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OS MISERÁVEIS

OS MISERÁVEIS
Victor Hugo

Les Misérables - 1862


Tradução feita a partir da edição
Le Livre de Poche-Classique
- LIBRAIRIE GÉNÉRALE -

Tradução e notas
REGINA CÉLIA DE OLIVEIRA

SÃO PAULO - BRASIL


EDITORA MARTIN CLARET
SUMÁRIO

Introdução

OS MISERÁVEIS

Prefácio de Victor Hugo

PRIMEIRA PARTE

FANTINE

I
LIVRO : UM JUSTO

I. O senhor Myriel
II. O senhor Myriel torna-se Monsenhor Bienvenu
III. Para bom bispo, bispado difícil
IV. Obras semelhantes às palavras
V. Como Monsenhor Bienvenu fazia suas batinas durarem muito
tempo
VI. Quem lhe guardava a casa
VII. Cravatte
VIII. Filosofia depois de beber
IX. Retrato do irmão feito pela irmã
X. O bispo em presença de uma luz desconhecida
XI. Uma restrição
XII. Solidão de Monsenhor Bienvenu
XIII. Em que acreditava
XIV. O que pensava

LIVRO II: A QUEDA


I. O fim de um dia de caminhada
II. A prudência aconselhada pela sabedoria
III. Heroísmo da obediência passiva
IV. Pormenores sobre as queijarias de Pontarlier
V. Tranquilidade
VI. Jean Valjean
VII. O interior do desespero
VIII. A onda e a sombra
IX. Novos agravos
X. O homem acordado
XI. O que ele faz
XII. O bispo trabalha
XIII. O pequeno Gervais

LIVRO III - NO ANO DE 1817


I. O ano de 1817
II. Duplo quarteto
III. Quatro a quatro
IV. Tholomyès está tão alegre que canta uma canção espanhola
V. No restaurante Bombarda
VI. Capítulo em que todos se adoram
VII. Sabedoria de Tholomyès
VIII. Morte de um cavalo
IX. Alegre fim da alegria

LIVRO IV - CONFIAR É, ÀS VEZES, ENTREGAR


I. Uma mãe encontra outra
II. Primeiro esboço de duas figuras suspeitas
III. A Cotovia

LIVRO V - A DECADÊNCIA
I. História de um progresso no ramo dos vidrilhos pretos
II. Madeleine
III. Somas depositadas no banco Laffitte
IV. O senhor Madeleine de luto
V. Vagos clarões no horizonte
VI. O Pai Fauchelevent
VII. Fauchelevent torna-se jardineiro em Paris
VIII. A senhora Victurnien despende trinta e cinco francos com a
moral
IX. Sucesso da senhora Victurnien
X. Continuação do sucesso
XI. Christus nos liberavit
XII. A ociosidade do senhor Bamatabois
XIII. Solução de algumas questões de polícia municipal

LIVRO VI - JAVERT
I. Início do repouso
II. Como Jean pode tornar-se Champ

LIVRO VII - O CASO CHAMPMATHIEU


I. A irmã Simplice
II. Perspicácia de Mestre Scaufflaire
III. Uma tempestade sob um crânio
IV. Formas que toma o sofrimento durante o sono
V. Criando dificuldades
VI. A irmã Simplice posta à prova
VII. O viajante que chegou toma suas precauções para partir
VIII. Entrada de favor
IX. Um lugar onde convicções vão sendo formadas
X. O sistema de negações
XI. Champmathieu cada vez mais espantado

LIVRO VIII - CONTRAGOLPE


I. Em que espelho o senhor Madeleine olha seus cabelos
II. Fantine feliz
III. Javert satisfeito
IV. A autoridade retoma seus direitos
V. Túmulo conveniente

SEGUNDA PARTE

COSETTE

LIVRO I - WATERLOO
I. O que se encontra vindo de Nivelles
II. Hougomont
III. O dia 18 de junho de 1815
IV. A
V. O quid obscurum das batalhas
VI. Quatro horas da tarde
VII. Napoleão de bom humor
VIII. O imperador faz uma pergunta ao guia Lacoste
IX. O inesperado
X. O planalto de Mont-Saint-Jean
XI. Mau guia para Napoleão, bom guia para Bulow
XII. A guarda
XIII. A catástrofe
XIV. O último esquadrão
XV. Cambronne
XVI. Quot libras in duce?
XVII. Deve-se achar que Waterloo foi bom?
XVIII. Recrudescência do direito divino
XIX. O campo de batalha à noite

LIVRO II - O NAVIO ORION


I. O número 24.601 torna-se o número 9.430
II. Onde serão lidos dois versos que talvez sejam do Diabo
III. Era preciso que a corrente tivesse passado por algum preparativo para ser quebrada
com uma só martelada

LIVRO III - CUMPRIMENTO DA PROMESSA FEITA À MORTA


I. A questão da água em Montfermeil
II. Dois retratos completados
III. É preciso vinho para os homens e água para os cavalos
IV. Entrada em cena de uma boneca
V. A pequena sozinha
VI. Em que talvez se prove a inteligência de Boulatruelle
VII. Cosette lado a lado, na escuridão, com o desconhecido
VIII. Desprazer de receber um pobre que talvez seja um rico
IX. Thénardier manobrando
X. Quem procura o melhor pode encontrar o pior
XI. Reaparece o número 9.430, e Cosette o ganha na loteria

LIVRO IV - O CASEBRE GORBEAU


I. Mestre Gorbeau
II. Ninho para coruja e passarinho
III. Duas infelicidades juntas fazem uma felicidade
IV. As observações da principal locatária
V. Uma moeda de cinco francos que cai no chão faz barulho

LIVRO V - PARA CAÇA NEGRA, MATILHA MUDA


I. Os ziguezagues da estratégia
II. Felizmente a ponte de Austerlitz comporta veículos
III. Ver o mapa de Paris de 1727
IV. As apalpadelas da evasão
V. Coisas que seriam impossíveis com a iluminação a gás
VI. Princípio de um enigma
VII. Continuação do enigma
VIII. O enigma redobra
IX. O homem do guizo
X. Onde é explicado como Javert não achou o que procurava

LIVRO VI - O PETIT-PICPUS
I. Viela Picpus, número 62
II. A obediência de Martin Verga
III. Severidades
IV. Alegrias
V. Distrações
VI. O pequeno convento
VII. Algumas silhuetas daquela sombra
VIII. Post corda lapides
IX. Um século sob um escapulário
X. Origem da Adoração Perpétua
XI. Fim do Petit-Picpus

LIVRO VII - PARÊNTESE


I. O convento, ideia abstrata
II. O convento, fato histórico
III. Em que condição pode-se respeitar o passado
IV. O convento do ponto de vista dos princípios
V. A oração
VI. Bondade absoluta da oração
VII. Precauções a tomar na censura
VIII. Fé, lei
LIVRO VIII - OS CEMITÉRIOS RECEBEM O QUE LHES DÃO
I. Em que é tratado o modo de entrar no convento
II. Fauchelevent em presença de dificuldades
III. Madre Innocente
IV. Em que Jean Valjean parece realmente ter lido Austin Castillejo
V. Não basta ser beberrão para ser imortal
VI. Entre quatro tábuas
VII. Onde se encontra a origem da expressão: ne pas perdre la carte
VIII. Interrogatório bem-sucedido
IX. Clausura

TERCEIRA PARTE

MARIUS

LIVRO I - PARIS ESTUDAVA EM SEUS ÁTOMOS


I. Parvulus
II. Alguns de seus sinais característicos
III. Ele é agradável
IV. Ele pode ser útil
V. Suas fronteiras
VI. Um pouco de história
VII. O moleque teria um lugar nas classificações da Índia
VIII. Onde será lida uma frase encantadora do último rei
IX. A velha alma da Gália
X. Ecce Paris, ecce homo
XI. Escarnecer, reinar
XII. O futuro latente no povo
XIII. O pequeno Gavroche

LIVRO II - O GRANDE BURGUÊS


I. Noventa anos e trinta e dois dentes
II. Tal dono, tal casa
III. Luc-Esprit
IV. Aspirante centenário
V. Basque e Nicolette
VI. Onde se entreveem Magnon e seus dois filhos
VII. Regra: não receber ninguém senão à noite
VIII. As duas não fazem um par

LIVRO III - O AVÔ E O NETO


I. Um antigo salão
II. Um dos espectros vermelhos daquele tempo
III. Requiescant
IV. Fim do bandido
V. A utilidade de ir à missa para tornar-se revolucionário
VI. O que significa ter encontrado um tesoureiro
VII. Algum rabo de saia
VIII. Mármore contra granito

LIVRO IV - OS AMIGOS DO ABC


I. Um grupo que quase se tornou histórico
II. Oração fúnebre de Blondeau, por Bossuet
III. As surpresas de Marius
IV. A sala de trás do Café Musain
V. Amplia-se o horizonte
VI. Res angusta

LIVRO V - EXCELÊNCIA DA DESGRAÇA


I. Marius indigente
II. Marius pobre
III. Marius crescido
IV. Senhor Mabeuf
V. Pobreza, boa vizinha da miséria
VI. O substituto

LIVRO VI - A CONJUNÇÃO DE DUAS ESTRELAS


I. O apelido: modo de formação dos nomes de família
II. Lux facta est
III. Efeito de primavera
IV. Princípio de uma grande doença
V. Vários raios caem sobre mame Bougon
VI. Feito prisioneiro
VII. Aventuras da letra U entregue às conjecturas
VIII. Mesmo os inválidos podem ser felizes
IX. Eclipse

LIVRO VII - PATRON-MINETTE


I. As minas e os mineiros
II. O bas-fond
III. Babet, Gueulemer, Claquesous e Montparnasse
IV. Composição do bando

LIVRO VIII - O MAU POBRE


I. Marius, procurando uma moça de chapéu, encontra um homem de
boné
II. Achado
III. Quadrifrons
IV. Uma rosa na miséria
V. O judas da Providência
VI. O homem selvagem no covil
VII. Estratégia e tática
VIII. Um raio de luz na espelunca
IX. Jondrette quase chora
X. Tarifa dos cabriolés de aluguel: dois francos por hora
XI. Oferta de serviços da miséria à dor
XII. Emprego da moeda de cinco francos do senhor Leblanc
XIII. Solus cum solo, in loco remoto, non cogitabuntur orare Pater
Noster
XIV. Em que um agente de polícia dá duas pistolas a um advogado
XV. Jondrette faz suas compras
XVI. Em que será encontrada a letra de uma ária inglesa na moda em
1832
XVII. Emprego da moeda de cinco francos de Marius
XVIII. As duas cadeiras de Marius frente a frente
XIX. Preocupações com coisas obscuras
XX. A cilada
XXI. Deve-se sempre começar por prender as vítimas
XXII. O pequeno que gritava em um dos capítulos precedentes

QUARTA PARTE

O IDÍLIO DA RUA PLUMET E A EPOPEIA DA RUA


SAINT-DENIS

LIVRO I - ALGUMAS PÁGINAS DA HISTÓRIA


I. Bem cortado
II. Mal costurado
III. Luís Filipe
IV. Fendas nos alicerces
V. Fatos que dão origem à história e que a história ignora
VI. Enjolras e seus tenentes

LIVRO II - ÉPONINE
I. Le Champ de l’Alouette — O Campo da Cotovia
II. Formação embrionária dos crimes na incubação das prisões
III. Aparição ao Pai Mabeuf
IV. Aparição a Marius

LIVRO III - A CASA DA RUA PLUMET


I. A casa secreta
II. Jean Valjean guarda nacional
III. Foliis ac frondibus
IV. Mudança de grade
V. A rosa descobre que é uma máquina de guerra
VI. A batalha começa
VII. Para tristeza, tristeza e meia
VIII. A corrente

LIVRO IV - SOCORRO DA TERRA PODE SER SOCORRO DO CÉU


I. Ferimento por fora, cura por dentro
II. Mãe Plutarque não fica embaraçada para explicar um fenômeno

LIVRO V - CUJO FIM NÃO SE ASSEMELHA AO COMEÇO


I. A solidão e a caserna combinadas
II. Medos de Cosette
III. Enriquecidos pelos comentários de Toussaint
IV. Um coração sob uma pedra
V. Cosette depois da carta
VI. Os velhos são feitos para sair oportunamente

LIVRO VI - O PEQUENO GAVROCHE


I. Maldosa travessura do vento
II. Em que o pequeno Gavroche tira partido de Napoleão, o Grande
III. As peripécias da evasão

LIVRO VII - A GÍRIA


I. Origem
II. Raízes
III. Gíria que chora e gíria que ri
IV. Os dois deveres: velar e esperar

LIVRO VIII - OS ENCANTOS E AS DESOLAÇÕES


I. Luz plena
II. O assombro da felicidade completa
III. Princípio de sombra
IV. Cab circula em inglês e ladra em gíria
V. Coisas da noite
VI. Marius volta a se tornar real a ponto de dar seu endereço a
Cosette
VII. Um velho coração em presença de um jovem coração

LIVRO IX - PARA ONDE VÃO ELES?


I. Jean Valjean
II. Marius
III. Senhor Mabeuf

LIVRO X - 5 DE JUNHO DE 1832


I. A superfície da questão
II. O fundo da questão
III. Um enterro: ocasião de renascer
IV. As efervescências de outrora
V. Originalidade de Paris

LIVRO XI - O ÁTOMO FRATERNIZA COM A TEMPESTADE


I. Alguns esclarecimentos sobre as origens da poesia de Gavroche.
Influência de um acadêmico sobre essa poesia
II. Gavroche em marcha
III. Justa indignação de um cabeleireiro
IV. A criança se admira com o velho
V. O velho
VI. Recrutas

LIVRO XII - CORINTHE


I. História da Corinthe desde sua fundação
II. Alegrias preliminares
III. A escuridão começa a se fazer sobre Grantaire
IV. Tentativa de consolo da viúva Hucheloup
V. Os preparativos
VI. Esperando
VII. O homem recrutado na rua des Billettes
VIII. Vários pontos de interrogação a respeito de um certo Le Cabuc que talvez não se
chamasse Le Cabuc

LIVRO XIII - MARIUS ENTRA NA SOMBRA


I. Da rua Plumet ao bairro Saint-Denis
II. Paris em voo de coruja
III. O limite extremo

LIVRO XIV — AS GRANDEZAS DO DESESPERO

I. A bandeira — Primeiro ato


II. A bandeira — Segundo ato
III. Gavroche teria feito melhor se aceitasse a carabina de Enjolras
IV. O barril de pólvora
V. Fim dos versos de Jean Prouvaire
VI. A agonia da morte depois da agonia da vida
VII. Gavroche, profundo calculador de distâncias

LIVRO XV - A RUA DE L’HOMME-ARMÉ


I. Buvard, bavard
II. O menino inimigo das luzes
III. Enquanto Cosette e Toussaint dormem
IV. Os excessos de zelo de Gavroche

QUINTA PARTE

JEAN VALJEAN

LIVRO I - A GUERRA ENTRE QUATRO PAREDES


I. O Caríbdis do subúrbio Saint-Antoine e a Cila do subúrbio du
Temple
II. Que fazer no abismo senão conversar
III. Clarear e ensombrecer
IV. Cinco a menos, um a mais
V. Que horizonte se avista do alto da barricada
VI. Marius alheio, Javert lacônico
VII. A situação se agrava
VIII. Os artilheiros fazem-se levar a sério
IX. Emprego do velho talento de caçador furtivo e da pontaria infalível que influiu na
condenação de 1796
X. Aurora
XI. O tiro de espingarda infalível mas que não matou ninguém
XII. A desordem partidária da ordem
XIII. Clarões que passam
XIV. Onde será lido o nome da amante de Enjolras
XV. Gavroche de fora
XVI. Como de irmão é possível transformar-se em pai
XVII. Mortuus pater filium moriturum expectat
XVIII. O abutre transformado em presa
XIX. Jean Valjean se vinga
XX. Os mortos têm razão e os vivos não estão errados
XXI. Os heróis
XXII. Palmo a palmo
XXIII. Orestes em jejum e Pílades embriagado
XXIV. Prisioneiro
LIVRO II - O INTESTINO DE LEVIATÃ
I. A terra empobrecida pelo mar
II. História antiga do esgoto
III. Bruneseau
IV. Detalhes ignorados
V. Progresso atual
VI. Progresso futuro

LIVRO III - A LAMA, MAS A ALMA


I. A cloaca e suas surpresas
II. Explicação
III. O homem perseguido
IV. Ele também carrega sua cruz
V. Para a areia, assim como para a mulher, há uma fineza que é
pérfida
VI. O fontis
VII. Às vezes naufragamos onde acreditamos desembarcar
VIII. A aba do casaco rasgada
IX. Marius aparenta estar morto para alguém entendido no assunto
X. Volta do filho pródigo, nunca mais
XI. Abalo no absoluto
XII. O avô

LIVRO IV - JAVERT SEM RUMO


LIVRO V - O NETO E O AVÔ
I. Em que se volta a ver a árvore da chapa de zinco
II. Marius, saindo da guerra civil, prepara-se para a guerra doméstica
III. Marius ataca
IV. A senhorita Gillenormand acabou por não mais achar ruim que o senhor Fauchelevent
entrasse com alguma coisa embaixo do braço
V. De preferência, deposite seu dinheiro em uma floresta, e não com um tabelião
VI. Os dois velhos fazem de tudo, cada um a seu modo, para que Cosette seja feliz
VII. Os efeitos de sonho entremeados à felicidade
VIII. Dois homens impossíveis de encontrar

LIVRO VI - A NOITE EM CLARO


I. 16 de fevereiro de 1833
II. Jean Valjean continua com o braço na tipoia
III. A inseparável
IV. Immortale jecur

LIVRO VII - O ÚLTIMO GOLE DO CÁLICE


I. O sétimo círculo e o oitavo céu
II. As obscuridades que uma revelação pode conter

LIVRO VIII – A DIMINUIÇÃO CREPUSCULAR

I. A sala de baixo
II. Outros passos para trás
III. Eles se recordam do jardim da rua Plumet
IV. A atração e a extinção

LIVRO IX - SUPREMA SOMBRA, SUPREMA AURORA


I. Compaixão para os desgraçados, mas indulgência para os felizes
II. Últimas palpitações da lâmpada sem óleo
III. Uma pluma é pesada para quem já levantou a carroça de
Fauchelevent
IV. Tinteiro que consegue apenas embranquecer
V. Noite, após a qual vem o dia
VI. A relva esconde e a chuva apaga

