez por essa razão, o enredo
contraponha generosas descrições de ambientes a situações pautadas por
sequências inquietantes que beiram episódios de feição épica: talvez, a
vocação principal do livro, não por acaso considerado um dos maiores
clássicos da literatura mundial.
Da mesma forma, o enredo sugere muitas imagens ao leitor, o que
pode levá-lo a registrar e fixar afetivamente e na memória uma série de
eventos, como se estivesse a assistir à representação do texto em uma peça
teatral de teor universal, mas crivo particular.
Não parece ser por acaso que o romance tenha sido adaptado para
dezenas de versões, tanto no teatro, quanto no cinema e na televisão.
Afinal, a trajetória de Jean Valjean é fortemente marcada pelo elemento
pictórico. A esse respeito, seria oportuno assistir à excelente série de tevê
veiculada em 2002, com a participação de Gérard Depardieu e John
Malkovich, respectivamente nos papéis de Jean Valjean e Javert.
Dentre alguns fatos, direta ou indiretamente relacionados a este
notável romance, a versão musical de Os miseráveis, que estreou na
Broadway em 1987, ultrapassou a impressionante marca de mais de seis
mil e quinhentas apresentações.
Referência literária bastante conhecida por parte dos portugueses e
brasileiros, em meados do século XIX, os ecos da obra hugoana chegaram
e se espalharam pelo país, recém independente, talvez especialmente em
função da força com que éramos contagiados culturalmente pela literatura
francesa e os ideais libertários que perpassavam as obras que aqui
chegavam.
Para o historiador Otto Maria Carpeaux, “a obra de Hugo é um
universo literário, compreendendo todos os gêneros. Mas Hugo parece
sempre poeta lírico.” (2012, p. 302). O fato é que o autor tornou-se uma
das maiores vozes do Romantismo ocidental, representado especialmente
pela Europa, naquele tempo.
Vale relembrar a configuração geral da escola literária, na Europa, para
melhor entender o seu alcance. Segundo Alfredo Bosi:8
A escola francesa, que eu então estudava nesses mestres da moderna literatura, achava-
me preparado para ela. O molde do romance, qual mo havia revelado por mera casualidade
aquele arrojo de criança a tecer uma novela com os fios de uma aventura real, fui encontrá-
la fundido com a elegância e beleza que jamais lhe poderia dar. (ALENCAR Apud GOMES,
1958, p. 19)
(…) [o seu] desejo de escrever romances veio por duas etapas (…). Aos quinze anos, em
São Paulo, ainda estudante de preparatórios, lendo Chateaubriand, Dumas, Vigny, Hugo,
Balzac, imagina um livro que fosse, como o dos franceses, um “poema da vida real”. (2000,
p. 200)
A inclinação dos românticos aos estudos históricos foi uma, e talvez a melhor das
manifestações do sentimento patriótico que aqui se gerou da Independência. Deu-lhe corpo,
estimulou-a, favoreceu-a a criação do Instituto Histórico, onde se procurou assídua e
zelosamente estudar a nossa história, menos talvez por curiosidade e amor de sabê-la que
por, mediante ela, justificar e exaltar aquele sentimento. (1963, p. 199)
Como se vê, havia por parte dos escritores brasileiros uma espécie de
alinhamento cultural e, em certa medida ideológico, com a obra hugoana.
Dessa perspectiva, pode-se afirmar que, além de terem homenageado um
escritor de sua predileção, Alencar, Castro Alves e Machado auxiliaram a
amplificar os efeitos e a preservar a numerosa produção do romancista
francês entre nós.
Enfim, partamos para a viagem. A partir de agora, o leitor tem a
oportunidade de acompanhar o percurso de Jean Valjean, Fantine e
Cosette, em sua verdadeira peregrinação por entre o rigor da lei,
personificada no inspetor Javert; o oportunismo perverso de Thérnardier; e
a covardia de um bando de personagens anônimos, indiferentes às agruras
de nossos heróis.
Felizmente, o bispo de Myriel estará por lá para conceder o necessário
consolo espiritual. Logo às primeiras páginas, ele estenderá um comovente
apelo, de modo que a leitura do romance será muito mais que um
passatempo. Afinal, estamos diante de uma poderosa denúncia. Em forma
de ficção, é claro.
__________________________
1 Pesquisador de Pós-Doutorado, junto ao Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, na
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. Autor de O Alienista: a
teoria dos contrastes em Machado de Assis (2005), entre outros. É afiliado à União Brasileira de
Escritores.
2 “Prefácio” do escritor francês à sua peça teatral Cromwell, de 1827 (apud Álvaro Cardoso
Gomes; Carlos Alberto Vechi. A estética romântica: textos doutrinários comentados. São Paulo:
Editora Atlas, 1992, p. 118).
3 O termo, originário do francês, poderia ser traduzido literalmente, e sem se perder o sentido
original, de clamar duas vezes (re-clame), em português. Ainda no final do século XIX, a palavra
publicidade tomou o seu lugar, com o advento da chamada Imprensa Moderna.
4 Vejam-se as obras de André Maurois. Olympio ou la vie de Victor Hugo. Paris: Hachette,
1954; Jean-Bertrand Marie Barrère. Victor-Hugo, l’homme et l’oeuvre. Paris: CDU, 1984; Graham
Robb. Victor Hugo — uma biografia. Trad. Alda Porto. Rio de Janeiro: Record, 2000; e a edição
ilustrada de Carneiro Leão: Victor Hugo no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1960.
5 Manuel Bandeira. Noções de história das literaturas. 3 a ed. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1946.
6 Otto Maria Carpeaux. O Romantismo por Carpeaux. Rio de Janeiro: Editora Leya, 2012.
Volume 6. [Trata-se da re-edição de A história da literatura ocidental, também em dez volumes,
publicada originalmente por Carpeaux em 1959.]
7 Refiro-me à “Apresentação” constante da edição em dois volumes de: Victor Hugo. Os
miseráveis. 4 a ed. São Paulo: Cosac Naify, 2012 — traduzida por Frederico Ozanam Pessoa de
Barros.
8 Alfredo Bosi. História concisa da literatura brasileira. 39 a ed. São Paulo: Cultrix, 2001.
9 José Ramos Tinhorão. Os romances em folhetins no Brasil (1830 à atualidade). São Paulo:
Livraria Duas Cidades, 1994.
10 Eugênio Gomes. Aspectos do romance brasileiro. Salvador: Livraria Progresso Editora,
1958.
11 Antonio Candido. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 9 a ed. Belo
Horizonte: Editora Itatiaia. Vol 2, 2000.
12 João Adolfo Hansen. Autor. In: JOBIM, José Luís. Palavras da crítica. Rio de Janeiro:
Imago, 1992.
13 Delso Renault. O Rio antigo nos anúncios de jornais. Rio de Janeiro: Editora Francisco
Alves, 1984.
14 Ronald de Carvalho. Pequena história da literatura brasileira. 13 a ed. Rio de Janeiro: F.
Briguiet & Cia., Editores, 1968.
15 José Guilherme Merquior. De Anchieta a Euclides: breve história da literatura brasileira.
Hauteville-House,1 1862.
__________________________
1 Hautevillle-House é o nome da mansão que Victor Hugo comprou em Guernesey, pequena
ilha inglesa no Mar da Mancha. Lá passou a maior parte de seu exílio, originado por sua
oposição ao golpe de Estado que elevou ao poder Luís Bonaparte, Napoleão III. Retrata a ilha em
sua obra Os trabalhadores do mar.
PRIMEIRA PARTE
Fantine
LIVRO I
UM JUSTO
I. O SENHOR MYRIEL
EM 1815, o senhor Charles-François-Bienvenu Myriel era bispo de Digne.
Era um homem de aproximadamente setenta e cinco anos, e desde 1806
ocupava aquela diocese. Embora este detalhe não mude, de forma alguma,
o cerne do que temos para contar, talvez não seja inútil, até para haver
exatidão em tudo, citar aqui os diversos boatos e conversas a que deu
motivo sua chegada ao bispado. Verdade ou não, o que se diz a respeito
dos homens ocupa muitas vezes em sua vida, e sobretudo em seu destino,
um lugar tão importante quanto aquilo que fazem.
Charles Myriel era filho de um conselheiro do parlamento de Aix;
nobreza de toga. Dizia-se que seu pai, tendo-o destinado para sucessor do
cargo que exercia, casara-o muito cedo, aos dezoito ou vinte anos,
seguindo um costume bastante usual em famílias do parlamento.
Apesar de casado, Charles Myriel, dizia-se, dera bastante o que falar.
De muito boa aparência, embora de baixa estatura, era elegante, gracioso,
espirituoso; toda a primeira parte de sua vida fora dedicada à sociedade e
aos galanteios.
Irrompendo a Revolução, os acontecimentos se precipitaram; as
famílias dos parlamentares, dizimadas, expulsas, perseguidas, se
dispersaram. Nos primeiros dias da Revolução, Charles Myriel emigrou
para a Itália, onde sua mulher sucumbiu a uma doença pulmonar da qual
havia muito padecia. Não tinham filhos. O que se passou depois disso no
destino de Charles Myriel? A ruína da antiga sociedade francesa, a
decadência da própria família, os trágicos espetáculos de 1793, talvez
ainda mais pavorosos para os emigrados que, de longe, viam-nos avultados
pelo terror, teriam feito germinar em seu espírito ideias de solidão e de
renúncia? Ou ele teria sido, em meio a alguma das distrações e afeições
que ocupavam sua vida, subitamente atingido por algum desses terríveis e
misteriosos golpes, que às vezes vêm derrubar, batendo em seu coração, o
homem que nem mesmo as catástrofes públicas, ainda que lhe ferindo a
existência e a fortuna, seriam capazes de abalar? Era impossível dizer; o
que se sabia é que, quando voltou da Itália, era padre.
Em 1804, Charles Myriel, já com idade avançada, era pároco da Igreja
de B. (Brignolles), e vivia na mais completa solidão.
Por ocasião da coroação, um pequeno negócio de interesse de sua
paróquia, não se sabe muito bem o que, levou-o a Paris. Entre outras
pessoas de influência, cuja proteção solicitou em favor de seus
paroquianos, contava-se o cardeal Fesch. Um dia, quando o imperador
viera visitar seu tio, o digno cura, que esperava na antecâmara, Myriel se
encontrou exatamente na passagem de sua majestade. Vendo o ar de
curiosidade com que o cura parecia fitá-lo, Napoleão voltou-se e
perguntou repentinamente:
— Quem é aquele simplório que me olha?
— Senhor — disse Myriel —, Vossa Majestade vê um simplório, e eu
vejo um grande homem. Ambos podemos aproveitar.
Nessa mesma noite, o imperador perguntou ao cardeal o nome do
padre, e, pouco tempo depois, o senhor Myriel teve a surpresa de saber que
fora nomeado bispo de Digne.
Até que ponto, porém, era verdade o que se dizia em relação à primeira
parte da existência daquele homem? Ninguém sabia; poucas famílias
haviam conhecido a família Myriel antes da Revolução.
Apesar de bispo, e até mesmo por sê-lo, o senhor Myriel teve de
experimentar o destino de todos os recém-chegados a uma cidade pequena,
onde há muitas bocas que falam e muito poucas cabeças que pensam. Ele
devia sofrer, embora fosse bispo, e porque era bispo. Afinal, as conversas
em que seu nome estava envolvido não passavam de boatos, bisbilhotices,
palavras, palabres, como se diz na expressiva língua do sul.
Assim, decorridos nove anos de episcopado e de residência em Digne,
todas essas histórias, que nos primeiros momentos foram tema constante
das conversas entre a arraia-miúda, caíram em profundo esquecimento.
Ninguém ousava falar delas, ninguém ousava se lembrar delas.
O senhor Myriel chegara a Digne acompanhado de sua irmã,
Baptistine, que tinha dez anos a menos do que ele. Tinham como única
criada, de mesma idade que a senhorita Baptistine, a senhora Magloire,
que, após ter sido a criada do senhor pároco, passara a exercer as duplas
funções de criada de quarto da senhorita e despenseira do novo bispo.
Alta, magra, pálida, delicada e afável, a senhorita Baptistine era a mais
completa expressão da palavra “respeitável”, posto que, para ser
considerada venerável, parece necessário que uma mulher seja mãe. Nunca
fora bonita; toda a sua vida, uma ininterrupta série de boas obras, acabou
por inundá-la de uma espécie de alvura luminosa que lhe dava, ao
envelhecer, aquilo que poderíamos chamar de beleza da bondade. O que na
juventude fora magreza tornou-se, na maturidade, uma transparência
diáfana, que deixava entrever um anjo. Era mais uma alma que uma
virgem. Sua pessoa parecia ser feita de sombra; corpo apenas suficiente
para distinção do sexo; um pouco de matéria contendo uma chama; olhos
grandes sempre baixos; um pretexto para que uma alma permaneça sobre a
terra.
A senhora Magloire era uma velhinha clara, baixa e muito gorda,
sempre atarefada, sempre arquejante, não só por causa de sua natural
atividade, como também por causa de sua asma.
Em sua chegada, o senhor Myriel foi instalado em seu palácio
episcopal com todas as honras estabelecidas nos decretos imperiais, que
classificavam o bispo imediatamente após o marechal de campo. O
prefeito e o presidente fizeram-lhe a primeira visita, e ele, por sua vez, fez
sua primeira visita ao general e ao governador.
Terminada a instalação, a cidade esperou pelos atos do novo bispo.
“O homem tem sobre si a carne, que é ao mesmo tempo seu fardo e sua tentação. Ela o
arrasta, e ele cede.
Seu dever é vigiá-la, contê-la, reprimi-la, e obedecer a ela só em último caso. Nessa
obediência ainda pode haver culpa, mas trata-se de uma culpa venial. É uma queda, mas
uma queda de joelhos, que pode terminar em oração.
Ser santo é uma exceção; a regra é ser justo. Errem, caiam, pequem, mas sejam justos.
Pecar o menos possível é a obrigação de todo homem; não pecar nunca é o sonho do
anjo. Tudo o que é terrestre está sujeito ao pecado. O pecado é uma gravitação.”
Por volta das nove horas da noite, as duas mulheres iam para seus
aposentos no primeiro andar, deixando-o sozinho no andar térreo até de
manhã.
Aqui, é necessário que passemos uma ideia exata da morada do bispo
de Digne.
VII. CRAVATTE
Aqui naturalmente se coloca um fato que não podemos omitir, pois é
daqueles que melhor mostram o homem que era o senhor bispo de Digne.
Após a eliminação do bando de Gaspard Bès — bandido executado em
Aix em 1781 —, que havia desolado os desfiladeiros de Ollioules, um de
seus cabeças, Cravatte, refugiou-se nas montanhas. Escondeu-se por algum
tempo com seus bandidos, o resto do bando de Gaspard Bès, no condado
de Nice, indo depois para o Piemonte e, de repente, reaparecendo na
França, para os lados de Barcelonnette. Primeiro, foi visto em Jauziers, e,
depois, em Tuiles. Escondeu-se nas cavernas de Joug-de-l’Aigle, e daí
desceu em direção aos lugarejos e pequenas vilas pelas quebradas de
Ubaye e Ubayette. Chegou até mesmo a Embrun, penetrando uma noite na
catedral e roubando a sacristia. Seus assaltos desolavam a região. Em vão
o corpo de guarda foi posto em seu encalço. Ele sempre escapava; algumas
vezes resistia à força. Era um ousado miserável. Em meio a todo esse
horror, o bispo chegou; fazia sua visita a Chastelar. O prefeito veio
encontrá-lo e convencê-lo a dar meia-volta. Cravatte tomara a montanha
até Arche e mesmo além. Haveria perigo, até com uma escolta; seria expor
inutilmente três ou quatro infelizes soldados.
— Eu também — disse o bispo — penso em seguir sem escolta.
— Monsenhor pensa assim? — exclamou o prefeito.
— Tanto penso assim que recuso absolutamente os soldados e vou
partir em uma hora.
— Partir?
— Partir.
— Sozinho?
— Sozinho.
— Monsenhor, não faça isso!
— Existe nessas montanhas — replicou o bispo — um pequeno e
humilde lugarejo que não visito há três anos. São meus bons amigos.
Afáveis e honestos pastores. Eles possuem uma cabra em cada trinta que
pastoreiam; fazem belos cordões de lã de diversas cores; tocam árias
montanhesas em flautins de seis furos. Precisam ouvir a palavra de Deus
de tempos em tempos. Que diriam eles de um bispo que tem medo? Que
diriam se eu não fosse até lá?
— Mas, monsenhor, e os salteadores?
— Olhe — respondeu o bispo —, eu penso nisso. O senhor tem razão.
Posso encontrá-los. Também eles talvez precisem ouvir a palavra de Deus!
— Monsenhor, mas é uma quadrilha, um bando de lobos!
— Senhor prefeito, talvez seja desse rebanho que Jesus queira fazer-
me pastor. Quem conhece os desígnios da Providência?
— Mas, monsenhor, podem roubá-lo.
— Não levo nada.
— Podem matá-lo.
— Um pobre padre que passa resmungando alguma coisa? Ora, a troco
de quê?
— Ah, meu Deus! Se o senhor os encontrar…
— Pedirei esmola para os meus pobres.
— Em nome do céu, monsenhor, não vá! O senhor expõe sua vida.
— Senhor prefeito — disse o bispo —, decididamente não é só isso; eu
não estou no mundo para guardar a minha vida, mas para guardar almas!
Foi preciso deixá-lo agir. Ele partiu acompanhado apenas de um garoto
que se ofereceu a servir-lhe de guia. Sua obstinação deu muito o que falar
e causou medo.
Não quis levar nem sua irmã nem a senhora Magloire. Atravessou a
serra em um burro, não encontrou ninguém e chegou são e salvo onde
viviam seus “bons amigos” pastores. Ali permaneceu por quinze dias,
pregando, ensinando, moralizando, administrando os sacramentos. Quando
estava para partir, resolveu cantar pontificialmente um Te Deum. Falou
sobre isso ao cura, mas como fazer? Não havia ornamentos episcopais. Só
foi possível colocar à sua disposição uma insignificante sacristia de aldeia,
com alguns velhos aparatos sacerdotais desgastados e enfeitados com
falsos galões.
— Ora, senhor cura, anunciemos assim mesmo nosso Te Deum nas
pregações — disse o bispo —; as coisas hão de se arranjar.
Procuraram nas igrejas das vizinhanças. Nem todas as magnificências
dessas humildes paróquias reunidas teriam sido suficientes para
paramentar um cantor de catedral.
Em meio a esse embaraço, uma grande caixa, destinada ao senhor
bispo, foi levada e colocada no presbitério por dois cavaleiros
desconhecidos que partiram imediatamente. A caixa foi aberta; continha
um manto de tecido dourado, uma mitra ornada de diamantes, uma cruz
arquiepiscopal, um magnífico bastão episcopal, todas as vestimentas
pontificiais roubadas um mês antes do tesouro de Nossa Senhora de
Embrun. Dentro da caixa, havia um papel no qual foram escritas estas
palavras: De Cravatte para Monsenhor Bienvenu.
— Bem que eu dizia que as coisas se arranjariam! — disse o bispo; e
acrescentou sorrindo: — Para quem se contenta com uma capa de cura,
Deus envia um manto de arcebispo.
— Monsenhor — murmurou o cura balançando a cabeça com um
sorriso —, Deus, ou o diabo.
O bispo olhou fixamente para o cura e replicou com autoridade:
— Deus!
Quando retornou a Chastelar, e, ao longo de toda a estrada, vinham
olhá-lo por curiosidade. No presbitério de Chastelar, reencontrou a
senhorita Baptistine e a senhora Magloire, que o esperavam; ele disse a
sua irmã:
— Bem, eu não tinha razão? O pobre padre vai ver seus pobres
montanheses de mãos vazias e volta de lá de mãos cheias. Parti levando
apenas minha confiança em Deus; trago de volta o tesouro de uma
catedral.
À noite, antes de dormir, disse ainda: “Nunca temamos nem os ladrões
nem os assassinos. Estes são perigos externos, pequenos perigos. Temamos
a nós mesmos. Os preconceitos, esses são os ladrões; os vícios, esses são
os assassinos. Os grandes perigos estão dentro de nós. Que importa o que
ameaça nossa vida ou nossas bolsas?! Preocupemo-nos apenas com o que
ameaça nossa alma”.
Depois, voltando-se para Baptistine: “Minha irmã, por parte de um
padre, jamais pode haver precaução contra o próximo. O que faz o
próximo, Deus é que permite. Limitemo-nos a rogar a Deus quando
tememos que um perigo nos atinja. Peçamos a Ele, não por nós, mas para
que nosso irmão não caia em tentação por nossa causa”.
De resto, os acontecimentos eram raros em sua existência. Contamos
aqueles que conhecemos; mas, normalmente, passava sua vida fazendo
sempre as mesmas coisas, nos mesmos momentos. Um mês de seu ano
parecia uma hora de seu dia.
Quanto ao destino que levou o “tesouro” da catedral, ficaríamos
embaraçados se alguém nos perguntasse sobre ele. Eram mesmo belas
coisas, e bem tentadoras, muito boas para serem furtadas em proveito dos
desvalidos.
Furtadas, aliás, elas já estavam. Metade da aventura estava terminada;
o que faltava era apenas mudar a direção do furto, fazendo com que
andasse só mais um pequeno pedaço de caminho rumo aos pobres. Nada
mais afirmaremos a esse respeito. Somente que encontramos nos papéis do
bispo uma nota bastante obscura que talvez se reporte a esse caso, assim
concebida: A questão é saber se isso deve voltar à catedral ou ao hospital.
P. S. — Seu sobrinho neto é um encanto. Sabe que logo vai fazer cinco anos? Ontem,
vendo passar um cavalo no qual haviam colocado joelheiras, perguntou: O que ele tem nos
joelhos? É tão bonzinho esse menino! O irmãozinho dele arrasta uma vassoura velha pelo
apartamento como se fosse um carrinho e diz: Vrum…!”
__________________________
1 “Ora, até o senhor a compreende?”; “Onde terão passado?”; “Trago um bom carneiro com
um bom queijo gordo”.
2 “Velam em vão aqueles que guardam uma morada que não é protegida pelo Senhor.
3 Espécie de jornal oficial, que publicava os debates das Assembleias de 1789.
4 Expressão do latim: “Entre taças”: após beber, ou antes.
5 “Sinite parvulos ad me venire” (Marcos, 10, 14) — Vinde a mim as crianças.
6“Ego autem sum vermis, et non homo” (Salmo 21, 7) — Sou um verme da terra, não um
homem.
LIVRO II
A QUEDA
“…Aquele homem não prestava atenção em ninguém. Comia com uma voracidade de
esfaimado. No fim da refeição, porém, disse:
— Senhor padre do bom Deus, tudo isso é bom demais para mim, mas tenho de dizer
que os carroceiros que não quiseram deixar-me comer com eles passam melhor que o
senhor!
Cá entre nós, essa observação chocou-me um pouco. Meu irmão respondeu:
— Eles sentem mais cansaço que eu!
— Não — replicou o homem —, eles têm mais dinheiro. O senhor é pobre, bem vejo.
Talvez nem seja padre. O senhor é mesmo padre? Ah! Por exemplo, se Deus fosse justo, o
senhor deveria mesmo ser padre.
— O bom Deus é mais que justo — disse meu irmão.
E um momento depois acrescentou:
— Senhor Jean Valjean, é para Pontarlier que está indo?
— Com itinerário obrigatório.
Creio que foi assim que o homem disse. Em seguida, continuou:
— É preciso que eu esteja a caminho amanhã ao nascer do dia… É duro viajar. Se as
noites são frias, durante o dia faz muito calor.
— O senhor está indo para uma excelente terra — prosseguiu meu irmão. — Por ocasião
da Revolução, minha família ficou sem nada, refugiei-me primeiro em Franche-Conté, onde
vivi algum tempo à custa de meu trabalho. Tinha boa vontade e encontrei ocupação. É só
escolher. Há fábricas de papel, curtumes, destilarias, lagares de azeite, fábricas de relógios,
fábricas de aço, de cobre, pelo menos vinte oficinas de ferreiro, quatro das quais em Lods,
Châtillon, Audincourt e Beure, que são bem consideráveis…
Acho que não me engano e que foram esses os nomes que meu irmão citou. Depois,
interrompeu-se e dirigiu-me a palavra:
— Minha cara irmã, não temos parentes naquela região?
— Tínhamos — respondi. — Entre outros, o senhor Lucenet, que era capitão das
entradas em Pontarlier no Antigo Regime.
— É verdade — continuou meu irmão —, mas em 1793 não tínhamos mais parentes; só
tínhamos nossos braços. Eu trabalhei. Na região de Pontarlier, para onde o senhor vai, há
uma indústria patriarcal e encantadora. São suas queijarias, que eles chamam de fruitières (a
que dá frutos).
Então, enquanto fazia o homem comer, meu irmão explicou-lhe com detalhes em que
consistiam as fruitières de Pontarlier: que se distinguiam duas espécies, as “grandes
granjas”, dos ricos, onde há quarenta ou cinquenta vacas e produzem sete ou oito mil
queijos cada verão; e as “fruitières de associação”, dos pobres, camponeses do centro da
montanha que cuidam de suas vacas em comum e repartem os produtos. Pagam a um
queijeiro, que eles chamam de grurin, para receber o leite dos associados três vezes por dia
e marcar as quantidades. É lá pelo final de abril que o trabalho das queijarias começa e, em
meados de junho, os queijeiros conduzem suas vacas para a montanha.
O homem ia se reanimando ao comer. Meu irmão o fazia beber do bom vinho de
Mauves, que ele mesmo não bebe porque diz que é vinho caro. Explicava-lhe esses
pormenores com aquela alegria que a senhora conhece, entremeando suas palavras com
graciosas atenções para comigo. Ele voltou bastante ao assunto sobre o trabalho de grurin,
como se quisesse dar a entender ao homem, sem aconselhá-lo diretamente, que poderia ser
um ofício para ele. Uma coisa causou-me admiração. Aquele homem era o que eu lhe
contei. Muito bem, durante toda a ceia, durante a noite inteira, com exceção de algumas
palavras sobre Jesus, quando entrou, meu irmão não disse uma só palavra que pudesse
lembrá-lo quem ele era, nem mostrar-lhe quem era meu irmão. Poderia bem ter sido uma
ocasião que se apresentava para um sermão e para que o bispo deixasse uma marca em sua
passagem. Talvez parecesse a outros que fosse o caso, tendo o infeliz nas mãos, de
alimentar-lhe a alma ao mesmo tempo que o corpo, fazendo-lhe uma reprimenda com
toques de moral e conselho, ou de mostrar compadecimento, exortando-o a comportar-se
melhor no futuro. Meu irmão, porém, nem sequer perguntou-lhe de onde era, nem sua
história, pois nela havia seu erro e meu irmão parecia evitar tudo o que o fizesse lembrar
disso. De tal maneira que, em dado momento, ao falar dos montanheses de Pontarlier, que
têm um suave trabalho perto do céu e que, acrescentava ele, são felizes porque são
inocentes, ele parou de repente, com medo de que essa frase, que lhe escapara, pudesse, de
alguma forma, ofender o homem.
À força de pensar nisso, parece-me que percebi o que se passava no coração de meu
irmão. Sem dúvida ele pensava que aquele homem, que se chama Jean Valjean, tinha seu
infortúnio por demais presente na alma, que o melhor seria distraí-lo, fazê-lo acreditar, nem
que só por um momento, que era uma pessoa como outra qualquer, e mostrar-se para ele
uma pessoa comum. Não é exatamente isso conhecer a caridade? Não acha, minha boa
amiga, que há algo de verdadeiramente evangélico nessa delicadeza que se abstém do
sermão, da moral, das alusões? E a maior piedade para com um homem a tal ponto dolorido
não é não tocar em sua ferida?
Pareceu-me que poderia ser assim que pensasse meu irmão. Em todo caso, o que posso
dizer é que, se ele teve todos esses pensamentos, não deu demonstração nem mesmo a mim;
do princípio ao fim foi o mesmo homem de todas as noites, ceando com o tal Jean Valjean
com o mesmo ar, os mesmos modos que teria tido com o senhor Gédéon Le Prévost ou com
o vigário da paróquia.
No final, quando estávamos à sobremesa, bateram à porta. Era a senhora Gerbaud com
seu filhinho no colo. Meu irmão beijou a criancinha na testa e pediu-me quinze soldos que
estavam comigo para dar à mulher. O homem quase não prestava atenção ao que se
passava. Não falava mais nada e parecia muito cansado. Assim que a senhora Gerbaud saiu,
meu irmão deu graças e, voltando-se para o homem, disse: ‘O senhor deve estar precisando
de sua cama’.
A senhora Magloire tirou a mesa bem rápido. Eu entendi que devíamos nos retirar para
deixar o caminhante dormir; subimos ambas para nossos quartos. Passado um instante, disse
à senhora Magloire que fosse colocar na cama do homem uma pele de cabrito-montês da
Floresta Negra que estava em meu quarto. As noites são muito frias e a pele mantém o calor.
Pena é que ela esteja velha, tem-lhe caído quase todo o pelo. Foi comprada por meu irmão
no tempo em que esteve na Alemanha, em Tottlingen, próximo à nascente do Danúbio,
assim como a faquinha de cabo de marfim que uso à mesa.
A senhora Magloire voltou logo em seguida, começamos a rezar na sala onde
estendemos a roupa, e depois fomos para nossos quartos sem nos dizer nada”.
V. TRANQUILIDADE
Após dar boa-noite a sua irmã, Monsenhor Bienvenu tirou de cima da
mesa um dos castiçais de prata, entregou o outro a seu hóspede e disse-lhe:
— Senhor, vou conduzi-lo a seu quarto.
O homem o seguiu.
Como acima dissemos, a casa era repartida de tal modo que, para
passar ao oratório, onde ficava a alcova, ou sair dele, era preciso
atravessar o quarto do bispo.
No momento em que ambos o atravessavam, a senhora Magloire
guardava os talheres de prata no armário que ficava à cabeceira da cama.
Era o último serviço que fazia todas as noites antes de deitar-se.
O bispo instalou seu hóspede na alcova; uma cama limpa e fresca
estava preparada. O homem colocou o castiçal sobre uma mesinha.
— Tenha uma boa noite — disse-lhe o bispo. — Amanhã cedo, antes
de partir, irá tomar uma xícara do leite quentinho de nossas vacas.
— Obrigado, senhor abade — disse o homem.
Mal acabou de dizer essas palavras cheias de serenidade e teve
repentinamente, e sem transição, um movimento impetuoso, que gelaria de
susto as duas virtuosas mulheres se dele fossem testemunhas. Ainda hoje
nos é difícil determinar a causa que, naquele momento, o moveu. Queria
fazer uma advertência ou uma ameaça? Obedeceria simplesmente a uma
espécie de impulso instintivo, obscuro para ele mesmo? Voltou-se
bruscamente para o bispo, cruzou os braços e, fitando seu hospedeiro com
um olhar selvagem, exclamou com a voz rouca:
— Decididamente! Como o senhor recolhe-me em sua casa, tão
próximo assim de todos?
Interrompeu-se e acrescentou com um riso que tinha algo de
monstruoso:
— Pensou bem no que está fazendo? Quem lhe garante que não sou um
assassino?
O bispo respondeu:
— Isso é com Deus.
E, dizendo isso, elevou os dois dedos da mão direita com ar grave,
mexendo os lábios como quem reza ou fala sozinho, e abençoou o homem,
que não se inclinou, e, sem virar a cabeça nem olhar para trás, entrou em
seu quarto.
Quando alguém ocupava a alcova, uma grande cortina de sarja,
esticada de um lado ao outro do oratório, escondia o altar. Ao passar para
diante da cortina, o bispo ajoelhou-se e fez uma curta oração.
Um momento depois, já estava em seu jardim, caminhando,
meditando, contemplando, com a alma e o pensamento voltados
completamente a esses grandes mistérios que Deus mostra durante a noite
aos olhos que velam.
Quanto ao homem, estava realmente tão cansado, que nem aproveitou
os gostosos lençóis limpos. Apagou a vela com as narinas, segundo o uso
dos condenados, e atirou-se de roupa e tudo na cama, logo adormecendo
profundamente.
Soava meia-noite quando o bispo vinha do jardim para seu quarto.
Alguns minutos depois, tudo dormia na casa.
X. O HOMEM ACORDADO
Ao soarem duas horas da manhã no relógio da catedral, Jean Valjean
acordou. O que o acordou foi a cama, que era boa demais. Havia quase
vinte anos não dormia em uma cama, e, embora estivesse vestido, aquela
sensação era bastante nova para que não perturbasse seu sono. Havia
dormido mais de quatro horas, seu cansaço tinha passado. Estava
acostumado a não ter muitas horas de repouso.
Abriu os olhos, olhou um momento a escuridão à sua volta e tornou a
fechá-los para adormecer.
Quando muitas sensações diferentes agitam o dia, quando alguma
coisa preocupa o espírito, pode-se adormecer, mas dificilmente consegue-
se readormecer; o sono vem com mais facilidade do que volta. Foi o que
aconteceu a Jean Valjean. Ele não conseguiu voltar a dormir, então pôs-se
a pensar. Encontrava-se em um desses momentos em que as ideias eram
confusas em seu espírito. Havia uma espécie de vaivém obscuro na sua
cabeça. Suas lembranças antigas e recentes flutuavam misturadas,
cruzavam-se confusamente perdendo suas formas, crescendo
desmesuradamente e desaparecendo de repente, como que em meio a uma
água lodosa e agitada. Numerosos pensamentos ocorriam-lhe, havia um,
porém, que voltava-lhe continuamente e expulsava todos os outros.
Tratava-se do pensamento que contamos a seguir: ele havia reparado nos
seis talheres de prata e na concha de sopa que a senhora Magloire colocara
na mesa.
Aqueles seis talheres de prata obcecavam-no. Estavam ali, a dois
passos. No momento em que passara pelo quarto ao lado deste onde se
achava, vira a criada guardando-os em um armário que ficava à cabeceira
da cama. Também havia reparado naquele armário à entrada da sala de
jantar, do lado direito. Os talheres eram de prata maciça e antiga.
Juntamente com a concha, dariam, ao menos, duzentos francos. O dobro
do que havia ganho em dezenove anos. Verdade é que teria ganho mais se a
administração não o tivesse roubado.
Seu espírito oscilou durante uma hora inteira em reflexões
entremeadas por um certo esforço.
Soaram três horas. Ele abriu novamente os olhos, ergueu-se
bruscamente, estendeu o braço, tateando para encontrar a mochila que
tinha jogado em um canto da alcova, depois deixou as pernas penderem,
pousou os pés no chão e, quase sem saber como, ficou sentado na cama.
Permaneceu algum tempo com ar pensativo, em uma atitude que
pareceria sinistra a alguém que o visse naquele escuro, único acordado
enquanto todos dormiam. De repente, agachou-se, tirou os sapatos,
colocando-os cuidadosamente sobre o tapete à beira da cama, retomou sua
atitude pensativa e ficou novamente imóvel.
Em meio àquela pavorosa meditação, as ideias que acabamos de
descrever tumultuavam continuamente sua cabeça, entravam, saíam,
retornavam, oprimindo-o; também pensava, sem saber por que, em um
condenado chamado Brevet, que conhecera nas galés: suas calças eram
presas por um único suspensório de algodão tricotado. O desenho desse
suspensório, que era xadrez, voltava sem parar à sua mente.
Permaneceu desse jeito, e talvez assim tivesse ficado indefinidamente
até romper o dia, se o relógio não desse uma badalada — um quarto ou
meia hora. Pareceu que aquela badalada lhe dissesse: “Vamos!”
Levantou-se, hesitou ainda um instante, ouviu à sua volta: tudo estava
quieto na casa; encaminhou-se, então, cautelosamente para a janela.
A noite não era das mais escuras; havia uma lua cheia entrecortada por
largas nuvens sopradas pelo vento, produzindo, lá fora, efeitos alternados
de sombra e luz, clarões e eclipses, e, lá dentro, uma espécie de
crepúsculo. Esse crepúsculo, suficiente para que fosse possível se guiar, e
intermitente por causa das nuvens, assemelhava-se ao tipo de
luminosidade que entra pelas frestas de um porão em frente ao qual os
passantes vão e vêm.
Chegando à janela, Jean Valjean examinou-a. Não tinha ferrolhos, dava
para o jardim e estava fechada apenas, seguindo o uso da região, por uma
simples tramela. Abriu-a, mas, como um ar muito frio entrava
bruscamente no quarto, fechou-a imediatamente. Olhou o jardim de modo
atento, mais observando do que contemplando.
O jardim era cercado por um muro branco bem baixo, fácil de escalar.
Ao fundo, avistou a copa de algumas árvores espaçadas a distâncias iguais,
indicando que o muro separava o quintal de alguma avenida ou ruela
arborizada.
Concluído o exame, fez um movimento de homem determinado;
dirigiu-se à alcova, pegou a mochila, revolveu-a, tirou de dentro alguma
coisa que pôs sobre a cama, meteu os sapatos em um bolso, fechou tudo,
colocou a mochila nos ombros, pôs o boné na cabeça, baixando a viseira
sobre os olhos, procurou seu cajado às apalpadelas e foi colocá-lo no canto
da janela, veio outra vez para junto da cama e pegou resolutamente no
objeto que havia pousado sobre ela. Parecia uma barra de ferro curta,
pontiaguda como uma lança em uma das extremidades.
Seria difícil, na escuridão, adivinhar para que uso teria sido preparado
aquele pedaço de ferro. Seria talvez uma alavanca? Seria talvez uma
clava?
Vista à claridade, ela não era mais do que um candeeiro usado nas
minas. Às vezes, os condenados eram empregados na extração de rochas
das elevadas colinas que rodeiam Toulon, e não era raro que tivessem à sua
disposição esse tipo de objeto. Os candeeiros usados nas minas são de
ferro maciço, com a extremidade inferior apontada, por meio da qual são
espetados nas rochas.
Segurou o candeeiro com a mão direita e, retendo a respiração e
andando sem fazer barulho, encaminhou-se para a porta do quarto
contíguo, que, como se sabe, era o do bispo.
Encontrou a porta entreaberta. O bispo não a havia fechado.
__________________________
1 Golfo Juan foi onde Napoleão desembarcou ao voltar da ilha de Elba em 1815.
2 Expressão em dialeto patois: Chat de maraude, correspondente a gatuno, em português.
3 Méduse: navio de guerra encalhado em 1816 com quatrocentos marinheiros e soldados a
bordo. Ao serem resgatados, os náufragos eram apenas quinze.
4 Jean Valjean foi inspirado em Pierre Maurin, que teve prisão decretada por roubar um pão.
Sua história foi a inspiração do autor.
LIVRO III
NO ANO DE 1817
I. O ANO DE 1817
1817 FOI O ANO que Luís XVIII, com certo aprumo régio, ao qual não
faltava arrogância, qualificou como o vigésimo segundo de seu reinado.
Foi o ano em que Bruguière de Sorsum tornou-se célebre. Em que
todas as barbearias foram pintadas de azul com flores-de-lis, à espera dos
polvilhos e do regresso do pássaro real. Era o inocente tempo em que o
conde de Lynch, todos os domingos, sentava-se, como tesoureiro da igreja,
no banco de Saint-Germain-des-Près, vestido como par da França, com sua
fita vermelha, seu grande nariz, e aquele aspecto de majestade típico de
um homem que praticou uma ação célebre.
A ação célebre praticada pelo senhor Lynch consistia no seguinte:
como prefeito de Bordeaux, haver entregue a cidade, em 12 de março de
1814, um pouco cedo demais ao duque de Angoulême. O que rendeu-lhe o
pariato. Em 1817, a moda inventara, para as crianças de quatro a seis anos,
uns enormes bonés de couro, com abas para cobrir as orelhas, que
pareciam gorros de esquimós. O exército francês usava uniformes brancos,
à moda austríaca; os regimentos chamavam-se legiões, e, em lugar de
números, traziam os nomes dos departamentos. Napoleão estava em Santa
Helena, e, como a Inglaterra não lhe enviava tecido verde, mandava virar
suas velhas roupas do avesso. Em 1817, Pellegrini cantava, mademoiselle
Bigottini dançava, Potier reinava, e Odry ainda não existia. Madame Saqui
sucedia a Forioso. Havia ainda prussianos na França. Delalot era um
homem notável. Sua legitimidade acabava de consolidar-se ao cortar o
punho, e em seguida a cabeça, de Pleignier, de Carbonneau e de Tolleron.
O príncipe de Talleyrand, camareiro-mor, e o abade Louis, indicado para
ministro das finanças, olhavam-se com o riso de dois áugures; ambos
haviam celebrado a missa da Federação no Champ-de-Mars, em 14 de
julho de 1790, Talleyrand oficiando como bispo, Louis como acólito. Em
1817, nas alamedas laterais desse mesmo Champ-de-Mars, viam-se
grossos cilindros de madeira expostos à chuva, apodrecendo no mato,
pintados de azul com traços de águias e abelhas douradas. Eram as colunas
que, dois anos antes, tinham servido para sustentar o estrado do imperador
no Champ-de-Mai (cerimônia cívica e militar). Estavam escurecidas aqui
e ali pelas fogueiras do acampamento austríaco estabelecido perto de
Gros-Caillou. Duas ou três dessas colunas haviam desaparecido nas
fogueiras, feitas para aquecerem as enormes mãos dos kaiserlicks. Notável
na festa de Champ-de-Mai é ter ocorrido em junho e no Champ-de-Mars!
Nesse ano de 1817, duas coisas eram populares: o Voltaire-Touquet e as
caixas de rapé. A emoção parisiense mais recente era o crime de Dautun,
que lançara a cabeça do irmão no chafariz do Marché-aux-Fleurs. No
Ministério da Marinha, começava o inquérito sobre a fatal fragata Méduse,
que cobriria Chaumareix de vergonha e Géricault de glória. O coronel
Selves partia para o Egito, para ali tornar-se o paxá Soliman. O palácio des
Thermes, na rua de la Harpe, servia de loja a um tanoeiro. Na plataforma
do torreão octogonal do palácio de Cluny, via-se ainda a cabine de tábuas
que servira de observatório a Messier, astrônomo da Marinha no reinado
de Luís XVI. A duquesa de Duras lia a três ou quatro amigos, em seu
gabinete forrado de cetim azul-celeste, o manuscrito de Ourika (primeiro
romance escrito por ela), ainda inédito. No Louvre, raspavam-se os N
(inicial de Napoleão). A ponte de Austerlitz passava a chamar-se ponte
Jardin du Roi, duplo enigma que disfarçava, ao mesmo tempo, o Jardim
Botânico e a ponte de Austerlitz. Luís XVIII, atento a Horácio por causa
dos heróis que se fazem imperadores e dos sapateiros que se fazem
herdeiros do trono, tinha duas preocupações: Napoleão e Mathurin
Bruneau. A Academia Francesa dava como tema a ser premiado: A
felicidade que provém do estudo. Bellart era oficialmente eloquente. Via-
se germinar à sua sombra o futuro advogado-geral de Bröe, destinado aos
sarcasmos de Paul-Louis Courier. Havia um falso Chateaubriand chamado
Marchangy, à espera de um falso Marchangy chamado d’Arlincourt. Claire
d’Albe e Malek-Adel eram obras-primas, e madame Cottin era declarada a
maior escritora da época. O Instituto deixava riscar de sua lista o
acadêmico Napoleão Bonaparte. Uma ordem régia elevava Angoulême a
escola de Marinha, pois, sendo o duque de Angoulême almirante-mor, era
evidente que a cidade de Angoulême possuía por direito todas as
qualidades de um porto de mar, sem o que ficaria abalado o princípio
monárquico. Agitava-se no conselho de ministros a questão de saber se
deveriam ser toleradas as vinhetas representando cordas-bambas nos
cartazes de Franconi, os quais atraíam os garotos de rua (sem dúvida,
menos pelas proezas dos acrobatas que pelas vestimentas de suas
parceiras). Paër, autor de Agnese, camarada de rosto quadrado com uma
verruga na face, dirigia os pequenos concertos íntimos para a marquesa de
Sassenaye, na rua de la Ville-l’Evêque. Todas as moças cantavam Ermite
de Saint-Avelle, letra de Edmond Géraud. Le Nain jaune [O Anão Amarelo
— jornal de artes, ciências e literatura] passou a chamar-se Miroir
[Espelho]. O café Lemblin era a favor do imperador e contra o café Valois,
que era a favor dos Bourbons. O duque de Berry acabava de casar com
uma princesa da Sicília, já espreitado por Louvel (seu assassino). Havia
um ano que madame de Staël morrera. Os guardas reais vaiavam
mademoiselle Mars (atriz). Os grandes jornais eram publicados em
formato pequeno. O tamanho fora restringido, mas a liberdade era grande.
O Constitutionnel [Constitucional] era constitucional. Minerve [Minerva]
chamava Chateaubriand de Chateaubriant. Este t fazia os burgueses rirem
muito à custa do grande escritor. Em jornais vendidos, jornalistas
prostituídos insultavam os proscritos de 1815; David não tinha mais
talento, Arnault não tinha mais espírito, Carnot não tinha mais probidade,
Soult não ganhara uma só batalha; verdade é que Napoleão não tinha a
mesma engenhosidade. Ninguém ignora ser muito raro que as cartas,
enviadas pelo correio a um exilado, lhes cheguem às mãos, pois a polícia
tem como religioso dever interceptá-las. Isso não é de agora; Descartes já
fazia a mesma queixa quando fora banido. Ora, David, em um jornal belga,
deu mostras de descontentamento por não receber as cartas que lhe
escreviam; isso parecia divertido aos jornais realistas, que aproveitavam a
ocasião para achincalhar o proscrito. Dizer regicidas ou votantes, inimigos
ou aliados, Napoleão ou Bonaparte, separava dois homens mais do que um
abismo. Todas as pessoas sensatas concordavam que a era das revoluções
fora para sempre encerrada pelo rei Luís XVIII, cognominado “o imortal
autor da Carta”. Na base da Pont-Neuf, foi gravada a palavra Redivivus
(Ressuscitado) no pedestal destinado a receber a estátua de Henrique IV;
Piet preparava seu conciliábulo para consolidar a monarquia na rua
Thérèse, número 4. Nas conjunturas graves, os chefes da direita diziam: “É
preciso escrever a Bacot”. Canuel O’Mahony e De Chappedelaine
esboçavam, com alguma aprovação de Monsieur (irmão mais velho do
rei), o que mais tarde veio a ser a “conspiração de bord de l’eau” (à beira
d’água — por ter sido planejada às margens do Sena). L’Épingle Noire (O
Alfinete Negro — sociedade secreta) igualmente conspirava. Delaverderie
conferenciava com Trogoff. Decazes, espírito até certo ponto liberal,
dominava. Chateaubriand, todas as manhãs em frente à janela de sua casa,
à rua Saint-Dominique, número 27, de calças e chinelos, um lenço de seda
da índia cobrindo os cabelos grisalhos, os olhos fixos em um espelho, e
um estojo completo de cirurgião-dentista aberto diante de si, ocupava-se
de limpar os belíssimos dentes, ditando ao mesmo tempo A Monarquia
segundo a Carta ao senhor Pilorge, seu secretário. A crítica autorizada
preferia Lafon a Talma (atores). Féletz assinava A., Hoffman assinava Z.;
Charles Nodier escrevia Thérèse Aubert. Estava abolido o divórcio. Os
liceus chamavam-se colégios, e os colegiais, que traziam na gola uma flor-
de-lis dourada, socavam-se por causa do rei de Roma. A polícia secreta do
Castelo denunciava à Alteza Real o retrato, exposto por toda parte, do
duque de Orléans, que fazia melhor figura vestido de coronel-general dos
hussardos do que o duque de Berry com a farda de coronel-general dos
dragões, grave inconveniente. A cidade de Paris mandava dourar
novamente, às suas custas, a cúpula de Invalides. Os homens sérios
perguntavam-se que faria Trinquelaque nesta ou naquela situação. Clausel
de Montals separava-se em vários pontos de Clausel Coussergues; De
Salaberry não andava satisfeito. O ator Picard, membro da Academia em
que Molière não conseguiu ser admitido, fazia representar Les deux
Philibert no Odéon, em cujo frontispício, mesmo com as letras arrancadas,
lia-se ainda distintamente: THÉÂTRE DE L’IMPÉRATRICE. Uns eram a
favor, outros contra Cugnet de Montarlot. Fabvier era faccioso, Bavoux
revolucionário. O livreiro Pélicier publicava uma edição de Voltaire com o
título Oeuvres de Voltaire (Obras de Voltaire), da Academia Francesa.
“Isso atrai os compradores”, dizia o ingênuo editor. Era opinião geral que
Charles Loyson seria o gênio do século; a inveja começava a cravar-lhe os
dentes, indício de glória, e a respeito dele foi feito o seguinte verso:
Soy de Badajoz.
Amor me llama.
Toda mi alma
Es en mis ojos
Porque enseñas
A tus piernas.
Sou de Badajoz.
O amor me chama.
Toda a minh’alma
Está em meus olhos
Porque me mostras
Tuas pernas.
V. NO RESTAURANTE BOMBARDA
Acabado o divertimento da montanha-russa, pensavam no jantar; o
jubiloso grupo, já um tanto cansado, parou no Bombarda, filial
estabelecida no Champs-Elysées do célebre restaurante Bombarda, cuja
tabuleta se via, naquele tempo, na rua de Rivoli, próximo à travessa
Delorme.
Uma sala grande, mas feia, com alcova e cama ao fundo (em vista da
grande afluência à casa nos domingos, tiveram de contentar-se com este
aposento), com duas janelas, de onde, por entre os olmos, podia-se
contemplar o cais e o rio; um magnífico sol de agosto entrava pelas
janelas; duas mesas: em uma, uma enorme pilha de buquês misturados
com chapéus de homens e de mulheres, na outra, os quatro casais sentados
em volta de um engraçado amontoado de pratos, travessas, copos e
garrafas; canjirões de cerveja e frascos de vinho; pouca ordem sobre a
mesa, alguma desordem por baixo:
escreveu Molière.
Era onde estavam, lá pelas quatro e meia da tarde, no passeio que
começara às cinco da manhã. O sol já declinava, o apetite se aplacava.
O Champs-Elysées, cheios de sol e de gente, cobriam-se de luz e
poeira, duas coisas de que se compõe a glória. Os cavalos de Marly,
mármores relinchadores, empinavam-se no meio de uma nuvem dourada.
Os carros iam e vinham. Um esquadrão magnífico de guardas reais, clarins
à frente, descia a avenida Neuilly; a bandeira branca, levemente rosada
pelo reflexo do sol poente, esvoaçava sobre a cúpula das Tulherias. A
Place de la Concorde, novamente chamada Place Louis XV, estava lotada
de gente satisfeita. Muitos traziam a flor-de-lis de prata presa à fita branca
ondeada, que em 1817 ainda não tinha desaparecido inteiramente das
golas. Aqui e ali, no meio dos passantes que formavam círculos e
aplaudiam, rodas de moças cantavam uma canção monarquista, então
célebre, destinada a fulminar os Cem Dias, cujo estribilho era assim:
Esta é a surpresa.
“Ó nossas amantes!
Saibam que temos pais. Decerto não conhecem isso muito bem. São chamados de pai e
mãe no Código Civil, pueril e honesto. Ora, esses pais reclamam, esses velhinhos querem
nos ver, essas excelentes criaturas chamam-nos de filhos pródigos, querem que retornemos,
prometem nos oferecer boa comida. E, como somos virtuosos, lhes obedecemos. Quando
estiverem lendo isto, cinco fogosos cavalos nos transportarão ao seio de nossos papais e
mamães. Leventamos acampamento, como diz Bossuet. Vamos embora, já fomos. Fugimos
nos braços de Lafitte e nas asas de Caillard. A diligência de Toulouse arranca-nos do
abismo, e o abismo são vocês, nossas pequenas encantadoras! Voltamos à sociedade, ao
dever e à ordem, a galope, à razão de três léguas por hora. Interessa à pátria que sejamos,
como todo o mundo, prefeitos, pais de família, guardas campestres e conselheiros de Estado.
Venerem-nos, porque nos sacrificamos. Chorem-nos rapidamente e substituam-nos depressa.
Se esta carta as dilacera, façam-lhe o mesmo! Adeus. Durante dois anos foram felizes
conosco. Não nos guardem rancor.
__________________________
1“C’est un bonne heure de sortir de bonheur”; esta frase original, escrita erradamente por
Favourite, encerra um jogo de palavras que não se encontra na tradução. De bonne heure, bem
cedo; bonheur, felicidade, produziria corretamente a frase “C’est un bonheur de sortir de bonne
heure”.
2 Livros ilustrados, contendo extratos sentimentais escolhidos.
3 Referência a uma passagem de Virgílio.
4 Quinze août — quinze de agosto, mês de verão no hemisfério norte, justificando bom tempo
e calor.
5 Jogo de palavras que se faz, em francês, pela semelhante pronúncia de “minha calma” —
mon calme e o nome do marquês — Montcalm.
6 Adivinho da Corte de Argos, muito conhecido por sua coragem e prudência.
7 “É preciso ter medida para todas as coisas” — referência a Horácio, Sátiras.
8 “E agora é a você, Baco, que vou cantar” — Virgílio, Geórgicas.
9 “O erro é humano; terror está apaixonado”. O autor joga com palavras de sons semelhantes,
erreur/terreur, e que, em francês, são do gênero feminino.
10 Digesto — código promulgado pelo imperador romano Justiniano.
11 François Elleviou (1769-1842), renomado cantor de óperas, muito apreciado.
12 Équarrisseur, espécie de “açougueiro” que abate animais impróprios ao consumo para
tirar-lhes o que ainda é aproveitável.
LIVRO IV
CONFIAR É, ÀS VEZES, ENTREGAR
— Vou pagar, tenho oitenta francos. Com o que sobrar, ainda dá para
chegar à minha terra, indo a pé. Quero ganhar algum dinheiro lá, e, assim
que conseguir, virei buscar o meu amorzinho.
A voz de homem tornou:
— A pequena tem algum enxoval?
— É meu marido — disse a senhora Thénardier.
— Ela tem um enxoval sim, meu pobre tesouro. E um belo enxoval.
Logo vi que era seu marido. Um enxoval incrível, tudo às dúzias, e
vestidos de seda como uma daminha! Está ali, no meu saco de viagem.
— Então tem que deixar aqui — replicou a voz de homem.
— Eu sei que eu tenho que deixar aqui! — disse a mãe. — Ia ser muito
engraçado se eu deixasse a minha filha completamente sem roupa!
O dono da taverna apareceu.
— Então está bem — disse ele.
Concluiu-se o ajuste. A mãe pernoitou na estalagem, deu o dinheiro e
deixou a criança; amarrou novamente o saco de viagem, que ficava mais
leve agora sem o enxoval, e partiu na manhã seguinte, contando voltar em
breve. Essas partidas são combinadas tranquilamente, mas são um
verdadeiro desespero.
Uma vizinha dos Thénardier encontrou Fantine enquanto ia embora, e
veio dizer:
— Acabo de ver na rua uma mulher chorando de cortar o coração.
Depois que a mãe de Cosette partiu, o homem disse à mulher:
— Com isso vou pagar minha dívida de cento e dez francos que vence
amanhã. Faltavam cinquenta francos. Senão, logo o oficial de justiça viria
com um protesto, sabia? Você preparou uma bela ratoeira com as
pequenas!
— Sem dar-me conta — disse a mulher.
III. A COTOVIA
Não basta ser mau para prosperar. A taverna ia mal. Graças aos
cinquenta e sete francos da viajante, Thénardier pudera evitar um protesto
e honrar sua assinatura. No mês seguinte, tiveram ainda necessidade de
dinheiro; a mulher levou a Paris e empenhou, na casa de penhora
municipal, o enxoval de Cosette pela quantia de sessenta francos. Gasta
essa soma, o casal Thénardier acostumou-se a não ver na inocente senão
uma criança que tinham em casa por caridade, e como tal a tratavam.
Como já não possuía enxoval, vestiam-na com saias e camisas velhas que
tinham sido das outras duas pequenas, isto é, com farrapos. Alimentavam-
na com os restos de todo o mundo, um pouco melhor que o cão, e um
pouco pior que o gato. O cão e o gato eram, aliás, seus comensais
habituais; Cosette comia com eles debaixo da mesa, numa tijela de
madeira, semelhante à deles.
A mãe, que se instalara, como mais tarde veremos, em Montreuil–sur-
Mer, escrevia, ou, melhor dizendo, mandava escrever todos os meses
pedindo notícias de sua filha. O casal Thénardier respondia
invariavelmente:
— Cosette está maravilhosamente bem.
Passados os seis primeiros meses, a mãe enviou sete francos para
pagamento do sétimo mês e continuou com a maior exatidão suas
remessas mensais. O ano nem havia terminado quando Thénardier disse:
— Que grande favor ela nos faz! O que ela quer que nós façamos com
os seus sete francos?
E escreveu exigindo doze. A mãe, a quem persuadiram de que sua filha
estava feliz e “passava bem”, sujeitou-se, e remeteu os doze francos.
Certas naturezas não podem amar de um lado sem odiar de outro. A
mãe Thénardier amava apaixonadamente suas filhas, o que fez com que
detestasse a estranha. É triste pensar que o amor de mãe pode ter aspectos
abjetos. O lugar que Cosette ocupava em sua casa, por menor que fosse,
parecia-lhe algo tomado dos seus, como se a menina diminuísse o ar que
suas filhas respiravam.
Essa mulher, como muitas outras mulheres de sua laia, tinha uma
porção de carícias e outra de pancadas e injúrias para distribuir todo dia.
Se ela não tivesse Cosette, é certo que suas filhas, mesmo idolatradas
como eram, tudo teriam recebido; mas a criança de fora fazia-lhes o favor
de desviar as pancadas sobre si, e elas duas só recebiam as carícias.
Cosette não fazia nenhum movimento que não levasse a desabar sobre ela
uma saraivada de castigos violentos e imerecidos. Doce e frágil ser que
não devia compreender nada deste mundo, nem de Deus, incessantemente
punida, repreendida, tratada com aspereza, espancada, e vendo a seu lado
duas criaturinhas como ela que viviam em um raio de aurora!
Como mãe Thénardier era má para Cosette, Éponine e Azelma também
eram más. As crianças dessa idade não são mais que exemplares da mãe.
Só o formato é menor, mais nada.
Um ano se passou, e mais outro.
Dizia-se na aldeia:
— Esses Thénardier são honrados. Não são ricos e, apesar disso, criam
uma pobre criança que abandonaram em sua casa.
Julgavam que a mãe de Cosette a havia esquecido.
Enquanto isso, Thénardier tomou conhecimento, não sabemos por
quais obscuras vias, de que a criança provavelmente era bastarda, coisa
que a mãe não podia admitir; exigiu quinze francos por mês, dizendo que
“a criatura” crescia e comia, e ameaçava mandá-la embora. “Ela que não
me aborreça!”, exclamava ele, “senão eu atiro essa menina bem no meio
dos seus segredinhos. Tem que me pagar mais”. A mãe pagou os quinze
francos.
De ano em ano, a criança crescia, e crescia também sua miséria.
Enquanto Cosette era pequena, foi o bode expiatório das outras duas
crianças; desde que começou a se desenvolver um pouco, quer dizer, antes
ainda de ter cinco anos, tornou-se a criada da casa.
Cinco anos, dirão, é inacreditável. Mas infelizmente é verdade. O
sofrimento social começa em qualquer idade. Não vimos recentemente o
processo de um tal Dumolard, órfão que se tornou bandido, pois desde a
idade de cinco anos, segundo dizem os documentos oficiais, vendo-se só
no mundo, “trabalhava para viver, e roubava”?
Obrigavam Cosette a dar os recados, a varrer os quartos, o quintal, a
rua, a lavar a louça, e até a carregar peso. O casal Thénardier julgava-se
ainda mais autorizado a assim proceder já que a mãe, que continuava em
Montreuil-sur-Mer, começava a falhar no pagamento. Alguns meses
ficaram em suspenso.
Se aquela mãe tivesse voltado a Montfermeil após esses três anos, não
teria reconhecido a filha. Cosette, tão fresca e tão linda quando chegou
àquela casa, estava agora magra e pálida. Tinha uma aparência inquieta.
“Sonsa!”, diziam os Thénardier.
A injustiça a tornara intratável, e a miséria, feia.
Não lhe restavam mais que seus belos olhos, que davam dó, porque,
grandes como eram, parecia que neles se via uma quantidade maior de
tristeza.
Era doloroso ver, no inverno, aquela pobre criança, que ainda não tinha
seis anos, tiritando de frio, coberta por uns farrapos, varrendo a rua antes
do sol aparecer, com uma enorme vassoura nas mãozinhas roxas do frio, e
uma lágrima nos olhos.
Na aldeia a chamavam de Cotovia. Agradou ao povo, que gosta de
imagens, denominar assim aquela criaturinha, pouco maior que um
passarinho, trêmula, assustada, medrosa, primeira a se levantar toda
manhã, não só na casa, mas em toda a aldeia, e sempre na rua ou nos
campos antes da aurora. Mas a pobre Cotovia jamais cantava.
LIVRO V
A DECADÊNCIA
II. MADELEINE
Era um homem de aproximadamente cinquenta anos, com aparência de
preocupado, mas era um homem bom; isso era tudo o que se podia dizer
dele.
Graças aos rápidos progressos dessa indústria, que ele havia tão
admiravelmente inovado, Montreuil-sur-Mer tornara-se um considerável
centro de comércio. A Espanha, que consome muita miçanga preta, fazia
ali enormes encomendas por ano. Nesse ramo de comércio, Montreuil-sur-
Mer praticamente fazia concorrência a Londres e a Berlim. Os lucros de
Pai Madeleine foram tais que, já no segundo ano, permitiram-lhe construir
uma grande fábrica na qual existiam duas vastas oficinas, uma para os
homens, outra para as mulheres. Quem quer que tivesse fome podia ali se
apresentar, e estar certo de achar emprego e pão. Pai Madeleine pedia aos
homens que tivessem boa vontade, às mulheres, bons costumes, e a todos,
probidade. Dividiu as oficinas para separar os sexos, para que moças e
mulheres pudessem permanecer íntegras. Nesse ponto, era inflexível. Era
essa a única coisa em relação à qual tinha alguma intolerância. E ele
justificava bem essa severidade porque, em Montreuil-sur-Mer, por ser
essa uma cidade de guarnição, abundavam as oportunidades para a
corrupção. De resto, sua vinda fora um bem, e sua presença, uma
providência. Antes de sua chegada, tudo esmorecia naquela terra; agora,
tudo ali tinha a vida sadia do trabalho. Uma forte corrente aquecia tudo e
penetrava em toda parte. Miséria e desemprego eram desconhecidos. Não
havia bolso, por mais obscuro que fosse, em que não houvesse algum
dinheiro, nem uma casa tão pobre em que não houvesse um pouco de
alegria.
Pai Madeleine empregava todo o mundo, fazendo uma única exigência:
“Seja um homem honesto! Seja uma mulher honrada!”
Como já dissemos, em meio a essa atividade, de qual era a causa e o
eixo, fazia sua fortuna; mas, coisa bem singular em um simples homem de
comércio, não dava a impressão de ser essa sua principal preocupação;
parece que pensava muito nos outros e muito pouco nele mesmo. Em
1820, sabia-se que tinha uma quantia de seiscentos e trinta mil francos,
depositada em seu nome no banco Laffitte; antes, porém, de reservar para
si esses seiscentos e trinta mil francos, havia despendido mais de um
milhão em favor da cidade e dos pobres.
O hospital estava mal dotado; ele acrescentou mais dez leitos.
Montreuil-sur-Mer era dividida em cidade alta e cidade baixa. A cidade
baixa, onde ele habitava, tinha apenas uma escola, péssimo casebre em
ruínas; construiu mais duas, uma para meninas e outra para meninos.
Pagava do próprio bolso aos dois professores o dobro do magro ordenado
oficial, dizendo um dia a alguém que se admirava disso: “Os dois
principais funcionários do Estado são o professor e a ama”. Criara, a suas
expensas, uma casa de asilo, coisa então quase desconhecida na França, e
uma caixa de assistência para os operários velhos e enfermos. Sendo sua
fábrica um centro, rapidamente surgiu em torno dela um novo bairro, onde
havia grande número de famílias indigentes; ali estabeleceu uma farmácia
gratuita.
Nos primeiros tempos, quando o viram começar, as boas almas
disseram: “É um espertalhão que quer enriquecer”. Quando o viram
enriquecer a cidade antes de enriquecer a si próprio, as mesmas boas
almas disseram: “É um ambicioso”. Isso parecia ainda mais provável
porque aquele homem era religioso, e, em certa medida, até mesmo
praticante, coisa muito bem vista naquela época. Assistia regularmente à
missa dos domingos. O deputado local, que farejava concorrências em
tudo, não demorou a se preocupar com tal religiosidade. Esse deputado,
que fora membro do corpo legislativo do império, abraçava as ideias
religiosas de um padre da Congregação do Oratório, conhecido pelo nome
de Fouché, duque d’Otrante, de quem tinha sido protegido e amigo. No
íntimo, ria levemente de Deus, mas quando viu o rico fabricante
Madeleine ir à missa das sete horas, entreviu a possibilidade de um
concorrente, e resolveu superá-lo; tomou um jesuíta como confessor, foi à
missa solene e às vésperas. Naquele tempo, a ambição era, na verdadeira
acepção da palavra, o caminho do campanário. Os pobres aproveitaram-se
desse terror como o bom Deus, porque o respeitável deputado dotou o
hospital com mais dois leitos; agora eram doze.
Entretanto, em 1819, certa manhã espalhou-se pela cidade o boato de
que, por proposta do senhor chefe de departamento, e em consideração aos
serviços prestados àquela localidade, Pai Madeleine seria nomeado, pelo
rei, prefeito de Montreuil-sur-Mer. Os que haviam declarado o recém-
chegado “um ambicioso” aproveitaram com gosto esta oportunidade, que
todos desejam, para exclamarem: “Vejam só! Nós não falamos?”
Montreuil-sur-Mer inteira ficou alvoroçada; o boato tinha fundamento.
Alguns dias depois, a nomeação apareceu no Moniteur. No dia seguinte,
Pai Madeleine recusava.
Nesse mesmo ano de 1819, os produtos do novo processo inventado
por Madeleine figuraram na Exposição Industrial; baseado no relatório do
júri, o rei o nomeou inventor cavaleiro da Legião de Honra. Novo rumor
na pequena cidade. “Muito bem! Era a condecoração o que ele queria!” Pai
Madeleine também a recusou.
Decididamente, aquele homem era um enigma. As boas almas saíram
do caso dizendo: “Afinal de contas, é uma espécie de aventureiro”.
Como acima se viu, o lugar devia-lhe muito, os pobres deviam-lhe
tudo; ele era tão bom que acabaram por prestar-lhe honras, e tão afável
que não era possível deixar de amá-lo; seus operários, especialmente,
adoravam-no, adoração que ele recebia com uma espécie de gravidade
melancólica. Quando constatou-se que estava rico, “as pessoas da
sociedade” passaram a cumprimentá-lo e chamá-lo de senhor Madeleine;
seus operários e as crianças continuaram a tratá-lo por Pai Madeleine, e
era isso o que mais o fazia sorrir. À medida que subia, choviam convites
sobre ele. “A sociedade” o reclamava. Os pequenos salões afetados de
Montreuil-sur-Mer, que, bem entendido, nos primeiros tempos se
fecharam ao artesão, abriram-se por completo ao milionário. Fizeram-lhe
mil oferecimentos. Ele recusou sempre.
Ainda desta vez, as boas almas não se sentiram impedidas de dizer: “É
um homem ignorante e de pouca educação. Não se sabe de onde saiu. Ele
não saberia portar-se em sociedade. Nem está provado que saiba ler”.
Quando o viram ganhar dinheiro, disseram: “É um negociante”.
Quando o viram semear esse dinheiro, disseram: “É um ambicioso”.
Quando o viram repelir as honras, disseram: “É um aventureiro”. Quando
o viram repelir todo mundo, disseram: “É um bruto”.
Em 1820, cinco anos após sua chegada a Montreuil-sur-Mer, os
serviços que ele tinha prestado à localidade eram tão valiosos, os votos da
região foram tão unânimes, que o rei o nomeou novamente prefeito da
cidade. Recusou ainda, mas o chefe de departamento resistiu a essa recusa,
os notáveis da cidade vieram rogar, o povo em plena rua suplicava; a
insistência foi tão intensa que ele acabou aceitando. Notou-se que o que
pareceu especialmente determiná-lo foi a observação quase irritada de
uma velha mulher do povo que lhe disse, gritando da soleira de sua porta,
com impaciência: Um bom prefeito é muito útil. Por que recuar diante do
bem que pode fazer?
Foi esta a terceira fase de sua ascensão. Pai Madeleine havia se
tornado senhor Madeleine, e o senhor Madeleine tornou-se o senhor
prefeito.
III. SOMAS DEPOSITADAS NO BANCO LAFFITTE
Afinal, permanecera tão simples quanto era no primeiro dia.
Tinha os cabelos grisalhos, o olhar grave, a tez morena de um operário,
e o rosto pensativo de um filósofo. Usava habitualmente um chapéu de
abas largas e um longo casaco de tecido grosso, abotoado até o queixo.
Exercia suas funções de prefeito, mas, fora isso, vivia solitário,
convivendo com pouca gente, furtando-se a cumprimentos e trocas de
finezas, saudando de passagem, esquivando-se rapidamente, sorrindo para
dispensar-se de conversar, e sendo generoso para dispensar-se de sorrir. As
mulheres diziam dele: “Que grande urso!” Seu maior gosto era passear
sozinho pelos campos.
Fazia suas refeições sempre sozinho, tendo diante de si um livro aberto
para ler. Possuía uma pequena biblioteca bem montada, e amava os livros,
que são amigos imparciais e seguros. À medida que a fortuna lhe
proporcionava mais tempo de lazer, parecia aproveitá-lo para cultivar o
espírito. Notava-se que, desde sua chegada a Montreuil-sur-Mer, seu
linguajar se tornava, a cada ano, mais polido, mais agradável e mais
seleto.
Em seus passeios, gostava de levar uma espingarda, mas raramente
servia-se dela. Quando, vez por outra, isso acontecia, sua pontaria certeira
era espantosa. Nunca, porém, matava um animal inofensivo. Nunca atirava
em um pássaro.
Embora já não fosse tão jovem, dizia-se que tinha uma força
prodigiosa. Sempre dava uma mão a quem precisava, levantava um cavalo,
empurrava alguma carroça atolada e segurava pelos chifres um touro
fugido. Tinha sempre os bolsos cheios de moedas ao sair, e vazios ao
voltar. Quando passava por alguma aldeia, os moleques esfarrapados
corriam alegremente atrás dele, cercando-o como uma nuvem de
mosquitos.
Acreditava-se que outrora tinha vivido a vida do campo, porque sabia
todo tipo de segredos úteis, que transmitia aos camponeses. Ensinava-lhes
a destruir a traça dos trigos, aspergindo o celeiro e inundando as fendas do
assoalho com uma solução de sal comum, e a preservar-se do gorgulho,
suspendendo por toda parte, nas paredes e nos tetos, nas pastagens e nas
casas, ramos de uma planta que o afugenta. Tinha “receitas” para extirpar
de um campo o joio, a ferrugem, a ervilhaca, o olho de sapo, a cauda da
raposa, todas as ervas parasitas nocivas ao trigo. Defendia as coelheiras
contra os ratos simplesmente com o cheiro de um pequeno porco da
Barbária, que colocava entre os coelhos.
Um dia, ao ver uns aldeões muito atarefados arrancando urtigas, olhou
para aquele amontoado de plantas arrancadas e já secas, dizendo: “Já estão
mortas, mas seria bom se soubessem aproveitá-las. A folha da urtiga,
enquanto tenra, é um excelente legume; e, depois de velha, tem filamentos
e fibras, como o linho e o cânhamo. O tecido de urtiga é tão bom como o
de cânhamo. Cortada, é boa para as aves; moída, é boa para os bovinos. A
semente da urtiga misturada à comida dá brilho ao pelo do gado, e a raiz
misturada com sal produz uma bela cor amarela, além de ser ainda um
excelente pasto que se pode segar duas vezes. E de que a urtiga precisa?
Um pouco de terra, nenhum cuidado, nenhuma cultura. Só custa colher a
semente que vai caindo enquanto amadurece, mais nada. Com mais algum
trabalho, a urtiga seria útil; como é desprezada, torna-se nociva, e então a
destroem. Quantos homens se parecem com as urtigas!” E acrescentou,
depois de uma pausa: “Meus amigos, lembrem-se disso, não há ervas más,
nem homens maus, mas sim maus cultivadores”.
As crianças gostavam dele também porque sabia fazer lindas
bugigangas de palha e da casca de coco.
Quando via a porta de uma igreja forrada de preto, entrava; ele
procurava um enterro como outros procuram um batizado. A viuvez e a
dor alheia o atraíam por causa de seu caráter terno; misturava-se aos
amigos em luto, às famílias vestidas de preto, aos sacerdotes orando em
volta de um caixão. Parecia gostar de ter no pensamento aquelas salmodias
fúnebres, cheias da visão de um outro mundo. Escutava, com os olhos
voltados para o céu e uma espécie de aspiração em relação aos mistérios
do infinito, essas vozes tristes que cantam à beira do obscuro abismo da
morte.
Praticava uma infinidade de boas ações, escondendo-se como quem se
esconde das más. À noite, entrava furtivamente nas casas, subia cauteloso
as escadas. Às vezes, um pobre homem chegando em seu casebre
encontrava a porta aberta, até mesmo forçada enquanto estivera ausente.
Vendo isso, exclamava: algum malfeitor esteve aqui! Porém, ao entrar, a
primeira coisa que via era uma moeda de ouro deixada em cima de algum
móvel. O “malfeitor” que por ali havia andado era Pai Madeleine.
Ele era afável e triste, e o povo dizia: “Este é um homem rico que não
aparenta orgulho, é um homem feliz que não aparenta estar contente”.
Alguns achavam que fosse um personagem misterioso, e afirmavam
que não deixava ninguém entrar em seu quarto, o qual seria uma
verdadeira cela de anacoreta, mobiliada com ampulhetas aladas e adornada
com caveiras e tíbias em cruz. Falava-se tanto disso tudo que, um dia,
foram à casa dele algumas senhoras elegantes e maliciosas de Montreuil-
sur-Mer e lhe pediram: “Senhor prefeito, mostre-nos seu quarto; temos
ouvido dizer que parece uma gruta”. Ele sorriu e as levou imediatamente
para a tal “gruta”. Foram punidas por sua curiosidade. Era um quarto
mobiliado simplesmente, com feios móveis de acaju, como todos os
móveis desse gênero, e forrado com papel barato.