SOBRE A TRADUTORA
A PENA DE VICTOR HUGO EM OS
MISERÁVEIS: ROMANCE
HISTORIOGRÁFICO E REPARAÇÃO
SOCIAL
Jean Pierre Chauvin1

Derrubemos a golpes de martelo as teorias, as poéticas e os


sistemas. Atiremos por terra o velho revestimento de
estuque que mascara a fachada da arte! (VICTOR HUGO)2

O HOMEM
O FRANCÊS VICTOR-MARIE HUGO (1802 – 1885) tinha vinte e nove
anos quando O corcunda de Notre-Dame foi editado; e sessenta quando Os
miseráveis foi lançado, em maio de 1862.
Publicada por uma editora sediada na Bélgica (A. Lacroix,
Verboeckhoven & Cie), a obra contou com uma intensa divulgação, com
meses de antecedência, promovida substancialmente por intermédio dos
antigos reclames:3 anúncios publicitários em jornais, nas seções
reservadas a crônicas ou folhetins.
Em termos comerciais e culturais, tratava-se de um feito
extraordinário, àquela altura, tendo em vista o alcance e os meios
relativamente limitados com que os livros eram divulgados, especialmente
na imprensa. O autor testemunhou uma verdadeira revolução no próprio
modo de se divulgar uma obra literária, neste caso, com pendão para o
drama e a história.
De início, apenas a primeira parte do livro (Fantine) foi
estrategicamente colocada em circulação, semeada em diversas cidades da
França. O título vendeu enorme quantidade em questão de dias, o que
revelava o poder da imprensa e o alcance do romance, uma das obras mais
conhecidas do autor.
Desde então, o nome de Victor Hugo passou a ser associado ao
consumo de literatura pela massa, possivelmente devido ao tema (de
feição moral), e em função da linguagem (à época, considerada popular)
empregada pelo escritor.
Hugo foi um polígrafo, no amplo sentido do termo. Além de influente
político em seu tempo, dedicou-se ao teatro, à poesia, ao romance e ao
gênero memorialístico. Ele também tinha talento para o desenho e a
pintura. Tratava-se de um homem erudito e profundo conhecedor da
história de seu país; respeitado também como crítico literário, e que se
tornou o porta-voz dos escritores românticos.
Um de seus textos mais conhecidos é o prefácio que escreveu para
Cromwell, peça teatral de sua autoria publicada em 1827, com que estreia
na dramaturgia. Naquela ocasião, ele tinha vinte e cinco anos e alguns
livros de poesia, que já ultrapassavam as fronteiras de seu país. Franco
defensor da liberdade formal, o escritor atacava os adeptos do
Classicismo, ainda em vigor na França.
A combinação de gêneros, em um mesmo e volumoso livro de teor
predominantemente ficcional, como é o caso de Os miseráveis, parece
responder aos anseios do próprio poeta, dramaturgo e romancista, que
desde muito jovem defendia a liberdade de composição ficcional e se
mostrava em desacordo com as teorias a respeito da distinção dos gêneros
(lírico, épico, dramático), proposta pelos antigos greco-latinos,
especialmente a partir de Aristóteles (384 – 322 a.C.)
A relevância de sua obra, que não se restringia ao seu país de origem,
foi enorme, possivelmente também em função de seu posicionamento nas
letras e na esfera pública. Vale recordar que o autor foi um severo
contestador do Império de Napoleão III, o que lhe valeu o auto-exílio, em
Guernsey — território da Coroa Britânica, já naquele tempo.
O episódio é sobremodo conhecido e beira o extraordinário. Hugo
deixou Paris em 3 dezembro de 1851, no dia seguinte ao golpe de estado
impetrado por Luís, sobrinho do antigo imperador Napoleão I. Lá ele
permaneceria por quase duas décadas, o que, de acordo com seus
biógrafos,4 teria possibilitado que concluísse a redação de Os miseráveis,
inclusive.
O poeta Manuel Bandeira5 registrou o fato de o escritor ter regressado
“a Paris depois da queda de Napoleão III”, em 1870, tendo sido “eleito
para a Assembléia Nacional”, onde se converteu “numa espécie de ídolo
da democracia”.
Deputado vinculado à Segunda República, após a volta do exílio, na
década de 1870, Victor Hugo foi eleito Senador. Há notícia de que cerca de
dois milhões de habitantes teriam seguido o seu enterro (ROBB, 2000).
Em 1885, sua “morte (…) provocou um luto universal; seu enterro foi uma
apoteose, e o corpo esteve sob o Arco do Triunfo antes de ser conduzido ao
Pantheon”. (BANDEIRA, 1946, p. 100)
No Brasil, pelo menos três leitores de sua obra se deixaram contagiar
vivamente pelo diálogo com os seus poemas, artigos, peças teatrais e
romances: o político, orador e escritor cearense José Martiniano de
Alencar (1829 – 1877); o advogado e poeta baiano Antônio Frederico de
Castro Alves (1847 – 1871), ambos ligados ao Romantismo; e o escritor e
carioca Joaquim Maria Machado de Assis (1839 – 1908), considerado
nosso maior escritor do século XIX.

A OBRA
Os miseráveis provavelmente seja uma das narrativas mais extensas e
populares do Ocidente, dentre aquelas publicadas em seu tempo. Esta
informação é especialmente digna de nota, tendo-se em vista que o livro
foi lançado em etapas distintas.
Nos anos que se seguiram ao estrondoso êxito de vendas, na França
(1862), costumeiramente as numerosas edições da obra em língua
portuguesa traziam o romance dividido em alguns volumes.
As versões destinadas ao público brasileiro indicam que esta tendência
se manteve, a exemplo da edição de 1957, organizada pela Editora das
Américas, em sete tomos; a edição de 1962, capitaneada pela Edigraf, com
três volumes; e a presente reedição, a cargo da Martin Claret, que reuniu
os volumes nesta edição especial.
O romance estrutura-se em cinco “Partes”. A “Primeira” [Fantine], a
“Segunda” [Cosette] e a “Terceira” [Marius] contêm oito livros, cada. A
“Quarta” [S. Diniz], ocupa quinze livros; e a final, “Quinta” [Jean
Valjean], apresenta outros nove.
Ao leitor de nossos dias, cabe o alerta quanto às seções em que a obra
está dividida. O termo livro é uma denominação de teor clássico,
vinculada, originalmente, aos tratados de Retórica, Filosofia, História,
Matemática e Ciências, legados pelos pensadores greco-latinos da
Antiguidade.
A Bíblia católica, para mencionar outro exemplo milenar e conhecido
universalmente, está agrupada de maneira relativamente similar. Os livros
que nomeiam as Escrituras preservam a mesma denominação, com o
intuito de facilitar o agrupamento dos textos reunidos no Antigo e Novo
Testamento.
Seria interessante ponderar o fato de Victor Hugo ter concebido tal
estrutura para a obra — com a ajuda, ou não, dos editores belgas. Seria o
resultado algo, até certo ponto, usual, decorrente de uma longa tradição de
edições com o mesmo formato? A disposição dos capítulos do romance
residiria, por outro lado, em uma maneira de obter máxima coerência entre
o teor moralizante do livro e o seu propósito didático?
Ora, na forma como a obra está organizada, a ordenação de suas
“partes”, “livros” e “capítulos” tanto permite obedecer a linearidade
narrativa, quanto possibilita que o leitor retome a leitura, em caráter
pontual, dedicando novo olhar a respeito de determinados episódios de sua
preferência.
O propósito didático do romance pode ter aproximado ainda mais o
escritor de seu público. Vale lembrar que Hugo passou a maior parte da
vida lutando pelos ideais libertários, durante o turbulento cenário cultural
e político vivenciado pela França pós-napoleônica. Ele falava em nome do
povo, de si mesmo e dos demais escritores românticos. Razão pela qual os
manuais de história da literatura são unânimes em veicular a imagem de
um escritor coerente com os ideais que defendia em sua longa carreira
pública.
No âmbito da linguagem empregada no romance, é particularmente
interessante observar que, em muitos momentos, os episódios de Os
miseráveis se aproximam de um franco lirismo, tipicamente romântico,
como reparou Otto Maria Carpeaux.6
À primeira vista, a dicção hugoana revela um aparente contraste com o
formato clássico do próprio gênero em que o romance estava inserido. No
entanto, o teor da história vivida por Jean Valjean desfaz rapidamente uma
eventual confusão entre forma, expressão e conteúdo.
Um sinal disso está no fato de o enredo não se restringir ao caráter
exclusivamente romanesco. Em determinados capítulos, parecemos tomar
contato com um autêntico tratado sobre os vícios e virtudes,
contabilizados por personagens enigmáticos, sob a voz de um narrador
onisciente, que de tudo e todos sabe: tanto dos indivíduos quanto do
contexto social que os cerca.
O fato de Victor Hugo ter sido grande conhecedor da história de seu
país certamente é algo que se deveu ou consolidou durante sua extensa
carreira como deputado e senador. Escrito em um longo período de tempo,
o tom romanesco da obra frequentemente se aproxima da linguagem de
um verdadeiro manual de história do cotidiano — vide os detalhes
testemunhados pelo próprio autor —, deslocando Os miseráveis para além
do plano estanque, fixo ou estável da pura ficção.
No que diz respeito ao enredo, trata-se de um extenso e prazeroso
universo que, a despeito do apelo popular, revela várias marcas da
erudição hugoana. Em meio à variedade de cores, lugares, situações e
personagens, a pena de Victor Hugo ora resvala para o dado histórico, ora
para o ficcional; ora estamos diante de um romance tradicional de matriz
épica; ora, diante de cenas cândidas, aderentes ao lirismo romântico.
Como não nos sensibilizarmos com a figura do bispo Myriel de Digne,
em sua sublime generosidade e bondade, na condição de homem religioso?
A primeira seção do romance, que gira em torno da sofrida biografia de
Jean Valjean, segue até a acolhida de Fantine: uma ex-prostituta que
deixara a filha Cosette com outra família, por absoluta falta de condições
financeiras.
À medida que a história avança, acompanhamos a aproximação entre
Valjean e a filha de Fantine. Durante o período em que residem em Paris,
Jean e Cosette vivem como pai e filha — uma belíssima relação de
empréstimo que serve a contrastar vivamente com os olhos frios, duros e
afiados de Javert — o implacável inspetor de polícia que vive no encalço
do antigo prisioneiro.
Para além da angústia provocada pela severa perseguição ao
protagonista, deve-se lembrar a figura de Thérnardier, cujas ações são
presenciadas por Marius. Eis aqui um novo antagonismo, por obra dos
coadjuvantes, que parece reproduzir em escala menor os dissabores
sofridos pelo protagonista, quase sempre ao alcance das mãos do inspetor.
Vale relembrar o desejo indisfarçável do escritor em imiscuir uma
quantidade considerável de elementos de matiz histórico em meio às
peripécias de suas criaturas. Na terceira seção do romance, em que
deparamos com o personagem Marius, há, inclusive uma detalhada
explicação a respeito do sargent de ville — figura comum em Paris, na
época em que o romance foi publicado, por sinal.
A menção direta às características e atribuições deste sargento da
cidade (ou comissário local, em uma tradução menos literal da expressão)
colabora com a impressão, por parte do leitor, de que Jean Valjean, Fantine
e Cosette são criaturas desamparadas que parecem ter brotado do mundo
real, mas alçadas a uma segunda chance, no plano da fábula, e sob o juízo
de um leitor em seu favor.
Nesta e em outras ocasiões, o narrador veste a máscara de historiador e
se dirige ao leitor empírico, o que contribui para uma sobreposição de
papéis, como se o propósito do livro fosse extrapolar o plano da narração.
Seria uma pura ficção? Victor Hugo falaria conosco pela voz de seu
narrador?
De uma coisa podemos nos certificar: a narração em terceira pessoa
seria um artifício bastante adequado para, simultaneamente, conceder
maior liberdade formal ao livro, sem que o escritor precisasse abandonar
algumas das convenções inerentes ao gênero composicional.
Dado o forte componente moral do romance, o leitor é conduzido ao
longo da narrativa a adotar o ponto de vista do narrador, em sua franca
benevolência com relação às densas e dramáticas criaturas que compõem
aquele universo.
Provavelmente por esse mesmo motivo, em recente leitura sobre a
obra, o filósofo e historiador Renato Janine Ribeiro7 fizesse alusão ao
caráter solidário, embutido nas mensagens transmitidas pelo escritor, sob
a forma de episódios pautados pelo sofrimento e caracterizados pela
penúria material e pela iniquidade social, que vitimam os personagens.
O romance parece traduzir o apelo autoral da esfera empírica para o
plano da ficção. Estaríamos perante uma demanda de Victor Hugo para que
atentássemos para a miséria dos homens, naquele momento histórico?
Ao mesmo tempo em que comunica detalhadamente a feição e o
destino vivenciado pelas personagens, a intriga está de tal forma arraigada
às criaturas que precisamos estabelecer um movimento constante, para
além de nosso costumeiro papel de leitores passivos.
Talvez assim, possamos encarar as mazelas vivenciadas por aquelas
criaturas, como uma experiência que não se pode repetir, nem mesmo em
termos históricos.
Ora, tendo em vista o caráter moralizante e didático do livro;
considerando-se a característica híbrida desta obra, a oscilar entre a ficção
e a realidade de um determinado tempo e espaço, a literatura revela-se,
como poucas vezes, uma possibilidade edificante. Sob esse aspecto, não se
trata de ler meramente para passar o tempo, mas para municiarmos a nós
mesmos, sob o respaldo do ingrediente romanesco.
Dir-se-ia que esta obra pretende demover o leitor de seu confortável
espaldar, sorvendo o seu café, ao abrigo das intempéries que acontecem
nas ruas. O narrador está à beira de sugerir que se tome alguma atitude,
com o fito de minorar as dificuldades enfrentadas por aqueles que não
frequentam os mesmos ambientes que os próprios leitores, aliás.
No plano da expressão, o ritmo ondulante da narrativa — rica em idas
e vindas; encontros e desencontros; fugas e rara calmaria, casa-se à
instabilidade emocional dos personagens. Talvez por essa razão, o enredo
contraponha generosas descrições de ambientes a situações pautadas por
sequências inquietantes que beiram episódios de feição épica: talvez, a
vocação principal do livro, não por acaso considerado um dos maiores
clássicos da literatura mundial.
Da mesma forma, o enredo sugere muitas imagens ao leitor, o que
pode levá-lo a registrar e fixar afetivamente e na memória uma série de
eventos, como se estivesse a assistir à representação do texto em uma peça
teatral de teor universal, mas crivo particular.
Não parece ser por acaso que o romance tenha sido adaptado para
dezenas de versões, tanto no teatro, quanto no cinema e na televisão.
Afinal, a trajetória de Jean Valjean é fortemente marcada pelo elemento
pictórico. A esse respeito, seria oportuno assistir à excelente série de tevê
veiculada em 2002, com a participação de Gérard Depardieu e John
Malkovich, respectivamente nos papéis de Jean Valjean e Javert.
Dentre alguns fatos, direta ou indiretamente relacionados a este
notável romance, a versão musical de Os miseráveis, que estreou na
Broadway em 1987, ultrapassou a impressionante marca de mais de seis
mil e quinhentas apresentações.
Referência literária bastante conhecida por parte dos portugueses e
brasileiros, em meados do século XIX, os ecos da obra hugoana chegaram
e se espalharam pelo país, recém independente, talvez especialmente em
função da força com que éramos contagiados culturalmente pela literatura
francesa e os ideais libertários que perpassavam as obras que aqui
chegavam.
Para o historiador Otto Maria Carpeaux, “a obra de Hugo é um
universo literário, compreendendo todos os gêneros. Mas Hugo parece
sempre poeta lírico.” (2012, p. 302). O fato é que o autor tornou-se uma
das maiores vozes do Romantismo ocidental, representado especialmente
pela Europa, naquele tempo.
Vale relembrar a configuração geral da escola literária, na Europa, para
melhor entender o seu alcance. Segundo Alfredo Bosi:8

Na França, a partir de 1820, e na Alemanha e na Inglaterra, desde os fins do século


XVIII, uma nova escritura substituíra os códigos clássicos em nome da liberdade criadora do
sujeito. As liberações fizeram-se em várias frentes. Caiu primeiro a mitologia grega (…) O
martelo, augurado por Victor Hugo no prefácio do Cromwell, põe abaixo todas as
convenções, começando pela vetusta lei das três unidades que os tráficos da Renascença
haviam tomado a Aristóteles. (2001, p. 96)

Evidentemente, o influxo provocado pela recepção à obra dos


românticos por aqui, foi grandemente favorecido pela cultura média
letrada urbana, e em ascensão, que se habituava à leitura periódica dos
jornais. José Ramos Tinhorão9 destacou o fato de que:

Os romances de folhetim, quase sempre traduzidos do francês, começaram a ser


publicados com regularidade, em jornais brasileiros, principalmente no Rio de Janeiro, ainda
na década de 1830. Um dos introdutores do novo gênero — e a quem, por sinal se iam
dever as traduções de O conde de Monte Cristo, em 1845, e Os miseráveis, em 1862 — foi
o jornalista conservador Justiniano José da Rocha. (1994, p. 29)

Aos olhos do leitor de nosso tempo — um período histórico em que a


literatura vem sendo amplamente divulgada por intermédio do hipertexto,
dos multi-meios e dos aparatos eletrônicos e digitais —, pode soar algo
estranho que o livro compartilhasse, naquele tempo, de estatuto similar
aos jornais e revistas — veículos de orientação naturalmente diversa e
duração sabidamente efêmera.
O próprio Tinhorão faz uma ressalva importante a esse respeito, uma
vez que: (…) nem sempre os folhetins foram considerados subliteratura e,
em seu tempo, muitos autores de romances de rodapé de jornal alcançaram
fama e respeito. (1994, p. 31)

RECEPÇÃO DE V ICTOR H UGO NO BRASIL


No Brasil, tanto os escritores românticos, quanto os realistas
mostravam-se admiradores e, em alguns casos, devedores da obra do autor
francês. Eugênio Gomes10 resgatou o relevante testemunho de José de
Alencar, a respeito das matrizes francesas que tanto o inspiraram a compor
os seus livros:

A escola francesa, que eu então estudava nesses mestres da moderna literatura, achava-
me preparado para ela. O molde do romance, qual mo havia revelado por mera casualidade
aquele arrojo de criança a tecer uma novela com os fios de uma aventura real, fui encontrá-
la fundido com a elegância e beleza que jamais lhe poderia dar. (ALENCAR Apud GOMES,
1958, p. 19)

As obras de Victor Hugo circularam desde relativamente cedo, entre


nós, a princípio entre poetas. Antonio Candido11 relembra, também a
respeito de Alencar, que:

(…) [o seu] desejo de escrever romances veio por duas etapas (…). Aos quinze anos, em
São Paulo, ainda estudante de preparatórios, lendo Chateaubriand, Dumas, Vigny, Hugo,
Balzac, imagina um livro que fosse, como o dos franceses, um “poema da vida real”. (2000,
p. 200)

A obra hugoana é bastante sintomática de uma nova concepção de


mundo pós-revolucionário, assinalado pela tomada da Bastilha, ao final do
século XVIII. Tratava-se de um momento histórico em que contava e
pesava a novíssima categoria de originalidade, em lugar da retomada de
modelos clássicos, como observou João Adolfo Hansen (1992).12
O ineditismo da obra torna-se índice de valoração. Substitui-se a
manutenção dos autores do passado, considerados exemplares, pela
capacidade do escritor de se fazer inaugural. Entra em jogo uma
concepção radical, em termos culturais, representada pela instância
autoral.
O escritor acumula à sua identidade, uma persona que passa a escrever.
Por isso, cria narradores e personagens inseridos em tramas pautadas ora
pelo individualismo, ora pela motivação de ordem historiográfica e caráter
coletivo, ligado ao popular.
Pressupondo-se a desejável maior liberdade formal, em verso e prosa,
o escritor empenhava-se no reposicionamento de si mesmo: indivíduo
criador e emancipado também em função da literatura. No sentido
moderno, autor é um termo que veio a ganhar ampla adesão justamente
com o Romantismo, substituindo o até então chamado letrado ou homem
de letras.
Dito de outro modo, o fator subjetivo sugeria, em tese, uma maior
coesão entre escritor, obra e público. Tratava-se de uma série de
procedimentos, no plano político, social e cultural, que alteraram
sensivelmente o paradigma classicista, que estimulava, desde o
Renascimento, a imitação (ou, quando muito, a emulação) dos escritores
de tempos predecessores.
Logo, a virada do século XVIII para o XIX mostrou algo bem
diferente, radical, considerando-se o que a história e a filosofia
testemunhavam até aquele momento. No Brasil, as notícias chegavam a
vapor: “O Romantismo francês — que vai atingir sua expressão mais forte
por volta de 1840 — se define no Brasil pelo canto do poeta, no romance,
no teatro. A literatura deixara de ser um reflexo das letras portuguesas.”
(RENAULT, 1984, p. 196)13
A assunção da subjetividade se devia grandemente a uma concepção de
mundo que passava pela vida na cidade: território em que o indivíduo,
ainda que tolhido pelo relógio ou pelo trabalho regrado, alimentava o
desejo de se expandir.
Ele poderia evadir não necessariamente para o campo, mas para dentro
de si mesmo. Ronald de Carvalho14 sintetizou bem aquela nova percepção
dos homens em geral:

O romantismo, segundo seus filósofos, os seus críticos e os seus historiadores, representa


a vitória do indivíduo sobre a disciplina moral e intelectual do classicismo, que transformara
a cultura humana, desde o século XVI, num jogo de princípios invariáveis e regras
inflexíveis, dentro dos quais o espírito se movia com dificuldade, e quase sem autonomia.
(1968, p. 205)

Claro esteja: a influência de Victor Hugo, entre os escritores


brasileiros, não se limitou à prosa. José Guilherme Merquior15 foi um dos
primeiros a evidenciar a filiação de Castro Alves à poesia de tom
libertário, legada pelo escritor:

A partir de 1860, a poesia oratória de temas político-sociais, hipnotizada pela eloquência


versificada do Victor Hugo de Les Châtiments (1853), receberá da Guerra do Paraguai e,
sobretudo, da campanha abolicionista estímulos decisivos. (1996, p. 128)

A leitura do historiador Fausto Cunha16 reforça a hipótese do crítico:

(…) o que vai caracterizar essencialmente a década de 1860-70 é o surto do


hugoanismo. Após a hegemonia de Lamartine, de Musset, Victor Hugo passa ao primeiro
plano (…) Foi um estado de espírito, em sintonia com a fermentação do Brasil naquela
etapa. Sua luta contra Napoleão III era, para quase todos os nossos poetas republicanos, ou
apenas antimonárquicos, o canhão que deveria derrubar o trono de Pedro II. Um dos últimos
românticos, Luís Murat, transformaria Hugo em profeta de uma nova religião. (1971, p. 19)

Não parece haver motivo para duvidar que os romances franceses


encontravam, em nosso país, um clima bastante propício à sua leitura e
disseminação. As traduções de Victor Hugo foram copiosas e incluem o
nome do Imperador Dom Pedro II e Machado de Assis — que verteu, entre
nós inédito, o romance Les travailleurs de la mer (1866) para o Português.
Cabe a observação, no entanto, de que nosso apreço em relação aos
franceses advinha de um componente híbrido, como resultado da
afirmação da identidade nacional e da independência cultural e política,
frente a Portugal.

O romantismo no Brasil não foi contemporâneo ao da França, embora as novidades


vindas de Paris fossem avidamente esperadas por uma sociedade ansiosa por se libertar da
influência da metrópole portuguesa e adaptar-se velozmente aos modelos culturais
franceses. (CALLIPO, 2010, p. 29)17

Outro dado que se revelou bastante favorável à divulgação da obra


hugoana entre os brasileiros se devia ao gosto dos leitores pelo tom
historiográfico que se percebe na obra do escritor. A poesia e o romance de
Victor Hugo eram consumidos por considerável número de admiradores:
leitores tornados cativos, e para quem o nome do autor tornava-se
referência para toda ocasião.
A exemplo do que sucedeu na França, não só ou exclusivamente os
jornalistas, advogados ou letrados da corte tiveram acesso à obra hugoana.
É que a assimilação do modelo francês, em vestes, revistas e livros, pode
estar na base, inclusive, da migração do chamado romance histórico
francês para as letras nacionais. José Veríssimo18 defendia, há muito, a
ideia de que:

A inclinação dos românticos aos estudos históricos foi uma, e talvez a melhor das
manifestações do sentimento patriótico que aqui se gerou da Independência. Deu-lhe corpo,
estimulou-a, favoreceu-a a criação do Instituto Histórico, onde se procurou assídua e
zelosamente estudar a nossa história, menos talvez por curiosidade e amor de sabê-la que
por, mediante ela, justificar e exaltar aquele sentimento. (1963, p. 199)

Ora, nem só os escritores adeptos do Romantismo admiravam a obra


de Victor Hugo. As pesquisas de Jean-Michel Massa (de 1960 e 2000),
Gilberto Pinheiro Passos (2000)19 e a já citada Daniela Mantarro Callipo
(2010) mostram que Machado de Assis era um ávido leitor dos europeus, o
que explicaria as recorrentes alusões aos pensadores e escritores da banda
de lá do Oceano Atlântico.
A proporção de livros de sua biblioteca revela que mais da metade de
seu acervo pessoal se constituía de livros de títulos franceses, com
manifesta predileção por alguns autores, como parecia ser o caso de Victor
Hugo. (MASSA, 2001).
Podem-se encontrar diversas peças e poemas traduzidos por Machado;
contos e romances, cujas personagens reproduzem o discurso político e
imitam a moda parisiense, com referências inclusive a Napoleão III
(PASSOS, 2000). Cumpre lembrar que o sobrinho de Napoleão I era um
sério desafeto de Victor Hugo.
Talvez valesse a pena relermos Quincas Borba (1890): romance em
que Machado conduz o ex-professor Rubião a imitar a figura de Napoleão
I, também como sinal da acelerada demência do personagem. Seria este
um aval machadiano, ainda que no plano da ficção, ao posicionamento de
Victor Hugo, em sua luta no plano político contra o polêmico líder
francês?
O diálogo de Machado com a obra hugoana pode ser explicado de
várias formas, como se percebe nas mais de seiscentas crônicas compostas
pelo brasileiro, em décadas de colaboração na imprensa carioca. O contato
inicial pode ter se dado pelo intermédio da poesia:
(…) visto ser leitor de Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo e Gonçalves de Magalhães,
foi-lhe possível, por meio das epígrafes utilizadas nos poemas desses românticos, ter acesso
a versos célebres, como as de Lamartine, Vigny e, certamente, de Victor Hugo. A amizade
com Charles Ribeyrolles e a leitura da obra de Eugene Pelletran fortaleceram os laços com a
cultura da França. (CALLIPO, 2010, p. 24)

Como se vê, havia por parte dos escritores brasileiros uma espécie de
alinhamento cultural e, em certa medida ideológico, com a obra hugoana.
Dessa perspectiva, pode-se afirmar que, além de terem homenageado um
escritor de sua predileção, Alencar, Castro Alves e Machado auxiliaram a
amplificar os efeitos e a preservar a numerosa produção do romancista
francês entre nós.
Enfim, partamos para a viagem. A partir de agora, o leitor tem a
oportunidade de acompanhar o percurso de Jean Valjean, Fantine e
Cosette, em sua verdadeira peregrinação por entre o rigor da lei,
personificada no inspetor Javert; o oportunismo perverso de Thérnardier; e
a covardia de um bando de personagens anônimos, indiferentes às agruras
de nossos heróis.
Felizmente, o bispo de Myriel estará por lá para conceder o necessário
consolo espiritual. Logo às primeiras páginas, ele estenderá um comovente
apelo, de modo que a leitura do romance será muito mais que um
passatempo. Afinal, estamos diante de uma poderosa denúncia. Em forma
de ficção, é claro.

__________________________
1 Pesquisador de Pós-Doutorado, junto ao Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, na
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. Autor de O Alienista: a
teoria dos contrastes em Machado de Assis (2005), entre outros. É afiliado à União Brasileira de
Escritores.
2 “Prefácio” do escritor francês à sua peça teatral Cromwell, de 1827 (apud Álvaro Cardoso
Gomes; Carlos Alberto Vechi. A estética romântica: textos doutrinários comentados. São Paulo:
Editora Atlas, 1992, p. 118).
3 O termo, originário do francês, poderia ser traduzido literalmente, e sem se perder o sentido
original, de clamar duas vezes (re-clame), em português. Ainda no final do século XIX, a palavra
publicidade tomou o seu lugar, com o advento da chamada Imprensa Moderna.
4 Vejam-se as obras de André Maurois. Olympio ou la vie de Victor Hugo. Paris: Hachette,
1954; Jean-Bertrand Marie Barrère. Victor-Hugo, l’homme et l’oeuvre. Paris: CDU, 1984; Graham
Robb. Victor Hugo — uma biografia. Trad. Alda Porto. Rio de Janeiro: Record, 2000; e a edição
ilustrada de Carneiro Leão: Victor Hugo no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1960.
5 Manuel Bandeira. Noções de história das literaturas. 3 a ed. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1946.
6 Otto Maria Carpeaux. O Romantismo por Carpeaux. Rio de Janeiro: Editora Leya, 2012.
Volume 6. [Trata-se da re-edição de A história da literatura ocidental, também em dez volumes,
publicada originalmente por Carpeaux em 1959.]
7 Refiro-me à “Apresentação” constante da edição em dois volumes de: Victor Hugo. Os

miseráveis. 4 a ed. São Paulo: Cosac Naify, 2012 — traduzida por Frederico Ozanam Pessoa de
Barros.
8 Alfredo Bosi. História concisa da literatura brasileira. 39 a ed. São Paulo: Cultrix, 2001.
9 José Ramos Tinhorão. Os romances em folhetins no Brasil (1830 à atualidade). São Paulo:
Livraria Duas Cidades, 1994.
10 Eugênio Gomes. Aspectos do romance brasileiro. Salvador: Livraria Progresso Editora,
1958.
11 Antonio Candido. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 9 a ed. Belo
Horizonte: Editora Itatiaia. Vol 2, 2000.
12 João Adolfo Hansen. Autor. In: JOBIM, José Luís. Palavras da crítica. Rio de Janeiro:
Imago, 1992.
13 Delso Renault. O Rio antigo nos anúncios de jornais. Rio de Janeiro: Editora Francisco
Alves, 1984.
14 Ronald de Carvalho. Pequena história da literatura brasileira. 13 a ed. Rio de Janeiro: F.
Briguiet & Cia., Editores, 1968.
15 José Guilherme Merquior. De Anchieta a Euclides: breve história da literatura brasileira.

3 a ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996.


16 Fausto Cunha. O Romantismo no Brasil: De Castro Alves a Sousândrade. Rio de Janeiro:
Editora Paz e Terra, 1971.
17 Daniela Mantarro Callipo. Rimas de ouro e sândalo: a presença de Victor Hugo nas
crônicas de Machado de Assis. São Paulo: Editora da UNESP, 2010.
18 José Veríssimo. História da literatura brasileira: de Bento Teixeira, 1601 a Machado de

Assis, 1908. 4 a ed. Brasília: Editora da UnB, 1963.


19 Jean-Michel Massa. A biblioteca de Machado de Assis: quarenta anos depois. In: JOBIM,
José Luís. (Org.) A biblioteca de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Editora Topbooks, 2001.
Gilberto Pinheiro Passos. O Napoleão de Botafogo. São Paulo: Editora Annablume, 2000.
OS MISERÁVEIS
PREFÁCIO
Victor Hugo

ENQUANTO, por efeito de leis e costumes, houver proscrição social,


forçando a existência, em plena civilização, de verdadeiros infernos, e
desvirtuando, por humana fatalidade, um destino por natureza divino;
enquanto os três problemas do século — a degradação do homem pelo
proletariado, a prostituição da mulher pela fome, e a atrofia da criança
pela ignorância — não forem resolvidos; enquanto houver lugares onde
seja possível a asfixia social; em outras palavras, e de um ponto de vista
mais amplo ainda, enquanto sobre a terra houver ignorância e miséria,
livros como este não serão inúteis.

Hauteville-House,1 1862.

__________________________
1 Hautevillle-House é o nome da mansão que Victor Hugo comprou em Guernesey, pequena
ilha inglesa no Mar da Mancha. Lá passou a maior parte de seu exílio, originado por sua
oposição ao golpe de Estado que elevou ao poder Luís Bonaparte, Napoleão III. Retrata a ilha em
sua obra Os trabalhadores do mar.
PRIMEIRA PARTE
Fantine
LIVRO I
UM JUSTO

I. O SENHOR MYRIEL
EM 1815, o senhor Charles-François-Bienvenu Myriel era bispo de Digne.
Era um homem de aproximadamente setenta e cinco anos, e desde 1806
ocupava aquela diocese. Embora este detalhe não mude, de forma alguma,
o cerne do que temos para contar, talvez não seja inútil, até para haver
exatidão em tudo, citar aqui os diversos boatos e conversas a que deu
motivo sua chegada ao bispado. Verdade ou não, o que se diz a respeito
dos homens ocupa muitas vezes em sua vida, e sobretudo em seu destino,
um lugar tão importante quanto aquilo que fazem.
Charles Myriel era filho de um conselheiro do parlamento de Aix;
nobreza de toga. Dizia-se que seu pai, tendo-o destinado para sucessor do
cargo que exercia, casara-o muito cedo, aos dezoito ou vinte anos,
seguindo um costume bastante usual em famílias do parlamento.
Apesar de casado, Charles Myriel, dizia-se, dera bastante o que falar.
De muito boa aparência, embora de baixa estatura, era elegante, gracioso,
espirituoso; toda a primeira parte de sua vida fora dedicada à sociedade e
aos galanteios.
Irrompendo a Revolução, os acontecimentos se precipitaram; as
famílias dos parlamentares, dizimadas, expulsas, perseguidas, se
dispersaram. Nos primeiros dias da Revolução, Charles Myriel emigrou
para a Itália, onde sua mulher sucumbiu a uma doença pulmonar da qual
havia muito padecia. Não tinham filhos. O que se passou depois disso no
destino de Charles Myriel? A ruína da antiga sociedade francesa, a
decadência da própria família, os trágicos espetáculos de 1793, talvez
ainda mais pavorosos para os emigrados que, de longe, viam-nos avultados
pelo terror, teriam feito germinar em seu espírito ideias de solidão e de
renúncia? Ou ele teria sido, em meio a alguma das distrações e afeições
que ocupavam sua vida, subitamente atingido por algum desses terríveis e
misteriosos golpes, que às vezes vêm derrubar, batendo em seu coração, o
homem que nem mesmo as catástrofes públicas, ainda que lhe ferindo a
existência e a fortuna, seriam capazes de abalar? Era impossível dizer; o
que se sabia é que, quando voltou da Itália, era padre.
Em 1804, Charles Myriel, já com idade avançada, era pároco da Igreja
de B. (Brignolles), e vivia na mais completa solidão.
Por ocasião da coroação, um pequeno negócio de interesse de sua
paróquia, não se sabe muito bem o que, levou-o a Paris. Entre outras
pessoas de influência, cuja proteção solicitou em favor de seus
paroquianos, contava-se o cardeal Fesch. Um dia, quando o imperador
viera visitar seu tio, o digno cura, que esperava na antecâmara, Myriel se
encontrou exatamente na passagem de sua majestade. Vendo o ar de
curiosidade com que o cura parecia fitá-lo, Napoleão voltou-se e
perguntou repentinamente:
— Quem é aquele simplório que me olha?
— Senhor — disse Myriel —, Vossa Majestade vê um simplório, e eu
vejo um grande homem. Ambos podemos aproveitar.
Nessa mesma noite, o imperador perguntou ao cardeal o nome do
padre, e, pouco tempo depois, o senhor Myriel teve a surpresa de saber que
fora nomeado bispo de Digne.
Até que ponto, porém, era verdade o que se dizia em relação à primeira
parte da existência daquele homem? Ninguém sabia; poucas famílias
haviam conhecido a família Myriel antes da Revolução.
Apesar de bispo, e até mesmo por sê-lo, o senhor Myriel teve de
experimentar o destino de todos os recém-chegados a uma cidade pequena,
onde há muitas bocas que falam e muito poucas cabeças que pensam. Ele
devia sofrer, embora fosse bispo, e porque era bispo. Afinal, as conversas
em que seu nome estava envolvido não passavam de boatos, bisbilhotices,
palavras, palabres, como se diz na expressiva língua do sul.
Assim, decorridos nove anos de episcopado e de residência em Digne,
todas essas histórias, que nos primeiros momentos foram tema constante
das conversas entre a arraia-miúda, caíram em profundo esquecimento.
Ninguém ousava falar delas, ninguém ousava se lembrar delas.
O senhor Myriel chegara a Digne acompanhado de sua irmã,
Baptistine, que tinha dez anos a menos do que ele. Tinham como única
criada, de mesma idade que a senhorita Baptistine, a senhora Magloire,
que, após ter sido a criada do senhor pároco, passara a exercer as duplas
funções de criada de quarto da senhorita e despenseira do novo bispo.
Alta, magra, pálida, delicada e afável, a senhorita Baptistine era a mais
completa expressão da palavra “respeitável”, posto que, para ser
considerada venerável, parece necessário que uma mulher seja mãe. Nunca
fora bonita; toda a sua vida, uma ininterrupta série de boas obras, acabou
por inundá-la de uma espécie de alvura luminosa que lhe dava, ao
envelhecer, aquilo que poderíamos chamar de beleza da bondade. O que na
juventude fora magreza tornou-se, na maturidade, uma transparência
diáfana, que deixava entrever um anjo. Era mais uma alma que uma
virgem. Sua pessoa parecia ser feita de sombra; corpo apenas suficiente
para distinção do sexo; um pouco de matéria contendo uma chama; olhos
grandes sempre baixos; um pretexto para que uma alma permaneça sobre a
terra.
A senhora Magloire era uma velhinha clara, baixa e muito gorda,
sempre atarefada, sempre arquejante, não só por causa de sua natural
atividade, como também por causa de sua asma.
Em sua chegada, o senhor Myriel foi instalado em seu palácio
episcopal com todas as honras estabelecidas nos decretos imperiais, que
classificavam o bispo imediatamente após o marechal de campo. O
prefeito e o presidente fizeram-lhe a primeira visita, e ele, por sua vez, fez
sua primeira visita ao general e ao governador.
Terminada a instalação, a cidade esperou pelos atos do novo bispo.