Nada viram ali além de dois castiçais de feitio antigo, que estavam
sobre a lareira e que pareciam ser de prata, “porque traziam uma marca de
controle”. Observação cheia do espírito das cidades pequenas.
Nem por isso deixou-se de dizer que ninguém entrava em seu quarto e
que aquilo era uma caverna de ermitão, um retiro, um buraco, um túmulo.
Cochichava-se também que ele tinha “imensas” somas depositadas no
banco Laffitte, com a particularidade de estarem sempre à sua imediata
disposição, de modo que, acrescentavam, o senhor Madeleine podia chegar
ao banco pela manhã, assinar um recibo e retirar seus dois ou três milhões
em dez minutos. Na realidade, esses “dois ou três milhões” reduziam-se,
como já dissemos, a seiscentos e trinta ou seiscentos e quarenta mil
francos.
X. CONTINUAÇÃO DO SUCESSO
Fantine fora despedida no final do inverno; o verão passou e veio outro
inverno. Dias curtos, menos trabalho. No inverno, nem calor, nem luz,
nem meio-dia, a noite emenda com o dia, neblina, crepúsculo, janela
cinzenta; não se vê com clareza. O céu é um respiradouro; o dia inteiro,
um porão; o sol tem um aspecto pobre. Que horrível estação! O inverno
transforma em pedra a água do céu e o coração do homem.
Seus credores a importunavam.
Fantine ganhava pouquíssimo. Suas dívidas tinham crescido. Os
Thénardier, mal pagos, escreviam-lhe a todo instante cartas cujo conteúdo
a preocupava, e cujas franquias a arruinavam. Um dia escreveram-lhe
dizendo que a pequena Cosette estava praticamente nua para o frio que
fazia, que precisava de uma saia de lã, e que para isso era necessário que a
mãe remetesse dez francos. Recebeu a carta e ficou com ela nas mãos o
dia todo. À noite, entrou em uma barbearia que ficava na esquina da rua,
desfez o penteado. Seus admiráveis cabelos louros caíram até a cintura.
— Que belos cabelos! — exclamou o barbeiro.
— Quanto me daria por eles? — perguntou.
— Dez francos.
— Corte-os.
Comprou uma saia de lã e remeteu-a aos Thénardier, que se
enfureceram porque era o dinheiro que queriam. Deram a saia a Éponine, e
a pobre Cotovia continuou a tiritar.
Fantine pensou: “Minha filhinha não tem mais frio, a vesti com meus
cabelos”.
Usava umas toucas redondas que escondiam o cabelo cortado, mas
mesmo assim continuava bonita.
Ocorria algo tenebroso no coração de Fantine. Quando viu que já não
podia pentear-se, começou a ter ódio de tudo o que a cercava. Por muito
tempo, partilhara a veneração geral por Pai Madeleine; contudo, à força de
repetir a si mesma que tinha sido ele quem a despedira, e que era ele a
causa de seu sofrimento, passou a odiá-lo também e principalmente.
Quando passava diante da fábrica, nas horas em que os operários estavam
à porta, fingia rir e cantar.
Uma velha operária, que uma vez a viu cantar e rir daquela maneira,
disse: “Essa moça vai acabar mal”.
Arrumou um amante, o primeiro que apareceu, um homem a quem não
amava, por fanfarrice, com raiva no coração. Era um miserável, uma
espécie de músico mendigo, um velhaco ocioso que batia nela, e que a
abandonou do mesmo modo como ela ficara com ele, com desprezo.
Fantine adorava sua filha.
Quanto mais descia, quanto mais sombrio tudo se tornava ao seu redor,
mais aquele doce anjinho iluminava o fundo de sua alma. Ela dizia:
“Quando eu for rica, minha Cosette ficará comigo”. E ria. A tosse não a
largava, e tinha sempre as costas suadas.
Um dia, recebeu uma carta dos Thénardier, nos seguintes termos:
“Cosette está doente, é uma moléstia que vem ocorrendo nesta região, uma
febre miliar, como estão chamando. Os remédios de que ela necessita são
caros, e isso está nos arruinando, não podemos mais pagar. Se não nos
enviar quarenta francos dentro de oito dias a pequena morrerá”.
Começou a gargalhar, dizendo para sua velha vizinha:
— Ah! Eles são incríveis! Quarenta francos! Só isso! São dois
napoleões! De onde eles querem que eu tire? São idiotas esses
camponeses!
Porém, subiu a escada e releu a carta perto de uma janela. Depois
desceu e saiu correndo, saltando e rindo sem parar.
Alguém que a encontrou disse-lhe:
— O que acontece para estar tão alegre?
Ela respondeu:
— É uma bobagem que umas pessoas do campo acabam de me
escrever. Pedem quarenta francos. Coisa de camponeses!
Ao passar pela praça, viu muita gente que, de forma estranha, cercava
uma carruagem, em cuja parte superior discursava, de pé, um homem
vestido de vermelho. Era um dentista charlatão que oferecia ao público
dentaduras completas, opiatos, pós e elixires.
Fantine misturou-se ao grupo e pôs-se a rir, como os outros, daquela
arenga onde havia gíria para o populacho e frases pretenciosas para as
pessoas de melhor nível. O arrancador de dentes viu aquela bela moça
rindo, e exclamou de repente:
— Você tem uns lindos dentes, essa moça que está rindo aí. Se quiser
vender-me suas duas palettes, dou-lhe um napoleão de ouro por cada uma.
— Minhas palettes! O que é isso?
— As palettes — tornou o professor dentista — são os dentes da
frente, os dois de cima.
— Que horror! — exclamou Fantine.
— Dois napoleões! — resmungou uma velha desdentada que estava
por ali. — Essa é que é feliz!
Fantine fugiu tapando os ouvidos para não escutar a voz rouquenha do
homem que lhe gritava:
— Pense bem, minha flor! Dois napoleões, pode ser bem útil! Se o
coração lhe pedir, vá esta noite ao albergue do Tillac d’argent, estarei lá.
Fantine voltou para casa furiosa, e foi contar o caso à sua boa vizinha
Marguerite:
— A senhora faz ideia disso? Não é um homem abominável, aquele?
Como é que deixam uma gente daquela andar na cidade! Arrancar meus
dois dentes da frente! Eu ficaria horrível! Os cabelos, esses ainda tornam a
nascer, mas os dentes! Ah! Que monstro de homem! Antes me jogar de
cabeça de um quinto andar! Disse-me que esta noite estará no Tillac
d’argent.
— E quanto é que oferecia? — perguntou Marguerite.
— Dois napoleões.
— Isso dá quarenta francos.
— É — disse Fantine —, dá quarenta francos.
Ficou pensativa, mas foi pegar na costura. Passado um quarto de hora,
parou a costura e tornou a ir à escada ler a carta dos Thénardier.
Quando voltou, perguntou a Marguerite, que trabalhava perto dela:
— O que é mesmo febre miliar? A senhora sabe?
— Sei — respondeu a velha —, é uma doença.
— E é preciso tomar muitos remédios?
— Nossa! E remédios fortes!
— E como se pega isso?
— É uma doença que a gente pega por acaso.
— Então ataca as crianças?
— Principalmente as crianças.
— Será que se morre disso?
— Oh! Se morre, sim — disse Marguerite.
Fantine saiu e mais uma vez foi ler a carta na escada.
À noite, desceu, e viram-na ir para os lados da rua de Paris onde ficam
os albergues.
No outro dia, quando Marguerite entrou no quarto de Fantine ainda
antes de se fazer dia, pois trabalhavam sempre juntas, para assim
acenderem uma só vela, encontrou Fantine sentada na cama, pálida,
gelada. Não havia deitado. Sua touca caíra sobre os joelhos, e a vela, que
ardera a noite inteira, estava quase de todo consumida.
Marguerite parou na soleira, petrificada com aquela grande desordem,
e exclamou:
— Senhor! A vela toda gasta! Alguma coisa aconteceu!
Depois olhou para Fantine, que voltava para ela a cabeça sem cabelos.
Fantine havia envelhecido dez anos, desde a véspera.
— Jesus! — disse Marguerite. — O que você tem, Fantine?
— Não tenho nada — respondeu Fantine. — Pelo contrário. Minha
filha não morrerá dessa terrível doença por falta de recursos.
E, ao dizer isso, mostrava à velha dois napoleões que brilhavam em
cima da mesa.
—Ai! Santo Deus! — disse Marguerite. — Que fortuna! Onde arrumou
essas moedas de ouro?
— Ganhei — respondeu Fantine, sorrindo ao mesmo tempo. A vela
iluminava seu rosto. Era um sorriso ensanguentado. Uma saliva
avermelhada sujava-lhe os cantos dos lábios, e ela tinha um buraco escuro
na boca.
Os dois dentes foram arrancados.
Fantine remeteu os quarenta francos a Montfermeil. Porém, tudo
aquilo fora um ardil dos Thénardier para obter dinheiro. Cosette não
estava doente.
Fantine jogou seu espelho pela janela. Havia muito, saíra de seu
quarto, no segundo andar, para ocupar um cubículo fechado por um
ferrolho, um desses sótãos cujo teto faz ângulo com o assoalho, e onde a
cada instante se machuca a cabeça. O pobre não pode chegar no fundo de
seu quarto, nem de seu destino, senão curvando-se mais e mais. Fantine já
não tinha cama; restava-lhe um farrapo a que chamava de cobertor, um
colchão no chão e uma cadeira sem assento. Uma pequena roseira havia
secado em um canto, esquecida. Em outro canto, via-se um recipiente para
colocar água, que gelava no inverno, e no qual os diferentes níveis da água
ficavam por muito tempo marcados em círculos de gelo. Ela perdera a
vergonha e a vaidade. Último sinal. Saía com a touca suja; por falta de
tempo, ou por indiferença, não consertava mais a roupa; à medida que os
calcanhares das meias se rasgavam, puxava-os para dentro dos sapatos, o
que se via pelas pregas perpendiculares que se formavam; remendava seu
colete, velho e estragado, com pedaços de chita que rasgavam ao menor
movimento. As pessoas a quem devia faziam-lhe “cenas” e não lhe davam
sossego; encontrava-as na rua, tornava a encontrá-las nas escadas de onde
morava.
Passava noites e noites chorando e pensando. Tinha os olhos muito
brilhantes e sentia uma dor fixa no ombro, na região da omoplata
esquerda. Tossia muito. Odiava profundamente o Pai Madeleine, mas não
se queixava. Costurava dezessete horas por dia, mas um fornecedor de
trabalho das prisões, que fazia as prisioneiras trabalharem por muito
pouco, fez de repente os preços baixarem, o que reduziu o salário das
costureiras livres a nove soldos. Dezessete horas de trabalho e nove soldos
por dia! Os credores estavam mais do que nunca desapiedados; o
negociante de móveis, que havia retomado quase tudo, dizia-lhe sem
parar:
— Quando vai me pagar, descarada?
Que queriam que ela fizesse, bom Deus? Sentia-se perseguida e se
desenvolvia nela alguma coisa de animal feroz. Nessa mesma ocasião,
Thénardier escreveu-lhe dizendo que decididamente esperara com
demasiada bondade, mas que precisava de cem francos, imediatamente,
senão colocaria Cosette no meio da rua, ainda convalescente da grave
doença, exposta ao frio e aos perigos, e que ela se virasse como pudesse,
que morresse se quisesse.
Cem francos, pensou Fantine. Mas onde há um lugar onde se ganhem
cem soldos por dia?
— Vamos lá! — disse ela. — Vamos vender o resto.
E a infeliz fez-se prostituta.
__________________________
1 Da mitologia grega, rio e fronteira dos Infernos, guardados por um cão.
2 “Cristo nos libertou.”
LIVRO VI
JAVERT
I. INÍCIO DO REPOUSO
O SENHOR Madeleine mandou transportar Fantine para a enfermaria que
estabelecera em sua própria casa, e confiou-a às irmãs, que a colocaram na
cama. Sobreviera-lhe uma febre ardente, de modo que passou parte da
noite a delirar e a falar em voz alta. Por fim, adormeceu.
Ao meio-dia seguinte, acordou, ouviu uma respiração muito perto de
sua cama; desviou o cortinado e viu o senhor Madeleine, de pé, olhando
para alguma coisa acima de sua cabeceira. Era um olhar piedoso, súplice e
cheio de angústia. Fantine seguiu esse olhar e viu que se dirigia a um
crucifixo pregado na parede.
O senhor Madeleine estava, a partir daquele momento, transfigurado
aos olhos de Fantine. Parecia-lhe rodeado de luz. Estava absorvido em
uma espécie de oração. Ela o observou por muito tempo, sem ousar
interrompê-lo, mas enfim disse-lhe timidamente:
— O que o senhor faz aqui?
Havia uma hora que o senhor Madeleine ali estava, esperando que
Fantine acordasse. Tomou-lhe a mão, sentiu-lhe o pulso e respondeu:
— Como está?
— Bem — disse ela —; dormi, acho que estou melhor. Isso não há de
ser nada.
O senhor Madeleine continuou, respondendo à pergunta que ela lhe
fizera antes, como se tivesse acabado de ouvi-la:
— Eu orava ao mártir que está no céu.
E acrescentou em seu pensamento: “Pela mártir que está na terra”.
Ele havia passado a noite e a manhã buscando informações. Sabia tudo,
agora. Conhecia a história de Fantine em seus mais pungentes pormenores.
Continuou:
— Pobre mãe, tem sofrido bastante; oh, mas não se lastime, agora tem
o dote dos escolhidos. É assim que os homens fazem anjos. Mas não é
culpa deles; não sabem fazer de outro modo. Veja, esse inferno do qual sai
é a primeira forma do céu; era preciso começar por ele.
E suspirou profundamente. Ela, então, sorriu-lhe, com aquele sorriso
sublime ao qual faltavam dois dentes.
Nessa mesma noite, Javert escreveu uma carta que, na manhã seguinte
e em pessoa, foi entregar na administração do correio de Montreuil-sur-
Mer. Estava assim endereçada a Paris: Ao Senhor Chabouillet, secretário
do Senhor chefe de polícia. Como o caso ocorrido no corpo da guarda
havia feito ruído, a direção do correio e algumas outras pessoas, que viram
a carta antes de ser enviada e reconheceram a letra de Javert no envelope,
pensaram que fosse sua carta de demissão.
O senhor Madeleine apressou-se a escrever aos Thénardier, a quem
Fantine devia cento e vinte francos. Remeteu-lhes trezentos, dizendo que
estavam pagos com tal quantia e que mandassem imediatamente a criança
a Montreuil-sur-Mer, onde sua mãe doente queria vê-la.
Isso deixou o estalajadeiro impressionado.
— Diabo! — disse ele para a mulher. — Não vamos mandar a criança.
Essa cotovia vai transformar-se em vaca leiteira! Eu sei o que é isso:
algum baboca que se apaixonou pela mãe.
E replicou, enviando uma conta de quinhentos e tantos francos, muito
bem feita. Figuravam nela mais de trezentos francos em duas notas
incontestáveis, a de um médico e a de um boticário, que tinham tratado e
medicado Éponine e Azelma em duas longas enfermidades. Cosette, como
dissemos, não estivera doente. Foi o caso de uma insignificante
substituição de nomes. Thénardier colocou no fim da carta: Recebidos por
conta trezentos francos. O senhor Madeleine imediatamente remeteu
outros trezentos francos, dizendo:
— Traga Cosette o quanto antes.
— Cristo! — disse Thénardier. — Não vamos soltar a menina.
Enquanto isso, Fantine não se restabelecia; continuava ainda na
enfermaria. As irmãs, no começo, aceitaram e trataram “aquela mulher”
com repugnância. Quem viu os baixos-relevos de Reims lembra da
intumescência do lábio inferior das virgens sábias olhando para as virgens
loucas. Esse antigo desprezo das vestais pelas mulheres da vida é um dos
mais profundos instintos da dignidade feminina; as irmãs o
experimentaram, com o acréscimo de intensidade que vem da religião.
Mas, em poucos dias, Fantine as desarmou, com suas palavras cheias de
doçura e humildade, e com aquele enternecimento de mãe que havia nela.
Um dia, as irmãs ouviram-na dizer por entre a febre: “Tenho sido uma
pecadora, mas quando tiver minha filhinha a meu lado, é sinal de que Deus
me perdoou. Enquanto estive na má vida, não quis Cosette em minha
companhia, não poderia suportar seus olhos tristes e espantados. Mas era
por ela que eu estava naquela vida, e é por isso que Deus me perdoa.
Sentirei a bênção do Senhor quando ela estiver aqui. Vou olhar para ela,
me fará bem ver aquela inocente. Ela não sabe nada. É um anjo, hão de
ver, irmãs. Naquela idade, as asas ainda não caíram”.
O senhor Madeleine ia visitá-la duas vezes por dia, e toda vez ela lhe
perguntava:
— Será que logo verei minha Cosette?
Ele lhe respondia:
— Talvez amanhã pela manhã. Eu espero que ela chegue de um
momento para o outro.
E o rosto pálido da mãe iluminava-se.
— Oh! — dizia ela. — Como eu ficarei feliz!
Acabamos de dizer que Fantine não se restabelecia. Ao contrário, seu
estado parecia agravar-se semana a semana. Aquele punhado de neve
lançado sobre a pele nua, entre seus ombros, determinara uma súbita
supressão de transpiração, e, em consequência disso, a doença nela
incubada havia vários anos acabou por declarar-se violentamente.
Começavam, então, a seguir as belas indicações de Laënnec para estudo e
tratamento das moléstias de pulmão. O médico auscultou Fantine e
balançou a cabeça.
O senhor Madeleine perguntou ao médico:
— E então?
— Ela não tem uma filha a quem deseja ver? — indagou o médico.
— Tem.
— Então, apresse-se em mandar trazê-la.
O senhor Madeleine sentiu um estremecimento. Fantine perguntou-lhe:
— Que foi que disse o médico?
Ele esforçou-se para sorrir.
— Disse que mandasse vir sua filhinha o quanto antes, pois isso lhe
devolveria a saúde.
— Oh! — replicou ela. — Ele tem razão! Mas que interesse têm
aqueles Thénardier em ficar com a minha Cosette? Oh! Ela logo virá. Até
que enfim vejo a felicidade perto de mim!
Thénardier, porém, não “largava a criança”, dando mil fracas
desculpas. Cosette não estava muito bem para se pôr a caminho no
inverno. E, além disso, havia ainda umas pequenas dívidas com alguns
comerciantes da região, cujas contas estava juntando, etc., etc.
— Vou mandar alguém buscar Cosette — disse Pai Madeleine — e, se
for preciso, irei eu mesmo.
Escreveu a seguinte carta, ditada por Fantine, e depois assinada por
ela:
“Senhor Thénardier,
Entregue Cosette ao portador desta.
Serão pagas todas as pequenas contas.
Tenho a honra de saudá-lo com toda a consideração.
Fantine”.
I. A IRMÃ SIMPLICE
NÃO SE TEM conhecimento em Montreuil-sur-Mer de todos os incidentes
que serão lidos aqui, mas o pouco deles que transpirou deixou tal
recordação naquela cidade, que seria uma grave lacuna se não os
relatássemos, em seus menores detalhes, neste livro.
Entre esses detalhes, o leitor encontrará duas ou três circunstâncias
inverossímeis, que conservaremos por respeito à verdade.
Na tarde que se seguiu à visita de Javert, o senhor Madeleine foi visitar
Fantine, como de costume, mas antes mandou chamar a irmã Simplice.
As duas religiosas que faziam o serviço da enfermaria, lazaristas como
todas as irmãs de caridade, chamavam-se irmã Perpétue e irmã Simplice.
A irmã Perpétue foi a primeira camponesa a tornar-se grosseiramente
irmã de caridade, entrando para a casa de Deus como quem entra em uma
praça. Era religiosa assim como se é cozinheira. Um tipo que não é tão
raro. As ordens monásticas aceitam de boa vontade esta rústica cerâmica
camponesa facilmente moldável em capuchinhas ou ursulinas. Sua
rusticidade é utilizada para as pesadas tarefas da devoção. A transição de
um boiadeiro em carmelita nada tem de chocante, um torna-se o outro sem
grande trabalho; o fundo comum de ignorância da aldeia e do claustro é
uma preparação completa, e nivela imediatamente o camponês ao monge.
Mais amplidão ao avental e está pronta a batina. A irmã Perpétue era uma
robusta religiosa, de Marines, nas imediações de Pontoise, usando seu
dialeto, salmodiando, resmungando, adoçando o chá segundo a beatice ou
a hipocrisia do enfermo, rude com os doentes, grossa com os moribundos,
praticamente atirando-lhes Deus ao rosto, apedrejando a agonia com
preces encolerizadas, e era ainda insolente, honesta e ruborizada.
A irmã Simplice era branca, de uma brancura de cera. Ao lado da irmã
Perpétue, era um círio ao lado de uma vela. São Vicente de Paulo fixou
divinamente a figura da irmã de caridade nestas admiráveis palavras, em
que mistura o mesmo tanto de liberdade e de servidão: “Elas não terão
mais do que, por mosteiro, a casa dos doentes, por aposento, um quarto de
aluguel, por capela, a igreja da paróquia, por claustro, as ruas da cidade ou
as salas dos hospitais, por clausura, a obediência, por proteção, o temor a
Deus, por véu, a modéstia”. Esse ideal se realizava na irmã Simplice.
Ninguém poderia dizer sua idade; nunca fora jovem e parecia que nunca
envelheceria. Era uma pessoa — não ousamos dizer uma mulher — doce,
austera, boa companhia, fria, e que nunca dissera uma mentira. Era tão
doce que parecia frágil, mas, na verdade, era mais sólida que o granito.
Tocava nos doentes com seus encantadores dedos finos e puros. Havia, por
assim dizer, silêncio em seu falar; falava somente o necessário, e tinha um
tom de voz que poderia, ao mesmo tempo, edificar quem se confessa e
encantar um salão. Essa delicadeza se acomodava no hábito grosseiro,
encontrando no rude contato com ele o contínuo chamado do céu e de
Deus. Insistamos em um detalhe. Nunca ter mentido, nunca ter dito, por
um interesse qualquer, nem por indiferença, qualquer coisa que não fosse a
verdade; a santa verdade, era o traço marcante da irmã Simplice, a base de
sua virtude. Ela era quase célebre na Congregação por sua veracidade
imperturbável. O abade Sicard fala da irmã Simplice em uma carta ao
surdo-mudo Massieu. Por mais sinceros e mais puros que sejamos, todos
temos em nossa candura a fenda de uma pequena mentira inocente. Ela
não. Mentirinha, mentira inocente, será que isso existe? Mentir é o
absoluto do mal. Não é possível mentir pouco; quem mente, mente a
mentira toda; mentir é a própria face do demônio. Satanás tem dois nomes,
chama-se Satanás e chama-se Mentira. Assim ela pensava; e assim como
pensava, praticava. Daí resultava aquela brancura de que falamos,
brancura que cobria com um briho seus lábios e até seus olhos.Seu sorriso
era branco, seu olhar era branco. Não havia uma só teia de aranha, um só
grão de poeira no espelho daquela consciência. Quando entrou para a
Congregação de São Vicente de Paulo, tomou o nome de Simplice por uma
escolha especial. Simplice de Sícilia, como se sabe, foi a santa que
preferiu ter os seios arrancados a responder que tinha nascido em Segesto,
quando nascera em Siracusa, mentira que a salvaria. Essa padroeira
convinha a uma alma assim.
Irmã Simplice, ao entrar para a Ordem, tinha dois defeitos que, pouco
a pouco, foi corrigindo; gostava de gulodices e de receber cartas. Não lia
outra coisa senão um livro de orações, em grandes letras e em latim. Ela
não entendia o latim, mas compreendia o livro.
A piedosa irmã se afeiçoara a Fantine, talvez por sentir nela a virtude
latente, e dedicava-se quase exclusivamente a tratá-la.
O senhor Madeleine chamou irmã Simplice à parte e recomendou-lhe
Fantine de um modo singular, do qual sempre se lembrou. Deixando a
irmã, aproximou-se de Fantine.
Fantine esperava todo dia pela vinda do senhor Madeleine como se
espera um raio de calor e de alegria. Ela dizia às irmãs: “Eu não vivo
senão quando o senhor prefeito está aqui”.
Naquele dia, ela estava com muita febre. Assim que viu o senhor
Madeleine, perguntou-lhe:
— E Cosette?
Ele respondeu-lhe, sorrindo:
— Logo, logo.
Conversou com ela como de costume. Mas, em vez de meia hora,
demorou-se uma, para grande contentamento de Fantine. Fez mil
recomendações a todos para que nada faltasse à doente. Notou-se que, em
certo momento, seu semblante ficou muito sombrio. Mas tudo se explicou
quando soube-se que o médico lhe dissera ao ouvido: “Ela piorou muito”.
Depois voltou à prefeitura, e seu auxiliar de gabinete viu-o
examinando com atenção um mapa das estradas da França pendurado na
parede e escrevendo a lápis alguns números sobre um papel.
“Eu estava em uma campina, era uma campina grande e triste onde não havia vegetação
alguma, e não me parecia ser nem dia, nem noite.
Eu passeava com meu irmão; o irmão dos meus anos da infância, esse irmão em quem,
devo dizer, nunca penso, e do qual quase não me lembro.
Conversávamos e encontrávamos outros passantes. Falávamos de uma vizinha que
tínhamos antigamente, e que, desde que morava naquela rua, trabalhava sempre com a
janela aberta. Ao mesmo tempo que conversávamos, sentíamos frio por causa da tal janela
aberta.
Não havia uma só árvore naquela campina.
Vimos um homem que passava perto de nós, completamente nu, cor de cinza, montado
em um cavalo cor de terra. Esse homem não tinha cabelos; via-se seu crânio, e sobre este
viam-se veias. Trazia na mão uma varinha flexível como vime e pesada como ferro. Esse
cavaleiro passou por nós e não nos disse nada.
Meu irmão me disse: ‘Vamos pelo caminho de baixo’.
Havia um caminho mais baixo onde não se via nem um arbusto, nem um pingo de
musgo. Era tudo cor de terra, até o céu. Após alguns passos, ninguém me respondia quando
eu falava. Percebi que meu irmão já não estava comigo.
Entrei então em uma aldeia que avistei. Imaginei que devia ser Romainville (por que
Romainville?).1
A primeira rua em que entrei estava deserta. Entrei na segunda e, atrás do ângulo
formado pelas duas ruas, vi um homem de pé, encostado na parede. Perguntei-lhe: que lugar
é este? Onde estou? Mas o homem não me respondeu. Vi a porta de uma casa aberta e
entrei.
O primeiro quarto estava vazio. Entrei em outro. Atrás da porta desse quarto havia um
homem de pé, encostado na parede. Perguntei a ele: de quem é essa casa? Onde estou? Mas
o homem não me respondeu.
A casa tinha um jardim. Saí da casa e entrei no jardim, que estava deserto. Por trás da
primeira árvore, encontrei um homem que estava de pé. Perguntei a ele: de quem é este
jardim? Onde estou? Mas o homem não me respondeu.
Percorri a aldeia, e percebi que era uma cidade. Todas as ruas estavam desertas, todas as
portas estavam abertas. Nenhum ser vivo andava pelas ruas, pelos aposentos, ou passeava
nos jardins. Mas em cada canto, por trás de cada porta, por trás de cada árvore, havia um
homem de pé e calado. Não se via mais do que um em cada lugar, e todos olhavam para
mim quando eu passava.
Saí da cidade e me pus a caminhar pela campina.
Daí a algum tempo, voltei-me e vi que uma grande multidão vinha atrás de mim.
Reconheci todos os homens que tinha visto na cidade; tinham umas cabeças estranhas. Não
pareciam vir depressa, no entanto, caminhavam mais rápido que eu. Não faziam barulho
algum ao andar. Num abrir e fechar de olhos, aquela multidão alcançou-me e cercou-me. Os
rostos daqueles homens eram cor de terra.
Então, o primeiro que eu vira e interrogara quando entrei na cidade disse-me: ‘Aonde
vai? Não sabe que já morreu há muito tempo?’
Abri a boca para responder e vi que não havia ninguém à minha volta.”
V. CRIANDO DIFICULDADES
Naquela época, o serviço do correio entre Arras e Montreuil-sur-Mer
era ainda feito por meio de malas-postas do tempo do império. Eram
cabriolés de duas rodas, forrados internamente com couro, suspensos por
molas, e só com dois lugares, um para o condutor, outro para o viajante.
As rodas eram armadas com longos cabos ofensivos que conservavam as
outras carruagens à distância, e que ainda são vistos nas estradas da
Alemanha. Na parte de trás do cabriolé ficava a caixa de correspondência,
grande e oblonga, fazendo corpo com ele. Essa caixa era pintada de preto e
o cabriolé de amarelo.
Essas carruagens, com as quais nada se parece hoje em dia, tinham
algo de disforme e encurvado, e quando vistas de longe, passando por
alguma estrada na linha do horizonte, pareciam com aqueles insetos que,
creio eu, chamam-se tanajuras, que têm a parte dianteira do corpo bem
pequena e arrastam uma grande parte posterior. Mas, de resto, andavam
bem rápido. A mala-posta partia de Arras todas as noites à uma hora,
depois da chegada do correio de Paris, chegando a Montreuil-sur-Mer
pouco antes das cinco horas da manhã.
Naquela noite, a mala-posta que vinha para Montreuil-sur-Mer pela
estrada de Hesdin chocou-se, ao dobrar a esquina de uma rua, quando
entrava na cidade, com um pequeno tílburi puxado por um cavalo branco,
que vinha em sentido inverso, no qual havia uma única pessoa, um homem
envolto em seu casaco. A roda do tílburi recebeu um choque bastante
violento; o condutor da mala-posta gritou a esse homem que parasse, mas
ele não ouviu e continuou seu caminho a galope.
— Esse homem está com uma pressa dos diabos! — disse o condutor.
O homem tão apressado é o mesmo que ainda há pouco vimos
debatendo-se em convulsões certamente dignas de compaixão.
Para onde ia? Nem ele podia dizer. Por que ia com tanta pressa? Nem
ele sabia. Ia adiante, ao acaso. Para onde? Para Arras, é certo; mas ia
talvez a outro lugar também, que por instantes bem sabia, e até estremecia.
Embrenhava-se naquelas trevas como para dentro de um abismo. Alguma
coisa o impelia, alguma coisa o atraía. Ninguém podia dizer o que se
passava com ele, mas todos o compreenderão. Que homem ainda não
entrou, ao menos uma vez na vida, nessa caverna obscura do
desconhecido?
Afinal, aquele homem nada resolvera, nada decidira, nada concluíra,
nem fizera; nenhum dos atos de sua consciência era definitivo. Estava
mais do que nunca como no primeiro momento.
Para que ia a Arras?
Repetia-se o que já tinha dito a si mesmo ao alugar o cabriolé de
Scaufflaire: que qualquer que fosse o resultado, não havia inconveniente
nenhum em ver com os seus olhos, em julgar as coisas por si mesmo; que
isso era até prudente e que devia saber o que se passaria; que nada podia
ser decidido sem ter primeiro observado e escutado; que, de longe,
imagina-se tudo mais difícil; que, afinal de contas, quando visse o tal
Champmathieu, um miserável, provavelmente sua consciência se sentiria
bem aliviada por deixá-lo ir para as galés em seu lugar; que, na verdade, lá
estaria Javert, os tais Brevet, Chenildieu e Cochepaille, antigos forçados
que o haviam conhecido mas, com toda certeza, não o reconheceriam
agora — ah, que ideia! —; que Javert estava a cem léguas dali; que todas
as conjecturas e todas as suposições estavam voltadas a esse
Champmathieu, e que nada é mais teimoso do que suposições e
conjecturas, e que não havia, portanto, perigo algum.
Que aquele, sem dúvida, era um momento negro, mas que sairia dele;
que, afinal, tinha seu destino nas mãos; por pior que ele fosse, era senhor
dele. Agarrava-se a esse pensamento.
No fundo, para dizer a verdade, ele bem preferia não ter ido a Arras.
No entanto, dirigia-se para lá.
E, pensando, chicoteava o cavalo, que trotava com aquele bom trote,
regular e seguro, fazendo duas léguas e meia por hora.
À medida que o cabriolé avançava, ele sentia que alguma coisa nele
recuava.
Ao despontar do dia, estava em pleno campo; a cidade de Montreuil–
sur-Mer já estava bem longe. Observou o horizonte a clarear; viu, mas sem
enxergar, passarem diante de seus olhos todas as figuras frias de um
amanhecer de inverno. A manhã também tem seus espectros, como a noite.
Ele não os enxergava, mas, sem que soubesse, e por uma espécie de
penetração quase física, aquelas escuras silhuetas de árvores e colinas
acrescentavam ao estado perturbado de sua alma algo de tristonho e
sinistro. Cada vez que passava diante de alguma dessas casas isoladas, que
às vezes ladeiam as estradas, dizia consigo:
— Mas ali dentro tem gente dormindo!
O trote do cavalo, os guizos dos arreios e as rodas girando no
pavimento da estrada faziam um ruído suave e monótono. Coisas dessa
natureza são encantadoras quando estamos alegres, e lúgubres quando
estamos tristes.
Era dia claro quando chegou a Hesdin, onde parou à porta de uma
estalagem para deixar o cavalo tomar fôlego e mandar que dessem aveia
ao animal.
O cavalo, como dissera Scaufflaire, era da raça pequena de Boulonnais,
de cabeça grande, ventre volumoso, pouco pescoço, mas de peitoral aberto,
ancas largas, pernas magras e finas, e patas sólidas; raça feia, mas robusta
e sadia. O excelente animal andara cinco léguas em duas horas e não tinha
uma só gota de suor nas ancas.
Não desceu do tílburi. Ao colocar a aveia para o cavalo, o moço da
estrebaria abaixou-se e examinou a roda esquerda.
— O senhor vai para longe? — perguntou o rapaz.
Ele respondeu praticamente sem sair de suas reflexões.
— Por quê?
— O senhor vem de longe? — tornou o moço.
— De cinco léguas daqui.
— Ah!
— Por que diz: ah?
O moço inclinou-se de novo, permaneceu um instante silencioso, com
os olhos fixos na roda, depois endireitou-se, dizendo:
— É que tem uma roda que acabou de fazer cinco léguas, não duvido,
mas, com toda certeza, não andará nem um quarto de légua a mais.
Ele então saltou do tílburi.
— O que está dizendo, meu amigo?
— Digo que só por milagre o senhor andou as cinco léguas sem cair, o
senhor e seu cavalo, em algum barranco da estrada. Venha ver.
A roda estava, de fato, seriamente danificada. O choque com a mala-
posta fizera romper dois de seus raios e abalara o cubo, cuja porca já não
segurava.
— Amigo — disse ele ao rapaz da estrebaria —, por aqui há alguém
que conserte isso?
— Há, sim, senhor!
— Quer fazer o favor de buscá-lo?
— Ele está a dois passos daqui. É o Mestre Bourgaillard!
Mestre Bourgaillard, o carpinteiro, estava na soleira da porta; veio
examinar a roda e fez a careta de um cirurgião ao ver uma perna quebrada.
— O senhor poderia consertar esta roda imediatamente?
— Sim, senhor.
— E quando poderei partir?
— Amanhã.
— Amanhã!
— Isso é trabalho para um dia. O senhor tem muita pressa?
— Muita. Preciso partir, o mais tardar, em uma hora.
— Impossível, senhor.
— Pago o que quiser.
— Impossível.
— Está bem! Duas horas.
— Para hoje é impossível; é preciso refazer dois raios e um cubo. O
senhor não poderá partir antes de amanhã.
— Meu negócio não pode esperar até amanhã. Mas, e se em vez de
consertar esta roda colocássemos uma nova?
— Como?
— O senhor não fabrica carros?
— Isso mesmo, senhor.
— Então, não teria uma roda para vender-me? Assim eu poderia ir
embora rapidamente.
— Uma roda sobressalente?
— Isso.
— Não tenho uma roda que sirva exatamente para o seu cabriolé. Duas
rodas fazem o par, e não formam conjunto assim, ao acaso.
— Nesse caso, venda-me o par.
— Mas é que nem todas as rodas se encaixam em qualquer eixo.
— Experimente mesmo assim.
— Não adianta, senhor. Eu só tenho rodas de charrete para vender. Isso
aqui é um lugar pequeno.
— E não teria um cabriolé para alugar-me?
O mestre carpinteiro, ao primeiro olhar, tinha percebido que o tílburi
era de aluguel; encolheu os ombros e disse:
— O senhor toma conta tão bem dos cabriolés que lhe alugam! Se eu
tivesse um, não o alugaria ao senhor.
— E vender, então?
— Mas eu não tenho.
— Como! Nem uma carriola? Não sou difícil de contentar, como pode
ver.
— Isto aqui, senhor, é um lugar pequeno; tenho na cocheira —
acrescentou o carpinteiro — uma caleça velha que é de um sujeito da
cidade; ele a deixou guardada aqui, Mas não a usa nunca. Eu bem que a
alugaria, que me importa? Mas o sujeito não deve vê-la por aí, e, além
disso, é uma caleça; seriam necessários dois cavalos.
— Pegarei cavalos de posta.
— Para onde o senhor vai?
— Para Arras.
— E quer chegar hoje?
— Quero, sim.
— Mas com cavalos de posta?
— E por que não?
— Não faz mal se chegar às quatro horas da madrugada?
— De modo algum.
— É porque, veja bem, vou dizer-lhe uma coisa, pegando cavalos de
posta… O senhor tem passaporte?
— Tenho.
— Então, com cavalos de posta o senhor não chega em Arras antes de
amanhã. Estamos em um atalho, as mudas não são boas porque os cavalos
estão nos campos. Está começando a época das grandes lavouras, precisam
de muitas parelhas, então pegam cavalos de todo canto, e até na posta. O
senhor vai ter que esperar três ou quatro horas em cada muda; além disso,
precisa ir devagar porque há muitas subidas.
— Então irei a cavalo. Desatrele o cabriolé. Deve ter alguém que me
venda um selim por aqui.
— Sem dúvida, mas o cavalo vai tolerar o selim?
— É verdade, fez-me lembrar que ele não consente selim!
— Então…
— Será que eu não encontro na cidade um cavalo para alugar?
— Um cavalo para ir daqui a Arras sem parar?
— Sim.
— Teria que ser um cavalo do tipo que não temos por aqui. E, antes de
tudo, o senhor ia precisar comprá-lo, porque ninguém o conhece. Mas nem
para vender, nem para alugar, nem por quinhentos, nem por mil francos, o
senhor não o encontraria!
— O que fazer?
— Honestamente, o melhor é consertar a roda, e o senhor continua sua
viagem amanhã.
— Amanhã é tarde demais.
— Meu Deus!
— Não há uma mala-posta que vá a Arras? Ela passa a que horas?
— Amanhã à noite. As duas fazem o serviço à noite, tanto a que vai,
como a que vem.
— Como! E o senhor leva um dia para consertar essa roda?
— Um dia, e olhe lá!
— E com mais dois ajudantes?
— Nem que fosse com dez!
— E se os raios fossem amarrados com umas cordas?
— Os raios, sim, mas o cubo, não. Além disso, a camba também está
em péssimo estado.
— Tem alguém que alugue carruagens na cidade?
— Não, senhor.
— Nem outro carpinteiro?
O rapaz da estrebaria e o carpinteiro responderam ao mesmo tempo,
sacudindo a cabeça:
— Não.
Ele sentiu uma alegria imensa.
Era evidente que a Providência tinha a ver com isso. Ela havia
quebrado a roda do tílburi e o fazia parar no meio do caminho. Ele, porém,
não se rendia a essa espécie de primeiro aviso, e acabava de fazer todos os
esforços possíveis para continuar sua viagem, tendo, leal e
escrupulosamente, esgotado todos os recursos, não recuando, nem diante
do tempo, nem diante da fadiga, nem diante da despesa; assim não tinha
nada a recriminar-se. Se não ia mais longe, isso já não era com ele. Não
era mais sua culpa, não tinha a ver com sua consciência, mas com a
Providência.
Respirou. Respirou livremente e a plenos pulmões pela primeira vez
desde a visita de Javert. Parecia-lhe que o punho de ferro, que havia vinte
horas lhe apertava o coração, acabava de soltá-lo.
Parecia-lhe que Deus estava agora a seu favor, e se declarava.
Dizia a si mesmo que tinha feito tudo o que podia, e que agora a única
coisa a fazer era dar meia-volta, tranquilamente.
Se sua conversa com o carpinteiro tivesse ocorrido em algum quarto da
estalagem, não teria tido testemunhas, ninguém a teria ouvido, as coisas
teriam parado por aí, e provavelmente não teríamos nada para contar dos
acontecimentos que serão lidos. Mas ela aconteceu no meio da rua, e todo
diálogo no meio da rua inevitavelmente chama a atenção. Sempre há gente
que só quer ser espectador. Enquanto ele fazia perguntas ao carpinteiro,
alguns dos passantes pararam em torno deles. Após ter escutado a
conversa durante alguns minutos, um rapazinho que ninguém notara
deixou o grupo correndo.
No momento em que o viajante, após a deliberação interior que
acabamos de relatar, tomava a resolução de pegar o caminho de volta, o
rapaz voltou acompanhado de uma senhora de idade.
— Senhor — disse ela —, meu filho me falou que o senhor gostaria de
alugar um cabriolé.
Esta simples frase, proferida por uma senhora que estava com uma
criança, fez o suor escorrer por suas costas. Ele imaginou reaparecendo na
sombra, prestes a segurá-lo outra vez, a mão de ferro que o tinha largado.
— É verdade, minha senhora — respondeu ele —, estou procurando
um cabriolé para alugar.
E acrescentou depressa:
— Mas por aqui não há nenhum.
— Há sim — disse ela.
— Mas onde? — atalhou o carpinteiro.
— Na minha casa — ela respondeu.
Ele estremeceu. A mão fatal tornara a alcançá-lo.
Efetivamente, a velha tinha em casa, em um galpão, uma espécie de
carro de vime, mas o carpinteiro e o moço da estalagem, lamentando
verem que o viajante lhes escapava, intervieram:
— Mas é uma carroça horrível… deve estar fixada diretamente sobre o
eixo… é verdade que os assentos estão presos por tiras de couro… chove
lá dentro… as rodas estão enferrujadas e carcomidas pela umidade… isso
não vai muito mais longe do que o tílburi… uma verdadeira carroça… este
senhor faria muito mal em embarcar naquilo… etc., etc.
Tudo isso era verdade, mas aquela carroça, aquela carriola, aquela
coisa, o que quer que fosse, movia-se sobre duas rodas e podia ir a Arras.
Pagou o que lhe pediram, deixou o tílburi para consertar com o
carpinteiro, devendo buscá-lo na volta; mandou atrelar o cavalo branco à
carriola, subiu e retomou a estrada pela qual seguia desde a manhã.
Quando a carriola se moveu, confessou a si mesmo que, um momento
antes, tivera certa alegria ao pensar que não iria para onde estava indo.
Examinou com uma espécie de raiva a alegria que sentira e achou-a
absurda. Por que havia de sentir prazer em ir para trás? Afinal, ele fazia
essa viagem livremente, ninguém o forçava a isso.
E certamente só lhe aconteceria aquilo que ele bem quisesse.
Ao sair de Hesdin, ouviu uma voz que lhe gritava: “Pare! Pare!”
Fez o carro parar com um movimento rápido, no qual ainda havia
alguma coisa de febril e convulsivo, semelhante à esperança.
Era o filho daquela senhora.
— Senhor — disse ele —, fui eu que lhe arranjei a carriola.
— E daí?
— O senhor não me deu nada.
Ele, que dava a todos, com tanta facilidade, achou exorbitante e quase
odiosa aquela pretensão.
— Ah! Foi você, engraçadinho? — disse ele. — Não vou lhe dar nada!
Deu uma chicotada no cavalo e saiu a galope.
Tinha perdido muito tempo em Hesdin e queria recuperá-lo. O
cavalinho era vigoroso e puxava por dois; mas era mês de fevereiro, havia
chovido, os caminhos estavam ruins. Além disso, já não era o tílburi; a
carriola era dura e pesada, e ainda havia muitas subidas.
Levou quase quatro horas para ir de Hesdin a Saint-Pol. Cinco léguas
em quatro horas.
Em Saint-Pol, parou na primeira estalagem que apareceu, e mandou
levar o cavalo para a estrebaria. Como prometera a Scaufflaire, manteve-
se por perto enquanto o cavalo comia, sempre pensando em coisas tristes e
confusas.
A mulher do estalajadeiro entrou na estrebaria e disse-lhe:
— O senhor não quer almoçar?
— Puxa, é mesmo! — disse ele. — Estou mesmo com bastante apetite.
E seguiu a mulher, que tinha um aspecto de frescor e alegria. Ela o
conduziu a uma sala onde as mesas tinham um oleado como toalha.
— Seja rápida — disse ele —, preciso partir o quanto antes; estou bem
apressado.
Uma gorda criada flamenga pôs a mesa rapidamente. Ele olhava para
ela com um sentimento de bem-estar.
— Era isso que eu tinha — pensou —; falta de almoço.
Foi servido; pegou o pão, deu uma mordida, tornou a colocá-lo devagar
sobre a mesa e não tocou mais nele. Um carroceiro comia em outra mesa;
ele lhe disse:
— Por que o pão daqui é tão amargo?
O homem era alemão e não entendeu.
Voltou à estrebaria, para perto do cavalo.
Uma hora depois, tinha deixado Saint-Pol, dirigindo-se para Tinques,
que fica apenas a cinco léguas de Arras.
O que ele fazia durante esse trajeto? Em que pensava? Via passar,
como pela manhã, as árvores, os tetos de colmo, os campos cultivados, e
as mudanças da paisagem que se desloca em cada curva do caminho. Essa
é uma contemplação que algumas vezes basta à alma, e quase a dispensa
de pensar. Ver mil objetos pela primeira e pela última vez, o que pode
haver de mais melancólico e mais profundo? Viajar é nascer e morrer a
cada instante. Talvez, nas mais vagas regiões de seu espírito, ele fizesse
paralelos entre aqueles horizontes cambiantes e a existência humana.
Todas as coisas desta vida fogem continuamente diante de nós. As sombras
e os clarões entremeiam-se. Após o ofuscar, um eclipse; olhamos, nos
apressamos, estendemos as mãos para agarrar o que passa; cada
acontecimento é uma mudança de caminho; e, de repente, estamos velhos.
Sentimos como que um abalo, tudo é negro, distinguimos uma porta
obscura, o sombrio cavalo da vida que nos arrastava para. Vemos alguém
desconhecido, coberto com um véu, desatrelá-lo nas trevas.
O crepúsculo caía quando as crianças que saíam da escola viram esse
viajante entrar em Tinques. É verdade que ainda estávamos nos dias curtos
do ano. Ele não parou ali. Quando saía da aldeia, um trabalhador que
assentava pedras na estrada ergueu a cabeça e disse:
— Esse cavalo aí está bem cansado.
Efetivamente, o pobre animal já não podia andar senão a passos lentos.
— O senhor vai para Arras? — acrescentou o trabalhador.
— Vou.
— Se continuar nesse ritmo, não chegará lá muito cedo.
Ele parou o cavalo e perguntou ao homem:
— Quanto há ainda daqui a Arras?
— Umas boas sete léguas.
— Mas como? O roteiro marca cinco léguas e um quarto.
— Ah! — tornou o trabalhador. — Então o senhor não sabe que essa
estrada está sendo reparada? Vai encontrá-la bloqueada a um quarto de
hora daqui, e não há meio de ir mais adiante.
— Verdade?
— Entre à esquerda no caminho que vai para Carency, depois passe o
rio; quando chegar a Camblin, entre à direita, é a estrada de Mont–Saint-
Éloy que vai para Arras.
— Mas logo será noite, posso me perder.
— O senhor não é da região?
— Não.
— Ainda mais isso; só tem atalhos. Olhe, senhor — tornou o homem
—, quer que eu lhe dê um conselho? Seu cavalo está cansado, volte para
Tinques. Tem uma boa estalagem. Durma lá e amanhã o senhor segue para
Arras.
— Tenho que estar lá esta noite.
— Aí é outra coisa. Mas vá assim mesmo à estalagem e arranje um
cavalo de reforço; o moço do cavalo pode guiá-lo pelo atalho.
Ele seguiu o conselho do homem, voltou e, meia hora depois, tornava a
passar pelo mesmo lugar, mas a galope, com um bom cavalo de reforço.
Um ajudante de estrebaria, que se dizia condutor de posta, ia sentado em
uma barra da carriola. Ele, porém, sentia que perdera muito tempo. Já era
noite fechada.
Pegaram um atalho. A estrada tornou-se medonha, e a carriola caía de
uma valeta em outra. Ele disse ao rapaz:
— Sempre a galope, e a gorjeta será em dobro.
Em um daqueles solavancos, o tirante se quebrou.
— Senhor — disse o rapaz —, o tirante está quebrado, não dá mais
para segurar meu cavalo; essa estrada é muito ruim à noite; se quiser
voltar para Tinques e pernoitar lá, poderíamos estar amanhã cedo em
Arras.
Ele respondeu:
— Você tem um pedaço de corda e uma faca?
— Tenho sim, senhor.
Cortou um galho de árvore e fez um tirante com ele.
Foram mais vinte minutos perdidos; partiram a galope outra vez.
A planície estava tenebrosa. Uma névoa baixa, espessa e escura subia
pelas colinas, espalhando-se como fumaça. Havia uns clarões
esbranquiçados nas nuvens. Um forte vento que soprava do mar fazia, em
todos os cantos do horizonte, o barulho de alguém arrastando móveis.
Tudo o que se entrevia tinha atitudes de terror. Quanta coisa se agita com
os vastos sopros da noite!
O frio o cortava. Ele não comia desde a véspera. Lembrava-se
vagamente de sua outra corrida noturna pela grande planície dos arredores
de Digne. Já fazia oito anos, mas parecia-lhe que tinha sido ontem.
Soou uma hora em algum campanário longínquo, e ele perguntou ao
moço:
— Que horas são?
— Sete horas, senhor; às oito estaremos em Arras; só nos faltam três
léguas.
Nesse momento fez, pela primeira vez, a seguinte reflexão, achando
estranho que ela não lhe tivesse ocorrido mais cedo: que talvez fosse inútil
todo o trabalho que tinha, porque nem sequer sabia a hora do julgamento;
que deveria ao menos ter-se informado; que era extravagante ir assim em
frente sem saber se aquilo serviria para alguma coisa. Depois, fez alguns
cálculos em sua consciência: que as sessões do júri normalmente
começavam às nove horas da manhã; que aquele julgamento não deveria
se alongar muito; que, para um roubo de maçãs, seria rápido; que, em
seguida, haveria apenas uma questão de identidade; quatro ou cinco
depoimentos, pouco o que dizer por parte dos advogados; que decerto
chegaria quando tudo estivesse acabado!
O rapaz chicoteava os cavalos. Já haviam passado o rio e deixado
Mont-Saint-Éloy para trás.
A noite tornava-se cada vez mais profunda.
Era uma antiga cantiga de ninar, com a qual outrora embalava sua
Cosette, e que não lhe voltava à memória desde que estava privada da
filhinha, havia cinco anos. Cantava com uma voz tão triste e um ar tão
doce, que era de fazer chorar até mesmo uma religiosa. A irmã, afeita às
coisas austeras, sentiu uma lágrima escorrer.
O relógio deu seis horas, mas foi como se Fantine não ouvisse. Parecia
que não reparava em coisa alguma à sua volta.
A irmã Simplice mandou uma criada informar-se com a zeladora da
fábrica se o prefeito já havia voltado, e se iria logo à enfermaria. A moça
voltou depois de alguns minutos. Fantine continuava imóvel, parecendo
atenta às próprias ideias.
A criada contou baixinho à irmã Simplice que o prefeito partira
naquela manhã, antes das seis horas, num tílburi pequeno, puxado por um
cavalo branco, apesar do frio que fazia; que partira só, até mesmo sem
cocheiro, não se sabendo o caminho que pegara; que uns diziam tê-lo visto
na estrada para Arras, outros afirmavam tê-lo encontrado na estrada para
Paris. Que, ao partir, estava como sempre muito afável, e que apenas disse
à porteira que não o esperasse aquela noite.
Enquanto as duas mulheres cochichavam de costas para a cama de
Fantine, a irmã perguntando e a criada fazendo conjecturas, Fantine, com a
vivacidade febril de certas moléstias orgânicas, que junta os movimentos
livres da saúde à magreza assustadora da morte, pusera-se de joelhos sobre
a cama, com as mãos crispadas apoiadas no travesseiro e a cabeça entre as
cortinas, e escutava. De súbito, exclamou:
— Estão falando do senhor Madeleine! Por que falam tão baixo? O que
ele está fazendo? Por que ele não vem hoje?
Sua voz estava tão áspera e rouca que as duas mulheres pensaram ter
ouvido uma voz de homem, e viraram-se assustadas.
— Então não respondem? — gritou Fantine.
A criada balbuciou:
— A zeladora me disse que ele não poderá vir hoje.
— Filha — disse a irmã —, fique tranquila e volte a deitar.
Fantine, sem mudar de atitude, voltou a falar alto e em tom, ao mesmo
tempo, imperioso e dilacerante:
— Ele não pode vir? E por quê? Vocês sabem a razão, estavam
cochichando; eu quero saber também.
A criada apressou-se em dizer no ouvido da religiosa:
— Responda que é porque ele está ocupado com o Conselho
Municipal.
A irmã Simplice corou, era uma mentira o que a criada lhe sugeria.
Mas, por outro lado, parecia-lhe que dizer a verdade à doente seria, com
certeza, dar-lhe um golpe terrível, o que era grave no estado de Fantine. O
rubor durou pouco; a irmã olhou para ela de um jeito calmo e triste, e
disse:
— O senhor prefeito partiu.
Fantine ergueu-se e sentou nos calcanhares; seus olhos brilharam e
uma alegria incomum surgiu naquela fisionomia sofrida.
— Partiu? — ela exclamou. — Ele foi buscar Cosette!
Depois levantou as mãos para o céu e sua expressão tornou-se inefável;
seus lábios remexiam-se, estava rezando em voz baixa.
Quando terminou sua oração, disse:
— Irmã, quero deitar novamente, vou fazer tudo que quiserem; há
pouco, fui maldosa, mas peço perdão por ter falado tão alto, é mau
costume falar alto, sei muito bem, boa irmã; mas veja como estou
satisfeita. Deus é bom, e o senhor Madeleine também; imagine que foi
buscar Cosette em Montfermeil.
Voltou a deitar-se, ajudou a religiosa a arrumar o travesseiro e beijou
uma cruzinha de prata que tinha no pescoço, a qual lhe fora dada pela irmã
Simplice.
— Filha — disse-lhe a irmã —, procure descansar agora, e não fale
mais.
Fantine tomou entre suas mãos úmidas a mão da irmã, que se afligia
por sentir-lhe aquele suor.
— Ele partiu esta manhã para ir a Paris; na verdade, ele nem precisa
passar por Paris. Vindo para cá, Montfermeil fica um pouco à esquerda.
Lembra-se do que ele me disse ontem, quando eu lhe falei de Cosette:
logo, logo? Ele quer fazer-me uma surpresa, sabe? Ele me fez assinar uma
carta para que os Thénardier entregassem a pequena. Eles não vão ter nada
a dizer, não é? Vão devolver Cosette, pois já estão pagos. As autoridades
não consentiriam que retivessem uma criança depois de estarem pagos.
Irmã, não me faça sinal de que não devo falar; sinto-me extremamente
feliz; estou muito bem, já não tenho mal nenhum. Vou rever Cosette! Até
estou com fome. Há quase cinco anos não a vejo. A senhora não imagina
como a gente gosta dos filhos! E ela deve estar tão linda! Se a senhora
soubesse os dedinhos rosados que ela tem! Agora deve estar com as mãos
bem bonitas. Quando tinha um ano, suas mãos eram pequenas assim! Deve
estar bem crescida, agora. Já está com sete anos! É uma senhorita. Eu a
chamo de Cosette, mas seu nome é Euphrasie. Sabe, esta manhã, eu olhava
para o pó que está na lareira, e isso me deu a ideia de que em breve eu iria
rever Cosette. Meu Deus, como a gente faz mal em passar tantos anos sem
ver nossos filhos. A gente devia considerar bem que a vida não é eterna!
Oh! Que bom que o senhor Madeleine foi buscá-la! É verdade que está
muito frio? Ele ao menos levou a capa? Será que ele volta amanhã? Vai ser
uma festa. Amanhã cedo, irmã, lembre-me de pôr minha touca de rendas.
Montfermeil é uma bela terra. Já fiz esse caminho a pé; para mim foi bem
distante. Mas as diligências andam muito depressa! Amanhã estará aqui
com Cosette. Quanto tem daqui a Montfermeil?
A irmã, que não tinha nenhuma ideia das distâncias, respondeu:
— Oh! Acho que ele deve estar aqui amanhã!
— Amanhã! Amanhã! — disse Fantine. — Vou ver Cosette amanhã!
Veja, irmã de Deus, já não estou doente. Estou enlouquecida; até dançaria,
se quisessem.
Quem a tivesse visto um quarto de hora antes não teria entendido nada.
Fantine agora estava rosada, falava com voz animada e natural, seu
semblante era apenas sorriso; ria, às vezes, falando em voz baixa. Alegria
de mãe é quase alegria de criança.
— Está bem — atalhou a religiosa —, você está toda feliz, então me
obedeça, não fale mais.
Fantine colocou a cabeça no travesseiro e disse a meia voz:
— Isso, deite e comporte-se, que sua filha vem aí. A irmã Simplice
tem razão; todos os que estão aqui têm razão.
E depois, sem se mexer nem mover a cabeça, pôs-se a olhar para todos
os lados, com os olhos muito abertos e um ar alegre no rosto. Não disse
mais nada. A irmã fechou novamente as cortinas esperando que ela
adormecesse.
Entre sete e oito horas, o médico voltou. Não ouvindo nenhum ruído,
achou que Fantine dormia, entrou devagarinho e aproximou-se da cama na
ponta dos pés. Entreabriu as cortinas, e, ao clarão da lamparina, viu seus
grandes olhos serenamente fixos nele.
— Doutor, vão deixar que ela durma em uma caminha a meu lado, não
é? — disse ela ao médico.
Ele pensou que ela delirasse.
— Olhe — acrescentou ela —, tem um lugar bem aqui.
O médico chamou irmã Simplice à parte, e ela explicou-lhe o caso: que
o senhor Madeleine estaria ausente por um ou dois dias, e, na dúvida, não
quiseram contrariar a doente, que pensava ter ele partido para
Montfermeil, até porque era possível que ela tivesse adivinhado. O médico
concordou. Aproximou-se outra vez da cama de Fantine, que retomou:
— É que, pela manhã, quando ela acordar, já vou dizer bom-dia à
minha pobre gatinha, e à noite, como não durmo, quero ouvi-la dormir; a
suave respiração dela vai me fazer bem.
— Dê-me sua mão — disse o médico.
Ela estendeu o braço e exclamou risonha:
— Ah! É mesmo, o senhor não sabe! Estou curada. Cosette chega
amanhã.
O médico ficou surpreso. Ela estava melhor; a opressão diminuíra, o
pulso havia retomado vitalidade. Uma espécie de vida inesperada
reanimava aquela pobre criatura extenuada.
— Doutor, a irmã lhe disse que o prefeito foi buscar meu anjinho?
O médico recomendou silêncio e que se evitasse qualquer emoção
mais forte. Receitou depois uma infusão de quinina pura, e uma
beberagem calmante, caso a febre voltasse à noite. Ao sair, disse à irmã:
— Ela está melhor. Se a sorte permitisse que o prefeito realmente
voltasse amanhã com a criança, quem sabe? Há crises tão espantosas; têm-
se visto grandes alegrias acabarem repentinamente com algumas
moléstias. Eu bem sei que esta é uma doença orgânica, e já muito
avançada, mas há tanto mistério nisso tudo! Talvez a salvássemos.
X. O SISTEMA DE NEGAÇÕES
Chegava o momento de fechar a sessão. O presidente mandou o réu
levantar-se e lhe fez a pergunta usual:
— Tem alguma coisa a acrescentar em sua defesa?
O homem, de pé, girando nas mãos um boné horrível, pareceu não
ouvir. O presidente repetiu a pergunta. Desta vez o homem ouviu, e
pareceu compreender. Fez o movimento de alguém que está acordando,
olhou em torno de si, olhou para o público, para os soldados, para seu
advogado, para os jurados e juízes, apoiou o enorme punho na beirada da
grade de madeira que ficava diante do banco em que estava, tornou a olhar
e, de repente, começou a falar, fixando seu olhar no promotor público. Foi
como uma erupção. Parecia, pelo modo como saíam-lhe da boca,
incoerentes, impetuosas, quebradas, misturadas, que as palavras se
apressavam para saírem todas ao mesmo tempo. Ele disse:
— O que tenho a dizer é isto: que eu fazia carros em Paris, que
trabalhava com o senhor Baloup. É uma situação difícil. Nessa coisa de
fazer carros, a gente sempre trabalha ao ar livre, em pátios, ou em algum
lugar coberto, quando se tem bons patrões, mas nunca em oficinas
fechadas, porque precisa de espaço, sabe. No inverno, a gente sente tanto
frio que, para se esquentar, esfrega as mãos e os braços, mas os patrões
não gostam, porque dizem que se perde tempo. Mexer com ferro, quando
tudo está coberto de neve, é duro; isso acaba depressa com um homem.
Envelhece a gente antes do tempo; aos quarenta anos o homem está gasto.
Eu tinha cinquenta e três, e andava bem mal. E, ainda por cima, os
operários são uma corja. Se um homem já não é novo como eles, o
chamam de velho tonto, de besta velha. Eu não ganhava mais que trinta
soldos por dia, me pagavam o mais barato possível, os patrões se
aproveitavam da minha idade. E também eu tinha uma filha lavadeira de
beira de rio. Ela ganhava um pouquinho com o trabalho dela, pra nós dois
estava dando. Era difícil para ela também. O dia inteiro, metida em uma
tina até a cintura, com chuva, com neve, com aquele vento de cortar; se cai
geada, dá na mesma, tem que lavar. Muitas pessoas não têm lá muita roupa
e ficam esperando; se a gente não lava, perde freguês. As pranchas são mal
coladas, e cai água na gente por todo lado. E fica com a saia toda molhada.
Aquilo penetra. Ela também trabalhou na lavanderia Enfants Rouges; lá, a
água vem pelas torneiras. Lá não tem tina. É para lavar com a água que
vem da torneira e depois enxaguar no tanque. Como aquilo é fechado, a
gente sente menos frio no corpo; mas tem um vapor que sai da água quente
que é terrível, que acaba com a vista. Ela voltava às sete horas da noite, e
logo se deitava, de tão cansada. O marido ainda batia nela. Ela morreu. A
gente nunca foi muito feliz. Era uma moça boa, muito sossegada. Ainda
me lembro de uma terça-feira gorda em que ela foi deitar às oito horas,
isso mesmo. É verdade. É só perguntar. Ah! Ora essa, perguntar! Como sou
tolo! Paris é enorme; quem é que conhece o Pai Champmathieu? Mas eu já
disse, o senhor Baloup; é só perguntar na casa do senhor Baloup. Daí, não
sei mais o que querem de mim.
Calou-se e ficou ainda de pé. Ele disse essas coisas depressa, em voz
alta, rouca, dura e com uma espécie de ingenuidade irritada e selvagem.
Uma vez interrompeu-se para saudar alguém na multidão. As palavras que
parecia lançar ao acaso vinham-lhe como soluços; ele acrescentava a cada
uma delas o gesto de um lenhador que racha a lenha. Quando acabou de
falar, a plateia desatou a rir. Ele olhou para o público, vendo que todos
riam, e, não entendendo por que, pôs-se também a rir.
Aquilo era sinistro.
O presidente, homem benévolo e atencioso, elevou então a voz.
Lembrou aos “senhores jurados” que “o senhor Baloup, antigo mestre
carpinteiro, na casa de quem o réu dizia ter trabalhado, fora inutilmente
citado, porque havia falecido, e não pudera ser encontrado”. Depois,
voltando-se para o réu, pediu-lhe que escutasse o que ia dizer e
acrescentou:
— O senhor está em uma situação em que deve refletir. Pesam sobre o
senhor as mais graves presunções, que podem trazer-lhe consequências
fatais. Réu, em seu interesse o interrogo pela última vez; explique-se com
muita clareza sobre estes dois pontos: primeiro, saltou, sim ou não, o muro
do quintal de Pierron, quebrou o ramo e roubou as maçãs, isto é, cometeu
o crime de roubo com escalada? Segundo, é ou não o antigo forçado Jean
Valjean?
O réu abanou a cabeça como quem entendeu muito bem e sabe o que
vai responder. Abriu a boca, voltou-se para o presidente e disse:
— Primeiro…
Depois olhou para o boné, olhou para o teto e calou-se.
— Réu — disse o promotor com voz severa —, preste atenção. O
senhor não responde a nada do que lhe perguntam; sua perturbação pode
condená-lo. É evidente que não se chama Champmathieu, que é o forçado
Jean Valjean disfarçado, primeiro, com o nome de Jean Mathieu, que era o
sobrenome de sua mãe; que o senhor foi para Auvergne e que nasceu em
Faverolles, onde foi podador. É evidente que roubou, depois de ter saltado
o muro, umas maçãs maduras da chácara Pierron. Os senhores jurados irão
levar tudo em conta.
O réu, que voltara a sentar-se, levantou-se rapidamente quando o
promotor acabou de falar, e exclamou:
— O senhor é muito maldoso! O que eu queria dizer era isto, mas antes
não consegui: eu não roubei nada. Eu sou um homem que nem come todo
dia. Eu vinha de Ailly, eu andava pela região depois de desabar uma
grande carga d’água que deixou tudo amarelo pelos campos, com os
charcos transbordando e só deixando ver alguma areia e umas pontinhas de
mato nas beiras da estrada; achei um galho quebrado no chão, com
algumas maçãs, que eu peguei, sem imaginar que ia me causar tanto
problema. Faz três meses que eu estou preso e que andam às voltas
comigo. Depois disso, não sei explicar, falam contra mim, me dizem:
responda! O guarda, que é bom rapaz, me dá sinal com o cotovelo e diz
baixinho: anda, responde. Mas eu não sei explicar, não tenho estudo, eu
sou um homem pobre. É isso que fazem mal de não ver. Eu não roubei
nada, só peguei o que estava no chão. Os senhores falam de Jean Valjean,
Jean Mathieu! Eu não conheço esses homens. São do interior. Eu trabalhei
com o senhor Baloup, bulevar de l’Hôpital. Eu me chamo Champmathieu.
São muito espertos para me dizerem onde eu nasci. Eu mesmo não sei.
Nem todo o mundo tem uma casa para vir ao mundo; seria muito cômodo.
Eu acho que meu pai e minha mãe eram gente que andava na estrada; não
sei mais do que isso. Quando eu era criança, me chamavam de Pequeno,
agora me chamam de Velho. São esses os meus nomes de batismo.
Encarem isso como quiserem. Eu estive em Auvergne, estive em
Faverolles, caramba! E daí? Então não se pode ter estado em Auvergne e
em Faverolles sem ter estado nas galés? Estou dizendo que eu sou o Pai
Champmathieu e que eu não roubei nada. Trabalhei com o senhor Baloup,
ali foi meu domicílio. No fim das contas, estão me aborrecendo com seus
disparates! Por que todo o mundo anda tão encarniçado atrás de mim?
O promotor, que permanecera de pé, dirigiu-se ao presidente:
— Senhor presidente, em vista das negações confusas, mas sobremodo
hábeis do réu, que bem gostaria de se fazer passar por idiota, mas não
conseguirá — desde já o prevenimos —, requeremos que tenha a bondade,
bem como os senhores jurados, de tornar a chamar a este recinto os
condenados Brevet, Cochepaille e Chenildieu, e o inspetor de polícia
Javert, para interrogá-los uma última vez sobre a identidade do réu como o
forçado Jean Valjean.
— Faço uma observação ao senhor advogado-geral — disse o
presidente —; que o inspetor de polícia Javert, chamado pelas obrigações
do cargo à capital de um distrito vizinho, saiu da casa de audiências, e até
da cidade, assim que prestou seu depoimento. Foi-lhe concedida
autorização, com o consentimento do senhor, promotor, e do advogado de
defesa.
— Exato, senhor presidente — replicou o promotor. — Na ausência do
senhor Javert, julgo ser meu dever lembrar aos senhores jurados o que ele
disse aqui há poucas horas. Javert é um homem estimado, que, por sua
rigorosa e estrita probidade, honra as inferiores, mas importantes, funções
que exerce. São estes os termos de seu depoimento:
“Eu não preciso de presunções morais, nem mesmo de provas
materiais que desmintam as negativas do réu. Reconheço-o perfeitamente.
Esse homem não se chama Champmathieu; é um antigo forçado, muito
perigoso e muito temido, chamado Jean Valjean. Foi liberado após o
cumprimento de sua pena, mas com extrema reserva. Sofreu dezenove
anos de trabalhos forçados por roubo qualificado. Por cinco ou seis vezes
tentou evadir-se. Além do roubo Pequeno-Gervais e do roubo Pierron, é
suspeito de um roubo à Sua Grandeza, o falecido bispo de Digne. Eu o vi
muitas vezes enquanto trabalhei como guarda da prisão de Toulon. Repito,
reconheço-o perfeitamente”.
Essa declaração tão precisa parece ter produzido viva impressão no
público e nos jurados. O promotor terminou insistindo para que, na falta
de Javert, as três testemunhas, Brevet, Chenildieu e Cochepaille, fossem
ouvidas novamente e solenemente interrogadas.
O presidente transmitiu a ordem a um oficial de justiça, e, um instante
depois, abriu-se a porta da sala de testemunhas. O oficial, acompanhado de
um guarda, pronto a usar da força, trouxe o sentenciado Brevet. O
auditório estava em suspense e todos os corações palpitavam como se
tivessem uma só alma.
O antigo forçado Brevet usava a vestimenta preta e parda das prisões
centrais. Era uma figura de uns sessenta anos, com aparência de homem de
negócios e ar de velhaco, duas coisas que às vezes andam juntas. Na
prisão, para onde novos delitos o reconduziram, tornara-se uma espécie de
chaveiro; era um homem de quem os chefes diziam: “Ele procura ser útil”.
Os capelães davam boas informações sobre seus hábitos religiosos. Deve-
se levar em conta que isso se passava no tempo da Restauração.
— Brevet — disse o presidente —, o senhor recebeu uma sentença
infamante e, por isso, não pode prestar juramento.
Brevet baixou os olhos.
— Todavia — continuou o presidente —, mesmo em um homem
degradado pela lei pode ainda restar, quando a misericórdia divina o
permite, um sentimento de honra e equidade. É a esse sentimento que faço
apelo nesta hora decisiva. Se, como espero, ele ainda existe dentro do
senhor, reflita antes de me responder, considere, de um lado, aquele
homem, que uma palavra sua pode condenar, e, de outro lado, a justiça,
que uma palavra sua pode esclarecer. O momento é solene, e ainda é tempo
de se retratar, se acredita ter se enganado. Réu, levante-se. Brevet, olhe
bem para o réu, junte suas lembranças e diga-nos, de toda a alma e
consciência, se persiste em reconhecer neste homem seu antigo
companheiro de galés Jean Valjean.
Brevet olhou para o réu e depois voltou-se para os jurados.
— Sim, senhor presidente. Fui eu quem primeiro o reconheceu, e
persisto. Este homem é Jean Valjean, chegou a Toulon em 1796 e saiu em
1815. No ano seguinte, saí eu. Ele agora tem uma aparência rude, mas
deve ser a idade que o embruteceu; na prisão era um dissimulado.
Reconheço-o positivamente.
— Vá sentar-se — disse o presidente. — Réu, fique de pé.
Foi introduzido Chenildieu, forçado para sempre, como indicava sua
vestimenta vermelha e seu boné verde. Estava cumprindo a pena nas galés
de Toulon, de onde fora tirado para participar desse julgamento. Era um
homem pequeno, de seus cinquenta anos, vivo, cheio de rugas, de aspecto
doentio, amarelado, atrevido, febril, que tinha, nos membros e em toda a
sua pessoa, certa fraqueza doentia, e, no olhar, uma força imensa. Os
companheiros de prisão deram-lhe o apelido de Nega-a-Deus.
O presidente dirigiu-lhe praticamente as mesmas palavras que a
Brevet. Quando lembrou-lhe que sua infâmia tirava-lhe o direito de prestar
juramento, Chenildieu ergueu a cabeça e encarou a multidão. O presidente
pediu-lhe que se concentrasse e perguntou-lhe, como a Brevet, se persistia
em reconhecer o acusado.
Chenildieu desatou a rir.
— Ora essa! Se o reconheço? Pois nós andamos cinco anos presos à
mesma corrente. Vai ficar com essa cara, meu velho?
— Vá sentar-se — disse o presidente.
O oficial conduziu Cochepaille, outro sentenciado a prisão perpétua,
que vinha das galés vestido de vermelho como Chenildieu; era um
camponês de Lourdes, quase um urso dos Pirineus, fora guardador de
rebanhos nas montanhas e, de pastor, passara a salteador. Cochepaille não
era menos selvagem do que o réu, e parecia ainda mais estúpido. Era um
desses homens infelizes que a natureza esboçou como animal bravio e a
sociedade faz acabar como forçado.
O presidente tentou comovê-lo com algumas palavras patéticas e
graves e perguntou-lhe, como aos outros dois, se persistia, sem hesitação
nem perturbação, em reconhecer o homem de pé diante dele.
— É Jean Valjean — disse Cochepaille. — Por sinal era chamado de
Jean-le-Cric, de tão forte que era.
Cada uma das afirmações dos três homens, evidentemente sinceras e
de boa-fé, tinha produzido no auditório um murmúrio de mau agouro para
o réu, murmúrio que crescia e se prolongava por mais tempo todas as
vezes que uma nova declaração vinha acrescentar-se à precedente. O réu as
escutara com o ar de espanto que, segundo a acusação, era o seu principal
meio de defesa. Na primeira, os guardas próximos a ele ouviram-no
resmungar por entre dentes: “Ah, bom! Um já foi!” Após a segunda, disse
em voz um tanto mais alta e com ar quase satisfeito: “Que bom!” Na
terceira, exclamou: “Maravilha!”
O presidente o interpelou:
— Senhor réu, ouviu o que foi dito; que tem agora a dizer?
Ele respondeu:
— Eu digo: que maravilha!
Um rumor começou entre o público, e quase tomou conta do júri. Era
evidente que o homem estava perdido.
— Oficiais — disse o presidente —, mandem fazer silêncio. Vou
encerrar os debates.
Neste momento, houve um movimento ao lado do presidente. Ouviu-se
uma voz gritando:
— Brevet, Chenildieu, Cochepaille, olhem para este lado.
Todos os que ouviram essa voz sentiram-se gelados, tanto ela era
lamentosa e terrível. Todos os olhos se voltaram para o ponto de onde ela
vinha. Um homem, que estava entre os espectadores privilegiados
sentados atrás dos juízes, acabava de levantar-se, abrira a porta que
separava o tribunal do pretório, e estava de pé no meio da sala.
O presidente, o advogado-geral, o senhor Bamatabois, vinte pessoas o
reconheceram e exclamaram ao mesmo tempo:
— Senhor Madeleine!
__________________________
1 Esse parêntese é da mão de Jean Valjean. (N. A.)
2 Jacques-Bégnine Bossuet (1627-1704) bispo e teólogo francês. Nesse trecho o autor faz
referência ao seu discurso em uma ocasião fúnebre, na qual exemplificou o amor materno por
meio da galinha e seus pintinhos.
LIVRO VIII
CONTRAGOLPE
IV. A
Quem quiser ter uma ideia clara da batalha de Waterloo só precisa
imaginar um A maiúsculo deitado no chão. A perna esquerda do A é a
estrada de Nivelles, a perna direita é a estrada de Genappe e a travessa do
A o caminho de Ohain a Braine-l’Alleud. O vértice do A é Mont–Saint-
Jean, onde está Wellington; a extremidade inferior esquerda, Hougomont,
onde está Reille com Jérôme Bonaparte; a extremidade inferior direita é
Belle-Alliance, onde está Napoleão. Um pouco abaixo do ponto em que a
travessa do A encontra e corta a perna direita, fica Haie-Sainte. O meio
dessa travessa é o ponto exato onde foi dita a palavra final da batalha. Ali
foi colocado o leão, símbolo involuntário do supremo heroísmo da guarda
imperial.
O triângulo compreendido entre o vértice, as duas pernas e a travessa
do A é o planalto de Mont-Saint-Jean. A batalha toda se resumiu à disputa
por esse planalto.
As alas dos dois exércitos estendem-se à direita e à esquerda das duas
estradas, a de Genappe e a de Nivelles, Erlon fazendo frente a Picton e
Reille a Hill.
Por trás da extremidade do A, atrás do planalto de Mont-Saint-Jean,
fica a floresta de Soignes.
Quanto à planície em si, deve-se imaginar um vasto terreno ondulante,
cada dobra dominando a dobra seguinte, e todas as ondulações subindo
para o Mont-Saint-Jean, até terminarem na floresta.
Dois exércitos inimigos em um campo de batalha são como dois
lutadores em um corpo a corpo; cada qual procura derrubar o outro,
agarrando-se àquilo que encontra; um arbusto é um ponto de apoio; um
canto de muro, uma proteção; por falta de uma casinhola onde se encostar,
um regimento pode ceder; um rebaixe na planície, um movimento do
terreno, um atalho transversal em boa hora, um bosque, um barranco,
podem segurar o calcanhar deste colosso chamado exército, impedindo-o
de recuar. Quem sair de campo é vencido. Daí a necessidade que tem o
chefe responsável de examinar o menor grupo de árvores, o menor relevo.
Os dois generais tinham estudado com toda a atenção a planície de
Mont-Saint-Jean, hoje chamada planície de Waterloo. Desde o ano
anterior, Wellington a examinava, com previdente sagacidade, para o caso
de uma grande batalha. Em 18 de junho, neste terreno e para aquele duelo,
Wellington estava do melhor lado, Napoleão do pior. O exército inglês
estava no alto, o exército francês embaixo.
Esboçar aqui o aspecto de Napoleão a cavalo, luneta em punho, nos
altos de Rossomme, na madrugada de 18 de junho de 1815, seria uma
coisa quase supérflua. Antes de ser mostrado, todos já o viram. Esse perfil
sereno, coberto com o pequeno chapéu da Escola de Brienne, de uniforme
verde, com o forro branco escondendo as medalhas, o sobretudo
escondendo as dragonas, a dobra do cordão vermelho sobre o colete, o
cavalo branco com sua capa de veludo púrpura tendo nos cantos letras N
coroadas e águias, botas de montar sobre meias de seda, esporas de prata,
espada de Marengo, toda essa figura de último César, de velho militar com
modos de soldado, paira nas imaginações, aclamada por uns, severamente
vista por outros.
Essa figura permaneceu por muito tempo imersa em luz; isso provinha
de certa obscuridade lendária que a maior parte dos heróis emanam e que
esconde, por mais ou menos tempo, a verdade; hoje, porém, a luz e a
história se fazem.
Esta luz, a história, é impiedosa; o que ela tem de estranho e divino é
que, por mais luminosa que seja, e precisamente por isso, com frequência,
faz sombra onde se via claridade; do mesmo homem, ela faz dois
fantasmas diferentes, e um ataca o outro, as trevas do déspota lutam com o
resplendor do capitão, mas ela faz justiça a ambos. Daí uma medida mais
exata para a definitiva apreciação dos povos. Babilônia violada, diminui
Alexandre; Roma acorrentada, diminui César; Jerusalém destruída,
diminui Tito. A tirania segue o tirano. Desgraçado o homem que deixa
atrás de si a sombra de sua forma.
IX. O INESPERADO
Eles eram três mil e quinhentos. Formavam uma vanguarda de um
quarto de légua. Eram gigantes montados em cavalos colossais. Vinte e
seis esquadrões. Tinham em sua retaguarda, para apoiá-los, a divisão de
Lefebvre-Desnouettes, cento e seis soldados de elite, os caçadores da
guarda, mil cento e noventa e sete homens, e os lanceiros da guarda,
oitocentos e oitenta lanças. Usavam capacetes sem penacho, couraças de
ferro batido, pistolas nos coldres e o longo sabre-espada. Pela manhã, todo
o exército os admirou quando, às nove horas, ao toque dos clarins, todos
cantavam velemos pela salvação do Império; vieram em coluna cerrada,
uma de suas baterias ao lado e a outra ao centro, colocar-se em duas filas
entre as estradas de Genappe e Frischemont, e tomaram seu lugar para a
batalha na potente segunda linha tão sabiamente composta por Napoleão, a
qual, tendo em sua extremidade esquerda os encouraçados de Kellermann
e na extremidade direita os encouraçados de Milhaud, era composta, pode-
se dizer, por duas alas de ferro.
O ajudante de campo Bernard levou-lhes a ordem do imperador. Ney
desembainhou a espada e pôs-se à frente dos enormes esquadrões que
começaram a mover-se.
Toda aquela cavalaria, sabres em punho, estandartes e trombetas ao
vento, formada em duas colunas, desceu com um movimento uniforme,
parecendo um só homem, e, com a exatidão de um aríete de bronze que
abre uma brecha, a colina de Belle-Alliance, entranhou-se no terrível vale
onde já tantos homens haviam caído, e desapareceu na fumaça, saindo em
seguida daquela sombra para reaparecer do outro lado, sempre cerrada e
compacta, subindo a galope, em meio a uma chuva de metralha, a
medonha rampa de lama que conduzia ao alto de Mont-Saint-Jean.
Eles subiam, graves, ameaçadores, imperturbáveis; nos intervalos da
fuzilaria e da artilharia, ouvia-se um tropel colossal. Eram duas divisões,
formavam duas colunas; a divisão Wathier à direita, a divisão Delord à
esquerda. De longe, acreditava-se ver, alongando-se em direção ao topo do
planalto, duas imensas serpentes de aço. Aqueles homens atravessaram o
campo de batalha como um prodígio.
Nada parecido era visto desde a tomada do grande reduto de Moscou
pela forte cavalaria; ali faltava Murat, mas Ney estava de volta. Parecia
que aquela massa se convertera em monstro e não tinha mais que uma
alma. Cada esquadrão ondulava e inchava como os anéis de um pólipo. Era
possível distingui-los através de uma vasta nuvem de fumaça que se abria
aqui e ali. Era uma confusão de capacetes, de gritos e sabres, de saltos
impetuosos dos cavalos ao estrondo dos canhões e das fanfarras, tumulto
disciplinado, mas terrível, e, acima de tudo isso, as couraças, como
escamas sobre a hidra.
Parecem histórias de outras eras. Algo parecido com essas visões
provavelmente aparecia nas antigas epopeias órficas, em que se descrevem
homens-cavalos, os lendários centauros, titãs com rosto humano e corpo
equestre, que escalaram o Olimpo, horríveis, invulneráveis, sublimes;
deuses e animais.
Estranha coincidência numérica, vinte e seis batalhões iam receber os
vinte e seis esquadrões. Por trás da crista do planalto, à sombra da bateria
oculta, a infantaria inglesa, formada em treze quadrados, dois batalhões
em cada, e em duas linhas, sete na primeira, seis na segunda, armas nos
ombros, fazendo pontaria para o que viesse, calma, muda, imóvel,
esperava. Os soldados ingleses não viam os encouraçados, nem estes viam
os soldados ingleses. Os ingleses ouviam subir aquela maré de homens;
ouviam aumentar o ruído dos três mil cavalos, o bater alternado e
simétrico dos cascos a galope, o atrito das couraças, o tinir dos sabres e
uma espécie de enorme sopro feroz. Houve um silêncio terrível e depois,
subitamente, uma fila de braços erguidos brandindo sabres apareceu no
horizonte, e os capacetes, e as trombetas, e os estandartes, e três mil
cabeças com bigodes cinzentos, gritando: viva o imperador! Toda essa
cavalaria desembocou no planalto, e foi como o começo de um terremoto.
De repente, coisa trágica, à esquerda dos ingleses, à nossa direita, a
vanguarda da coluna dos encouraçados empinou-se com um clamor
medonho. Chegados ao ponto culminante da crista, desenfreados,
entregues à sua fúria e à sua corrida de extermínio em direção aos
quadrados e canhões, acabavam de perceber um fosso, uma vala entre eles
e os ingleses. Era o caminho de Ohain.
Foi medonho aquele momento. O barranco estava ali, inesperado,
escancarado, na vertical sob as patas dos cavalos, a uma profundidade de
duas toesas entre suas margens; a segunda fileira empurrou a primeira, a
terceira empurrou a segunda; os cavalos empinavam-se, atiravam-se para
trás, escorregavam com as quatro patas no ar e caíam de costas,
derrubando e ferindo os cavaleiros; sem meios de recuar, a coluna toda
transformou-se em projétil, a força adquirida para massacrar os ingleses
massacrou os franceses. O barranco inexorável enchia-se, cavaleiros e
cavalos rolavam ali misturados, enroscados uns nos outros, formando uma
só carne naquele abismo, e, quando a vala ficou cheia de homens vivos, o
restante passou por cima. Quase um terço da brigada desabou naquele
abismo.
Aí começava a perda da batalha.
Diz uma tradição local, evidentemente exagerada, que dois mil cavalos
e mil e quinhentos homens ficaram sepultados no caminho de Ohain. Esse
número verdadeiramente compreende todos os outros cadáveres que no dia
seguinte ao combate foram lançados àquela vala.
Note-se, de passagem, que foi essa brigada Dubois, tão funestamente
exposta, que, uma hora antes, indo isoladamente à carga, tomara a
bandeira do batalhão de Lunebourg.
Napoleão, antes de ordenar esse ataque dos encouraçados de Milhaud,
havia escrutado o terreno, mas não pôde ver o barranco, que não formava
uma ruga sequer na superfície do planalto. Avisado, porém, e como que
despertado pela pequena capela branca que marca o ângulo da estrada de
Nivelles, talvez receoso da eventualidade de qualquer obstáculo, fez uma
pergunta ao guia Lacoste. O guia respondeu que não. Poderíamos quase
dizer que desse gesto de cabeça de um camponês originou-se a catástrofe
de Napoleão.
Outras fatalidades ainda deveriam surgir.
Era possível que Napoleão ganhasse essa batalha? Respondemos que
não. Por quê? Por causa de Wellington? Por causa de Blucher? Não. Por
causa de Deus.
Bonaparte vencedor em Waterloo, isso não mais figurava na lei do
século XIX. Preparava-se uma outra série de fatos na qual Napoleão já não
tinha lugar. Havia muito que a má vontade dos acontecimentos fora
anunciada.
Era tempo desse grande homem cair.
O excessivo peso desse homem nos destinos humanos perturbava o
equilíbrio. Esse indivíduo contava, sozinho, mais que o grupo universal. A
superabundância de toda vitalidade humana concentrada em uma única
mente, o mundo subindo à cabeça de um homem, seria mortal para a
civilização se isso se prolongasse. Chegara o momento de a incorruptível
equidade suprema intervir. Provavelmente os princípios e os elementos de
que dependem as gravitações regulares, tanto na ordem moral como na
ordem material, se queixaram. O sangue ainda quente, o atulhamento dos
cemitérios, as mães em lágrimas, são justificativas temíveis. Quando a
terra sofre de uma sobrecarga, há misteriosos gemidos da sombra ouvidos
pelo abismo.
Napoleão fora denunciado ao infinito, e sua queda estava decidida.
Ele constrangia Deus.
Waterloo não foi apenas uma batalha; foi a mudança de aspecto do
universo.
X. O PLANALTO DE MONT-SAINT-JEAN
Ao mesmo tempo que o barranco, a bateria inglesa se desmascarava.
Sessenta canhões e os homens formados nos treze quadrados
fulminaram os encouraçados à queima-roupa. O intrépido general Delord
fez a saudação militar à bateria inglesa.
Toda a artilharia volante inglesa entrou a galope nos quadrados; os
encouraçados nem sequer tiveram tempo de parar. O desastre do barranco
dizimou-os, mas não os desencorajou. Eram desses homens que,
diminuídos em número, crescem em coragem.
Só a coluna Wathier sofrera o desastre; a coluna Delord, que Ney
desviara para a esquerda como se tivesse pressentido a cilada, chegara
inteira.
Os encouraçados precipitaram-se sobre os esquadrões ingleses.
Arrastando-se no chão, rédeas soltas, sabre nos dentes e pistolas nas
mãos, assim foi o ataque.
Nas batalhas, há alguns momentos em que a alma endurece o homem a
ponto de transformar o soldado em estátua e fazer de toda carne, granito.
Os batalhões ingleses, assaltados desvairadamente, não se moveram.
Então, foi medonho.
Todos os lados dos quadrados ingleses foram atacados ao mesmo
tempo. Um redemoinho frenético os envolveu. Aquela fria infantaria ficou
impassível. A primeira fileira, de joelhos, recebia os encouraçados nas
pontas das baionetas, a segunda os fuzilava; atrás da segunda fileira, os
canhoneiros carregavam os canhões, a frente do quadrado se abria para
deixar passar uma erupção de metralha e tornava a fechar-se. Os
encouraçados respondiam massacrando. Seus grandes cavalos empinavam-
se, saltavam as fileiras, pulavam por cima das baionetas e caíam,
gigantescos, no meio daqueles quatro muros vivos. As balas faziam
aberturas nos encouraçados, os encouraçados abriam brechas nos
quadrados. Filas de homens desapareciam esmagadas sob os cavalos, as
baionetas enterravam-se nos ventres daqueles centauros. Era uma
deformidade de feridas que não se viu, talvez, em nenhuma outra situação.
Os quadrados arruinados por aquela cavalaria enfurecida encolhiam-se
sem vacilar. Com inesgotável metralha, continuavam a explodir em meio
aos assaltantes. Era monstruoso o aspecto do combate. Os quadrados não
eram mais batalhões, eram crateras; os encouraçados não mais uma
cavalaria, mas uma tempestade. Cada quadrado era um vulcão atacado por
uma nuvem; a lava combatendo o raio.
O quadrado da extrema direita, o mais exposto de todos por estar
muito à vista, foi quase aniquilado nos primeiros choques; era formado
pelo 75º regimento de highlanders, soldados provenientes das terras altas
escocesas. O tocador de gaita de fole, postado no centro, instrumento
embaixo do braço, enquanto exterminavam-se ao seu redor, continuava
tocando árias montanhesas, sentado em um tambor, distraído, o olhar
melancólico, cheio do reflexo das florestas e dos lagos. Os escoceses
morriam pensando em Ben Lothian, como morriam os gregos recordando-
se de Argos. O sabre de um encouraçado, abatendo o instrumento e o braço
que o segurava, fez cessar o canto ao matar o cantor.
Os encouraçados, relativamente pouco numerosos, minimizados na
catástrofe do barranco, tinham contra eles quase todo o exército inglês,
mas pareciam multiplicar-se, cada homem valendo por dez. No entanto,
alguns batalhões hanoverianos curvaram-se. Wellington, vendo isso,
pensou em sua cavalaria. Se Napoleão, naquele mesmo momento, tivesse
pensado em sua infantaria, teria vencido a batalha. Esse esquecimento foi
seu erro fatal.
De repente, os encouraçados que atacavam sentiram-se atacados. A
cavalaria inglesa vinha pela retaguarda. À frente deles, os quadrados, por
trás, Somerset; Somerset: eram os mil e quatrocentos dragões-guardas,
tendo, à sua direita, Dornberg com a cavalaria ligeira alemã e, à esquerda,
Trip, com os carabineiros belgas. Os encouraçados atacados pelo flanco,
por cima, pela frente e pela retaguarda, pela infantaria e pela cavalaria,
tiveram de fazer frente por todos os lados. Que lhes importava? Eram um
turbilhão. Sua bravura tornou-se inexprimível.
Além disso, tinham ainda pela retaguarda a artilharia sempre troando.
Só assim aqueles homens podiam ser feridos pelas costas. Uma de suas
couraças, com um buraco de bala na omoplata esquerda, encontra-se na
coleção do Museu de Waterloo.
Para franceses como aqueles, nada menos que ingleses como aqueles.
Aquilo não foi um combate, foi uma sombra, uma fúria, um
arrebatamento vertiginoso de almas e corações, um relampejar de espadas.
Em um instante, os mil e quatrocentos dragões-guardas ficaram reduzidos
a oitocentos; Fuller, seu tenente-coronel, caiu morto. Ney acorreu com os
lanceiros e os caçadores de Lefebvre-Desnouettes, e o planalto de Mont-
Saint-Jean foi tomado, perdido e retomado; os encouraçados deixavam a
cavalaria para voltarem à infantaria, ou, melhor dizendo, era uma
formidável confusão onde todos se agarravam, sem que uns largassem dos
outros. Os quadrados continuavam resistindo. Houve doze ataques. Ney
teve quatro cavalos mortos. Metade dos encouraçados ficou sobre o
planalto. A luta durou duas horas.
O exército inglês ficou profundamente abalado. Não há dúvida de que,
se não tivessem enfraquecido no primeiro choque com o desastre do
barranco, os encouraçados teriam destruído o centro e decidido a vitória.
Essa cavalaria extraordinária petrificou Clinton, que presenciara Talavera
e Badajoz. Wellington, praticamente vencido, admirava heroicamente.
Dizia a meia voz: “Sublime!”9
Os encouraçados aniquilaram sete dos treze quadrados; tomaram ou
inutilizaram sessenta canhões, e arrebataram aos regimentos ingleses seis
bandeiras, que três encouraçados e três caçadores foram levar ao
imperador na fazenda de Belle-Alliance.
A situação de Wellington piorara. Aquela estranha batalha era como
um encarniçado duelo entre dois feridos que, cada um por seu lado,
sempre combatendo e resistindo, perderam todo o seu sangue. Qual deles
cairá primeiro?
A luta do planalto continuava.
Até onde chegaram os encouraçados? Ninguém poderá dizer. O certo é
que, no dia seguinte à batalha, um encouraçado e seu cavalo foram
encontrados mortos junto ao madeiramento da balança onde são pesadas as
carruagens em Mont-Saint-Jean, no exato ponto em que se entrecruzam as
quatro estradas de Nivelles, Genappe, La Hulpe e Bruxelas. Esse cavaleiro
tinha atravessado as linhas inglesas. Um dos homens que retiraram seu
cadáver ainda vive em Mont-Saint-Jean. Chama-se Dehaze e tinha então
dezoito anos.
Wellington sentia-se enfraquecer. A crise estava próxima.
Os encouraçados não tiveram êxito em derrotar o centro. Sendo o
planalto de todos, não era de ninguém, mas, em suma, a maior parte dele
ficara para os ingleses. Wellington apossara-se da aldeia e da planície mais
elevada; Ney tinha a crista e a encosta. Os dois lados pareciam arraigados
àquele solo fúnebre.
Mas o enfraquecimento dos ingleses parecia irremediável. Era horrível
a hemorragia daquele exército. Kempt, na ala esquerda, reclamava reforço.
Não há reforço, respondia Wellington. Que se deixe matar! E quase ao
mesmo tempo, singular paralelo que mostra o esgotamento dos dois
exércitos, Ney pedia infantaria a Napoleão e Napoleão exclamava:
Infantaria? Onde ele quer que eu a arranje? Quer que eu a fabrique?
O exército inglês era o mais enfermo. Os impulsos furiosos daqueles
grandes esquadrões, em couraças de ferro e peitos de aço, haviam moído a
infantaria. Alguns homens em volta de uma bandeira marcavam a posição
de um regimento, alguns batalhões eram comandados apenas por um
capitão ou por um tenente; a divisão Alten, já tão maltratada em Haie-
Sainte, estava quase destruída; os intrépidos belgas da brigada Van Kluze
cobriam os campos de centeio ao longo da estrada de Nivelles; não restava
quase nada dos granadeiros holandeses que, em 1811, engajados em nossas
fileiras na Espanha, combatiam Wellington, e que, em 1815, aliados aos
ingleses, combatiam Napoleão. A perda de oficiais era considerável. Lorde
Uxbridge, que no dia seguinte mandou enterrar sua perna, tinha o joelho
quebrado. Se, pelo lado francês, nessa luta dos encouraçados, Delord,
Lhéritier, Colbert, Dnop, Travers e Blancard estavam fora de combate,
pelo lado inglês Alten estava ferido, Barne estava ferido, Delancey estava
morto, Van Meeren estava morto e Ompteda estava morto, o estado-maior
de Wellington estava dizimado, e a Inglaterra tinha a pior parte naquele
sanguinolento equilíbrio. O segundo regimento de guarda a pé perdera
cinco tenentes-coronéis, quatro capitães e três oficiais; o primeiro
batalhão do 30o regimento de infantaria perdera vinte e quatro oficiais e
cento e doze soldados, o 79o regimento de montanheses tinha vinte e
quatro oficiais feridos, dezoito mortos e quatrocentos e cinquenta soldados
exterminados. Os hussardos hanoverianos de Cumberland, um regimento
inteiro, comandados pelo coronel Hacke, que mais tarde seria julgado e
destituído, deram meia-volta diante do combate, fugindo pela floresta de
Soignes, semeando derrota até Bruxelas. As carretas, os carros de
munição, as bagagens, os furgões cheios de feridos, vendo os franceses
ganharem terreno e se aproximarem da floresta, nela se precipitaram; os
holandeses, apunhalados pela cavalaria francesa, gritavam: alarme!
De Vert-Coucou até Groenendael, em uma extensão de
aproximadamente duas léguas na direção de Bruxelas, os fugitivos eram
tantos, como relatam testemunhas ainda vivas, que atulhavam a estrada. O
pânico foi tamanho que tomou conta do Príncipe de Condé, em Malines, e
de Luís XVIII, em Gand. Com exceção da fraca reserva colocada atrás dos
postos de socorro estabelecidos na fazenda de Mont–Saint-Jean, e das
brigadas Vivian e Vandeleur, que flanqueavam a ala esquerda, Wellington
já não tinha cavalaria. Numerosas baterias jaziam desmontadas. Esses
fatos são constatados por Siborne; Pringle, exagerando o desastre, chega a
dizer que o exército anglo-holandês estava reduzido a trinta e quatro mil
homens. O duque-de-ferro permanecia sereno, mas seus lábios haviam
empalidecido. O comissário austríaco Vincent e o comissário espanhol
Alava, que assistiram à batalha fazendo parte do estado-maior inglês,
julgavam o duque perdido. Às cinco horas, Wellington tirou seu relógio e
ouviram quando disse esta sombria frase: Ou Blucher, ou a noite!
Foi por volta desse momento que uma linha longínqua de baionetas
brilhou no alto de uma colina, para os lados de Frischemont.
Então ocorrerá a peripécia deste drama gigante.
XII. A GUARDA
O resto é conhecido; a irrupção de um terceiro exército, a batalha
deslocada, as oitenta e seis bocas de fogo troando de repente, a chegada de
Pirch I com Bulow, a cavalaria de Zieten comandada por Blucher em
pessoa, os franceses rechaçados, Marcognet varrido do planalto de Ohain,
Durutte desalojado de Papelotte, Donzelot e Quiot recuando, Lobau
apanhado pelos lados, uma nova batalha se precipitando sobre nossos
regimentos desmantelados ao cair da noite, toda a linha inglesa retomando
a ofensiva e impelida para frente, a gigantesca brecha feita no exército
francês, a metralha inglesa e a metralha prussiana auxiliando-se
mutuamente, o extermínio, o desastre pela frente e pelos lados, a guarda
entrando em linha no meio desse espantoso desmoronamento.
Sentindo que ia morrer, a guarda gritou: viva o imperador! A história
não tem nada de mais comovente que essa agonia irrompendo em
aclamações.
O céu estivera encoberto a manhã inteira. De repente, exatamente
naquele momento, eram oito horas da noite, as nuvens do horizonte se
afastaram deixando passar, através dos olmos da estrada de Nivelles, a
sinistra vermelhidão do sol poente. Tinham visto o sol se levantar em
Austerlitz.
Nesse desfecho, cada batalhão era comandado por um general. Friant,
Michel, Roguet, Harlet, Mallet, Poret de Morvan estavam lá. Quando os
capacetes dos granadeiros da guarda, com a grande águia de metal,
apareceram em meio à neblina do combate, simétricos, alinhados,
tranquilos, o inimigo sentiu respeito pela França; acreditaram ver entrar
vinte vitórias no campo de batalha, asas abertas, e os que eram vencedores
recuaram, julgando-se vencidos; mas Wellington gritou: De pé, guardas, e
pontaria certeira!
O regimento vermelho das guardas inglesas, deitado por trás das sebes,
levantou-se; uma nuvem de metralha crivou a bandeira tricolor que
tremulava em volta de nossas águias, todos se arrojaram à luta, e a
suprema carnificina começou. A guarda imperial sentiu nas sombras o
exército recuando à sua volta, sentiu o imenso abalo da derrota, ouviu o
salve-se quem puder! que substituía o viva o imperador! E, mesmo com a
fuga atrás dela, continuou a avançar, cada vez mais fulminada, e com mais
mortes a cada passo que dava. Não havia irresolutos ou tímidos. Naquele
regimento, o soldado era tão herói quanto o general. Nem um só homem
fugiu àquele suicídio.
Ney, desorientado, com toda a grandeza da morte que aceitara,
oferecia-se a todos os golpes daquela tormenta. Ali foi morto o quinto
cavalo que montava. Banhado em suor, olhos em chama, espuma nos
lábios, uniforme desabotoado, uma das dragonas semicortada por um
golpe de sabre de um guarda montado, sua grande águia metálica afundada
por uma bala, ensanguentado, enlameado, magnífico, uma espada
quebrada na mão, dizia: Vejam como morre um marechal da França no
campo de batalha! Mas em vão; ele não morreu. Ficou feroz e indignado.
Lançava esta pergunta a Drouet d’Erlon: Será que você não se deixa matar,
não? Gritava no meio de toda aquela artilharia que esmagava um punhado
de homens: Oh! Queria que todas essas balas inglesas me atravessassem o
ventre!
Estavas reservado às balas francesas, infeliz!
XIII. A CATÁSTROFE
A derrota pela retaguarda foi lúgubre.
O exército retrocedeu rapidamente, de todos os lados ao mesmo tempo,
de Hougomont, de Haie-Sainte, de Papelotte, de Plancenoit. O grito:
traição! foi seguido do grito: salve-se quem puder! Um exército em
debandada é um degelo. Tudo se curva, se abre, estala, flutua, rola, cai,
fere, apressa e precipita. Incrível desagregação.
Ney pede um cavalo emprestado, monta, e, sem chapéu, sem gravata,
sem espada, vai colocar-se no través da estrada de Bruxelas, parando
ingleses e franceses ao mesmo tempo. Ele tenta reter o exército,
chamando-o, insultando-o, agarra-se à derrota. Não se contém. Os
soldados fogem a ele, gritando: Viva o marechal Ney!
Dois regimentos de Durutte vão e voltam sobressaltados, como que
agitados entre os sabres dos ulanos, soldados alemães da cavalaria ligeira,
e a fuzilaria das brigadas de Kempt, de Best, de Pack e de Rylandt; o pior
dos combates é a derrota: amigos matam-se para fugir; esquadrões e
batalhões se dispersam e destroem uns aos outros, enorme escória de
batalha. Lobau em uma extremidade, assim como Reille na outra, são
levados pela vaga. Em vão, Napoleão faz muralhas com o que lhe resta da
guarda; em vão, empenha, em um último esforço, seus esquadrões de
serviço. Quiot recua diante de Vivian, Kellermann diante de Vandeleur,
Lobau diante de Bulow, Morand diante de Pirch, Domon e Subervic diante
do Príncipe Guillaume da Prússia. Guyot, que tinha sob seu comando os
esquadrões do imperador, cai aos pés dos dragões ingleses. Napoleão corre
a galope por entre os fugitivos, conclama-os, pressiona, ameaça, suplica.
Todas as bocas que pela manhã gritavam viva o imperador! ficam abertas,
mal o reconhecem. A cavalaria prussiana, chegada há pouco, precipita-se,
voa, acutila, corta, despedaça, mata, extermina. As parelhas de cavalos
escoiceiam; os canhões se vão, os soldados desatrelam os caixões,
pegando os cavalos para fugir; os carros, virados com as quatro rodas para
o ar, estorvam a estrada e dão ensejo a massacres. Esmagam-se,
pisoteiam-se, passam por cima dos mortos e por cima dos vivos. Os braços
estão desvairados. Uma multidão vertiginosa enche as estradas, os atalhos,
as pontes, as planícies, as colinas, os vales, os bosques, atravancados pela
evasão de quarenta mil homens. Gritos, desespero, sacos e fuzis jogados
pelo chão, passagens abertas a golpes de espada, não há mais camaradas,
nem oficiais, nem generais; um horror inexprimível! Zieten apunhalando a
França à vontade. Os leões transformados em cabritos. Assim foi essa
fuga.
Em Genappe, tentaram tomar outras medidas, fazer frente, suspender a
ação. Lobau reuniu trezentos homens que se entrincheiraram à entrada da
aldeia; porém, à primeira descarga da metralha prussiana, a fuga
recomeçou, e Lobau foi capturado. Ainda hoje se vê a marca daquela
descarga de metralha na parede de um casebre, à direita da estrada, alguns
minutos antes da entrada de Genappe. Os prussianos lançaram-se sobre
Genappe, furiosos, decerto, por serem tão pouco vencedores. A
perseguição foi monstruosa. Blucher ordenou o extermínio. Roguet dera o
lúgubre exemplo de ameaçar de morte todo granadeiro francês que lhe
levasse um prisioneiro prussiano. Blucher excedeu Roguet. Duhesme,
general da guarda jovem, encurralado em uma estalagem de Genappe,
entregou sua espada a um hussardo “da morte”, que pegou-a e matou o
prisioneiro. A vitória se completou com o assassinato dos vencidos.
Punamos, já que somos a história: o velho Blucher desonrou-se. Aquela
ferocidade foi o cúmulo do desastre. A derrota desesperada atravessou
Genappe, atravessou Quatre-Bras, atravessou Gosselies, atravessou
Frasnes, atravessou Thuin, atravessou Charleroi, só parando na fronteira.
Ai! E quem fugia desse modo? O grande exército!
Aquela vertigem, aquele terror, aquela queda em ruínas da maior
bravura que já surpreendeu a história, isso tudo ocorrera sem causa? Não.
A sombra de uma mão enorme se projetava sobre Waterloo. Era o dia do
destino. A força que está acima do homem concedeu aquele dia. Daí a ruga
de pavor nas testas; daí a entrega das espadas por todas aquelas grandes
almas. Os que haviam vencido a Europa foram vencidos, não tendo nada a
dizer, nem a fazer, sentindo na sombra uma presença terrível. Hoc erat in
fatis.10 Naquele dia, a perspectiva do gênero humano foi mudada.
Waterloo foi o eixo do século XIX. Era necessário o desaparecimento do
grande homem para a elevação do grande século. Alguém, a quem não se
replica jamais, encarregou-se disso. O pânico dos heróis se explica. Na
batalha de Waterloo, houve mais que nuvens, houve um meteoro. Foi Deus
que passou por ali.
Ao cair da noite, em um campo nas imediações de Genappe, Bernard e
Bertrand seguraram pelo casaco, e fizeram parar, um homem desvairado,
pensativo, sinistro, que, arrastado até ali pela torrente da derrota, acabava
de descer do cavalo, e, depois de enfiar o braço pela rédea, olhos perdidos,
voltava sozinho para Waterloo. Era Napoleão tentando ainda avançar,
gigantesco sonâmbulo desse sonho arruinado.
XV. CAMBRONNE
Ao leitor francês que quer ser respeitado, a mais bela palavra, talvez,
que um francês já tenha dito não lhe pode ser repetida. Interdição de
colocar o sublime dentro da história.
Por nossa conta e risco, infringimos essa interdição.
Assim, entre aqueles gigantes, houve um titã, Cambronne.
Dizer aquela palavra e morrer em seguida, o que pode haver de mais
grandioso? Pois desejar morrer é morrer, e não foi culpa desse homem se,
fuzilado, sobreviveu.
O homem que ganhou a batalha de Waterloo não foi Napoleão,
derrotado; não foi Wellington, dobrando-se às quatro horas, desesperado às
cinco; não foi Blucher, que nem lutou; o homem que ganhou a batalha de
Waterloo foi Cambronne.
Fulminar com uma palavra dessas o trovão que nos mata, é vencer.
Responder assim à catástrofe, dizer aquilo ao destino, dar aquela base
ao futuro leão, atirar aquela réplica ao vento da noite, ao traiçoeiro muro
de Hougomont, ao barranco de Ohain, ao atraso de Grouchy, à chegada de
Blucher; ser a ironia no sepulcro, fazer de modo a permanecer de pé
depois de ter caído; afogar em duas sílabas a coalizão europeia, oferecer
aos reis as latrinas já conhecidas dos Césares, fazer da última das palavras
a primeira, envolvendo nela o brilho da França; insolentemente concluir
Waterloo com um carnaval, completar Leônidas com Rabelais, resumir
aquela vitória em uma frase suprema, impossível de pronunciar, perder o
terreno e conservar a história, depois de toda a carnificina ter a seu favor
os que gostam de rir, é magnífico! É insultar o relâmpago. É atingir a
grandeza de um Ésquilo.
A palavra de Cambronne produziu o efeito de uma fratura. Foi a
fratura de um coração pelo desdém; foi um excesso de agonia explodindo.
Quem venceu? Foi Wellington? Não. Se não fosse Blucher, estaria perdido.
Foi Blucher? Não. Se Wellington não tivesse começado, Blucher não
poderia terminar. Cambronne, esse passante de última hora, esse soldado
ignorado, essa porção infinitamente pequena da guerra, sente que ali há
uma mentira, uma mentira em uma catástrofe, acréscimo pungente, e, no
momento em que explode de raiva, oferecem-lhe esse escárnio, a vida!
Como não saltar! Eles estão lá, todos os reis da Europa, os generais
felizes, os Júpiteres tonantes, que têm cem mil soldados vitoriosos, e por
trás dos cem mil, um milhão, seus canhões, com as mechas acesas, estão
de boca aberta, têm sob os pés a guarda imperial e o grande exército,
acabam de massacrar Napoleão, e só resta Cambronne; não há mais
ninguém que proteste, a não ser esse verme. E ele protestará. Procura
então uma palavra como quem procura uma espada. Vem uma espuma a
seus lábios, e essa espuma é a palavra. Diante daquela vitória prodigiosa e
medíocre, diante daquela vitória sem vitoriosos, aquele desesperado se
ergue; ele sofre as consequências de sua enormidade, mas constata sua
nulidade; ele faz mais do que cuspir sobre ela, e sob o peso do número, da
força e da matéria, acha na alma uma expressão, o excremento. Repetimos,
dizer aquilo, fazer aquilo, achar aquilo, é ser o vencedor.
O espírito dos grandes dias incorporou-se nesse homem desconhecido
naquele minuto fatal. Cambronne achou a palavra de Waterloo, assim
como Rouget de l’Isle achou a Marselhesa, pela inspiração vinda das
alturas. Um eflúvio do furacão divino se destaca e passa por esses homens;
e eles estremecem, e um canta o canto supremo, e o outro solta o grito
terrível. Aquela palavra do desdém titânico, Cambronne não a joga apenas
sobre a Europa, em nome do Império, seria muito pouco; joga-a sobre o
passado, em nome da Revolução. Os que a ouvem reconhecem em
Cambronne a antiga alma dos gigantes. Parece Danton a falar ou Kleber a
rugir.
À palavra de Cambronne, a voz inglesa respondeu: “Fogo!” As baterias
flamejaram, a colina estremeceu, de todas aquelas bocas de bronze saiu
um derradeiro vômito de metralha, medonho; uma vasta fumaça,
vagamente esbranquiçada pela luz da lua nascente, se espalhou, e, ao se
dissipar, já não havia mais nada. Estava aniquilado aquele resto
formidável, a guarda estava morta. Os quatro muros daquele reduto vivo
jaziam, distinguindo-se apenas, aqui e ali, um leve estremecer entre os
cadáveres; e foi assim que as legiões francesas, maiores que as legiões
romanas, expiraram em Mont-Saint-Jean, sobre a terra úmida de chuva e
de sangue, nas escuras searas de trigo, no local por onde passa, agora, às
quatro horas da manhã, assobiando e açoitando alegremente seu cavalo,
Joseph, que faz o serviço da mala-posta de Nivelles.
__________________________
1 Antiga unidade de medida de comprimento.
2 Walter Scott, Lamartine, Vaulabelle, Charras, Quinet, Thiers. (N. A.)
3 Salvador Rosa, pintor do século XVII, lírico e agitado, da escola de Nápoles. Jean-Baptiste
Vauquette de Gribeauval, comandante da artilharia francesa antes da Revolução.
4 Jean-Charles de Folard, estrategista e escritor militar francês, escreveu sobre Polybe,
historiador grego e autor de Tratado sobre a Tática.
5 “César ri, Pompeu chorará” — Virgílio.
6 Alusão aos versos de Virgílio (Geórgicas): “Trabalhando em seu campo, um agricultor
encontrará armas roídas pela [scabra rubigine] ferrugem”.
7 Eis a inscrição:
D.O.M.*
Cy a éte écrasé
Par malheur
Sous un chariot
Monsieur Bernard
De Brye marchand
À Bruxelles le (ilegível)
Febvrier 1637
“Um antigo forçado liberado, chamado Jean Valjean, acaba de comparecer perante o
Tribunal Criminal de Var, em circunstâncias que chamam a atenção. Esse facínora havia
conseguido enganar a vigilância policial; mudara de nome e conseguira fazer-se nomear
prefeito de uma de nossas pequenas cidades do Norte, onde havia estabelecido um comércio
bastante considerável. Acaba, enfim, de ser desmascarado e preso, graças ao infatigável zelo
do Ministério Público. No momento de sua prisão, a mulher de rua que tinha como
concubina morreu de susto. Esse miserável, que é dotado de uma força hercúlea, encontrou
um meio de se evadir, mas, três ou quatro dias após sua evasão, a polícia colocou
novamente as mãos sobre ele, em Paris, no momento em que subia em uma dessas
carruagens que transitam entre a capital e a aldeia de Montfermeil (Seine-et-Oise). Dizem
que se aproveitou do intervalo desses três ou quatro dias de liberdade para retirar uma
quantia considerável que havia depositado no estabelecimento de um de nossos principais
banqueiros. Avalia-se essa quantia em seiscentos ou setecentos mil francos. A julgar pelo
auto de acusação, ele a teria escondido em um lugar conhecido apenas por ele mesmo, o
que tornou impossível encontrá-la. Seja como for, o tal Jean Valjean acaba de ser entregue
ao tribunal do departamento de Var, acusado de um roubo à mão armada, há
aproximadamente oito anos, cometido em uma estrada contra a pessoa de um desses
honrados rapazes que, como disse o patriarca de Ferney em versos imortais:
__________________________
1 Citação exata do poema de Voltaire Le Pauvre Diable (O Pobre-Diabo).
2 O rei, pura e simplesmente: palavra de ordem dos absolutistas espanhóis.
LIVRO III
CUMPRIMENTO DA PROMESSA FEITA
À MORTA
V. A PEQUENA SOZINHA
Como a estalagem Thénardier ficava na parte da aldeia próxima à
igreja, era na fonte do bosque, que ficava para os lados de Chelles, que
Cosette tinha de ir buscar a água.
Ela não olhou para mais nenhuma barraca. Enquanto estava na viela
Boulanger e nos arredores da igreja, as barracas iluminadas clareavam o
caminho, mas logo desapareceu o último clarão da última barraca, e
Cosette viu-se na escuridão. Embrenhou-se nela. Mas, como uma certa
emoção ia tomando conta dela, ao caminhar, ela agitava o mais que podia
a alça do balde. O ruído que se produzia servia-lhe de companhia.
Quanto mais caminhava, mais espessas se tornavam as trevas. Pelas
ruas já não se via ninguém. Todavia, Cosette encontrou uma mulher, que
se voltou ao vê-la passar e que ficou imóvel, murmurando por entre
dentes:
— Mas onde é que essa criança está indo? Será algum pequeno
fantasma? — Depois a mulher reconheceu Cosette. — Ora — disse —, é a
Cotovia.
Cosette atravessou assim o labirinto de ruas tortuosas e desertas onde
termina, pelos lados de Chelles, a aldeia de Montfermeil. Enquanto viu
casas e mesmo paredes dos dois lados de seu caminho, andou com bastante
ousadia. De vez em quando, via o brilho de uma vela pelas fendas de
alguma janela, era luz e vida, ali havia gente, e isso a tranquilizava. No
entanto, à medida que avançava, seu passo diminuía de forma maquinal.
Ao passar pela esquina da última casa, parou. Passar adiante da última
barraca fora difícil; passar além da última casa tornava-se impossível.
Colocou o balde no chão, meteu a mão por entre os cabelos e pôs-se a
coçar a cabeça lentamente, gesto próprio das crianças atemorizadas e
indecisas. Já não era Montfermeil, eram os campos. Diante dela havia um
espaço negro e deserto. Cosette olhou com desespero para aquela
escuridão onde não havia mais ninguém, onde havia animais, onde talvez
houvesse almas do outro mundo. Abriu bem os olhos e ouviu animais
andando no mato, e viu distintamente almas do outro mundo agitando-se
nas árvores. Então, pegou o balde de volta; o medo lhe dava audácia:
“Ah!”, pensou, “vou dizer que não havia mais água!”.
E voltou resolutamente para Montfermeil.
Tinha dado uns cem passos, parou de novo e voltou a coçar a cabeça.
Agora era dona Thénardier que lhe aparecia, a mulher medonha, com sua
boca de hiena e uma raiva flamejante nos olhos. A criança lançou um olhar
de lamento para frente e para trás. Que fazer? Que resolver? Para onde ir?
Diante dela, o espectro da senhora Thénardier; atrás dela, todos os
fantasmas da noite e dos bosques. Mas foi diante da senhora Thénardier
que ela recuou. Voltou ao caminho da fonte, e se pôs a correr. Saiu da
aldeia correndo, entrou no bosque correndo, sem olhar para mais nada,
sem escutar mais nada. Só parou de correr quando faltou-lhe fôlego, mas
não interrompeu sua caminhada. Ia em frente, perdida.
Enquanto corria, tinha vontade de chorar. O estremecimento noturno da
floresta a envolvia completamente. Não pensava mais, não enxergava
mais. A imensa noite afrontava aquele pequeno ser. De um lado, toda a
sombra, do outro, um átomo.
Dos limites do bosque à fonte havia apenas sete ou oito minutos.
Cosette conhecia o caminho por tê-lo feito muitas vezes durante o dia.
Coisa estranha, ela não se perdeu. Um resto de instinto a conduzia
vagamente. Não olhava nem para a direita nem para a esquerda, com
receio de ver alguma coisa nos galhos e nos arbustos. Assim chegou à
fonte.
Era uma estreita bacia natural, cavada pela água em um terreno
argiloso, com uma profundidade de mais ou menos dois pés, cercada de
musgo e dessas ervas chamadas de golinhas de Henrique IV, e calçada com
algumas grandes pedras. Da fonte saía um pequeno riacho, sussurrando
mansamente.
Cosette nem sequer parou para tomar fôlego. Estava muito escuro, mas
ela tinha o costume de vir a essa fonte; procurou com a mão esquerda um
carvalho novo que se debruçava sobre a nascente, e que normalmente lhe
servia de ponto de apoio; encontrou um ramo, agarrou-se nele, abaixou-se
e mergulhou o balde na água. Era um momento de emoção tão violenta
que suas forças triplicaram. Enquanto estava curvada, não reparou que o
bolso de seu avental se esvaziava dentro da fonte. A moeda de quinze
soldos caíra na água. Cosette não a viu nem a ouviu cair. Retirou o balde
quase cheio e o colocou sobre a relva.
Feito isso, percebeu que estava extenuada de cansaço. Bem quisera
voltar imediatamente, mas fora tamanho o esforço para encher o balde que
lhe foi impossível dar um passo. Viu-se obrigada a sentar-se. Deixou-se
cair sobre a relva e ali ficou agachada.
Fechou os olhos, depois tornou a abri-los, sem saber por que, mas não
podia fazer de outra forma. Ao lado dela, a água se agitando no balde
formava círculos que pareciam serpentes de fogo branco.
Acima de sua cabeça o céu estava coberto de vastas nuvens negras, que
eram como bandeiras de fumaça. A trágica máscara das sombras parecia
debruçar-se vagamente sobre aquela criança.
Júpiter brilhava nas profundezas. A criança olhava sem compreender
para aquela grande estrela que não conhecia e que lhe causava medo. O
planeta, de fato, achava-se naquele momento muito perto do horizonte, e
atravessava uma espessa camada de névoa que lhe emprestava uma
vermelhidão horrível. A névoa, lugubremente purpúrea, fazia o astro
parecer maior. Parecia uma chaga luminosa.
Um vento frio soprava da planície. O bosque estava tenebroso, onde
não se ouvia nenhum rumor de folhas, nem se viam esses vagos e frescos
brilhos de verão. Grandes galhos se levantavam assustadoramente no ar.
Moitas raquíticas e disformes zuniam nas clareiras. O mato crescido se
mexia sob o vento norte como se fossem enguias. Os espinheiros se
torciam como longos braços armados de garras, tentando cravar-se em
alguma presa. Algumas plantas secas, sopradas pelo vento, passavam
rapidamente e pareciam fugir, assustadas com algo que acontecia. Por
todos os lados havia espaços sinistros.
A escuridão é vertiginosa. O homem precisa de claridade. Quem quer
que se embrenhe no contrário do dia se sente com o coração apertado.
Onde os olhos veem o escuro, o espírito vê perturbação. No eclipse, na
noite, na opacidade fuliginosa há ansiedade, mesmo para os mais fortes.
Ninguém caminha sozinho, à noite, em uma floresta, sem medo. Sombras
e árvores, dois entes temíveis. Na escuridão indistinta, aparece uma
realidade quimérica. O inconcebível se esboça a alguns passos, com uma
nitidez espectral. Vê-se flutuar no espaço, ou no próprio cérebro, algo de
vago e impalpável como os sonhos das flores adormecidas. Há atitudes
ariscas no horizonte. Aspiram-se os eflúvios do grande e negro vazio.
Tem-se medo e vontade de olhar para trás. As cavidades da noite, as coisas
que se tornam medonhas, os perfis taciturnos que se dissipam ao
avançarmos, os vultos obscuros e desgrenhados, as moitas irritadas, os
charcos lívidos, o lúgubre refletido no fúnebre, a imensidão sepulcral do
silêncio, os possíveis seres desconhecidos, o misterioso pender dos ramos,
os medonhos troncos das árvores, os grandes punhados de ervas trêmulas,
fica-se sem defesa contra tudo isso.
Não há ousadia que não estremeça e que não sinta a aproximação da
angústia. Experimenta-se algo de pavoroso, como se a alma se
amalgamasse à sombra. Essa penetração das trevas é inexprimivelmente
sinistra para uma criança.
As florestas são apocalipses e o bater de asas de uma alma pequenina
produz um ruído de agonia sob sua cúpula monstruosa.
Sem ter consciência do que experimentava, Cosette se sentia tomada
por essa enormidade negra da natureza. Não era mais simplesmente terror
o que se apossava dela; era alguma coisa mais terrível ainda do que o
terror. Ela estremecia. Faltam expressões para dizer o que havia de
estranho nesse estremecimento que a gelava até o fundo do coração. Seu
olhar tornara-se arisco. Ela acreditava sentir que talvez não conseguisse
impedir-se de voltar ali no dia seguinte, à mesma hora.
Então, por uma espécie de instinto, para sair daquele singular estado
que não compreendia, mas que a aterrava, começou a contar em voz alta
um, dois, três, quatro, até dez, e ao terminar recomeçava. Isso lhe
devolveu a verdadeira percepção das coisas que a rodeavam. Sentiu frio
nas mãos, que havia molhado ao puxar a água, e levantou-se. Voltara-lhe o
medo, um medo natural e invencível. Não lhe ocorreu mais do que um
pensamento: fugir, fugir, e bem depressa, pelos bosques, pelos campos, até
as casas, até as janelas, até as velas acesas. Seu olhar fixou-se no balde que
tinha diante de si, e tamanho era o medo que dona Thénardier lhe
inspirava, que não se atreveu a fugir sem a água. Segurou a alça com as
duas mãos, custando-lhe grande esforço levantar o balde do chão.
Assim andou uns doze passos; mas o balde estava cheio, pesado, e ela
viu-se obrigada a colocá-lo no chão outra vez. Respirou um instante,
depois pegou novamente na alça e voltou a caminhar, desta vez por um
pouco mais de tempo. Mas foi preciso parar novamente. Após alguns
segundos de descanso, partiu de novo. Cosette caminhava vergada para
frente, cabeça baixa, como uma velha; o peso do balde distendia e retesava
seus braços magros; a alça de ferro fazia adormecer e gelar suas
mãozinhas molhadas; de vez em quando, era obrigada a parar, e, cada vez
que parava, a água fria que extravasava do balde caía-lhe nas pernas nuas.
Isso acontecia no fundo de um bosque, à noite, no inverno, longe de
qualquer olhar humano; era uma criança de oito anos. Naquele momento
só Deus podia ver essa cena triste.
Ai! E decerto sua mãe também.
Pois há coisas que fazem abrir os olhos dos mortos em seus túmulos!
Ela respirava com uma espécie de doloroso gemido; os soluços
apertavam-lhe a garganta, mas ela não ousava chorar, tal era o medo que
tinha da senhora Thénardier, mesmo estando longe. Era seu costume
sempre imaginar que a mulher estava por perto.
Daquele modo não podia andar muito, e, por isso, ia lentamente.
Tentava diminuir a duração das paradas, caminhando entre uma e outra o
maior espaço de tempo possível. Lembrava-se com angústia que, assim,
ainda levaria mais de uma hora para chegar a Montfermeil, e que
apanharia da senhora Thénardier. Essa angústia misturava-se ao medo de
estar sozinha à noite no meio do bosque. Estava morta de cansaço e ainda
não saíra da floresta.
Chegando perto de um velho castanheiro que conhecia, fez uma última
parada, mais demorada que as outras, para descansar bem, depois reuniu
todas as forças, tornou a pegar o balde e voltou a caminhar corajosamente.
No entanto, a pobre criaturinha desesperada não conseguia deixar de
exclamar: “Oh! Meu Deus! Meu Deus!”
Naquele instante, sentiu que o balde já não pesava nada. Uma mão, que
lhe pareceu enorme, acabava de segurar a alça, levantando-a
vigorosamente. A menina levantou a cabeça. Uma grande forma escura,
ereta e de pé caminhava junto dela na escuridão. Era um homem que viera
pelas costas, e que ela não ouviu chegar. Esse homem, sem dizer uma
palavra, havia segurado a alça do balde que ela carregava.
Há instintos para todos os encontros da vida. A menina não teve medo.
Fantine”.
__________________________
1 Antiga moeda que valia um quarto de soldo.
2 Trocadilho com as palavras filou [trapaceiro] e philosophe [filósofo].
3 Colônia fundada no Texas, em 1815, por um grupo de refugiados bonapartistas e
republicanos.
4 “Dinheiro.”
5 Designação popular da moeda de cinco francos, por analogia com as rodas traseiras das
carruagens, que são bem grandes.
LIVRO IV
O CASEBRE GORBEAU
I. MESTRE GORBEAU
HÁ QUARENTA ANOS, um caminhante solitário que se aventurava pelas
remotas regiões da Salpêtrière, e que subia pelo bulevar até os lados da
entrada d’Italie, chegava a lugares em que se podia dizer que Paris
acabava. Não era um isolamento, pois ali passava gente; não era campo,
pois havia casas e ruas; não era uma cidade, pois as ruas tinham barrancos,
como as grandes estradas, onde o mato crescia; não era uma aldeia, pois as
casas eram bem altas. O que era, então? Era um lugar habitado onde não
havia ninguém; era um lugar deserto onde havia alguém, era um arrabalde
da cidade grande, uma rua de Paris, mais arisca à noite do que uma
floresta, mais triste de dia do que um cemitério.
Era o antigo bairro Marché-aux-Chevaux.
O mesmo caminhante, caso se arriscasse a transpor os quatro velhos
muros do Marché-aux-Chevaux, se resolvesse passar além da rua Petit-
Banquier, depois de haver deixado, à direita, uma horta cercada por
elevados muros, e em seguida um prado, onde se erguiam montes de casca
de carvalho semelhantes a casinhas de castores gigantescos, e depois um
cerrado atulhado de madeira e de tocos de árvores, serragem e lascas, em
cima das quais latia um cão enorme, e depois um muro baixo, todo em
ruínas, com uma portinha preta e suja, cheia de musgos que, na primavera,
se enchiam de flores, e depois, no local mais deserto, um decrépito
casebre, no qual se lia em grandes letras: PROIBIDO COLOCAR
CARTAZES, o ousado caminhante chegaria à esquina da rua Vignes-Saint-
Marcel, local pouco conhecido. Ali, perto de uma fábrica e entre dois
muros de jardim, via-se, naquele tempo, um casebre que, à primeira vista,
parecia pequeno como uma cabana, mas que, na realidade, era grande
como uma catedral. Sua aparente pequenez devia-se a ficar de lado para a
via pública, de modo que só era visto em parte. A casa ficava quase toda
escondida, apenas uma porta e uma janela sendo visíveis. O casebre só
tinha um andar.
Ao examiná-lo, o detalhe que primeiro impressionava era que a porta
nunca poderia ter sido senão a porta de uma espelunca, ao passo que a
janela, se tivesse sido feita em pedra de cantaria, em vez de alvenaria,
poderia ter sido a janela de um palacete.
A porta não era mais que um conjunto de tábuas carcomidas,
grosseiramente unidas por travessas semelhantes a pedaços de lenha mal
aparados. Ela se abria diretamente para uma escada de degraus altos,
enlameados, barrentos, empoeirados, da mesma largura da porta, e, da rua,
via-se que subia direto e desaparecia na sombra entre duas paredes. Na
parte superior, o vão que se formava era tapado por uma estreita tábua, no
meio da qual uma fresta triangular fora cortada para servir, ao mesmo
tempo, de respiro e bandeira quando a porta estava fechada. Pelo lado de
dentro, um pincel molhado em tinta havia traçado em duas pinceladas o
número 52, e acima da tábua o mesmo pincel rabiscara o número 50, de
forma que se hesitava. Onde estamos? A parte de cima da porta diz:
número 50; a parte de dentro replica: não, número 52. Da fresta triangular,
pendiam não se sabe que trapos cor de poeira como se fossem cortinados.
A janela era larga, suficientemente elevada, guarnecida de persianas e
de vidraças de grandes caixilhos, com variadas rachaduras, ao mesmo
tempo ocultas e denunciadas por uma engenhosa faixa de papel; e as
persianas, fora do lugar e soltas, mais ameaçavam os transeuntes do que
resguardavam os moradores. Nas persianas, aqui e ali faltavam algumas
das tabuinhas horizontais que eram singelamente substituídas por pranchas
pregadas perpendicularmente, de modo que a coisa começava como
persiana e acabava como veneziana.
Essa porta, que tinha um aspecto imundo, e essa janela, que tinha um
ar decente, ainda que deteriorada, assim vistas na mesma casa, produziam
o efeito de dois mendigos desemparelhados, indo juntos e caminhando
lado a lado, com aparências diferentes sob os mesmos andrajos, um tendo
sempre sido um miserável e o outro um fidalgo.
A escada conduzia a um edifício muito vasto, que se assemelhava a um
galpão transformado em casa. Esse edifício tinha como tubo intestinal um
longo corredor para o qual se abriam, à direita e à esquerda, espécies de
compartimentos com dimensões variadas, a rigor habitáveis, e mais
parecidos com tendas do que com celas. Esses quartos recebiam claridade
dos terrenos vagos em volta. Tudo isso era obscuro, desagradável,
descorado, melancólico, sepulcral, atravessado, segundo as fendas no
telhado ou na porta, por raios frios ou rajadas geladas. Uma
particularidade interessante e pitoresca desse tipo de habitação é o
tamanho das aranhas.
À esquerda da porta de entrada, no bulevar, à altura de um homem,
uma pequena janela que taparam formava um nicho quadrado, cheio de
pedras que os moleques jogavam ao passar por ali.
Uma parte dessa construção foi demolida mais recentemente. O que
restou ainda dá uma ideia daquilo que tinha sido. O conjunto do edifício
não tem mais que uma centena de anos. Cem anos é a juventude de uma
igreja e a velhice de uma casa. Parece que a morada do homem faz parte
de sua brevidade e a morada de Deus, de sua eternidade.
Os carteiros chamavam àquele casebre de “número 50-52”; mas ele era
conhecido no bairro com o nome de casa Gorbeau.
Vamos contar de onde lhe vinha essa denominação.
Os colecionadores de pequenos casos, que se fazem de verdadeiros
catálogos de histórias e penduram na memória as datas fugazes com um
alfinete, sabem que no século passado, por volta de 1770, existiam em
Paris dois procuradores de Châtelet chamados, um Corbeau — corvo —, e
o outro Renard — raposa —, dois nomes previstos por La Fontaine. A
oportunidade era boa demais para que isso não fosse motivo de chacota.
Logo correu uma paródia, em versos meio capengas, nas galerias do
tribunal:
I. OS ZIGUEZAGUES DA ESTRATÉGIA
NESTE PONTO, para as páginas que começarão a ser lidas, e por outras
ainda que serão lidas mais tarde, uma observação se faz necessária.
Há vários anos que o autor deste livro, obrigado a contra-gosto a falar
de si mesmo, vive fora de Paris. Depois que saiu de lá, Paris transformou-
se; surgiu uma nova cidade, que de certo modo lhe é desconhecida. Nem é
preciso dizer que ama Paris; Paris é a cidade natal de seu espírito.1 Após
demolições e reconstruções, a Paris de sua juventude, a Paris que
religiosamente vem trazendo em sua memória, a esta altura é uma Paris de
antigamente. Que lhe permitam falar dessa Paris como se ela ainda
existisse. É possível que por onde o autor vai conduzir os leitores,
dizendo-lhes: “Em tal rua há tal casa”, hoje já não exista nem casa nem
rua. Os leitores irão verificar, se quiserem dar-se a esse trabalho. Quanto a
ele, ignora a Paris nova e escreve com a Paris antiga diante dos olhos,
numa ilusão para ele preciosa. É, para ele, uma doce lembrança imaginar
que ainda resta alguma coisa do que via quando estava em sua terra, e que
nem tudo teria desaparecido. Enquanto podemos ir e vir em nossa terra
natal, imaginamos que as ruas nos são indiferentes; que as janelas, os
telhados e as portas não nos dizem nada; que as paredes nos são estranhas;
que as árvores são como todas as outras, que as casas onde não entramos
são inúteis, que as calçadas por onde caminhamos são simples pedras.
Mais tarde, quando estamos longe, percebemos que aquelas ruas nos são
caras; que aqueles telhados, aquelas janelas e aquelas portas nos fazem
falta; que aquelas muralhas nos são necessárias; que aquelas árvores nos
são queridas; que naquelas casas onde não entrávamos, todos os dias
entrávamos; e que deixamos entranhas, sangue e coração naquelas
calçadas. Todos esses lugares que já não vemos, que talvez não tornemos a
ver, e dos quais gravamos a imagem, enchem-se de um doloroso encanto,
nos voltam à lembrança com a melancolia de uma aparição, nos fazem
visível a terra santa, e são, por assim dizer, a própria forma da França;
gostamos deles e os evocamos tais como são, tais como eram, e nos
obstinamos, não queremos que nada se altere, porque gostamos da figura
da Pátria como do rosto de uma mãe.
Que nos seja, então, permitido falar do passado no presente. Dito isso,
pedimos ao leitor que não esqueça, e continuamos.
Jean Valjean deixou o bulevar logo em seguida, entrando pelas ruas,
fazendo o maior número de linhas quebradas que podia, às vezes voltando
atrás para ter certeza de que não o seguiam.
Essa manobra é própria do cervo encurralado. Nos terrenos em que o
rastro pode ficar impresso, essa manobra tem, entre outras, a vantagem de
enganar os caçadores e os cães, deixando pegadas em sentidos contrários.
É o que se chama, na arte de caçar, de falsa retirada.
Era uma noite de lua cheia. Jean Valjean não se aborreceu com isso. A
lua, ainda muito próxima do horizonte, projetava nas ruas grandes planos
de sombra e de luz. Ele podia deslizar ao longo das casas e das paredes
pelo lado escuro, e observar a parte clara. Talvez não se desse conta de que
o lado escuro fugia à sua observação; assim, em todas as ruelas desertas
próximas à rua de Poliveau, pensou estar certo de que ninguém ia atrás
dele.
Cosette caminhava sem fazer perguntas. Os sofrimentos dos seis
primeiros anos de sua vida haviam introduzido algo de passivo em sua
natureza. Além disso, e essa é uma observação à qual teremos mais de
uma oportunidade de voltar, ela estava acostumada, sem bem ter
consciência disso, com as singularidades do homem e as esquisitices do
destino. E também sentia-se em segurança, estando com ele.
Jean Valjean não sabia mais do que Cosette para onde ia. Confiava-se a
Deus, como ela se confiava a ele. Parecia-lhe que ele também segurava
alguém maior do que ele pela mão; acreditava sentir um ser que o
conduzia, invisível. De resto, não tinha nenhum propósito deliberado,
nenhum plano, nenhum projeto. Nem mesmo tinha a certeza de que aquele
homem fosse Javert, e, depois, podia ser Javert sem que Javert soubesse
que ele era Jean Valjean. Não andava disfarçado? Não o supunham morto?
Contudo, havia alguns dias, ocorriam coisas estranhas. Não precisava de
mais nada. Estava determinado a não retornar à casa Gorbeau. Como um
animal expulso da toca, procurava um buraco para se esconder, até achar
outra onde se alojar.
Jean Valjean descreveu grande número de variados labirintos pelo
bairro Mouffetard já adormecido, como se ainda houvesse a disciplina da
Idade Média e o jugo do toque de recolher; combinou de diversos modos,
em sábias estratégias, a rua Censier com a rua Copeau, a rua Battoir-Saint-
Victor com a rua Puits-l’Ermite. Não falta por ali quem alugue quartos,
mas ele nem entrava nesses lugares, não achando nada que lhe conviesse.
Uma coisa da qual não duvidava era que, se por acaso tivessem procurado
seu rastro, não o teriam perdido.
Ao soarem onze horas em Saint-Étienne du Mont, ele atravessava a rua
de Pontoise, em frente à delegacia de polícia, que fica no número 14.
Alguns instantes depois, o instinto do qual falamos há pouco fez com que
se voltasse. Nesse momento, viu distintamente, graças ao lampião da
delegacia que os punha a descoberto, três homens, que o seguiam de muito
perto, passarem sucessivamente sob essa claridade, do lado escuro da rua.
Um dos três homens entrou no corredor da delegacia. O que caminhava na
frente pareceu-lhe realmente suspeito.
— Venha, querida — disse ele a Cosette, e apressou-se em sair da rua
de Pontoise.
Fez um circuito entrando pela passagem des Patriarches, que estava
fechada pelo adiantado da hora, percorreu com ligeireza a rua de l’Épée-
de-Bois e a rua de l’Arbalète e embrenhou-se pela rua des Postes.
Aí há um cruzamento, onde hoje fica o colégio Rollin, e ao qual vem
se entroncar a rua Neuve-Sainte-Geneviève.
(Nem é preciso dizer que a rua Neuve-Sainte-Geneviève é uma rua
muito antiga, e que pela rua des Postes [Correios]nem de dez em dez anos
passa uma mala-posta. A rua des Postes, no século XIII, era habitada por
oleiros [potiers] e o seu verdadeiro nome é rua des Pots [jarros.]
A lua lançava uma viva claridade sobre esse cruzamento. Jean Valjean
escondeu-se sob uma porta, calculando que, se os homens ainda o
seguissem, não poderia perder a chance de vê-los com nitidez ao passarem
por aquela claridade.
De fato, não haviam decorrido três minutos quando os homens
apareceram. Agora, porém, eram quatro, todos de estatura elevada, usando
longos sobretudos escuros, chapéus redondos, e levando grandes cajados
nas mãos. Não eram menos inquietantes por sua marcha sinistra nas trevas
do que por sua grande estatura e enormes punhos. Podia-se dizer que eram
quatro espectros disfarçados de cidadãos.
Pararam no meio da encruzilhada e formaram um grupo, como se se
consultassem. Pareciam indecisos. O que demonstrava guiá-los voltou–se
e apontou firmemente com a mão direita a direção que Jean Valjean
tomara; outro parecia indicar com certa obstinação a direção contrária. No
instante em que o primeiro se virou, a lua clareou em cheio seu rosto, e
Jean Valjean reconheceu perfeitamente Javert.
Essa estranha cerca de ramos de lata e ferro foi a primeira coisa que
impressionou Jean Valjean. Colocou Cosette recostada em uma coluna de
pedra, recomendando-lhe silêncio, e correu para o local onde o cano vinha
tocar o chão. Talvez por ali houvesse meio de subir e entrar na casa. O
cano, porém, estava deteriorado, fora de uso e mal se mantinha chumbado.
Além disso, todas as janelas daquela silenciosa morada estavam gradeadas
com espessas barras de ferro, até mesmo as do sótão. E, também, a lua
clareava completamente a fachada, e o homem que observava Jean Valjean
da extremidade da rua poderia vê-lo subir. Finalmente, que fazer com
Cosette? Como içá-la ao alto de uma casa de três andares?
Renunciou a subir pelo cano e arrastou-se ao longo do muro para voltar
à rua Polonceau.
Ao chegar à reentrância onde deixara Cosette, notou que ali ninguém
poderia vê-lo. Escapava, como há pouco explicamos, a todos os olhares, de
onde quer que viessem. Além disso, estava no escuro. Por fim, havia duas
portas; talvez fosse possível forçá-las. O muro, por cima do qual Jean
Valjean via a tília e a hera, decerto dava para um jardim onde ao menos
poderia se esconder, embora as árvores não tivessem folhas, e passar o
resto da noite. O tempo passava, era preciso ser rápido.
Apalpou o portão e logo percebeu que estava condenado tanto por fora
como por dentro.
Aproximou-se da outra grande porta com mais esperança. Estava
terrivelmente decrépita, e seu próprio tamanho a tornava menos sólida, as
tábuas estavam podres, e as tiras de ferro, as três que restavam, estavam
enferrujadas. Parecia possível atravessar aquela barreira carcomida.
Ao examiná-la melhor, viu que não era uma porta; não tinha
dobradiças, nem fechadura, nem fenda no meio. As tiras de ferro
atravessavam-na de lado a lado, sem nenhuma divisão. Pelas fendas das
tábuas, entreviu alguns tijolos e pedras grosseiramente cimentados, que os
passantes já podiam ver ali havia dez anos. Foi obrigado a admitir, com
consternação, que esse arremedo de porta era um simples tapume de
madeira revestindo exteriormente uma construção de pedra. Era fácil
arrancar uma tábua, mas então deparava-se com uma parede.
III. SEVERIDADES
Passam pelo menos dois anos como postulantes, muitas vezes quatro; e
quatro como noviças. É raro que os votos definitivos possam ser
pronunciados antes dos vinte e três ou vinte e quatro anos. As bernardinas-
beneditinas de Martin Verga não admitem viúvas em sua Ordem.
Em suas celas, entregam-se a muitas macerações desconhecidas, das
quais nunca devem falar.
No dia em que uma noviça torna-se professa, vestem-na com seus mais
belos enfeites, penteiam e enrolam seus cabelos e põem neles uma tiara de
rosas brancas; em seguida ela se prosterna, estendem sobre ela um grande
véu preto e cantam o ofício dos mortos. Então as religiosas se dividem em
duas fileiras, uma passa perto dela e diz, em tom lastimoso: nossa irmã
morreu, a outra fileira responde em tom alegre: está viva em Jesus Cristo!
Na época em que se passa esta história, havia um pensionato junto ao
convento. Pensionato de jovens nobres, a maioria rica, entre as quais se
distinguiam as senhoritas de Sainte-Aulaire e de Bélissen, e uma inglesa
que tinha o ilustre sobrenome católico de Talbot. Essas jovens, educadas
por aquelas religiosas entre quatro paredes, cresceram com horror ao
mundo e ao século. Um dia, uma delas nos disse: Ver o calçamento da rua
fazia-me estremecer da cabeça aos pés. Andavam vestidas de azul com
uma touca branca e um Espírito Santo de cobre ou prata dourada no peito.
Em certos dias de grande festa, particularmente no dia de Santa Marta,
permitiam, como extremo favor e suprema felicidade, que se vestissem
como religiosas e fizessem os ofícios e as práticas de São Bento durante o
dia inteiro. Nos primeiros tempos, as religiosas emprestavam-lhes suas
vestes pretas; mas isso pareceu profano, e a prioresa proibiu. Tal
empréstimo só era permitido às noviças. Deve-se notar que essas
representações, decerto toleradas e estimuladas no convento por um
secreto espírito de proselitismo, e para dar àquelas crianças um gosto
antecipado pelo santo hábito, eram uma felicidade real e uma verdadeira
recreação para as pensionistas. Divertiam-se simplesmente com aquilo.
Era novidade, aquilo as transformava. Cândidas razões infantis, que não
chegam, todavia, a fazer-nos compreender, a nós, mundanos, a felicidade
de segurar um aspersório e de ficar de pé horas seguidas, cantando em
quarteto diante de uma estante.
As alunas, excetuando-se as austeridades, se conformavam com todas
as práticas do convento. Houve uma jovem que, mesmo voltando ao
mundo, e após vários anos de casada, ainda não perdera o costume de dizer
apressadamente: para sempre! todas as vezes que batiam à sua porta. Do
mesmo modo que as religiosas, as pensionistas só viam os parentes no
locutório; nem suas mães obtinham permissão para abraçá-las. Um
exemplo que mostra até onde chegava a severidade a esse respeito: um dia,
uma jovem foi visitada por sua mãe, que estava acompanhada por uma
outra filhinha de três anos. A pequena chorava, pois queria abraçar a irmã.
Impossível. A mãe suplicou que fosse ao menos permitido à criança passar
a mãozinha pela grade para a irmã beijar. Também isso foi recusado, quase
escandalosamente.
IV. ALEGRIAS
Nem por isso aquelas jovens deixavam de encher a severa casa de
recordações agradáveis.
Em certos momentos, a infância resplandecia naquele claustro. Hora
do recreio. Uma porta girava em seu eixo; os passarinhos exclamavam:
“Bom! Aí vêm as crianças!” Uma irrupção de juventude inundava aquele
jardim, disposto em forma de cruz como uma mortalha. Rostos radiantes,
frontes alvas, olhos ingênuos cheios de alegre brilho, todo tipo de aurora
se espalhava naquelas trevas. Após os salmos, os sinos, os repiques, os
dobres, os ofícios, de repente explodia aquele rumor de meninas, mais
suave que o das abelhas. Abria-se a colmeia da alegria e cada uma trazia
seu mel. Brincavam, chamavam umas pelas outras, reuniam-se em grupos,
corriam; belos dentinhos brancos tagarelavam em todo canto; os véus, de
longe, vigiavam os risos, as sombras espiavam os brilhos, mas que
importava? Elas brilhavam e riam. Aqueles quatro muros lúgubres tinham
seu minuto de encanto. Assistiam, vagamente branqueados pelo reflexo de
tamanha alegria, àquele doce turbilhão de enxames. Era como uma chuva
de rosas atravessando aquele luto.
As jovens se divertiam sob a vigilância das religiosas; o olhar da
impecabilidade não constrange a inocência. Graças àquelas crianças, em
meio a tantas horas austeras, havia também a hora inocente. As pequenas
saltavam, as maiores dançavam. Naquele claustro, as brincadeiras eram
entremeadas de céu. Não havia nada mais encantador e sagrado que todas
aquelas almas desabrochando. Homero viria ali sorrir em companhia de
Perrault. Naquele escuro jardim havia juventude, saúde, barulho, gritos,
deslumbramento, prazer, felicidade, suficientes para desenrugar a fronte
de todas as avós, tanto as da epopeia como as do conto, tanto as do trono
como as da choupana, desde Hécuba até Mère-Grand.