II. O SENHOR MYRIEL TORNA-SE MONSENHOR


BIENVENU
O Paço Episcopal de Digne ficava ao lado do hospital. Era um vasto e
belo edifício construído em pedra no início do século passado, por
Monsenhor Henri Puget, doutor em teologia pela Faculdade de Paris,
abade de Simore e bispo de Digne em 1712.
Esse edifício era um verdadeiro domicílio senhorial; tudo ali era
imponente: os aposentos particulares do bispo, os salões, os quartos, o
saguão muito amplo com passeios em forma de arcadas, e, segundo a
antiga moda florentina, os jardins com magníficas árvores plantadas.
Na sala de jantar, uma extensa e majestosa galeria ao rés do chão que
se abria para os jardins, realizara-se o solene banquete oferecido pelo
bispo Henri Puget em 29 de julho de 1714 aos reverendos Charles Brûlart
de Genlis, arcebispo, príncipe de Embrun, Antoine de Mesgrigny,
capuchinho, bispo de Grasse, Philippe de Vendôme, grão-prior da França,
abade de Saint-Honoré de Lérins, François de Berton de Grillon, bispo,
barão de Vence, César de Sabran de Forcalquier, bispo e senhor de
Glandève, e Jean Soanen, da Congregação do Oratório, padre do oratório,
pregador ordinário do rei, bispo e senhor de Senez. Decoravam a sala os
retratos dessas sete reverendas personagens, e esta data memorável, 29 de
julho de 1714, fora gravada em letras douradas em uma mesa de mármore
branco.
O hospital era um edifício estreito e baixo de um só andar, com um
pequeno jardim. Três dias após sua chegada, o bispo foi visitar o hospital.
Terminada a visita, pediu ao diretor a gentileza de procurá-lo no Paço.
— Senhor diretor — disse-lhe —, quantos doentes estão atualmente no
hospital?
— Vinte e seis, monsenhor.
— Foi o que contei — disse o bispo.
— As camas estão tão juntas umas das outras… — continuou o diretor.
— Também reparei nisso.
— As enfermarias… nem são enfermarias, são salas em que o ar se
renova com dificuldade.
— Também me pareceu o mesmo.
— E ainda, quando há um pouco de sol, o jardim é bem pequeno para
os convalescentes.
— Eu também pensava o mesmo.
— Nas epidemias, como neste ano, em que tivemos o tifo, e há dois
anos, durante a febre miliar, às vezes há cem doentes, não sabemos como
fazer.
— Também isso me ocorreu.
— Mas que se há de fazer, monsenhor? — disse o diretor. — Temos de
nos resignar!
Essa conversa acontecia na sala de jantar-galeria do andar térreo.
Após um momento de silêncio, o bispo voltou-se de súbito para o
diretor e disse-lhe:
— Quantas camas parece-lhe que poderiam caber nesta sala?
— Em sua sala de jantar, monsenhor? — disse o diretor estupefato.
O bispo correu a vista pela sala, com ar de quem mede e calcula com
os olhos, e logo disse, como que falando consigo mesmo:
— Bem podem caber aqui umas vinte camas!
E em seguida acrescentou, elevando a voz:
— Ouça, senhor diretor, o que vou lhe dizer. Aqui evidentemente há
um engano. Os senhores são vinte e seis pessoas, em cinco ou seis
pequenos quartos; e nós aqui somos três, ocupando lugar suficiente para
sessenta. Repito, isto é um engano! O senhor ocupará minha casa e eu
ocuparei a sua. Dê-me, portanto, a minha. Aqui é a casa de vocês.
No dia seguinte, os vinte e seis pobres que estavam doentes eram
instalados no palácio episcopal, e o bispo mudava sua residência para o
hospital.
O senhor Myriel não possuía bem algum, já que sua família ficara
arruinada com a Revolução. Sua irmã recebia uma pensão vitalícia de
quinhentos francos, que, no Presbitério, era suficiente para suas despesas
pessoais, e ele, como bispo, recebia do Estado um ordenado de quinze mil.
No mesmo dia em que o bispo fixou sua residência no edifício do hospital,
determinou de uma vez por todas o emprego dessa quantia, da maneira que
segue. Transcrevemos aqui uma nota escrita por ele mesmo:

A NOTAÇÕES PARA CONTROLE DAS DESPESAS DE MINHA CASA


Para o seminário menor…………… 1.500
Congregação da missão…………… 100
Para os lazaristas de Montdidier…………… 100
Seminário das missões estrangeiras em Paris…………… 200
Congregação do Espírito Santo…………… 150
Estabelecimentos religiosos da Terra Santa…………… 100
Sociedades de caridade maternal…………… 300
Adicional para a de Arles…………… 50
Obra para o melhoramento das prisões…………… 400
Obra para socorro e livramento dos presos…………… 500
Para livramento de pais de famílias presos por dívidas……………
Suplemento ao ordenado dos pobres mestres-escolas da 1.000
diocese…………… 2.000
Celeiro de reserva dos Altos Alpes…………… 100
Congregação das senhoras de Digne, de Manosque e de Sisteron, para
o ensino gratuito de moças indigentes…………… 1.500
Para os pobres…………… 6.000
Minha despesa pessoal…………… 1.000
Total…………… 15.000

Durante todo o tempo em que ocupou o episcopado de Digne, o senhor


Myriel nada alterou nessa distribuição. Como se vê, dava a isso o nome de
controle das despesas de sua casa.
Essa distribuição foi aceita com absoluta submissão pela senhorita
Baptistine. Para a virtuosa moça, Monsenhor de Digne era, ao mesmo
tempo, seu irmão e seu bispo; seu amigo segundo a natureza e seu superior
segundo a Igreja. Amava-o e venerava-o, simplesmente. Quando ele
falava, ela inclinava-se; quando punha em prática sua vontade, ela aderia.
Só a criada Magloire murmurou um pouco. Como se pôde notar, o bispo
reservava para si apenas mil libras, que, reunidas à pensão de Baptistine,
perfaziam a soma de mil e quinhentos francos anuais, único rendimento
que os três tinham para viver.
E, quando algum pároco de aldeia vinha a Digne, o bispo ainda achava
meios de hospedá-lo, graças à severa economia da senhora Magloire e à
inteligente administração de Baptistine.
Uma ocasião, decorridos três meses de sua chegada a Digne, o bispo
disse:
— Com tudo isso, fico bastante constrangido!
— Acredito! — exclamou a senhora Magloire. — Monsenhor nem ao
menos reclamou o subsídio que o Departamento lhe deve para despesas de
carruagem na cidade e gastos com estadias na diocese. Para os bispos de
antigamente, esse era o costume.
— É verdade! Tem razão, senhora Magloire — disse o bispo. E fez a
reclamação.
Algum tempo depois, a Câmara, levando em consideração seu pedido,
votava-lhe a quantia anual de três mil francos, sob a seguinte rubrica:
Subsídio ao Senhor bispo para despesas de carruagem, despesas com
diligências e despesas com visitas pastorais.
Isso deu muito que falar à burguesia local, e, por essa ocasião, um
senador do império, antigo membro do Conselho dos Quinhentos,
partidário do Dezoito de Brumário e provido, perto da cidade de Digne, de
terras magníficas, escreveu ao ministro dos cultos, senhor Bigot de
Préameneu, uma mensagem confidencial e irritadiça, da qual extraímos
estas linhas autênticas:
“Despesas de carruagem! Para que, em uma cidade com menos de
quatro mil habitantes? Despesas de visitas ao bispado? Primeiro, a troco
de quê? E, depois, como fazer diligências rodarem nesta região de
montanhas? Não há estradas, só se anda a cavalo. Mesmo a ponte entre
Durance e Château-Arnoux mal consegue suportar um carro de bois. Esses
padres são todos assim, ávidos e avaros! Este, quando chegou, se fez de
bom apóstolo; agora faz como os outros. Precisa de carruagens e de lugar
na diligência. Precisa de luxo como os antigos bispos. Oh! Essa padraiada!
Senhor conde, as coisas só irão bem quando o imperador nos livrar dos
padrecos. Abaixo o papa! (Naquela ocasião achavam-se estremecidas as
relações com Roma.) Quanto a mim, sou a favor de César sozinho. Etc.,
etc.”
Em compensação, a resolução do bispo encheu a senhora Magloire de
júbilo.
— Bem — disse ela à senhorita Baptistine —, monsenhor começou
pelos outros, mas precisava mesmo terminar por ele próprio. Fez todas as
caridades. E então, três mil francos para nós. Enfim!
Naquela mesma noite, o bispo escreveu e entregou a sua irmã uma nota
assim:

D ESPESAS COM CARRUAGEM E VISITAS AO BISPADO


Para dar caldo de carne aos doentes do hospital……………
Para a Sociedade de Caridade Maternal de 1.500
Aix…………… 250
Para a Sociedade de Caridade Maternal de Draguignan……………
Para os enjeitados…………… 500 250
Para os órfãos…………… 500
Total…………… 3.000

Assim era o orçamento do bispo Myriel.


Quanto ao rendimento eventual, como dispensas de proclamas,
licenças para pregar, para benzer igrejas ou capelas, casamentos, o bispo o
exigia dos ricos, ainda com mais rigor, posto que o daria aos pobres.
Em pouco tempo, começaram a afluir as ofertas de dinheiro. Os que
tinham e os que não tinham, todos batiam à porta do senhor Myriel, uns
para dar, outros para receber a esmola que os primeiros ali deixavam. Em
menos de um ano tornou-se o tesoureiro de todos os benefícios e o
provedor de todas as misérias. Somas consideráveis passavam por suas
mãos, porém nada conseguiu fazer com que alterasse qualquer coisa em
seu modo de vida ou acrescentasse o menor supérfluo ao que lhe era
necessário.
Pelo contrário. Como, de ordinário, há sempre mais miséria entre as
camadas inferiores do que fraternidade entre as superiores, tudo era doado,
por assim dizer, antes de ser recebido; era como água sobre uma terra
seca; por mais que recebesse, o bispo nunca tinha dinheiro, e então
despojava-se.
Guiados por uma espécie de afetuoso instinto, entre os nomes e
apelidos do bispo que, como era costume, apareciam no princípio das
pastorais e circulares, os pobres da terra escolheram aquele que lhes
oferecia um sentido. Assim, só o chamavam de Monsenhor Bienvenu. Nós
faremos como eles e o chamaremos da mesma forma. De resto, essa forma
de nomeá-lo o agradava.
— Gosto desse nome! — dizia ele. — Bienvenu modifica Monsenhor.
Não é nossa pretensão que o retrato que aqui traçamos seja verossímil;
nos limitamos a dizer que é semelhante.

III. PARA BOM BISPO, BISPADO DIFÍCIL


Apesar de ter convertido a carruagem em esmolas, nem por isso o novo
bispo deixava de fazer suas visitas pastorais. É uma diocese cansativa,
essa de Digne, com muito poucas planícies e muita montanha, mas quase
nenhuma estrada, como já se viu acima. Trinta e duas abadias, quarenta e
um vicariatos e duzentos e oitenta e cinco curatos, visitar tudo isso não era
pouca dificuldade, mas o bom bispo não se curvava diante dela.
Quando as visitas eram por perto, ia a pé; numa carroça, quando eram
pelas planícies; a cavalo, quando pelas montanhas. As duas mulheres o
acompanhavam. Quando o trajeto era penoso demais para elas, então ia só.
Um dia, chegou a Senez, antiga cidade episcopal, montado em um
jumento, porque sua bolsa, pouco abastecida naquela ocasião, não lhe
permitira outro meio de locomoção.
O prefeito da cidade, que viera esperá-lo à porta do Paço, ficou
escandalizado ao vê-lo apear. Alguns burgueses riam à sua volta.
— Senhor prefeito e senhores burgueses — disse-lhes o bispo —, bem
sei o que os escandaliza; acham que é demasiada soberba um pobre padre
como eu servir-se, para seu transporte, do mesmo meio que usou Jesus
Cristo! Afirmo-lhes que o fiz por necessidade e não por vaidade!
Nessas visitas, ele era indulgente e afável e pregava menos que
conversava. Nunca buscava seus argumentos e modelos em algo distante.
Aos habitantes de uma região citava o exemplo da região vizinha. Nos
cantões, onde moradores se mostravam pouco compadecidos para com os
necessitados, dizia: “Vejam o povo de Briançon. Concederam aos
indigentes, às viúvas e aos órfãos licença para ceifar seus prados três dias
antes de todos os outros. Reconstroem gratuitamente suas casas quando
elas estão em ruínas. Por isso aquela terra é abençoada por Deus. Durante
todo um século não houve ali um único assassinato”.
Nas aldeias ávidas de ganância e colheita, dizia: “Vejam o povo de
Embrun. Se, na época da colheita, algum pai de família que se encontre
doente e impedido de trabalhar estiver com os filhos alistados no exército
e as filhas trabalhando na cidade, o pároco recomenda-o em sua pregação;
e, no domingo, após a missa, todos os moradores da aldeia, homens,
mulheres e crianças, dirigem-se ao campo do pobre homem e fazem-lhe a
colheita, levam palha e grãos para seu celeiro”.
Às famílias divididas por questões de dinheiro e herança, dizia:
“Olhem para os montanheses de Devolny, terra tão selvagem que, nem de
cinquenta em cinquenta anos, lá se ouve o rouxinol! Pois bem, quando em
qualquer família morre o chefe, os rapazes vão procurar fortuna em outra
parte e deixam todo o patrimônio às moças para que elas possam fazer
bons casamentos”.
Aos habitantes dos cantões, que gostam de processos, e onde os
fazendeiros se arruínam com papéis timbrados, dizia: “Olhem para os bons
aldeões do vale de Queyras. São umas três mil almas. Meu Deus! Vivem
como em uma pequena república. Não sabem o que é um juiz ou um
escrivão. O prefeito é quem faz tudo. Reparte os impostos, taxa cada
habitante com consciência, julga todas as causas gratuitamente, faz
partilhas sem receber honorários, profere sentenças sem cobrar taxas, e
todos o obedecem, porque é um homem justo entre homens simples”.
Nas aldeias em que não encontrava professores, dizia, citando ainda os
habitantes de Queyras: “Sabem como eles fazem? Como um lugar com
doze ou quinze famílias nem sempre pode sustentar um mestre, têm
professores pagos por todas as aldeias do vale, os quais vão de lugar em
lugar, passando oito dias aqui, dez dias ali, ensinando. Eles vão às feiras,
onde eu os vi, e são reconhecidos segundo o número de penas que trazem
na fita do chapéu. Os que só ensinam a ler trazem uma pena; os que
ensinam a ler e a contar usam duas; e os que ensinam a ler, a contar e
sabem latim usam três e são considerados grandes sábios. Vergonha é ficar
toda a vida ignorante! Façam como os de Queyras”.
Assim falava grave e paternalmente, inventando parábolas quando não
tinha exemplos, indo direto ao objetivo, com poucas frases e muitas
imagens, o que era a própria eloquência de Jesus Cristo, convincente e
persuasiva.