Diziam-se naquela casa, mais talvez do que em qualquer outra, esses
ditos de criança tão graciosos, e que fazem rir, com um riso cheio de
devaneio. Foi entre aquelas quatro fúnebres paredes que uma criança de
cinco anos um dia exclamou: Madre! Uma grande me disse que só me
faltam nove anos e dez meses para ficar aqui. Que felicidade!
Foi também ali que se deu este diálogo memorável:
UMA MADRE VOCAL — Por que está chorando, filhinha?
A CRIANÇA (de seis anos) soluçando — Eu disse a Alix que eu sabia
a história da França. Ela disse que eu não sabia, mas eu sei.
ALIX (a grande, de nove anos) — Mas ela não sabe.
A MADRE — Como assim, minha filha?
ALIX — Ela falou para eu abrir um livro ao acaso e lhe fazer qualquer
pergunta do livro, e ela responderia.
— E então?
— Ela não respondeu.
— Vamos ver. O que você lhe perguntou?
— Eu abri o livro ao acaso, como ela disse, e fiz a primeira pergunta
que encontrei.
— E que pergunta foi?
— Foi esta: Que aconteceu depois?
Foi ali que a seguinte observação foi feita a respeito de um periquito
meio guloso, que pertencia a uma das pensionistas:
— Que engraçadinho! Ele come só o que está sobre o pão, parece
gente!
Foi em uma das lajes desse claustro que a seguinte confissão, de uma
pecadora de sete anos, foi encontrada, escrita de antemão para que não se
esquecesse:
Foi sobre a relva desse jardim que o seguinte conto foi improvisado
por uma boca rosada de seis anos, e ouvido por olhos azuis de quatro a
cinco anos:
“Era uma vez três galinhos que viviam num lugar onde havia muitas
flores. Eles colheram as flores e as colocaram em seus bolsos. Depois
colheram as folhas e as colocaram em seus brinquedos. Mas nesse lugar
havia um lobo e muitos bosques; e o lobo ficava no bosque, e ele comeu os
galinhos”.
E mais este outro poema:
V. DISTRAÇÕES
Por cima da porta do refeitório estava escrita em grandes letras pretas
esta oração que chamavam Pai-nosso branco, e que tinha como virtude
levar as pessoas diretamente ao paraíso:
“Pequeno pai-nosso branco, que Deus fez, que Deus designou e que Deus colocou no
paraíso. À noite, indo deitar, encontrei em minha cama três anjos deitados: um aos pés, dois
à cabeceira, a boa Virgem Maria no meio, dizendo-me para deitar e nada temer. O bom
Deus é meu pai, a boa Virgem é minha mãe, os três apóstolos são meus irmãos e as três
virgens minhas irmãs. Na camisa em que Deus nasceu, meu corpo está envolto; a cruz de
Santa Margarida em meu peito está gravada; a senhora Virgem anda pelos campos,
chorando, à procura de Deus, e encontra São João. São João, de onde vem o senhor? Venho
de Ave Salus. Não viu por lá o bom Deus? Ele está na árvore da cruz, os pés pendentes, as
mãos pregadas, um chapeuzinho de espinhos brancos na cabeça. Quem isso rezar três vezes
à noite, três vezes de manhã, no final, o paraíso ganhará”.
[importância.
Que o poder supremo nos proteja, a nós e a nossos bens.
Se disseres estes versos, não serás furtado.
__________________________
1 Em francês, clés significa “chave”.
2 “Ninguém comunicará nossas regras ou regulamentos a estranhos”.
3 Trocadilho com a palavra vacarme, que significa barulheira, estrépito.
4 “Depois dos corações, as pedras.”
5 “Elas levantaram voo.”
6 “Esta é minha tumba; morri aos vinte e três anos.”
LIVRO VII
PARÊNTESE
V. A ORAÇÃO
Eles oram.
A quem?
A Deus.
Orar a Deus, o que isso quer dizer?
Há um infinito fora de nós? Esse infinito é único, imanente,
permanente, necessariamente substancial posto que é infinito e que, se lhe
faltasse a matéria, ficaria limitado? Necessariamente inteligente, posto
que é infinito e que, se lhe faltasse a inteligência, acabaria ali? Esse
infinito desperta em nós a ideia de essência, enquanto que não podemos
atribuir a nós mesmos senão a ideia de existência? Em outras palavras, não
é ele o absoluto daquilo de que somos o relativo?
Ao mesmo tempo que há um infinito fora de nós, não há um outro
infinito dentro de nós? Esses dois infinitos (que horroroso plural!) não se
sobrepõem um ao outro? O segundo infinito não é, por assim dizer,
subjacente ao primeiro? Não é o seu espelho, seu reflexo, seu eco, abismo
concêntrico a um outro abismo? Este segundo infinito também é
inteligente? Pensa? Ama? Tem vontade? Se os dois infinitos são
inteligentes, cada um deles tem um princípio de vontade, e há um eu no
infinito de cima, do mesmo modo que há um eu no infinito de baixo. O eu
de baixo é a alma; o eu de cima é Deus.
Colocar o infinito de baixo em contato com o infinito de cima, por
meio do pensamento, é o que se chama orar.
Não retiremos nada ao espírito humano; é ruim suprimir. É preciso
reformar e transformar. Certas faculdades do homem dirigem-se para o
Incógnito, o pensamento, a meditação, a oração. O Incógnito é um oceano.
O que é a consciência? É a bússola do Incógnito. Pensamento, meditação,
oração, essas são grandes irradiações misteriosas. Respeitemo-las. Para
onde vão essas majestosas irradiações da alma? Para a sombra, quer dizer,
para a luz.
A grandeza da democracia consiste em nada negar, nem nada renegar
da humanidade. Próximo ao direito do Homem, pelo menos ao lado, há o
direito da Alma.
Esmagar os fanatismos e venerar o infinito, tal é a lei. Não nos
limitemos a prostrar-nos sob a árvore Criação e a contemplar seus imensos
ramos cheios de astros. Temos um dever: trabalhar para a alma humana,
defender o mistério contra o milagre, adorar o incompreensível e rejeitar o
absurdo, não admitir, a respeito do inexplicável, senão o necessário, sanear
a crença, tirar as superstições de cima da religião, livrar Deus das lagartas.
__________________________
1 Chefe dos eunucos negros em Constantinopla, um dos grandes homens do Império
Otomano.
2 “…boi embranquecido pela cal…” (Juvenal, Sátiras).
3 “Elevado a Deus por Voltaire.”
LIVRO VIII
OS CEMITÉRIOS RECEBEM O QUE
LHES DÃO
IX. CLAUSURA
No convento, Cosette continuou calada.
Cosette, muito naturalmente, julgava-se filha de Jean Valjean. De
resto, não sabendo de nada, nada podia dizer, e além disso, em todo caso,
nada teria dito. Acabamos de fazer esta observação: nada prepara uma
criança tão bem para o silêncio quanto o infortúnio. Cosette sofrera tanto
que temia tudo, até falar, até respirar. É que muitas vezes uma só palavra
fizera desabar sobre ela uma avalanche! Só começara a tranquilizar-se
depois de estar com Jean Valjean. Habituou-se rapidamente ao convento.
Apenas sentia falta de Catherine, mas não ousava confessar. Uma vez,
porém, disse a Jean Valjean: “Pai, se eu soubesse, eu a teria trazido”.
Cosette, tornando-se interna do convento, teve de usar o hábito das
alunas da casa. Jean Valjean conseguiu que lhe restituíssem as roupas que
ela não vestiria mais. Eram as mesmas vestimentas de luto que ele a fizera
usar quando deixou a taverna dos Thénardier. Ainda não estavam muito
gastas. Jean Valjean colocou tudo, inclusive as meias de lã e os sapatos,
com bastante cânfora e todos os aromas que abundam nos conventos, em
uma pequena mala que conseguiu arranjar. Colocou essa mala em cima de
uma cadeira perto de sua cama, e sempre trazia a chave consigo.
— Pai — perguntou-lhe um dia Cosette —, que caixa é aquela que
cheira tão bem?
Além da ignorada glória que acabamos de mencionar, Fauchelevent foi
recompensado por sua boa ação; primeiro com o prazer que sentia; depois
porque tinha bem menos serviço, já que o dividia. Finalmente, como
gostava muito de tabaco, em presença do senhor Madeleine encontrava a
vantagem de tê-lo três vezes mais do que antes, e de um modo
infinitamente mais prazeroso, visto que era o senhor Madeleine quem
pagava.
As religiosas não adotaram o nome Ultime; elas chamavam Jean
Valjean de o outro Fauvent.
Se aquelas santas mulheres possuíssem algo do olhar de Javert,
poderiam acabar notando que, quando alguma coisa precisava ser
comprada para a manutenção do jardim, era sempre o Fauchelevent mais
velho, o enfermo, o manco, que saía, e nunca o outro; mas, seja porque os
olhos sempre fixos em Deus não sabem espionar, seja porque, de
preferência, estivessem ocupados em espreitar-se mutuamente, eles nunca
prestaram atenção naquilo.
De resto, Jean Valjean fez bem em ficar quieto e não se mostrar. Javert
observou os arredores por mais de um mês.
O convento era para Jean Valjean como uma ilha cercada de abismos.
Aquelas quatro paredes eram agora o mundo para ele. Dali, via o céu o
suficiente para manter-se sereno, e via Cosette o suficiente para sentir-se
feliz.
Uma vida bem tranquila recomeçou para ele.
Morava com Fauchelevent na choupana, ao fundo do jardim. O
casebre, construído com restos de materiais, que existia ainda em 1845,
compunha-se, como se sabe, de três quartos completamente vazios, que só
tinham as paredes. O principal deles foi cedido por Fauchelevent, com
muita insistência, a Jean Valjean, que, em vão, tentou resistir. A parede
deste quarto, além dos dois pregos destinados a dependurar a joelheira e o
cesto, tinha como ornamento uma cédula de papel-moeda realista de 93,
pregada acima da lareira, com o seguinte e exato fac-símile:
Exército Católico
Por Ordem do Rei
Cédula comerciável de dez libras
para objetos fornecidos ao exército
reembolsável na paz
Série 3 N° 10.390
Stofflet
e Real
__________________________
1 Palavra que inicia o salmo no ofício dos mortos.
2 “Esta oferenda [que vos entregamos…]”: palavras ditas pelo sacerdote no início da
Consagração, no ritual da missa.
3 “A cruz se mantém imóvel enquanto o mundo percorre o espaço.”
4 Nome de uma instituição de ensino para filhos de oficiais.
5 “Os que dormem no pó da terra despertarão; uns na vida eterna, outros no opróbrio, com os
olhos abertos para todo o sempre.” “Das profundezas [grito a ti, Senhor…].” “Dai-lhe, Senhor, o
descanso eterno.” “Que a luz brilhe sem fim para ele.”
6 “Não perder a carta” [geográfica, o mapa]: expressão usada no sentido de não se desviar,
não se perturbar, não deixar embaralhar os pensamentos. E, aqui, no sentido material, fazendo
alusão ao cartão de identificação.
7 Alusão à fórmula evangélica: “A César o que é de César, a Deus o que é de Deus”.
TERCEIRA PARTE
Marius
LIVRO I
PARIS ESTUDAVA EM SEUS ÁTOMOS
I. PARVULUS1
PARIS TEM UM menino e a floresta tem um pássaro. O pássaro chama-se
pardal; o menino chama-se moleque.
Juntem essas duas ideias que contêm, uma, todo o fogo, a outra, toda a
aurora; façam estas duas faíscas se chocarem, Paris, a infância; daí brotará
um pequeno ser. Homuncio, como diria Plauto.
Esse pequeno ser é alegre. Não come todo dia, mas, se bom lhe
parecer, vai ao espetáculo todas as noites. Não tem uma camisa no corpo,
não tem calçado nos pés, nem um teto sobre a cabeça; ele é como as
moscas do céu que não têm nada de tudo aquilo. Tem entre sete e treze
anos, vive em bandos; vagueia pelas ruas; dorme ao relento; usa umas
calças velhas que eram de seu pai, tão compridas que passam dos
calcanhares, usa um velho chapéu, de algum outro pai, que vai abaixo das
orelhas, um único suspensório de tiras amarelas; corre, espia, mendiga,
mata o tempo, fuma cachimbo, xinga como um condenado, frequenta as
tavernas, conhece ladrões, conversa com as meretrizes, fala gíria, canta
canções obscenas, mas não tem nada de mal em seu coração. É que, na
alma, tem uma pérola, a inocência, e as pérolas não se desfazem na lama.
Enquanto o homem é criança, Deus quer que ele seja inocente.
Se perguntássemos à grande cidade: “Mas quem é ele?”, ela
responderia: “É meu filho”.
__________________________
1 Do latim, o pequenino, o pequeno homem.
2 Titi — Jovem operário dos arredores de Paris.
3 Atriz do teatro francês que viveu de 1766 a 1817.
4 Muche: gíria que tem sentido pejorativo.
5 Termo francês que faz referência ao carnaval.
6 Gigante Adamastor, herói de Os lusíadas, de Camões.
7 Citação indireta de versos de Horácio: “A ânfora foi iniciada, o torno do oleiro gira; por que
daí sai apenas uma cânfora?”
8 Referência aos versos do capítulo seguinte, do mesmo autor: “A Fuscus, que gosta da
cidade, eu, que gosto do campo, faço minha saudação” (Epístolas).
9 No texto original francês, Gamin.
10 Praça onde se executavam os condenados.
11 Referência a Joseph Bara, garoto que durante a revolução na França foi capturado pelo
exército e ao ser exigido que falasse Vive le Roi (“Viva o Rei!”), gritou: Vive la République (“Viva
a república!”) antes de ser morto. O artista David d’Angers imortalizou-o com sua obra “Barra”
de 1838.
12 “Tal Paris, tal homem.”
13 “Quem me para, agora que estou apressado, segurando-me por meu casaco?” (Plauto).
14 Caudas vermelhas (queues rouges): personagens grotescos do teatro popular que prendiam
suas perucas com fitas vermelhas.
15 Pierre Jacques Étienne Cambronne (1779 – 1842) foi um general do império francês. Lutou
nas guerras revolucionárias e na Era Napoleônica.
16 Fex urbis — “lama da cidade”; mob — “populacho”.
LIVRO II
O GRANDE BURGUÊS
III. LUC-ESPRIT
Aos dezesseis anos, uma noite no Ópera, teve a honra de ser flertado ao
mesmo tempo por duas beldades, então maduras, célebres e cantadas por
Voltaire, a Camargo e a Sallé. Apanhado entre dois fogos, fizera uma
retirada heroica em direção a uma pequena dançarina chamada Nahenry,
que tinha dezesseis anos, e, como ele, era obscura como um gato, e pela
qual estava apaixonado. Conservava muitas recordações desse tempo.
Exclamava: “Como estava linda, aquela Guimard-Guimardini-
Guimardinette, a última vez que a vi em Longchamps, tocada por
sentimentos elevados, com seus adereços de turquesa, seu vestido cor de
quem chegou há pouco, e seu manchon3 de agitação!”
Na adolescência, usara uma jaqueta de Nain-Londrin4 da qual falava
com gosto e efusão.
“Eu andava vestido como um turco do Levante levantino”, dizia ele. A
senhora de Boufflers, quando por acaso o viu, à época em que ele tinha
seus vinte anos, o qualificara de “um louco encantador”. Ele
escandalizava-se com todos os nomes que via figurar na política ou no
poder, achando-os baixos e burgueses. Lia os jornais, os papéis-notícias,
as gazetas, como ele dizia, rindo às gargalhadas. “Oh!”, dizia ele, “que
gente é essa? Corbière, Humann! Casimir Périer! Esses, são ministros. Eu
imagino o seguinte em um jornal: ‘Senhor Gillenormand, ministro!’, o que
seria uma farsa. Pois bem! São tão bobos que passaria!”
Chamava alegremente todas as coisas pelo nome apropriado ou pelo
nome indecente, sem ficar constrangido diante das mulheres. Dizia
grosserias, obscenidades e coisas sujas com certo ar tranquilo e pouco
admirado que chegava a ser elegante. Era o próprio sem–cerimônias de seu
século. Deve-se notar que o tempo das perífrases em verso foi o tempo das
cruezas em prosa. Seu padrinho predissera que ele seria um homem de
gênio, e dera-lhe estes dois significativos prenomes: Luc-Esprit.
IV. ASPIRANTE CENTENÁRIO
Na infância, Gillenormand recebeu prêmios no Colégio de Moulins,
cidade onde nascera, e foi coroado pela mão do duque de Nivernais, a
quem chamava de duque de Nevers. Nem a Convenção, nem a morte de
Luís XVI, nem Napoleão, nem o retorno dos Bourbons, nada conseguiu
apagar a lembrança dessa coroação. O duque de Nevers era para ele a
grande figura do século. “Que encantador grande senhor”, dizia ele, “e
como ficava bem com seu cordon bleu!”5 Aos olhos do senhor
Gillenormand, Catarina II havia reparado o crime da divisão da Polônia
comprando, por três mil rublos, o segredo do elixir de ouro em Bestuchef.
A esse respeito, animava-se. “O elixir de ouro”, exclamava, “a tinta
amarela de Bestuchef, as gotas do general Lamotte, no século XVIII, ao
preço de um luís o frasco de meia onça, eram o grande remédio para as
catástrofes do amor, a panaceia contra Vênus. Luís XV mandava duzentos
frascos dele ao papa”. Se alguém lhe dissesse que o elixir de ouro não
passava de percloreto de ferro, faria com que ficasse muito exasperado e
perdesse as estribeiras.
O senhor Gillenormand adorava os Bourbons e tinha horror a 1789;
contava sem cessar de que modo se salvara na época do Terror, e como
precisara de bastante vivacidade e esperteza para não ter a cabeça cortada.
Se algum jovem se atrevesse a elogiar a República em sua presença, ficava
azul de raiva e se irritava a ponto de perder os sentidos. Às vezes, fazia
alusão aos seus noventa anos e dizia: Espero não ver duas vezes o noventa
e três. Outras vezes dava a entender às pessoas que ainda pretendia viver
cem anos.
V. BASQUE E NICOLETTE
Gillenormand tinha suas teorias. Eis uma delas: “Quando um homem
ama apaixonadamente as mulheres, e já tem sua própria mulher, com
quem se preocupa pouco, e é feia, rabugenta, legítima, cheia de direitos,
apegada ao código e ciumenta quando é preciso, só lhe resta um meio de
se livrar dela e viver em paz: entregar-lhe ‘a senha do cofre’. Essa
abdicação o torna livre. A mulher tem então com o que se ocupar, toma
gosto pelo manuseio do ‘metal’, que enche seus dedos de zinabre, investe
nas criações dos meeiros e na instrução dos fazendeiros, convoca
procuradores, preside escrivães, arenga tabeliães, visita magistrados,
acompanha processos, redige arrendamentos, dita contratos, sente-se
soberana, vende, compra, regulamenta, ordena, promete e compromete, faz
e desfaz, cede, concede e retrocede, arranja, desarranja, enriquece,
esbanja; faz besteiras, felicidade magistral e pessoal, e isso a consola.
Enquanto o marido a desdenha, tem ela a satisfação de arruinar o marido”.
Essa teoria, o senhor Gillenormand aplicou-a em sua vida, e ela
tornou-se sua história. Sua segunda mulher havia administrado sua fortuna
de tal modo que, quando um belo dia ele se viu viúvo, restava-lhe o
estritamente necessário para viver, convertendo quase tudo em títulos de
renda vitalícia, uns quinze mil francos, dos quais três quartos se
extinguiriam com sua morte. Não hesitara, pouco preocupado com o
cuidado de deixar uma herança. Além disso, tinha visto que os patrimônios
corriam riscos tornando-se às vezes bens nacionais, assistira às
metamorfoses do povo consolidadas, e acreditava pouco na razão. É tudo
Rua Quincampoix!6 — dizia ele.
Como já dissemos, a casa em que morava, na rua Filles-du-Calvaire,
era dele. Tinha dois criados, “um macho e uma fêmea”. Quando um criado
começava a trabalhar em sua casa, o senhor Gillenormand o rebatizava.
Dava aos homens o nome da província de onde eram naturais: Nîmois,
Comtois, Poitevin, Picard. Seu último criado era um homem gordo, de
cinquenta e cinco anos, cansado e com dificuldades para respirar, incapaz
de correr vinte passos; como tinha nascido em Bayonne7, o senhor
Gillenormand o chamava de Basque. Quanto às criadas, na casa dele todas
se chamavam Nicolette (inclusive Magnon, de quem mais adiante
falaremos). Um dia, apresentou-se ali uma orgulhosa cozinheira, cordon
bleu, de alta linhagem de zeladores.
— Quanto quer ganhar por mês? — perguntou-lhe o senhor
Gillenormand.
— Trinta francos.
— Como se chama?
— Olympie.
— Você receberá cinquenta francos, e vai se chamar Nicolette.
VI. ONDE SE ENTREVEEM MAGNON E SEUS DOIS
FILHOS
A dor do senhor Gillenormand traduzia-se em cólera; ficava furioso
quando estava desesperado. Tinha todos os preconceitos e tomava todas as
liberdades. Uma das coisas com que compunha seu relevo exterior e sua
satisfação íntima era, como acabamos de indicar, ter permanecido
namorador, e se passar energicamente por tal. Chamava a isso “ter fama
régia”. A tal fama régia produzia-lhe às vezes singulares surpresas. Um
dia, trouxeram-lhe, em cima de um burrico, como quem traz uma cesta de
ostras, um gorducho recém-nascido, berrando os diabos e devidamente
embrulhado em cueiros, que uma criada, despedida seis meses antes,
atribuía a ele. O senhor Gillenormand tinha então seus bons oitenta anos.
Indignação e clamor na vizinhança. E a quem essa atrevida esperava
enganar com isso? Que audácia! Que abominável calúnia! O senhor
Gillenormand, porém, não teve raiva nenhuma. Olhou para o pequeno com
o amável sorriso de quem sentiu-se lisonjeado pela calúnia, e disse como
se estivesse dirigindo-se a alguém: “Então? O que tem? O que é que há?
Vocês se admiram tanto, mas, na verdade, como gente ignorante. O senhor
duque de Angoulême, filho bastardo de Sua Majestade Carlos IX, casou
aos oitenta e cinco anos com uma moçoila de quinze; o senhor Virginal,
marquês d’Alluye, e irmão do cardeal de Sourdis, arcebispo de Bordeaux,
de oitenta e três anos, teve um filho de uma criada da senhora presidenta
Jacquin, um verdadeiro filho de amor, que veio a ser cavaleiro de Malta e
conselheiro militar de Estado; um dos grandes homens deste século, o
abade Tabaraud é filho de um homem de oitenta e sete anos. Essas coisas
não têm nada de incomum. E a Bíblia, então? Dito isso, declaro que esse
homenzinho não é meu. Mas tomemos conta dele. Não é sua culpa”.
O procedimento de Gillenormand foi bondoso demais. A criatura, a tal
que se chamava Magnon, fez-lhe uma segunda remessa no ano seguinte.
Era outro menino. Dessa vez, o senhor Gillenormand capitulou. Devolveu
à mãe os dois pequenos, propondo-se a dar oitenta francos por mês para
sustentá-los, com a condição de que ela não recomeçasse. E acrescentou:
“Quero que a mãe os trate bem. De tempos em tempos, irei vê-los”. E foi o
que fez. Teve um irmão padre que, por trinta e dois anos, fora reitor da
Academia de Poitiers, e morrera aos setenta e nove. Eu o perdi moço, dizia
ele. Esse irmão, de quem restaram poucas lembranças, era um sossegado
avarento que, por ser padre, julgava-se obrigado a dar esmola aos pobres
que encontrasse, mas só lhes dava moedinhas de pouquíssimo valor, ou já
sem valor algum, encontrando assim meio de ir para o inferno pelo
caminho do paraíso. Quanto ao senhor Gillenormand, irmão mais velho,
não regateava esmolas e as dava com gosto, e com nobreza. Era benévolo,
desabrido, caritativo, e, se tivesse sido rico, sua propensão, teria sido
grandioso. Queria que tudo o que lhe dissesse respeito fosse feito com
grandeza, mesmo as patifarias. Certa vez, tendo sido visível e
grosseiramente roubado em uma questão de herança, por um intendente,
soltou esta solene exclamação: “Ai! Está porcamente feito! Realmente
tenho vergonha dessas fraudes! Tudo se degenerou neste século, até os
tratantes! Caramba! Não é assim que se deve roubar um homem da minha
categoria! Fui roubado como se fosse em um bosque, mas mal roubado.
Silvae sint consule dignae!”8
Como já dissemos, tivera duas mulheres; com a primeira teve uma
filha, que ficou solteira; e com a segunda teve outra, que morreu mais ou
menos aos trinta anos, e que tinha casado, por amor ou por acaso ou por
qualquer outro motivo, com um soldado improvisado que servira nos
exércitos da República e do Império, sendo condecorado em Austerlitz e
promovido a coronel em Waterloo. É a vergonha da minha família, dizia o
velho burguês.
Usava muito rapé e tinha uma graça bem particular ao remexer na gola
de rendas com as costas da mão.
Acreditava muito pouco em Deus.
__________________________
1 Expressão sem correspondente em português. Pelo contexto, pode-se pensar que as palavras
pantoufloche e pantouflochade derivem de Pantoufler, verbo que significa conversar, papear, e
Pantoufle, chinelo, formando: “Para quem só conversa, chineladas!”
2 Como eram chamados os afetados elegantes da época.
3 Peça de forma cilíndrica usada para proteger as mãos do frio.
4 Tecido fino fabricado em Londres com lãs da Espanha.
5 Cordon bleu (cordão azul) — fita usada pelos dignitários de certas ordens de cavalaria ou
de certas sociedades.
6 Centro da especulação financeira por volta de 1716.
7 Comuna francesa, pertence ao Departamento dos Pirinéus Atlânticos, está integrada ao País
Basco francês.
8 Referência a um verso de Virgílio, das Bucólicas: “[Se cantamos nos bosques] que os
bosques sejam dignos de um cônsul”.
LIVRO III
O AVÔ E O NETO
I. UM ANTIGO SALÃO
QUANDO O senhor Gillenormand morava na rua Servandoni, frequentava
vários salões muito bons e muito nobres. Embora burguês, o senhor
Gillenormand era ali recebido. Como era duplamente um homem de
espírito, primeiro pelo que possuía, e depois pelo que lhe atribuíam, sua
presença era desejada e até festejada. Não ia a parte alguma senão para
dominar. Há gente que quer ter influência a qualquer preço, e quer que os
outros se ocupem deles; e quando não podem ser oráculos, fazem-se de
farsantes. O senhor Gillenormand não era dessa natureza; seu domínio nos
salões realistas que frequentava não custava nada ao respeito por si
mesmo. Em toda parte era oráculo. Chegava às vezes a fazer frente ao
senhor Bonald e até mesmo ao senhor Bengy-Puy-Vallée.
Por volta de 1817, ele passava, invariavelmente, duas tardes por
semana em uma casa da vizinhança, na rua Férou, pertencente à baronesa
de T., digna e respeitável pessoa, cujo marido, no reinado de Luís XVI,
tinha sido embaixador da França em Berlim. O barão de T., que, enquanto
vivo, caía apaixonadamente em êxtases e visões magnéticas, morreu
arruinado, deixando como toda fortuna, em dez volumes manuscritos,
encadernados em marroquim vermelho e dourado, memórias muito
curiosas sobre Mesmer e seu balde. A senhora de T. não publicara as
memórias por dignidade, e se sustentava com uma pequena renda que
havia subsistido não se sabe como. A baronesa vivia retirada da Corte,
mundo muito misturado, dizia ela, em isolamento nobre, altivo e pobre.
Alguns amigos se reuniam duas vezes por semana em volta de sua lareira
de viúva, o que constituía um salão realista puro. Ali tomava-se chá e
soltavam-se, conforme soprava o vento, para a elegia ou para os louvores
entusiastas, gemidos ou gritos de horror contra o século, contra a Carta,
contra os bonapartistas, contra a prostituição das condecorações
concedidas a burgueses, contra o jacobinismo de Luís XVIII; e ali se
falava, em tom muito baixo, das esperanças que dava o irmão do rei,
depois Carlos X.
Ali eram acolhidas, com manifestações de alegria, cantigas chulas em
que Napoleão era chamado de Nicolas. Duquesas, as mais delicadas e mais
encantadoras mulheres do mundo, se extasiavam com quadras como esta,
dirigida aos “federados”:
III. REQUIESCANT3
O salão da senhora de T. era tudo o que Marius Pontmercy conhecia do
mundo. Era a única abertura pela qual podia ver a vida. Essa abertura era
sombria e por ela chegava-lhe mais frio do que calor, mais escuridão do
que claridade.
Essa criança, que era só alegria e luz, ao entrar naquele mundo
estranho, em pouco tempo tornou-se triste, e, o que é ainda mais impróprio
a essa idade, tornou-se sério.
Rodeado de todas aquelas pessoas imponentes e singulares, olhava em
torno de si com um espanto sério. Tudo contribuía para aumentar-lhe tal
espanto. Frequentavam o salão da senhora de T. algumas nobres senhoras
idosas, muito respeitáveis, chamadas Mathan, Noé, Lévis, que se
pronunciava Levi, Cambis, que se pronunciava Cambyse. Aqueles rostos
antigos e esses nomes bíblicos misturavam-se, na mente do menino, ao
Antigo Testamento, que aprendia de cor; e quando todas elas achavam-se
sentadas em volta de um fogo quase apagado, mal iluminadas por uma
lamparina com quebra-luz verde, com seus perfis severos, seus cabelos
grisalhos ou brancos, seus longos vestidos de outro tempo, dos quais mal
se distinguiam as lúgubres cores, pronunciando a raros intervalos palavras
ao mesmo tempo majestosas e duras, o pequeno Marius as observava com
olhar admirado, julgando ver, não mulheres, mas patriarcas e magos, não
seres reais, mas fantasmas.
A esses fantasmas juntavam-se vários padres, que frequentavam aquele
velho salão, e alguns fidalgos; o marquês de Sassenaye, secretário de
ordens da senhora de Berry, o visconde de Valory, que publicava, sob o
pseudônimo de Charles-Antoine, odes de uma única rima; o príncipe de
Beauffremont, que, embora bem novo, tinha os cabelos grisalhos e uma
mulher bonita e espirituosa, cujos vestidos de veludo escarlate com
espirais douradas, muito decotados, espantavam aquelas trevas; o Marquês
de Coriolis d’Espinouse, o homem que, na França, melhor conhecia “a
delicadeza proporcionada”; o conde d’Amendre, bom homem, de
semblante benévolo; e o cavaleiro de Port-de-Guy, pilar da biblioteca do
Louvre, chamada de gabinete do rei. O senhor Port-de-Guy, calvo, e mais
envelhecido do que propriamente velho, contava que, em 1793, com a
idade de dezesseis anos, fora colocado na prisão como rebelde e
acorrentado a um octogenário, o bispo de Mirepoix, também rebelde, mas
na condição de padre, enquanto ele o era na condição de soldado. Estavam
em Toulon. Sua tarefa consistia em ir, à noite, recolher no cadafalso as
cabeças e os corpos dos que haviam sido guilhotinados pela manhã;
carregavam nas costas aqueles corpos ensanguentados, e as suas roupas
vermelhas de condenados tinham, na altura da nuca, uma crosta de sangue,
seca pela manhã, úmida à noite.
Essas histórias trágicas eram frequentes no salão da senhora de T.; e, à
força de maldizerem Marat, ali aplaudiam Trestaillon. Alguns deputados
do gênero “difícil de encontrar” jogavam ali seu whist,4 o senhor Thibord
du Chalard, o senhor Lemarchant de Gomicourt e o célebre crítico da
direita, senhor Cornet-Dincourt. O juiz de Ferrette, com suas calças curtas
e pernas finas, passava algumas vezes por esse salão quando ia à casa do
senhor Talleyrand. Tinha sido companheiro de prazeres do senhor conde
d’Artois, e, ao inverso de Aristóteles, que se acocorou sob Campaspe,
fizera Guimard andar de quatro, mostrando dessa forma aos séculos
vindouros um filósofo vingado por um juiz.
Quanto aos padres, eram o abade Halma, o mesmo a quem o senhor
Larose, seu colaborador no la Foudre, costumava dizer: Ora! Quem é que
não tem cinquenta anos? Talvez só alguns fedelhos!, o abade Letourner,
pregador régio, o abade Frayssinous, que ainda não era nem conde, nem
bispo, nem ministro, nem par, e que usava uma batina velha sem alguns
botões, e o padre Keravenant, abade de Saint-Germain des Prés; e mais o
núncio do papa, que então era o monsenhor Macchi, arcebispo de Nisibi,
mais tarde cardeal, notável por seu longo nariz de pensador, e ainda outro
monsenhor assim intitulado: abade Palmieri, prelado doméstico, um dos
sete protonotários participantes da Santa Sé, cônego da insigne Basílica
liberiana, advogado dos santos, postulatore di santi, o que diz respeito aos
negócios da canonização e significa, mais ou menos, referendário da seção
do paraíso; finalmente, dois cardeais, senhor de la Luzerne e senhor de
Clermont-Tonnerre. O cardeal de la Luzerne era escritor, e, anos mais
tarde, teria a honra de assinar no Conservateur [Conservador] alguns
artigos ao lado de Chateaubriand; o cardeal de Clermont-Tonnerre era
arcebispo de Toulouse, e vinha com frequência veranear em Paris na casa
de seu sobrinho, o marquês de Tonnerre, que foi ministro da Marinha e da
Guerra. O cardeal de Clermont-Tonnerre era um velhinho alegre que
mostrava as meias vermelhas sob a batina arregaçada; tinha como
especialidades odiar a “Enciclopédia” e jogar bilhar apaixonadamante; e
naquele tempo as pessoas que passavam, nas noites de verão, pela rua
Madame, onde era então o palácio de Clermont-Tonnerre, paravam para
ouvir o choque das bolas e a voz aguda do cardeal, que gritava a seu
conclavista, monsenhor Cottret, bispo in partibus de Caryste: Marque,
padre, carambolei.
O cardeal de Clermont-Tonnerre fora levado ao salão da senhora de T.
por seu amigo mais íntimo, senhor de Roquelaure, antigo bispo de Senlis e
um dos quarenta da Academia Francesa. O senhor de Roquelaure era
respeitável por sua elevada estatura e por sua assiduidade na Academia;
através da porta envidraçada da sala vizinha à biblioteca, onde a Academia
realizava então suas sessões, os curiosos podiam contemplar, toda quinta-
feira, o antigo bispo de Senlis, habitualmente de pé, empoado, de meias
roxas e com as costas voltadas para a porta, aparentemente para melhor
fazer-se notar.
Todos esses eclesiásticos, embora a maior parte deles fosse tanto de
homens da corte quanto de homens da Igreja, aumentavam a gravidade do
salão de T., cujo aspecto senhorial era acentuado por cinco pares da
França, o marquês de Vibraye, o marquês de Talaru, o marquês de
Herbouville, o visconde de Dambray e o duque de Valentinois. Este duque
de Valentinois, embora príncipe de Mônaco, isto é, príncipe soberano
estrangeiro, fazia tão elevada ideia da França e do pariato, que via tudo
através disso. Era ele quem dizia: Os cardeais são os pares da França de
Roma, os lordes são os pares da França da Inglaterra. No mais, pois neste
século é preciso que a Revolução esteja em toda parte, esse salão feudal
era, como já foi dito, dominado por um burguês. O senhor Gillenormand
ali reinava.
Ali estava a essência e a quintessência da sociedade branca de Paris.
Ali os renomados eram mantidos em quarentena, mesmo que fossem
realistas. Sempre há anarquia em meio à fama. Chateaubriand, entrando
ali, produziria o mesmo efeito que o padre Duchêne. Alguns ralliés,5 no
entanto, eram admitidos, por tolerância, naquele mundo ortodoxo. O conde
Beugnot era recebido ali a título de correção.
Os salões “nobres” de hoje em dia não se parecem mais com aqueles.
O atual bairro de Saint-Germain cheira a heresia. Os realistas de agora são
demagogos, que seja dito em seu louvor.
Na casa da senhora de T., onde a sociedade era superior, o gosto era
exótico e arrogante, sob uma grande nata de polidez. Seus costumes
comportavam todo tipo de refinamentos involuntários, que eram o próprio
Antigo Regime, enterrado, mas ainda vivo. Alguns desses costumes, na
linguagem principalmente, pareciam extravagantes. Conhecedores
superficiais tomariam por provincianismo o que não passava de vetustez.
Chamava-se uma dama de senhora generala. Senhora coronela não era
inteiramente inusitado. A encantadora senhora de Léon, decerto em
memória das duquesas de Longueville e de Chevreuse, preferia essa
denominação a seu título de princesa. Também a marquesa de Créquy era
chamada de senhora coronela.
Foi essa pequena alta sociedade que inventou nas Tulherias o requinte
de dizer, sempre que se falasse ao rei na intimidade, o rei, na terceira
pessoa, e nunca Vossa Majestade, pois o tratamento Vossa Majestade fora
“manchado pelo usurpador”.
Ali julgavam os fatos e os homens. Ridicularizavam o século, o que
dispensava compreendê-lo. Auxiliavam-se mutuamente em meio ao
espanto. Comunicavam-se com a quantidade de clareza que cada um
possuía. Era Matusalém informando Epimênides. O surdo pondo o cego a
par do que ocorria. Declarava-se nulo o tempo decorrido desde Coblentz.
Do mesmo modo que Luís XVIII, por graça de Deus, achava-se no
vigésimo quinto ano de seu reinado, os emigrados, por direito, estavam no
vigésimo quinto ano de sua adolescência.
Tudo era harmonioso; nada vivia demais; a palavra era apenas um
sopro; o jornal, de acordo com o salão, parecia um papiro. Ali, havia
jovens, mas estavam meio mortos. Na antecâmara, a criadagem estava em
plena velhice. Os personagens, completamente ultrapassados, eram
servidos por criados da mesma espécie. Tudo aquilo tinha o aspecto de ter
existido havia muito tempo e de obstinar-se contra o sepulcro. Conservar,
Conservação, Conservador, era esse, aproximadamente, todo o dicionário.
Être en bonne odeur,6 era a questão. Com efeito, havia aromas nas
opiniões daqueles veneráveis grupos, e suas ideias cheiravam a vetiver.
Era uma sociedade de múmias. Os amos estavam embalsamados, os
criados empalhados.
Uma velha marquesa emigrada e arruinada, não tendo mais que uma
criada, continuava a dizer: Meus criados.
O que se fazia no salão da senhora de T.? Era-se ultra.
Ser ultra; essa expressão, ainda que o que ela represente talvez ainda
não tenha desaparecido, não faz mais sentido. Expliquemos.
Ser ultra quer dizer ir além. É atacar o cetro em nome do trono e a
mitra em nome do altar; é maltratar aquilo que se conduz, é dar coices nos
cavalos, é contestar a fogueira quanto ao grau de cozimento dos hereges; é
censurar ao ídolo sua pouca idolatria; é insultar por excesso de respeito; é
achar no papa pouco papismo, no rei pouco realismo, e luz demais na
noite; é não se contentar com o alabastro, com a neve, com o cisne, com o
lírio, em nome da brancura; é ser partidário de uma causa a ponto de
tornar-se seu inimigo; é ser tanto a favor que se acaba sendo contra.
O espírito ultra é a principal característica da primeira fase da
Restauração. Não existe na história nada semelhante a esse quarto de hora
que começa em 1814 e termina por volta de 1820, com a aparição do
senhor de Villèle, o homem prático da direita.
Esses seis anos foram um momento extraordinário, ao mesmo tempo
brilhante e abatido, risonho e sombrio, iluminado como pelo clarão da
aurora e coberto pelas trevas das grandes catástrofes, que ainda enchiam o
horizonte e mergulhavam lentamente no passado. Existiu, em meio àquela
luz e àquela sombra, um pequeno mundo novo e velho, bufão e triste,
juvenil e senil, esfregando os olhos; nada é mais parecido com o despertar
do que o retornar; um grupo que olhava para a França com humor, e para o
qual a França olhava com ironia; ruas atulhadas de pobres mochos e
velhos marqueses; de desiludidos e de almas penadas; de “ci-devants”7
espantados com tudo; de bravos e nobres fidalgos sorrindo por estarem na
França, e também chorando, contentes por reverem sua pátria mas
desesperados por não mais encontrarem sua monarquia; a nobreza das
cruzadas desprezando a nobreza do império, quer dizer, a nobreza de
espada; as raças históricas perdendo o senso da história; os filhos dos
companheiros de Carlos Magno desdenhando os companheiros de
Napoleão. As espadas, como acabamos de dizer, insultavam-se
mutuamente; a espada de Fontenoy tornou-se risível e não passava de
enferrujada; a espada de Marengo tornou-se odiosa e não passava de um
sabre. O Outrora desconhecia o Ontem. Já não havia o sentimento do que
era grande, nem o sentimento do que era ridículo. Houve quem chamasse
Bonaparte de Scapin. Esse mundo já não existe. Nada, devemos repetir,
resta dele hoje. Quando, por acaso, revocamos alguma de suas figuras e
tentamos fazê-la reviver pelo pensamento, parece-nos estranho como um
mundo antediluviano. É que, efetivamente, ele também foi engolido por
um dilúvio. Desapareceu sob duas revoluções. Que torrente, a das ideias!
Como elas cobrem rapidamente o que têm por missão destruir e sepultar, e
como cavam depressa abismos terríveis!
Tal era a fisionomia dos salões daqueles tempos longínquos e cândidos
em que o senhor Martainville tinha mais espírito do que Voltaire.
Esses salões tinham uma literatura e uma política próprias. Ali
acreditava-se em Fievée, o senhor Agier ditava as leis, comentava-se
Colnet, o publicista alfarrabista do cais Malaquais, Napoleão era tido
unanimemente como Bicho-papão da Córsega. Mais tarde, a introdução na
história do senhor marquês de Buonaparté, tenente-general dos exércitos
reais, foi uma concessão ao espírito do século.
Esses salões não permaneceram puros por muito tempo. A partir de
1818, alguns doutrinários começaram a despontar neles, nuance
inquietante. Tinham como característica ser realistas e desculparem-se por
isso. Daquilo que os ultras tinham muito orgulho, os doutrinários tinham
um pouco de vergonha. Tinham talento; faziam silêncio; seu dogma
político era convenientemente engomado com arrogância; precisavam ser
bem-sucedidos. Abusavam utilmente, aliás, dos excessos de gravata
branca e de casaca abotoada. O erro, ou a desgraça, do partido doutrinário
foi criar a juventude velha. Posavam de sábios. Sonhavam em enxertar no
princípio absoluto e excessivo um poder temperado. Opunham, e algumas
vezes com rara inteligência, ao liberalismo demolidor, um liberalismo
conservador. Ouvia-se dizerem: “Graças ao realismo! Ele nos prestou mais
que um serviço. Trouxe de volta a tradição, o culto, a religião, o respeito.
Ele é fiel, bravo, cavalheiresco, dedicado, afetuoso. Vem juntar, ainda que
a contragosto, às novas grandezas da nação, as grandezas seculares da
monarquia. Comete o erro de não compreender a revolução, o império, a
glória, a liberdade, as ideias novas, as novas gerações, o século. Mas esse
erro que comete em relação a nós, não o cometemos também algumas
vezes em relação a ele? A Revolução, da qual somos herdeiros, deve ter
conhecimento de tudo. Atacar o realismo é o contra senso do liberalismo.
Que falta! E que cegueira! A França revolucionária faltando ao respeito
para com a França histórica, quer dizer, para com sua mãe, quer dizer, para
com ela mesma. Depois do 5 de setembro, trata-se a nobreza da monarquia
do mesmo modo que depois de 8 de julho se tratava a nobreza do império.8
Eles foram injustos para com a águia, nós somos injustos para com a flor-
de-lis. Sempre se deseja ter algo a proscrever! Desdourar a coroa de Luís
XIV, riscar o brasão de Henrique IV, que utilidade há nisso? Zombávamos
de Vaublanc, que apagava os N da ponte d’Iéna. E ele, o que fazia? O que
nós fazemos. Bouvines nos pertence, assim como Marengo. As flores-de-
lis são nossas, assim como os N. É nosso patrimônio. Para que diminuí-lo?
Não devemos renegar a pátria no passado mais do que a renegamos no
presente. Por que não querer toda a história? Por que não gostar da França
por inteiro?”
Era assim que os doutrinários criticavam e protegiam o realismo, que,
por sua vez, ficava descontente por ser criticado e furioso por ser
protegido.
Os ultras marcaram a primeira época do realismo; a congregação
caracterizou a segunda. O ímpeto foi sucedido pela habilidade.
Terminemos aqui esse esboço.
No curso desta narrativa, o autor deste livro encontrou em seu caminho
com esse curioso momento da história contemporânea; não pôde deixar de
lançar-lhe um olhar de passagem e de lembrar alguns dos lineamentos
singulares desta sociedade hoje desconhecida. Mas faz isso rapidamente e
sem nenhuma ideia amarga ou depreciativa. Lembranças, afetuosas e
respeitosas, pois dizem respeito a sua mãe, o ligam a esse passado. Além
do mais, temos de dizer, aquele mundinho tinha sua grandeza. Pode-se rir
dele, mas não se pode nem desprezá-lo nem odiá-lo. Era a França de
outrora.
Marius Pontmercy estudou o que estudam todas as crianças. Quando
saiu das mãos da tia Gillenormand, seu avô o confiou a um digno
professor da mais pura inocência clássica. Aquela alma jovem, que
desabrochava, passou das mãos de uma beata para as de um pedante.
Marius fez os anos de colégio, em seguida entrou para a escola de Direito.
Era realista, fanático e austero. Gostava pouco do avô, cuja alegria e
cinismo o incomodavam, e era triste no que tangia a seu pai.
No mais, era um rapaz ardente e frio, nobre, generoso, altivo, religioso,
exaltado; digno beirando a dureza, puro beirando a selvageria.
“Para meu filho. O imperador fez-me barão no campo de batalha de Waterloo. Visto que
a Restauração me contesta esse título, que paguei com meu sangue, meu filho o tomará e o
usará. Nem é preciso dizer que será digno dele”.
Atrás, o coronel havia acrescentado:
Não por consideração a seu pai, mas pelo vago respeito à morte, que é
sempre tão imperioso no coração do homem, Marius pegou o papel e o
guardou.
Nada restou do coronel. O senhor Gillenormand mandou vender a um
adelo sua espada e seu uniforme. Os vizinhos pilharam o jardim e as flores
raras. As outras plantas transformaram-se em mato, e morreram.
Marius não demorou quarenta e oito horas em Vernon. Após o enterro,
voltou a Paris e retomou as aulas de Direito, sem nunca mais pensar em
seu pai, como se ele nunca tivesse existido. Em dois dias, o coronel foi
enterrado, e, em três dias, esquecido.
Marius trazia uma tarja de luto no chapéu. Era tudo.
__________________________
1 As palavras sol, serre e case formam trocadilho com os nomes citados anteriormente. Na
tradução, embora seja mantido o sentido do trocadilho, não é possível guardar inteiramente a
correspondência fonética.
2 O personagem faz um jogo com as palavras suspendu [suspenso] e pendu (sem o Sus)
[enforcado], que não é possível manter em português.
3 “Que eles descansem [em paz]”: fórmula litúrgica da missa de finados.
4 Espécie de jogo de cartas comum nos séculos XVIII e XIX.
5 Partidários do Antigo Regime que aderiram às novas instituições.
6 Literalmente, “estar com bom odor”, “estar cheirando bem”; a expressão significa ter boa
reputação, causar boa impressão.
7 Aristocrata, pessoa ligada, por sua posição, ao Antigo Regime.
8 5 de setembro de 1816: dissolução da Câmara; 8 de julho de 1815: segundo retorno de Luís
XVIII a Paris, após a guerra dos Cem Dias.
9 Les bonnets rouges — partidários da Revolução Francesa.
10 Pronúncia pejorativa usada para referir-se a Napoleão.
LIVRO IV
OS AMIGOS DO ABC
V. AMPLIA-SE O HORIZONTE
Os choques entre espíritos jovens têm de admirável o fato de nunca se
poder prever a faísca, nem adivinhar o relâmpago que produzirão. O que
vai brotar daqui a pouco? Ignora-se. Uma gargalhada parte do
enternecimento. Em um momento de gracejo, a seriedade faz sua entrada.
Os impulsos dependem da primeira palavra pronunciada. A inspiração de
cada um é soberana. Basta uma graça para abrir campo ao inesperado. É
nas conversas com reviravoltas bruscas que a perspectiva repentinamente
muda. O acaso é seu maquinista.
Um pensamento severo, estranhamente saído de um tilintar de
palavras, atravessou de repente a mistura de frases entre as quais se
debatiam Grantaire, Bahorel, Prouvaire, Bossuet, Combeferre e
Courfeyrac.
Como uma frase sobrevém no diálogo? Como é que, de repente, ela se
sublinha por si mesma na atenção dos que a ouvem? Acabamos de dizer,
ninguém sabe. No meio da algazarra, Bossuet terminou de dizer a
Combeferre uma frase qualquer com esta data:
— 18 de junho de 1815, Waterloo.
Ao ouvir esse nome, Waterloo, Marius, apoiando o cotovelo sobre a
mesa, perto de um copo de água, tirou a mão de sob o queixo e começou a
olhar fixamente o auditório.
— Caramba — exclamou Courfeyrac —, esse número 18 é estranho,
me impressiona. É o número fatal de Bonaparte. Ponham Luís na frente e
Brumário atrás, e terão todo o destino do homem, com a expressiva
particularidade de que o começo foi perseguido de perto pelo final.
Enjolras, até então calado, rompeu o silêncio e dirigiu a Courfeyrac
estas palavras:
— Você quer dizer o crime pela expiação.
A palavra crime ultrapassava os limites do que Marius podia aceitar, já
que ficara bastante comovido pela súbita evocação de Waterloo.
Levantou-se, caminhou lentamente em direção ao mapa da França
pendurado na parede, em cuja parte inferior via-se uma ilha em um
compartimento separado, pôs o dedo sobre esse compartimento e disse:
— A Córsega. Uma pequena ilha que tornou a França muito grande.
Foi o sopro de um ar gélido. Todos se interromperam. Sentia-se que
alguma coisa ia começar.
Bahorel, respondendo a Bossuet, começava a fazer a pose de vantagem
que gostava de ostentar; renunciou a ela para escutar.
Enjolras, que não tinha os olhos azuis fixos em ninguém, e que parecia
contemplar o vazio, respondeu sem olhar para Marius:
— A França não precisa de Córsega nenhuma para ser grande. A
França é grande porque é a França. Quia nominor leo.21
Marius não sentiu sequer a vontade mais passageira de recuar; voltou-
se para Enjolras e sua voz soou com uma vibração que vinha da agitação
das entranhas:
— Tomara que eu não diminua a França! Mas não é diminuí-la o fato
de amalgamá-la a Napoleão. Então vamos conversar. Sou recém–chegado
entre vocês, mas confesso que me espantam. Em que ponto estamos?
Quem somos? Quem são vocês? Quem sou eu? Vamos nos explicar sobre o
imperador. Ouço dizerem Buonaparte, acentuando o u, como fazem os
realistas. Digo que meu avô faz melhor ainda, ele pronuncia Buonaparté.
Pensei que vocês fossem jovens. Onde colocam seu entusiasmo? O que
fazem dele? Quem admiram, se não admiram o imperador? E de que mais
precisam? Se não querem esse grande homem, quais grandes homens irão
querer? Ele tinha tudo. Era completo. Tinha em seu cérebro o cubo das
faculdades humanas. Fazia códigos como Justiniano, ditava como César,
sua conversa mesclava o raio de Pascal ao relâmpago de Tácito; ele fazia e
escrevia a história; seus boletins são como Ilíadas; combinava os
algarismos de Newton às metáforas de Maomé; deixou atrás de si, no
Oriente, palavras grandiosas como as pirâmides; em Tilsitt, ensinava o que
é majestade aos imperadores, na Academia de Ciências replicava a
Laplace, no Conselho de Estado fazia frente a Merlin, dava alma à
geometria de uns e à controvérsia de outros, era legista com os
procuradores e sideral com os astrônomos; como Cromwell, soprando uma
em cada duas lamparinas, ia ao Temple negociar um ornamento de cortina;
via tudo, sabia tudo, o que não o impedia de rir um riso franco junto ao
berço de seu filhinho; e, de repente, a Europa assustada escutava os
exércitos colocando-se em marcha, os parques de artilharia rodando,
pontes de barcos estendendo-se sobre os rios, enxames de cavalaria
galopando pela tempestade, gritos, trombetas, tronos estremecendo por
toda parte, fronteiras de reinos oscilando sobre o mapa; ouvia-se o ruído
de um gládio sobre-humano saindo da bainha, ele podia ser visto
elevando-se no horizonte com um brilho nas mãos e um resplendor nos
olhos, desdobrando no trovão suas duas asas, o grande exército e a antiga
guarda; era o arcanjo da guerra!
Todos se calaram, e Enjolras baixou a cabeça. O silêncio sempre
provoca um efeito de aquiescência ou de algo como encostar na parede.
Marius, quase sem retomar fôlego, continuou com mais entusiasmo ainda:
— Sejamos justos, meus amigos! Ser o império de um imperador
como esse, que esplêndido destino para um povo, ainda mais quando esse
povo é a França, e quando ele acrescenta seu gênio ao gênio daquele
homem! Aparecer e reinar, marchar e triunfar, ter como etapas todas as
capitais, tomar seus granadeiros e transformá-los em reis, decretar quedas
de dinastias, transfigurar a Europa rapidamente; que possamos sentir, ao
ameaçar, que colocamos a mão no punho da espada de Deus, que
seguimos, em um só homem, Aníbal, César e Carlos Magno; ser o povo de
alguém que mescla a todas as auroras o anúncio estrepitoso de uma
batalha ganha; ter como despertador o canhão de Invalides; lançar em
abismos de luz palavras prodigiosas que brilham para sempre, Marengo,
Arcole, Austerlitz, Iéna, Wagram; a cada instante fazer eclodir no zênite
dos séculos constelações de vitórias; dar o império francês, como seu
igual, ao império romano; ser a grande nação e gerar o grande exército,
fazer voar por toda a terra suas legiões, assim como uma montanha envia
suas águias para todos os lados; vencer, dominar, fulminar, ser na Europa
uma espécie de povo dourado à força de glórias, fazer ouvir através da
História uma fanfarra de titãs; conquistar o mundo duas vezes, pela
própria conquista e pelo deslumbramento, isso é sublime; e que pode
haver de maior?
— Ser livre — disse Combeferre.
Marius, por sua vez, baixou a cabeça. Essas palavras simples e frias
atravessaram como uma lâmina sua efusão épica, e ele a sentiu
esvanecendo-se em seu íntimo. Quando levantou os olhos, Combeferre não
estava mais ali. Provavelmente satisfeito com sua resposta à apoteose de
Marius, acabara de sair, e todos, exceto Enjolras, o seguiram. A sala se
esvaziara. Enjolras, que ficara só com Marius, olhava seriamente para ele.
Entretanto, tendo reatado o fio de suas ideias, Marius não se dava por
vencido; sentia um resto de efervescência que, sem dúvida, ia traduzir-se
em silogismos manifestados contra Enjolras, quando, de repente, ouviu-se
alguém que cantava na escada ao ir embora. Era Combeferre, cantando o
seguinte:
O tom terno e acre com que Combeferre os cantava dava a esses versos
uma espécie de estranha grandeza. Marius, pensativo e com os olhos
voltados para o teto, repetiu quase maquinalmente: “Minha mãe?…”
Nesse momento, sentiu em seu ombro a mão de Enjolras.
— Cidadão — disse-lhe Enjolras —, minha mãe é a República.
__________________________
1 Associação patriótica alemã, dissolvida em 1813, mas ramificada em sociedades secretas
semelhantes à Cougourde.
2 A sigla ABC aproveita-se da semelhança fonética com a palavra Abaissé — rebaixado,
diminuído, humilhado.
3 “O castrado na caserna”: Narsés, eunuco, foi general do Império Romano no séc. VI; “[O
que] os Bárbaros [não fizeram] os Barberini [fizeram]”: família romana que, no séc. XVII,
edificou seu palácio com materiais roubados de antigos monumentos; “Leis e Fogos”: divisa dos
liberais espanhóis; “Tu és Pedro e sobre essa pedra [construirei minha Igreja]”: promessa de
Cristo ao apóstolo.
4 Ano em que ocorreu a divisão da Polônia entre a Rússia, a Áustria e a Prússia.
5 “Como os corredores” (nas corridas de revezamento).
6 Boné de quatro pontas usado por doutores, eclesiásticos e juízes.
7 L’Aigle de Meaux (O Águia de Meaux) — assim era conhecido Jacques Benigne Bossuet,
prelado francês, um dos grandes nomes da literatura clássica.
8 A frase é “memorável”, pois, em francês, forma um trocadilho com as palavras cinq e saint,
que se pronunciam do mesmo modo, Fille de cinq louis (Moça de cinco luíses [ou cem francos])
— Fille de Saint-Louis (Filha de São Luís), mas com sentidos opostos.
9 Em francês, asas — ailes — e a letra L têm o mesmo som.
10 Mais um jogo de palavras, baseado na sonoridade do R maiúsculo ou “grande
R”—“grandR”— que se pronuncia da mesma forma que Grantaire, o que explica o enigma da
assinatura.
11 Nomes de duas formas de combate, que seguem certas regras, praticadas com pontapés.
12 Composta por Collé, dramaturgo do séc. XVIII — Gostamos de garotas e gostamos do
bom vinho (a grafia correta em francês seria: Nous aimons les filles et nous aimons le bon vin. O
personagem usa como sujeito a primeira pessoa do singular Je e o verbo na segunda do plural).
13 “Instruí-vos, vós que julgais a terra.”
14 “[O temor do Senhor é] o princípio da sabedoria” — Provérbios, Bíblia.
15 Nome do cavalo feito cônsul pelo imperador romano Calígula.
16 Rapin [aprendiz ou mau pintor]; rapine [roubo, pilhagem].
17 “Se o uso assim quiser.”
18 Em francês, significa “mulher” e soa como “fame”.
19 Renomado alfaiate de Paris, citado também por Balzac.
20 Animação, vivacidade.
21 “Porque me chamo leão” (Fedro, Fábulas).
22 “Pobreza” — referência ao verso de Juvenal, em Sátira: “Dificilmente têm êxito aqueles
cujas qualidades são estancadas pela estreiteza de sua fortuna”.
LIVRO V
EXCELÊNCIA DA DESGRAÇA
I. MARIUS INDIGENTE
A VIDA tornou-se austera para Marius. Comer suas roupas e seu relógio,
isso não era nada. Ele comeu esta coisa inexprimível a que chamam de o
pão que o diabo amassou. Coisa horrível que inclui os dias sem pão, as
noites sem luz e sem sono, a lareira sem fogo, as semanas sem trabalho, o
futuro sem esperança, o casaco roto nos cotovelos, o chapéu velho, que faz
as moças rirem, a porta, que à noite se encontra fechada porque não se
pagou o aluguel, a insolência do porteiro e do taverneiro, as zombarias dos
vizinhos, as humilhações, a dignidade pisoteada, a aceitação de trabalhos
de qualquer espécie, os desgostos, a amargura, o desalento. Marius
aprendeu a devorar todas essas coisas, e aprendeu que elas, muitas vezes,
são as únicas coisas que se tem para devorar. Naquele momento da
existência em que o homem necessita de orgulho, porque necessita de
amor, ele sentia-se escarnecido porque andava mal trajado, e ridículo
porque era pobre. Na idade em que a mocidade nos enche o coração de um
orgulho imperial, ele abaixou mais de uma vez os olhos para suas botas
furadas, e conheceu as vergonhas injustas e as pungentes humilhações da
miséria. Admirável e terrível provação da qual os fracos saem infames e
os fortes saem sublimes. Cadinho em que o destino lança um homem todas
as vezes que quer obter um miserável ou um semideus.
Pois produzem-se muitas grandes ações nas pequenas lutas. Há
bravuras perseverantes e ignoradas que se defendem palmo a palmo, nas
trevas, contra a fatal invasão das necessidades e das torpezas. Nobres e
misteriosos triunfos que nenhum olhar pode ver, que nenhuma fama pode
pagar, que nenhuma fanfarra saúda. A vida, a desgraça, o isolamento, o
abandono, a pobreza são campos de batalha que têm seus heróis, heróis
obscuros, às vezes maiores que os heróis ilustres.
Assim se criam naturezas firmes e raras; a miséria, quase sempre
madrasta, algumas vezes é mãe; a privação gera o poder de alma e de
espírito; a miséria alimenta a altivez; o infortúnio é um bom leite para os
magnânimos.
Houve um momento na vida de Marius em que ele varria o patamar de
sua escada, em que comprava um soldo de queijo Brie na quitanda, em que
esperava anoitecer para ir à padaria comprar um pão que furtivamente
levava para seu quarto, como se o tivesse roubado. Às vezes, via-se entrar
no açougue da esquina, no meio de cozinheiras zombando e acotovelando,
um jovem carregando dois livros debaixo do braço, desajeitado, de aspecto
tímido e furioso, que, ao entrar, tirava o chapéu da cabeça, que lhe escorria
em suor, e fazia uma profunda saudação à espantada dona do açougue, e
uma outra ao ajudante, pedia uma costela de carneiro, que lhe custava seis
ou sete soldos, embrulhava-a com papel, colocava-a debaixo do braço
entre os dois livros e ia-se embora. Era Marius. Com essa costeleta, que
ele próprio cozinhava, passava três dias.
No primeiro dia comia a carne, no segundo a gordura, no terceiro roía
os ossos.
Por muitas vezes a tia Gillenormand fez tentativas de mandar-lhe as
sessenta pistolas. Marius as devolvia constantemente dizendo que não
precisava de nada.
Ele ainda estava de luto por seu pai quando a revolução que
mencionamos ocorreu em seu íntimo. Desde então não deixara mais de
usar roupas pretas. No entanto, suas roupas é que o deixaram. Chegou o
dia em que não tinha mais casaco. As calças ainda resistiam. Que fazer?
Courfeyrac, a quem, por sua vez, tinha prestado alguns bons serviços, deu-
lhe um casaco velho. Por trinta soldos, Marius pediu a um alfaiate
qualquer que o virasse do avesso, e este ficou sendo o casaco novo. Esse
casaco era verde. Então, Marius só saía após o cair da noite, o que o fazia
parecer preto. Como continuava querendo andar de luto, vestia a noite.
Em meio a tudo isso, inscreveu-se como advogado. Consideravam-no
residente no quarto de Courfeyrac, que era decente, e onde um certo
número de livros de Direito, sustentados e completados com volumes de
romances avulsos, simulavam a biblioteca exigida pelo regulamento.
Pedia que endereçassem sua correspondência para a casa de Courfeyrac.
Quando Marius formou-se advogado, informou-o a seu avô por meio
de uma carta fria, mas cheia de submissão e respeito. O senhor
Gillenormand pegou a carta, e com um estremecimento leu-a e atirou-a,
rasgada em quatro, no cesto de lixo. Dois ou três dias depois, a senhorita
Gillenormand ouviu seu pai, que estava só no quarto, falando em voz alta.
Isso lhe acontecia todas as vezes que ficava muito agitado. Apurou os
ouvidos; o velho dizia: “Se não fosse um imbecil, saberia que não se pode
ser, ao mesmo tempo, barão e advogado”.
VI. O SUBSTITUTO
O acaso fez com que o regimento em que Théodule era tenente viesse
aquartelar-se em Paris. Isso deu oportunidade a uma segunda ideia de tia
Gillenormand. Ela havia, da primeira vez, imaginado fazer Marius ser
vigiado por Théodule; agora tramava fazer de Théodule sucessor de
Marius.
Em todo caso, e para o caso em que o avô tivesse uma vaga
necessidade de um rosto jovem em casa, pois esses raios de aurora são às
vezes benignos para as ruínas, era conveniente arranjar outro Marius. “Que
seja”, pensou ela, “é uma simples errata, como as que vejo nos livros;
Marius, leia-se Théodule”.
Um sobrinho é quase um neto; na falta de um advogado, serve um
lanceiro.
Uma manhã em que o senhor Gillenormand lia alguma coisa como la
Quotidienne, sua filha entrou e disse-lhe com sua voz mais meiga, pois
tratava-se de seu favorito:
— Meu pai, Théodule virá esta manhã apresentar-lhe seus respeitos.
— Que Théodule?
— Seu sobrinho.
— Ah! — exclamou o avô.
E voltou a ler, nem pensou mais no tal sobrinho, que era só um
Théodule qualquer, e não demorou a irritar-se bastante, o que lhe
acontecia toda vez que lia. A “folha” que tinha na mão, realista, nem é
preciso dizer, anunciava para o dia seguinte, sem delicadeza alguma, um
dos acontecimentos cotidianos da Paris de então: que os estudantes da
Escola de Direito e de Medicina deveriam reunir-se na praça do Panthéon
ao meio-dia, para deliberar. Tratava-se de uma das questões do momento,
da artilharia da Guarda Nacional, e de um conflito entre o Ministério da
Guerra e a “milícia cívica”, a respeito de canhões estacionados no pátio do
Louvre. Os estudantes deveriam deliberar sobre isso. Não era preciso
muito mais para exaltar o senhor Gillenormand.
Pensou em Marius, que era estudante, e que provavelmente iria, como
os outros, “deliberar, ao meio-dia, na praça do Panthéon”.
Quando estava nesse pensamento doloroso, o tenente Théodule entrou,
vestido à paisana, o que era inteligente, discretamente introduzido pela
senhorita Gillenormand. O lanceiro fizera o seguinte raciocínio: “O velho
druida não colocou tudo em renda vitalícia. Vale a pena disfarçar-me de
paisano de tempos em tempos”.
A senhorita Gillenormand disse a seu pai em voz alta:
— Théodule, seu sobrinho.
E disse em voz baixa para o tenente:
— Concorde com tudo.
E retirou-se.
O tenente, pouco acostumado com encontros tão veneráveis, balbuciou
com alguma timidez:
— Bom dia, meu tio — e fez uma saudação mista, composta do esboço
involuntário e maquinal da continência militar terminada como saudação
burguesa.
— Ah, é você! Está bem, sente-se — disse o avô. Dito isso, esqueceu-
se completamente do lanceiro.
Théodule sentou-se e o senhor Gillenormand levantou-se. Pôs-se a
andar de um lado para o outro, as mãos nos bolsos, falando alto e
apertando nos velhos dedos irritados os dois relógios que tinha em seus
dois bolsos.
— Esse bando de fedelhos! Que se convocam para a praça do
Panthéon! Ora essa! Pirralhos que ainda ontem mamavam! Mal saíram das
fraldas! E vão deliberar amanhã ao meio-dia! Onde vamos parar! Onde
vamos parar! Está claro que caminhamos para o abismo! Foi para onde nos
conduziram os descamisados! Artilharia cívica! Deliberar sobre a
artilharia cívica! Ir tagarelar ao ar livre sobre o barulho da Guarda
Nacional! E com quem eles vão se misturar! Vejam até onde pode levar o
jacobinismo! Aposto tudo que quiserem, um milhão contra qualquer coisa,
que ali só vai ter gente que já passou por condenações e forçados
liberados. Republicanos e forçados, são farinha do mesmo saco. Carnot
dizia: “Para onde queres que eu vá, traidor?” E Fouché respondia: “Para
onde quiseres, imbecil”. Assim são os republicanos.
— Exato — disse Théodule.
O senhor Gillenormand voltou um pouco a cabeça, viu Théodule e
continuou:
— Quando penso que aquele patife teve a pouca-vergonha de se tornar
carbonário! Por que saiu de minha casa? Para ir tornar-se republicano.
Pssst! Primeiro, o povo não quer saber da sua república, não quer, porque
tem bom senso, porque sabe que sempre houve reis e que sempre os
haverá, porque sabe que o povo, afinal de contas, é só o povo; ele zomba
da sua república, está ouvindo, cretino! É horrível o bastante, este
capricho? Tomar-se de paixão pelo Père Duchêne, olhar com ternura para a
guilhotina, cantar romanças e tocar violão sob as janelas de 1793, dá
vontade de cuspir em todos esses jovens, de tanto que são tolos! Todos eles
são. Nem um só escapa. Basta respirar o ar que circula na rua para que se
fique insensato. O século XIX é um veneno. Qualquer moleque deixa
crescer sua barba de bode, pensa que é realmente um esperto e deixa os
velhos para lá. É republicano, é romântico. Que vem a ser isso, romântico?
Façam o favor de me dizer o que é isso. Todas as loucuras possíveis. Há
um ano, tudo era Hernani. Pergunto a vocês, Hernani? Antíteses! Coisas
abomináveis que sequer são escritas em francês. E, ainda por cima, há
canhões no pátio do Louvre. Assim são as pilhagens dos tempos atuais.
— Tem razão, meu tio — disse Théodule.
O senhor Gillenormand continuou:
— Canhões no pátio do Museu! Para quê? Canhão, o que quer? Então
quer metralhar o Apolo de Belvedere? Que têm a ver os cartuchos com a
Vênus de Médici? Oh! Estes rapazes de agora são todos uns patifes! Que
grande coisa seu Benjamin Constant! E os que não são celerados são uns
patetas! Fazem tudo o que podem para ficarem feios; andam mal trajados,
têm medo das mulheres, em volta delas assumem tal ar de mendigar que
fazem gargalhar as moças; palavra de honra que parecem os pobres
envergonhados do amor. São disformes e estúpidos. Repetem os
trocadilhos de Tiercelin e de Potier; usam casacos-sacos, coletes de lacaio,
camisas de tecido grosseiro, calças de fazenda grosseira, botas de couro
grosseiro. Seria possível usar seu jargão como sola de seus chinelos. E
toda essa inepta criançada quer ter opiniões políticas. Devia ser duramente
proibido ter opiniões políticas. Eles fabricam sistemas, refazem a
sociedade, destroem a monarquia, jogam por terra todas as leis, colocam o
sótão no lugar do porão e meu porteiro no lugar do rei, reviram
completamente a Europa, reedificam o mundo, e julgam grande fortuna
ver sorrateiramente as pernas das lavadeiras quando sobem nas
carruagens! Ah! Marius! Ah! Vagabundo! Ir vociferar em praça pública!
Discutir, debater, tomar medidas! Eles chamam aquilo de medidas, meu
Deus! A desordem perde importância e se torna tola! Já vi o caos, agora
vejo o atoleiro. Estudantes deliberando sobre a Guarda Nacional, isso não
seria visto nem entre os ogibewas nem entre os cadodaches! Os selvagens
que andam completamente nus, com a cabeça enfeitada como uma peteca
e com uma clava na mão, são menos brutos do que esses bacharéis.
Fedelhos de meia pataca! Fazem-se de entendidos e de manda-chuvas!
Deliberam e raciocinam! É o fim do mundo! Evidentemente, é o fim deste
miserável globo terráqueo. Faltava um soluço final; a França o produz.
Deliberem, meus patifes! Essas coisas ocorrerão enquanto eles lerem os
jornais sob as arcadas do Odéon. Isso lhes custa um soldo, e seu bom
senso, e sua inteligência, e seu coração, e sua alma, e seu espírito. Saem de
lá e vão-se embora de suas famílias. Todos os jornais são uma peste; todos,
mesmo o Drapeau Blanc! No fundo, Martainville era um jacobino. Ah!
Justo céu! Você vai poder gabar-se de ter desesperado seu avô!
— Isso é evidente — disse Théodule.
E, aproveitando que o senhor Gillenormand tomava fôlego, o lanceiro
acrescentou magistralmente:
— Não deveria existir outro jornal além do Moniteur, nem outro livro
além do Anuário Militar.
O senhor Gillenormand prosseguiu:
— É como o tal Sieyès! Um regicida que acaba como senador! Pois é
sempre por aí que eles acabam. Injuriam-se tratando-se por você para
afinal fazerem-se tratar por “senhor conde”. Grande senhor conde,
assassinos de setembro! O filósofo Sieyès! Faço-me a justiça de nunca ter
dado mais importância às filosofias de todos esses filósofos do que aos
óculos do palhaço de Tivoli. Um dia vi passar os senadores pelo cais
Malaquais, com capas de veludo roxo, semeadas de abelhas, e com
chapéus à Henrique IV. Eram medonhos. Pareciam os macacos da corte do
tigre. Cidadãos, vos declaro que vosso progresso é uma loucura, que vossa
humanidade é um devaneio, que vossa revolução é um crime, que vossa
república é um monstro, que vossa jovem França donzela sai do lupanar, e
assevero a todos, quem quer que sejais, publicistas, economistas, legistas
ou mais conhecedores de liberdade, igualdade e fraternidade do que o
gume da guilhotina! É o que vos digo, meus camaradas!
— Muito bem — exclamou o tenente —, isso é admiravelmente
verdadeiro.
O senhor Gillenormand interrompeu um gesto que ia a fazer, voltou-se,
olhou fixamente para o lanceiro e lhe disse:
— Você é um imbecil.
__________________________
1 “…A bela enfezou-se, e o dragão…” — em francês, as palavras bouda e Bouddha (Buda)
têm a mesma pronúncia.
LIVRO VI
A CONJUNÇÃO DE DUAS ESTRELAS
IX. ECLIPSE
Acabamos de ver como Marius descobriu ou acreditou descobrir que
ela se chamava Ursule.
O apetite vem com o amor. Saber que ela se chamava Ursule já era
bastante, mas lhe parecia pouco. Em três ou quatro semanas Marius
devorara essa ventura. Agora queria outra. Queria saber onde ela morava.
Havia cometido uma primeira falta: cair na armadilha do banco do
Gladiador. Havia cometido uma segunda: não ficar no Luxemburgo quando
o senhor Leblanc ia para lá sozinho. E cometeu uma terceira. Imensa.
Seguiu “Ursule”.
Ela morava na rua de l’Ouest, na parte menos movimentada, em uma
casa nova de três andares, de modesta aparência.
A partir desse momento, Marius acrescentou à sua felicidade de vê-la
no Luxemburgo a felicidade de segui-la até sua casa.
Sua fome aumentava. Sabia como ela se chamava, pelo menos seu
primeiro nome, nome encantador, o verdadeiro nome de uma mulher;
sabia onde morava; quis saber quem era ela.
Uma tarde, após tê-los seguido até sua casa e tê-los visto desaparecer
atrás do portão, entrou logo depois e corajosamente disse ao porteiro:
— É o senhor do primeiro andar que acaba de entrar?
— Não — respondeu o porteiro. — É o do terceiro.
Mais um passo fora dado. Esse êxito fez Marius ser mais ousado.
— Mora de frente? — continuou ele.
— Ora! — exclamou o porteiro. — A casa foi construída só para a rua.
— E o que faz esse senhor? — retomou Marius.
— Vive de rendas. É um homem muito bom, que faz o bem aos
necessitados, embora não seja rico.
— Como ele se chama? — tornou Marius.
O porteiro levantou a cabeça e disse:
— O senhor é espião?
Marius foi embora bastante vexado, mas muito contente. Ele avançava.
— Bem — pensou —, sei que ela se chama Ursule, que é filha de
alguém que vive de rendas e que mora ali, no terceiro andar, rua de
l’Ouest.
No dia seguinte, o senhor Leblanc e sua filha passaram apenas
rapidamente pelo Luxemburgo. Foram embora enquanto ainda era dia
claro. Marius os seguiu à rua de l’Ouest, como já se acostumara a fazer.
Chegando ao portão, o senhor Leblanc fez sua filha passar primeiro, parou
antes de transpor a soleira, virou-se e olhou fixamente para Marius.
No dia seguinte, não foram ao Luxemburgo; Marius esperou em vão
durante o dia inteiro.
Ao escurecer, foi até a rua de l’Ouest, e viu luz nas janelas do terceiro
andar. Passeou sob essas janelas até que a luz se apagasse.
No dia seguinte, ninguém foi ao Luxemburgo. Marius esperou o dia
todo, depois foi fazer sua ronda noturna sob as janelas. Isso o ocupou até
as dez horas da noite. Seu jantar se tornava o que ele conseguia fazer. A
febre alimenta o enfermo, e o amor o enamorado.
Passaram-se oito dias dessa maneira. O senhor Leblanc e sua filha não
apareciam mais no Luxemburgo. Marius fazia tristes conjecturas, mas não
se atrevia a espiar o portão durante o dia. Contentava-se em ir, à noite,
contemplar a claridade avermelhada das vidraças. Em alguns momentos,
via umas sombras passando por ali, e então seu coração batia forte.
No oitavo dia, quando chegou sob as janelas, não havia luz.
— Oh! As luzes ainda não foram acesas — pensou —; mas já é noite.
Será que saíram?
Esperou até dez horas. Até meia-noite. Até uma da manhã. Nenhuma
luz se acendeu nas janelas do terceiro andar, e ninguém voltou para casa.
Foi embora muito entristecido.
No dia seguinte — pois vivia apenas de dia seguinte em dia seguinte;
não havia, por assim dizer, mais nenhum hoje para ele —, no dia seguinte,
não encontrou ninguém no Luxemburgo, como já esperava; ao anoitecer,
dirigiu-se à casa deles. Nem sinal de luz nas janelas; as persianas estavam
fechadas; o terceiro andar estava totalmente às escuras.
Marius bateu no portão, entrou e disse ao porteiro:
— E o senhor do terceiro andar?
— Mudou — respondeu o porteiro.
Marius abalou-se e disse com voz enfraquecida:
— Desde quando?
— De ontem.
— E onde mora agora?
— Não sei.
— Então não deixou seu novo endereço?
— Não.
E o porteiro levantando os olhos reconheceu Marius.
— Ah! É o senhor! — disse. — Mas então o senhor decididamente é
espião?
__________________________
1 “A Preta”, “O Branco”, referência às cores do vestido e dos cabelos.
2 “[Deus disse: que se faça a luz!] E a luz se fez” — terceiro versículo do Gênesis.
LIVRO VII
PATRON-MINETTE1
I. AS MINAS E OS MINEIROS
AS SOCIEDADES humanas têm todas aquilo a que, nos teatros, se dá o
nome de terceiro subsolo. O solo social é todo minado, ora para o bem, ora
para o mal. Essas minas estão sobrepostas. Há as minas superiores e as
minas inferiores. Há uma parte de cima e uma parte de baixo nesse
obscuro subsolo que às vezes desmorona sob a civilização, e que nossa
indiferença e nosso descuido deixam no esquecimento. No século passado,
a Enciclopédia era uma mina quase a céu aberto. As trevas, essas sombrias
chocadeiras do cristianismo primitivo, só esperavam uma oportunidade
para explodirem debaixo dos Césares e inundarem o gênero humano de
luz. Pois nas trevas sagradas existe a luz latente. Os vulcões estão plenos
de uma sombra capaz de flamejar. Toda a lava começa sendo escuridão. As
catacumbas, onde se rezou a primeira missa, não eram apenas os porões de
Roma, elas eram o subterrâneo do mundo.
Por baixo da construção social, essa maravilha que tem algo de
casebre, existem escavações de todo tipo. Existe a mina religiosa, a mina
filosófica, a mina política, a mina econômica, a mina revolucionária. Uma,
cavada com a ideia; outra, cavada com as cifras; e mais outra cavada com
a ira. Chamam-se e respondem-se de uma catacumba a outra. As utopias
caminham sob a terra por condutos. Aí se ramificam em todas as direções;
às vezes encontram-se e confraternizam. Jean Jacques empresta sua
picareta a Diógenes e este empresta-lhe sua lanterna. Outras vezes
combatem-se. Calvino agarra Socin pelos cabelos. Mas nada para ou
interrompe a tensão de todas essas energias em direção ao objetivo, nem a
vasta atividade simultânea que vai e que vem, sobe, desce e torna a subir
por essas obscuridades, e que transforma lentamente o de cima em de
baixo e o de fora em de dentro; imenso formigueiro desconhecido. A
sociedade mal suspeita dessas escavações que lhe deixam a superfície
intacta, mas que lhe alteram as entranhas. O mesmo tanto de andares
subterrâneos é o tanto de trabalhos diferentes, e o tanto de extrações
diversas. O que resulta de todas essas explorações profundas? O futuro.
Quanto mais se vai aprofundando, mais os operários são misteriosos.
Até certo ponto, que o filósofo social sabe reconhecer, o trabalho é bom;
além desse ponto, torna-se duvidoso e misto; e, mais abaixo, torna-se
terrível. A uma certa profundidade, as escavações não são mais
penetráveis ao espírito de civilização; o limite do respirável para o homem
é ultrapassado; um princípio de existência de monstros é possível.
A escala descendente é estranha; e cada um desses degraus
corresponde a um andar onde a filosofia pode firmar-se, e onde se
encontra um desses operários, às vezes divinos, às vezes disformes.
Abaixo de Jean Huss está Lutero; abaixo de Lutero está Descartes; abaixo
de Descartes está Voltaire; abaixo de Voltaire está Condorcet; abaixo de
Condorcet está Robespierre; abaixo de Robespierre está Marat; abaixo de
Marat está Babeuf. E assim por diante. Mais abaixo, confusamente, no
limite que separa o indistinto do invisível, enxergam-se outros homens
sombrios, que talvez ainda não existam. Os de ontem são espectros; os de
amanhã são larvas. Os olhos do espírito os distinguem obscuramente. O
trabalho embrionário do futuro é uma das visões do filósofo.
Um mundo no limbo em estado fetal, que silhueta extraordinária!
Saint-Simon, Owen, Fourier também estão ali, em fossas laterais.
Com efeito, ainda que uma divina cadeia invisível ligue uns aos outros
todos esses pioneiros subterrâneos que quase sempre se julgam isolados
mas, sem que o saibam, não estão, seus trabalhos são muito diversos, e a
luz de uns contrasta com o resplendor de outros. Uns são paradisíacos,
outros são trágicos. Contudo, qualquer que seja o contraste, todos esses
trabalhadores, desde o mais alto até o mais baixo, desde o mais sábio até o
mais louco, têm uma semelhança, a seguinte: o desinteresse. Marat
esquece de si mesmo, como Jesus. Põem-se de lado, omitem-se, não
pensam neles próprios. Veem outra coisa mas não eles mesmos. Têm um
olhar, e esse olhar procura o absoluto. O primeiro tem o céu todo nos
olhos; o último, por mais enigmático que seja, ainda tem sob o olhar a
pálida claridade do infinito. O que quer que faça, venerem aquele que tiver
este sinal, a pupila estrela.
A pupila escura é o outro sinal.
Nela começa o mal. Diante de quem não olha, reflitam e tremam. A
ordem social tem seus mineiros da escuridão.
Há um ponto em que o aprofundamento é um enterro, e a luz se apaga.
Abaixo de todas essas minas que acabamos de mencionar, abaixo de
todas essas galerias, abaixo de todo esse imenso sistema venoso
subterrâneo do progresso e da utopia, muito mais terra adentro, mais
abaixo que Marat, mais abaixo que Babeuf, mais abaixo, muito mais
abaixo, e sem relação alguma com os andares superiores, existe a última
fossa. Lugar formidável. É o que chamamos de terceiro subsolo. É a fossa
das trevas; o porão dos cegos. Inferi.2
Isso faz comunicação com os abismos.
II. O BAS-FOND3
Ali o desinteresse se dissipa. O demônio se esboça vagamente; cada
um por si. O eu sem olhos uiva, procura, apalpa e rói. O Ugolino social
está nesse abismo.
As silhuetas ferozes que vagueiam nessa cova, quase bestas, quase
fantasmas, não se ocupam do progresso universal, ignoram a ideia e a
palavra; só se preocupam com a saciedade individual. São quase
inconscientes, e, em seu íntimo, há uma espécie de supressão pavorosa.
Têm duas mães, ambas madrastas, a ignorância e a miséria. Têm um guia,
a necessidade; e, para todas as formas de satisfação, o apetite. São
brutalmente vorazes, quer dizer, ferozes; não à maneira do tirano, mas à
maneira do tigre. Do sofrimento, essas larvas passam ao crime; filiação
fatal, concepção vertiginosa, lógica de trevas. O que rasteja no terceiro
subsolo social não é mais a reclamação sufocada do absoluto; é o protesto
da matéria. Ali o homem torna-se dragão. Ter fome, ter sede, é o ponto de
partida; ser Satanás é o ponto de chegada. Desse porão sai Lacenaire.4
Há pouco, no livro IV, vimos um dos compartimentos da mina
superior, da grande fossa política, revolucionária e filosófica. Ali,
acabamos de dizer, tudo é nobre, puro, digno, honesto. Ali, é verdade, é
possível que nos enganemos, e nos enganamos; mas então o erro é
venerável, tal o heroísmo que implica. O conjunto do trabalho que ali se
faz tem um nome, Progresso.
É chegado o momento de entrever outras profundezas, as profundezas
medonhas.
Sob a sociedade, insistimos, existe e existirá, até o dia em que a
ignorância for dissipada, a grande caverna do mal.
Essa caverna fica abaixo de todas e é inimiga de todas. É o ódio sem
exceção. Essa caverna não conhece filósofos; seu punhal nunca talhou uma
pena. Seu negrume não tem nenhuma relação com o sublime negrume do
tinteiro. Jamais os dedos da escuridão, que se crispam debaixo desse teto
asfixiante, folhearam um livro ou abriram um jornal. Para Cartouche,
Babeuf é um explorador; para Schinderhannes, Marat é um aristocrata.
Essa caverna tem por objetivo o desmoronamento de tudo.
De tudo. Inclusive das cavernas superiores, por ela execradas. Com seu
horrível formigamento, ela mina, não somente a ordem social atual, mas
mina a filosofia, mina a ciência, mina o direito, mina o pensamento
humano, mina a civilização, mina a revolução, mina o progresso. Chama-
se simplesmente roubo, prostituição, homicídio e assassinato. Ela é as
trevas, ela quer o caos. Sua abóbada é feita de ignorância.
Todas as outras, as de cima, têm apenas uma finalidade, suprimi-la. É
para isso que tendem, a um só tempo, com todos os seus órgãos, e tanto
pelo melhoramento do real quanto pela contemplação do absoluto, a
filosofia e o progresso. Destruam a caverna Ignorância, e terão destruído a
toupeira Crime.
Condensemos em poucas palavras uma parte do que acabamos de
escrever. O único perigo social é a Treva.
Humanidade é identidade. Os homens são todos do mesmo barro.
Nenhuma diferença, ao menos no mundo aqui de baixo, quanto à
predestinação. Mesma escuridão antes, mesma carne durante, mesma
cinza depois. Mas a ignorância, misturada à massa humana, a enegrece.
Esse incurável negrume toma o interior do homem, e ali torna-se o Mal.
III. BABET, GUEULEMER, CLAQUESOUS E
MONTPARNASSE
Um quarteto de bandidos, Claquesous, Gueulemer, Babet e
Montparnasse, governava o terceiro subsolo de Paris, de 1830 a 1835.
Gueulemer era um Hércules desclassificado. Seu antro era o esgoto do
Arche-Marion. Tinha um metro e oitenta de altura, peitorais de mármore,
bíceps de bronze, uma respiração de caverna, o torso de um colosso, um
crânio de pássaro. Acreditava-se estar vendo o Hércules Farnese5 vestido
com calças de algodão e casaco da veludo. Construído desse modo
escultural, Gueulemer seria capaz de domar monstros; achara mais
simples ser um deles. Fronte baixa, têmporas amplas, menos de quarenta
anos e rugas, cabelo abundante e curto, faces barbudas, a barba de um
javali; por aí se vê o tipo de homem. Seus músculos solicitavam trabalho,
mas sua estupidez o rejeitava. Era uma grande força preguiçosa. Era
assassino por indolência. Achavam que era crioulo, originário das
colônias. Provavelmente havia impressionado um pouco o marechal Brune
quando, em 1815, foi carregador em Avignon. Após esse estágio, passara a
bandido.
A diafaneidade de Babet contrastava com a carne de Gueulemer. Babet
era magro e sábio. Era transparente, mas impenetrável. Via-se a luz através
de seus ossos, mas nada através de suas pupilas. Declarava-se químico.
Havia sido acrobata com Bobèche e palhaço com Bobino.6 Atuara no
teatro de “vaudeville” em Saint-Michel. Era um homem de intenções,
bem-falante, que sublinhava seus sorrisos e punha aspas em seus gestos.
Seu ofício era vender pelas ruas bustos de gesso e retratos do “chefe do
Estado”. Além disso, também arrancava dentes. Já havia mostrado
fenômenos pelas feiras, e possuído uma barraca, com trombetas e este
cartaz: “Babet, artista dentista, membro das academias, faz experiências
físicas sobre metais e metaloides, extrai dentes, tira fragmentos de dentes
deixados por seus colegas. Preço: um dente, um franco e cinquenta; dois
dentes, dois francos; três dentes, dois francos e cinquenta. Aproveitem a
ocasião”. (Este “aproveitem a ocasião” queria dizer: arranquem o máximo
possível de dentes.) Fora casado e tivera filhos, porém não sabia o que fora
feito nem da mulher nem das crianças. Perdera-os como quem perde um
lenço. Grande exceção no obscuro mundo do qual fazia parte, Babet lia
jornais. Uma ocasião, no tempo em que tinha junto de si a família em sua
barraca ambulante, lera no Messager que uma mulher acabara de dar à luz
uma criança suficientemente apta para viver, com um focinho de bezerro,
e exclamara: Isso é que é sorte! Não ia ser minha mulher quem teria a
ideia de me fazer um filho desses!
Depois, abandonara tudo para “tentar Paris”. Expressão dele.
Quem era Claquesous? Era a escuridão. Para se mostrar, esperava que
o céu se manchasse de negro. À noite, saía de um buraco para o qual
retornava antes de amanhecer. Onde ficava esse buraco? Ninguém sabia.
No meio da mais completa escuridão, só falava com seus cúmplices
estando de costas. Chamava-se Claquesous? Não. Ele dizia: Me chamo
Pas-du-tout.7
Se aparecia alguma vela, colocava uma máscara. Era ventríloquo.
Babet dizia: Claquesous é um notívago com duas vozes. Claquesous era
vago, errante, terrível. Não se tinha certeza de que tivesse um nome, já que
Claquesous era um apelido; não se tinha certeza de que tivesse uma voz, já
que seu ventre falava com mais frequência do que sua boca; não se tinha
certeza de que tivesse um rosto, já que ninguém nunca viu mais do que sua
máscara. Desaparecia como uma vertigem; suas aparições eram
verdadeiras saídas das entranhas da terra.
Uma criatura lúgubre era Montparnasse. Montparnasse era uma
criança; menos de vinte anos, rosto bonito, lábios que pareciam cerejas,
lindos cabelos pretos, a claridade da primavera nos olhos; tinha todos os
vícios e aspirava a todos os crimes. A digestão do mal dava-lhe apetite
para o pior. Era o moleque convertido em vadio, e o vadio convertido em
gatuno. Era gentil, efeminado, gracioso, robusto, indolente, feroz. Tinha a
aba do chapéu levantada do lado esquerdo para dar lugar a um tufo de
cabelos, como era moda em 1829. Vivia de roubar violentamente. Sua
casaca tinha o melhor corte, mas era surrada. Montparnasse era uma
gravura de moda cheia de miséria e cometendo homicídios. A causa de
todos os atentados desse adolescente era a vontade de andar bem vestido.
A primeira costureirinha que lhe disse: “Você é bonito!” lançou-lhe a
mancha das trevas ao coração, e fez deste Abel um Caim.
Achando-se bonito, quis ser elegante; ora, a principal elegância é a
ociosidade; a ociosidade do pobre é o crime. Poucos vadios eram tão
temidos quanto Montparnasse. Aos dezoito anos, já tinha vários cadáveres
atrás de si. Mais de um passante jazia de braços estendidos à sombra desse
miserável, o rosto em uma poça de sangue.
Cabelos encaracolados, empomadado, cintura delgada, quadris de
mulher, busto de oficial prussiano, murmúrio de admiração das prostitutas
do bulevar à sua volta, gravata de nó bem feito, cassetete no bolso, uma
flor na lapela; assim era esse dândi do sepulcro.
__________________________
1 Este título irá esclarecer-se no último capítulo deste Livro VII.
2 “Os Infernos”, e também: “aqueles que estão por baixo”.
3 “A escória da sociedade”, e também: terreno, local mais baixo que os adjacentes.
4 Lacenaire Pierre François, ficou conhecido como poeta assassino, pois, embora criminoso,
era músico. Foi guilhotinado em 1836.
5 Uma das estátuas mais antigas da cultura grega, a qual fixou a imagem do herói mítico na
Europa.
6 Bobèche: célebre comediante da época do Império e da Restauração; Bobino: teatro de
pantomima e, posteriormente, de “vaudeville”.
7 Pas-du-tout—negação categórica: absolutamente nada, ninguém. Mas, no texto, tem ainda a
função de rimar com o nome Claquesous, dando-lhe um tom irônico.
8 “Trupes de cortesãs, negociantes de drogas, mendigos, bufões” (Horácio, Sátiras).
LIVRO VIII
O MAU POBRE
II. ACHADO
Marius continuava morando no casebre Gorbeau. Não prestava atenção
em ninguém dali.
Na verdade, nessa época não havia mais no casebre outros habitantes
além dele e dos tais Jondrette, para quem uma vez pagara o aluguel, sem
nunca ter falado nem com o pai, nem com a mãe, nem com as filhas. Os
outros inquilinos tinham se mudado ou morrido, ou haviam sido expulsos
por falta de pagamento.
Em um dia de inverno, o sol se mostrara um pouco durante a tarde,
mas era 2 de fevereiro, o antigo dia da festa da Candelária, cujo sol
traiçoeiro, precursor de um frio de seis semanas, inspirou a Mathieu
Laensberg estes dois versos que, com justiça, tornaram-se clássicos:
III. QUADRIFRONS2
À noite, quando tirava a roupa para se deitar, sua mão encontrou no
bolso do casaco o embrulho que recolhera no bulevar. Já havia se
esquecido dele. Pensou que seria útil abri-lo, porque talvez contivesse o
endereço das meninas, se, na realidade, o embrulho lhes pertencesse, ou,
em todo caso, as informações necessárias para o restituir a quem o havia
perdido.
Abriu o envelope.
Não estava lacrado, e continha quatro cartas, igualmente não lacradas.
Todas estavam endereçadas.
Todas as quatro exalavam um medonho odor de tabaco.
A primeira carta estava assim endereçada: à Senhora marquesa de
Grucheray, defronte à Câmara dos Deputados, n°…
Marius achou que provavelmente ali encontraria as indicações que
procurava, e que, além do mais, a carta, não estando fechada, parecia
poder ser lida sem inconvenientes.
A carta fora concebida nos seguintes termos:
“Senhora marquesa,
A virtude da clemência e piedade é a que mais estreitamente une a sociedade. Use seu
sentimento cristão, e lance um olhar de compaixão sobre esta infelis espanhol, vítima da
lealdade e do apego à sagrada causa da legitimidade, que ele pagou com seu sangue, e
devotou sua fortuna, inteira, para defender tal causa, e hoje se encontra na mais grande
miséria. Ele não duvida que sua honorável pessoa irá conceder-lhe uma ajuda para
conservar uma existência extremamente penosa para um militar de educação e de honra
cheio de feridas. Conta de antemão com a humanidade que aníma a senhora e com o
interesse que a marquesa tem por uma nação tão desaventurada. As súplicas dele não serão
em vã, e o reconhecimento conservará sua encantadora lembrança.
De meus respeitosos sentimentos com as quais tenho a honra de ser,
Senhora,
DON ALVARÈS, capitão espanhol de cavalaria, realista refugiado na França que se
encontra em viagém para sua patria e lhe faltam os recursos para continuar sua viagém”.
“Senhora Condessa,
É uma disgrassada mãe de família de seis crianças que o mais novo só tem oito meses.
Estou doente desde o meu último parto, abandonada por meu marido desde cinco meses
sem recurso nenhum no mundo na mais completa indigença.
Na esperança da senhora condessa, ela tem a honra de ser, minha senhora, com um
profundo respeito,
Dona Balizar”.
“Homem caridoso,
Se houver por bem acompanhar minha filha, verá uma calamidade mizerável, e eu lhe
mostrarei meus atestados.
À vista destes escritos, sua alma generosa será movida por um sentimento de sensível
benevolência, pois os verdadeiros filósofos experimentam sempre vivas emoções.
Convenha, homem compassivo, que é preciso passar pela mais cruel necessidade, e que
é bem doloroso, para obter algum alívio, fazer com que seja atestada pela autoridade como
se a gente não fosse livre para sofrer e morrer de inanição esperando que alguém alivie
nossa miséria. Os destinos são bem fatal para alguns e pródigo demais ou protetor demais
para outros.
Espero sua presença ou sua doação, se houver por bem a fazer, e peço-lhe que aceite
meus respeitosos sentimentos, com os quais me honro de ser,
homem verdadeiramente magnânimo,
seu muito humilde
e muito obrigado servo,
P. FABANTOU, artista dramático”.
Após ter lido essas quatro cartas, Marius não se sentiu muito mais
adiantado do que antes.
Primeiro, nenhum dos signatários dava seu endereço.
Depois, pareciam vir de quatro indivíduos diferentes, Don Alvarès,
dona Balizard, o poeta Genflot, e o artista dramático Fabantou; mas as
cartas tinham algo de estranho, o fato de serem, todas as quatro, escritas
com a mesma letra.
Que se podia concluir daí, senão que vinham da mesma pessoa?
Além disso, o que tornava ainda mais verossímil a conjectura, o papel,
grosseiro e amarelado, era o mesmo para as quatro, o cheiro de tabaco era
o mesmo, e, embora fosse evidente que tivessem procurado variar o estilo,
os mesmos erros de ortografia reproduziam-se em todas com uma
tranquilidade profunda, e o homem de letras Genflot não era mais isento
deles do que o capitão espanhol.
Esmerar-se em adivinhar esse pequeno mistério era um trabalho inútil.
Se não tivesse sido um achado, ia parecer um logro. Marius estava
demasiado triste para tomar por bem até mesmo uma brincadeira do acaso
e para se prestar ao jogo que parecia querer jogar com ele a calçada da rua.
Tinha a impressão de que estava em um jogo de cabra-cega com as quatro
cartas que zombavam dele.
Nada, aliás, indicava que as quatro cartas pertencessem às moças com
quem Marius se encontrara no bulevar. Afinal de contas, era uma papelada
evidentemente sem valor algum.
Marius colocou-as de volta no envelope, jogou tudo em um canto e
deitou-se.
Por volta das sete horas, acabava de se levantar e de tomar seu café da
manhã, e dispunha-se a começar seu trabalho quando bateram
delicadamente à sua porta.
Como não possuía nada, nunca tirava a chave da porta, a não ser
algumas vezes, bem raramente, quando trabalhava em algo urgente. De
resto, mesmo quando saía, deixava sua chave na fechadura.
— Vão acabar por roubá-lo — dizia mame Bougon.
— Mas o quê? — respondia Marius.
O fato é que um dia roubaram-lhe um velho par de botas, para grande
triunfo de mame Bougon.
Bateram uma segunda vez tão delicadamente quanto da primeira.
— Pode entrar — disse Marius.
A porta se abriu.
— O que a senhora quer, mame Bougon? — disse Marius sem tirar os
olhos dos livros e manuscritos que tinha sobre a mesa.
Uma voz, que não era a de Mame Bougon, respondeu:
— Perdão, senhor….
Era uma voz surda, abafada, falha, sufocada, roufenha, uma voz de
velho enrouquecida pela aguardente, pela bebida.
Marius voltou-se rapidamente, e viu uma jovem.
“…O general Bauduin recebeu ordem de apoderar-se com os cinco batalhões de sua
brigada do castelo de Hougomont, que fica no meio da planície de Waterloo…”
Ela parou:
— Ah! Waterloo! Eu sei o que é isso. Foi uma batalha que aconteceu
faz tempo. Meu pai estava lá. Meu pai servia no exército. Nós somos
muito bonapartistas em casa! Foi contra os ingleses, Waterloo.
Largou o livro, pegou uma pena, e exclamou:
— E também sei escrever!
Molhou a pena na tinta, e voltando-se para Marius:
— Quer ver? Olhe, vou escrever uma palavra para o senhor ver.
E, antes que ele tivesse tempo de responder, ela escreveu em uma folha
de papel em branco que estava no meio da mesa: Os gambés chegaram.
Depois, largando a pena:
— Não tem erro de ortografia. Pode ver. Eu e minha irmã tivemos
educação. Nós não fomos sempre como somos agora. Não fomos feitas
para…
Parou nesse ponto, fixou em Marius seus olhos sem brilho e desatou a
rir, falando com uma entonação que continha todas as angústias abafadas
por todos os cinismos:
— Bah!
E pôs-se a cantarolar estas palavras de forma alegre:
V. O JUDAS DA PROVIDÊNCIA
Havia cinco anos que Marius vivia na pobreza, na privação, na penúria
mesmo, mas percebeu que não havia conhecido a verdadeira miséria. A
verdadeira miséria, ele acabava de vê-la. Era aquela larva que acabava de
passar por seus olhos. É que, na verdade, quem só viu a miséria do homem
nada viu; é preciso ver a miséria da mulher; quem só viu a miséria da
mulher nada viu; é preciso ver a miséria da criança.
Quando o homem chega às últimas extremidades, chega, ao mesmo
tempo, aos últimos recursos. Pobres das criaturas indefesas que o rodeiam!
O trabalho, o salário, o pão, o fogo, o ânimo, a boa vontade, tudo lhe falta
de uma só vez. A claridade do dia parece apagar-se em seu exterior, e a luz
moral apaga-se em seu interior; nessas trevas, o homem encontra a
fragilidade da mulher e da criança, e as submete violentamente às
ignomínias.
Então, todos os horrores são possíveis. O desespero é cercado por
frágeis anteparos que se voltam, todos, para o vício ou para o crime.
A saúde, a juventude, a honra, as santas e intratáveis delicadezas da
carne ainda nova, o coração, a virgindade, o pudor, esse a epiderme da
alma, são sinistramente manejados por aquele apalpar que procura
recursos, que encontra o opróbrio e se acomoda com ele. Pais, mães,
filhos, irmãos, irmãs, homens, mulheres, moças, aderem e se agregam
quase como uma formação mineral, nessa enevoada promiscuidade de
sexos, de parentescos, de idades, de infâmias, de inocências. Acocoram-se,
encostados uns nos outros, em uma espécie de destino-chiqueiro.
Entreolham-se lamentavelmente. Oh! Esses desafortunados! Como são
pálidos! Como sentem frio! Parece que vivem em um planeta muito mais
distante do Sol do que nós.
Aquela jovem fora para Marius como que uma enviada das trevas.
Revelou-lhe todo um lado medonho da escuridão.
Marius quase recriminou-se pelas preocupações sonhadoras e
apaixonadas que até aquele dia o haviam impedido de lançar um olhar
sobre seus vizinhos. Ter-lhes pago o aluguel fora um ato maquinal, que
qualquer um praticaria; mas ele deveria ter feito mais. O que é isso!
Apenas uma parede o separava daqueles seres abandonados que viviam
tateando na escuridão, fora do círculo dos viventes; passava por eles, era,
de alguma forma, o último elo do gênero humano que tocavam; ouvia-os
viver, ou, antes, agonizar a seu lado, e nem sequer prestava atenção neles!
Todos os dias, a cada instante, através da parede, ouvia-os andar, ir, voltar,
falar, e não aplicava os ouvidos! E entre aquelas palavras havia gemidos, e
nem isso ele escutava! Seu pensamento estava longe, em sonhos, em
brilhos impossíveis, em amores no ar, em loucuras; e, no entanto, criaturas
humanas, seus irmãos em Jesus Cristo, seus irmãos do povo agonizavam a
seu lado! Agonizavam inutilmente! Ele até mesmo fazia parte de seu
infortúnio, o agravava. Pois se elas tivessem outro vizinho, um vizinho
menos quimérico e mais atento, um homem comum e caridoso,
evidentemente sua indigência teria sido notada, seus sinais de penúria
teriam sido percebidos, e havia muito tempo talvez já tivessem sido
recolhidos e salvos! Sem dúvida pareciam bem depravados, bem
corrompidos, bem envilecidos e até bem odiosos; mas são raros os que
caíram sem se degradar; além disso, há um ponto em que os
desafortunados e os infames se misturam e se confundem em uma só
palavra, palavra fatal — os miseráveis; de quem é a culpa? E, também,
não é quando a queda é mais profunda que a caridade deve ser maior?
Enquanto pregava-se essa moral, pois havia ocasiões em que Marius,
como todos os corações verdadeiramente honestos, era pedagogo de si
mesmo e se repreendia mais do que merecia, olhava para a parede que o
separava dos Jondrette como se pudesse, através dela, fazer passar seu
olhar cheio de compaixão e ir aquecer aqueles infelizes.
A parede era uma delgada lâmina de gesso, sustentada por algumas
ripas e vigas, que, como acabamos de ler, deixava que se distinguisse
perfeitamente o ruído de palavras e de vozes. Era preciso ser o distraído
Marius para não ter-se ainda dado conta. A grosseira construção dessa
parede estava completamente à vista; nenhum papel fora colado sobre ela,
nem do lado dos Jondrette, nem do lado de Marius.
Quase sem ter consciência do que fazia, Marius examinou a tal parede;
às vezes, a divagação examina, observa e escruta como faria o
pensamento. De repente, ele se levantou; acabava de notar no alto, perto
do teto, um buraco triangular resultante de três ripas que deixavam um
espaço entre elas. O reboque que devia tapar esse espaço não existia, de
modo que, subindo-se na cômoda, podia-se ver por aquela abertura o
quarto dos Jondrette. A comiseração tem, e deve ter, sua curiosidade.
Aquela abertura formava uma espécie de judas.3 É permitido observar
traiçoeiramente o infortúnio para o socorrer. “Vamos ver um pouco quem é
essa gente”, pensou Marius, “e como é que estão”.
Subiu na cômoda, aproximou os olhos da fresta e olhou.
Maringo
Austerlitz
Iena
Wagramme
Elot
XX. A CILADA
A porta do quarto acabava de se abrir bruscamente, deixando ver três
homens vestidos com blusas de tecido azul e cobertos com máscaras de
papel preto. O primeiro era magro e segurava um longo bastão com ponta
de ferro; o segundo, que era uma espécie de colosso, segurava, pelo meio
do cabo e com a cabeça para baixo, uma marreta, das que se usam para
golpear os bois. O terceiro, homem de ombros parrudos, menos magro que
o primeiro e menos maciço que o segundo, segurava com força uma
enorme chave roubada de alguma porta de prisão.
Parece que era a chegada desses homens que Jondrette esperava. Um
rápido diálogo se travou entre ele e o homem do bastão, o magro.
— Está tudo pronto? — perguntou Jondrette.
— Está — respondeu o homem.
— Onde está então Montparnasse?
— O galã parou para conversar com a sua filha.
— Qual delas?
— A mais velha.
— Tem uma carruagem lá embaixo?
— Tem.
— A carroça está pronta?
— Está.
— Com dois cavalos bons?
— Excelentes.
— Está esperando onde eu disse para esperar?
— Está.
— Muito bem — disse Jondrette.
O senhor Leblanc estava muito pálido. Observava tudo a sua volta
naquele quarto como um homem que compreende onde caiu; e sua cabeça,
alternadamente voltada para todos os rostos que o rodeavam, movia-se
sobre seu pescoço com uma lentidão atenta e assustada, mas não
demonstrava nada que parecesse medo. Havia feito da mesa uma trincheira
improvisada; e o homem, que um momento antes parecia apenas um bom
velho, tornou-se subitamente uma espécie de atleta, apoiando os punhos
robustos no encosto da cadeira, num gesto temível e surpreendente.
O homem, tão firme e tão bravo diante de tamanho perigo, parecia ser
uma dessas naturezas que são corajosas da mesma forma que são
bondosas, natural e simplesmente. O pai da mulher que amamos não nos é
jamais estranho. Marius sentiu-se orgulhoso daquele desconhecido.
Três dos homens com os braços nus, de quem Jondrette dissera: são
limpadores de chaminé, haviam tirado do monte de ferragens, um, uma
grande tesoura, o outro, uma tenaz, e o terceiro, um martelo, e postaram-se
diante da porta sem pronunciar uma palavra. O velho permanecera na
cama, só que abrira os olhos. A mulher de Jondrette estava sentada ao lado
dele.
Marius pensou que em poucos segundos o momento de intervir teria
chegado, e elevou a mão direita para o teto, na direção do corredor, pronto
a disparar seu tiro de pistola.
Terminado seu colóquio com o homem do bastão, Jondrette voltou-se
novamente para o senhor Leblanc e repetiu sua pergunta, acompanhando-a
com aquele riso abafado, contido e terrível que lhe era peculiar.
— Então não me reconhece?
O senhor Leblanc olhou-o de frente e respondeu:
— Não.
Jondrette foi até a mesa. Inclinou-se por sobre o castiçal, cruzando os
braços, aproximando seu anguloso e feroz maxilar do rosto calmo do
senhor Leblanc, avançando o mais que podia sem que o senhor Leblanc
recuasse, e, nessa atitude de animal feroz prestes a morder, gritou:
— Não me chamo Fabantou, não me chamo Jondrette; meu nome é
Thénardier! Sou o estalajadeiro de Montfermeil! Ouviu bem? Thénardier!
Agora me reconhece?
Um imperceptível rubor passou pelo rosto do senhor Leblanc, e ele
respondeu sem que sua voz tremesse, nem se elevasse, com sua costumeira
placidez:
— Não mais que antes.
Marius não ouviu essa resposta. Quem o olhasse naquele momento,
naquela escuridão, iria vê-lo espantado, abobalhado, desconcertado.
Quando Jondrette dissera: Meu nome é Thénardier, Marius estremeceu
inteiro, e apoiou-se à parede como se sentisse o frio da lâmina de uma
espada atravessando seu coração. Então, seu braço direito, pronto a dar o
tiro de sinal, foi baixando lentamente, e no momento em que Jondrette
repetira: Ouviu bem? Thénardier! os dedos enfraquecidos de Marius quase
deixaram a pistola cair.
Jondrette, revelando quem era, não impressionara o senhor Leblanc,
mas abalara Marius profundamente. O nome Thénardier, que o senhor
Leblanc parecia não conhecer, Marius conhecia muito bem. Basta
lembrarmos o que esse nome significava para ele! Esse nome, ele o
trouxera junto ao peito, escrito no testamento de seu pai! E o trazia no
fundo de sua mente, no fundo de sua memória, naquela sagrada
recomendação: “Um homem chamado Thénardier salvou-me a vida. Se
meu filho algum dia o encontrar, que lhe faça todo o bem que puder”. Esse
nome, nos lembramos, era uma das piedades de sua alma; misturava-se ao
nome de seu pai no culto que lhe rendia. Pois ali estava o tal Thénardier, o
estalajadeiro de Montfermeil, que ele havia em vão e por tanto tempo
procurado! Encontrava-o, enfim, mas de que maneira! O salvador de seu
pai era um bandido! Esse homem, por quem Marius ardia de devoção, era
um monstro! Esse libertador do coronel Pontmercy estava a ponto de
cometer um atentado, cuja forma Marius ainda não via distintamente, mas
que se assemelhava a um assassinato! E contra quem, grande Deus! Que
fatalidade! Que amarga zombaria do destino! Seu pai lhe ordenava, do
fundo de seu túmulo, que fizesse todo o bem possível a Thénardier; havia
quatro anos que Marius só pensava em quitar a dívida de seu pai, e, no
momento em que ia fazer com que a justiça prendesse um bandido no
meio de um crime, o destino gritava-lhe: “É Thénardier!”
A vida de seu pai, salva sob uma saraivada de balas na heroica batalha
de Waterloo, ele enfim iria pagá-la àquele homem com o cadafalso!
Prometera a si mesmo que, se algum dia encontrasse Thénardier, só o
abordaria jogando-se a seus pés, e agora o encontrava, mas para entregá-lo
ao carrasco! Seu pai lhe dizia: “Socorra Thénardier!” e ele respondia a
essa voz adorada e santa esmagando Thénardier! Dar como espetáculo ao
pai, em seu túmulo, o homem que o livrara da morte, arriscando a própria
vida, executado na praça Saint-Jacques, por causa de seu filho, desse
Marius que o recebera do pai como legado! Que ironia, carregar por tanto
tempo sobre o peito as últimas vontades de seu pai, escritas de próprio
punho, para fazer exatamente o contrário! Mas, por outro lado, assistir
àquela cilada e não a impedir! Como! Condenar a vítima e poupar o
assassino! Seria possível sentir-se obrigado a qualquer gratidão para com
um miserável daqueles?
Esse golpe inesperado atravessava de lado a lado todas as ideias que
Marius alimentava havia quatro anos. Ele estremecia. Tudo dependia dele.
Ele tinha nas mãos, sem que suspeitassem, essas criaturas que se agitavam
ali, sob seus olhos. Se disparasse, o senhor Leblanc estaria salvo e
Thénardier perdido; se não disparasse, o senhor Leblanc seria sacrificado,
e, quem sabe, Thénardier escapasse. Precipitar um ou deixar cair o outro!
Remorsos! Dos dois lados. Que fazer? Que escolher? Faltar às mais
imperiosas recordações, a tantos compromissos profundos assumidos com
ele mesmo, ao mais sagrado dos deveres, ao mais venerando dos textos!
Faltar ao testamento de seu pai, ou deixar que um crime se cometesse! De
um lado, parecia-lhe ouvir “sua Ursule” suplicando-lhe pelo pai, e, do
outro, o coronel recomendando-lhe Thénardier. Sentia-se enlouquecendo;
seus joelhos se dobravam. E nem tinha mais tempo para deliberar, tanto a
cena que tinha sob os olhos se precipitava com furor. Era como um
turbilhão do qual se acreditava senhor e que agora o arrebatava. Esteve a
ponto de desmaiar.
Enquanto isso, Thénardier — não o chamaremos mais por outro nome
— andava de um lado para o outro diante da mesa, com uma espécie de
desvairamento e de triunfo frenético. Pegou o castiçal bruscamente e o
colocou sobre a lareira de forma tão violenta que a vela quase se apagou e
o sebo respingou na parede.
Depois, voltou-se para o senhor Leblanc, assustador, e cuspiu estas
palavras:
— Frito! Defumado! Guisado! Grelhado!
E voltou a andar, em plena explosão:
— Ah! — gritou ele. — Enfim o encontrei, senhor filantropo! Senhor
milionário esfarrapado! Senhor que presenteia bonecas! Velho maricas!
Ah! Não me reconhece! Não foi o senhor quem esteve em Montfermeil, na
minha taverna, há oito anos, na noite de Natal de 1823! Não foi o senhor
quem levou da minha casa a filha da Fantine, a Cotovia? Não era o senhor
que tinha um casacão amarelo! Não! E um pacote cheio de trapos na mão,
como esta manhã aqui! Diga, mulher, é mania dele, ao que parece, levar à
casa das pessoas pacotes cheios de meias de lã, não! Seu velho caridoso!
Será que tem uma fábrica, senhor milionário? E dá aos pobres artigos do
seu comércio, santo homem! Que equilibrista! E então não me reconhece?
Mas eu o reconheço! Eu o reconheci logo que meteu o focinho aqui. Ah!
Finalmente vamos ver que nem tudo são rosas, ir assim à casa dos outros,
a pretexto de que são tavernas, com roupas surradas, cara de pobre, para
quem até dariam esmola, enganar as pessoas se fazendo de generoso mas
tirando seu ganha-pão, e ameaçá-las no meio de um bosque, e achar que
saía dessa com o único inconveniente de trazer, mais tarde, quando as
pessoas estão arruinadas, um sobretudo enorme e dois reles cobertores de
hospital, velho gatuno, ladrão de crianças!
Calou-se e, por um momento, pareceu falar com ele mesmo. Seria
possível dizer que seu furor caía como o Ródano em algum buraco; depois,
como se terminasse de dizer em voz alta as coisas que acabara de se falar
baixinho, deu um murro na mesa e exclamou:
— Com aquele jeito simplório!
E dirigindo a palavra ao senhor Leblanc:
— Bolas! O senhor zombou de mim daquela vez! O senhor é a causa
de todas as minhas desgraças! Por mil e quinhentos francos ficou com a
menina que eu tinha, e que decerto era de gente rica, e que já me tinha
rendido bastante dinheiro, e de onde eu teria o que tirar para viver a vida
inteira! Uma menina que me teria compensado de tudo o que perdi naquela
abominável baiuca, onde só se fazia algazarra e onde eu comi, como um
imbecil, todo o meu santo pé de meia! Oh! Como eu gostaria que todo o
vinho que se bebeu ali se convertesse em veneno para todos que o
beberam! Mas enfim, não importa! E então! Deve ter me achado um tolo
quando foi embora com a Cotovia! Tinha aquele seu cajado na floresta, e
era mais forte. Vingança. Sou eu que tenho o trunfo hoje! O senhor está
danado, pobre homem! E eu rio! Verdade, eu rio! Caiu na armadilha!
Disse-lhe que era ator, que me chamava Fabantou, que tinha representado
com a senhorita Mars, com a senhorita Muche, que o proprietário queria o
dinheiro amanhã, 4 de fevereiro, e ele nem viu que é 8 de janeiro e não 4
de fevereiro que vence o trimestre! Absurdo cretino! E essas quatro
moedas que me trouxe! Canalha! Não teve coração nem para chegar a cem
francos! E como entrava nas minhas vilanias! Isso me divertia. Eu me
dizia: “Estúpido! Vá, que você está pego. Lambo suas patas hoje de
manhã, mas à noite vou roer seu coração!”
Thénardier parou. Estava sem fôlego. Seu estreito peito arquejava
como um fole de ferreiro. Seu olhar estava cheio daquela ignóbil
felicidade de uma criatura fraca, cruel e covarde, que pode enfim
aterrorizar quem já temeu e insultar quem já lisonjeou, alegria de um anão
calcando a cabeça de Golias, alegria de um chacal começando a devorar
um touro doente, morto o suficiente para não mais se defender, vivo o
bastante para ainda sofrer.
O senhor Leblanc não o interrompeu, mas disse-lhe depois que se
calou:
— Não sei o que o senhor quer dizer! Está enganado a meu respeito.
Sou um homem pobre e longe de ser milionário. Não o conheço. O senhor
me toma por outra pessoa.
— Ah! — protestou Thénardier. — Que bela piada! Insiste nessa
brincadeira! Está se enrolando, meu velho. Ah! Então não se lembra, não
sabe quem sou?
— Perdão, senhor — respondeu o senhor Leblanc com uma polidez
que, em um momento como aquele, tinha algo de estranho e poderoso —,
vejo que é um bandido!
Quem já não notou? Criaturas odiosas também têm suas
suscetibilidades, monstros são melindrosos. À palavra bandido, a mulher
de Thénardier atirou-se embaixo da cama e este segurou a cadeira como se
fosse despedaçá-la nas mãos.
— Não se mexa! — gritou para sua mulher; e, voltando-se para o
senhor Leblanc:
— Bandido! Isso, sei que vocês nos chamam assim, senhores ricaços!
Pronto! É verdade, fali, vivo escondido, não tenho o que comer, não tenho
dinheiro, então sou um bandido! Há três dias que não como, e sou um
bandido! Ah! Vocês, vocês têm como esquentar os pés, têm escarpins de
Sakoski,8 casacos acolchoados; como arcebispos, moram no primeiro
andar de casas com porteiro; comem trufas, comem aspargos de quarenta
francos em janeiro, e se fartam de ervilhas; e quando querem saber se está
frio, vão ver em algum jornal o que marca o termômetro do engenheiro
Chevalier. Nós? Nosso termômetro somos nós mesmos! Não precisamos ir
ao cais, na esquina da torre do Relógio para ver quantos graus de frio está
fazendo, sentimos o sangue congelando nas veias, e o gelo penetrando no
coração, e dizemos: “Deus não existe!” E vocês vêm às nossas cavernas,
isso mesmo, às nossas cavernas, e nos chamam de bandidos! Mas nós os
comeremos! Nós os devoraremos, pobres crianças! Senhor milionário,
saiba de uma coisa: já fui um homem estabelecido, já paguei impostos, já
fui eleitor, sou um burguês! E o senhor talvez não seja nada disso!
Nesse ponto, Thénardier deu um passo em direção aos homens que
estavam perto da porta e acrescentou demonstrando um tremor:
— Quando penso que ele ousa vir me falar como se eu fosse um
sapateiro qualquer!
Depois prosseguiu, dirigindo-se ao senhor Leblanc com recrudescente
frenesi:
— E fique sabendo mais, senhor filantropo! Eu não sou nenhum
tapado! Não sou um homem de quem não se sabe o nome, ou que vai tirar
crianças de dentro das casas! Sou um antigo soldado francês, devia ser
condecorado! Estive em Waterloo, eu! E na batalha salvei um general
chamado conde não sei de quê! Ele me disse seu nome, mas a sua maldita
voz estava tão fraca que não o ouvi. Só entendi um Merci. Eu teria gostado
mais do nome dele que desse agradecimento. Teria me ajudado a
reencontrá-lo. Este quadro que está vendo, e que foi pintado por David em
Bruqueselles, sabe o que ele representa? Representa a mim. David quis
imortalizar esse feito de armas. Estou com esse general nas costas e o
carrego no meio da metralha. É essa a história! Ele nunca fez nada por
mim, o tal general, não valia mais que os outros! Nem por isso deixei de
salvar a vida dele, colocando a minha em perigo, e tenho meus bolsos
cheios de certificados. Sou um soldado de Waterloo, que diabos! E agora
que tive a bondade de lhe dizer tudo isso, acabou, preciso de dinheiro,
preciso de muito dinheiro, preciso muitíssimo de dinheiro, ou então o
extermino, cólera do bom Deus!
Marius retomara algum domínio sobre suas angústias e escutava. A
última possibilidade de dúvida acabava de desaparecer. Era aquele, de fato,
o Thénardier do testamento. Marius estremeceu àquela acusação de
ingratidão dirigida contra seu pai, a qual ele estava quase a ponto de
justificar tão fatalmente. Com ela, suas perplexidades redobraram. De
resto, havia em todas as palavras de Thénardier, em sua entonação, em
seus gestos, em seu olhar que fazia soltar faíscas de cada palavra, havia
naquela explosão de uma natureza ruim mostrando tudo, naquela mistura
de fanfarronice e de abjeção, de orgulho e de pequenez, de raiva e de
imbecilidade, naquele caos de injúrias reais e de sentimentos falsos,
naquela falta de pudor de um homem mau saboreando a voluptuosidade da
violência, naquela descarada nudez de uma alma horrenda, naquela
conflagração de toda sorte de sofrimentos combinados com toda sorte de
ódios, alguma coisa hedionda como o mal e pungente como a verdade.
O quadro de mestre, a pintura de David, cuja venda propusera ao
senhor Leblanc, não era, o leitor já terá adivinhado, nada mais que a
tabuleta de sua taverna, pintada por ele mesmo, único vestígio que
conservou de seu naufrágio de Montfermeil.
Como Thénardier deixara de interceptar o raio visual de Marius,
Marius agora podia observar o quadro, e naquelas pinceladas conseguia
reconhecer uma batalha, um fundo esfumaçado e um homem carregando
outro. Era o grupo de Thénardier e Pontmercy, o sargento salvador e o
coronel salvo. Marius estava como que embriagado, aquele quadro de
alguma forma fazia seu pai reviver; já não era a tabuleta da taverna de
Montfermeil, era uma ressurreição, um túmulo ali se entreabria, dali se
levantava um fantasma. Marius ouvia seu coração bater em suas têmporas,
tinha os canhões de Waterloo nos ouvidos, seu pai vagamente
ensanguentado pintado naquele quadro sinistro o assustava, e parecia-lhe
que aquela silhueta disforme olhava fixamente para ele.
Quando Thénardier retomou fôlego, fixou no senhor Leblanc seus
olhos sangrentos, e disse-lhe brevemente e em voz baixa:
— Que tem a dizer antes que não consiga mais parar em pé?
O senhor Leblanc ficou calado. No meio de tal silêncio, uma voz
rouquenha lançou do corredor este sarcasmo lúgubre:
— Se for preciso rachar lenha, aqui estou eu!
Era um gracejo do homem da marreta.
No mesmo instante, um enorme rosto eriçado e cor de terra apareceu à
porta com um medonho riso que mostrava, não dentes, mas presas.
Era o rosto do homem da marreta.
— Por que tirou a máscara? — gritou-lhe Thénardier, enfurecido.
— Para rir! — replicou o homem.
Havia alguns instantes, o senhor Leblanc parecia seguir e espreitar
todos os movimentos de Thénardier, que, cego e alucinado pela própria
raiva, ia e voltava dentro do quarto com a confiança de sentir a porta
guardada, de, armado, manter seguro um homem desarmado, e de serem
nove contra um, supondo-se que a senhora Thénardier contasse como um
homem.
Ao interpelar o homem da marreta, Thénardier dera as costas ao senhor
Leblanc.
O senhor Leblanc aproveitou aquele momento, deu um pontapé na
cadeira, empurrou a mesa, e, de um salto, com uma agilidade prodigiosa, e
antes que Thénardier tivesse tempo de se voltar, chegou à janela. Abri-la,
subir no peitoril e começar a saltá-la, foi um segundo. Tinha metade do
corpo para fora quando seis robustos punhos o seguraram e puxaram
energicamente para dentro. Eram os três “limpadores” que haviam se
lançado sobre ele. Ao mesmo tempo, a mulher de Thénardier agarrava-o
pelos cabelos.
Ouvindo o tropel que se fazia, os outros bandidos vieram do corredor.
O velho que estava na cama, e que parecia embriagado, saiu dali e
aproximou-se cambaleando, com um martelo na mão.
Um dos “limpadores”, que tinha o rosto sujo iluminado pela vela, e em
quem, apesar do disfarce, Marius reconheceu Panchaud, ou Printanier, ou
Bigrenaille, mantinha suspenso sobre a cabeça do senhor Leblanc uma
espécie de instrumento contundente feito com duas bolas de chumbo nas
duas extremidades de uma barra de ferro.
Marius não pôde resistir a esse espetáculo.
— Meu pai — pensou —, me perdoe! — E seu dedo procurou o gatilho
da pistola.
O tiro ia ser disparado quando a voz de Thénardier gritou:
— Não lhe faça mal nenhum!
A desesperada tentativa da vítima, em vez de exasperar Thénardier, o
acalmou. Havia nele dois homens, o homem feroz e o homem hábil. Até
aquele instante, no extravasamento do triunfo, diante da presa abatida e
sem movimento, o homem feroz havia dominado; quando a vítima se
debateu e pareceu querer lutar, o homem hábil reapareceu com mais força.
— Não lhe faça mal! — repetiu. E, sem que suspeitasse, o primeiro
resultado disso foi reter o tiro prestes a ser dado, e paralisar Marius, para
quem a urgência desaparecera, não vendo nessa nova fase inconveniente
em esperar mais um pouco. Quem sabe não surgisse alguma possibilidade
que o livrasse da terrível alternativa de deixar morrer o pai de Ursule ou
de perder o salvador do coronel?
Começava uma luta hercúlea. Com um soco em cheio no peito, o
senhor Leblanc lançou o velho ao meio do quarto; depois, derrubou outros
dois assaltantes com duas bofetadas e segurava cada um deles sob cada um
de seus joelhos; os miseráveis agonizavam sob essa pressão como se
estivessem sob uma mó de granito; mas os outros quatro haviam agarrado
o temível velho pelos braços e pela nuca, mantendo-o agachado sobre os
dois “limpadores” caídos no chão. Assim, dominando uns e sendo
dominado pelos outros, esmagando os de baixo e sufocando sob os de
cima, tentando em vão desvencilhar-se das forças que pesavam sobre ele,
o senhor Leblanc desaparecia sob o horrível grupo de bandidos, como um
javali atacado por mastins e sabujos uivando.
Conseguiram atirá-lo na cama mais próxima à janela e contê-lo. A
mulher de Thénardier não largara seus cabelos.
— Não se meta — disse Thénardier —; vai rasgar seu xale.
Ela obedeceu, como a loba obedece ao lobo, rosnando.
— Vocês aí — tornou Thénardier —, revistem-no.
O senhor Leblanc parecia ter renunciado à resistência. Revistaram-no.
Com ele, só trazia uma bolsa de couro, que continha seis francos, e um
lenço.
Thénardier colocou o lenço no bolso.
— O quê! Não tem carteira? — perguntou ele.
— Nem relógio! — respondeu um dos “limpadores”.
— Não importa, é um velho desgraçado! — murmurou com voz de
ventríloquo o homem mascarado que segurava a chave grande.
Thénardier foi até o canto da porta e pegou um monte de cordas, que
atirou para eles:
— Amarrem-no ao pé da cama! — disse ele. E, olhando para o velho
que ficara imóvel, atravessado no quarto com o soco do senhor Leblanc:
— Boulatruelle está morto? — perguntou.
— Não, está bêbado — respondeu Bigrenaille.
— Empurrem-no para um canto — disse Thénardier.
Dois dos “limpadores” empurraram-no com os pés para perto do
amontoado de ferragens.
— Babet, por que você trouxe tanta gente? — disse Thénardier em voz
baixa ao homem da tenaz. — É inútil.
— O que você queria? — replicou o homem. — Todos eles quiseram
vir. A coisa anda ruim, poucos negócios.
A cama na qual o senhor Leblanc fora jogado era uma espécie de leito
de hospital, apoiada em quatro pés de madeira grosseiros e mal aparados.
O senhor Leblanc não ofereceu resistência. Os bandidos amarraram-no
solidamente à cama, de pé, do lado mais afastado da janela e mais
próximo à lareira.
Quando o último nó foi atado, Thénardier pegou uma cadeira e foi
sentar-se quase defronte ao senhor Leblanc. Thénardier já não parecia o
mesmo; em alguns instantes, sua fisionomia passara da violência
desenfreada à doçura tranquila e astuciosa. Marius tinha dificuldade em
reconhecer, naquele sorriso polido de homem de escritório, a boca quase
bestial que um momento antes espumava; contemplava estupefato aquela
fantástica e assustadora metamorfose, e sentia o que sentiria um homem
que visse um tigre transformar-se em um procurador de justiça.
— Senhor… — disse Thénardier.
E afastando com um gesto os bandidos que ainda tinham as mãos sobre
o senhor Leblanc:
— Saiam um pouco e me deixem conversar com este senhor.
Todos foram em direção à porta. Ele continuou:
— Meu senhor, não foi certo querer saltar pela janela. Poderia ter
quebrado uma perna. Agora, se o senhor permitir, vamos conversar com
tranquilidade. Primeiro, preciso comunicar-lhe uma observação que eu fiz,
que o senhor ainda não deu um grito sequer.
Thénardier tinha razão, esse detalhe era real, embora tivesse escapado
a Marius em meio à sua perturbação. O senhor Leblanc apenas pronunciara
algumas palavras sem levantar a voz, e, mesmo enquanto lutava com os
seis bandidos perto da janela, ficara no mais profundo e singular silêncio.
Thénardier prosseguiu:
— Meu Deus! O senhor poderia ter gritado um pouco ladrão!, que eu
não acharia inconveniente; ou assassino!, que é o que se diz nessas
ocasiões, e eu não levaria a mal. É natural que se faça um pouco de
barulho quando se está no meio de pessoas que não inspiram bastante
confiança. Se o senhor tivesse feito isso, ninguém iria incomodá-lo. E nem
amordaçá-lo. E vou lhe dizer por quê. É porque este quarto é muito surdo;
é a única vantagem que ele tem: parece um porão. Mesmo que uma bomba
estourasse aqui, no posto de guarda mais próximo o barulho seria algo
como o ronco de um bêbado. Aqui, um canhão faria bum e um trovão faria
puf. É um lugar cômodo. Mas, enfim, o senhor não gritou, melhor assim;
meus agradecimentos, e vou lhe dizer o que concluí disso. Meu caro
senhor, quando se grita, quem aparece? A polícia. E depois da polícia? A
justiça. Muito bem, se o senhor não gritou, é porque tem tanta vontade
quanto nós de ver chegar a polícia e a justiça. É que — e faz algum tempo
que desconfio disso — o senhor tem algum interesse em esconder alguma
coisa. De nossa parte, temos o mesmo interesse. Portanto, podemos entrar
em acordo.
Enquanto falava assim, parecia que Thénardier, sem despregar os olhos
do senhor Leblanc, tentava cravar as agudas pontas que deles saíam na
consciência de seu prisioneiro. De resto, sua linguagem, impregnada de
uma certa insolência moderada e dissimulada, era reservada e quase
escolhida; e nesse miserável, que havia pouco não passava de um bandido,
agora se reconhecia “o homem que estudou para ser padre”.
O silêncio que o prisioneiro mantivera, a precaução que chegava até
mesmo ao esquecimento do cuidado com a própria vida, a resistência por
ele oposta ao primeiro instinto da natureza, que é soltar um grito, tudo
isso, é preciso que se diga, depois de feita a observação de Thénardier,
importunava Marius, e causava-lhe penosa admiração.
A observação tão fundamentada de Thénardier obscurecia ainda mais,
aos olhos de Marius, o denso mistério que envolvia a grave e estranha
figura à qual Courfeyrac dera o apelido de senhor Leblanc. Mas, quem
quer que fosse, amarrado com cordas, rodeado de carrascos, meio
enterrado, por assim dizer, em uma cova que se aprofundava a cada
instante sob seus pés, tanto diante do furor como da doçura de Thénardier,
aquele homem permanecia impassível. E Marius não podia deixar de
admirar, em um momento daqueles, um rosto tão soberbamente
melancólico.
Era, evidentemente, uma alma inacessível ao medo, não conhecendo o
que era estar fora de controle. Era um desses homens que dominam o
espanto das situações desesperadas. Por mais extrema que fosse a crise,
por mais inevitável que fosse a catástrofe, não demonstrava nada da
agonia do afogado abrindo horrivelmente os olhos embaixo d’água.
Thénardier levantou-se sem afetação, foi até a lareira, retirou o biombo
e o apoiou na cama mais próxima, e assim descobriu o fogareiro cheio de
brasa ardente onde o prisioneiro podia ver perfeitamente o formão
avermelhado pelo fogo e salpicado, aqui e ali, de pequenas estrelas
escarlates.
Depois disso, Thénardier voltou a sentar-se perto do senhor Leblanc.
— Continuando, nós podemos nos entender — disse ele. — Vamos
arranjar essa situação amigavelmente. Há pouco, fiz mal em irritar-me,
não sei onde estava com a cabeça, fui longe demais, disse umas bobagens.
Por exemplo, por o senhor ser milionário, eu lhe disse que exigia dinheiro,
muito dinheiro, muitíssimo dinheiro. Isso não seria razoável. Meu Deus,
por mais que seja rico, o senhor tem suas despesas, quem é que não tem?
Eu não quero arruiná-lo, afinal de contas, não sou um sanguessuga. Não
sou dessas pessoas que por estarem em posição mais vantajosa se
aproveitam para fazer ridículo. Veja, dou minha contribuição, de minha
parte, faço um sacrifício. Preciso simplesmente de duzentos mil francos.
O senhor Leblanc não disse uma só palavra, e Thénardier prosseguiu:
— O senhor está vendo que moderei bastante minhas exigências. Não
sei como anda sua fortuna, mas sei que não dá muita importância ao
dinheiro, e um homem benfeitor como o senhor bem que pode dar
duzentos mil francos a um pai de família desventurado. Certamente o
senhor também será razoável, e não vai pensar que eu me esforçaria como
hoje, que eu organizaria o negócio desta noite, que é um trabalho bem
feito, como testemunham aqueles senhores, para, afinal, pedir-lhe só o
suficiente para beber um tinto e comer um filé no Desnoyers. Tudo isso
vale duzentos mil francos. Assim que essa bagatela sair do seu bolso, eu
lhe garanto que fica tudo acertado e que o senhor não tem nada a recear.
Sei que vai dizer: “Mas eu não tenho comigo duzentos mil francos”. Oh!
Eu não sou tão exagerado! Não é isso que eu exijo. Só lhe peço uma coisa,
que tenha a bondade de escrever o que vou lhe ditar.
Nesse ponto, Thénardier interrompeu-se, e depois acrescentou,
acentuando as palavras e lançando um sorriso na direção do fogareiro:
— Quero preveni-lo de que não vou admitir que não saiba escrever.
Um grande inquisidor teria sentido inveja daquele sorriso.
Thénardier empurrou a mesa para bem perto do senhor Leblanc, e
pegou o tinteiro, uma pena e uma folha de papel de dentro da gaveta, que
deixou entreaberta, mostrando a longa e luzidia lâmina da faca.
Colocou a folha de papel diante do senhor Leblanc.
— Escreva — disse ele.
O prisioneiro finalmente falou:
— Como quer que eu escreva? Estou amarrado.
— É verdade, perdão! — disse Thénardier. — Tem toda a razão.
E voltando-se para Bigrenaille:
— Desamarre o braço direito do senhor.
Panchaud, conhecido como Printanier ou Bigrenaille, executou a
ordem de Thénardier. Quando a mão direita do prisioneiro ficou livre,
Thénardier molhou a pena na tinta e entregou-a a ele.
— Note bem, meu senhor, que está em nosso poder e discrição, que
nenhuma força humana pode tirá-lo daqui, e que realmente sentiríamos
muito se fôssemos obrigados a chegar a desagradáveis extremos. Eu não
sei como se chama nem onde mora, mas o previno de que ficará preso até
que a pessoa encarregada de levar a carta que vai escrever esteja de volta.
Agora, tenha a bondade de escrever.
— O quê? — perguntou o prisioneiro.
— Vou ditar.
O senhor Leblanc pegou a pena. Thénardier começou a ditar:
— “Minha filha…”
O prisioneiro estremeceu e ergueu os olhos para Thénardier.
— Ponha “minha querida filha” — disse ele. O senhor Leblanc
obedeceu, e ele continuou:
— “Venha depressa…”
Interrompeu-se.
— O senhor a chama de você, não é?
— Quem? — perguntou o senhor Leblanc.
— Ora, quem! — disse Thénardier. — A pequena, a Cotovia!
O senhor Leblanc respondeu sem a menor emoção aparente:
— Não sei o que quer dizer.
— Vá em frente — tornou Thénardier, e continuou ditando: — “Venha
depressa. Preciso absolutamente de você. A pessoa que vai lhe entregar
este bilhete está encarregada de trazê-la até mim. Estou esperando por
você. Venha sem receio”.
Tudo foi escrito. Thénardier retomou:
— Ah! Apague esse venha sem receio; isso pode criar uma suspeita de
que a coisa não é tão simples, que cabe alguma desconfiança.
O senhor Leblanc riscou as três palavras.
— Agora, assine — continuou Thénardier. — Como é que se chama?
O prisioneiro largou a pena e perguntou:
— Para quem é esta carta?
— O senhor sabe muito bem — respondeu Thénardier —; é para a
pequena, acabei de lhe dizer.
Era evidente que Thénardier evitava dizer o nome da jovem em
questão. Dizia “a Cotovia”, ou “a pequena”, mas não pronunciava o nome
dela. Precaução de homem hábil guardando seu segredo na presença de
seus cúmplices. Dizer o nome seria entregar-lhes todo “o negócio” e
permitir que soubessem mais do que precisavam saber. Thénardier
continuou:
— Assine. Qual é seu nome?
— Urbain Fabre — disse o prisioneiro.
Thénardier, com um movimento de gato, levou precipitadamente a
mão ao bolso e tirou dali o lenço subtraído ao senhor Leblanc. Aproximou-
o da vela para ver as iniciais.
— U. F. É isso. Urbain Fabre. Assine então U. F.
O prisioneiro assinou.
— Como precisa das duas mãos para dobrar a carta, me dê, eu dobro.
Feito isso, Thénardier retomou:
— Coloque o endereço. Senhorita Fabre, em sua casa. Sei que não
mora muito longe daqui, nas imediações de Saint-Jacques-du-Haut–Pas,
pois é lá que vai à missa todo dia, mas não sei em que rua. Vejo que
compreende sua situação; como não mentiu a respeito de seu nome,
também não mentirá a respeito de seu endereço. Pode escrever.
O prisioneiro ficou pensativo por um momento, depois pegou a pena e
escreveu:
— Senhorita Fabre, casa do Senhor Urbain Fabre, rua Saint-
Dominique-d’Enfer, número 17.
Thénardier pegou a carta com uma espécie de convulsão febril.
— Mulher! — gritou ele.
Ela veio prontamente.
— Aqui está a carta. Você sabe o que deve fazer. Lá embaixo tem uma
carruagem. Vá e volte imediatamente.
E, dirigindo-se ao homem da marreta:
— Já que você tirou a máscara, acompanhe a senhora. Suba na traseira
da carruagem. Lembra onde a deixou?
— Lembro — disse o homem.
E, colocando a corda em um canto, seguiu a mulher de Thénardier.
Enquanto saíam, Thénardier pôs a cabeça na porta entreaberta e gritou
no corredor:
— Cuidado, não vá perder a carta! Lembre-se de que tem com você
duzentos mil francos.
A voz rouca da mulher respondeu:
— Fique tranquilo, guardei dentro da roupa.
Um minuto havia transcorrido quando se ouviu o estalo de um chicote,
que foi diminuindo e se extinguiu rapidamente.
— Bem! — resmungou Thénardier. — Estão indo rápido. Nesse
galope, ela estará de volta em três quartos de hora.
Aproximou uma cadeira da lareira e sentou-se, cruzando os braços e
colocando as botas enlameadas na borda do fogareiro.
— Meus pés estão frios — disse ele.
Ali, com Thénardier e o prisioneiro, só restaram cinco bandidos. Esses
homens, através das máscaras ou da tinta preta que lhes cobria o rosto,
fazendo deles, de acordo com o medo, ou carvoeiros, ou negros, ou
demônios, pareciam entorpecidos e indiferentes, sentia-se que praticavam
um crime como se fosse um serviço, tranquilamente, sem cólera e sem
piedade, com uma espécie de enfado. Estavam em um canto, como um
amontoado de brutos, e calados. Thénardier aquecia os pés. O prisioneiro
voltara a ficar taciturno. Uma calma sombria sucedeu-se ao barulho que
enchia a espelunca alguns instantes antes.
A vela, que já derretera um tanto, mal iluminava o quarto enorme, o
braseiro havia-se enfraquecido, e todas aquelas cabeças monstruosas
formavam sombras disformes sobre as paredes e o teto. O único ruído que
se ouvia era a respiração tranquila do velho bêbado que dormia.
Marius esperava, com uma ansiedade que tudo fazia aumentar.
O enigma estava mais impenetrável do que nunca.
Quem seria a tal “pequena”, que Thénardier também chamara de
“Cotovia”? Seria a sua “Ursule”? O prisioneiro não parecera comover-se
com esse nome, Cotovia, respondendo com o jeito mais natural do mundo:
“Não sei o que quer dizer”.
Por outro lado, as duas letras U. F. estavam explicadas, queriam dizer
Urbain Fabre e Ursule não se chamava mais Ursule. Era isso que Marius
via com mais clareza. Uma espécie de fascinação o retinha pregado ao
lugar de onde observava e dominava toda aquela cena. Ali permanecia,
quase incapaz de reflexão e de movimento, como que aniquilado por
aquelas coisas tão abomináveis vistas de perto. Aguardava, esperando
algum incidente, qualquer coisa, sem conseguir coordenar suas ideias, nem
saber o que fazer.
— Em todo caso — pensava —, se a Cotovia for ela, logo vou saber, já
que a Thénardier vai trazê-la aqui. Então tudo vai ser dito, e darei minha
vida e meu sangue, se for preciso, mas hei de libertá-la! Nada vai me deter.
Assim se passou quase meia hora. Thénardier parecia absorvido em
uma tenebrosa meditação e o preso continuava imóvel. No entanto, em
intervalos, e havia alguns instantes, Marius acreditava ouvir alguns ruídos
surdos vindos dos lados do prisioneiro.
De repente, Thénardier falou ao prisioneiro:
— Senhor Fabre, escute o que vou lhe dizer.
Essas palavras pareciam ser o princípio de algum esclarecimento.
Marius apurou os ouvidos; Thénardier continuou:
— Minha mulher vai voltar, não se impaciente. Eu acho que a Cotovia
é realmente sua filha, e acho normal que o senhor a proteja. Mas escute
um pouco. Minha mulher vai procurá-la com aquela carta. Eu disse a
minha mulher que se vestisse do jeito que o senhor viu, de modo que sua
filha a acompanhe sem problema. As duas vão subir na carruagem, com
meu camarada na traseira. Em algum lugar fora da barreira, estará à espera
um carro puxado por dois ótimos cavalos; sua filha será conduzida a ele.
Ela vai descer de uma carruagem e meu camarada subirá com ela em
outra; minha mulher voltará aqui para nos dizer: “Está feito!” Quanto à
sua filha, ninguém lhe fará mal, a carruagem a levará a um lugar onde
ficará tranquila, e assim que o senhor me der esses modestos duzentos mil
francos, ela será devolvida ao senhor. Caso mande me prender, meu
camarada torcerá o pescoço da Cotovia. É isso.
Após uma pausa, Thénardier prosseguiu, vendo que o prisioneiro não
articulara uma só palavra:
— É simples, como vê. Não haverá nenhum mal se o senhor não quiser
que haja mal. Estou lhe contando as coisas. Previno-o para que saiba.
Ficou quieto, o prisioneiro não rompeu o silêncio, e Thénardier
retomou:
— Assim que minha esposa estiver de volta e me disser: A Cotovia
está no caminho, nós o soltaremos e estará livre para dormir em sua casa.
O senhor vê que não tínhamos más intenções.
Imagens espantosas atravessavam o pensamento de Marius. Seria
possível? Aquela jovem que raptavam, não iriam trazê-la até ali? Um
daqueles monstros ia levá-la a um lugar obscuro? Onde?… E se fosse ela!
E estava claro que era ela. Marius sentia que os batimentos de seu coração
paravam. Que fazer? Disparar a pistola? Colocar nas mãos da justiça todos
aqueles miseráveis? Mas como, se o horrível homem da marreta nem por
isso deixaria de esperar ao lado da jovem, e Marius pensava naquelas
palavras de Thénardier, cujo significado sangrento podia entrever: Caso
mande me prender, meu camarada torcerá o pescoço da Cotovia.
Agora já não era só pelo testamento do coronel, era por seu próprio
amor, pelo perigo que corria aquela a quem amava, que se sentia
amarrado.
Aquela terrível situação, que já durava mais de uma hora, mudava de
figura a cada instante. Marius teve a força de passar sucessivamente em
revista todas as mais pungentes conjecturas, procurando uma esperança
mas não a encontrando. O tumulto de seus pensamentos contrastava com o
fúnebre silêncio daquele covil.
No meio daquele silêncio, ouviu-se o barulho da porta da escada
abrindo-se, e depois fechando-se.
O prisioneiro fez um movimento em suas amarras.
— Lá vem a cidadã — disse Thénardier.
Ele mal terminara a frase, e, de fato, a mulher irrompeu no quarto,
vermelha, arquejante, sem fôlego, os olhos chispando, e gritou, batendo
com as mãos enormes nas coxas:
— Endereço errado!
O bandido que a acompanhara veio logo depois dela para pegar outra
vez a marreta.
— Endereço errado? — repetiu Thénardier.
— Ninguém! Na rua Saint-Dominique, número 17, não tem nenhum
senhor Urbain Fabre! Ninguém sabe quem é!
E parou, sem fôlego, continuando em seguida:
— Thénardier, esse velho o enganou! Você é bom demais! Se fosse eu,
já teria quebrado a cara dele em quatro, para começar! E se ele quisesse
ser mau, eu o assaria vivo! Ele ia ter que falar, e dizer onde está a filha e
onde está a bufunfa! Era assim que eu ia levar essa história! Bem que
dizem que os homens são mais bestas que as mulheres! Ninguém no
número 17! É só um grande portão! Nada de senhor Fabre na rua Saint-
Dominique! E aquela correria, e a gorjeta para o cocheiro, e tudo! Falei
com o porteiro e com a porteira, que é uma mulher das fortes, eles não
conhecem nada disso!
Marius respirou. Ela, Ursule ou Cotovia, aquela que ele não sabia mais
como chamar, estava salva.
Enquanto sua mulher vociferava exasperada, Thénardier sentou-se
sobre a mesa e ficou alguns instantes sem dizer uma palavra, balançando a
perna direita que pendia e olhando para o fogareiro com ares de devaneio
selvagem. Enfim, disse ao prisioneiro com uma entonação lenta e
singularmente feroz:
— Um endereço errado? O que você esperava com isso?
— Ganhar tempo! — gritou o prisioneiro de modo explosivo.