IV. OBRAS SEMELHANTES ÀS PALAVRAS


Sua conversa era afável e alegre. Estava sempre acessível às duas
velhas senhoras que passavam a vida perto dele. Quando ria, seu riso
parecia o de uma criança.
A senhora Magloire tratava-o, com gosto, por Vossa Grandeza.
Um dia, o bispo levantou de sua poltrona e foi a sua biblioteca buscar
um livro. Esse livro encontrava-se em uma prateleira alta, e, como ele era
de baixa estatura, não conseguiu alcançá-lo. Senhora Magloire, disse,
traga-me uma cadeira. Minha Grandeza não chega até aquela prateleira.
Uma de suas parentas distantes, a senhora condessa de Lô, raramente
deixava escapar uma oportunidade de lhe enumerar o que chamava “as
esperanças” de seus três filhos. Ela tinha vários ascendentes muito idosos
e próximos da morte, de quem seus filhos eram herdeiros naturais. O mais
novo ficaria com um rendimento de boas cem mil libras de uma tia-avó; o
segundo herdaria de um tio o título de duque; o mais velho sucederia ao
avô no pariato.
O bispo escutava habitualmente em silêncio essas inocentes e
desculpáveis exibições maternais.
Uma ocasião, porém, ele parecia mais pensativo que de costume,
enquanto a Senhora de Lô repisava os detalhes de todas aquelas sucessões
e “esperanças”. Ela interrompeu-se com impaciência:
— Meu Deus, primo! Em que está pensando?
— Estou pensando — disse o bispo — em algo singular que li, creio,
em Santo Agostinho: “Põe tua esperança naquele a quem ninguém
substitui”.
Uma outra vez, ao receber uma carta de participação do enterro de
certo fidalgo da região, na qual, afora as dignidades do defunto,
pomposamente se ostentavam todas as qualificações feudais e nobiliárias
da parentela:
— Que costas largas tem a morte! Que admirável carga de títulos
fazem-na alegremente carregar, e que grande habilidade têm os homens
para fazerem do túmulo instrumento de sua vaidade!
Para qualquer ocasião, tinha sempre um doce sarcasmo que encerrava
quase sempre um sentido sério. Durante uma quaresma, um jovem vigário
veio à cidade e pregou na catedral. Foi bastante eloquente. O tema de seu
sermão foi a caridade. Exortou os ricos a darem aos indigentes a fim de
evitarem o inferno, que ele pintou o mais horroroso que pôde, e
alcançarem o paraíso, que mostrou como desejável e encantador. No
auditório, encontrava-se um abastado e um tanto usurário negociante
chamado Géborand, que, depois de ter ganho dois milhões com uma
fábrica de sarjas, panos e lãs, havia se retirado do comércio. Em toda a sua
vida, Géborand nunca dera esmola a um só pobre. A partir daquele sermão,
começou-se a notar que, todos os domingos, ele dava uma moeda às velhas
que mendigavam à porta da Sé. Elas eram seis a repartir a esmola.
Um dia, o bispo o viu fazendo sua caridade e disse a sua irmã com um
sorriso: “Olhe o senhor Géborand comprando o paraíso por um tostão”.
Quando se tratava de caridade, não se chocava nem mesmo diante de
uma recusa, encontrando sempre algumas palavras que faziam refletir.
Uma vez, ele suplicava para os pobres em um salão da cidade; estava lá o
marquês de Champtercier, velho, rico e avaro, que dava um jeito de ser, ao
mesmo tempo, ultrarrealista e ultravoltairiano (tal variedade existiu). O
bispo disse, tocando-lhe o braço:
— Marquês, o senhor precisa dar-me alguma coisa.
O marquês voltou-se e respondeu-lhe secamente:
— Monsenhor, eu tenho os meus pobres.
— Então deve dá-los a mim! — disse o bispo.
Um dia, na catedral, pregou este sermão:
“Caríssimos irmãos, meus bons amigos: na França, há um milhão,
trezentas e vinte mil casas de camponeses que só têm três aberturas; um
milhão, oitocentas e dezessete mil que têm duas aberturas, uma porta e
uma janela; e, finalmente, trezentas e quarenta e seis mil cabanas, cuja
única abertura é a porta. E isso por causa do denominado imposto de
portas e janelas! Coloquem pobres famílias, velhas senhoras e criancinhas
dentro dessas habitações, e verão as febres e as doenças! Oh! Deus dá o ar
aos homens e a lei o vende! Não acuso a lei, mas bendigo a Deus. Em
Isère, no Var, nos dois Alpes, os altos e os baixos, os camponeses, que nem
carrinhos de mão possuem, transportam o esterco nas costas; não têm
velas, queimam lenha resinosa e pedaços de corda untados em resina! O
mesmo acontece em todos os lugares do Haut Dauphiné. Fazem pão para
seis meses e o assam queimando estrume seco de vaca. No inverno, partem
o pão a machado e o deixam de molho por vinte e quatro horas para poder
comê-lo. Meus irmãos, tenham piedade! Vejam como sofrem em torno de
vocês”.
Provençal de nascimento, facilmente familiarizara-se com todos os
dialetos do sul. Dizia: Eh bé! Moussu, sès sagé?, como no Baixo
Languedoc. Onté anaras passa?, como nos Baixos Alpes. Puerte un bouen
moutou embe un bouen froumage grase,1 como no Haut Dauphiné. Isso
agradava muito ao povo e muito havia contribuído para dar-lhe acesso a
quase todos os espíritos. Tanto em uma choupana quanto nas montanhas,
ele estava como em sua casa. Sabia dizer as coisas mais importantes nos
idiomas mais vulgares. Falando todas as línguas, entrava em todas as
almas.
De resto, era o mesmo para as pessoas da sociedade e para as pessoas
do povo. Não condenava nada apressadamente e sem levar em conta as
circunstâncias. Dizia: “Vejamos o caminho por onde a falta passou”.
Sendo, como ele mesmo se qualificava sorrindo, um ex-pecador, nunca
manifestava as asperezas do rigor, e professava bem alto e sem o franzir
de sobrancelhas dos ferozes virtuosos uma doutrina que poderia ser
resumida mais ou menos assim:

“O homem tem sobre si a carne, que é ao mesmo tempo seu fardo e sua tentação. Ela o
arrasta, e ele cede.
Seu dever é vigiá-la, contê-la, reprimi-la, e obedecer a ela só em último caso. Nessa
obediência ainda pode haver culpa, mas trata-se de uma culpa venial. É uma queda, mas
uma queda de joelhos, que pode terminar em oração.
Ser santo é uma exceção; a regra é ser justo. Errem, caiam, pequem, mas sejam justos.
Pecar o menos possível é a obrigação de todo homem; não pecar nunca é o sonho do
anjo. Tudo o que é terrestre está sujeito ao pecado. O pecado é uma gravitação.”

Quando via o tumultuoso alarido e a precipitada indignação de muitos:


“Oh! Oh!”, dizia sorrindo, “parece que isso é um grande crime e que todo
o mundo o comete. Estas são as hipocrisias que se apressam em protestar e
se mostrar”.
Era indulgente para com as mulheres e os pobres, sobre quem recai o
peso da sociedade humana. Dizia: “Os erros das mulheres, dos filhos, dos
criados, dos fracos, dos indigentes e dos ignorantes são os erros dos
maridos, dos pais, dos amos, dos fortes, dos ricos e dos sábios”.
E dizia mais: “Aos ignorantes, ensinem o máximo de coisas que
puderem; a sociedade é culpada por não ministrar a instrução gratuita; ela
é responsável pelas trevas que produz. Uma alma cheia de sombras, é onde
o pecado acontece. A culpa não é de quem pecou, mas de quem fez a
sombra”.
Como se vê, o bispo tinha um singular e particular modo de encarar as
coisas. Desconfio que tenha tirado isso do Evangelho.
Um dia, em uma reunião que presenciava, ouviu contarem a história de
certo processo instaurado havia pouco o qual seria julgado. Um miserável,
por amor a uma mulher, e pelo filho que tivera com ela, ao ver-se sem
recursos, fabricou dinheiro falso. Nessa época, falsificação de dinheiro
ainda se punia com pena de morte. A mulher fora presa ao tentar trocar a
primeira moeda falsa que ele fabricara. Só havia provas contra ela. Apenas
ela poderia incriminar seu amado, mas iria perdê-lo ao confessar. Ela
negou. Insistiram. Ela obstinou-se em negar. Então o procurador do rei
teve uma ideia. Induziu-a a supor que o amante lhe era infiel e conseguiu,
por meio de alguns fragmentos de cartas astuciosamente forjadas,
persuadir a infeliz de que tinha uma rival e de que aquele homem a
enganava. Então, exasperada de ciúme, ela denunciou o amante, confessou
e provou tudo. O homem estava perdido. Seria brevemente julgado em
Aix, com sua cúmplice. Contavam o fato e todos admiravam a habilidade
do magistrado, que, pondo em jogo o ciúme, fizera, da cólera, irromper a
verdade, e, da vingança, ressaltar a justiça. O bispo escutava aquilo em
silêncio, e no fim perguntou:
— Onde serão julgados esse homem e essa mulher?
— No tribunal do júri.
E retomando:
— E onde será julgado o promotor do rei?
Ocorreu em Digne um caso trágico. Um homem foi sentenciado à
morte por homicídio. Era um infeliz, não inteiramente destituído de
instrução e nem completamente ignorante, que havia sido palhaço pelas
feiras e escrevente público. Seu processo ocupava bastante as conversas da
cidade. Na véspera do dia fixado para a execução do condenado, o capelão
da cadeia adoeceu. Era preciso de um padre que assistisse ao réu em seus
últimos instantes. Foram procurar o cura. Parece que este se recusou,
dizendo:
— Isso não é comigo! Não quero saber dessa obrigação penosa, nem
desse saltimbanco! Eu também estou doente; além disso, lá não é meu
lugar.
Levaram essa resposta ao bispo, que disse:
— O cura tem razão. Não é o lugar dele, e sim o meu!
Foi imediatamente à prisão, desceu à cela do “saltimbanco”, tratou-o
pelo nome, pegou em sua mão, conversou com ele; passou o dia a seu lado,
sem se lembrar de comer nem de dormir, orando a Deus pela alma do
condenado e pedindo ao condenado por sua própria alma. Disse-lhe as
melhores verdades, que são as mais simples. Foi pai, irmão, amigo; bispo
somente para abençoar. Ensinou-lhe tudo, tranquilizando-o e consolando-
o. Aquele homem ia morrer desesperado. A morte era para ele um abismo.
De pé e trêmulo nesse lúgubre limiar, recuava horrorizado. Não era
suficientemente ignorante para estar completamente indiferente. Sua
condenação, abalo profundo, havia, de alguma forma, rompido, aqui e ali
ao seu redor, essa barreira que nos separa do mistério das coisas e que
chamamos de vida. Ele olhava sem cessar para fora desse mundo através
de brechas fatais, e só via trevas. O bispo fez com que visse uma luz.
No dia seguinte, quando vieram buscar o infeliz, o bispo estava lá.
Acompanhou-o e mostrou-se aos olhos da multidão com seu manto roxo e
sua cruz episcopal ao peito, lado a lado com aquele miserável amarrado
com cordas.
Subiu na charrete com ele, subiu no cadafalso com ele. O condenado,
tão abatido e tão oprimido na véspera, resplandecia. Sentia que sua alma
estava reconciliada e esperava Deus. O bispo o abraçou e, no momento em
que a lâmina ia cair, disse-lhe: “Aquele que o homem mata, Deus o
ressucita; aquele que se vê repelido por seus irmãos reencontrará o Pai!
Ore, creia, entre na vida! O Pai estará lá”.
Quando desceu do cadafalso, havia alguma coisa em seu olhar que
fazia o povo se afastar. Não se sabia o que era mais admirável, se sua
palidez ou sua serenidade. Voltando para sua modesta casa, que chamava
com um sorriso de seu palácio, disse para sua irmã: Acabo de celebrar
pontificialmente!
Como as coisas mais sublimes, com frequência são também as menos
compreendidas, não faltou na cidade quem, comentando a conduta do
bispo, dissesse: Isso é pura afetação!
Mas isso não passava de um comentário dos salões. O povo, que não
põe malícia nas ações santas, ficou enternecido e admirado.
Quanto ao bispo, ter visto a guilhotina foi para ele um choque, do qual
levou bastante tempo para restabelecer-se.
O cadafalso, com efeito, quando está lá, preparado e aprumado, tem
qualquer coisa que alucina. Podemos ter certa indiferença em relação à
pena de morte, podemos não nos pronunciar, dizer sim ou não, enquanto
não virmos com os próprios olhos uma guilhotina; mas, se encontramos
uma, o abalo é violento, temos de nos decidir a favor ou contra. Uns
admiram, como De Maistre, outros maldizem, como Beccaria. A
guilhotina é a concreção da lei, chama-se vingança, não é neutra nem
permite que se fique neutro. Quem a vê estremece com o mais misterioso
dos estremecimentos. Todas as questões sociais levantam em torno desse
cutelo seu ponto de interrogação. O cadafalso é uma visão. O cadafalso
não é uma viga de madeira, o cadafalso não é uma máquina, o cadafalso
não é um mecanismo inerte feito de madeira, ferro e cordas. Parece ser
uma espécie de criatura que possui alguma sombria iniciativa; parece que
essa viga vê, que essa máquina ouve, que esse mecanismo compreende,
que essa madeira, esse ferro e essas cordas têm querer. No devaneio
medonho em que sua presença joga a alma, o cadafalso surge, terrível, e
envolvido com o que faz. O cadafalso é o cúmplice do algoz; ele devora;
ele ingere carne, ele bebe sangue. O cadafalso é uma espécie de monstro
fabricado pelo juiz e pelo carpinteiro, um espectro que parece viver de um
tipo de vida espantosa, feita de todas as mortes que gerou.
A impressão que ficou, portanto, foi horrível e profunda; no dia
seguinte à execução, e ainda por muitos dias, o bispo parecia oprimido. A
serenidade quase violenta do momento fúnebre havia desaparecido, o
fantasma da justiça social o obcecava. Ele, que, em geral, voltava de todas
as suas ações tão radiante, agora parecia fazer-se uma reprovação. Às
vezes, falava sozinho, balbuciando em voz baixa lúgubres monólogos.
Aqui está um, que sua irmã, certa noite, ouviu e memorizou:
— Não imaginava que aquilo fosse tão monstruoso! É um erro
absorver-se tanto na lei divina a ponto de não se dar conta da lei humana.
A morte só pertence a Deus! Com que direito os homens põem a mão
nessa coisa desconhecida?
Com o tempo, essas impressões se atenuaram, e, provavelmente, até se
extinguiram. No entanto, notava-se que o bispo, desde então, evitava
passar pela praça das execuções.
Podiam chamar o senhor Myriel a qualquer hora à cabeceira dos
doentes e moribundos. Não ignorava que era esse seu maior dever, sua
maior missão. As famílias com viúvas e órfãos nem precisavam chamá-lo,
ele ia por si próprio. Sabia sentar-se calado durante longas horas ao lado
do homem que perdera a mulher amada, ou da mãe que perdera o filho.
Assim como sabia o momento de calar-se, sabia o momento de falar. Que
admirável consolador! Não procurava apagar a dor pelo esquecimento,
mas engrandecê-la e dignificá-la pela esperança! Dizia: “Atentem bem ao
modo como se voltam para os mortos. Não ocupem o pensamento com o
que apodrece. Olhem fixamente. Verão no fundo do céu a chama viva de
seu amado ente que se foi”.
Ele sabia que a crença é sadia. Procurava aconselhar e acalmar o
homem desesperado, apontando-lhe o homem resignado, e transformar a
dor que olha uma sepultura na dor que olha uma estrela.
V. COMO MONSENHOR BIENVENU FAZIA SUAS
BATINAS DURAREM MUITO TEMPO
A vida íntima do senhor Myriel era repleta dos mesmos pensamentos
de sua vida pública. Para quem pôde acompanhá-la de perto, foi um
espetáculo grave e encantador aquele da pobreza voluntária em que vivia o
senhor bispo de Digne.
Como todos os velhos e como a maior parte dos homens que pensam,
ele dormia pouco. Esse curto sono era profundo. Pela manhã, após uma
hora de recolhimento, rezava sua missa na catedral ou em sua casa. Sua
missa rezada, tomava o desjejum: pão de centeio molhado no leite de suas
vacas. Em seguida, trabalhava.
Um bispo é um homem ocupadíssimo; todos os dias, precisa receber o
secretário episcopal, que, normalmente, é um cônego, e, quase todos os
dias, seus vigários-gerais. Precisa controlar congregações, conceder
privilégios, examinar uma completa livraria espiritual, paroquianos,
catecismos diocesanos, livros de horas, etc.; escrever pastorais, autorizar
sermões, fazer entrar em acordo párocos e autoridades, ler uma
correspondência eclesiástica, uma correspondência administrativa; de um
lado o estado, de outro a santa-sé, mil coisas.
O tempo que lhe deixavam essas mil coisas, e também seus ofícios e
seu breviário, gastava-o antes de tudo com os necessitados, enfermos e
aflitos; o tempo que os aflitos, os enfermos e os necessitados lhe
deixavam, gastava-o com o trabalho: ora cavava em seu jardim, ora lia e
escrevia. Usava uma única palavra para esses dois tipos de trabalho:
jardinar. “O espírito é um jardim”, dizia.
Por volta de meio-dia, quando o tempo estava bom, saía a pé,
passeando pelos campos ou pela cidade e, com frequência, entrando em
casebres. Era visto caminhando sozinho com seus pensamentos, olhos
baixos, apoiado em sua bengala, vestido com sua capa violeta acolchoada
e bem quente, calçado com meias violeta e grandes sapatos, usando seu
chapéu achatado que deixava passar, por suas três pontas, ornamentos
dourados.
Era uma festa em todos os lugares onde aparecia. Dir-se-ia que sua
passagem tinha algo de reanimador e de luminoso. As crianças e os idosos
vinham às soleiras das portas para vê-lo, assim como fazem para ver o sol.
Ele abençoava o povo, e o povo o abençoava. Sua casa era apontada a
quem quer que tivesse necessidade de alguma coisa.
Aqui e ali, ele parava, conversava com os meninos e com as meninas e
sorria para as mães. Visitava os pobres enquanto tinha dinheiro, e, quando
não o tinha mais, visitava os ricos.
Como ele fazia suas batinas durarem muito tempo e não queria que
ninguém notasse isso, nunca saía pela cidade sem sua capa violeta, o que o
incomodava um pouco no verão.
Ao voltar, jantava; e o jantar era semelhante ao desjejum.
Às oito e meia da noite, ceava com sua irmã; eram servidos pela
senhora Magloire, que se conservava de pé atrás deles. Nada mais frugal
do que essa refeição. No entanto, se o bispo recebia algum de seus curas
para a ceia, a senhora Magloire aproveitava para servir a monsenhor
algum dos excelentes peixes dos lagos ou alguma fina caça das montanhas.
Qualquer cura era um pretexto para uma boa refeição e o bispo não se
importava. Fora isso, seu trivial consistia em legumes cozidos na água e
sopa com azeite. Assim se dizia na cidade: Quando o bispo não se
alimenta como um cura, se alimenta como um trapista.
Depois da ceia, conversava durante uma meia hora com a senhorita
Baptistine e a senhora Magloire, recolhendo-se em seguida a seu quarto,
pondo-se novamente a escrever, ora em folhas soltas, ora na margem de
algum in-fólio. Era letrado e um tanto quanto erudito. Deixou cinco ou
seis curiosos manuscritos, entre os quais uma dissertação sobre o versículo
do Gênesis: No princípio o espírito de Deus pairava sobre as águas, com o
qual confronta três textos — o árabe, que diz: os ventos de Deus
sopravam; o de Flávio Josefo, que diz: Um vento do alto se precipitava
sobre a terra; e, finalmente, a paráfrase caldaica de Onquelos, em que se
lê: Um vento vindo de Deus soprava sobre a face das águas. Em outra
dissertação, examina as obras teológicas de Hugo, bispo de Ptolémaïs, tio-
bisavô do autor deste livro, concluindo que devem ser atribuídos a esse
bispo os diversos opúsculos publicados no século passado sob o
pseudônimo de Barleycourt.
Às vezes, durante uma leitura, qualquer que fosse o livro que tivesse
entre as mãos, caía subitamente em uma meditação profunda, da qual só
saía para escrever algumas linhas, até mesmo nas páginas do próprio
volume. Muitas vezes essas linhas não tinham relação alguma com o que
dizia o livro. Temos aqui uma nota escrita por ele em uma das margens de
um in-quarto intitulado: Correspondência do Lorde Germain com os
generais Clinton e Cornwallis e os almirantes da Estação da América.
Versalhes, Casa Poinçot, livreiro; Paris, Casa Pissot, cais de Augustins.
Eis a nota:

“Ó vós que sois!


O Eclesiastes vos nomeia Todo-Poderoso; Macabeus vos nomeia Criador; a Epístola aos
Efésios vos nomeia Liberdade; Baruch vos nomeia Imensidão; os Salmos vos nomeiam
Sabedoria e Verdade; São João vos nomeia Luz; o Livro dos Reis vos nomeia Senhor; o
Êxodo vos chama de Providência; o Levítico, Santidade; Esdras, Justiça; a Criação vos
nomeia Deus; o homem vos nomeia Pai; Salomão vos nomeia Misericórdia, e é este o mais
belo de vossos nomes”.

Por volta das nove horas da noite, as duas mulheres iam para seus
aposentos no primeiro andar, deixando-o sozinho no andar térreo até de
manhã.
Aqui, é necessário que passemos uma ideia exata da morada do bispo
de Digne.

VI. QUEM LHE GUARDAVA A CASA


Como já foi dito, a casa em que ele morava compunha-se de um andar
térreo e de um andar superior; três cômodos no térreo, três quartos no
superior e, acima deste, um sótão. Atrás da casa, um pequeno jardim. As
duas mulheres ocupavam o andar superior. O bispo ocupava o térreo. O
primeiro cômodo, que dava para a rua, servia-lhe de sala de refeições; o
segundo, de quarto de dormir, e o terceiro, de oratório. Não era possível
sair do oratório sem passar pelo quarto de dormir, e nem do quarto de
dormir sem passar pela sala de refeições. No fundo do oratório havia uma
alcova fechada, com uma cama de reserva para hóspedes. O senhor bispo
oferecia essa cama a todos os párocos de aldeia cujos assuntos ou
necessidades de suas paróquias traziam a Digne.
A farmácia do hospital, pequeno edifício adjunto à casa, com saída
para o jardim, fora transformado em cozinha e despensa.
Além disso, no jardim, onde antes ficava a antiga cozinha do hospital,
agora havia um pequeno estábulo, e o bispo ali mantinha duas vacas.
Qualquer que fosse a quantia de leite que estas lhe dessem, todas as
manhãs, invariavelmente, ele enviava a metade aos enfermos do hospital.
— Estou pagando meu dízimo — dizia.
Seu quarto era bem grande e bastante difícil de aquecer na estação do
frio. Como a lenha era muito cara em Digne, pensou em mandar fazer, no
estábulo, um compartimento fechado com pranchas. Era lá que passava
suas noites quando fazia muito frio. Chamava aquele local de seu salão de
inverno.
Não havia nesse salão de inverno, assim como na sala de refeições,
outros móveis além de uma mesa branca e quadrada de madeira e quatro
cadeiras de palha. A sala de refeições era decorada com um velho bufê,
pintado com um tom rosa diluído. De um bufê semelhante,
convenientemente adornado com toalhas brancas e rendas falsas, o bispo
fez o altar que decorava seu oratório.
Seus penitentes ricos e as devotas senhoras de Digne já se haviam
cotizado algumas vezes para cobrir os gastos com um belo altar novo para
o oratório de monsenhor; todas as vezes aceitou o dinheiro e o deu aos
pobres. “O mais belo de todos os altares”, dizia ele, “é a alma de um
infeliz consolado que agradece a Deus”.
Em seu oratório havia dois genuflexórios de palha; e uma poltrona
com braços, também de palha, ficava em seu quarto. Quando acontecia de
sete ou oito pessoas serem recebidas ao mesmo tempo, o prefeito, ou o
general, ou o estado-maior do regimento de guarnição, ou os alunos do
seminário, era preciso ir buscar, no estábulo, as cadeiras do salão de
inverno, no oratório, os genuflexórios e, no quarto de dormir, a poltrona;
desse modo, podiam-se reunir até onze assentos para os visitantes. A cada
nova visita retiravam-se os móveis de um cômodo.
Ocorria, às vezes, de estarem em doze; então o bispo disfarçava o
apuro da situação ficando de pé em frente à lareira, se fosse inverno, ou
passeando pelo jardim, se fosse verão.
Havia ainda uma cadeira na alcova fechada, mas, além de um tanto
desempalhada, só tinha três pernas, não podendo servir senão apoiada
contra a parede. Baptistine também tinha em seu quarto uma grande
poltrona de madeira, que já fora dourada, revestida de seda estampada;
mas como fora necessário levá-la ao andar superior pela janela, já que a
escada era demasiadamante estreita, não era possível contar com ela entre
o mobiliário eventual.
A senhorita Baptistine tivera a ambição de poder comprar uma mobília
para a sala em veludo amarelo estampado de Utrecht e madeira acaju, em
forma de pescoço de cisne, com canapé. Porém, isso teria custado pelo
menos quinhentos francos e, sabendo-se que em cinco anos ela não
conseguira economizar senão quarenta e dois francos e dez soldos, acabou
por renunciar a essa ideia. Aliás, quem é que consegue atingir seus ideais?
Nada mais simples de imaginar que o quarto de dormir do bispo. Uma
porta-balcão que dava para o jardim; em frente a ela, a cama, uma cama de
hospital, de ferro com cortinado de sarja verde; junto da cama, encobertos
por uma cortina, vários objetos de toucador, que traíam ainda seus antigos
hábitos elegantes de homem de sociedade; duas portas, uma perto da
lareira, dando entrada ao oratório, outra, próxima à biblioteca, dando
entrada à sala de refeições. A biblioteca, grande estante envidraçada cheia
de livros; a lareira, de madeira pintada como mármore, quase sempre
apagada e, dentro dela, um par de suportes para lenha, de ferro, ornados
com dois vasos com guirlandas e estrias, primitivamente em prata fosca, o
que era uma espécie de luxo episcopal; acima da lareira, um crucifixo de
cobre sem brilho, preso sobre um pedaço de veludo preto esgarçado com
moldura de madeira. Perto da porta-balcão, uma espaçosa mesa com um
tinteiro, muitos livros volumosos e uma confusão de papéis. Em frente à
mesa, a poltrona de palha, e, ao pé da cama, um genuflexório, pertencente
ao oratório.
De cada lado da cama, pendurados na parede, dois retratos com
molduras ovais. Pequenas inscrições douradas sobre o fundo escuro da
tela, ao lado das figuras, indicavam que os retratos representavam, um, o
abade De Chaliot, bispo de Saint-Claude, o outro, o abade Tourteau,
vigário-geral de Agde e abade de Grand-Champ, da ordem de Cister,
diocese de Chartres. O bispo, ao suceder os enfermos do hospital,
encontrara ali esses retratos, e ali os deixara. Eram padres e,
provavelmente, benfeitores, duas razões para que ele os respeitasse. Tudo
o que sabia sobre esses dois personagens era que ambos tinham sido
nomeados pelo rei, um a seu bispado, outro a seu benefício, no mesmo dia,
27 de abril de 1785. A senhora Magloire retirara os quadros para limpar o
pó, assim o bispo encontrou essa particularidade escrita em tinta
esmaecida sobre um quadradinho de papel amarelado pelo tempo, pregado
com quatro alfinetes atrás do retrato do abade de Grand-Champ.
Em sua janela havia uma antiga cortina de lã grosseira, já tão velha
que, para evitar despesa com uma nova, a senhora Magloire viu-se
obrigada a remendar com uma costura bem no meio. Essa costura
desenhava uma cruz. O bispo sempre apontava para ela e dizia: “Como
isso faz bem!”.
Todos os quartos da casa, tanto os do andar térreo como os do andar
superior, eram caiados de branco, à maneira dos hospitais e quartéis.
No entanto, nos últimos anos, a senhora Magloire, como será visto
adiante, encontrou sob o papel caiado outras cores que ornavam o quarto
de Baptistine. Antes de ser hospital, aquela casa servira de parlatório aos
burgueses, e daí provinha aquela decoração. Os quartos tinham piso de
tijolos, que toda semana era lavado, e, aos pés de cada cama, havia um
capacho de palha. De resto, essa habitação, a cargo das duas mulheres, era,
de alto a baixo, da mais fina limpeza, único luxo que o bispo permitia.
Dizia: Isso não tira nada dos pobres.
Deve-se, porém, declarar que lhe haviam restado, daquilo que antes
possuíra, seis talheres de prata e uma concha que a senhora Magloire via
todos os dias, com satisfação, reluzirem sobre a grossa toalha de tecido
branco.
E, já que aqui pintamos o bispo de Digne tal como era, devemos
acrescentar que mais de uma vez ocorreu-lhe dizer: “Dificilmente eu
renunciaria a comer com talheres de prata”.
A esses objetos devem-se acrescentar dois castiçais de prata maciça
que herdara de uma tia-avó. Os castiçais sustentavam duas velas de cera e
normalmente ficavam em cima da lareira. Quando o bispo recebia alguém
para jantar, a senhora Magloire acendia as duas velas e punha os castiçais
na mesa.
No quarto do bispo, junto à cabeceira da cama, havia um pequeno
armário dentro do qual a senhora Magloire guardava, toda noite, os seis
talheres de prata e a concha. É necessário dizer que a chave do armário
nunca era tirada dali.
O jardim, um pouco deteriorado pelas construções bem feias das quais
falamos, era composto de quatro alamedas formando uma cruz, com um
tanque no centro. Uma outra alameda contornava o jardim ao longo da
parede branca que o fechava. Nos intervalos dessas alamedas desenhavam-
se quatro canteiros com bordas de grama. Em três deles, a senhora
Magloire cultivava legumes; no outro, o bispo plantara flores. Aqui e ali,
algumas árvores frutíferas.
Uma vez, a senhora Magloire disse a ele, com uma espécie de doce
malícia: “Monsenhor, o senhor, que tira proveito de tudo, tem aqui um
canteiro inútil! Mais valeria ali plantar saladas do que flores”. “Senhora
Magloire”, respondeu o bispo, “a senhora está enganada. O belo é tão útil
quanto o que é útil”. E após um momento de silêncio acrescentou: “Até
mais, talvez”.
Esse canteiro, composto por três ou quatro alegretes, ocupava o bispo
quase tanto quanto seus livros. Ali passava, com gosto, uma ou duas horas,
podando, cavando, abrindo na terra covas onde colocava as sementes. Era
menos hostil com os insetos do que seria um jardineiro. De resto, nenhuma
pretensão em relação à botânica; ignorava os grupos e o solidismo, não
procurava, nem de longe, decidir entre Tournefort e o método natural, nem
tomar partido pelos utrículos contra os cotilédones, ou por Jussieu contra
Linné. O bispo não estudava as plantas, amava as flores. Respeitava muito
os sábios, respeitava ainda mais os ignorantes e, sem deixar de respeitar
uns e outros, regava seus alegretes todas as noites de verão com um
regador de lata pintado de verde.
Em toda a casa não havia uma só porta fechada à chave. A porta da
sala de jantar, que, como dissemos, dava para a praça da catedral, fora,
anteriormente, guarnecida de fechaduras e trancas como a porta de uma
prisão. O bispo mandou tirar toda a ferragem e, fosse de noite ou fosse de
dia, ficava fechada apenas com o trinco. A qualquer hora, quem quisesse
poderia abri-la.
Nos primeiros tempos, isso afligia as duas mulheres; mas o bispo de
Digne lhes disse:
— Mandem colocar trancas em seus quartos, se for de seu agrado.
Elas acabaram por partilhar da confiança dele ou pelo menos parecer
partilhar. Apenas a senhora Magloire é que, de tempos em tempos, ainda
tinha seus medos. No que diz respeito ao bispo, podemos ter seu
pensamento explicado, ou ao menos indicado, nestas três linhas escritas
por ele à margem de uma Bíblia: “Eis a nuance: a porta de um médico
nunca deve estar fechada; a porta de um sacerdote deve sempre estar
aberta”.
Em um outro livro, intitulado Filosofia da Ciência Médica, escreveu
esta outra nota: “Acaso eu não seria médico, assim como eles? Também
tenho meus enfermos; primeiro, tenho os deles, a quem chamam de
doentes; depois, tenho os meus, a quem chamo de infelizes”.
Em outro lugar havia escrito ainda: “Não perguntem o nome a quem
lhes pede ajuda. É sobretudo aquele a quem o nome constrange que
necessita de asilo”.
Ocorreu de um digno cura, não sei mais se o cura Couloubroux ou se o
cura Pompierry, perguntar-lhe um dia, provavelmente instigado pela
senhora Magloire, se ele estava bem certo de não cometer, até certo ponto,
uma imprudência, deixando dia e noite sua porta aberta, à disposição de
quem quisesse entrar; e se ele não temia, enfim, que acontecesse alguma
desgraça em uma casa tão desprotegida. O bispo tocou-lhe os ombros com
uma doce gravidade e disse-lhe: Nisi Dominus custodierit domum, in
vanum vigilant qui custodiunt eam.2 Em seguida, falou de outras coisas.
Dizia com bastante gosto: “Há a bravura do sacerdote assim como há a
bravura do coronel dos dragões”. E acrescentava: “Só que a nossa deve ser
tranquila”.

VII. CRAVATTE
Aqui naturalmente se coloca um fato que não podemos omitir, pois é
daqueles que melhor mostram o homem que era o senhor bispo de Digne.
Após a eliminação do bando de Gaspard Bès — bandido executado em
Aix em 1781 —, que havia desolado os desfiladeiros de Ollioules, um de
seus cabeças, Cravatte, refugiou-se nas montanhas. Escondeu-se por algum
tempo com seus bandidos, o resto do bando de Gaspard Bès, no condado
de Nice, indo depois para o Piemonte e, de repente, reaparecendo na
França, para os lados de Barcelonnette. Primeiro, foi visto em Jauziers, e,
depois, em Tuiles. Escondeu-se nas cavernas de Joug-de-l’Aigle, e daí
desceu em direção aos lugarejos e pequenas vilas pelas quebradas de
Ubaye e Ubayette. Chegou até mesmo a Embrun, penetrando uma noite na
catedral e roubando a sacristia. Seus assaltos desolavam a região. Em vão
o corpo de guarda foi posto em seu encalço. Ele sempre escapava; algumas
vezes resistia à força. Era um ousado miserável. Em meio a todo esse
horror, o bispo chegou; fazia sua visita a Chastelar. O prefeito veio
encontrá-lo e convencê-lo a dar meia-volta. Cravatte tomara a montanha
até Arche e mesmo além. Haveria perigo, até com uma escolta; seria expor
inutilmente três ou quatro infelizes soldados.
— Eu também — disse o bispo — penso em seguir sem escolta.
— Monsenhor pensa assim? — exclamou o prefeito.
— Tanto penso assim que recuso absolutamente os soldados e vou
partir em uma hora.
— Partir?
— Partir.
— Sozinho?
— Sozinho.
— Monsenhor, não faça isso!
— Existe nessas montanhas — replicou o bispo — um pequeno e
humilde lugarejo que não visito há três anos. São meus bons amigos.
Afáveis e honestos pastores. Eles possuem uma cabra em cada trinta que
pastoreiam; fazem belos cordões de lã de diversas cores; tocam árias
montanhesas em flautins de seis furos. Precisam ouvir a palavra de Deus
de tempos em tempos. Que diriam eles de um bispo que tem medo? Que
diriam se eu não fosse até lá?
— Mas, monsenhor, e os salteadores?
— Olhe — respondeu o bispo —, eu penso nisso. O senhor tem razão.
Posso encontrá-los. Também eles talvez precisem ouvir a palavra de Deus!
— Monsenhor, mas é uma quadrilha, um bando de lobos!
— Senhor prefeito, talvez seja desse rebanho que Jesus queira fazer-
me pastor. Quem conhece os desígnios da Providência?
— Mas, monsenhor, podem roubá-lo.
— Não levo nada.
— Podem matá-lo.
— Um pobre padre que passa resmungando alguma coisa? Ora, a troco
de quê?
— Ah, meu Deus! Se o senhor os encontrar…
— Pedirei esmola para os meus pobres.
— Em nome do céu, monsenhor, não vá! O senhor expõe sua vida.
— Senhor prefeito — disse o bispo —, decididamente não é só isso; eu
não estou no mundo para guardar a minha vida, mas para guardar almas!
Foi preciso deixá-lo agir. Ele partiu acompanhado apenas de um garoto
que se ofereceu a servir-lhe de guia. Sua obstinação deu muito o que falar
e causou medo.
Não quis levar nem sua irmã nem a senhora Magloire. Atravessou a
serra em um burro, não encontrou ninguém e chegou são e salvo onde
viviam seus “bons amigos” pastores. Ali permaneceu por quinze dias,
pregando, ensinando, moralizando, administrando os sacramentos. Quando
estava para partir, resolveu cantar pontificialmente um Te Deum. Falou
sobre isso ao cura, mas como fazer? Não havia ornamentos episcopais. Só
foi possível colocar à sua disposição uma insignificante sacristia de aldeia,
com alguns velhos aparatos sacerdotais desgastados e enfeitados com
falsos galões.
— Ora, senhor cura, anunciemos assim mesmo nosso Te Deum nas
pregações — disse o bispo —; as coisas hão de se arranjar.
Procuraram nas igrejas das vizinhanças. Nem todas as magnificências
dessas humildes paróquias reunidas teriam sido suficientes para
paramentar um cantor de catedral.
Em meio a esse embaraço, uma grande caixa, destinada ao senhor
bispo, foi levada e colocada no presbitério por dois cavaleiros
desconhecidos que partiram imediatamente. A caixa foi aberta; continha
um manto de tecido dourado, uma mitra ornada de diamantes, uma cruz
arquiepiscopal, um magnífico bastão episcopal, todas as vestimentas
pontificiais roubadas um mês antes do tesouro de Nossa Senhora de
Embrun. Dentro da caixa, havia um papel no qual foram escritas estas
palavras: De Cravatte para Monsenhor Bienvenu.
— Bem que eu dizia que as coisas se arranjariam! — disse o bispo; e
acrescentou sorrindo: — Para quem se contenta com uma capa de cura,
Deus envia um manto de arcebispo.
— Monsenhor — murmurou o cura balançando a cabeça com um
sorriso —, Deus, ou o diabo.
O bispo olhou fixamente para o cura e replicou com autoridade:
— Deus!
Quando retornou a Chastelar, e, ao longo de toda a estrada, vinham
olhá-lo por curiosidade. No presbitério de Chastelar, reencontrou a
senhorita Baptistine e a senhora Magloire, que o esperavam; ele disse a
sua irmã:
— Bem, eu não tinha razão? O pobre padre vai ver seus pobres
montanheses de mãos vazias e volta de lá de mãos cheias. Parti levando
apenas minha confiança em Deus; trago de volta o tesouro de uma
catedral.
À noite, antes de dormir, disse ainda: “Nunca temamos nem os ladrões
nem os assassinos. Estes são perigos externos, pequenos perigos. Temamos
a nós mesmos. Os preconceitos, esses são os ladrões; os vícios, esses são
os assassinos. Os grandes perigos estão dentro de nós. Que importa o que
ameaça nossa vida ou nossas bolsas?! Preocupemo-nos apenas com o que
ameaça nossa alma”.
Depois, voltando-se para Baptistine: “Minha irmã, por parte de um
padre, jamais pode haver precaução contra o próximo. O que faz o
próximo, Deus é que permite. Limitemo-nos a rogar a Deus quando
tememos que um perigo nos atinja. Peçamos a Ele, não por nós, mas para
que nosso irmão não caia em tentação por nossa causa”.
De resto, os acontecimentos eram raros em sua existência. Contamos
aqueles que conhecemos; mas, normalmente, passava sua vida fazendo
sempre as mesmas coisas, nos mesmos momentos. Um mês de seu ano
parecia uma hora de seu dia.
Quanto ao destino que levou o “tesouro” da catedral, ficaríamos
embaraçados se alguém nos perguntasse sobre ele. Eram mesmo belas
coisas, e bem tentadoras, muito boas para serem furtadas em proveito dos
desvalidos.
Furtadas, aliás, elas já estavam. Metade da aventura estava terminada;
o que faltava era apenas mudar a direção do furto, fazendo com que
andasse só mais um pequeno pedaço de caminho rumo aos pobres. Nada
mais afirmaremos a esse respeito. Somente que encontramos nos papéis do
bispo uma nota bastante obscura que talvez se reporte a esse caso, assim
concebida: A questão é saber se isso deve voltar à catedral ou ao hospital.