E no mesmo instante desenvencilhou-se das amarras; elas estavam
cortadas. Ele só continuava preso à cama por uma perna.
Antes que os sete homens tivessem tempo de entender o que se passava
e de agir, o homem se inclinara para a lareira, levantara a mão em direção
ao fogareiro, e já se reerguera; e Thénardier, sua mulher e os bandidos,
recuados ao fundo do quarto pela surpresa, olhavam-no, estupefatos,
elevar acima de sua cabeça, quase livre e em atitude ameaçadora, o formão
em brasa irradiando um clarão sinistro.
O inquérito judiciário, que se seguiu à cilada do casebre Gorbeau,
constatou que uma grande moeda, cortada e trabalhada de um modo
particular, foi encontrada no quarto quando a polícia ali fez uma busca;
aquela moeda de um soldo era uma dessas maravilhas da inteligência que
a paciência da prisão engendra em meio às trevas e para as trevas,
maravilhas que não são nada além de instrumentos de evasão. Esses
hediondos e delicados produtos de uma arte prodigiosa são, para a
joalheria, o que as metáforas da gíria são para a poesia. Existem
Benvenutos Cellini nas galés, do mesmo modo que existem Villons na
língua. O infeliz que aspira à liberdade encontra meios, algumas vezes
sem ferramentas, só com uma navalha, ou uma faca velha, de serrar uma
moeda em duas lâminas delgadas, de cavar as duas lâminas sem tocar nas
marcas monetárias, e de produzir uma rosca de parafuso no corte, de modo
a fazer as duas lâminas aderirem novamente. Forma-se uma verdadeira
caixa, que se atarraxa e desatarraxa à vontade. Dentro dessa caixa esconde-
se uma mola de relógio que, bem manejada, corta argolas e barras de ferro.
Acredita-se que o infeliz forçado só possui um soldo; nada disso, ele
possui a liberdade.
Foi uma grande moeda desse tipo que, nas ulteriores buscas da polícia,
foi encontrada, aberta e em dois pedaços, na espelunca, embaixo da cama,
perto da janela. Descobriu-se igualmente uma pequena serra de aço
temperado que podia ser escondida ali dentro. É provável que, quando os
bandidos revistaram o prisioneiro, ele carregasse uma moeda daquelas,
conseguindo escondê-la na mão, e que, em seguida, estando com a mão
direita livre, a abrisse e se servisse da serra para cortar as cordas que o
amarravam; isso explicaria o leve ruído e os movimentos imperceptíveis
que Marius notara.
Não podendo abaixar-se, com medo de se trair, não cortara as cordas
que prendiam sua perna esquerda.
Os bandidos haviam se refeito de sua primeira surpresa.
— Fique tranquilo — disse Bigrenaille a Thénardier —; ele ainda está
preso por uma perna e não vai fugir. Dou minha palavra. Fui eu quem lhe
amarrou essa pata.
No entanto, o prisioneiro elevou a voz.
— Vocês são uns desgraçados, mas a minha vida não vale ser tão
defendida. Quanto a acreditarem que me fariam falar, que me fariam
escrever o que não quero escrever, que me fariam dizer o que não quero
dizer…
Levantou sua manga esquerda e acrescentou:
— Olhem.
Ao mesmo tempo, estendeu o braço e pousou na carne nua o formão
em brasa que segurava com a mão direita pelo cabo de madeira.
Ouviu-se o frêmito da carne queimada, o odor peculiar às câmaras de
tortura espalhou-se pelo quarto. Marius cambaleou horrorizado, os
próprios bandidos estremeceram; o rosto do estranho homem mal se
contraiu, e, enquanto o ferro encandecido afundava na chaga fumegante,
impassível e quase augusto, ele lançava sobre Thénardier um belo olhar
sem ódio, no qual o sofrimento se esvanecia em serena majestade.
Entre as grandes e elevadas naturezas, as revoltas da carne e dos
sentidos em luta com a dor física fazem a alma sair e aparecer na fronte,
do mesmo modo que as rebeliões da soldadesca obrigam o capitão a se
mostrar.
— Miseráveis — disse ele —, não tenham mais medo de mim do que
eu tenho de vocês.
E, arrancando o formão da ferida, lançou-o pela janela que
permanecera aberta, e o horrível instrumento em brasa desapareceu
rodopiando no escuro, indo cair ao longe e apagando-se na neve.
E acrescentou:
— Façam de mim o que quiserem.
— Agarrem-no! — disse Thénardier.
Dois dos bandidos pegaram-no pelos ombros, o homem mascarado
com voz de ventríloquo postou-se diante dele, pronto a fazer seu crânio
saltar, com um golpe de chave, ao menor movimento.
Ao mesmo tempo, Marius ouviu, abaixo dele, e tão junto à parede que
não conseguia ver quem falava em voz baixa, o seguinte diálogo:
— Não há senão uma coisa a fazer.
— Cortá-lo de alto a baixo!
— Isso mesmo!
Eram marido e mulher em conselho.
Thénardier dirigiu-se vagarosamente até a mesa, abriu a gaveta e
pegou a faca.
Marius apertava a coronha da pistola. Singular perplexidade. Havia
uma hora tinha duas vozes em sua consciência, uma dizendo-lhe que
respeitasse o testamento de seu pai, a outra gritando-lhe que socorresse o
prisioneiro. Essas duas vozes continuavam sem interrupção sua luta,
levando-o à agonia. Até aquele momento havia vagamente esperado
encontrar um meio de conciliar os dois deveres, mas nada que fosse
possível havia surgido. E, no entanto, o perigo o pressionava, o último
limite da espera já fora ultrapassado; a poucos passos do prisioneiro,
Thénardier pensava, de faca em punho.
Marius, atormentado, olhava a sua volta, último recurso maquinal do
desespero. De repente, estremeceu.
A seus pés, sobre a mesa, um vivo raio de lua cheia iluminava, e
parecia mostrar-lhe, uma folha de papel. Sobre essa folha ele leu estas
palavras, manuscritas em letras grandes ainda naquela manhã pela filha
mais velha de Thénardier:
Os gambés chegaram.
Uma ideia, uma luz atravessou o espírito de Marius; era aquele o meio
que procurava, a solução do terrível problema que o torturava, poupar o
assassino e salvar a vítima. Ajoelhou-se sobre a cômoda, estendeu o braço,
pegou a folha de papel, arrancou suavemente um pedaço de reboque da
parede, embrulhou-o no papel e atirou tudo, pela abertura, no meio da
espelunca.
Era tempo. Thénardier vencera seus últimos receios, ou seus últimos
escrúpulos, e ia em direção ao prisioneiro.
— Alguma coisa caiu! — gritou a Thénardier.
— O que é? — disse o marido.
A mulher correu para recolher o embrulho e o entregou ao marido.
— Por onde entrou isto? — perguntou Thénerdier.
— Ora essa! — disse a mulher. — Por onde você quer que isso tenha
entrado? Pela janela.
— Eu vi isso passando! — disse Bigrenaille.
Thénardier desdobrou rapidamente o papel e o aproximou da vela.
— É a letra de Éponine. Diabo!
Fez sinal a sua mulher, que se aproximou prontamente, e mostrou-lhe a
linha escrita na folha de papel, depois acrescentou com a voz abafada:
— Depressa! A escada! Vamos deixar o queijo na ratoeira e vamos nos
mandar!
— Sem cortar o pescoço do homem? — perguntou a Thénardier.
— Não temos tempo.
— Por onde? — atalhou Bigrenaille.
— Pela janela! — respondeu Thénardier. — Já que Ponine atirou a
pedra pela janela, é porque a casa não está cercada por este lado.
O máscara com voz de ventríloquo pôs no chão sua enorme chave,
levantou os braços para o ar e fechou rapidamente as mãos por três vezes
sem dizer nada. Foi como um sinal de preparar dado a uma tripulação. Os
bandidos que seguravam o prisioneiro o largaram, num piscar de olhos, a
escada de corda foi desenrolada janela abaixo e solidamente presa ao
peitoril pelos dois ganchos de ferro.
O prisioneiro não prestava atenção ao que se passava a seu redor.
Parecia divagar ou orar.
Assim que a escada foi fixada, Thénardier gritou:
— Venha, mulher!
E correu para a janela.
Quando ia saltar, Bigrenaille o agarrou bruscamente pela gola.
— Nada disso, seu velho farsante! Primeiro nós!
— Primeiro nós! — uivaram os bandidos.
— Vocês são umas crianças — disse Thénardier —; é perda de tempo.
Os meganhas estão no nosso encalço.
— Está bem — disse um dos bandidos —, vamos sortear quem vai ser
o primeiro.
— Estão loucos! Malucos! Que bando de patetas! Perder tempo, é?
Sortear? Par ou ímpar! Palitinhos! Escrever os nomes! E colocar no
boné!…
— Querem meu chapéu? — gritou uma voz da soleira da porta.
Todos se voltaram. Era Javert.
Tinha seu chapéu na mão e o estendia sorrindo.
Le roi Coupdesabot
S’en allait à la chasse,
À la chasse aux corbeaux…
O rei Coupdesabot
Ia à caça,
À caça aos corvos…
Le roi Coupdesabot
S’en allait à la chasse,
À la chasse aux corbeaux,
Monté sur des échasses.
Quand on passait dessous,
On lui payait deux sous.
__________________________
1 Baile público que acontecia no bulevar Montparnasse.
2 “O que tem quatro rostos.”
3 Nome dado à fresta que se faz, principalmente em portas de prisão, para observar sem ser
observado, em referência ao apóstolo que traiu Cristo.
4 “Vaidade das vaidades, e tudo é vaidade” (Eclesiastes).
5 “Sozinhos, em um lugar afastado, não se cogita que estejam rezando o Pai-Nosso.”
6 Espécie de elegante ridículo, principalmente da época da Revolução Francesa.
7 Nome pelo qual é conhecido o “Hôpital de la Maternité” (Hospital da Maternidade), situado
na rua Bourbe.
8 Célebre sapateiro do Palácio Real.
QUARTA PARTE
O idílio da rua Plumet e a epopeia
da rua Saint-Denis
LIVRO I
ALGUMAS PÁGINAS DA HISTÓRIA
I. BEM CORTADO
1831 E 1832, os dois anos que se ligam imediatamente à Revolução de
Julho, são alguns dos momentos mais particulares e mais tocantes da
história. Esses dois anos, entremeando os anos precedentes e os
subsequentes, são como duas montanhas, têm a grandeza revolucionária.
Neles dintinguem-se precipícios. As massas sociais, os próprios alicerces
da civilização, o sólido grupo dos interesses sobrepostos e aderentes, os
perfis seculares da antiga formação francesa, neles aparecem e
desaparecem, a cada instante, através das nuvens tempestuosas dos
sistemas, das paixões e das teorias. Essas aparições e desaparições foram
chamadas de resistência e movimento. De tempos em tempos, nesses dois
anos pode-se ver fulgurar a verdade, essa luz da alma humana.
Essa época notável é bastante circunscrita, e começa a distanciar-se o
bastante de nós para que possamos presentemente compreender suas linhas
principais.
É o que vamos tentar.
A Restauração tinha sido uma dessas fases intermediárias difíceis de
definir, compostas de cansaço, ruído, murmúrios, sono, tumulto, e que
nada mais são do que a chegada de uma grande nação ao fim de uma etapa.
Essas épocas são singulares e enganam os políticos que querem explorá-
las. No princípio, a nação só pede descanso; só tem uma sede, de paz; só
tem uma ambição, ser pequena. O que é a tradução de viver tranquila.
Grandes acontecimentos, grandes acasos, grandes aventuras, grandes
homens, obrigado, Senhor, já se viu o suficiente de tudo isso, já se está por
aqui de tudo isso. César seria trocado por Prúsias e Napoleão pelo rei de
Yvetot. “Que bom reizinho era aquele!” Caminhamos desde o romper do
dia, estamos na noite de uma longa e dura jornada; fizemos o primeiro
revezamento com Mirabeau, o segundo com Robespierre, o terceiro com
Napoleão, estamos exaustos. Cada um pede uma cama.
As afeições cansadas, os heroísmos envelhecidos, as ambições
saciadas, as fortunas feitas procuram, reclamam, imploram, solicitam o
quê? Um asilo. Já têm. De posse da paz, da tranquilidade, do lazer, ei-los
contentes.
Ao mesmo tempo, porém, surgem certos fatos que se fazem reconhecer
e, por sua vez, batem à porta. Esses fatos saíram das revoluções e das
guerras, existem, vivem, têm direito de instalar-se na sociedade, e ali se
instalam; e, a maior parte do tempo, os fatos são segundos-sargentos de
cavalaria e soldados que não têm outra coisa a fazer senão preparar o
alojamento para os princípios.
Então, eis o que se apresenta aos filósofos políticos.
Assim como os homens cansados pedem descanso, os fatos
consumados pedem garantias. As garantias são para os fatos o mesmo que
o descanso é para os homens.
É o que a Inglaterra pedia aos Stuarts após o Protetor — Cromwell; é o
que a França pedia aos Bourbons após o Império.
Essas garantias são uma necessidade dos tempos. É preciso que sejam
concedidas. Os príncipes as “outorgam”, mas na realidade é a força das
circunstâncias que as propicia. Profunda e útil verdade, da qual os Stuarts
duvidaram em 1660, e que os Bourbons nem sequer entreviram em 1814.
A família predestinada, que voltou à França após a derrocada de
Napoleão, teve a fatal simplicidade de acreditar que era ela quem dava, e
que aquilo que havia dado, ela podia retirar; que a Casa Bourbon possuía o
direito divino e que a França não possuía nada; e que o direito político
concedido na Carta de Luís XVIII era apenas um ramo do direito divino
cortado pela Casa Bourbon e graciosamente oferecido ao povo até quando
aprouvesse ao rei reavê-lo. No entanto, pelo desprazer que lhe causava, a
Casa Bourbon deveria ter percebido que essa dádiva não vinha dela.
Foi rabugenta no século XIX. Fez cara feia a cada expansão da nação.
Para nos servirmos de um termo trivial, isto é, popular e verdadeiro,
torceu o nariz. O povo viu.
Acreditou que tinha força porque o Império desaparecera diante dela
como um cenário de teatro. Não percebeu que ela própria havia sido
levada da mesma maneira. Não viu que ela também estava nas mesmas
mãos que retiraram Napoleão dali.
Acreditou que tinha raízes porque era o passado. Enganou-se; fazia
parte do passado, mas o passado inteiro era a França. As raízes da
sociedade francesa não estavam nos Bourbons, e sim na Nação. Essas
obscuras e vivazes raízes constituíam não o direito de uma família, mas a
história de um povo. Ramificavam-se por toda parte, menos sob o trono.
A Casa Bourbon era para a França o ilustre e sangrento nó de sua
história, e não mais o elemento principal de seu destino, nem a base
necessária de sua política. Podia-se muito bem ficar sem os Bourbons; já
se tinham passado vinte e dois anos sem eles. Houve solução de
continuidade, mas eles não suspeitavam. E como suspeitariam, eles que
imaginavam que Luís XVII reinava no 9 termidor e que Luís XVIII
reinava no dia de Marengo? Nunca, desde a origem da história, os
príncipes haviam sido tão cegos em presença dos fatos e da porção de
autoridade divina que os fatos contêm e promulgam. Nunca essa pretensão
inferior, chamada de direito dos reis, havia negado a tal ponto o direito
superior.
Erro capital, que levou essa família a recolocar as mãos nas garantias
“outorgadas” em 1814, nas concessões, como ela as denominava. Coisa
triste! O que ela chamava de suas concessões eram nossas conquistas; o
que ela chamava de nossas usurpações eram nossos direitos.
Quando lhe pareceu que havia chegado a hora, a Restauração, supondo-
se vitoriosa sobre Bonaparte e enraizada no país, isto é, julgando-se forte e
profunda, tomou repentinamente sua decisão e arriscou seu golpe. Uma
manhã, ergueu-se diante da França e, elevando a voz, contestou o título
coletivo e o título individual; à Nação, sua soberania; ao indivíduo, sua
liberdade. Em outras palavras, negou à nação o que a tornava uma nação, e
ao cidadão o que o tornava um cidadão.
É esse o fundamento dos célebres atos chamados de Decretos de Julho.
A Restauração caiu.
Caiu com justiça. No entanto, devemos dizer, ela não havia
absolutamente sido hostil a todas as formas do progresso. Grandes coisas
foram feitas tendo seu apoio.
Durante a Restauração, a Nação habituara-se à discussão com calma,
coisa que faltara à República, e à grandeza na paz, coisa que faltara ao
Império. A França livre e forte fora um espetáculo encorajador para os
outros povos da Europa. A Revolução teve a palavra com Robespierre; o
canhão teve a palavra com Bonaparte; foi com Luís XVIII e Carlos X que
chegou a vez da inteligência ter a palavra. O vento cessou, a chama se
reacendeu. Viu-se estremecer nos cimos serenos a pura luz dos espíritos.
Espetáculo magnífico, útil e encantador. Viu-se que trabalharam durante
quinze anos, em plena paz, em plena praça pública, esses grandes
princípios, tão velhos para o filósofo, tão novos para o homem de estado: a
igualdade perante a lei, a liberdade de consciência, a liberdade de palavra,
a liberdade de imprensa, o acesso de todas as capacidades a todas as
funções. Isso durou até 1830. Os Bourbons foram um instrumento de
civilização que se quebrou nas mãos da Providência.
A queda dos Bourbons foi cheia de grandeza, não por parte deles, mas
por parte da nação. Abandonaram o trono com gravidade, mas sem
autoridade; sua descida para as trevas não foi nenhuma dessas solenes
desaparições que deixam à história uma sombria emoção; não foi a
serenidade espectral de Carlos I, nem o grito de águia de Napoleão. Eles se
foram, é tudo. Depuseram a coroa e não mantiveram uma auréola. Foram
dignos, mas não augustos. Em certa medida, faltaram à majestade de seu
infortúnio. Carlos X, durante a viagem de Cherbourg, mandando tornar
quadrada uma mesa redonda, parecia mais preocupado com a etiqueta em
perigo do que com a monarquia desabando. Essa diminuição entristeceu os
homens dedicados, que amavam suas pessoas, e os homens sérios, que
honravam sua raça. O povo, este foi admirável. A Nação, atacada certa
manhã, à mão armada, por uma espécie de insurreição real, sentiu tanta
força que nem sequer encolerizou-se. Defendeu-se, conteve-se, tornou a
colocar as coisas em seu lugar; pôs o governo na lei, os Bourbons no exílio
e, infelizmente, parou. Pegou o velho Carlos X sob o dossel que abrigara
Luís XIV e o colocou devagar no chão. Não tocou nas pessoas reais senão
com tristeza e precaução. Não foi um homem, não foram alguns homens,
foi a França, a França inteira, a França vitoriosa e ébria de sua vitória, que
pareceu recordar e pôr em prática aos olhos do mundo inteiro estas graves
palavras de Guilhaume du Vair após a jornada das barricadas: “É facil para
os que estão acostumados a tocar os favores dos grandes, e a saltar, como
os pássaros, de galho em galho, de uma sorte adversa a outra florescente,
mostrarem-se ousados contra seu príncipe na adversidade; mas para mim a
sorte de meus reis será sempre venerável, e principalmente a dos aflitos”.
Os Bourbons levaram o respeito, mas não deixaram saudades. Como
acabamos de dizer, seu infortúnio foi maior que eles. Sumiram no
horizonte.
A Revolução de Julho logo teve amigos e inimigos no mundo inteiro.
Uns acorreram a ela com entusiasmo e alegria; os outros voltaram-lhe as
costas, cada qual de acordo com sua natureza. Os príncipes da Europa,
num primeiro momento, feito mochos dessa aurora, fecharam os olhos,
feridos e estupefatos, reabrindo-os apenas para ameaçar. Medo que se
compreende, cólera que se desculpa. Essa estranha revolução não foi mais
que um choque; não deu sequer à realeza vencida a honra de tratá-la como
inimiga e de derramar seu sangue. Aos olhos dos governos despóticos
sempre interessados em que a liberdade calunie a si própria, a Revolução
de Julho errou por ser formidável e permanecer branda. De resto, nada foi
tentado nem maquinado contra ela. Os mais descontentes, os mais
irritados, os mais ardorosos saudavam-na; por maiores que sejam nossos
egoísmos e rancores, um respeito misterioso brota dos acontecimentos nos
quais se reconhece a colaboração de alguém que trabalha acima do
homem.
A Revolução de Julho é o triunfo do direito sobre os fatos. Algo cheio
de esplendor.
O direito pondo os fatos por terra. Vem daí o brilho da revolução de
1830, bem como sua mansidão. O direito que triunfa não tem qualquer
necessidade de ser violento.
O direito é justiça e verdade.
É característico do direito conservar-se eternamente belo e puro. O
fato, até o mais aparentemente necessário, até o mais bem aceito pelos
contemporâneos, se só existir como fato, ou se contiver muito pouco ou
nada de direito, estará infalivelmente destinado a tornar-se, com o passar
do tempo, disforme, imundo, talvez até monstruoso. Quem quiser
constatar de vez a que nível de fealdade o fato pode chegar, visto à
distância dos séculos, que olhe para Maquiavel. Maquiavel não é um gênio
mau, nem um demônio, nem um escritor covarde e miserável; não é nada
mais que o fato. E não é só o fato italiano, é o fato europeu, o fato do
século XVI. Parece horrível, e é, em presença da ideia moral do século
XIX.
Essa luta entre o direito e o fato dura desde a origem das sociedades.
Terminar o duelo, amalgamar a ideia pura com a realidade humana, fazer
penetrar pacificamente o direito no fato e o fato no direito, esse é o
trabalho dos sábios.
E como post-scriptum:
Aprenda esta lista de cor. Depois rasgue-a. Os homens admitidos farão o mesmo, depois que
você lhes tiver transmitido as ordens. Saúde e fraternidade.
L.
1
u og a fe
Salitre………………………12 onças
Enxofre………………………2 onças
Carvão…………………………2 onças e meia
Água……………………………2 onças
Lanças.
Toque a rebate.
Canhão de alarme.
Barrete frígio.
21 de janeiro.
Mendigos.
Vadios.
Marcha adiante.
Robespierre.
Nível.
Avante.
__________________________
1 Augustín de Iturbide: político militar mexicano; foi coroado Imperador em 1822. Lutou pela
Independência do México.
2 Expressão aplicada a Luís Filipe, que foi feito rei embora fosse Bourbon e porque era um
Bourbon.
3 Formas antigas de polonais (polonês) e hongrois (húngaro).
4 Referência ao massacre da rua Transnonain, que ocorreu no reinado de Luís Filipe, em
1834.
5 Cesare Bonesana, marquês de Beccaria —jurista italiano cujas teses fizeram-no precursor do
direito penal moderno.
6 Giuseppe Marco Fieschi, conspirador que atentou contra a vida de Luís Filipe, saindo este
ileso.
7 Em 1841, Quéssinet, operário do bairro Saint-Antoine, tentou assassinar dois príncipes da
família real.
8 Partidário de doutrina de Babeuf, idealista que participou da Revolução Francesa; pregava a
igualdade.
9 Nome da insurreição camponesa de 1358 contra a nobreza da França; o termo deriva do
nome Jacques (que designava, com certo escárnio, o homem do povo) e exprime a revolta das
classes pobres perante os abastados.
10 Alusão ao jornal do comunista Cabet, de 1833.
11 “Monstro horrível, disforme, colossal, cego” (Virgílio, Eneida).
12 Grupo político de Jacques Hébert, revolucionário francês, fundador de um jornal
representativo da extrema esquerda.
LIVRO II
ÉPONINE
BRUJON, 1811.
__________________________
1 Victor Escousse e Auguste Lebras: atores franceses, suicidaram-se em 1832, após o fracasso
de uma peça de teatro que haviam escrito.
2 Jacob van Ruisdael (ou Ruysdael) — pintor, desenhista e mestre paisagista holandês.
3 Némorin é o amante de Estela no célebre romance de Florian Némorin e Estela;
Schinderhannes, também conhecido como Jean l’Écorcheur, era chefe de quadrilha e foi
guilhotinado em 1803.
4 O castelo de Vauvert era tido como mal-assombrado na Idade Média. O nome da
manufatura instalada em Bièvre vem de seu fundador, Jean Gobelin.
LIVRO III
A CASA DA RUA PLUMET
I. A CASA SECRETA
EM MEADOS do século passado, um presidente do Parlamento de Paris,
querendo ocultar a amante, pois naquela época os grandes senhores
mostravam suas amantes e os burgueses as escondiam, mandou construir
“uma casinha” no bairro de Saint-Germain, na deserta rua Blomet, hoje
chamada rua Plumet, não muito longe do local então denominado Combat
des Animaux.
Essa casa se compunha de um pavilhão com um só andar; duas salas na
parte térrea, dois quartos na parte superior; uma cozinha embaixo, uma
sala de toucador em cima; sob o telhado, um sótão; e tudo isso precedido
de um jardim com uma vasta grade dando para a rua. Esse jardim tinha
aproximadamente um arpent.1 Isso era tudo o que os passantes podiam
enxergar; mas por trás do pavilhão havia um quintal estreito, e, ao fundo
deste, uma moradia baixa com dois aposentos acima de um porão, uma
espécie de lugar reservado a dissimular, se necessário, uma criança e uma
ama. Essa segunda casa se comunicava, pela parte posterior e por meio de
uma porta cuidadosamente disfarçada, com um longo e estreito corredor
calçado, sinuoso, a céu aberto, limitado por dois muros altos, o qual,
escondido prodigiosamente e como que perdido entre sebes e plantações,
acompanhava todos os ângulos e todas as sinuosidades, chegando a uma
outra porta igualmente secreta, que se abria praticamente em outro bairro,
a meio quarto de légua, na extremidade solitária da rua Babylone.
O senhor presidente entrava por aí, de modo que aqueles que o
tivessem espreitado e seguido, e observado que todos os dias,
misteriosamente, ele se dirigia a algum lugar, não pudessem suspeitar que
ir à rua Babylone era o mesmo que ir à rua Blomet. Graças a hábeis
compras de terrenos, o engenhoso magistrado pudera fazer secretamente o
trabalho de inspeção de ruas em suas propriedades, e, por consequência,
sem controle. Mais tarde, ele revendeu em pequenas parcelas, para hortas
e jardins, os lotes de terra contíguos ao corredor, e os proprietários desses
lotes, de ambos os lados, acreditavam ter diante dos olhos um muro
divisório, e nem sequer suspeitavam da existência dessa longa “tira”
pavimentada serpenteando entre duas muralhas, e entre suas platibandas e
seus pomares. Apenas os pássaros viam aquela curiosidade. É provável
que as rolinhas e os melharucos do século anterior tivessem muito a
tagarelar por conta do senhor presidente.
O pavilhão, construído em pedra no estilo Mansard, revestido e
mobiliado no estilo Watteau, com incrustrações na parte interior, fora de
moda na parte exterior, murado com tripla cerca de flores, tinha algo de
discreto, de elegante e de solene, como convém a um capricho do amor e
da magistratura.
Essa casa e esse corredor, atualmente desaparecidos, ainda existiam
uns quinze anos atrás. Em 1793, um caldeireiro havia comprado a casa
para demolir, mas, não conseguindo pagar seu preço, o Estado decretou
sua falência. De modo que foi a casa que demoliu o caldeireiro.
Desde então ela permaneceu inabitada, e lentamente foi-se arruinando,
como acontece a qualquer moradia à qual a presença do homem não mais
comunica vida. Seus velhos móveis foram mantidos, e continuava para ser
vendida ou alugada, sendo que as dez ou doze pessoas que passavam, por
ano, na rua Plumet eram advertidas disso por uma tabuleta amarela, meio
ilegível, amarrada à grade do jardim desde 1810.
Por volta do fim da Restauração, esses mesmos passantes puderam
notar que a tabuleta havia sumido e também que as janelas do primeiro
andar estavam abertas. De fato, a casa estava ocupada. Havia “cortininhas”
nas janelas, sinal de que ali habitava uma mulher.
Em outubro de 1829, um homem de certa idade apresentara-se para
alugar a casa tal como estava, incluindo, bem entendido, a casinha de trás
e o corredor que terminava na rua Babylone; ele mandou restabelecer as
entradas secretas das duas portas da passagem. A casa, como acabamos de
dizer, ainda estava mais ou menos mobiliada com as velhas peças do
presidente; o novo inquilino ordenou que se fizessem alguns consertos,
acrescentou aqui e ali o que faltava, recolocou ladrilhos no quintal,
azulejos nas paredes, degraus na escada, tacos no assoalho, vidros nas
vidraças, e, enfim, instalou-se, juntamente com uma jovem e uma criada já
idosa, sem muito ruído, mais como alguém que passa furtivamente do que
como alguém que entra em sua própria casa.
Os vizinhos não comentaram nada pela simples razão de não haver
vizinhos.
O novo inquilino, de pouco ruído, era Jean Valjean, a jovem era
Cosette. A criada se chamava Toussaint, fora salva por Jean Valjean do
hospital e da miséria, e era velha, provinciana e gaga, três qualidades
determinantes para que Jean Valjean ficasse com ela. Ele alugara a casa
com o nome de senhor Fauchelevent, como se vivesse de rendas. Com tudo
o que já foi contado mais acima, sem dúvida o leitor levou menos tempo
ainda que Thénardier para reconhecer Jean Valjean.
Por que Jean Valjean deixara o convento do Petit-Picpus? O que
acontecera?
Nada acontecera.
Como se lembram, Jean Valjean vivia feliz no convento, e tão feliz que
sua consciência acabou por se preocupar. Via Cosette todos os dias, sentia
a paternidade nascer e se desenvolver cada vez mais em seu íntimo, olhava
a menina com a ternura da alma, pensava que ela era dele, que nada
poderia tirá-la de perto, que seria assim indefinidamente, que certamente
ela se tornaria uma religiosa, sendo para isso docemente induzida a cada
dia, que assim o convento iria tornar-se o universo para ela e para ele, que
ali ele envelheceria e ela cresceria, que ali ela envelheceria e ele morreria,
que, enfim, maravilhosa esperança, nenhuma separação seria possível.
Refletindo sobre isso, acabou tendo uma sensação de perplexidade.
Interrogava-se. Perguntava-se se toda aquela felicidade era realmente dele,
se acaso não era feita da felicidade alheia, da felicidade dessa criança,
felicidade que ele vinha confiscando e furtando, ele, um velho, e se isso
não seria um roubo. Dizia-se que aquela criança tinha direito de conhecer
a vida antes de a ela renunciar; que lhe cercear, antecipadamente e de certa
forma sem consultá-la, todas as alegrias sob pretexto de preservá-la de
todas as provações, aproveitar de sua ignorância e de seu isolamento para
nela fazer germinar uma vocação artificial, era desnaturar uma criatura
humana e mentir a Deus. E quem poderia saber se, um dia, ao dar-se conta
de tudo isso e sendo religiosa a contragosto, Cosette não viria a odiá-lo?
Último pensamento, quase egoísta e menos heroico que os outros, mas que
lhe era insuportável. Resolveu deixar o convento.
Resolveu assim, reconhecendo com desolação que era necessário.
Objeções, ele não as tinha. Cinco anos de desaparecimento entre aquelas
quatro paredes deveriam necessariamente ter destruído ou dispersado
qualquer motivo de receio. Ele podia estar de volta entre os homens com
tranquilidade. Havia envelhecido, e tudo havia mudado. Quem o
reconheceria agora? E depois, vendo o lado pior, só existia perigo para ele
mesmo; e ele não tinha o direito de condenar Cosette ao claustro por ter
sido condenado à prisão. Além do mais, o que é o perigo diante do dever?
Enfim, nada o impedia de ser prudente e de tomar suas precauções.
Quanto à educação de Cosette, estava quase terminada e completa.
Uma vez tomada sua decisão, esperou uma ocasião oportuna, e ela não
demorou a aparecer. O velho Fauchelevent morreu.
Jean Valjean solicitou uma audiência com a reverenda prioresa e disse-
lhe que, com a morte de seu irmão, tomara posse de uma pequena herança,
o que lhe permitiria passar a viver sem trabalhar; e deixava o serviço do
convento e levava sua filha; mas que, como não era justo que Cosette, não
professando seus votos, tivesse sido educada gratuitamente, humildemente
suplicava à reverenda prioresa permissão para oferecer à comunidade,
como indenização pelos cinco anos que Cosette passara naquela casa, a
quantia de cinco mil francos.
Foi dessa forma que Jean Valjean saiu do Convento da Adoração
Perpétua.
Saindo do convento, ele próprio carregou, não querendo confiá-la a
ninguém, a pequena mala cuja chave trazia sempre com ele. Essa mala
intrigava Cosette, por causa do cheiro de coisa embalsamada que saía dela.
Devemos logo acrescentar que, desde então, essa mala nunca mais o
largou. Tinha-a sempre em seu quarto. Era a primeira e, às vezes, única
coisa que levava em suas mudanças. Cosette ria disso, e chamava a mala
de a inseparável, dizendo: “Tenho ciúmes dela”.
De resto, Jean Valjean não retornou ao ar livre sem experimentar uma
profunda ansiedade.
Descobriu a casa da rua Plumet e ali se refugiou. Agora usava o nome
Ultime Fauchelevent.
Ao mesmo tempo, alugou dois outros apartamentos em Paris, a fim de
chamar menos atenção do que se residisse permanentemente no mesmo
local, a fim de poder ficar, se necessário, ausente à menor preocupação
que fosse, e, enfim, para nunca mais achar-se desprevenido, como na noite
em que tão miraculosamente escapara de Javert. Esses dois apartamentos
eram habitações muito simples e de aparência pobre, situados em bairros
muito distantes, um na rua de l’Ouest, outro na rua de l’Homme-Armé.
De tempos em tempos, ia passar um mês ou seis semanas, ora na rua
de l’Homme-Armé, ora na rua de l’Ouest, em companhia de Cosette e sem
levar Toussaint. Fazia-se servir pelos porteiros e passava por um
proprietário de terras dos arredores que possuía um alojamento na cidade.
Essa grande virtude tinha três domicílios em Paris para escapar da polícia.
__________________________
1 Antiga medida agrária francesa, equivalente a 0,5 hectares, conforme as regiões.
2 “Folhas e ramos.”
3 Comerciantes de moda em voga na época.
4 “Madame Cachorro-louco.”
LIVRO IV
SOCORRO DA TERRA PODE SER
SOCORRO DO CÉU
I. ORIGEM
PIGRITIA1 é uma palavra terrível.
Ela engendra um mundo, la pègre, leiam o roubo, e um inferno, la
pégrenne, leiam a fome.
Assim, a preguiça é mãe.
Tem um filho, o roubo, e uma filha, a fome.
Onde nós estamos neste momento? Na gíria.
O que é a gíria? É, ao mesmo tempo, a nação e o idioma; é o roubo
nestas duas espécies, povo e língua.
Quando, há trinta e quatro anos, o narrador desta grave e sombria
história introduziu em uma obra, escrita com o mesmo objetivo desta,2 um
ladrão falando gíria, houve espanto e clamor.
— O quê! Como! Gíria!? Mas gíria é horrível! É a língua da ralé, das
galés, das prisões, de tudo o que a sociedade tem de mais abominável!
Etc., etc., etc.
Nunca compreendemos esse gênero de objeções.
Mais tarde, quando dois grandes romancistas, um, profundo
observador do coração humano, outro, intrépido amigo do povo, Balzac e
Eugène Sue, fizeram os bandidos falar em sua linguagem natural, como
havia feito em 1828 o autor de O último dia de um condenado, as mesmas
reclamações se ergueram. Repetia-se: “O que estão querendo os escritores
com este revoltante patoá? A gíria é odiosa! A gíria dá arrepios!”
Alguém nega? Sem dúvida.
Quando se trata de sondar uma ferida, um abismo ou uma sociedade,
desde quando é um erro descer mais fundo, ir mais além? Sempre
pensamos que, algumas vezes, era um ato de coragem, e, no mínimo, uma
ação simples e útil, digna da atenção simpática que merece o dever aceito
e cumprido. Não explorar tudo, não estudar tudo, parar no meio do
caminho, por quê? Parar diz respeito à sonda e não a quem sonda.
Por certo, ir procurar nas escórias da ordem social, lá onde a terra
acaba e onde a lama começa, remexer nessas vagas espessas, perseguir,
agarrar e arremessar, palpitante, sobre a calçada, esse idioma abjeto que
escorre da imundície, esse vocabulário pustulento, do qual cada palavra se
assemelha a um anel imundo de um monstro do lodo e das trevas, não é
uma tarefa atraente nem uma tarefa fácil. Nada é mais lúgubre do que
contemplar assim, a nu, à luz do pensamento, o horrível formigar da gíria.
De fato, parece tratar-se de uma espécie de medonha besta feita pela
escuridão, que acabara de ser arrancada de sua cloaca. Julga-se ver um
pavoroso matagal, vivo e eriçado, que estremece, se move, se agita, que
pede novamente pela escuridão, ameaça e observa. Tal palavra parece uma
garra, aquela outra, um olho atento e sangrento; tal frase parece mover-se
como uma pinça de caranguejo. Tudo isso vive daquela vitalidade horrível
das coisas que são organizadas dentro da desorganização.
Agora, desde quando o horror exclui o estudo? Desde quando a doença
afasta o médico? É possível imaginar um naturalista que se recusasse a
estudar as víboras, os morcegos, os escorpiões, as centopeias, as tarântulas
e que os enxotasse para suas tocas dizendo: “Oh! Que coisa feia!”? O
pensador que se desviasse da gíria seria como um cirurgião que se
desviasse de uma úlcera ou de uma verruga. Seria um filólogo hesitando
em examinar um fato da língua; um filósofo hesitando em escrutar um
fato da humanidade. Porque, é mesmo preciso dizer àqueles que o
ignoram, a gíria é, ao mesmo tempo, um fenômeno literário e um
resultado social. O que é a gíria propriamente dita? A gíria é a língua da
miséria.
Nesse ponto, podemos parar, podemos generalizar o fato, o que,
algumas vezes, é uma maneira de atenuá-lo; podemos dizer que todos os
ofícios, todas as profissões, poderíamos quase acrescentar que todos os
acidentes da hierarquia social e todas as formas da inteligência, têm sua
gíria própria. O negociante que diz: Montpellier disponível, Marseille boa
qualidade; o agente de câmbio que diz: a transportar, alta, fim do corrente
(mês); o jogador que diz: bater, dar as cartas; o oficial de justiça das ilhas
normandas que diz: o fiador que para de ceder seus recursos não pode
reclamar os frutos desses recursos durante a penhora hereditária dos
imóveis daquele que renuncia; o “vaudevilista” que diz: fomos vaiados; o
ator que diz: fui um fracasso; o filósofo que diz: triplicidade fenomenal; o
caçador que diz: estes, quando eu ia, estes, quando fugiam; o frenólogo
que diz: amatividade, combatividade, secretividade; o soldado de
infantaria que diz: meu clarinete; o cavaleiro que diz: meu alazão; o
mestre de armas que diz: terça, quarta, romper; o impressor que diz:
baixo-relevo; todos, impressor, mestre de armas, cavaleiro, soldado,
frenólogo, caçador, filósofo, ator, vaudevilista, oficial de justiça, jogador,
agente, negociante, falam gíria. O pintor que diz: meu rapin; o notário que
diz: meu saute-ruisseau; o cabeleireiro que diz: meu commis; o sapateiro
que diz: meu gniaf, falam gíria.3 A rigor, e se assim quisermos, todas as
diversas maneiras de dizer direita e esquerda, o marinheiro, bombordo e
estibordo; o maquinista, lado do pátio e lado do jardim; o sacristão, lado
da epístola e lado do evangelho, são gíria. Há a gíria das afetadas assim
como já houve a gíria das preciosas. O Palácio de Rambouillet se
avizinhava um pouco à Cour des Miracles. Há a gíria das duquesas, como
testemunha esta frase, escrita em um doce bilhete por uma grande dama,
muito bela mulher da época da Restauração: Vous trouverez dans ces
potins-là une foultitude de raisons pour que je me libertise.4 As cifras
diplomáticas são gíria; a chancelaria pontifícia dizendo 26 para Roma,
grkzintgzyal para remessa, e abfxustgrtrnogrkzu tu XI para duque de
Módena, fala gíria. Os médicos da Idade Média, que, para dizerem
cenoura, rabanete e nabo, diziam: opoponach, perfroschinum, reptitalmus,
dracatholicum angelorum, postmegorum, falavam gíria. O fabricante de
açúcar que diz: vergoise, tête, claircé, tape, lumps, mélis, bâtarde,
commum, brûlé, plaque,5 esse honesto manufatureiro fala gíria. Uma certa
escola de crítica, de vinte anos atrás, que dizia: Metade de Shakespeare é
jogo de palavras e trocadilhos, falava gíria. O poeta e o artista que, com
um senso profundo, qualificarem o Senhor de Montmorency como “um
burguês”, porque não entende de versos e de estátuas, falam gíria. O
acadêmico clássico que chama as flores de Flora, os frutos de Pomone, o
mar de Netuno; o amor de fogo, a beleza de encantos, o cavalo de corcel, a
insígnia branca ou tricolor de rosa de Bellone, o chapéu de três pontas de
triângulo de Marte, o acadêmico clássico fala gíria.
A álgebra, a medicina, a botânica têm sua gíria. A língua empregada a
bordo, essa admirável linguagem do mar, tão completa e tão pitoresca, que
Jean Bart, Duquesne, Suffren e Duperré falaram, e que se confunde com o
assobio dos aparatos de mastreação, com o ruído dos porta-vozes, com as
batidas do machado de abordagem, com o balanço da embarcação, com o
vento, com a rajada, com o canhão, é toda uma gíria heroica e brilhante,
que está para a selvagem gíria dos bandidos como o leão está para o
chacal.
Sem dúvida. Mas, o que quer que possamos dizer a esse respeito, essa
maneira de compreender a palavra gíria é uma extensão, que nem todo o
mundo admitirá. Quanto a nós, conservamos sua velha acepção precisa,
circunscrita e determinada, restringimos a gíria à gíria. A gíria verdadeira,
a gíria por excelência, se é que essas palavras podem andar juntas, a
imemorial gíria que é um império, não é outra coisa, repetimos, senão a
feia, inquieta, sorrateira, pérfida, venenosa, cruel, equívoca, vil, profunda,
fatal linguagem da miséria. No extremo de todas as humilhações e de
todos os infortúnios, existe uma última miséria que se revolta e que se
decide a entrar em luta contra o conjunto dos fatos felizes e dos direitos
reinantes; luta terrível em que, ora astuciosa, ora violenta, ao mesmo
tempo insana e feroz, ataca a ordem social, a alfinetadas, por meio do
vício, e a pancadas, por meio do crime. Para as necessidades dessa luta, a
miséria inventou uma língua de combate, que é a gíria.
Fazer flutuar e sustentar acima do esquecimento, acima do abismo, um
fragmento que seja de uma língua qualquer que o homem tenha falado e
que se perderia, isto é, um dos elementos, bons ou maus, com que a
civilização se compõe ou se complica, significa estender os dados da
observação social, servir de fato à civilização. Esse serviço, Plauto o
prestou, querendo ou não, ao fazer dois soldados cartagineses falarem a
língua fenícia; esse serviço, Molière o prestou ao fazer tantos de seus
personagens falarem o levantino e todo tipo de dialeto. Neste ponto, as
objeções se reanimam. O fenício, uma maravilha! O levantino, esplêndido!
Até mesmo um dialeto, vá lá! São linguagens que pertenceram a nações ou
províncias; mas a gíria? Para que conservar a gíria? Para que “fazer
flutuar” a gíria?
A isso respondemos com uma só palavra. Por certo, se a língua que
uma nação ou uma província falaram é digna de interesse, há uma coisa
ainda muito mais digna de atenção e de estudo, a linguagem que falou uma
miséria.
É a língua que tem falado na França, por exemplo, há mais de quatro
séculos, não somente uma miséria, mas a miséria, toda a miséria humana
possível.
Depois, insistimos, estudar as deformidades e as enfermidades sociais,
e as assinalar para curá-las, não é um trabalho que permita escolha. O
historiador dos costumes e das ideias não tem uma missão menos austera
que a do historiador dos acontecimentos. Este tem a superfície da
civilização, as lutas das coroas, os nascimentos de príncipes, os
casamentos de reis, as batalhas, as assembleias, os grandes homens
públicos, as revoluções às claras, todo o exterior; o outro historiador tem o
interior, o fundo, o povo que trabalha, que sofre e que espera, a mulher
oprimida, a criança que agoniza, as guerras surdas do homem contra o
homem, as ferocidades obscuras, os preconceitos, as iniquidades
acordadas, os contragolpes subterrâneos da lei, as evoluções secretas das
almas, os estremecimentos indistintos das multidões, os mortos de fome,
os pés descalços, os braços nus, os deserdados, os órfãos, os infelizes e os
infames, todas as larvas que erram na escuridão. É preciso que ele desça,
tendo o coração cheio tanto de caridade quanto de severidade, como um
padre e como um juiz, até essas casamatas impenetráveis onde rastejam,
confusamente, aqueles que sangram e aqueles que ferem, aqueles que
choram e aqueles que maldizem, aqueles que jejuam e aqueles que
devoram, aqueles que sofrem o mal e aqueles que o fazem. Esses
historiadores dos corações e das almas têm deveres menores que os
historiadores dos fatos exteriores? É possível acreditar que Alighieri tenha
menos coisas a dizer que Maquiavel? A parte inferior da civilização, sendo
mais profunda e mais sombria, acaso é menos importante que a parte
superior? Conhece-se bem a montanha quando não se conhece a caverna?
De resto, diga-se de passagem, de algumas das palavras precedentes
seria possível inferir que, entre as duas classes de historiadores, há uma
separação nítida que não existe em nosso espírito. Ninguém é bom
historiador da vida patente, visível, incontestável e pública dos povos se
não for ao mesmo tempo, e em certa medida, historiador de sua vida
profunda e oculta; ninguém é bom historiador do interior se não sabe ser,
sempre que preciso, historiador do exterior. A história dos costumes e das
ideias penetra pela história dos acontecimentos, e vice-versa. São duas
ordens de fatos diferentes que se correspondem, que se encadeiam sempre,
e frequentemente se geram. Todas as linhas que a Providência traça na
superfície de uma nação têm seus paralelos sombrios, mas, no fundo,
distintos; e todas as convulsões do fundo produzem manifestações na
superfície. A verdadeira história estando ligada a tudo, o verdadeiro
historiador deve se envolver em tudo.
O homem não é um círculo com um só centro; é uma elipse com dois
focos. Os fatos são um, as ideias são o outro.
A gíria não é outra coisa senão um vestiário onde a linguagem, quando
tem uma má ação a praticar, se disfarça. Aí se reveste de palavras-
máscaras e de metáforas-farrapos.
E dessa maneira fica horrível.
É custoso reconhecê-la. Será que é mesmo a língua francesa, a grande
língua da humanidade? Ei-la pronta a entrar em cena e fazer réplica ao
crime, e apropriada a qualquer emprego do repertório do mal. Já não anda,
manqueja; manqueja apoiada à muleta da Corte dos Milagres, muleta que
se transforma em clava. Chama-se vadiagem. Todos os espectros, seus
maquiadores, a caracterizam. Arrasta-se e ergue-se, duplo modo de andar
do réptil. Está apta a desempenhar todos os papéis, se faz de vesga pelo
falsário, de zinabre pelo envenenador, de chamuscada pela fuligem do
incendiário; e o assassino põe nela seu vermelho.
Quando, pelo lado das pessoas honestas, se escuta à porta da sociedade,
surpreende-se o diálogo daqueles que estão de fora. Distinguem-se
perguntas e respostas. Percebe-se, sem que se compreenda, um murmúrio
horrendo, soando quase como o sotaque humano, mas mais parecido com
uivos do que com palavras. É a gíria. As palavras são disformes, e
marcadas não se sabe com que bestialidade fantástica. Julga-se ouvir o
falar das hidras.
É o ininteligível dentro do tenebroso; ranger e cochichar, completando
o crepúsculo com o enigma. Há escuridão na desgraça, e mais escuridão
ainda no crime; esses dois negrumes amalgamados compõem a gíria.
Obscuridade na atmosfera, obscuridade nos atos, obscuridade nas vozes.
Pavorosa língua de sapos que vai, vem, salta, rasteja, baba, e se move
monstruosamente nessa imensa bruma cinzenta feita de chuva, de escuro,
de fome, de vício, de mentira, de injustiça, de nudez, de asfixia e de
inverno, pleno meio-dia dos miseráveis.
Tenhamos compaixão dos castigados. Ai! Quem somos nós mesmos?
Quem sou eu, eu que falo a vocês? Quem são vocês, vocês que me
escutam? De onde viemos? Há mesmo a certeza de que nada fizemos antes
de nascermos? A terra não deixa de ter semelhanças com uma prisão.
Quem sabe se o homem não é um condenado pela justiça divina?
Olhem a vida de perto. Ela é feita de tal forma que por toda parte se vê
punição.
Você é daqueles a quem se chama de feliz? Pois bem, você fica triste
todos os dias. Cada dia tem sua grande amargura ou sua pequena
preocupação. Ontem você temia pela saúde de alguém querido, hoje receia
pela própria saúde; amanhã, haverá uma preocupação de dinheiro, depois,
a crítica de um caluniador, a infelicidade de um amigo, mais tarde o tempo
que está fazendo, e depois, alguma coisa que se quebrou ou se perdeu; e
ainda, um prazer que a consciência e a coluna vertebral reprovam; e outra
vez, a marcha dos negócios públicos. Sem contar as penas do coração. E
assim sucessivamente. Uma nuvem se dissipa, outra logo se forma.
Apenas um dia em cem, de plena felicidade e pleno sol. E você faz parte
desse pequeno número que é feliz! Quanto aos outros homens, a noite
estagnante paira sobre eles.
Os espíritos reflexivos servem-se pouco destas palavras: os felizes e os
infelizes. Neste mundo, vestíbulo de um outro, evidentemente, não há
felizes.
A verdadeira divisão humana é esta: os que vivem na luz e os que
vivem nas trevas. Diminuir o número dos que vivem nas trevas, aumentar
o número dos que vivem na luz, eis o objetivo. É por isso que gritamos:
ensino! ciência! Aprender a ler é iluminar com fogo; cada sílaba soletrada
cintila.
De resto, quem diz luz não diz, necessariamente, alegria. Também se
sofre com a luz; em demasia, queima. A chama é inimiga da asa. Queimar-
se sem parar de voar, é esse o prodígio do gênio.
Mesmo com conhecimento e amor, ainda se sofre. O dia nasce em
lágrimas. Os iluminados choram, mesmo que seja apenas sobre os que
vivem nas trevas.
II. RAÍZES
A gíria é a língua dos que vivem nas trevas.
O pensamento comove-se em suas mais sombrias profundezas, a
filosofia social é chamada a fazer suas meditações mais pungentes, em
presença desse enigmático dialeto, ao mesmo tempo abatido e revoltado. É
nele que há um castigo visível. Cada sílaba parece marcada. As palavras
da linguagem vulgar aí aparecem como que enrugadas e endurecidas sob o
ferro em brasa do carrasco. Algumas parecem ainda fumegar. Tal frase
causa-lhes o efeito do ombro, marcado com a flor-de-lis, de um ladrão,
repentinamente posto a nu. A ideia quase se recusa a deixar-se exprimir
por esses substantivos condenados. A metáfora é às vezes tão atrevida que
se nota sua passagem pelo cárcere.
De resto, apesar de tudo isso, e por causa de tudo isso, esse dialeto
estranho tem direito a seu compartimento nesta grande estante imparcial
onde há lugar tanto para a moeda de cobre oxidada quanto para a medalha
de ouro, que é chamada de literatura. A gíria, quer estejamos ou não de
acordo, tem sua sintaxe e sua poesia. É uma língua. Se pela deformidade
de certos vocábulos se reconhece que foi mastigada por Mandrin, pelo
esplendor de certas metonímias sente-se que foi falada por Villon.
Este verso tão delicado e tão célebre:
Aqui é o teatro
Do pequeno cupido.
Por mais que se faça, nada aniquila este eterno resto do coração do
homem: o amor.
Neste mundo das ações sombrias, guarda-se segredo. O segredo é coisa
de todos. O segredo, para esses miseráveis, é a unidade que serve de base à
união. Romper o segredo é arrancar a cada membro dessa comunidade
feroz alguma coisa dele mesmo. Denunciar, na enérgica língua da gíria, se
diz: manger un morceau [comer um pedaço]. Como se o denunciante
tirasse para si um pouco da substância de todos e se nutrisse de um pedaço
de carne de cada um.
O que é levar un soufflet [uma bofetada]? A metáfora banal responde:
C’est voir trente-six chandelles [É ver trinta e seis velas, ou ver estrelas].
Aqui a gíria intervém e retoma: Chandelle — camoufle [vela]; e a
linguagem usual deu a soufflet o sinônimo camouflet. Assim, por uma
espécie de penetração de baixo para cima, com a ajuda da metáfora, essa
trajetória incalculável, a gíria sobe da caverna à Academia, e Poulailler,
dizendo: J’allume ma camoufle [Acendo minha vela], fez Voltaire
escrever: Langleviel La Beaumelle7 mérite cent camouflets [Langleviel La
Beaumelle merece cem bofetadas].
Uma escavação na gíria é uma descoberta a cada passo. O estudo e o
aprofundamento desse estranho idioma conduzem ao misterioso ponto de
interseção da sociedade regular com a sociedade maldita.
A gíria é o verbo que se tornou condenado.
Que o princípio pensante do homem possa ser empurrado tão para
baixo, que ele possa ser arrastado e forçado pelas obscuras tiranias da
fatalidade, que possa ser amarrado, não se sabe com que liames, à beira
desse precipício, é consternador.
Ó pobre pensamento dos miseráveis!
Ai! Será que ninguém virá em socorro da alma humana nessa
escuridão? Será que seu destino é esperar para sempre o espírito, o
libertador, o imenso cavaleiro dos pégasos e dos hipogrifos, o combatente
cor de aurora que desce do azul entre duas asas, o radiante cavaleiro do
futuro? Será que ela sempre pedirá em vão que venha em seu socorro a
lança luminosa do ideal? Será que está condenada a escutar a vinda
assustadora do Mal saído do espesso abismo, e a entrever, cada vez mais
perto de si, sob a água imunda, essa cabeça draconiana, essa goela
engolindo espuma, e essa ondulação serpenteante de garras, de tumefações
e de anéis? É preciso que aí fique, sem um clarão, sem esperança, entregue
a essa aproximação terrível, vagamente farejada pelo monstro, trêmula,
desgrenhada, torcendo os braços, para sempre encadeada ao rochedo da
noite, sombria Andrômeda branca e nua nas trevas!
Mirlababi surlababo,
Mirliton ribon ribette,
Surlababi mirlababo,
Mirliton ribon ribo.
__________________________
1 Preguiça, em latim.
2 Trata-se de O último dia de um condenado, de 1829.
3 Para esses termos, com conotação de aprendiz ou ajudante, poderíamos pensar, em
português, respectivamente, no uso de: aluno, moço de cartório, auxiliar, ajudante remendão.
4 Encontrareis naquelas fofocas um grande número de razões para que eu assuma minha
liberdade. Essa frase, aqui transcrita em português, aparece como nota explicativa na edição
original francesa.
5 Dentre esses termos, alguns figuram nos dicionários: vergoise — açúcar ordinário; claircé
— xarope de açúcar branco; brûlé — queimado.
6 Deve-se, no entanto, observar que mac, em celta, significa filho. (N. A.)
7 Trata-se de um desafeto de Voltaire.
8 Autor, entre muitos outros livros, de Paysan Perverti [Camponês Pervertido] e que tinha o
apelido de “Rousseau du ruisseau” [Rousseau do córrego].
9 Um dos três filhos de Urano (o Céu) e de Gaia (a Terra), cada um deles com cem braços e
cinquenta cabeças, comumente representados como divindades marinhas.
LIVRO VIII
OS ENCANTOS E AS DESOLAÇÕES
I. LUZ PLENA
O LEITOR decerto já compreendeu que Éponine, reconhecendo por entre
as grades a habitante da rua Plumet, onde Magnon a enviara, começara por
afastar os bandidos, e, em seguida, ali conduzira Marius; este, após vários
dias em êxtase diante da grade, arrastado por essa força que impele o ferro
para o ímã e o apaixonado para as pedras com que são feitas a casa da
amada, acabara por entrar no jardim de Cosette, como Romeu no jardim de
Julieta.
O que foi mais fácil para ele do que para Romeu; Romeu foi obrigado
a escalar um muro, enquanto Marius precisou apenas forçar uma das
barras da decrépita grade que vacilava em seu alvéolo enferrujado, como
dentes na boca de gente velha. Marius era magro e passou facilmente.
Como nunca havia ninguém na rua e, além disso, Marius só entrava no
jardim à noite, não corria o risco de ser visto.
A partir do momento abençoado e santo em que um beijo uniu essas
duas almas, Marius passou a ir até lá todas as noites. Se, naquela fase de
sua vida, Cosette tivesse caído de amores por um homem pouco
escrupuloso e libertino, estaria perdida; pois existem naturezas generosas
que se entregam, e Cosette era uma delas. Uma das magnanimidades da
mulher é ceder. O amor, elevado a uma altura em que se torna absoluto,
complica-se com não se sabe que celeste cegueira do pudor.
Mas que perigos correis, ó almas nobres! Quantas vezes nos dais o
coração, e tomamos o corpo. Vossos corações vos restam, e os olhais no
escuro a tremer.
O amor não tem meio-termo; ou perde ou salva. Todo o destino
humano está nesse dilema. Tal dilema, perda ou salvação, nenhuma outra
fatalidade o coloca mais inexoravelmente que o amor. O amor é a vida, se
não for a morte. É berço; também é túmulo. O mesmo sentimento diz sim
e não dentro do coração humano. De todas as coisas que Deus criou, o
coração humano é a que desprende mais luz, ai! E mais escuridão.
Deus quis que o amor encontrado por Cosette fosse um desses amores
que salvam.
Enquanto durou o mês de maio daquele ano de 1832, estiveram ali,
todas as noites, naquele pobre jardim selvagem, sob a folhagem cada dia
mais perfumada e espessa, dois seres compostos de toda espécie de
castidade e inocência, transbordando de todas as felicidades do céu, mais
próximos dos arcanjos que dos homens, puros, honestos, inebriados,
radiantes, resplandecendo um para o outro nas trevas. Parecia a Cosette
que Marius tinha uma coroa, e a Marius que Cosette tinha uma auréola.
Tocavam-se, olhavam-se, davam-se as mãos, estreitavam-se um contra o
outro, mas havia uma distância que eles não ultrapassavam. Não que a
respeitassem; a ignoravam. Marius sentia uma barreira, a pureza de
Cosette, e Cosette sentia um apoio, a lealdade de Marius. O primeiro beijo
também fora o último. Desde então, Marius não fora além de roçar com os
lábios a mão, o lenço ou um cacho dos cabelos de Cosette. Para ele,
Cosette era um perfume e não uma mulher. Ele a respirava. Ela nada
recusava, ele nada pedia.
Cosette estava feliz, e Marius estava satisfeito. Viviam nesse
maravilhoso estado que poderia ser chamado de deslumbramento de uma
alma por outra alma. Era esse inefável primeiro abraço de duas
virgindades no ideal. Dois cisnes encontrando-se na Jungfrau.
Naquela fase do amor, fase em que a voluptuosidade se cala
completamente sob o poder soberano do êxtase, Marius, o puro e seráfico
Marius, antes teria sido capaz de ir à casa de uma mulher da vida do que
de erguer o vestido de Cosette até a altura do tornozelo. Certa vez, ao luar,
Cosette abaixou-se para apanhar alguma coisa do chão; sua gola
entreabriu-se deixando ver o princípio de seu colo. Marius desviou os
olhos.
Que se passava entre esses dois seres? Nada. Eles se adoravam.
À noite, quando estavam ali, aquele jardim parecia um lugar vivo e
sagrado. Todas as flores se abriam em volta deles enviando-lhes seus
perfumes; e eles abriam suas almas expandindo-as nas flores. A vegetação
lasciva e vigorosa estremecia cheia de seiva e embriaguez em volta dos
dois inocentes, e eles diziam palavras de amor que faziam estremecer as
árvores.
O que eram essas palavras? Suspiros. Nada mais. Esses suspiros
bastavam para perturbar e emocionar toda aquela natureza. Mágico poder,
difícil de compreender se lêssemos em um livro essas conversas feitas
para serem levadas e dissipadas como fumaça pelo vento, através da
folhagem. Tirem dos murmúrios de dois amantes essa melodia que vem da
alma e que os acompanha como uma lira, e o que resta não é mais que uma
sombra. Então dirão: “Como! É só isso?” Ah, sim, criancices, repetições,
risos sem motivo, bobagens, futilidades, tudo o que há no mundo de mais
sublime e de mais profundo! As únicas coisas que valem a pena serem
ditas e ouvidas!
Essas futilidades, essas pobrezas, o homem que nunca as ouviu, o
homem que nunca as pronunciou, é um imbecil e um mau homem.
Cosette dizia a Marius:
— Sabe?…
(Em meio a tudo isso, nessa celeste virgindade, e sem que soubessem
dizer como, começaram a tratar-se com maior intimidade, por você.)
— Sabe? Eu me chamo Euphrasie.
— Euphrasie? Claro que não, seu nome é Cosette.
— Oh! Cosette é um nome muito feio que me deram quando eu era
pequena. Mas meu verdadeiro nome é Euphrasie. Você não gosta deste
nome, Euphrasie?
— Gosto; mas Cosette não é feio.
— Você gosta mais de Cosette que de Euphrasie?
— É… gosto.
— Então também gosto mais dele. É verdade, Cosette é bonito; me
chame de Cosette.
E o sorriso que ela acrescentava fazia desse diálogo um idílio digno de
um bosque que estivesse no céu.
Uma outra vez, olhava fixamente para ele e exclamava:
— O senhor é encantador, é bonito, é espirituoso, não é nada bobo, é
bem mais esperto do que eu, mas o desafio com estas palavras: eu o amo!
E Marius, em pleno céu, julgava ouvir uma estrofe cantada por uma
estrela.
Ou então, ela lhe dava um tapinha quando ele tossia, e lhe dizia:
— Não tussa, senhor. Não quero que tussam em minha casa sem minha
permissão. É muito feio tossir e me deixar preocupada. Quero que passe
bem, porque, antes de tudo, se você não passar bem, eu ficarei muito
infeliz. O que quer que eu faça?
E isso era simplesmente divino.
Uma vez Marius disse a Cosette:
— Imagine só, durante algum tempo, eu achei que você se chamasse
Ursule.
Isso fez com que rissem a noite inteira.
No meio de uma outra conversa, ocorreu-lhe de exclamar:
— Oh! Um dia, no Luxemburgo, tive vontade de acabar de quebrar um
inválido!
Mas logo interrompeu-se e não foi mais adiante, pois teria de falar a
Cosette sobre sua liga, coisa que lhe era impossível. Via nisso uma
aproximação desconhecida, a carne, diante da qual recuava, com uma
espécie de medo sagrado, aquele imenso amor inocente.
Marius imaginava a vida com Cosette daquele jeito, sem qualquer
outra coisa; dirigir-se todo fim de tarde à rua Plumet, deslocar a velha
barra complacente da grade do jardim, sentar lado a lado com ela naquele
banco, observar por entre as árvores o cintilar da noite começando, fazer
coabitar a dobra do joelho de suas calças com o amplo vestido de Cosette,
acariciar-lhe a unha do polegar, chamá-la de você, respirar, um após o
outro, a mesma flor, para sempre, indefinidamente. Enquanto isso, as
nuvens passavam acima de suas cabeças.
Cada vez que o vento sopra, leva consigo mais sonhos dos homens do
que nuvens do céu.
Não que esse casto e quase arisco amor fosse absolutamente sem
galanteria, não. “Fazer elogios” à mulher amada é o primeiro modo de
fazer carícias, uma meia audácia que se tenta. O elogio é algo como um
beijo dado através de um véu. Uma doce pontinha de volúpia existe aí,
embora escondida. Diante da volúpia, o coração recua, para melhor amar.
As carícias de Marius, completamente saturadas de quimera, eram, por
assim dizer, do céu. Os pássaros, quando voam bem alto, perto dos anjos,
devem ouvir palavras como essas. A elas, no entanto, se mesclava a vida, a
humanidade e tudo de positivo de que Marius era capaz. Era o que se diz
na gruta, prelúdio do que será dito na alcova; uma efusão lírica, a estrofe e
o soneto entremeados, as gentis hipérboles do arrulho, todos os
refinamentos da adoração arrumados em forma de buquê e exalando um
sutil perfume celeste, um inefável murmúrio de coração a coração.
— Oh! — murmurava Marius. — Como é bela! Não ouso olhar para
você, o que faço é contemplá-la. Você é uma graça. Não sei o que me
acontece; quando a ponta de seu pé passa pela barra de seu vestido, fico
perturbado. E depois, que brilho encantado quando seu pensamento se
entreabre! Fala com admirável razão. Por instantes me parece que você é
um sonho. Fale, eu a escuto, a admiro. Ó Cosette! Como é estranho e
encantador! Estou realmente enlouquecido. A senhorita é adorável. Estudo
seus pés ao microscópio e sua alma ao telescópio.
E Cosette respondia:
— Amo você um pouco mais depois do tempo que se passou desde esta
manhã.
Perguntas e respostas entravam como podiam nesses diálogos, sempre
chegando a um acordo sobre o amor.
Toda a pessoa de Cosette era singeleza, ingenuidade, transparência,
alvura, candura, fulgor. Era possível dizer que ela era luminosa. Causava
em quem a via uma sensação de abril e de alvorada. Havia orvalho em
seus olhos. Cosette era uma condensação de luz da aurora em forma de
mulher.
Era muito simples entender que Marius, por adorá-la, a admirasse.
Mas a verdade era que essa pequena interna, saída havia pouco do
convento, conversava com uma singular penetração, e às vezes dizia todo
tipo de palavras verdadeiras e delicadas. Sua tagarelice era, de fato, uma
conversa. Não se enganava a respeito de nada, e tinha uma visão justa. A
mulher sente e fala com o suave instinto do coração, essa infalibilidade.
Ninguém sabe, como uma mulher, dizer coisas ao mesmo tempo doces e
profundas. Doçura e profundidade, eis tudo o que é a mulher; eis tudo o
que é o céu.
Nessa felicidade plena, a cada instante, lágrimas vinham a seus olhos.
Um inseto esmagado, uma pluma caída de um ninho, um galho de árvore
quebrado causavam-lhes piedade, e seu êxtase, suavemente inundado de
melancolia, parecia não querer nada melhor do que chorar. O mais
soberano sintoma do amor é esse enternecimento, às vezes quase
insuportável.
E, a par disso — todas essas contradições formam o jogo de brilhos do
amor —, eles riam com gosto, com uma liberdade encantadora, e com
tanta familiaridade que às vezes quase pareciam dois garotos. Contudo,
mesmo sem que os corações inebriados de castidade tenham consciência, a
inesquecível natureza está sempre presente. Está presente, com seu
propósito brutal e sublime, e, seja qual for a inocência das almas, pode-se
sentir, até nas mais pudicas conversas a sós, a adorável e misteriosa
nuance que separa um casal de amantes de um par de amigos.
Eles se idolatravam.
O que é permanente e imutável subsiste. Os que se amam sorriem-se,
riem-se, fazem pequenos trejeitos com os lábios, entrelaçam os dedos das
mãos, tratam-se carinhosamente, e nada disso é obstáculo à eternidade.
Dois amantes se escondem na noite, no crepúsculo, no invisível, entre os
pássaros, as rosas; fascinam um ao outro, em meio às sombras, colocando
seus corações em seus olhos; murmuram, cochicham, e, enquanto isso,
imensas oscilações de estrelas enchem o infinito.
V. COISAS DA NOITE
Depois que os bandidos se foram, a rua Plumet readquiriu seu
tranquilo aspecto noturno.
O que acabava de se passar naquela rua não teria, de modo algum,
causado admiração a uma floresta. Os bosques, as matas, as charnecas, os
galhos rudemente entrelaçados, o mato crescido, vivem de uma maneira
sombria; o formigamento selvagem entrevê ali súbitas aparições do
invisível; o que está abaixo do homem distingue ali, através da bruma, o
que está além do homem; e as coisas que nós, os vivos, ignoramos,
confrontam-se ali no meio da noite. A natureza eriçada e feroz se assusta
com certas aproximações nas quais julga sentir o sobrenatural. As forças
da escuridão se conhecem e têm entre elas misteriosos equilíbrios. Os
dentes e as garras temem o que não se pode agarrar. A bestialidade sedenta
de sangue, os vorazes apetites esfaimados em busca de presas, os instintos
armados de garras e de mandíbulas, que têm por fonte e finalidade o
ventre, espreitam e farejam, com inquietude, o impassível delineamento
espectral vagando sob uma mortalha, envolto em seu vago manto
arrepiante, e que lhes parece viver de uma vida morta e terrível. Essas
brutalidades, que não são mais que matéria, receiam confusamente ter de
se confrontar com a imensa obscuridade condensada em um ser
desconhecido. Uma figura negra, barrando a passagem, estanca de pronto a
besta feroz. Aquilo que sai do cemitério intimida e desconcerta o que sai
do antro; o feroz tem medo do sinistro; os lobos recuam ao encontro de
uma goule.5
__________________________
1 Espécie de cabriolé inglês introduzido na França por volta de 1852; mas a palavra é aqui
usada como gíria, significando “cão”.
2 Trata-se de utilizar massa de vidraceiro apoiada à vidraça, de forma que ela retenha os
pedaços de vidro e impeça o barulho. (N. A.)
3 Em Saint-Cloud, uma rede era atravessada no Sena para reter cadáveres.
4 O primeiro verso desta cantiga de Béranger (Ma grand’mère) é: “Quanto eu lamento…”
5 Criatura monstruosa das lendas orientais — arábe e persa — que aparece nos contos de As
mil e uma noites.
LIVRO IX
PARA ONDE VÃO ELES?
I. JEAN VALJEAN
NESTE MESMO dia, por volta das quatro horas da tarde, Jean Valjean
estava sentado sozinho sobre o reverso de um dos taludes mais solitários
do Champ-de-Mars. Fosse por prudência, ou pelo desejo de se isolar, ou
simplesmente em consequência de uma dessas mudanças de hábito que
pouco a pouco se introduzem em todas as existências, ele agora saía com
Cosette muito raramente. Usava sua jaqueta de operário e uma calça de
tecido pardo, e seu boné de pala comprida escondia-lhe o rosto. Estava,
presentemente, calmo e feliz em relação a Cosette; aquilo que por algum
tempo o assustara e perturbara havia se dissipado; mas, havia uma ou duas
semanas, ansiedades de outra natureza o perturbavam. Um dia, passeando
pelo bulevar, avistara Thénardier; graças a seu disfarce, Thénardier não o
reconhecera; mas, daí em diante, Jean Valjean tornou a vê-lo várias vezes,
e agora tinha certeza de que Thénardier vagava pelos arredores. Isso foi
suficiente para fazê-lo tomar uma importante resolução. Thénardier por ali
era igual a todos os perigos reunidos. Além disso, Paris não era um lugar
tranquilo; as agitações políticas traziam um inconveniente para quem quer
que tivesse algo a esconder em sua vida: a polícia tomara-se muito
inquieta e muito desconfiada, e, procurando um homem como Pepin ou
Morey,1 podia muito bem descobrir um homem como Jean Valjean. Jean
Valjean decidira sair de Paris, e até mesmo da França, e ir para a
Inglaterra. Prevenira Cosette. Antes de oito dias gostaria de já ter partido.
Sentara-se na rampa do Champ-de-Mars deixando passar em sua mente
todo tipo de pensamentos, Thénardier, a polícia, a viagem e a dificuldade
de conseguir um passaporte.
Estava preocupado com todos esses aspectos.
Enfim, um fato inexplicável que acabava de chamar sua atenção, e com
o qual ainda estava todo impressionado, viera juntar-se a suas
preocupações. Na manhã desse mesmo dia, sendo o único na casa que já se
levantara, e passeando no jardim antes que as janelas de Cosette se
abrissem, de repente avistou esta frase no muro, provavelmente gravada
com algum prego:
Rua de la Verrerie, número 16.
Isso era bem recente, os traços eram brancos sobre a velha argamassa
escura, e um tufo de urtiga ao pé do muro estava coberto com uma poeira
de cal. Provavelmente, aquilo tinha sido escrito naquela noite. O que era?
Um endereço? Um sinal para alguém? Um aviso para ele? Em todo caso,
era evidente que o jardim fora violado, e que desconhecidos ali entravam.
Lembrou-se dos estranhos incidentes que já haviam alarmado a casa. Sua
mente trabalhava sobre aquelas palavras. Guardou-se de contar a Cosette
sobre a linha escrita sobre o muro com medo de assustá-la.
Em meio a essas preocupações, deu-se conta, por uma sombra que o
sol projetava, de que alguém acabava de parar no topo do talude
imediatamente atrás dele. Ia voltar-se quando um papel dobrado em quatro
caiu sobre seus joelhos, como se uma mão o tivesse soltado acima de sua
cabeça. Pegou o papel, desdobrou-o, e leu estas palavras escritas a lápis
em grandes letras:
MUDE-SE.
Jean Valjean ergueu-se com presteza, mas não havia mais ninguém no
talude; procurou à sua volta e avistou uma espécie de criatura, maior que
uma criança e menor do que um homem, vestida com uma blusa cinza e
uma calça de veludo cor de poeira, saltando o parapeito e escorregando no
fosso do Champ-de-Mars.
Jean Valjean, ainda mais pensativo, voltou imediatamente para casa.
II. MARIUS
Marius partira desconsolado da casa do senhor Gillenormand. Entrara
ali com uma pequena esperança; saía com um imenso desespero.
De resto, e os que têm observado as origens do coração humano
compreenderão, o lanceiro, o oficial, o palerma do primo Théodule não
deixara nenhuma sombra em seu espírito. A menor sombra. O poeta
dramático aparentemente poderia esperar algumas complicações por causa
dessa revelação feita à queima-roupa pelo avô ao neto. Mas, o que o drama
ganharia com isso, a verdade perderia. Marius achava-se na idade em que,
em se tratando do mal, em nada se acredita; só mais tarde vem a idade em
que se acredita em tudo. As suspeitas não são mais que rugas. A primeira
juventude não as tem. O que abala Otelo nem é percebido por Cândido.