VIII. FILOSOFIA DEPOIS DE BEBER


O senador, de quem já falamos, era um homem entendido, que fizera
seu caminho com uma retidão pouco atenta a todos esses encontros que
criam obstáculo, chamados consciência, fé jurada, justiça, dever; havia
caminhado diretamente para seus objetivos sem se desviar uma só vez de
sua linha de avanço e de seus interesses. Era um antigo procurador
enternecido pelo sucesso, homem nada maldoso, sempre pronto a fazer
favores aos filhos, genros, parentes e até amigos; havia sabiamente
aproveitado o lado bom da vida, as boas oportunidades, a boa sorte. O
resto lhe parecia bobagem. Era espirituoso e instruído o suficiente para
acreditar-se um discípulo de Epicuro, mas talvez não passasse de um
produto de Pigault-Lebrun. Ria com gosto, e agradavelmente, das coisas
infinitas e eternas, e das “ideias quiméricas do bom bispo”. Ria disso
algumas vezes, com amável autoridade, na presença do próprio senhor
Myriel, que escutava.
Não sei mais em que cerimônia semioficial, o conde *** (esse
senador) e o senhor Myriel tiveram de jantar na casa do prefeito. Durante a
sobremesa, o senador, um tanto animado, embora sempre digno,
exclamou:
— Vamos lá, senhor bispo, conversemos um pouco. Um senador e um
bispo raramente se olham sem piscar os olhos. Nós somos dois adivinhos.
Vou fazer-lhe uma revelação. Tenho minha filosofia.
— E faz bem — respondeu o bispo. — Do modo como filosofamos,
nos deitamos. O senhor está em uma cama púrpura, senhor senador.
O senador, encorajado, retomou:
— Sejamos bons rapazes!
— Bons diabos, mesmo! — disse o bispo.
— Declaro-lhe — prosseguiu o senador — que o marquês de Argens,
Pyrrhon, Hobbes e o senhor Naigeon não são marotos. Tenho em minha
estante todos os meus filósofos ricamente encadernados.
— Como o senhor mesmo, conde! — interrompeu o bispo.
O senador prosseguiu:
— Odeio Diderot! É um ideólogo, um declamador, um revolucionário
que, no fundo, acredita em Deus e é ainda mais fanático que Voltaire!
Voltaire escarnecia de Needham e não tinha razão, porque as enguias de
Needham provam que Deus é inútil. Uma gota de vinagre em uma
colherada de pasta de farinha substitui o fiat lux. Imaginem a maior gota e
a maior colherada, e aí têm o mundo! O homem é a enguia! Então, para
que serve o Pai Eterno? Senhor bispo, a hipótese de Jeová me cansa. Só
serve para produzir gente magra, de pensamento vazio. Abaixo esse grande
Todo que me atormenta! Viva o Zero, que me deixa tranquilo! Aqui entre
nós, para esvaziar o saco e confessar-me como convém ao meu pastor,
declaro-lhe que tenho bom senso. Não morro de amores por seu Jesus, que
a cada canto prega o desapego e o sacrifício. Conselho de avarento a
mendigos! Desapego de quê? Sacrifício por quê? Não vejo um lobo se
sacrificando pela felicidade de outro lobo. Vamos ficar com as leis da
Natureza. Estamos no topo, tenhamos uma filosofia superior. De que vale
estar no topo se não vemos um palmo diante do nariz? Vivamos
alegremente. A vida é tudo! Que o homem tenha um outro futuro em outro
plano, acima, abaixo, em qualquer lugar, não creio em uma só palavra!
Recomendam-me desapego e sacrifício, devo ficar atento a tudo que faço,
preciso quebrar a cabeça a respeito do bem e do mal, do justo e do injusto,
do lícito e do ilícito. Por quê? Porque terei de prestar contas sobre minhas
ações. Quando? Depois da morte. Que belo sonho! Após minha morte, bem
esperto quem me pegar! Imaginem se é possível uma sombra agarrar um
punhado de cinzas! Falemos a verdade, nós, os iniciados, a quem foi dado
levantar o véu de Ísis: não há nem o bem nem o mal; há vegetação.
Procuremos o real; cavemos até o fundo, que diabo! É preciso pressentir a
verdade, buscar sob a terra, agarrá-la. Então ela lhe dá delicadas alegrias!
Então você se torna forte e ri. Senhor bispo, a imortalidade da alma é uma
promessa ilusória. Oh! Encantadora promessa! Contem com isso… eis
uma promessa sem valor algum! Somos alma, seremos anjo, teremos asas
azuis nos ombros. Ajude-me, então; não foi Tertuliano quem disse que os
bem-aventurados andarão de astro em astro? Que seja. Seremos os
gafanhotos das estrelas. E depois veremos Deus. Ora! Tolices, todos esses
paraísos! Deus é uma futilidade monstro. Eu não diria isso no Moniteur,3
caramba! Mas posso cochichar, aqui entre amigos. Inter pocula.4
Sacrificar a Terra pelo paraíso é largar a presa pela sombra! Ser enganado
pelo paraíso! Nada mais tolo! Sou o nada. Chamo-me senhor conde Nada,
senador. Eu existia antes de meu nascimento? Não. Existirei depois de
minha morte? Não. O que eu sou? Um pouco de pó agregado por um
organismo. O que tenho a fazer sobre esta terra? Tenho a escolha. Sofrer
ou gozar. Onde me levará o sofrimento? Ao nada. Mas terei sofrido. Onde
me levará o gozo? Ao nada. Mas terei gozado. Minha escolha está feita. É
preciso ser devorador ou devorado. Eu devoro. Antes ser dente do que
erva. Essa é minha verdade. Depois disso, mais nada, o coveiro está ali, o
Panteão para todos nós, tudo cai no grande buraco. Fim. Finis. Liquidação
total. Esse é o lugar do desfalecimento. A morte está morta, acredite-me.
Que exista ali alguém que tenha algo a dizer-me, rio só de pensar.
Histórias da carochinha. Para as crianças, o papão; para os homens, Jeová.
Não, nosso amanhã é escuridão. Além do túmulo, nada mais que a
igualdade do nada. Sardanapalo ou Vicente de Paulo, quem quer que tenha
sido, dá no mesmo nada. Essa é a verdade! Portanto, acima de tudo,
vivamos. Usemos nosso eu enquanto o possuímos. Na verdade, digo-lhe,
senhor bispo, tenho minha filosofia e tenho meus filósofos. Não me deixo
levar por frivolidades! Depois disso, é preciso haver alguma coisa para
aqueles que estão por baixo, para os pés-descalços, para os de pequeno
ganho, para os miseráveis. Fazem-nos engolir as lendas, as quimeras, a
alma, a imortalidade, o paraíso, as estrelas. E eles mastigam tudo. E
colocam em seu pão seco. Quem não tem nada tem o bom Deus. É o
mínimo. De minha parte, não coloco obstáculos, mas fico com o senhor
Naigeon. O bom Deus é bom para o povo!
O bispo bateu palmas.
— Isso é que é falar! — exclamou ele. — Coisa excelente, realmente
maravilhosa, esse materialismo! Não é para quem quer. Ah! Quem o
incorpora não é mais enganado; não se deixa exilar, como Catão, nem
apedrejar, como Santo Estêvão, nem queimar vivo, como Joana d’Arc! Os
que conseguiram chegar a tão admirável materialismo gozam a alegria de
se sentir irresponsáveis e de pensar que podem devorar tudo sem
preocupação, empregos, sinecuras, dignidades, o poder, bem ou mal
adquirido, retratações lucrativas, traições úteis, saborosas capitulações de
consciência, e de pensar que entrarão no túmulo, depois de bem feita a
digestão. Que agradável! Eu não digo isso para o senhor, senador. No
entanto, não posso deixar de felicitá-lo! Vocês, grandes senhores, têm,
como o senhor diz, uma filosofia própria e feita para vocês, requintada,
refinada, acessível unicamente aos ricos, boa para todos os molhos,
codimentando admiravelmente todas as volúpias da vida! Essa filosofia
foi tirada das profundezas e extraída por pesquisadores especiais. Mas
vocês têm bom coração, não acham ruim que a crença em Deus seja a
filosofia do povo; mais ou menos como se o pato com castanhas fosse o
peru recheado com trufas do pobre!

IX. RETRATO DO IRMÃO FEITO PELA IRMÃ


Para dar uma ideia do viver interior do senhor bispo de Digne, e do
modo como aquelas duas virtuosas moças subordinavam suas ações, seus
pensamentos, e até seus instintos de mulheres assustadiças aos hábitos e
intenções do bispo, sem que ele tivesse sequer o trabalho de falar para
exprimi-los, nada melhor do que transcrever uma carta escrita pela
senhorita Baptistine à viscondessa de Boischevron, sua amiga de infância.
Essa carta está em nossas mãos:

Digne, 16 de dezembro de 18…


“Minha cara, não passa um só dia sem falarmos da senhora. É nosso costume, mas há
também outra razão. Imagine que, lavando e tirando a poeira do teto e das paredes, a
senhora Magloire fez algumas descobertas; agora nossos dois quartos, até aqui forrados de
antigo papel branco caiado, não fariam feio em um palacete como o seu. A senhora
Magloire rasgou todo o papel, e, por baixo, havia algumas coisas. Minha sala, onde não há
móveis, e da qual nos servimos para estender a roupa que lavamos, tem quatro metros e
meio de altura e cinco metros e meio quadrados de superfície, um teto há muito pintado de
dourado, e vigas como as de sua casa. Estava recoberta por uma tela do tempo em que era
hospital. Enfim, um madeiramento do tempo de nossas avós. Mas é meu quarto que se deve
observar. Por baixo de pelo menos dez camadas de papel, a senhora Magloire descobriu
pinturas que, mesmo não sendo boas, podem ser mantidas. Uma é de Telêmaco recebido
como cavaleiro por Minerva; a outra, cujo nome não recordo, também o retrata nos jardins,
aonde as damas romanas iam uma única noite. O que eu poderia lhe dizer? Há romanos e
romanas, (nesta passagem, há uma palavra ilegível) e toda a sequência. A senhora Magloire
limpou tudo; neste verão, ela vai reparar algumas pequenas avarias, vai envernizar tudo
novamente, e meu quarto se tornará um verdadeiro museu. Ela também encontrou, em um
canto do sótão, dois consoles de madeira à moda antiga. Pedem duas moedas de seis libras
para dourá-los novamente, mas vale mais a pena dá-los aos pobres; aliás, são muito feios, eu
gostaria mais de uma mesa redonda de acaju.
Estou sempre muito feliz. Meu irmão é muito bom. Ele dá tudo o que tem aos indigentes
e aos doentes. Passamos muitas necessidades. O inverno é duro nesta região, e é mesmo
preciso fazer alguma coisa pelos despossuídos. Temos aquecimento e iluminação. Como vê,
já é uma grande coisa.
Meu irmão tem seus hábitos. Quando conversa, diz que um bispo deve ser assim.
Imagine que a porta da rua nunca está fechada. Entra quem quiser, e, em um instante, se
chega aos aposentos de meu irmão. Ele não teme nada, nem mesmo durante a noite. Como
ele diz, é uma coragem só dele.
Não quer que eu, nem que a senhora Magloire temamos por ele. Expõe-se a todos os
perigos e não quer que demonstremos nos aperceber disso. É preciso saber compreendê-lo.
Sai debaixo de chuva, anda na água, viaja no inverno. Não tem medo da noite, nem das
estradas suspeitas, nem dos possíveis encontros.
Ano passado, foi sozinho a uma região de ladrões. Não quis nos levar. Ficou quinze dias
ausente. Quando voltou, nada havia acontecido; acreditávamos que estivesse morto; ele
estava bem e disse: Foi assim que me roubaram! E abriu uma mala cheia de todas as joias
da catedral de Embrun que os salteadores lhe haviam dado.
Dessa vez, ao retornar, não pude impedir-me de ralhar com ele, tomando o cuidado de
falar apenas quando o carro fazia barulho, para que ninguém pudesse ouvir.
No princípio, dizia a mim mesma: não há perigo que o faça parar, ele é terrível. Agora
acabei por me acostumar. Faço sinal à senhora Magloire para que ela não o contrarie. Ele
que se arrisque como quiser. Subo com a senhora Magloire, rezo por ele, e adormeço. Fico
tranquila porque bem sei que se lhe acontecesse alguma desgraça seria meu fim. Eu iria
reunir-me a Deus com meu irmão e meu bispo. A senhora Magloire penou mais que eu para
se acostumar ao que ela chamava de imprudências dele. Mas agora teve de se acostumar.
Nós duas rezamos, nós duas temos medo juntas e então adormecemos. O diabo poderia
entrar em nossa casa e não faríamos nada. Afinal, o que temos a temer nesta casa? Sempre
há conosco alguém que é o mais forte. O diabo até poderá passar pela casa, mas quem a
habita é o bom Deus!
É quanto me basta. Meu irmão agora nem precisa dizer-me uma palavra. Eu o
compreendo sem que fale, e nos abandonamos nas mãos da Providência.
É assim que se deve conviver com um homem que tem essa grandeza de espírito.
Perguntei a meu irmão, para poder dar as informações que a senhora me pede, sobre a
família de Faux. A senhora sabe como ele conhece tudo e como se lembra de tudo, pois
continua um bom realista. Efetivamente, é uma antiquíssima família normanda do generalato
de Caen. Há quinhentos anos, já existiam um Raoul de Faux, um Jean de Faux e um Thomas
de Faux, todos fidalgos, e um deles senhor de Rochefort. O último foi Guy-Étienne–
Alexandre, mestre de campo e alguma coisa na cavalaria ligeira da Bretanha. Sua filha
Marie-Louise casou-se com Adrien Charles de Gramont, filho do duque Louis de Gramont,
par de França, coronel das guardas francesas e tenente-general dos exércitos. Escreve-se
Faux, Fauq ou Faoucq.
Minha boa senhora, peço-lhe que nos recomende às orações do seu santo parente, o
senhor cardeal. Quanto à sua querida Sylvanie, ela fez bem em não perder os curtos
instantes que passa perto da senhora para escrever-me.
Ela está bem, trabalha como a senhora deseja, gosta de mim como sempre. É tudo que
quero. As lembranças que ela quis transmitir-me chegaram pela senhora e fizeram-me feliz.
Minha saúde não está tão má, e, no entanto, cada dia estou mais magra. Adeus, o papel está
acabando, obrigando-me a parar. Mil coisas boas.
Baptistine.

P. S. — Seu sobrinho neto é um encanto. Sabe que logo vai fazer cinco anos? Ontem,
vendo passar um cavalo no qual haviam colocado joelheiras, perguntou: O que ele tem nos
joelhos? É tão bonzinho esse menino! O irmãozinho dele arrasta uma vassoura velha pelo
apartamento como se fosse um carrinho e diz: Vrum…!”