Suspeitar de Cosette! Há uma infinidade de crimes que Marius teria
cometido com mais facilidade.
Pôs-se a caminhar pelas ruas, recurso dos que sofrem. Não pensou em
nada de que pudesse se recordar. Voltou para a casa de Courfeyrac às duas
horas da manhã e jogou-se vestido sobre o colchão. Era dia claro quando
adormeceu, com esse terrível sono pesado que faz as ideias irem e virem
dentro do cérebro. Quando acordou, viu, dentro do quarto, de chapéu na
cabeça, prontos para sair e muito agitados, Courfeyrac, Enjolras, Feuilly e
Combeferre.
Courfeyrac lhe disse:
— Você vai ao enterro do general Lamarque? Parecia-lhe que o amigo
falava chinês.
Ele saiu algum tempo depois dos rapazes. Colocou no bolso as pistolas
que Javert lhe confiara por ocasião da aventura de 3 de fevereiro, e que
ainda permaneciam em suas mãos. Essas pistolas ainda estavam
carregadas. Seria difícil dizer que sombrios pensamentos tinha em mente
ao levá-las consigo.
Durante o dia inteiro vagou sem saber bem por onde; por vezes chovia,
mas ele nem se dava conta; para jantar, comprou um pequeno pão de um
soldo que colocou no bolso e esqueceu. Parecia ter tomado um banho no
Sena, mas sem ter consciência disso. Há momentos em que se tem uma
verdadeira fornalha no cérebro. Marius estava em um desses momentos.
Não esperava mais nada, não temia mais nada. Dera esse passo desde a
véspera. Esperava a noite com uma impaciência febril, tinha uma única
ideia clara, ver Cosette às nove horas. Essa derradeira felicidade era agora
todo o seu futuro; depois, a escuridão. Às vezes, ao caminhar pelas ruas
mais desertas, parecia ouvir estranhos ruídos em Paris. Tirava um pouco a
cabeça de suas divagações e dizia: “Será que estão combatendo?”
Ao cair da noite, precisamente às nove horas, como prometera a
Cosette, achava-se na rua Plumet. Ao aproximar-se da grade, esqueceu-se
de tudo. Havia quarenta e oito horas não via Cosette, e agora ia vê-la,
todos os outros pensamentos dissiparam-se, e ele sentiu apenas uma
alegria extraordinária e profunda. Esses minutos, durante os quais vivem-
se séculos, sempre têm de soberano e de admirável que enquanto passam,
preenchem completamente o coração.
Marius deslocou o varão da grade e entrou no jardim. Cosette não
estava no local onde normalmente o esperava. Ele atravessou em meio às
árvores e foi até o vão próximo à escadaria. “Ela me espera ali”, pensou.
Mas Cosette não estava lá. Levantou os olhos e viu que as janelas estavam
fechadas. Deu uma volta no jardim, o jardim estava deserto. Então voltou
até a casa, e, louco de amor, ébrio, assustado, exasperado de dor e de
ansiedade, bateu nas venezianas, como o dono da casa que voltasse fora de
hora. Bateu e tornou a bater, arriscando-se a ver a janela se abrir e o rosto
sombrio do pai aparecer perguntando-lhe: “O que quer?” Mas isso não era
nada perto do que ele entrevia. Depois de bater, elevou a voz e chamou
Cosette.
— Cosette! — gritou ele. — Cosette! — repetiu imperiosamente.
Ninguém respondeu. Era o fim. Ninguém no jardim; ninguém na casa.
Marius fixou seus olhos desesperados naquela casa lúgubre, tão escura,
tão silenciosa e tão vazia quanto um túmulo. Olhou para o banco de pedra
onde passara tantas horas adoráveis perto de Cosette. Então, sentou-se nos
degraus da escadaria, o coração cheio de doçura e de resolução,
bendizendo seu amor do fundo de seu pensamento e dizendo-se que, já que
Cosette havia partido, só lhe restava morrer.
De repente, ouviu uma voz que parecia vir da rua e que gritava por
entre as árvores: — Senhor Marius! Ele se ergueu.
— O quê? — disse ele.
— Senhor Marius, é o senhor que está aí?
— Sim.
— Senhor Marius, retomou a voz, seus amigos o esperam na barricada
da rua de la Chanvrerie.
Essa voz não lhe era inteiramente desconhecida. Assemelhava-se à voz
rouca e áspera de Éponine. Marius correu até a grade, empurrou o varão
solto, passou a cabeça por ali, e viu alguém, que lhe pareceu ser um rapaz,
desaparecer correndo na escuridão.
__________________________
1 Cúmplices de Fieschi, homem que tentou assassinar o rei em julho de 1835.
2 Folhas soltas de uma obra, com as quais não se pode formar um exemplar completo, e que
servem apenas para completar exemplares defeituosos.
LIVRO X
5 DE JUNHO DE 1832
I. A SUPERFÍCIE DA QUESTÃO
DE QUE se compõe um motim? De nada e de tudo. De uma eletricidade
que lentamente se propaga, de uma chama que subitamente cintila, de uma
força que vagueia, de um sopro que passa. Esse sopro encontra cabeças
que falam, cérebros que sonham, almas que sofrem, paixões que ardem,
misérias que gritam, e leva tudo consigo.
Aonde?
Ao acaso. À revelia do Estado, à revelia das leis, à revelia do bem-
estar e da insolência dos outros.
As convicções irritadas, os entusiasmos exasperados, as indignações
emocionadas, os instintos de guerra comprimidos, as jovens coragens
exaltadas, as cegueiras generosas; a curiosidade, o gosto pelas mudanças, a
sede pelo inesperado, o sentimento que nos leva a ler com prazer o cartaz
de um novo espetáculo e a gostar de ouvir no teatro o apito do
contrarregra; os ódios vagos, os rancores, os desapontamentos, todas as
vaidades que acreditam ser vítimas de uma bancarrota do destino; a falta
de meios, os sonhos vazios, as ambições rodeadas de dificuldades, os que
esperam de um desabamento uma saída; finalmente, no nível mais baixo, a
turba, essa lama que se incendeia, tais são os elementos do motim.
O que há de maior e o que há de mais ínfimo; seres que vagam
excluídos de tudo, à espera de uma oportunidade, boêmios, gente sem
ocupação, vagabundos das ruas, os que à noite dormem em um deserto de
casas sem outro teto que as frias nuvens do céu, os que, a cada dia, pedem
seu pão ao acaso e não ao trabalho, os desconhecidos da miséria e do nada,
os braços nus, os pés descalços, esses pertencem à revolta.
Quem quer que abrigue na alma uma revolta secreta contra um fato
qualquer do Estado, da vida ou da sorte, se encerra na revolta e, assim que
ela aparece, começa a agitar-se e a sentir-se impelido pelo turbilhão.
O motim é uma espécie de tufão da atmosfera social que se forma
repentinamente sob certas condições de temperatura e que, em seu
rodopio, sobe, corre, estoura, arranca, arrasa, esmaga, derruba, puxa as
raízes, arrastando consigo as grandes naturezas bem como as mesquinhas,
o homem forte e o espírito fraco, o tronco de árvore e o fragmento de
palha.
Infelizes tanto dos que arrebata quanto dos que atropela! Um é jogado
contra o outro.
Comunica aos que a ele aderem não se sabe que poder extraordinário.
Preenche os desavisados com a força dos acontecimentos; transforma tudo
em projéteis. De um seixo faz uma bala, de um carregador faz um general.
Se dermos crédito a certos oráculos da política hipócrita, do ponto de
vista do poder, um pouco de revolta é desejável. Esquema: a revolta
reforça os governos que não derruba; põe à prova o exército; concentra a
burguesia; distende os músculos da polícia; constata a força da ossatura
social. É uma ginástica; é quase uma higiene. O poder se sente melhor
depois de um motim, como o homem depois de uma massagem.
Há trinta anos, as revoltas eram consideradas sob outros pontos de
vista.
Para todas as coisas, há uma teoria que proclama a si mesma de “bom
senso”; Filinto contra Alceste; mediação oferecida entre o verdadeiro e o
falso; explicação, advertência, atenuação um tanto altiva que, por ser uma
mescla de censura e desculpa, se julga sabedoria, quando, muitas vezes,
não passa de pedantismo. Toda uma escola política, chamada com justiça
de centro, saiu daí. Entre a água fria e a água quente, é o partido água-
morna. Essa escola, com sua falsa profundidade, toda superficial, que
disseca os efeitos sem remontar às causas, censura, do alto de uma meia-
ciência, as agitações da praça pública.
Se dermos ouvidos a essa escola: “Os motins que complicaram o feito
de 1830 tiraram desse grande acontecimento parte de sua pureza. A
Revolução de Julho tinha sido um belo vendaval popular, rapidamente
seguido por um céu azul. Mas eles fizeram o céu nebuloso reaparecer.
Fizeram degenerar em querela essa revolução, em princípio tão notável
por sua unanimidade. Na Revolução de Julho, como em todo progresso que
vem aos safanões, houve fraturas secretas; mas os motins as tomaram
sensíveis. Podia-se dizer: ‘Ah! Isto está quebrado’. Após a Revolução de
Julho, sentia-se apenas a redenção; após as revoltas, sentia-se a catástrofe.
Qualquer motim fecha lojas, rebaixa o valor dos fundos, consterna a
bolsa, suspende o comércio, entrava os negócios, precipita as falências; o
dinheiro acaba, as fortunas privadas se inquietam, o crédito público vacila,
a indústria se desconcerta, os capitais recuam. o trabalho é mal pago, há
medo por toda parte; há contragolpes em todas as cidades. Daí surgem os
abismos. Calcula-se que o primeiro dia de uma revolta custa à França
vinte milhões, o segundo quarenta, o terceiro sessenta. Uma revolta de três
dias custa cento e vinte milhões, quer dizer, vendo-se apenas o resultado
financeiro, equivale a um desastre, naufrágio ou batalha perdida, que
aniquilasse uma armada de sessenta naus de linha.
Sem dúvida, historicamente, as revoltas tiveram sua beleza; a guerra
das ruas não é menos grandiosa, nem menos patética, que a guerra dos
bosques; uma encerra a alma das florestas, a outra, o coração das cidades;
uma tem Jean Chouan, a outra, tem Jeanne. As revoltas tingiram de
vermelho, mas de forma esplêndida, todas as mais originais saliências do
caráter parisiense, a generosidade, a dedicação, a alegria tumultuosa, os
estudantes provando que a bravura faz parte da inteligência, a Guarda
Nacional inabalável, as trincheiras de comerciantes, as fortalezas de
garotos, o desprezo pela morte dos que estão na rua. Escolas e legiões se
chocavam. No final das contas, entre os combatentes havia apenas uma
diferença de idade; todos da mesma raça; todos os mesmos homens
estoicos que morrem aos vinte anos por suas ideias, e aos quarenta por
suas famílias. O exército, sempre triste nas guerras civis, opunha a
prudência à audácia. Os motins, ao mesmo tempo que manifestaram a
intrepidez popular, forjaram a educação da coragem burguesa.
Muito bem. Mas tudo isso vale o sangue derramado? E, ao sangue
derramado, acrescentem o futuro nebuloso, o progresso comprometido, a
inquietude entre os melhores, o desespero dos liberais honestos, o
absolutismo estrangeiro feliz com esses ferimentos feitos à revolução por
ela mesma, os vencidos de 1830 triunfando e dizendo: ‘Bem que nós
dissemos!’ Acrescentem uma Paris talvez engrandecida, mas uma França
seguramente diminuída. Acrescentem, pois é necessário dizer tudo, os
massacres que, com muita frequência, desonravam a vitória da ordem, que
se tornava feroz, sobre a liberdade, que se tornava insensata. Feitas as
contas, os motins foram funestos”.
Assim fala esse arremedo de sabedoria com que a burguesia, esse
arremedo do povo, tão facilmente se contenta.
Quanto a nós, rejeitamos esta palavra, ampla em demasia e, por
consequência, cômoda em demasia: motins. Fazemos distinção entre
movimento popular e outro movimento popular. Não nos perguntamos se
um motim custa tanto quanto uma batalha. E, em primeiro lugar, por que
uma batalha? Nesse ponto, surge a questão da guerra. Seria a guerra menos
flagelo do que são os motins calamidade? E quando o 14 de julho custaria
cento e vinte milhões? O estabelecimento de Filipe V na Espanha custou à
França dois bilhões. Mesmo que fosse a igual preço, preferiríamos o 14 de
julho. Aliás repelimos essas cifras, que parecem argumentos mas não
passam de palavras. Dada uma revolta, devemos examiná-la em si mesma.
Em tudo o que diz a objeção doutrinária acima exposta, a questão é de
efeito, nós procuramos a causa.
Seremos mais precisos.
V. ORIGINALIDADE DE PARIS
Em dois anos, como já dissemos, Paris tinha visto mais de uma
insurreição. Fora dos locais insurgentes, em geral nada é mais
estranhamente calmo que a fisionomia de Paris durante uma revolta. Paris
se acostuma muito rapidamente a tudo — afinal, não passava de uma
revolta — e Paris vive tão ocupada que não se incomoda por tão pouco.
Essas cidades colossais, somente elas podem oferecer tais espetáculos.
Somente esses imensos espaços podem conter, ao mesmo tempo, a guerra
civil e não se sabe que estranha tranquilidade. Habitualmente, quando a
insurreição começa, quando ouvem-se os tambores, o toque de chamada, o
toque de reunir, o comerciante limita-se a dizer:
— Parece que há desordem na rua Saint-Martin. Ou:
— É no bairro Saint-Antoine.
Com frequência acrescenta com indiferença: — Em algum lugar por
aí.
Mais tarde, quando se ouve distintamente o barulho rascante e lúgubre
da fuzilaria e do entusiasmo dos pelotões, o comerciante diz: — Então está
esquentando? Ora, está esquentando!
Um instante depois, se a revolta se aproxima e se espalha, ele fecha
precipitadamente seu comércio e se alista, quer dizer, coloca suas
mercadorias em segurança e arrisca a própria pessoa.
Fuzila-se nas esquinas, nas passagens, nos becos; tomam-se, perdem-
se e retomam-se as barricadas; o sangue escorre, o tiroteio criva as
fachadas das casas, as balas matam as pessoas em seus quartos, os
cadáveres atravancam as calçadas. A alguns quarteirões dali, ouve-se o
choque das bolas de bilhar dentro dos cafés.
Os teatros abrem suas portas e levam seus vaudevilles; os curiosos
conversam e riem a dois passos daquelas ruas plenas de guerra. As
carruagens circulam, as pessoas vão jantar na cidade, por vezes nos
próprios locais onde se trava combate. Em 1831, um tiroteio foi
interrompido para deixar passar um cortejo nupcial.
Por ocasião da insurreição de 12 de maio de 1839, na rua Saint–Martin,
um velho homem enfermo, puxando um carrinho de mão enfeitado com
um trapo tricolor, contendo garrafas cheias de um líquido qualquer, ia e
voltava da barricada à tropa e da tropa à barricada, oferecendo sua bebida,
imparcialmente, ora ao governo, ora à anarquia.
Nada é mais estranho; e é essa característica das revoltas de Paris que
não se encontra em nenhuma outra capital. Para tanto, seriam necessárias
duas coisas, a grandeza de Paris e sua alegria. Seriam necessárias a cidade
de Voltaire e a de Napoleão.
Desta feita, porém, quando as armas foram tomadas em 5 de junho de
1832, a grande cidade sentiu algo que talvez fosse mais forte do que ela.
Teve medo. Viam-se, por toda parte, mesmo nos bairros mais distantes e
mais “desinteressados”, portas, janelas e venezianas fechadas em pleno
dia. Os corajosos se armaram, os medrosos se esconderam. O passante
despreocupado ou atarefado desapareceu. Muitas ruas estavam tão vazias
quanto às quatro horas da manhã. Detalhes alarmantes eram espalhados,
notícias fatais eram divulgadas. Que eles tomaram conta do Banco; que, só
no Claustro de Saint-Merry, eram seiscentos, entrincheirados na igreja;
que a tropa de linha não estava segura; que Armand Carrel tinha ido falar
com o marechal Clausel e que o marechal dissera:
Arranjem primeiro um regimento; que Lafayette estava doente, mas
que assim mesmo lhes dissera: Estou às suas ordens. Vou segui-los por
toda parte onde houver lugar para uma cadeira; que era preciso ficar
atento, porque à noite haveria gente pilhando casas isoladas nos cantos
desertos de Paris (nisso reconhecia-se a imaginação da polícia, essa Anne
Radcliffe envolvida com o governo); que uma bateria se estabelecera na
rua Aubry-le-Boucher; que Lobeau e Bugeaud entravam em acordo e que,
à meia-noite, ou, mais tardar, ao amanhecer, quatro colunas marchariam
ao mesmo tempo sobre o centro da revolta, a primeira vindo da Bastilha, a
segunda da porta Saint-Martin, a terceira da Grève, a quarta dos mercados;
que, talvez, as tropas evacuassem Paris e se retirassem para o Champ-de-
Mars; que não se sabia o que estava para acontecer, mas que, certamente,
desta vez o negócio era sério. E havia preocupação quanto às hesitações do
marechal Soult. Por que razão ele não atacava imediatamente?
O certo é que ele estava profundamente preocupado. O velho leão
parecia farejar um monstro desconhecido naquela situação sombria.
Chegada a noite, os teatros não abriram; as patrulhas circularam com
aspecto irritado; revistavam os passantes; prendiam os suspeitos. Às nove
horas, havia mais de oitocentas pessoas presas; a delegacia de polícia
estava lotada, a Conciergerie10 lotada, a Force lotada. Na Conciergerie,
em particular, o longo subterrâneo denominado rua de Paris estava forrado
de fardos de palha sobre os quais amontoavam os prisioneiros, a quem
Lagrange, o homem de Lyon, arengava com valentia. Toda aquela palha,
revolvida por todos aqueles homens, fazia o barulho de uma tromba
d’água. Em outros lugares, os presos deitavam ao relento, uns por cima
dos outros, nos pátio, das cadeias. Havia ansiedade por toda parte, e um
certo temor, pouco habitual em Paris.
Nas casas, todos tratavam de se entrincheirar; as mulheres e as mães se
preocupavam; só se ouvia dizer: Oh! Meu Deus, ele ainda não voltou!
Raras vezes ouviam-se, ao longe, carruagens se deslocando; e, por trás
das portas, rumores, gritos, tumultos, ruídos surdos e indistintos dos quais
se dizia: É a cavalaria, ou: São as caixas de munição a galope; clarins,
tambores, tiroteios e, sobretudo, o lamentoso toque de chamada de Saint-
Merry. Esperava-se o primeiro tiro de canhão. Homens surgiam nas
esquinas e desapareciam gritando: “Voltem para suas casas!” E todos
corriam para trancar as portas. Todos se perguntavam: “Como isso vai
acabar?” A cada instante, à medida que a noite caía, Paris parecia colorir-
se cada vez mais lugubremente com o terrível reluzir da revolta.
__________________________
1 14 vindimiário (4 de outubro de 1795): fracasso, sob a artilharia de Bonaparte, de um golpe
de estado realista em Paris.
2 Abade Terray, ministro das Finanças, foi substituído por Turgot, célebre economista. Ramus,
humanista protestante, foi morto na Saint-Barthélemy (Noite de São Bartolomeu).
3 Miquelets — milícia espanhola; verdets — realistas responsáveis pelo Terror Branco;
cadenettes — integrantes da reação ao Termidor, entre os quais os compagnons de Jehu, que
militavam na região de Avignon; cavaleiros du brassard [braçadeira] — os mais exaltados
camaradas do duque de Angouleme.
4 “A indignação faz (o verso)”: extraído de um verso em que Juvenal (Sátiras) diz que a
indignação pode substituir o talento.
5 São João, exilado em Patmos, ali compôs o Apocalipse, profecia do Julgamento Final.
6 “Com o braço encolhido”; tem o sentido de bater forte — encolhe-se o braço para melhor
golpear. O pensamento de Tácito seria, então, de grande contundência.
7 Cidade situada na região central da França, onde ocorreu uma das últimas revoltas agrícolas
do país (Janeiro de 1847).
8 Do peito, do coração.
9 Em 1830, a flor-de-lis foi substituída pelo galo, o novo emblema nacional.
10 Prisão anexa ao Palácio de Justiça, em Paris.
LIVRO XI
O ÁTOMO FRATERNIZA COM A
TEMPESTADE
V. O VELHO
Contemos o que havia ocorrido.
Enjolras e seus amigos estavam no bulevar Bourdon, perto dos
celeiros, quando os dragões atacaram. Enjolras, Courfeyrac e Combeferre
eram dos que pegaram a rua Bassompierre, gritando: “Às barricadas!” Na
rua Lesdiguières, encontraram um velho caminhando.
O que lhes atraiu a atenção foi ver que o pobre homem andava em
ziguezague, como se estivesse embriagado. Além disso, trazia o chapéu na
mão, apesar de ter chovido a manhã inteira e de ainda chover forte naquele
momento. Courfeyrac reconheceu Pai Mabeuf. Ele o conhecia por ter
tantas vezes acompanhado Marius até sua porta. Sabendo dos hábitos
pacíficos e mais do que tímidos do velho tesoureiro, e espantado de vê-lo
em meio àquele tumulto, a dois passos das cargas da cavalaria, quase no
meio de um tiroteio, sem chapéu, na chuva, passeando entre as balas,
abordou-o; o revoltoso de vinte e cinco anos e o octogenário travaram o
seguinte diálogo:
— Senhor Mabeuf, volte para casa.
— Por quê?
— Porque vai haver barulho.
— Isso é bom.
— Golpes de sabre, tiros, senhor Mabeuf.
— Isso é bom.
— Tiros de canhão.
— Isso é bom. Aonde vocês vão?
— Vamos colocar o governo abaixo.
— Isso é bom.
E pusera-se a segui-los. Desde aquele momento, não dissera uma só
palavra. Seu andar tomara-se subitamente firme; alguns operários
ofereceram-lhe o braço, mas ele recusou com um aceno de cabeça.
Caminhava quase na primeira fileira da coluna, e tinha, ao mesmo tempo,
os movimentos de um homem que anda e o semblante de um homem que
dorme.
— Que velho danado! — murmuravam os estudantes. Corria no grupo
o boato de que era um antigo convencional, um velho regicida.
O numeroso grupo tomara a rua de la Verrerie. O pequeno Gavroche ia
na frente cantando a todo pulmão, o que fazia dele uma espécie de clarim.
Cantava assim:
Zi zi zi
Pour Passy.
Je n’ai qu’un Dieu, qu’un roi, qu’un liard et qu’une botte.
Zi zi zi
Para Passy.
Só tenho um Deus, um rei, um tostão e uma bota.
VI. RECRUTAS
O grupo engrossava a cada instante. Próximo à rua des Billettes, um
homem alto, grisalho, cujo aspecto rude e audacioso fora notado por
Courfeyrac, Enjolras e Combeferre, mas que nenhum deles conhecia,
juntou-se a eles. Gavroche, ocupado em cantar, assobiar, cantarolar, andar
na frente, batendo nas portas dos estabelecimento, com a coronha da sua
pistola sem cão, não prestou atenção ao tal homem.
Ocorreu que, na rua de la Verrerie, passaram em frente à casa de
Courfeyrac.
— Isso é bom — disse Courfeyrac —, já que esqueci minha bolsa e
perdi meu chapéu.
Deixou o grupo e subiu correndo para seu quarto. Pegou um chapéu
velho e sua bolsa. Pegou também uma espécie de cofre quadrado, bastante
grande, do tamanho de uma boa mala, que estava escondido no meio da
roupa suja. Quando descia correndo, a porteira o chamou.
— Senhor de Courfeyrac!
— Dona porteira, como a senhora se chama? — retrucou Courfeyrac.
A porteira ficou abismada.
— Mas o senhor sabe muito bem, sou a zeladora, me chamo dona
Veuvain.
— Muito bem, se a senhora continuar me chamando de senhor de
Courfeyrac, vou chamá-la de dona de Veuvain. Agora diga, o que há? O
que acontece?
— Tem alguém que quer lhe falar.
— Quem é?
— Não sei.
— Onde?
— No meu quarto.
— Aos diabos! — exclamou Courfeyrac.
— Mas faz mais de uma hora que sua espera sua volta! — replicou a
porteira.
Ao mesmo tempo, uma espécie de jovem operário, magro, pálido,
baixo, cheio de sardas, usando uma blusa toda furada e uma calça de
veludo cheia de remendos, e que tinha mais a aparência de uma garota
vestida de rapaz que de um homem, saiu do quarto e perguntou a
Coufeyrac, com uma voz que, de forma alguma, era uma voz de mulher:
— O senhor Marius, por favor?
— Não está.
— Ele voltará esta noite?
— Não faço ideia — respondeu Coufeyrac, e acrescentou: — Quanto a
mim, não voltarei.
— O jovem encarou-o fixamente e perguntou-lhe:
— Por que não?
— Porque não.
— Para onde vai?
— Que importância tem isso para você?
— Quer que eu vá com o senhor?
— Se você quiser! — respondeu Coufeyrac. — A rua é livre, os
caminhos são de todo o mundo.
E saiu correndo para juntar-se novamente aos companheiros. Assim
que os encontrou, deu o cofre para que um deles carregasse. Só após um
quarto de hora reparou que o jovem, de fato, os acompanhava.
Um ajuntamento desses não vai precisamente para onde quer. Já
explicamos que um pé de vento pode carregá-lo. Eles passaram por Saint-
Merry e, sem saber muito bem como, foram parar na rua Saint-Denis.
__________________________
1 Adaptação de Gavroche de um verso da Marselhesa.
2 Parte de carne ruim ou pedaços de ossos que eram inclusos no pedido do freguês.
3 Do latim: “prepare para a guerra”.
LIVRO XII
CORINTHE
CARPES HO GRAS
CARPE HO RAS4
V. OS PREPARATIVOS
Os jornais da época enganaram-se no que se refere a essa parte da
nossa história, quando disseram que a barricada da rua de la Chanvrerie,
“essa construção quase inexpugnável”, como a denominam, se elevava à
altura de um primeiro andar. A verdade é que a citada barricada não
ultrapassava a altura média de um metro e oitenta ou dois. Era construída
de tal forma que os combatentes podiam, à vontade, ou desaparecer por
trás dela, ou dominar a barreira e até subir ao topo por meio de alguns
degraus, formados na parte interna por quatro fileiras de pedras
sobrepostas colocadas no interior. A frente externa da barricada, formada
por pilhas de pedras e de barris, segura com vigas e tábuas metidas por
entre as rodas da charrete Anceau e do ônibus virado, apresentava o
aspecto de um obstáculo emaranhado e inextricável. Uma brecha,
suficiente para dar passagem a um homem, havia sido deixada entre a
parede das casas e a extremidade da barricada mais afastada da taverna,
permitindo uma saída. A flecha do ônibus era mantida bem reta por meio
de cordas, e, amarrada a ela, flutuava uma bandeira vermelha que
tremulava sobre a barricada.
A pequena barricada da rua Mondétour, escondida atrás da taverna, não
aparecia. As duas barricadas reunidas formavam um verdadeiro reduto.
Enjolras e Courfeyrac não haviam julgado necessário montar barricadas na
outra parte da rua Mondétour, que abre para a rua des Prêcheurs uma saída
sobre os depósitos, provavelmente desejando manter uma possível
comunicação com o exterior, e não receando serem atacados pela perigosa
e difícil rua des Prêcheurs.
Desse modo, com exceção da saída livre da segunda parte da rua
Mondétour, que Folard, em seu estilo estratégico, denominaria um
desfiladeiro, e da estreita abertura praticada no entrincheiramento da rua
de la Chanvrerie, o interior da barricada, com o ângulo saliente formado
pela taverna, apresentava a figura de um quadrilátero irregular fechado por
todos os lados. Havia um intervalo de vinte passos entre a barricada
grande e os elevados edifícios que formavam o fundo da rua, de modo que
se podia dizer que a barricada ficava encostada a essas casas, todas
habitadas, porém fechadas de alto a baixo.
Todo esse trabalho foi feito sem obstáculos em menos de uma hora, e
sem que aquele punhado de homens audaciosos vissem surgir um gorro de
pelos ou uma baioneta. Os raros burgueses que ainda se aventuravam a
passar pela rua Saint-Denis olhavam para a rua de la Chanvrerie e, ao
avistarem a barricada, apressavam o passo.
Terminadas as duas barricadas e hasteada a bandeira, foi trazida, de
dentro da taverna, uma mesa em cima da qual subiu Courfeyrac. Enjolras
trouxe o baú quadrado e Courfeyrac o abriu. O baú estava cheio de
cartuchos. Quando viram os cartuchos, houve um estremecimento e um
momento de silêncio.
Courfeyrac os distribuiu sorrindo.
Cada um recebeu trinta cartuchos. Muitos tinham pólvora e puseram-
se a fazer outros com as balas que eram fundidas. Quanto ao barril de
pólvora, tinha sido colocado, como reserva, sobre uma mesa separada e
perto da porta.
O toque de chamada que percorria toda Paris não cessava, porém
tornara-se apenas um sussurro monótono ao qual não prestavam mais
atenção. Esse barulho ora se afastava, ora se aproximava, com lúgubres
ondulações.
Os fuzis e as carabinas foram carregados ao mesmo tempo, sem
precipitação e com solene gravidade. Enjolras foi postar três sentinelas
fora das barricadas, uma na rua de la Chanvrerie, a segunda na rua des
Prêcheurs e a terceira na esquina da Petite-Truanderie.
Depois, construídas as barricadas, distribuídos os postos, carregadas as
armas, colocadas as sentinelas, sós no meio daquelas temíveis ruas por
onde ninguém passava, rodeados daquelas casas mudas e como que
mortas, em que não palpitava nenhum movimento humano, envolvidos
pelas sombras crescentes do crepúsculo que começava, no meio daquela
escuridão e daquele silêncio em que se sentia avançar algo de trágico e
aterrador, isolados, armados, resolutos, serenos, eles esperaram.
VI. ESPERANDO
Nessas horas de espera, o que fizeram?
É preciso dizê-lo, pois isso é história.
Enquanto os homens faziam cartuchos e as mulheres ataduras,
enquanto uma grande panela cheia de estanho e de chumbo fundido,
destinados ao molde de balas, fumegava em cima do fogo, enquanto as
sentinelas vigiavam de arma em punho sobre a barricada, enquanto
Enjolras, a quem nada conseguia distrair, vigiava as sentinelas,
Combeferre, Courfeyrac, Jean Prouvaire, Feuilly, Bossuet, Joly, Bahorel, e
outros ainda, se encontraram e se reuniram, como nos mais tranquilos dias
de sua vida de estudante, e a um canto da taverna, transformada em
casamata, a dois passos do reduto que haviam levantado, com as armas
carregadas e preparadas, apoiadas no encosto das cadeiras, aqueles belos
rapazes, tão próximos da hora suprema, puseram-se a recitar versos de
amor.
Quais versos? Ei-los:
__________________________
1 Théophile de Viau, poeta francês da corte real (1590 –1626).
2 Representação de frases por meio de figuras.
3 Charles-Joseph Natoire, pintor francês (1700 –1777).
4 Jogo de palavras proferido por Horácio, “Carpe diem”. “Carpe horas” dado como
conselho aos insurgentes: que aproveitem as horas que ainda lhes restam.
5 Marie-Antoine Carême, autor de livros culinários.
6 Esses nomes significam, respectivamente, “caldeirada” e “guisado.”
7 Paródia ao verso de Corneille: “Devine si tu peux et choisis si tu l’oses” [Adivinha se
puderes e escolhe se ousares].
8 Frade chapeau: religioso não ordenado que usava um chapéu, e não um capucho, ligado ao
serviço de um padre dessa ordem (capuchinhos), formando um bini [binômio].
9 Na frase original usa-se a palavra “ami”. No caso, “abi” foi empregado para mostrar que o
personagem era fanho.
10 “Desgraça aos vencidos” — de Tito Lívio, em História Romana.
11 Referência à cidade de Tímbrea, onde havia um templo de Apolo.
12 “Não é a todos que se permite ir a Corinto”.
13 Antigo magistrado municipal.
14 Expressão proverbial advinda da farsa Gibou et Madame Pochet, cujo enredo girava em
torno de um chá.
LIVRO XIII
MARIUS ENTRA NA SOMBRA
Apertaram-se as mãos.
— É Gavroche — disse Enjolras.
— Vem nos informar — disse Combeferre.
O som de uma corrida perturbou a rua deserta, viram um ser mais ágil
que um malabarista pular o ônibus, e Gavroche saltou para dentro da
barricada esbaforido, dizendo:
— Minha espingarda! Aí vêm eles!
Um arrepio percorreu toda a barricada, e ouviu-se o movimento das
mãos à procura das espingardas.
— Quer a minha carabina? — disse Enjolras ao moleque.
— Quero a espingarda grande — respondeu Gavroche.
E pegou a espingarda de Javert.
Quase ao mesmo tempo que Gavroche, duas sentinelas entraram na
barricada, encolhidas. Eram a sentinela do final da rua e o vigia da Petite-
Truanderie. A sentinela da rua des Prêcheurs tinha permanecido em seu
posto, o que indicava que nada vinha do lado das pontes e dos depósitos.
A rua de la Chanvrerie, na qual apenas alguns paralelepípedos eram
um pouco visíveis ao reflexo da luz que se projetava sobre a bandeira,
oferecia aos revoltosos o aspecto de um grande pórtico negro, ligeiramente
aberto em meio à fumaça.
Cada qual havia ocupado seu posto de combate.
Quarenta e três revoltosos, entre os quais Enjolras, Combeferre,
Courfeyrac, Bossuet, Joly, Bahorel e Gavroche estavam de joelhos na
grande barricada, atentos, silenciosos, prontos a abrir fogo, com as cabeças
no nível do topo da barreira e os canos dos fuzis e das carabinas apontados
para o solo, como que em uma seteira. Seis comandados de Feuilly tinham
se instalado no peitoril das janelas dos dois andares da Corinthe, os fuzis
em posição.
Decorreram-se ainda alguns instantes, em seguida um ruído de passos,
comedidos, pesados, numerosos, fez-se ouvir distintamente pelos lados de
Saint-Leu. Esse ruído, em princípio fraco, depois preciso, depois pesado e
sonoro, aproximava-se lentamente, sem parar, sem interrupção, com uma
continuidade tranquila e terrível. Não se ouvia nada além disso. Era, ao
mesmo tempo, o silêncio e o ruído da estátua do comendador; mas esse
passo de pedra possuía um não sei que de enorme e de múltiplo que
despertava a ideia de uma multidão e também a de um espectro. Tinha-se a
impressão de ouvir andar a assustadora estátua Légion.1 Esse passo
aproximou-se; aproximou-se mais e parou. Parecia ouvir-se o som da
respiração de muitos homens na extremidade da rua. Entretanto, nada se
via, apenas distinguia-se bem ao fundo, naquela espessa obscuridade, uma
profusão de fios metálicos, finos como agulhas e quase imperceptíveis,
que se agitavam, semelhantes a essas indescritíveis redes fosforescentes
que no momento de adormecer são vistas sob as pálpebras cerradas, nas
primeiras neblinas do sono. Eram as baionetas e os canos dos fuzis
confusamente iluminados pelo reflexo longínquo da tocha.
Houve mais uma pausa, como se, dos dois lados, aguardassem. De
repente, do fundo dessa sombra, uma voz, ainda mais sinistra pois não se
via ninguém, e porque dava a impressão de que era a própria escuridão
quem falava, disse:
— Quem está aí?
E ouviu-se, ao mesmo tempo, o tinido dos fuzis apontando.
Enjolras respondeu em tom vibrante e altivo:
— A Revolução Francesa!
— Fogo! — disse a voz.
Um clarão avermelhou todas as fachadas da rua como se a porta de
uma fornalha se abrisse e se fechasse bruscamente.
Uma assustadora detonação estourou sobre a barricada. A bandeira
vermelha caiu. A descarga fora tão violenta e tão densa que cortara a
haste, isto é, a própria ponta do timão do ônibus. Algumas balas, que
haviam ricocheteado nas cornijas das casas, penetraram na barricada
ferindo vários homens.
A impressão dessa primeira descarga foi enregelante. O ataque era
rude e de natureza a fazer meditar os mais ousados. Era evidente que
estavam lidando com um batalhão inteiro.
— Camaradas! — gritou Courfeyrac. — Não desperdicemos pólvora.
Esperemos que eles entrem na rua para revidar.
— E, antes de tudo — continuou Enjolras —, que seja hasteada
novamente a bandeira!
E, ao dizer isso, levantou a bandeira que caíra a seus pés.
Fora, ouvia-se apenas o tinido que os soldados faziam com as varetas,
carregando de novo as armas.
Enjolras continuou:
— Quem aqui tem coragem? Quem é que vai repor a bandeira no alto
da barricada?
Ninguém respondeu. Subir à barricada naquele momento em que ela,
sem dúvida, estava novamente sob a mira de tantas armas, era
simplesmente a morte. O mais corajoso hesita em condenar-se. O próprio
Enjolras estremeceu.
— Ninguém se apresenta?
En voyant Lafayette,
Le gendarme répète:
Sauvons-nous! sauvons-nous! sauvons-nous!
Vendo Lafayette,
O guarda repete:
Fujamos! Fujamos! Fujamos!
“Meu bem amado, infelizmente meu pai quer que partamos já. Esta noite estaremos na
rua de l’Homme-Armé, número 7. Dentro de oito dias estaremos em Londres. Cosette. 4 de
junho”.
Esses amores eram a tal ponto inocentes que Marius nem sequer
conhecia a letra de Cosette.
O que havia ocorrido pode ser dito em poucas palavras. Éponine fizera
tudo. Após a noite de 3 de junho, ela tivera dois pensamentos, frustrar os
planos de seu pai e dos bandidos em relação à casa da rua Plumet, e
separar Marius de Cosette. Ela trocara suas roupas com o primeiro jovem
brincalhão que achara divertido vestir-se de mulher, enquanto Éponine se
disfarçava de homem. Fora ela quem, no Champs–de-Mars, dera a Jean
Valjean aquele expressivo aviso Mude-se. De fato, Jean Valjean entrara em
casa e dissera a Cosette: Partimos esta noite e vamos para a rua de
l’Homme-Armé com Toussaint. Semana que vem estaremos em Londres.
Cosette, aterrada por esse golpe inesperado, escrevera às pressas duas
linhas a Marius. Mas como fazer para colocá-las no correio? Ela não saía
sozinha e Toussaint, surpresa com essa incumbência, certamente mostraria
a carta ao senhor Fauchelevent. Nessa ansiedade, Cosette avistara através
da grade Éponine em trajes de homem, zanzando sem parar em volta do
jardim. Cosette chamara “o jovem operário”, entregara-lhe cinco francos e
a carta, dizendo: “Leve esta carta imediatamente ao seu destino”. Éponine
colocou a carta no bolso. No dia seguinte, 5 de junho, foi à casa de
Courfeyrac perguntar por Marius, não para entregar-lhe a carta, mas, coisa
que todas as almas ciumentas e apaixonadas compreenderão, “para ver”.
Ali ela esperara por Marius, ou pelo menos por Courfeyrac, sempre para
ver. Quando Courfeyrac lhe disse: “Vamos para as barricadas”, uma ideia
passou por seu espírito. Atirar-se nessa morte como teria se atirado em
qualquer outra, e induzir Marius a isso. Seguira Courfeyrac, certificando-
se do local em que estavam construindo a barricada; e estando bem segura,
uma vez que Marius não recebera nenhum aviso e que ela interceptara a
carta, de que ele estaria ao anoitecer no encontro de todas as noites, foi à
rua Plumet, ali esperou por Marius e enviou-lhe, em nome de seus amigos,
esse chamado que deveria, pensava ela, levá-lo à barricada. Ela contava
com o desespero de Marius quando não encontrasse Cosette; e não se
enganava. Voltou à rua de la Chanvrerie. Acabamos de ver o que havia
feito. Ela morreu com essa alegria trágica dos corações enciumados que
arrastam o ser amado para a morte e que dizem: “ninguém o terá!” Marius
beijou repetidas vezes a carta de Cosette. Então ela o amava! Por um
momento, pensou que já não deveria morrer. Depois, disse consigo: “Ela
parte. Seu pai a leva para a Inglaterra e meu avô é contra o casamento.
Nada mudou na fatalidade!” Os sonhadores como Marius estão sujeitos a
esses desânimos supremos que acabam em resoluções desesperadas. O
cansaço da vida é insuportável; a morte é muito mais simples.
Então, lembrou-se que tinha ainda dois deveres a cumprir: informar
Cosette de sua morte e enviar-lhe um adeus supremo, e salvar, da
catástrofe iminente que se preparava, aquela pobre criança, irmão de
Éponine e filho de Thénardier.
Marius trazia consigo uma carteira, a mesma que continha o caderno
onde escrevera tantos pensamentos de amor por Cosette. Arrancou-lhe
uma folha e escreveu a lápis estas poucas linhas:
“O nosso casamento era impossível. Pedi o consentimento de meu avô, ele o recusou;
não possuo fortuna, você também não. Corri à sua casa, não a encontrei mais; sabe que lhe
dei minha palavra, eu a mantenho. Vou morrer. Eu a amo! Quando estiver lendo isto, minha
alma estará a seu lado, sorrindo-lhe”.
“Meu nome é Marius Pontmercy. Levem meu cadáver à casa de meu avô, senhor
Gillenormand, rua Filles-du-Calvaire, número 6, Marais”.
Colocou novamente a carteira no bolso de seu casaco e depois chamou
Gavroche. O menino, ao som da voz de Marius, atendeu rapidamente com
expressão feliz e devotada.
— Quer fazer algo por mim?
— Tudo — disse Gavroche. — Deus, meu bom Deus! Se não fosse o
senhor, verdade, eu estaria frito.
— Está vendo esta carta?
— Sim.
— Pegue-a. Saia da barricada agora (Gavroche, preocupado, começou
a coçar a orelha) e amanhã de manhã leve-a, neste endereço, à senhorita
Cosette, casa do senhor Fauchelevent, rua de l’Homme-Armé, número 7.
A heroica criança respondeu:
— Ah! Está bem, mas nesse meio tempo a barricada será tomada e eu
não estarei aqui.
— A barricada não será atacada antes do amanhecer, aparentemente, e
não será tomada antes do meio-dia de amanhã.
A nova pausa que os assaltantes davam à barricada de fato se
prolongava. Era uma dessas intermitências, frequentes nos combates
noturnos, que sempre são seguidas de um redobrado encarniçamento.
— Bem — disse Gavroche —, e se eu fosse entregar a carta amanhã de
manhã?
— Seria tarde demais. Provavelmente a barricada será bloqueada,
todas as ruas serão vigiadas, e você não poderá sair. Vá agora.
Gavroche não encontrou nada para replicar, permanecia ali, indeciso e
coçando a orelha tristemente. De repente, com um desses movimentos de
pássaro que eram de seu feitio, pegou a carta.
— Está bem — disse ele.
E saiu correndo pela ruazinha Mondétour.
Gavroche tinha tido uma ideia que o fizera se decidir, mas que não
havia contado com medo de que Marius fizesse alguma objeção.
A ideia era esta:
— Ainda é meia-noite, a rua de l’Homme-Armé não é longe, vou levar
a carta agora e estarei de volta a tempo.
__________________________
1 Referente ao Comendador da Legião de Honra, o grau mais alto da cavalaria.
LIVRO XV
A RUA DE L’HOMME-ARMÉ
I. BUVARD, BAVARD1
QUE SÃO AS convulsões de uma cidade ao lado das revoltas da alma? O
homem é um abismo ainda maior que o povo. Jean Valjean, naquele
mesmo instante, era presa de medonha agitação. Todos os abismos
tornavam a abrir-se em seu íntimo. Ele também estremecia, como Paris,
no limiar de uma formidável e obscura revolução. Algumas horas haviam
bastado. Seu destino e sua consciência foram repentinamente cobertos de
sombras. Dele, como de Paris, era possível dizer: os dois princípios estão
na presença um do outro. O anjo branco e o anjo negro lutarão corpo a
corpo sobre a ponte do abismo. Qual dos dois precipitará o outro? Quem
vencerá?
Na véspera daquele mesmo dia, 5 de junho, Jean Valjean,
acompanhado de Cosette e de Toussaint, instalara-se na rua de l’Homme-
Armé. Uma peripécia o aguardava.
Cosette não deixara a rua Plumet sem tentar resistir. Pela primeira vez,
desde que ambos viviam lado a lado, a vontade de Cosette e a vontade de
Jean Valjean tinham sido diferentes, e, se não se confrontaram, pelo menos
se opuseram. Houvera objeção de um lado e inflexibilidade de outro. O
brusco conselho: Mude-se, dado por um desconhecido a Jean Valjean, o
alarmara a ponto de torná-lo despótico. Julgava-se descoberto e
perseguido. Cosette tivera de ceder.
Ambos haviam chegado à rua de l’Homme-Armé sem descerrar os
dentes e sem trocar uma palavra, cada um absorto em suas preocupações
pessoais; Jean Valjean tão preocupado que não percebia a tristeza de
Cosette; Cosette tão triste que não percebia a preocupação de Jean Valjean.
Jean Valjean levara Toussaint consigo, coisa que nunca fizera em suas
ausências anteriores.
Ele pressentia que talvez não mais retornasse à rua Plumet, e não podia
nem deixá-la para trás, nem contar-lhe seu segredo. Além disso, achava-a
devotada e de confiança. Do criado em relação ao patrão, a traição começa
pela curiosidade. Mas Toussaint, como se tivesse sido predestinada a ser a
criada de Jean Valjean, não era curiosa. Costumava dizer, gaguejando, em
seu linguajar de camponesa de Barneville: “Je suis de même de même; je
chose mon fait; le demeurant n’est pas mon travail” (Je suis ainsi; je fais
ma besogne; le reste n’est pas mon affaire).2
Na partida da rua Plumet, que fora quase uma fuga, Jean Valjean não
levara nada além da pequena valise perfumada, batizada por Cosette de a
inseparável. Malas cheias exigiriam carregadores, e carregadores são
testemunhas. Mandaram vir uma carruagem à porta da rua de Babylone e
partiram.
A muito custo, Toussaint obtivera permissão para empacotar algumas
roupas de cama, vestimentas e alguns objetos de toucador. Já Cosette só
levara seus papéis e seu mata-borrão.
Para tornar ainda maior a solidão e a sombra desse desaparecimento,
Jean Valjean arranjara as coisas de modo a não sair da rua Plumet senão ao
escurecer, o que deu a Cosette tempo para escrever seu bilhete a Marius.
Haviam chegado à rua de l’Homme-Armé noite fechada. Deitaram-se
silenciosamente.
A casa da rua de l’Homme-Armé ficava situada em um pátio traseiro,
no segundo andar, e era composta de dois quartos, de uma sala de jantar e
de uma cozinha contígua à sala de jantar, com uma espécie de sótão onde
havia uma cama de vento que coube a Toussaint. A sala de jantar servia, ao
mesmo tempo, de antecâmara e de separação entre os dois quartos de
dormir. O apartamento era provido de todos os utensílios necessários.
Com a mesma facilidade com que nos inquietamos, nos
tranquilizamos; assim é a natureza humana. Assim que Jean Valjean
chegou à rua de l’Homme-Armé, sua ansiedade clareou e gradualmente
dissipou-se. Há lugares tranquilizadores que operam, de certo modo,
mecanicamente sobre o espírito. Rua escura, moradores pacatos. Jean
Valjean sentiu uma espécie de contágio de tranquilidade naquela ruazinha
da antiga Paris, tão estreita que estava barrada aos veículos por uma
prancha transversal apoiada sobre dois postes, muda e surda no meio da
cidade barulhenta, crepuscular em pleno dia, e, por assim dizer, incapaz de
emoções entre aquelas duas fileiras de altas casas centenárias que se
calavam como anciãs que são. Há nessa rua um esquecimento estagnado.
Jean Valjean respirou. De que modo poderiam encontrá-lo ali?
Seu primeiro cuidado foi colocar a inseparável a seu lado.
Dormiu bem. A noite é conselheira, e podemos acrescentar: a noite
tranquiliza. Na manhã seguinte, Jean Valjean acordou quase alegre. Achou
encantadora a sala de jantar, que era horrível, mobiliada com uma velha
mesa redonda, um pequeno aparador sobre o qual se via um espelho
inclinado, uma poltrona carcomida e algumas cadeiras sobre as quais
estavam empilhados os pacotes de Toussaint. Em um desses pacotes,
entrevia-se, por uma abertura, o uniforme de guarda nacional de Jean
Valjean.
Quanto a Cosette, pediu a Toussaint que lhe levasse um caldo no
quarto, e não apareceu senão à noite.
Por volta das cinco horas, Toussaint, indo e vindo muito atarefada com
essa pequena mudança, pusera na mesa da sala de jantar uma galinha fria
para a qual Cosette, em deferência a seu pai, consentira em olhar.
Isso feito, Cosette, pretextando uma dor de cabeça persistente, dissera
boa-noite a Jean Valjean e trancara-se no quarto. Jean Valjean comera uma
asa de galinha com apetite e, debruçado sobre a mesa, tranquilizando-se
pouco a pouco, retomava posse de sua segurança.
Enquanto fazia essa sóbria refeição, tinha percebido confusamente, por
duas ou três vezes, o balbuciar de Toussaint, que lhe dizia: “Senhor, há
uma revolta, estão lutando em Paris”.
Mas, absorto em uma infinidade de combinações interiores, não havia
prestado a menor atenção. Para dizer a verdade, não havia escutado.
Levantou-se e começou a andar da janela à porta e da porta à janela,
cada vez mais tranquilo. Com essa calmaria, Cosette, sua única
preocupação, voltou a seu pensamento. Não porque estivesse preocupado
com essa dor de cabeça, pequena crise de nervos, cara feia de moça,
nuvem momentânea, que desapareceria em um dia ou dois; mas pensava
no futuro e, como de costume, pensava com doçura. Além do mais, não via
nenhum obstáculo para que a vida feliz não retomasse seu curso. Em
certas horas, tudo parece impossível, em outras, tudo parece fácil; Jean
Valjean achava-se em uma dessas horas boas. Elas chegam, normalmente,
após as más, como o dia após a noite, por meio dessa lei de sucessão e de
contraste que é o próprio fundo da natureza e que os espíritos superficiais
chamam de antítese. Na pacífica rua em que se havia refugiado, Jean
Valjean desembaraçava-se de tudo o que, havia algum tempo, o
perturbava. Por ter visto muitas trevas, começava a entrever um fragmento
de céu azul. Sair da rua Plumet, sem complicações nem incidentes, já era
um bom passo dado. Talvez fosse interessante mudar de país, mesmo que
só por alguns meses, e ir para Londres. Pois bem, iriam. Estar na França,
estar na Inglaterra, o que isso mudava, desde que tivesse Cosette a seu
lado? Cosette era a sua pátria. Cosette bastava-lhe para ser feliz; a ideia de
que ele talvez não bastasse à felicidade de Cosette, essa ideia que fora
outrora sua febre e sua insônia, não se apresentava a seu espírito. Estava
em colapso de todas as suas dores passadas, e em pleno otimismo. Cosette,
estando perto dele, parecia lhe pertencer; efeito ótico que todo o mundo já
sentiu. Interiormente planejava, com todas as facilidades, a partida com
Cosette para a Inglaterra, e via sua felicidade reconstituir-se em qualquer
lugar nas perspectivas de seu devaneio.
Enquanto caminhava de um lado para o outro, a passos lentos, seu
olhar encontrou de repente algo estranho.
Viu diante dele, no espelho inclinado que estava acima do aparador, e
leu distintamente estas quatro linhas:
“Meu amado, infelizmente meu pai quer que partamos já. Esta noite estaremos na rua de
l’Homme-Armé, número 7. Dentro de oito dias estaremos em Londres. Cosette. 4 de junho”.
“República Francesa.
Recebi sua charrete.”
E assinou: “Gavroche”.
Feito isso, meteu o papel no bolso do colete de veludo do camponês,
que continuava a roncar, pegou nos braços da charrete e partiu em direção
aos depósitos, empurrando-a diante dele a galope, com glorioso e triunfal
ruído.
Isso era perigoso. Havia um posto de guarda na Gráfica Real. Gavroche
não se lembrou. Esse posto era ocupado por guardas nacionais do bairro.
Um certo despertar começava a agitar a tropa, e as cabeças se erguiam
sobre as camas de campanha. Dois lampiões quebrados, um após o outro, a
canção, cantada com toda a força, tudo isso era demais para ruas tão
medrosas que, ao pôr do sol, já querem dormir e apagam as velas muito
cedo. Havia uma hora que o moleque fazia o barulho de um mosquito
dentro de uma garrafa naquela região tranquila. O sargento do bairro
escutava. E esperava. Era um homem prudente.
O rodar aloucado da charrete ultrapassou a medida da espera possível e
fez com que o sargento tentasse um reconhecimento.
— É todo um bando que está aí! — disse ele. — Vamos devagar.
Era evidente que a hidra da anarquia havia saído de sua caixa e se
agitava pelo bairro.
E o sargento aventurou-se fora do posto da guarda com passadas
silenciosas.
De repente, Gavroche, empurrando sua charrete, no instante em que ia
desembocar na rua des Vieilles-Haudriettes, achou-se frente a frente com
uma farda, um capacete, um penacho e uma espingarda.
Pela segunda vez, parou imediatamente.
— Ora, é ele — disse Gavroche. — Bom dia, ordem pública.
Os espantos de Gavroche eram curtos e findavam depressa.
— Aonde você vai, vadio? — gritou o sargento.
— Cidadão — disse Gavroche —, eu ainda não o chamei de burguês.
Por que me insulta?
— Para onde você vai, estranho?
— Senhor — continuou Gavroche —, ontem talvez fosse um homem
de espírito, mas hoje cedo o senhor foi destituído.
— Estou perguntando para onde você vai, malandro?
Gavroche respondeu:
— O senhor fala gentilmente. Verdade, ninguém daria a idade que tem.
Deveria vender todos os seus cabelos por cem francos a peça. Isso lhe
renderia quinhentos francos.
— Aonde você vai? Aonde você vai? Aonde você vai, bandido?
Gavroche replicou:
— Que palavras feias. A primeira vez que lhe derem de mamar, devem
limpar melhor sua boca.
O sargento cruzou a baioneta.
— Vai me dizer aonde vai, finalmente, miserável?
— Meu general — disse Gavroche —, vou chamar o médico para
minha mulher, que está dando à luz!
— Às armas! — gritou o sargento.
Salvar-se por meio daquilo que os perdeu, é essa a obra-prima dos
homens fortes; Gavroche, com um olhar, mediu a situação. Fora a charrete
que o comprometera, cabia à charrete protegê-lo.
No instante em que o sargento se arremetia contra Gavroche, a
charrete, transformada em projétil e lançada com toda a força, rolava
sobre ele furiosamente, e o sargento, atingido em cheio na barriga, caía de
costas no riacho, enquanto sua arma ia para os ares.
Ao grito do sargento, os homens do posto haviam saído confusamente;
o tiro do fuzil determinou uma descarga geral ao acaso, após a qual
recarregaram as armas e recomeçaram.
Esse tiroteio ao acaso durou um bom quarto de hora, e quebrou
algumas vidraças.
Enquanto isso, Gavroche, que havia dado meia-volta, parava a cinco ou
seis quadras dali e sentava-se arquejante no marco que forma a esquina de
Enfants-Rouges.
Apurava os ouvidos.
Depois de recuperar o fôlego por alguns instantes, voltou-se para o
lado onde continuava o furioso tiroteio, elevou sua mão esquerda à altura
do nariz, e lançou-a três vezes para a frente enquanto batia atrás da cabeça
com a direita; gesto soberano com o qual os moleques parisienses
condensaram a ironia francesa, e que evidentemente é eficaz, já que vem
durando meio século.
Essa alegria foi perturbada por uma reflexão amarga.
— Sim — disse ele —, arrebento de tanto rir, me torço, me encho de
alegria, mas perco meu caminho, vou ter que fazer um desvio. Tomara que
eu consiga chegar a tempo na barricada!
Dito isso, recomeçou sua corrida.
E enquanto corria:
— Oh, é mesmo, em que ponto eu estava? — disse ele.
E recomeçou a cantar sua canção, embrenhando-se rapidamente nas
ruas, e ela foi diminuindo nas trevas:
Mais il reste encore des bastilles,
Et je vais me metre le holá
Dans l’ordre public que voilá.
__________________________
1 “Mata-borrão falador,” em francês, Buvard, bavard formam um interessante jogo de
palavras impossível de manter na tradução.
2 “Eu sou assim; cumpro minha obrigação; o resto não é de minha conta.”
3 Nome de um pássaro, literalmente, “abana a cauda”.
QUINTA PARTE
Jean Valjean
LIVRO I
A GUERRA ENTRE QUATRO PAREDES
X. AURORA
Nesse momento, Cosette acordava.
Seu quarto era estreito, limpo, discreto, com uma grande janela que se
abria para o quintal da casa.
Cosette nada sabia do que ocorria em Paris. Ela não estava ali na
véspera e já havia entrado em seu quarto quando Toussaint dissera:
“Parece que há uma revolta”.
Cosette dormira poucas horas, mas bem. Tivera doces sonhos, talvez
porque sua pequena cama fosse muito branca. Alguém que era Marius
apareceu-lhe como que envolto em luz. Acordou com sol nos olhos, o que,
em princípio, causou-lhe a impressão de continuar sonhando.
Seu primeiro pensamento após sair desse sonho foi risonho. Cosette
sentiu-se completamente segura. Ela atravessava, como Jean Valjean
algumas horas antes, essa reação da alma que absolutamente não deseja a
desgraça. Pôs-se a esperar com todas as suas forças sem saber por quê.
Depois sentiu um aperto no coração. Havia três dias que não via Marius.
Mas disse a si mesma que ele já deveria ter recebido sua carta, que ele
sabia onde ela estava e que ele possuía tanta imaginação que encontraria
uma maneira de chegar até ela. E isso com certeza seria hoje, e talvez
nessa manhã mesmo. O dia já estava bem adiantado, mas como os raios de
luz estavam muito na horizontal ela pensou que fosse bem cedo; mas tinha
de levantar, para receber Marius.
Ela sentia que não poderia viver sem Marius, e que por consequência
aquilo era suficiente, e que Marius viria. Nenhuma objeção era cabível.
Tudo isso era certo. Já era bastante monstruoso haver sofrido três dias.
Marius ausente três dias, era horrível para o bom Deus. Agora, essa cruel
brincadeira lá de cima era uma prova superada, Marius chegaria e traria
uma boa notícia. Assim é feita a juventude; enxuga rapidamente os olhos;
acha a dor inútil e não a aceita. A juventude é o sorriso do futuro diante do
desconhecido que é ele mesmo. Parece-lhe natural ser feliz. Parece que sua
respiração é feita de esperança.
De resto, Cosette não conseguia lembrar-se do que Marius lhe dissera a
respeito dessa ausência que devia durar somente um dia, nem de que
explicação lhe dera. Todos repararam com que eficiência uma moeda que
deixamos cair no chão corre e se esconde, e que dom possui para tornar-se
invisível. Existem pensamentos que agem do mesmo modo; escondem-se
em um canto do cérebro e fim; estão perdidos; impossível fazer com que a
memória os encontre. Cosette sentia-se um tanto desgostosa com o
pequeno esforço inútil que fazia sua memória. Dizia a si mesma que
somente ela era culpada por haver esquecido as palavras ditas por Marius.
Desceu da cama e efetuou as duas limpezas da alma e do corpo, sua
oração e sua toalete.
A rigor, podemos introduzir o leitor em um quarto nupcial, mas não
em um quarto virginal. O verso apenas o ousaria, a prosa não deve fazê-lo.
É o interior de uma flor ainda em botão, é uma brancura na sombra, é a
célula íntima de um lírio fechado que não deve ser visto pelo homem
enquanto não foi visto pelo sol. A mulher em botão é sagrada. Essa cama
inocente que se descobre, essa adorável seminudez que tem medo de si
mesma, esse pé branco que se refugia em um chinelo, esse colo que se
cobre diante de um espelho como se esse espelho fosse um olho, essa
camisola que se apressa em subir e esconder o ombro para um móvel que
estala ou para um carro que passa, esses cordões atados, esses colchetes
fechados, esses cadarços puxados, esses estremecimentos, esses arrepios
de frio e de pudor, esse susto delicioso de todos os movimentos, essa
inquietação quase alada, ali onde nada deve ser temido, as fases sucessivas
do vestir, tão charmosas quanto as nuvens da aurora, não fica bem contar
tudo isso e já é muito indicá-lo.
O olhar do homem deve ser ainda mais religioso diante do despertar de
uma moça que diante do despontar de uma estrela. A possibilidade de
alcançá-la deve converter-se em respeito. A penugem do pêssego, a cinza
da ameixa, o cristal que irradia da neve, a asa da borboleta salpicada de
plumas são coisas grosseiras em comparação com essa castidade que
sequer sabe que é casta. A moça é somente um vislumbre de sonho e ainda
não é uma estátua. Sua alcova fica oculta na parte escura do ideal. O toque
indiscreto do olhar brutaliza essa vaga penumbra. Aqui, contemplar é
profanar.
Portanto, nada mostraremos desse suave tumulto do despertar de
Cosette.
Um conto oriental diz que a rosa foi feita branca por Deus, mas,
quando Adão olhou para ela no instante em que se abria, envergonhou-se e
ficou rosa. Somos daqueles que se sentem interditados diante das moças e
das flores, achando-as vulneráveis.
Cosette vestiu-se rapidamente, penteou-se, arrumou o cabelo, coisa
muito simples naquele tempo em que as mulheres não encorpavam os
cachos e suas faixas com almofadinhas e rolos, nem usavam rolinhos nos
cabelos. Depois, abriu a janela e percorreu com o olhar tudo a sua volta,
esperando descobrir um pouco da rua, um ângulo da casa, um canto de
calçada onde pudesse espreitar Marius. Mas não se via nada do exterior. A
parte de trás do quintal estava rodeada por muros bem altos que deixavam
à vista somente alguns jardins. Cosette achou esses jardins horríveis; pela
primeira vez na sua vida ela achou feias as flores. O menor pedaço de
riacho da encruzilhada seria melhor para ela. Ela resolveu olhar o céu,
como se pensasse que Marius pudesse vir também dali.
Subitamente, debulhou-se em lágrimas. Não por mobilidade de alma,
mas pelas esperanças entrecortadas de desânimo; era esse seu estado. Ela
sentiu confusamente algo de horrível. Com efeito, as coisas passam pelo
ar. Ela pensou que não tinha certeza de nada, que se perder de vista é o
mesmo que se perder; e a ideia de que Marius pudesse retornar-lhe do céu
não mais lhe pareceu charmosa, mas lúgubre.
Depois, assim são essas nuvens, voltou-lhe a calma, e a esperança, e
uma espécie de sorriso inconsciente, mas confiante em Deus.
Todos na casa ainda dormiam. Reinava um silêncio provinciano.
Nenhuma veneziana estava aberta. A guarita do zelador estava fechada.
Toussaint ainda não se levantara e Cosette naturalmente pensou que seu
pai dormia. Era preciso que tivesse sofrido muito, e que sofresse ainda
mais, pois ela pensava que seu pai tinha sido mau; mas ela contava com
Marius. O eclipse de uma tal luz decididamente era impossível. Havia
momentos em que ela escutava, a certa distância, como que abalos surdos,
e dizia: “É estranho que abram e fechem os portões tão cedo”.
Eram os tiros de canhão desfechados contra a barricada.
Havia ali, alguns metros abaixo da janela de Cosette, na antiga e
enegrecida cornija do muro, um ninho de andorinhas; as bordas do ninho
formavam uma saliência para fora da cornija de modo que, de cima, o
interior daquele pequeno paraíso podia ser visto. A mãe lá estava, abrindo
suas asas como um leque sobre a ninhada; o pai voava em volta; ia, depois
vinha, trazendo em seu bico comida e beijos. O dia nascente dourava essa
cena feliz, a grande lei Multiplicai ali estava sorridente e augusta, e esse
doce mistério se expandia na glória da manhã. Cosette, os cabelos ao sol, a
alma nas quimeras, iluminada pelo amor interiormente, e exteriormente
pela aurora, inclinou-se como que maquinalmente e, quase sem ousar
confessar a si mesma que ao mesmo tempo pensava em Marius, pôs-se a
olhar esses pássaros, essa família, esse macho e essa fêmea, essa mãe e
seus pequenos, com a profunda perturbação que um ninho inspira em uma
virgem.
Depois pegou seu cesto, recolocou, sem perder um só, os cartuchos que
haviam caído, e avançando em direção aos tiros foi esvaziar outro bolso. A
quarta bala ainda não o acertou. Gavroche cantou:
Caí no chão,
A culpa é de Voltaire,
O nariz na valeta,
A culpa é de…
XXI. OS HERÓIS
De repente, o tambor anunciou o ataque.
O ataque foi um furacão. Na véspera, na escuridão, silenciosamente,
puderam chegar perto da barricada como uma cobra. Presentemente, em
pleno dia, no meio daquela rua deserta, a surpresa era decididamente
impossível, aliás, a violência tirara a máscara, o canhão começara a rugir,
o exército arremeteu-se sobre a barricada. A fúria agora era a habilidade.
Uma possante coluna de infantaria de linha, cortada a intervalos regulares
por guardas nacionais e por guardas municipais a pé, e apoiados por
massas compactas, que eram ouvidas sem serem vistas, desembocou na
rua correndo, tambores rufando, clarim tocando, baionetas cruzadas,
bombeiros à frente, e, imperturbável sob os projéteis, ela caiu direto sobre
a barricada com o peso de um aríete de bronze de encontro a uma muralha.
A muralha resistiu.
Os insurgentes abriram fogo impetuosamente. A barricada, agora
escalada, tinha uma juba de clarões. O ataque foi tão enlouquecido que em
um momento ela estava inundada de assaltantes; mas ela sacudiu os
soldados, como o leão sacode os cães, e apenas cobriu-se de sitiadores
como a falésia se cobre de espuma, para reaparecer, um instante depois,
escarpada, negra e formidável.
A coluna, obrigada a recuar, permaneceu amontoada na rua, a
descoberto, mas terrível, e respondeu ao reduto com uma assustadora
metralha. Quem quer que já tenha visto fogos de artifício se lembra do
feixe formado por um entrecruzamento de raios que chamamos buquê.
Imaginemos esse buquê, não na vertical, mas na horizontal, carregando
uma bala, um chumbo grosso ou uma bala de canhão na ponta de cada um
de seus jatos de fogo, e debulhando a morte nos seus cachos de trovão. Por
baixo estava a barricada.
De ambas as partes, igual resolução. A bravura ali estava, quase
bárbara, misturada a uma certa ferocidade heroica que começava pelo
sacrifício de si mesmo. Era a época em que um guarda nacional combatia
como um zouave.19 A tropa queria pôr um fim àquilo; a insurreição queria
lutar. A aceitação da agonia em plena juventude e em plena saúde faz da
intrepidez um frenesi. Cada um naquela batalha mostrava a grandiosidade
da hora suprema. A rua ficou cheia de cadáveres.
Em uma das extremidades da barricada achava-se Enjolras, na outra
Marius. Enjolras, que tinha em mente toda a barricada, poupava-se e
abrigava-se; três soldados caíram um após o outro, diante da sua seteira,
sem nem mesmo percebê-lo; Marius combatia a descoberto.
Transformara-se em ponto de mira. Mais da metade de seu corpo aparecia
no topo da barricada. Não há pródigo mais violento do que o avarento que
toma o freio nos dentes; não há homem mais assustador na ação que um
sonhador. Marius estava formidável e pensativo. Estava na luta como em
um sonho. Parecia um fantasma dando tiros de fuzil.
Esgotavam-se os cartuchos dos sitiados mas não os seus sarcasmos.
Naquele turbilhão sepulcral em que se achavam, eles riam.
Courfeyrac estava com a cabeça descoberta.
— O que você fez do chapéu? — perguntou-lhe Bossuet.
Courfeyrac respondeu:
— Tiraram-no de minha cabeça a tiros de canhão.
Ou então diziam coisas cheias de altivez.
— Compreendam — gritava amargamente Feuilly — esses homens (e
citava os nomes, nomes conhecidos, até mesmo célebres, alguns do antigo
exército) que haviam prometido juntar-se a nós e juraram que nos
ajudariam empenhando a honra, e que são nossos generais e que nos
abandonam.
E Combeferre limitava-se a responder com um grave sorriso:
— Existem pessoas que observam as leis da honra como observam as
estrelas, de muito longe.
O interior da barricada achava-se tão coberto de cartuchos rasgados
que parecia ter nevado.
Os assaltantes tinham o número; os insurgentes tinham a posição.
Estavam no alto de uma muralha e fulminavam à queima-roupa os
soldados que tropeçavam nos mortos e feridos, e os presos nas escarpas.
Essa barricada, construída como fora e admiravelmente apoiada pelo lado
de dentro, era realmente uma dessas posições em que um punhado de
homens pode manter uma legião em xeque-mate. Contudo, sempre
reforçada e aumentando sob a chuva de balas, a coluna de ataque
aproximava-se inexoravelmente, e agora, pouco a pouco, passo a passo,
mas com convicção, o exército apertava a barricada, como o parafuso
aperta a prensa.
As assaltos sucediam-se. O horror era cada vez maior.
Irrompeu então, sobre aquele amontoado de pedras da rua de la
Chanvrerie, uma luta digna de uma muralha de Troia. Aqueles homens
pálidos, esfarrapados, exaustos, que não comiam havia vinte e quatro
horas, que não haviam dormido, com apenas alguns tiros para dar, que
tateavam seus bolsos vazios sem cartuchos, quase todos feridos, a cabeça
ou o braço envoltos em trapos enegrecidos e enferrujados, tendo em suas
roupas buracos por onde o sangue escorria, armados apenas com fuzis de
má qualidade e velhos sabres lascados, transformaram-se em Titãs. A
barricada por dez vezes foi abordada, assaltada, escalada e jamais tomada.
Para se ter uma ideia dessa luta, seria necessário imaginar o fogo
ateado a um conjunto de coragens terríveis, e que se visualizasse esse
incêndio. Não era um combate, era o interior de uma fornalha; as bocas
respiravam chama; os rostos tornavam-se extraordinários. A forma
humana parecia impossível, os combatentes flamejavam, e era formidável
ver o vaivém daqueles homens naquela fumaça vermelha, aquelas
salamandras do combate. Renunciamos à descrição das cenas sucessivas e
simultâneas dessa grandiosa matança. Só a epopeia tem o direito de
preencher doze mil versos com uma batalha.
Parecia o inferno do bramanismo, o mais terrível dos dezessete
abismos, que o Veda chama de Floresta das Espadas.
Lutavam corpo a corpo, pé com pé, com tiros de pistola, golpes de
sabre, socos, de longe, de perto, de cima, de baixo, de todos os lados, dos
tetos da casa, das janelas da taverna, dos respiradouros dos porões onde
alguns haviam se abrigado. Era um contra sessenta. A fachada da Corinthe,
meio destruída, estava horrível. A janela, tatuada pelos tiros, havia perdido
seus vidros e caixilhos e nada mais era do que um buraco informe,
tumultuadamente tapada com pedras. Bossuet foi morto; Feuilly foi
morto; Courfeyrac foi morto; Joly foi morto; Combeferre, atravessado por
três golpes de baioneta no peito, no instante em que erguia um soldado
ferido, só teve tempo de olhar para o céu, e expirou.
Marius, sempre combatendo, estava tão crivado de feridas,
principalmente na cabeça, que seu rosto se escondia sob o sangue e parecia
ter a face coberta por um lenço vermelho.
Somente Enjolras não fora atingido. Quando não tinha mais armas,
estendia a mão para a direita ou para a esquerda e um insurgente lhe metia
na mão uma arma qualquer. Só lhe restava o toco de quatro espadas; uma a
mais que Francisco I em Marignan.
Homero diz: “Diomedes degola Axiles, filho de Teutranis, que
habitava a feliz Arisba; Euríalo, filho de Macisteia, extermina Dresos, e
Oféltios, Esepo, e esse Pédasus, que a náiade Abarbareia concebeu do
irrepreensível Bucolião; Ulisses derruba Pidites de Percosa; Antíloquo,
Ablero; Polípetes, Astíalo; Polídamas, Oto de Cilene; e Teucro, Arétaon.
Megântios morre sob os golpes de lança de Eurípiles. Agamenon, rei dos
heróis, derruba Élatos, nascido na cidade escarpada banhada pelo sonoro
rio Satnois”.20 Nos nossos antigos poemas de gesta, Esplandiã ataca com
uma machadinha de fogo o marquês gigante Swantibore, que se defende
apedrejando o cavaleiro com as torres que arranca do solo. Nossos antigos
afrescos murais nos mostram os dois duques, de Bretagne e de Bourbon,
armados, com armaduras e timbres de guerra, a cavalo, abordando-se,
bastão de armas em punho, máscaras de ferro, botas de ferro, luvas de
ferro, um com a carapuça de arminho, o outro vestido de azul; Bretagne
com seu leão entre os dois chifres de sua coroa, Bourbon com uma
monstruosa flor-de-lis na viseira do capacete. Mas, para parecer soberbo,
não é preciso carregar, como Yvon, o morrião ducal, nem empunhar, como
Esplandiã, uma chama viva, ou como Filetes, pai de Polidamas, ter trazido
de Éfiro uma boa armadura, presente do rei dos homens, Eufetes; basta dar
a vida por uma convicção ou lealdade. Esse pequeno soldado ingênuo,
ontem camponês da Beauce ou de Limousin, que anda, sabre-baioneta de
lado, ao redor das babás no Luxemburgo, esse jovem estudante pálido,
debruçado sobre uma peça de anatomia ou sobre um livro, loiro
adolescente que faz sua barba com tesoura, peguem os dois, insuflem-lhes
um sopro de dever, coloquem-nos um de frente para o outro na esquina
Boucherat ou no beco Planche-Mibray, e que um combata por sua
bandeira, e o outro combata por seu ideal, e que ambos imaginem que
combatem pela pátria; a luta será colossal; e a sombra que projetarão
nesse grande campo épico onde se debate a humanidade, esse pioupiou e
esse carabin21 lutando, será igual à sombra projetada por Megarion, rei da
Lícia cheia de tigres, abraçando corpo a corpo o imenso Ajax, igual aos
deuses.
XXIV. PRISIONEIRO
Marius era, realmente, prisioneiro. Prisioneiro de Jean Valjean. A mão
que o agarrara por trás, no momento em que ia cair, e cujo contato havia
sentido ao desmaiar, era a de Jean Valjean.
Jean Valjean não tomara parte no combate a não ser para expor-se.
Sem ele, nessa fase suprema da agonia, ninguém teria pensado nos feridos.
Graças a ele, sempre presente na carnificina como uma providência, os
que caíam eram erguidos, transportados para a sala da taverna e tratados.
Nos intervalos, ele consertava a barricada. Mas nada que pudesse
assemelhar-se a um golpe, a um ataque ou mesmo a uma defesa pessoal
saiu de suas mãos. Calava-se e socorria. No mais, sofrera só alguns
arranhões. As balas não o quiseram. Se o suicídio fazia parte dos sonhos
que tivera ao vir àquele sepulcro, fora mal-sucedido. Mas nós duvidamos
que ele tivesse pensado em suicídio, ato não religioso.
Jean Valjean, nesse espesso nevoeiro de combate, não parecia ver
Marius; o fato é que ele não o perdia de vista. Quando um tiro derrubou
Marius, Jean Valjean saltou com uma agilidade de tigre, caiu sobre ele
como se fosse uma presa e o levou.
O turbilhão do ataque era naquele momento tão violentamente
concentrado sobre Enjolras e sobre a porta da taverna que ninguém viu
Jean Valjean, carregando Marius desmaiado, atravessar o pátio da
barricada e desaparecer por trás do ângulo da casa da Corinthe.
Como se lembram, esse ângulo fazia uma espécie de cabo na rua;
abrigava das balas e da metralha, assim como dos olhares, alguns metros
quadrados de terreno. Assim, algumas vezes, há em um incêndio um
quarto que não se queima, e nos mares mais furiosos, por trás de um
promontório ou no fundo sem saída de escolhos, há sempre um canto
tranquilo. Foi nessa espécie de dobra do trapézio interior da barricada que
Éponine agonizara.
Ali Jean Valjean parou, colocou Marius no chão, encostou-se à parede
e olhou em volta.
A situação era apavorante.
Naquele momento, durante dois ou três minutos talvez, aquele pedaço
de parede era um abrigo, mas como sair daquele massacre? Jean Valjean
recordava a angústia em que se encontrara, oito anos antes, na rua
Polonceau e o modo pelo qual conseguira escapar; fora difícil então, mas
hoje era impossível. Tinha diante de si essa implacável e surda casa de
seis andares que parecia habitada somente pelo homem morto debruçado à
sua janela; à sua direita, tinha a barricada pouco elevada que fechava a
Petite-Truanderie; saltar esse obstáculo parecia fácil, mas acima da crista
da barreira avistava-se uma fileira de baionetas. Era a tropa de linha,
postada além dessa barricada, em observação. Era evidente que transpor a
barricada era expor-se a um fogo de pelotão, e que qualquer cabeça que se
arriscasse a ultrapassar o alto da muralha de paralelepípedos serviria de
alvo a sessenta tiros de espingarda. À esquerda ficava o campo de
combate. A morte estava atrás do ângulo da parede.
Que fazer?
Somente um pássaro conseguiria sair dali.
E era preciso decidir-se imediatamente, encontrar um expediente,
tomar uma resolução. Combatiam a alguns passos dele; felizmente, todos
se concentravam em um único ponto, a porta da taverna; porém, se um
soldado, um só, se lembrasse de dar a volta à casa ou atacá-la pelos lados,
tudo estaria perdido.
Jean Valjean olhou para a casa à sua frente, olhou para a barricada ao
seu lado, depois olhou para o chão com a violência do supremo desespero,
desorientado e como se quisesse cavar um buraco com os olhos.
De tanto olhar, um não sei que, vagamente perceptível em tal agonia,
desenhou-se e tomou forma a seus pés, como se, com o olhar, tivesse o
poder de fazer aparecer o que desejava. A alguns passos dali, na base da
pequena barricada tão impiedosamente guardada e vigiada do lado de fora,
sob um desmoronamento de pedras que a escondia em parte, ele viu uma
grade de ferro colocada horizontalmente e ao nível do solo. A grade,
formada por fortes barras transversais, tinha quase dois metros quadrados.
O caixilho de pedras que a sustinha fora arrancado e ela estava como que
despregada. Através das barras, entrevia-se uma escura abertura, algo
semelhante ao tubo de uma chaminé ou ao cilindro de uma cisterna. Jean
Valjean correu. Sua antiga experiência de evasões subiu-lhe ao cérebro
como uma luz. Afastar as pedras, levantar a grade, carregar aos ombros o
corpo de Marius, inerte como um cadáver, descer com esse fardo às costas,
ajudando-se com os joelhos e os cotovelos, nessa espécie de poço,
felizmente pouco profundo, deixar cair por cima de si o pesado alçapão de
ferro, sobre o qual tornaram a rolar as pedras arrancadas, tomar pé em uma
superfície lajeada três metros abaixo do solo, tudo isso foi executado
como o que é feito em meio ao delírio, com a força de um gigante e a
rapidez de uma águia; durou apenas alguns minutos.
Jean Valjean viu-se com Marius, sempre desmaiado, em uma espécie
de comprido corredor subterrâneo.
Ali, paz profunda, silêncio absoluto, noite.
A impressão que ele outrora experimentara, caindo da rua no interior
de um convento, retornou-lhe. Mas o que ele hoje carregava não era
Cosette, era Marius.
Acima dele, agora mal ouvia, como se fosse um vago murmúrio, o
incrível tumulto da taverna tomada de assalto.
__________________________
1 Caríbdis e Cila, monstros marinhos da mitologia Grega.
2 Do grego ochlos: plebe.
3 “Lama da cidade, lei do mundo.”
4 Meses do calendário republicano francês: termidor — décimo primeiro mês —, de 19 de
julho a 17 de agosto; vindemiário — primeiro mês —, de 22 de setembro a 21 de outubro;
prairial — nono mês —, de 20 de maio a 18 de junho.
5 Cidades tomadas durante as operações na Argélia, onde se observou que o exército havia
perdido o respeito à honra militar e às leis da guerra.
6 Os anfictiões eram deputados que representavam os doze estados gregos e decidiam sobre
negócios gerais, incluindo festas religiosas.
7 Referência ao castelo de Vincennes, que funcionava como prisão.
8 Referência aos personagens de Orlando Furioso, de Ariosto.
9 Anteu, gigante mitológico, filho da Terra.
10 Inscrição pertencente ao Evangelho da Natividade: “Encontraram um bebê envolto em
faixas”.
11 “Quem ousaria dizer que o sol é falso?” — Virgílio, Geórgicas.
12 Festas dedicadas ao deus Saturno.
13 A frase original, Les cygnes comprennent les signes, comporta um trocadilho que não é
possível manter na tradução, e que justifica o pai julgar-se espirituoso.
14 Do latim, “o pai morto espera o filho morto.”
15 Divindade da mitologia grega.
16 A expressão significa “esforço momentâneo e intenso”, sem equivalente em português.
17 John Brown foi um abolicionista americano; Carlo Pisacane viveu e morreu ao lado dos
patriotas republicanos da Itália.
18 “Eles se transmitem as chamas da vida.”
19 Zouave: nome dado aos soldados da infantaria francesa que serviram no norte da África,
entre 1831 e 1962. A palavra virou sinônimo de homem corajoso.
20 Tradução livre do próprio Victor Hugo para os versos 12-36, canto VI, da Ilíada.
21 Pioupiou — soldado raso de infantaria; carabin — estudante de medicina.
LIVRO II
O INTESTINO DE LEVIATÃ
III. BRUNESEAU
Na Idade Média, o esgoto de Paris era lendário. No século XVI,
Henrique II tentou uma sondagem que abortou. Há menos de cem anos, a
cloaca, como atesta Mercier, era abandonada a si mesma e fazia o que
podia.
Tal era a antiga Paris, entregue às brigas, às indecisões e às tentativas.
Por muito tempo, ela foi bastante estúpida. Mais tarde, 89 mostrou como a
inteligência retorna às cidades. Mas, nos bons velhos tempos, a
inteligência da capital não era grande; não sabia negociar nem moralmente
nem materialmente, nem melhor varrer seu lixo que os abusos. Tudo era
obstáculo, tudo era problema. O esgoto, por exemplo, era refratário a
qualquer itinerário. Não conseguiam orientar-se nos depósitos de lixo mais
do que entender-se na cidade; no alto, o ininteligível, embaixo, o
inextricável; sob a confusão das línguas ficava a confusão dos
subterrâneos; Dédalo superava Babel.
Às vezes, o esgoto de Paris transbordava, como se aquele Nilo
desconhecido subitamente se encolerizasse. Havia, coisa infame,
inundações de esgoto. Em alguns momentos, esse estômago da civilização
digeria mal, a cloaca refluía à garganta da cidade e Paris tinha o ressaibo
de sua lama. Essas semelhanças entre o esgoto e o remorso tinham seu
lado bom; eram avisos, muito mal recebidos, aliás; a cidade indignava-se
com a audácia de seu próprio lodo e não admitia que o lixo voltasse.
Expulsem-no melhor.
A inundação de 1802 é uma das recordações atuais dos parisienses de
oitenta anos. A lama espalhou-se em cruz pela praça des Victoires, onde
está a estátua de Luís XIV; entrou na rua Saint-Honoré pelos dois bueiros
dos Champs-Elysées, na rua Saint-Florentin pelo esgoto Saint-Florentin,
na rua Pierre-à-Poisson pelo esgoto de la Sonnerie, na rua Popincourt pelo
esgoto Chemin-Vert, na rua Roquette pelo esgoto da rua Lappe; cobriu a
sarjeta da rua Champs-Elysées até uma altura de trinta e cinco
centímetros; e ao meio-dia, pela embocadura do Sena, fazendo sua função
em sentido inverso, penetrou na rua Mazarine, na rua de l’Échaudé e na
rua des Marais, onde parou a uma extensão de cento e nove metros,
precisamente a alguns passos da casa onde morara Racine, respeitando, no
século XVII, mais o poeta que o rei. A lama atingiu o máximo de
profundidade na rua Saint-Pierre, onde elevou-se noventa centímetros
acima das lajes do chafariz, e o máximo de extensão na rua Saint-Sabin,
onde espalhou-se pelo comprimento de duzentos e trinta e oito metros.
No começo deste século, o esgoto de Paris era ainda um lugar
misterioso. A lama jamais pode ter boa fama; mas aqui sua má fama ia até
o terror. Paris sabia confusamente que tinha sob si um subterrâneo terrível.
Falava-se dele como desse monstruoso charco de Tebas, onde formigavam
centopeias de quatro metros de comprimento e que poderia servir de
banheira a Beemot.8 As grossas botas dos limpadores não se aventuravam
jamais além de certos pontos conhecidos. Ainda estava-se muito próximo
do tempo em que as carroças de lama, do alto das quais Sainte-Foix
fraternizava com o marquês de Créqui, eram despejadas simplesmente
dentro dos esgotos. Quanto à limpeza, essa função era confiada às
enxurradas, que mais entulhavam do que varriam. Roma ainda deixava
alguma poesia à sua cloaca, chamando-a de Gemônias; Paris insultava a
sua chamando-a de Buraco Fétido. A ciência e a superstição estavam de
acordo em relação ao horror. O Buraco Fétido não repugnava a higiene
mais do que a lenda. O bicho-papão aparecia sob a abóbada fétida do
esgoto Mouffetard; os cadáveres dos Marmousets haviam sido lançados no
esgoto de la Barrillerie; Fagon atribuíra a terrível febre maligna de 1685
ao grande hiato do esgoto du Marais, que permaneceu aberto até 1833 na
rua Saint-Louis, quase defronte ao cartaz do Messager galant. A boca do
esgoto da rua de la Mortellerie era célebre pelas pestes que por ali saíam;
com sua grade de ferro pontiaguda que simulava uma fileira de dentes, ela
era, nessa rua fatal, como uma boca de dragão soprando o inferno sobre os
homens. A imaginação popular condimentava o sombrio ralo parisiense
com alguma hedionda mistura de infinito. O esgoto não tinha fundo. O
esgoto era o barathrum.9 A ideia de explorar essas regiões leprosas não
vinha nem mesmo à polícia. Tentar esse desconhecido, lançar a sonda
nessa sombra, descobrir coisas nesse abismo, quem ousaria? Era
assustador. Contudo, alguém se apresentou. A cloaca teve seu Cristóvão
Colombo.
Um dia, em 1805, em uma das raras aparições do imperador em Paris,
o ministro do interior, um Decrès ou Crétet qualquer, chegou ao despertar
do amo. Ouvia-se no Carroussel o arrastar dos sabres de todos esses
soldados extraordinários da grande república e do grande império; havia
um amontoado de heróis à porta de Napoleão; homens do Reno, de Escaut,
de Adige e do Nilo; companheiros de Joubert, de Desaix, de Marceau, de
Hoche, de Kléber; aeróstatas de Fleurus, granadeiros de Mayence,
pontoneiros de Genes, hussardos já vistos pelas Pirâmides, artilheiros
atingidos pelas balas de Junot, couraçados que haviam tomado de assalto a
frota ancorada no Zuyderzée; alguns haviam seguido Bonaparte na ponte
de Lodi; outros haviam acompanhado Murat na trincheira de Mantoue,
outros ainda haviam antecedido Lannes na estrada de Montebello. Todo o
exército de então ali estava, no pátio das Tulherias, representado por uma
esquadra ou um pelotão, vigiando o sono de Napoleão; e era a época
esplêndida em que o grande exército tinha atrás de si Marengo e diante de
si Austerlitz.
— Sire — disse o ministro do interior a Napoleão —, ontem vi o
homem mais intrépido de vosso império.
— Quem é esse homem? — disse bruscamente o imperador. — E que
fez ele?
— Ele deseja fazer uma coisa, sire.
— Qual?
— Visitar os esgotos de Paris.
Esse homem existia e chamava-se Bruneseau.
V. PROGRESSO ATUAL
Hoje o esgoto é limpo, frio, reto, correto. Realiza quase o ideal do que
na Inglaterra se entende pela palavra “respectable” [respeitável]. É
conveniente e acinzentado; tão distinto que se poderia dizer elegante.
Parece um fornecedor promovido a conselheiro de estado. Dentro dele, vê-
se quase uma claridade. O lodo se comporta decentemente. À primeira
vista, poderia facilmente ser tomado por um desses corredores
subterrâneos tão comuns outrora, e tão úteis às fugas dos monarcas e dos
príncipes, no antigo bom tempo “em que o povo amava seus reis”. O
esgoto atual é um belo esgoto, em que reina o estilo puro; o clássico
alexandrino retilíneo, que, expulso da poesia, parece ter-se refugiado na
arquitetura, parece misturado em todas as pedras dessa extensa abóbada,
tenebrosa e esbranquiçada; cada escoadouro é uma arcada; a rua de Rivoli
faz escola até dentro da cloaca. De resto, se a linha geométrica está de
algum modo em seu lugar, é certamente sobre o fosso estercorário de uma
grande cidade. Ali, tudo deve ser subordinado ao caminho mais curto.
Atualmente o esgoto tomou certo aspecto oficial. Os próprios relatórios da
polícia, dos quais às vezes se torna objeto, não lhe faltam mais ao respeito.
As palavras que o caracterizam na linguagem administrativa são elevadas
e dignas. O que antes era chamado intestino, hoje se chama galeria; o que
era chamado buraco, hoje se chama olho. Villon não reconheceria mais sua
antiga morada. Essa rede de subterrâneos continua tendo sua imemorável
população de roedores, mais pululante do que nunca; de tempos em
tempos, um rato, velhos bigodes, arrisca sua cabeça à janela do esgoto e
examina os parisienses; mas essa própria bicharada infame se aprisiona,
satisfeita com seu palácio subterrâneo. A cloaca já não tem nada de sua
primitiva ferocidade. A chuva, que antes sujava os esgotos, agora os lava.
Todavia, não sejam tão confiantes. Ainda é habitado por miasmas. É mais
hipócrita do que irrepreensível. A delegacia de polícia e a comissão de
salubridade fazem de tudo. Mas, apesar de todos os procedimentos de
desinfecção, exala ainda um vago cheiro suspeito, como Tartufo depois da
confissão.
Convenhamos que, assim como a limpeza é uma homenagem que a
cloaca tributa à civilização, e como, deste ponto de vista, a consciência de
Tartufo é um progresso sobre a cavalariça de Augias, é certo que o esgoto
de Paris melhorou.
É mais que um progresso; é uma transmutação. Entre o esgoto antigo e
o esgoto atual, há uma revolução. Quem fez essa revolução?
O homem que todos esquecem, e que chamamos de Bruneseau.
__________________________
1 Parque de atrações e diversões localizado em Paris.
2 “À cidade e ao universo”, palavras que iniciam e designam a grande bênção papal.
3 Em Roma, local onde eram expostos e executados os criminosos.
4 Maillotins — revoltosos armados com clavas de ferro; tire-laine — ladrões noturnos de
agasalhos; huguenots — nome injurioso dado aos calvinistas; chauffeurs — bandidos que faziam
tostar os pés de suas vítimas para que dissessem onde escondiam seu dinheiro.
5 Nome do bairro dos malandros, cujas falsas enfermidades, usadas para conseguir caridade
pública, desapareciam “por milagre” quando para lá retornavam.
6 Beco Esvazia-Bolso; rua Corta-Garganta.
7 Esposa do imperador romano Claúdio; famosa por seus costumes deploráveis.
8 Fera enorme e extraordinária descrita no Livro de Jó.
9 Profunda fossa natural onde eram jogados os corpos dos condenados à morte de Atenas.
10 Gros-Jean, um joão-ninguém; Lebel, sobrenome tradicional.
LIVRO III
A LAMA, MAS A ALMA
II. EXPLICAÇÃO
No dia 6 de junho, uma batida nos esgotos havia sido ordenada.
Temiam que fossem tomados como refúgio pelos vencidos, e o prefeito
Gisquet teve de vasculhar a Paris oculta enquanto o general Bugeaud
varria a Paris pública; dupla operação conexa exigiu uma dupla estratégia
da força pública, representada na parte de cima pelo exército e na parte de
baixo pela polícia. Três pelotões de agentes e limpadores exploraram a
rede subterrânea de Paris, o primeiro, a margem direita, o segundo, a
margem esquerda, o terceiro, o centro da cidade.
Os agentes estavam armados com carabinas, cassetetes, espadas e
punhais.
Naquele momento, o que estava dirigido a Jean Valjean era a lanterna
da ronda da margem direita.
Essa ronda acabava de visitar a galeria curva e os três becos que ficam
sob a rua du Cadran. Enquanto passeava seu clarão no fundo desses becos,
Jean Valjean encontrara em seu caminho a entrada da galeria, percebera
que era mais estreita que o corredor principal e não entrara. Seguira
adiante. Os policiais, saindo novamente da galeria du Cadran, pensaram
ter ouvido um ruído de passos na direção do esgoto central. De fato, eram
os passos de Jean Valjean. O sargento chefe da ronda erguera sua lanterna,
e a esquadra pusera-se a olhar, na neblina, na direção de onde viera o
barulho.
Para Jean Valjean, esse foi um instante inexprimível.
Felizmente, se ele via bem a lanterna, a lanterna o via mal. Ela era a
luz, ele a escuridão. Ele estava muito longe, e mesclado às trevas do lugar.
Encostou-se à parede e parou.
Aliás, ele não sabia o que era aquilo que se movia atrás dele. A falta de
sono, a falta de alimentação, as emoções, fizeram-no igualmente passar ao
estado visionário. Via um clarão, e, ao redor desse clarão, larvas. O que era
aquilo? Não compreendia.
Como Jean Valjean parara, o barulho havia cessado.
Os homens da ronda escutavam e nada ouviam, olhavam e nada viam.
Consultaram-se.
Nessa época, havia acima desse ponto do esgoto de Montmartre uma
espécie de encruzilhada chamada de serviço, que depois foi suprimida por
causa do pequeno lago interior que ali formava, por ocasião dos grandes
temporais, a torrente de águas pluviais. A ronda pôde esconder-se nessa
encruzilhada.
Jean Valjean viu aquelas larvas formarem uma espécie de círculo.
Aquelas cabeças de cães aproximaram-se umas das outras e cochicharam.
O resultado desse conselho de cães de guarda foi que haviam se
enganado, que não houvera esse ruído, que não havia ninguém ali; que era
inútil embrenhar-se no esgoto central, porque seria tempo perdido, mas
que deviam apressar-se na direção de Saint-Merry, pois se havia algo a
fazer ou algum “bousingot”1 a encontrar, era naquele quarteirão.
De tempos em tempos, os partidos recolocam solas novas nas velhas
injúrias. Em 1832, a palavra bousingot era intermediária entre a palavra
jacobino, já fora de uso, e a palavra demagogo, quase inusitada, mas que
efetuou, desde então, um excelente serviço.
O sargento deu ordem para que virassem à esquerda rumo à vertente do
Sena. Se tivessem tido a ideia de dividir-se em duas esquadras e de ir nos
dois sentidos, Jean Valjean seria preso. Foi por um fio. É provável que as
instruções da delegacia, prevendo algum caso de combate e numerosos
insurgentes, proibisse a ronda de fragmentar-se. A ronda retomou sua
marcha, deixando para trás Jean Valjean. De todo aquele movimento, Jean
Valjean só percebeu o eclipse da lanterna que se virou subitamente.
Antes de se retirar, para desencargo de consciência da polícia, o
sargento disparou sua carabina na direção que abandonavam, na direção de
Jean Valjean. A detonação rolou de eco em eco na cripta como o ruído de
um intestino titânico. Um pedaço de entulho, que caiu na valeta e espirrou
água a alguns passos de Jean Valjean, o advertiu de que a bala batera na
abóbada acima de sua cabeça.
Passos cadenciados e lentos ressoaram por algum tempo nas galerias,
cada vez mais amortecidos à medida que se afastavam, o grupo de formas
negras desapareceu, um clarão oscilou e flutuou, fazendo na abóbada um
arco avermelhado que foi diminuindo até desaparecer, o silêncio voltou a
ser profundo, a escuridão tornou a ser completa, a cegueira e a surdez
retomaram posse das trevas; e Jean Valjean, não ousando mover-se ainda,
permaneceu por muito tempo encostado à parede, ouvidos atentos, pupilas
dilatadas, vendo o desaparecimento daquela patrulha de fantasmas.
VI. O FONTIS
Jean Valjean estava na presença de um fontis.
Esse tipo de desabamento era então frequente no subsolo de Champs-
Elysées, dificilmente manipulável nos trabalhos hidráulicos e pouco
conservador das construções subterrâneas em razão de sua excessiva
fluidez. Essa fluidez ultrapassa a inconsistência das areias, mesmo as do
bairro Saint-Georges, que só puderam ser vencidas por um alicerce de
pedras sobre argamassa, e das camadas argilosas cheias de gás do bairro
des Martyrs, tão líquidas que a passagem sob a galeria des Martyrs só
pôde ser construída por meio de um tubo metálico. Quando, em 1836, sob
o bairro Saint-Honoré, demoliram, para depois reconstruir, o velho esgoto
de pedra onde vemos Jean Valjean neste momento, a areia movediça, que é
o subsolo de Champs-Elysées até o Sena, constituiu tal obstáculo que a
operação durou cerca de seis meses, causando grandes reclamações por
parte dos moradores vizinhos, especialmente dos que tinham palácios e
carruagens. Os trabalhos foram mais do que difíceis; foram perigosos. É
verdade que houve quatro meses e meio de chuva e três enchentes do Sena.
O fontis que Jean Valjean encontrara fora causado pela chuva da
véspera. Uma dobra do pavimento, mal sustentado pela areia subjacente,
havia produzido o acúmulo de água pluvial. Ocorrida a infiltração, seguiu-
se o afundamento. As lajes, deslocadas, afundaram-se na lama. Em que
extensão? Impossível dizer. A escuridão era ali mais densa do que em
qualquer outro lugar. Era um buraco de lama em uma caverna escura.
Jean Valjean sentiu o chão fugir-lhe sob os pés. Entrou nessa lama. Era
água na superfície e lodo no fundo. Era preciso passar. Voltar atrás era
impossível. Marius estava agonizante, e Jean Valjean extenuado. Para onde
mais poderia ir? Jean Valjean avançou. O lodaçal pareceu ser pouco
profundo nos primeiros passos. Porém, à medida que avançava, seus pés
afundavam cada vez mais. O lodo chegou na metade da perna e a água
acima dos joelhos. Caminhava, levantando Marius com seus dois braços o
máximo possível acima da água. O lodo agora passara seus joelhos e a
água estava na cintura. Afundava cada vez mais. Esse lodo, bastante denso
para o peso de um homem, evidentemente não podia sustentar o peso de
dois. Marius e Jean Valjean teriam tido chance de se salvar isoladamente.
Jean Valjean continuou a avançar, carregando um moribundo que talvez já
fosse um cadáver.
A água lhe chegava às axilas; sentia-se enfraquecer; mal podia se
mover na profundidade de lodo em que estava. A densidade que o sustinha
era também um obstáculo. Continuava a erguer Marius, e usando de força
sobre-humana conseguia avançar, mas afundava. Só restava a cabeça fora
da água e seus dois braços levantando Marius. Há, nos antigos quadros do
dilúvio, uma mãe que faz o mesmo com seu filho.
Ele afundou ainda mais, inclinou a cabeça para trás para escapar da
água e poder respirar; quem o tivesse visto naquela escuridão acreditaria
estar enxergando uma máscara flutuante sobre a sombra; ele percebia
vagamente acima de sua cabeça o rosto lívido e a cabeça pendente de
Marius; fez um esforço desesperado e lançou seu pé adiante; seu pé
atingiu algo sólido. Um ponto de apoio. Já era tempo.
Ele se ergueu, e se contorceu, e se enraizou com uma espécie de fúria
sobre esse ponto de apoio. Isso lhe pareceu o mesmo que o primeiro
degrau em uma escada que subia para a vida.
Esse ponto de apoio encontrado na lama, no momento supremo, era o
começo de outra vertente do solo, que se havia dobrado sem se quebrar, e
se curvara sob a água como uma tábua de um só pedaço. Os pavimentos
bem construídos dobram-se, mas continuam firmes. Esse fragmento do
solo, em parte submerso, porém sólido, era uma verdadeira rampa e, uma
vez sobre essa rampa, estariam salvos. Jean Valjean subiu por esse plano
inclinado e chegou ao outro lado do lodaçal.
Ao sair da água, bateu em uma pedra e caiu de joelhos. Achou isso
muito justo, e assim continuou por algum tempo, com a alma absorta em
alguma oração a Deus.
Tornou a ficar de pé, trêmulo, gelado, infecto, curvado sobre esse
moribundo que arrastava, escorrendo lama, e a alma cheia de um estranho
clarão.
XII. O AVÔ
Basque e o porteiro haviam transportado Marius para o salão, onde
continuava imóvel no canapé em que o haviam deitado ao chegar. O
médico que fora chamado chegara. Tia Gillenormand se levantara.
Tia Gillenormand andava de um lado para o outro, apavorada, juntando
as mãos, incapaz de fazer outra coisa além de dizer: “Será possível,
Deus!” Em alguns momentos, acrescentava: “Tudo vai ficar manchado de
sangue!” Passados os primeiros momentos de horror, uma certa filosofia
iluminou seu espírito e traduziu-se por esta exclamação: “Isso só podia
acabar assim!” Porém, não chegou a dizer: Bem que eu dizia! como se
costuma dizer em ocasiões desse tipo.
Por ordem do médico, uma cama de lona foi colocada junro ao canapé.
O médico examinou Marius, e, depois de ter-se certificado de que o pulso
persistia, de que o ferido não tinha no peito nenhuma ferida muito
profunda e de que o sangue dos cantos da boca provinha das fossas nasais,
pediu que o deitassem na cama, sem travesseiro, com a cabeça no mesmo
plano que o corpo, e até um pouco mais baixa, sem roupa até a cintura para
facilitar a respiração. Ao ver que despiam Marius, a senhorita
Gillenormand retirou-se. Começou a recitar o rosário em seu quarto.
O peito não tinha lesões internas; uma bala, amortecida pela carteira,
se desviara e dera a volta às costas, fazendo um medonho rasgão, mas
pouco profundo, e consequentemente sem perigo. A extensa caminhada
subterrânea acabara de deslocar a clavícula quebrada, havendo ali sérios
problemas. Os braços tinham golpes de sabre. Nenhum golpe desfigurara
seu rosto, embora a cabeça tivesse muitos cortes. De que tipo eram esses
ferimentos na cabeça? Teriam apenas atingido o couro cabeludo? Teriam
penetrado o crânio? Ainda não era possível dizer. Um sintoma grave é que
haviam causado o desmaio, e nem sempre se desperta de desmaios desse
tipo. Além disso, a hemorragia havia extenuado o ferido. Da cintura para
baixo, o corpo ficara protegido pela barricada.
Basque e Nicolette rasgavam lençóis e preparavam ataduras; Nicolette
as costurava, Basque as enrolava. Na falta de panos apropriados, o médico
estancara o sangue provisoriamente com chumaços de algodão. Ao lado da
cama ardiam três velas sobre uma mesa, na qual se via o estojo cirúrgico
aberto. O médico lavou o rosto e os cabelos de Marius com água fria. Um
balde cheio logo ficou vermelho. O porteiro, sua vela na mão, iluminava.
O médico parecia pensar com tristeza. Por vezes fazia com a cabeça
um aceno negativo, como se respondesse a alguma pergunta que tivesse
feito a si mesmo. Mau sinal para o doente esses diálogos misteriosos de
um médico com ele mesmo.
No instante em que o médico enxugava o rosto do ferido e tocava
levemente com o dedo suas pálpebras, que continuavam fechadas, abriu-se
uma porta no fundo da sala e um vulto esguio e pálido apareceu.
Era o avô.
Havia dois dias que os tumultos agitavam, indignavam e preocupavam
o senhor Gillenormand. Não pudera dormir na noite anterior, e o dia todo
tivera febre. À noite, deitara muito cedo, recomendando que fechassem
bem todas as portas, e, de cansaço, adormecera.
Os velhos têm o sono leve. O quarto do senhor Gillenormand ficava
contíguo à sala, de modo que, apesar das precauções tomadas, acordara
com o barulho. Admirado por ver luz por entre as frestas da porta, saíra da
cama e viera até ali tateando.
Estava parado na soleira, com uma mão no trinco da porta entreaberta,
a cabeça um pouco inclinada à frente e trêmula, o corpo envolto em um
roupão branco, reto e sem pregas, como uma mortalha, espantado; e
parecia um fantasma olhando para um túmulo.
Viu a cama, e sobre o colchão esse jovem ensanguentado, branco como
cera, os olhos fechados, a boca aberta, os lábios sem cor, nu até a cintura,
crivado de feridas avermelhadas, imóvel, iluminado por uma luz forte.
O avô sentiu, da cabeça aos pés, o estremecimento que é possível aos
membros ossificados; os olhos, cuja córnea se tornara amarelada devido à
idade avançada, velaram-se com uma espécie de espelhamento vítreo; seu
rosto tomou em um instante os ângulos cadavéricos de uma cabeça de
esqueleto; os braços penderam como se a mola que os sustentava tivesse
quebrado, e seu estupor traduziu-se pelo afastamento dos dedos de suas
duas velhas mãos trêmulas; os joelhos se curvaram, deixando ver pela
abertura do roupão as pobres pernas nuas, eriçadas de pelos brancos, e ele
murmurou:
— Marius!
— Senhor — disse Basque —, acabam de trazê-lo. Ele foi para a
barricada e…
— Morreu! — exclamou o velho com voz terrível. — Ah! O bandido!
Então, uma espécie de transfiguração sepulcral endireitou aquele
centenário como se fosse um jovem.
— O senhor é o médico? — perguntou ele. — Antes de mais nada,
diga-me uma coisa. Ele está morto, não está?
O médico, profundamente ansioso, permaneceu em silêncio.
O senhor Gillenormand torceu as mãos soltando uma gargalhada
assustadora:
— Está morto! Está morto! Deixou-se matar na barricada! Por me
odiar! Foi contra mim que ele fez isso! Ah! Sanguinário! É assim que ele
retorna! Miséria de minha vida, ele está morto!
Foi até uma janela, abriu-a completamente como se estivesse
sufocando e, de pé diante da escuridão, começou a falar na rua para a
noite:
— Trespassado, acutilado, degolado, exterminado, retalhado, cortado
em pedaços! Vejam só, o maldito! Ele sabia que eu o esperava, que havia
mandado prepararem seu quarto e que eu colocara na cabeceira de minha
cama seu retrato de quando era pequeno! Ele sabia que bastava voltar, e
que havia anos eu pedia que voltasse, e que eu passava as noites diante do
fogo com as mãos sobre os joelhos, sem saber o que fazer, e que eu era um
imbecil! Você sabia disso, bastaria voltar e dizer: “Sou eu”, e seria o dono
da casa, e eu obedeceria, e você faria o que bem entendesse de seu velho
avô palerma! Você sabia, e disse: “Não, é um monarquista, não irei!” E foi
para as barricadas, e foi morto por maldade! Para vingar-se do que eu lhe
havia dito a respeito do senhor duque de Berry! Isso é que é infame!
Deitem-se e durmam tranquilamente! Ele está morto. É esse meu
despertar.
O médico, que começava a preocupar-se com os dois lados, deixou
Marius por um instante, dirigiu-se ao senhor Gillenormand e pegou em seu
braço. O avô voltou-se, fitou-o com olhos que pareciam maiores e
ensanguentados e lhe disse calmamente:
— Obrigado, senhor! Estou tranquilo, sou um homem, vi a morte de
Luís XVI, sei aguentar os acontecimentos. Só uma coisa é terrível, é
pensar que são seus jornais que fazem todo o mal. Vocês têm
escrevinhadores, faladores, advogados, oradores, tribunas, discussões,
progressos, luzes, direitos do homem, liberdade de imprensa e vejam só
como trarão seus filhos de volta para suas casas. Ah! Marius! É
abominável! Morto! Morrer antes que eu! Uma barricada! Ah! Bandido!
Doutor, o senhor mora no bairro, creio? Oh! Eu o conheço bem. Vejo de
minha janela passar seu cabriolé. Vou lhe dizer. Engana-se se pensa que
estou furioso. Não se fica furioso contra um morto. Seria estupidez! É uma
criança que eu criei. Eu já era velho e ele era ainda muito pequeno.
Brincava nas Tulherias com sua pazinha e sua cadeirinha, e, para que os
guardas não ralhassem, eu ia tapando com minha bengala os buracos que
ele fazia na terra com sua pá. Um dia ele gritou: “Abaixo Luís XVIII!” e
se foi. Não é minha culpa. Ele era corado e loiro. Sua mãe morreu. Notou
como todas as crianças são loiras? Por que será? É filho de um desses
bandidos do Loire, mas os filhos não têm culpa dos crimes dos pais. Ainda
me lembro de quando era pequenino! Não conseguia pronunciar os d.
Tinha um modo de falar tão doce e tão pouco claro que parecia um
pássaro. Lembro-me que uma vez, diante do Hércules Farnese, foi
rodeado, o admiraram e se maravilhavam, tão linda era essa criança! Tinha
uma cabeça como as que se veem nos quadros. Eu engrossava a voz e o
assustava com minha bengala, mas ele sabia que era brincadeira. De
manhã, quando ele entrava no meu quarto, eu resmungava, mas aquilo
fazia em mim o efeito do sol. A gente não pode resistir a esses
pequerruchos! Eles nos prendem, nos seguram, não nos largam mais. A
verdade é que não havia amor como por essa criança. Agora, que me diz
dos Lafayette, dos Benjamin Constant, dos Tirecuir de Corcelles, que o
mataram? Isso não pode ficar assim.
Aproximou-se de Marius, que continuava lívido e imóvel, e para junto
de quem o médico voltara, e recomeçou a torcer os braços. Os lábios
pálidos do velho mexiam-se como que maquinalmente e deixavam passar,
como sopros no estertor, palavras quase indistintas que mal se ouviam:
“Ah! Desalmado. Ah! Clubista! Ah! Perverso! Ah! Setembrista!” Censuras
em voz baixa de um agonizante a um cadáver.
Pouco a pouco, como é necessário que as erupções interiores sejam
exteriorizadas, voltou-lhe o encadeamento das palavras, mas o avô parecia
já não ter forças para pronunciá-las; sua voz estava tão baixa e apagada
que parecia vir do outro lado de um abismo:
— Isso me é indiferente, vou morrer também. E dizer que não há em
Paris uma única mulher que não ficasse feliz em fazer a felicidade desse
miserável! Um patife, que em vez de se divertir e desfrutar a vida, foi lutar
e deixou-se metralhar como um bruto! E por quem? Para quê? Pela
república! Em vez de ir dançar na Chaumière, como devem fazer todos os
rapazes! Vale a pena ter vinte anos. A república, bela asneira! Pobres
mães, façam meninos bonitos! Vamos, ele está morto. Serão dois enterros
a sair pelo portão. Você ficou nesse estado pelos belos olhos do general
Lamarque! Que lhe fez esse general Lamarque? Um esfaqueador, um
falador! Deixar-se matar por um morto! Não é de endoidecer? Entendam
isso! Aos vinte anos! E sem ao menos olhar para trás e ver se não deixava
algo! Agora, esses pobres velhos que se vejam forçados a morrer sozinhos!
Morra no seu canto, urubu! Enfim, na verdade, melhor assim, era o que eu
esperava, isso logo me matará. Sou muito velho, tenho cem anos, tenho
cem mil anos, faz tempo que tenho o direito de estar morto. Com esse
golpe, está feito. Acabou, que felicidade! De que adianta fazê-lo respirar
amoníaco e todas essas drogas? O senhor perde seu tempo, imbecil de
médico! Ande, ele está morto e bem morto. Disso eu entendo, eu que
também estou morto. Ele não fez a coisa pela metade. Sim, o tempo de
agora é infame, infame, infame, e é isso que eu penso de vocês, de suas
ideias, de seus sistemas, de seus mestres, de seus oráculos, de seus
médicos, de seus escritores patifes, de seus filósofos miseráveis, e de
todas as revoluções que há sessenta anos sobressaltam os bandos de corvos
das Tulherias! E já que não teve pena deixando-se matar assim, não terei
desgosto por sua morte, ouviu, assassino!
Nesse momento, Marius abriu lentamente as pálpebras, e seu olhar,
ainda embaçado pelo pasmo letárgico, parou sobre o senhor Gillenormand.
— Marius! — gritou o ancião. — Marius! Meu pequeno Marius! Meu
menino! Meu filho bem-amado! Você abre os olhos, você me olha, você
está vivo, obrigado!
E caiu desmaiado.
__________________________
1 Nome dado aos jovens cujas ideias democráticas se destacavam.
2 Espécie de gíria, palavra derivada do verbo filer, aqui usada no sentido de seguir alguém a
distância, sem se mostrar.
3 Outro nome que se dá ao Bicho-Papão.
LIVRO IV
JAVERT SEM RUMO
“Javert.
Inspetor de 1a classe.
Ao posto da praça du Châtelet.
7 de junho de 1832, por volta de uma hora da manhã”.
Javert secou a tinta fresca sobre o papel, dobrou-o como uma carta,
lacrou-o, escreveu no verso: Nota para a administração, deixou-o sobre a
mesa e saiu do posto. A porta de vidro gradeada fechou-se atrás dele.
Atravessou outra vez, diagonalmente, a praça du Châtelet, chegou ao
cais, e voltou com uma precisão automática ao mesmo lugar que deixara
um quarto de hora antes, apoiou-se, e voltou a ficar na mesma atitude
sobre a mesma pedra do parapeito. Parecia não haver se movido.
A escuridão era completa. Era o momento sepulcral que vem após a
meia-noite. Um teto de nuvens escondia as estrelas. O céu apresentava
uma espessura sinistra. Nas casas da cidade não se via uma única luz;
ninguém passava; tudo o que se via das ruas e dos cais estava deserto;
Notre-Dame e as torres do Palácio de Justiça pareciam feições da noite.
Um lampião avermelhava a orla do cais. As silhuetas das pontes
deformavam-se na bruma, umas após as outras. As chuvas haviam
engrossado o rio.
O lugar em que Javert se encontrava ficava, como se lembram,
exatamente acima da corrente do Sena, a prumo sobre a medonha espiral
de turbilhões que se enrosca e desenrosca como um parafuso sem fim.
Javert estendeu a cabeça e olhou. Tudo estava escuro. Não se
distinguia nada. Ouvia-se apenas o barulho da espuma; mas não se via o
rio. Por instantes, nessa profundidade vertiginosa, um clarão aparecia e
serpenteava vagamente, poder que a água tem, mesmo na noite mais
completa, de tirar luz não se sabe de onde e transformá-la em serpente.
Essa luz desaparecia e tudo voltava a ficar indistinto. A imensidão parecia
aberta ali. O que estava ali embaixo não era água, era abismo. O muro do
cais, abrupto, confuso, misturado ao vapor, subitamente escondido, fazia o
efeito de uma escarpa do infinito.
Não se via nada, mas sentia-se a frieza hostil da água e o cheiro das
pedras molhadas. Um hálito feroz elevava-se daquele abismo. A cheia do
rio, mais adivinhada do que avistada, o trágico murmúrio do fluxo, a
lúgubre enormidade dos arcos da ponte, a queda imaginada nesse vazio
sombrio, toda essa sombra estava cheia de horror.
Javert permaneceu alguns minutos imóvel, olhando para aquela
abertura de trevas, contemplando o invisível com uma fixidez que se
assemelhava à atenção. A água rumorejava. De repente, tirou o chapéu e
colocou-o em cima do muro do cais. Um momento depois, um vulto alto e
negro, que, de longe, algum passante tardio tomaria por um fantasma,
apareceu de pé em cima do parapeito, curvou-se em direção ao Sena,
ergueu-se e caiu direto nas trevas; houve um movimento rápido e surdo
das águas; e somente a escuridão presenciou o segredo das convulsões
daquela forma obscura que desapareceu sob a água.
__________________________
1 Referência a uma das primeiras catástrofes ferroviárias da França, em 1846.
LIVRO V
O NETO E O AVÔ
— A propósito!
— Que é, meu pai?
— Você não tinha um amigo íntimo?
— Sim, Courfeyrac.
— Que é feito dele?
— Morreu.
— Está bem.
Então sentou-se perto deles, fez Cosette sentar-se, e tomou suas quatro
mãos entre suas velhas mãos enrugadas.
— Ela é delicada, esta pequena. Uma obra-prima, esta Cosette! É uma
menina e também uma grande dama! Vai ser apenas baronesa, que falta;
ela nasceu marquesa. Que cílios! Meus queridos, ponham na cabeça que
vocês estão no verdadeiro caminho. Amem-se. Fiquem tolos de amor. O
amor é a tolice dos homens e o espírito de Deus. Adorem-se! Uma única
coisa — acrescentou ele, de súbito entristecido —, que pena! É nisto que
estou pensando, mais da metade dos meus haveres são em rendas
vitalícias; enquanto eu for vivo, será assim, mas após minha morte, daqui
a uns vinte anos, ah, pobres crianças, vocês não terão nem um tostão. Suas
belas mãozinhas brancas, senhora baronesa, darão ao diabo a honra de
puxá-lo pelo rabo.
Nesse instante, ouviu-se uma voz grave e serena dizer:
— A senhorita Euphrasie Fauchelevent possui seiscentos mil francos.
Era a voz de Jean Valjean.
Ele ainda não havia proferido uma só palavra, ninguém sequer parecia
notar sua presença; ele se mantinha de pé e imóvel por trás de todas
aquelas pessoas felizes.
— Quem é senhorita Euphrasie? — perguntou o avô espantado.
— Sou eu! — respondeu Cosette.
— Seiscentos mil francos! — repetiu o senhor Gillenormand.
— Menos uns catorze ou quinze mil francos, talvez — disse Jean
Valjean.
E colocou sobre a mesa o embrulho que tia Gillenormand havia
tomado por um livro.
O próprio Jean Valjean abriu o pacote; era um maço de notas do banco,
que folhearam e contaram. Havia quinhentas notas de mil francos e cento e
sessenta e oito de quinhentos. Ao todo, quinhentos e oitenta e quatro mil
francos.
— Ora, isso é que é um bom livro! — disse o senhor Gillenormand.
— Quinhentos e oitenta e quatro mil francos! — murmurou a tia.
— Isso ajeita bem as coisas, não é, senhorita Gillenormand
primogênita? — retomou o avô. — Esse danado do Marius tirou do ninho
da árvore dos sonhos uma pequena milionária! Agora pode-se esperar isso
dos namoricos dos jovens! Estudantes encontram garotas de seiscentos mil
francos. Querubim está trabalhando melhor que Rothschild!
— Quinhentos e oitenta e quatro mil francos! — repetia a meia voz a
senhorita Gillenormand. — Quinhentos e oitenta e quatro! É o mesmo que
dizer seiscentos mil, ora!
Quanto a Marius e a Cosette, eles se entreolhavam durante esse tempo;
mal prestaram atenção àquele detalhe.
— Esse é um projeto de festa, isso sim, ou eu, ora bolas, não entendo
nada disso.
__________________________
1 Referência à Madame Gigone, personagem muito conhecida no teatro infantil francês e mãe
de muitos filhos.
2 Torre de mármore: uma das invocações das Ladainhas da Virgem.
3 Cujas: grande jurista da Renascença; Gamache: personagem camponês, em Dom Quixote.
Suas bodas são ocasião de um banquete memorável.
4 Les Indes galantes é uma ópera-balé muito famosa, criada por Jean-Philippe Rameau e
encenada no teatro do Palais-Royal em 1735.
5 Jeux e Ris — divindades; argiráspides — soldados de elite do antigo exército macedônio.
LIVRO VI
A NOITE EM CLARO
I. 16 DE FEVEREIRO DE 1833
A NOITE DE 16 para 17 de fevereiro de 1833 foi uma noite abençoada.
Acima de sua escuridão, ela teve o céu aberto.
Foi a noite de núpcias de Marius e Cosette. O dia havia sido delicioso.
Não fora a festa azul sonhada pelo avô, um encantamento feito de
querubins e cupidos pairando sobre a cabeça dos noivos, um casamento
digno de ser pintado como decoração, mas fora suave e risonho.
A moda do casamento em 1833 não era como a de hoje. A França ainda
não havia copiado da Inglaterra a suprema delicadeza de arrebatar a noiva
e fugir com ela ao sair da igreja, de esconder-se com vergonha da própria
felicidade e combinar os modos de um falido com os arroubos do cântico
dos cânticos. Ainda não se compreendia o que há de casto, de delicado e de
decente em sacudir seu paraíso dentro de uma carruagem, em entrecortar
seu mistério com estalos de chicote, em tomar por leito nupcial uma cama
de estalagem, em deixar atrás de si, na alcova banal paga a tanto por noite,
a mais sagrada das recordações da vida, em meio aos comentários trocados
entre o cocheiro da diligência e a criada da estalagem.
Nesta segunda metade do século XIX em que nos encontramos, o
prefeito com sua faixa, o padre com sua estola, a lei e Deus já não são
suficientes; é preciso completá-los com o postillon de Longjumeau1;
jaqueta azul com forro vermelho e botões de guizo, condecoração em
torno do braço, calças de pelica verde, pragas contra os cavalos normandos
de cauda atada, falsos galões, chapéu de oleado, cabeleira empoada,
grande chicote e botas pesadas.
A França não leva ainda a elegância a ponto de, como a nobreza
inglesa, fazer chover, sobre a carruagem dos noivos, uma saraivada de
sapatos e chinelos velhos, em memória de Churchill, desde que
Marlborough ou Malbrouk foi atacado no dia de seu casamento pela cólera
de uma tia, o que lhe trouxe felicidade. Os sapatos e os chinelos velhos
ainda não fazem parte das nossas celebrações nupciais, mas, uma vez que
o bom gosto continue a difundir-se, chegaremos lá.
Em 1833, há cem anos, os casamentos não eram feitos a grande trote.
Nessa época ainda se pensava, coisa estranha, que o casamento era
uma festa íntima e social, que um banquete patriarcal não prejudicava uma
solenidade doméstica, que a alegria, ainda que excessiva, uma vez honesta,
nenhum mal faria à felicidade, e que, finalmente, era venerável e
conveniente que a fusão dos dois destinos, de onde sairia uma família,
tivesse princípio em casa, e o casal tivesse por testemunha, desde aquele
momento, o quarto nupcial.
E tinham a falta de pudor de se casarem em casa!
O casamento foi então realizado segundo essa moda caduca, na casa do
senhor Gillenormand.
Por mais natural e comum que seja esse negócio de casamento, a
publicação das proclamas, o registro dos atos, a prefeitura, a igreja, tudo
isso sempre tem alguma complicação. Não foi possível estar com tudo
pronto antes de 16 de fevereiro.
Bem, apontamos esse detalhe pela pura satisfação de sermos exatos,
ocorreu que 16 de fevereiro era terça-feira de carnaval.
Hesitações, escrúpulos, principalmente da tia Gillenormand.
— Terça-feira gorda! — exclamou o avô. — Melhor ainda. Como diz o
provérbio:
III. A INSEPARÁVEL
Que fora feito de Jean Valjean?
Imediatamente após ter sorrido com a gentil intimação de Cosette,
vendo que ninguém reparava nele, Jean Valjean levantou-se e,
despercebido, penetrou na antessala. Era a mesma sala onde, seis meses
antes, entrara coberto de lama, de sangue e de pólvora, trazendo o neto ao
avô. As velhas paredes revestidas de madeira estavam enfeitadas com
flores e folhagens; os músicos ocupavam o mesmo canapé onde Marius
havia sido colocado.
Basque, vestido de preto, calções curtos, meias e luvas brancas,
dispunha coroas de rosas em volta de cada um dos pratos que seriam
servidos. Jean Valjean apontou-lhe o braço na tipoia, encarregou-o de
explicar sua ausência e retirou-se.
As janelas da sala de jantar davam para a rua. Jean Valjean ali
permaneceu durante alguns instantes, de pé e imóvel, no meio da
escuridão, sob as janelas radiantes. E escutava. O confuso ruído do
banquete chegava até ele. Ouvia a voz alta e magistral do avô, os violinos,
o tinido da louça e dos copos, as risadas; e em meio a todo aquele alegre
rumor, distinguia a doce e alegre voz de Cosette.
Deixou a rua Filles-du-Calvaire e retornou à rua de l’Homme-Armé.
Para isso, seguiu pela rua Saint-Louis, pela rua Culture-Sainte–
Catherine e pela Blancs-Manteaux; era um pouco mais longo, mas era o
caminho que havia três meses tinha o costume de pegar, evitando a
confusão e a lama da rua Vieille-du-Temple, para vir todos os dias, da rua
de l’Homme-Armé à rua Filles-du-Calvaire com Cosette.
Esse caminho, por onde Cosette havia passado, excluía para ele
qualquer outro itinerário.
Jean Valjean chegou a casa, acendeu sua vela e subiu. O apartamento
estava vazio. Nem mesmo Toussaint encontrava-se mais ali. Os passos de
Jean Valjean faziam pelos aposentos mais ruído que de costume. Todos os
armários estavam abertos. Entrou no quarto de Cosette. A cama estava
sem lençóis. O travesseiro, sem fronha e sem rendas, pousava sobre as
cobertas dobradas aos pé do colchão, do qual se via o forro, e onde mais
ninguém iria se deitar. Todos os pequenos objetos femininos a que Cosette
tinha apreço haviam sido levados; só restaram os pesados móveis e as
paredes.
A cama de Toussaint também estava desguarnecida. Uma única cama
estava feita, parecendo esperar por alguém, era a cama de Jean Valjean.
Ele olhou para as paredes, fechou algumas das portas dos armários e se
pôs a andar de um quarto para o outro.
Depois voltou a seu quarto e colocou a vela sobre uma mesa. Tirou o
braço da tipoia e servia-se da mão direita, como se nada tivesse.
Aproximou-se de sua cama, e seus olhos, seja por acaso ou
intencionalmente, fixaram-se sobre a inseparável, da qual Cosette tivera
ciúmes, a pequena valise que ele nunca largava. No dia 4 de junho,
chegando à rua de l’Homme-Armé, pusera-a sobre uma mesinha ao lado
da cabeceira da cama. Dirigiu-se a essa mesinha com vivacidade, tirou
uma chave do bolso, abriu a valise.
Foi retirando lentamente as roupas com as quais, dez anos antes,
Cosette saíra de Montfermeil; primeiro tirou o vestidinho preto, depois o
lenço preto, depois os pesados sapatos de criança, que Cosette talvez ainda
pudesse usar, tão pequenos eram seus pés, depois o casaquinho de fustão
grosso, depois a saia de tricô, depois o aventalzinho com bolso, depois as
meias de lã. Essas meias, ainda marcadas com a forma de uma pequena
perna, não eram maiores que a mão de Jean Valjean. Tudo era de cor preta.
Fora ele quem levara para ela essas roupas até Montfermeil. À medida que
as tirava da valise, colocava-as sobre a cama. Pensava. Relembrava. Era
inverno, um mês de dezembro muito frio, ela tremia, meio nua, vestida
com uns trapos, os pobres pezinhos roxos de frio dentro de tamancos. Ele a
fizera tirar aqueles andrajos para vestir a roupa de luto. A mãe deve ter
ficado contente, em seu túmulo, vendo a filha usar luto por ela, e mais
ainda por vê-la vestida e aquecida. Lembrava da floresta de Montfermeil
que atravessaram juntos, Cosette e ele; lembrava do tempo que fazia, das
árvores sem folhas, dos bosques sem pássaros, do céu sem sol; não
importava, era encantador. Arrumou a roupa sobre a cama, o lenço perto da
saia, as meias junto aos sapatos, o casaco ao lado do vestido, e olhou cada
uma das peças. Ela não era maior que aquilo, trazia sua grande boneca nos
braços, tinha colocado a moeda de ouro no bolso do avental, e ria;
caminhavam os dois de mãos dadas, ela só tinha a ele no mundo.
Então sua venerável cabeça branca tombou sobre a cama, aquele velho
coração estoico se partiu, seu rosto, por assim dizer, enterrou-se nas
roupas de Cosette, e, se alguém passasse pela escada naquele momento,
teria ouvido terríveis soluços.
__________________________
1 Postillon — homem que conduz os viajantes à diligência; Postillon de Longjumeau, ópera
cômica enfocando esse personagem, que, tendo uma bela voz de tenor, é convencido, na noite
de suas núpcias, a trocar Longjumeau por Paris.
2 Personagens carnavalescos.
3 Dia comemorativo na França: quinta-feira da terceira semana da Quaresma.
4 Téspis: criador da tragédia grega. Vadé: considerado o criador da literatura de cunho chulo.
5 Autores do gênero vaudeville: canções, poemas e comédias populares e satíricas.
6 Roquelaure fazia parte da corte de Luís XIV; Paillasse, personagem bufão dos espetáculos
saltimbancos.
7 Roulotte (carruagem), e, acima, daron (pai).
8 “Quero que cortem meu pescoço, e nunca na vida eu disse senhor, você, nem eu, se não
conheço aquele parisiense ali.”
9 Pharos (governo); acima: fée (filha), filer (seguir, espreitar).
10 Referência aos versos: Lorsqu’en ajoutant votre age à mon age, / Nous ne comptons pas à
deux quarante ans [Ainda que juntando sua idade à minha idade, / Não contamos os dois
quarenta anos].
11 Estela e Nemorino, personagens de uma pastoral.
12 Le Sancy s’appelle-t-il le Sancy parce qu’il a appartenu à Harley de Sancy, ou parce qu’il
pèse cent six carats? Trata-se de célebre diamante, assim chamado por ter pertencido a Nicolas
de Sancy, e pronuncia-se, em francês, do mesmo modo que cento e seis.
13 Celimene e Alceste — personagens da peça O misantropo, de Molière; ela, charmosa e
vaidosa, usa seus atributos para conquistar os homens. Ele, de costumes rigorosos e franqueza
quase brutal.
14 Dafnis e Cloé — protagonistas jovens de romance pastoral; Filemon e Baucis — casal já
idoso, personagens de Ovídio.
15 Ventre-saint-gris — ao pé da letra, santo ventre bêbado; antiga blasfêmia que exprime
cólera ou surpresa.
16 “O indestrutível fígado”: os povos antigos acreditavam que o fígado era sede dos
sentimentos vitais.
LIVRO VII
O ÚLTIMO GOLE DO CÁLICE
__________________________
1 Pierrots — essa palavra designa também um tipo de pássaro, os pardais.
LIVRO VIII
A DIMINUIÇÃO CREPUSCULAR
I. A SALA DE BAIXO
NO DIA SEGUINTE, ao anoitecer, Jean Valjean batia à porta da casa
Gillenormand. Foi Basque quem o recebeu. Basque achava-se no portal,
naquele exato momento, como se tivesse recebido ordens. Ocorre algumas
vezes dizer-se a um criado: “Fique atento para a chegada do senhor
fulano”.
Sem esperar que Jean Valjean viesse até ele, Basque dirigiu-lhe a
palavra:
— O senhor barão recomendou-me que lhe perguntasse se prefere
subir ou ficar aqui embaixo.
— Fico aqui embaixo — respondeu Jean Valjean.
Basque, por sinal absolutamente respeitoso, abriu a porta da sala de
baixo e disse: “Vou avisar a senhora”.
A sala onde Jean Valjean entrou era abobadada e úmida, servindo às
vezes de despensa, tinha ladrilhos vermelhos, era mal iluminada por uma
janela com grades de ferro, e dava para a rua.
Esse cômodo não era daqueles que importunam o espanador, a escova
e a vassoura.
O pó ali ficava em sossego. A perseguição das aranhas não fora
organizada. Uma bela teia, amplamente estendida, bem escura, enfeitada
com moscas mortas, era ostentada sobre um dos vidros da janela.
A sala, pequena e baixa, estava mobiliada com inúmeras garrafas
amontoadas em um canto. As paredes, pintadas de ocre amarelo,
descascavam-se em grandes placas. Ao fundo, havia uma lareira com
acabamento de madeira, estreita e pintada de preto. O fogo estava aceso, o
que indicava que já contavam com a escolha de Jean Valjean: ficar
embaixo.
Duas poltronas estavam colocadas dos dois lados da lareira; entre elas
fora estendido, à guisa de tapete, um velho tecido que mostrava mais corda
do que lã.
O cômodo tinha como iluminação o fogo da lareira e a claridade que
entrava pela janela.
Jean Valjean estava cansado. Havia vários dias não comia nem dormia.
Deixou-se cair sobre uma das poltronas.
Basque retornou, colocou uma vela sobre a lareira e retirou-se. Jean
Valjean, cabeça inclinada e queixo apoiado sobre o peito, não se deu conta
nem de Basque, nem da vela.
De repente, ele se recompôs como que sobressaltado. Cosette estava
atrás dele.
Não a vira entrar, mas sentiu que ela entrava.
Voltou-se e contemplou-a. Ela estava adoravelmente bela. Mas o que
ele via com esse profundo olhar não era sua beleza, era sua alma.
— Muito bem, pai — exclamou Cosette —, eu sabia que o senhor era
estranho, mas nunca poderia esperar por isso. Que ideia! Marius me disse
que foi o senhor quem quis que eu o recebesse aqui.
— Sim, fui eu.
— Eu esperava essa resposta. Bem, previno-o de que vou fazer-lhe
uma cena. Vamos começar pelo começo. Pai, me dê um beijo.
Ela estendeu-lhe o rosto.
Jean Valjean permaneceu imóvel.
— Constato que o senhor não se mexe. Atitude de culpa. Não faz mal,
eu o perdoo. Jesus Cristo disse: “Apresente a outra face”. Aí está ela.
E estendeu a outra face.
Jean Valjean não se moveu. Parecia que seus pés estavam pregados ao
chão.
— Isso está ficando sério — disse Cosette. — O que foi que eu lhe fiz?
Declaro-me zangada. Me deve a reconciliação. Jante conosco.
— Já jantei.
— Não é verdade. Vou pedir ao senhor Gillenormand que lhe dê uma
bronca. Os avôs são feitos para repreender os pais. Vamos. Suba comigo
para a sala. Agora mesmo.
— Impossível.
Cosette perdia um pouco de terreno. Parou de dar ordens e passou a
fazer perguntas.
— Mas por quê? E ainda escolhe o quarto mais feio da casa para me
ver. É horrível aqui.
— Você sabe…
Jean Valjean corrigiu-se.
— A senhora sabe, sou esquisito, tenho minhas manias.
Cosette bateu as pequenas mãos uma contra a outra.
— Senhora!… A senhora sabe!… Mais novidades! O que quer dizer
isso?
Jean Valjean lançou-lhe aquele sorriso de cortar o coração, ao qual às
vezes recorria.
— Você quis ser senhora. E agora é.
— Não para o senhor, pai.
— Não me chame mais de pai.
— Como assim?
— Me chame de senhor Jean, ou Jean, se quiser.
— O senhor não é mais pai? Eu não sou mais Cosette? Senhor Jean? O
que tudo isso significa? É alguma revolução? O que está se passando?
Olhe bem para mim. O senhor não quer vir morar conosco, não quer o
quarto que arrumei! O que eu lhe fiz? O que eu lhe fiz? Aconteceu então
alguma coisa?
— Nada!
— Mas e então?
— Tudo fica como antes.
— Por que mudou de nome?
— A senhora também mudou!
Tornou a sorrir com o mesmo sorriso de antes e acrescentou:
— Como agora é a senhora Pontmercy, também posso ser o senhor
Jean.
— Não estou entendendo nada. Tudo isso é uma besteira. Vou pedir a
meu marido permissão para que seja então o senhor Jean, mas espero que
ele não consinta. O senhor está me dando aflição. Tem suas esquisitices,
mas não pode magoar sua pequena Cosette. Não tem o direito de ser
malvado, o senhor que é tão bom.
Ele não respondeu.
Ela pegou com entusiasmo suas duas mãos e, com um movimento
irresistível, elevando-as à altura do rosto, pressionou-as contra seu
pescoço e seu queixo, o que é um profundo gesto de ternura.
— Oh! — disse ela. — Seja bom!
E prosseguiu:
— Sabe o que eu chamo ser bom? É ser gentil, vir morar aqui, aqui
também tem passarinhos como na rua Plumet, viver conosco, sair daquele
buraco da rua de l’Homme-Armé, não nos dar charadas para adivinhar,
portar-se como todo o mundo, jantar conosco, almoçar conosco, ser meu
pai.
Ele soltou suas mãos.
— A senhora não necessita mais de um pai, agora tem um marido.
Cosette ficou furiosa.
— Não necessito mais de pai! Coisas assim, sem nenhum sentido,
realmente não se sabe o que dizer delas!
— Se Toussaint estivesse aqui — tornou Jean Valjean, como quem
procura testemunhas e se agarra a todos os galhos —, ela seria a primeira a
convir que eu sempre tive as minhas esquisitices. Não é nenhuma
novidade. Sempre gostei do meu canto escuro.
— Mas faz frio aqui. Não se enxerga direito. É abominável essa
história de querer ser senhor Jean. Não quero que me trate por senhora!
— Há pouco, vindo para cá — respondeu Jean Valjean —, eu vi um
móvel em uma marcenaria da rua Saint-Louis. Se eu fosse uma bela
mulher, daria esse móvel a mim mesmo. Um belo toucador no estilo do
momento, de madeira que chamam pau-rosa, creio eu, todo entalhado.
Com um grande espelho e gavetas. Bonito.
— Oh! O urso malvado! — replicou Cosette.
E com extrema delicadeza, serrando os dentes e entreabrindo os lábios,
soprou contra Jean Valjean. Era uma Graça imitando uma gata.
— Estou furiosa — prosseguiu ela. — Desde ontem todos vocês me
dão raiva. Estou muito irritada. Não estou entendendo nada. O senhor não
me defende contra Marius, Marius não me dá apoio contra o senhor. Estou
sozinha. Arrumei um quarto com todo o capricho. Se pudesse colocar Deus
dentro dele, teria colocado. Mas deixaram meu quarto de lado. Meu
inquilino não veio. Digo a Nicolette para fazer um jantarzinho bem feito.
“Não queremos seu jantar, senhora.” E meu pai Fauchelevent quer que o
chame de senhor Jean; e que eu o receba em um horrível, velho e feio
porão embolorado, onde as paredes têm barba, e onde há, no lugar de
cristais, garrafas vazias, e, no lugar de cortinas, teias de aranha! O senhor
é esquisito, concordo, é o seu jeito, mas dê uma trégua para quem se
casou. O senhor não devia ter voltado a ser esquisito logo em seguida. O
senhor, então, vai ficar bem contente na sua abominável rua de l’Homme-
Armé. Ali eu vivia bem desesperada! O que o senhor tem contra mim? O
senhor me deixa muito triste. Ora!
E, repentinamente séria, olhou fixamente para Jean Valjean,
acrescentando:
— Está chateado comigo porque estou feliz?
A ingenuidade, sem que perceba, algumas vezes penetra fundo. Essa
pergunta, simples para Cosette, era profunda para Jean Valjean. Cosette
queria apenas arranhar, mas dilacerou. Jean Valjean empalideceu.
Permaneceu um momento sem resposta; depois, com um tom inexprimível
e falando a si próprio, murmurou:
— Sua felicidade é o objetivo da minha vida. Agora Deus pode assinar
minha saída! Cosette, você é feliz; meu tempo findou.
— Ah! Chamou-me de você! — exclamou Cosette. E lançou-se em um
abraço.
Jean Valjean, enternecido, estreitou-a contra o peito com exaltação.
Pareceu-lhe, por um instante, que a teria de volta.
— Obrigada, meu pai! — disse-lhe Cosette.
Essa impressão tornou-se pungente para Jean Valjean. Desvencilhou-se
suavemente dos braços de Cosette e pegou o chapéu.
— E então? — disse Cosette.
Jean Valjean respondeu:
— Vou deixá-la, senhora, estão à sua espera.
E, já no limiar da porta, acrescentou:
— Chamei-a de você; perdoe-me e diga a seu marido que isso não
tornará a acontecer.
E saiu, deixando Cosette assombrada com essa enigmática despedida.
II. OUTROS PASSOS PARA TRÁS
No dia seguinte, à mesma hora, Jean Valjean voltou.
Cosette não lhe fez perguntas, não se mostrou admirada, não se
queixou de frio, não o convidou a subir, evitou chamá-lo de pai e de
senhor Jean e deixou-se chamar de senhora. Apenas dava mostras de uma
diminuição de alegria. Teria ficado triste se a tristeza lhe fosse possível.
É provável que ela tivesse tido com Marius uma dessas conversas em
que o homem amado diz o que quer, não explicando nada e satisfazendo a
mulher amada. A curiosidade dos amantes não vai muito além de seu
amor.
A sala de baixo passara por uma arrumação. Basque fizera desaparecer
as garrafas, e Nicolette as aranhas.
Os dias que se seguiram trouxeram Jean Valjean de volta à mesma
hora. Veio todos os dias, não tendo forças para tomar as palavras de
Marius a não ser ao pé da letra. Marius fazia sempre por não estar em casa
à hora em que Jean Valjean chegava.
A família acostumou-se às novas singularidades do senhor
Fauchelevent. Toussaint contribuiu para isso: “Ele sempre foi assim”,
repetia ela. O avô decretou: “É um extravagante!” E não se falou mais
nisso. Aliás, aos noventa anos já não há mais ligação que seja possível;
tudo é justaposição; um recém-chegado é um incômodo. Não há mais
lugar, todos os hábitos já se instalaram.
Senhor Fauchelevent, ou Tranchelevent, o avô Gillenormand não
queria outra coisa a não ser estar dispensado “daquele senhor”. E
acrescentou: “Nada é mais comum que esses extravagantes. Fazem todo
tipo de esquisitices sem nenhum motivo. O marquês de Canaples, esse era
ainda pior. Comprou um palácio e foi instalar-se no sótão. São aparências
fantasiosas que as pessoas têm”.
Ninguém entrevê a sinistra parte de baixo. Além disso, quem poderia
adivinhar uma coisa desse tipo? Na Índia, há pântanos assim; a água
parece extraordinária, inexplicável, trêmula, sem que haja vento; agitada
onde deveria estar calma. Vê-se na superfície uma agitação sem causa,
pois não se percebe a hidra arrastando-se no fundo.
Muitos homens têm também um monstro secreto, um mal que
alimentam, um dragão que os dilacera, um desespero que habita suas
noites. Esses homens se parecem com todos os outros, vão e vêm. Não se
sabe que dentro desses miseráveis há uma medonha dor parasita, com mil
dentes, da qual chegam a morrer. Não se sabe que esses homens são
abismos. Estagnados, mas profundos. De tempos em tempos, uma agitação
incompreensível se faz à sua superfície. Forma-se uma misteriosa dobra,
que desaparece e torna a aparecer; uma bolha de ar sobe e arrebenta. É
pouca coisa, mas é terrível. É a respiração da besta desconhecida.
Certos hábitos estranhos, chegar quando os outros se retiram,
esconder-se quando os outros se mostram, manter em todas as ocasiões o
que se poderia chamar de capa cor de parede, procurar os lugares
solitários, preferir a rua deserta, não tomar parte nas conversas, evitar as
multidões e as festas, parecer abastado e viver pobremente, trazer, por
mais rico que se seja, sua chave no bolso e sua própria vela para a portaria,
entrar pela porta dos fundos, subir pela escada oculta, todas essas
singularidades insignificantes, rugas, bolhas de ar, dobras fugazes na
superfície, provêm muitas vezes de um fundo formidável.
Assim decorreram várias semanas. Uma nova vida pouco a pouco
tomou conta de Cosette; relações originadas pelo casamento, visitas,
cuidados com a casa, divertimentos, enfim, esses negócios importantes. Os
divertimentos de Cosette eram pouco dispendiosos. Consistiam em um
único: estar com Marius. Sair com ele, ficar com ele em casa, essas eram
as grandes ocupações de sua vida.
Era para eles um prazer sempre novo saírem de braços dados, sob o
sol, em plena rua, sem se esconderem, diante de todo o mundo, os dois
sozinhos.
Cosette teve uma contrariedade. Toussaint, não conseguindo entender-
se com Nicolette, sendo impossível a união das duas mulheres, foi embora.
O avô passava bem; Marius defendia uma ou outra causa; tia
Gillenormand levava tranquilamente, ao lado do novo casal, uma vida
lateral que lhe bastava. Jean Valjean vinha todos os dias.
O tratamento você desapareceu, o senhora, o senhor Jean, tudo isso fez
com que ele parecesse outra pessoa aos olhos de Cosette. O cuidado que
ele próprio tomara para afastá-la dele dera resultado. Ela estava cada vez
mais alegre e cada vez menos terna. Mas continuava gostando muito dele,
e ele o sentia.
Certo dia, ela lhe disse abruptamente: “O senhor era meu pai, mas não
é mais; o senhor era meu tio, mas não é mais; era o senhor Fauchelevent,
agora é Jean. Afinal de contas, quem é o senhor? Não gosto nada disso. Se
não soubesse o quanto é bom, teria medo do senhor”.
Ele continuava morando na rua de l’Homme-Armé, porque não
conseguia afastar-se do local habitado por Cosette.
Nos primeiros tempos, demorava-se apenas alguns minutos junto de
Cosette, e logo ia embora.
Pouco a pouco foi-se acostumando a prolongar suas visitas. Parecia
aproveitar-se da autorização dos dias que se tornavam mais longos;
chegava mais cedo e retirava-se mais tarde.
Um dia, sem querer, Cosette o chamou de pai. Um raio de alegria
iluminou o velho semblante sombrio de Jean Valjean. Ele a corrigiu: “Diga
Jean”.
— Ah! É verdade, senhor Jean — respondeu ela soltando uma risada.
— Muito bem — disse ele.
E voltou o rosto para que ela não o visse enxugar as lágrimas.
“Cosette, eu a abençoo. Vou lhe explicar. Seu marido estava certo em fazer-me
compreender que eu devia me afastar; todavia, há um pequeno erro naquilo que ele supôs,
embora estivesse certo. Ele é excelente. Ame-o sempre e muito, quando eu já estiver morto.
Senhor Pontmercy, ame sempre minha filha querida. Cosette, encontrarão este papel, eis o
que quero dizer–lhe, você verá as cifras, se eu tiver forças para me lembrar delas; escute
bem, aquele dinheiro é seu, sim. Aí está toda a história. O azeviche branco vem da Noruega,
o preto da Inglaterra e os vidrilhos pretos da Alemanha. O azeviche é mais leve, mais
precioso, mais caro. Na França, podem ser feitas imitações como na Alemanha. São
necessárias uma pequena bigorna, de duas polegadas quadradas, e uma espiriteira a álcool
para amolecer a cera. Antigamente, a cera era feita com resina e pó de carvão, custando
quatro francos a libra. Imaginei fazê-la de goma-laca e terebentina. Assim não custava mais
que trinta soldos, e ficava muito melhor. Os fechos são feitos com um vidro roxo, e são
colados por meio dessa cera sobre uma pequena armação de ferro preto. O vidro deve ser
roxo para a bijuteria de ferro e preto para a de ouro. A Espanha compra bastante desses
artigos. É o país do azeviche…”
“Senhor barão,
Se o Ser Supremo me houvesse dotado de talentos, eu poderia ter sido o barão de
Thénard, membro do Instituto (Academia das siências), porém não o sou. Tenho apenas o
mesmo nome que ele, e me dou por feliz se essa lembrança me recomendar à excelência de
sua bondade. O benefício com o qual o senhor poderá honrar-me será recíproco. Possuo um
segredo que diz respeito a um serto indivíduo. Esse indivíduo diz respeito ao senhor.
Conservo meu segredo à sua disposição, desejando ter a honra de lhe ser hutil. Vou lhe dar o
meio simples de espulsar de sua respeitavel família esse indivíduo que não tem direito,
sendo a senhora baronesa bem-nascida. O santuário da virtude não poderia coabitar por
muito mais tempo com o crime sem abdicar.
Aguardo na sala de espera as ordens do senhor barão.
Com respeito”.
Direção
MARTIN CLARET
Produção editorial
CAROLINA MARANI LIMA / FLÁVIA P. SILVA
Diagramação
GIOVANA GATTI LEONARDO
Ilustração de miolo
AZ, HISUNNYSKY, LOSW / SHUTTERSTOCK
Tradução e notas
REGINA CÉLIA DE OLIVEIRA
Revisão
GABRIEL F. RODRIGUES