Como se vê por essa carta, as duas mulheres sabiam adaptar-se ao


modo de ser do bispo, com esse talento particular da mulher que
compreende o homem melhor do que ele mesmo se compreende. O bispo
de Digne, sob aquela aparência doce e cândida, que nada era capaz de
alterar, fazia às vezes coisas grandes, arrojadas e magníficas, do jeito mais
natural e simples do mundo. Elas estremeciam, mas não lhe opunham
resistência. Algumas vezes a senhora Magloire tentava uma advertência
antecipada; nunca durante nem depois. Jamais o perturbavam, nem com
um simples sinal, em uma ação já começada. Em certos momentos, sem
que ele precisasse dizer, quando talvez nem ele mesmo tivesse
consciência, tanto sua simplicidade era perfeita, elas sentiam vagamente
que agia como bispo; então não eram mais que duas sombras dentro da
casa. Serviam-no passivamente, e, se para obedecer tinham de
desaparecer, desapareciam. Elas sabiam, com uma admirável delicadeza
institiva, que alguns cuidados podem constranger. Por isso, ainda que o
julgassem em perigo, compreendiam, não digo seu pensamento, mas sua
natureza, a ponto de não mais velarem por ele. Elas o confiavam a Deus.
Além disso, como acabamos de ler, Baptistine dizia que a morte de seu
irmão seria sua própria morte. A senhora Magloire não dizia isso, mas
também o sabia.

X. O BISPO EM PRESENÇA DE UMA LUZ


DESCONHECIDA
Em época pouco posterior à data da carta citada nas páginas
precedentes, ele fez uma coisa, na opinião de toda a cidade, ainda mais
arriscada do que sua jornada pelas montanhas dos bandidos.
Havia, nos arrabaldes de Digne, um homem que vivia solitário. Esse
homem, vamos logo dizer o palavrão, era um antigo convencional.
Chamava-se G.
Falava-se no convencional G., entre o povo de Digne, com uma espécie
de horror. Um convencional, podem imaginar? Isso existia desde o tempo
em que nos tratávamos por você e dizíamos: cidadão. Esse homem era
mais ou menos um monstro; não tinha votado pela morte do rei, mas
quase. Era um quase-regicida, um homem que fora terrível. Com a volta
dos príncipes legítimos, como não haviam levado aquele homem diante de
uma corte inapelável? Que não lhe cortassem a cabeça, vá lá, que é preciso
haver clemência, pode ser; mas um belo banimento para sempre… Um
exemplo, enfim! Etc., etc. Além de tudo, era ateu, como todas aquelas
pessoas. Mexericos sobre o abutre.
E o convencional G. seria realmente um abutre?
Sim, a julgá-lo pelo que havia de esquivo em sua solidão. Não tendo
votado pela morte do rei, não fora incluído nos decretos de exílio e pudera
permanecer na França.
Morava a três quartos de hora da cidade, longe de qualquer povoado,
longe de qualquer estrada, não se sabe em que dobra perdida de um
valezinho muito selvagem. Ali, ele tinha, diziam, uma espécie de campo,
um buraco, um esconderijo. Nada de vizinhos, nem mesmo passantes.
Depois que fora residir nesse vale, o caminho que levava até lá
desaparecera sob o mato. Falava-se daquele lugar como se fosse a casa do
carrasco.
No entanto, o bispo pensava nesse homem e, de tempos em tempos,
olhava o horizonte no ponto em que o arvoredo marcava o vale do velho
convencional, e dizia: “Há ali uma alma solitária!”
E, no fundo de seu pensamento, acrescentava: “Eu lhe devo uma
visita”.
Mas, confessemos, tal ideia, à primeira vista natural, parecia-lhe, após
um momento de reflexão, estranha, impossível e quase repulsiva, porque,
no fundo, ele partilhava da impressão geral, inspirando-lhe o
convencional, sem que se desse claramente conta, esse sentimento que está
na fronteira do ódio, tão bem expresso pela palavra aversão. Acaso deve a
lepra da ovelha afugentar o pastor? Não. Mas que ovelha!
O virtuoso bispo estava perplexo. Às vezes ia para aqueles lados,
depois dava meia-volta.
Um dia, enfim, espalhou-se na cidade o boato de que um pastorzinho,
que servia o convencional G. em seu casebre, viera à cidade procurar um
médico; que o velho perverso estava morrendo, que uma paralisia o
tomava, que ele não passaria daquela noite.
— Graças a Deus! — acrescentavam alguns.
O bispo pegou sua bengala, colocou sua capa, por causa do mau estado
da batina, bem como por causa do vento da noite que não tardaria a soprar,
e saiu.
O sol declinava, e quase tocava o horizonte, quando o bispo chegou ao
local excomungado. Reconheceu, com o coração em sobressalto, estar
perto do covil. Saltou um fosso, transpôs uma sebe, abriu uma cancela,
entrou em uma horta abandonada, avançou alguns passos afoitamente e
logo, ao fundo do terreno, por trás de uma forte névoa, entreviu a caverna.
Era uma cabana bem baixa, pobre, pequena e limpa, com uma parreira
amarrada à fachada.
Em frente à porta, em uma velha cadeira de rodas, poltrona do
camponês, havia um homem de cabelos brancos que sorria ao sol.
Junto ao velho sentado, um jovem, o pastorzinho, mantinha-se de pé e
estendia-lhe uma tigela de leite.
Enquanto o bispo o olhava, o velho elevou a voz: “Obrigado, não
preciso de mais nada”. E seu sorriso deixou o sol para se deter no rapaz.
O bispo avançou. Ao rumor de seus passos, o velho, que estava
sentado, voltou a cabeça, e seu rosto mostrou toda a surpresa que alguém
pode ter depois de uma longa existência.
— Desde que moro aqui — disse ele —, esta é a primeira vez que
entram em minha casa. Quem é o senhor?
— Meu nome é Bienvenu Myriel — respondeu o bispo.
— Bienvenu Myriel? Já ouvi esse nome. É o senhor a quem chamam
Monsenhor Bienvenu?
— Sou eu.
O velho prosseguiu com meio sorriso:
— Nesse caso, o senhor é meu bispo?
— Mais ou menos.
— Entre, senhor.
O convencional estendeu a mão ao bispo, que, no entanto, não
correspondeu. Limitou-se a dizer:
— Estou satisfeito de ver que haviam-me enganado. O senhor
realmente não me parece estar doente.
— Senhor — respondeu o velho —, vou me curar.
Fez uma pausa e disse:
— Dentro de três horas, estarei morto.
Em seguida, continuou:
— Sou um pouco médico, conheço de que maneira a última hora
chega. Ontem, só tinha os pés frios; hoje tenho também os joelhos, e sinto
que o frio me sobe até a cintura; quando chegar ao coração, acabou-se! O
sol está lindo, não é? Pedi que me trouxessem para fora, para dar uma
última olhada nas coisas. O senhor pode conversar comigo, isso não me
cansa. Fez bem em vir visitar um homem que vai morrer. É bom que esse
momento tenha testemunhas. Cada qual tem sua mania; gostaria de durar
até o nascer do sol, mas sei que só me restam três horas. Será noite. Mas
que importa! Acabar é algo simples. Não precisamos da manhã para isso.
Que seja. Vou morrer ao ar livre.
E, voltando-se para o pastorzinho, disse-lhe:
— Vá deitar-se. Você passou a outra noite em claro; está cansado.
O rapaz entrou na cabana.
O velho o seguiu com o olhar e acrescentou como se dissesse a si
próprio:
— Eu vou morrer enquanto ele estiver dormindo. Os dois sonos podem
ser bons vizinhos.
O bispo não estava comovido, como parece que ele poderia ter ficado.
Não acreditava sentir Deus naquele modo de morrer. Vamos dizer tudo,
pois as pequenas contradições dos grandes corações querem ver-se
declaradas como todo o resto: ele, que às vezes ria com prazer quando era
tratado por Sua Grandeza, estava um tanto chocado por não ter sido
chamado de monsenhor, e quase viu-se tentado a replicar: cidadão!
Acometera-lhe uma veleidade de ríspida familiaridade, muito comum
em médicos e em padres, mas que não lhe era habitual. Talvez pela
primeira vez em sua vida o bispo se sentia com espírito de severidade;
afinal de contas, aquele homem, aquele convencional, aquele representante
do povo, tinha sido um poderoso da terra.
O convencional, no entanto, o contemplava com uma modesta
cordialidade, na qual talvez se distinguisse a humildade que convém a
quem está próximo de tornar-se pó.
O bispo, por seu lado, embora normalmente evitasse a curiosidade, que
em seu entender era contígua à ofensa, não podia impedir-se de examinar
o convencional com uma atenção que, não provindo de um sentimento de
simpatia, certamente seria reprovada por sua consciência face a qualquer
outro homem. Um convencional causava-lhe certa impressão de estar fora
da lei, até mesmo fora da lei da caridade.
G., calmo, o corpo quase reto, a voz vibrante, era um desses
octogenários que causam admiração aos fisiologistas.
A Revolução teve muitos desses homens equilibrados com sua época.
Sentia-se nesse velho um homem a toda prova. Tão próximo de seu fim,
conservava todos os movimentos da saúde. Em seu olhar límpido, em seu
acento firme, em seu robusto mover de ombros, havia algo para
desconcertar a morte. Azrael, o anjo maometano do sepulcro, teria
retrocedido, julgando ter-se enganado de porta. G. parecia morrer porque
assim o desejava. Havia liberdade em sua agonia. Somente as pernas
estavam imóveis. A escuridão o segurava por aí. Os pés estavam mortos e
frios, mas a cabeça vivia com toda a força da vida e parecia em perfeita
lucidez. Naquele grave momento, G. se assemelhava àquele rei do conto
oriental, carne na parte superior, mármore na parte inferior.
O bispo sentou-se em uma pedra que ali estava. Foi o prólogo ex-
abrupto.
— Felicito-o — disse ele em tom de reprimenda —, o senhor nunca
votou pela morte do rei.
O convencional pareceu não ter percebido o tom amargo escondido
naquela palavra: nunca. Respondeu, mas o sorriso desaparecera
completamente de seu semblante.
— Não me felicite muito, senhor, eu votei pelo fim do tirano.
Era a inflexão austera em presença da inflexão severa.
— Que quer dizer com isso? — replicou o bispo.
— Quero dizer que o homem tem um tirano, a ignorância. Votei pelo
fim desse tirano. Esse tirano engendrou a realeza, que é a autoridade
tomada de algo falso, enquanto a ciência é a autoridade tomada dentro da
verdade. O homem não deve ser governado senão pela ciência.
— E pela consciência — acrescentou o bispo.
— É a mesma coisa. A consciência é a quantidade inata de ciência que
temos em nós.
Monsenhor Bienvenu escutava, um tanto surpreso, aquela linguagem
inteiramente nova para ele.
O convencional prosseguiu:
— Quanto a Luís XVI, eu disse não. Não julgo ter o direito de matar
um homem, mas sinto-me no dever de exterminar o mal. Votei pelo fim do
tirano. Quer dizer, o fim da prostituição para a mulher, o fim da
escravidão para o homem, o fim da ignorância para a criança. Votando
pela república, votei por tudo isso. Votei pela fraternidade, pela concórdia,
pela aurora. Trabalhei pela queda dos erros e preconceitos. O
desmoronamento dos erros e preconceitos produz a luz. Nós fizemos cair o
velho mundo, e o velho mundo, vaso de misérias, converteu-se em urna de
alegrias ao derramar-se sobre o gênero humano.
— Alegria confusa! — disse o bispo.
— O senhor poderia dizer alegria perturbada, e, hoje, após essa fatal
retomada do passado chamada 1814, alegria desaparecida. Infelizmente,
concordo, a obra ficou incompleta; demolimos o Antigo Regime quanto
aos fatos, mas não pudemos exterminá-lo completamente quanto às ideias.
Não basta acabar com os abusos, é preciso modificar os costumes. O
moinho se foi, mas o vento ainda permanece.
— Vocês demoliram. Demolir pode ser útil, mas desconfio das
demolições movidas pela cólera.
— O direito tem sua cólera, senhor bispo, e a cólera do direito é um
elemento de progresso. Não importa; e digam a respeito dela o que
disserem, a Revolução Francesa foi o passo mais poderoso do gênero
humano depois da vinda de Cristo. Incompleta, concordo, mas sublime.
Ela resolveu todas as incógnitas sociais, suavizou os espíritos, acalmou,
pacificou, esclareceu; inundou a terra com ondas de civilização. Ela foi
boa. A Revolução Francesa foi a consagração da humanidade.
O bispo não pôde impedir-se de murmurar:
— Foi? E 1793?
O convencional endireitou-se na cadeira com uma solenidade quase
lúgubre, e, tanto quanto um moribundo pode exclamar, ele exclamou:
— Aí vem com 1793! Eu esperava por isso. Uma nuvem formou-se
durante mil e quinhentos anos. Ao final de quinze séculos, rebentou. E o
senhor vem acusar o trovão.
O bispo sentiu, talvez sem admitir, que alguma coisa nele fora
atingida. No entanto, manteve a firmeza e respondeu:
— O juiz fala em nome da justiça; o padre em nome da piedade, que
não é nada além de uma justiça mais elevada. Um trovão não deve
enganar-se.
E acrescentou, olhando fixamente para o convencional:
— Luís XVII?
O convencional estendeu a mão e segurou o braço do bispo:
— Luís XVII! Vejamos. Por quem o senhor chora? Pela criança
inocente? Que seja, então choro com o senhor. Ou seria pelo menino real?
Peço que reflita. Para mim, o irmão de Cartouche, criança inocente, atado
à forca pelos braços na praça de Grève até a morte, pelo único crime de ter
sido irmão de Cartouche, não é algo menos doloroso do que o neto de Luís
XV, menino inocente, martirizado na torre do Temple, pelo único crime de
ter sido neto de Luís XV.
— Senhor — disse o bispo —, não gosto desses paralelos com nomes!
— Cartouche? Luís XV? Por qual deles reclama?
Houve um momento de silêncio. O bispo quase se arrependia de ter
vindo, porém sentia-se vaga e estranhamente abalado.
O convencional retomou:
— Ah, padre, o senhor não gosta das cruezas da verdade. Cristo
gostava. Ele pegava uma vara e varria o templo. Seu chicote cheio de
relâmpagos proferia rudes verdades. Quando exclamava: Sinite
parvulos…,5 não fazia distinção entre as crianças. Não ficaria
constrangido em juntar o primogênito de Barrabás com o de Herodes!
Senhor, a inocência é coroa de si mesma. A inocência é alteza. É augusta
estando esfarrapada ou coberta de flores.
— É verdade — disse o bispo em voz baixa.
— Insisto — continuou o convencional G. — O senhor falou em Luís
XVII. Entendamo-nos. Vamos chorar por todos os inocentes, por todos os
mártires, por todas as crianças, por quem está nas baixas camadas assim
como nas altas? Eu choro. Mas então, como já lhe disse, é preciso ir além
de 1793, e é ainda antes de Luís XVII que precisamos começar a chorar.
Eu chorarei com o senhor pelos filhos dos reis, contanto que o senhor
chore comigo pelos filhos do povo!
— Eu choro por todos! — disse o bispo.
— Igualmente! — exclamou G. — E se a balança deve pender, que
seja para o lado do povo. Ele sofre há mais tempo.
Houve ainda outro momento de silêncio; foi o convencional quem o
rompeu. Ergueu-se sobre um dos cotovelos, apertou, entre o polegar e o
indicador, um pouco de pele do rosto, com o gesto maquinal de quem
interroga ou julga, interpelando o bispo com um olhar repleto de todas as
energias da agonia. Foi quase uma explosão.
— É mesmo, senhor, há muito que o povo sofre. E depois, veja, o que é
isso de vir questionar-me e falar-me de Luís XVII? Eu nem conheço o
senhor. Desde que estou nesta região, vivo encerrado, só, sem tirar os pés
daqui, sem ver ninguém além desse rapazinho que me ajuda. Seu nome
confusamente chegou aos meus ouvidos, é verdade, e devo dizer que de
modo bem lisonjeiro; mas isso não significa nada; os espertos têm várias
maneiras de enganar os simplórios do povo. A propósito, não ouvi o ruído
de sua carruagem; decerto a deixou entre as árvores, lá adiante no
entroncamento da estrada. Repito, não o conheço. Disse-me que era o
bispo, mas isso não me diz nada sobre sua pessoa moral. Em suma, repito-
lhe minha pergunta: quem é o senhor? Um bispo, quer dizer, um príncipe
da Igreja, um desses homens que se cobrem de ouro, de brasões, de bons
rendimentos eclesiásticos — o bispado de Digne, quinze mil francos de
rendimento fixo; dez mil de extraordinários, um total de vinte e cinco mil
francos —, que têm cozinhas, criados, boa comida, que toda sexta-feira
comem galinha, que se pavoneiam em coches de gala com lacaios atrás e
adiante, que possuem palácios e passeiam de carruagem em nome de Jesus
Cristo, que andava descalço! O senhor é um prelado: rendimentos,
palácios, cavalos, criados, boa mesa, todas as sensualidades da vida, o
senhor possui tudo isso como os outros, e como os outros disso tira
proveito. Está bem, mas isso ou diz demais ou não diz o suficiente; não me
esclarece quanto ao valor intrínseco e essencial de quem, como o senhor,
vem aqui com o provável intuito de trazer-me sabedoria. A quem falo?
Quem é o senhor?
O bispo baixou a cabeça e respondeu: Vermis sum.6
— Um verme da terra de carruagem! — resmungou o convencional.
Era a vez de o convencional ser altivo, de o bispo ser humilde.
O bispo retomou com calma:
— Que seja, senhor. Mas explique-me em que minha carruagem, que
está ali, dois passos atrás das árvores, em que minha boa mesa e as
galinhas que como às sextas-feiras, em que meus vinte e cinco mil francos
de rendimento, em que meu palácio e meus lacaios provam que a piedade
não é uma virtude, que a clemência não é um dever, e que 1793 não foi
inexorável?
O convencional passou a mão pela testa, como que para afastar uma
nuvem.
— Antes de responder-lhe — disse —, peço-lhe que me perdoe! Acabo
de cometer um erro. O senhor acha-se em minha casa, é meu hóspede,
devo tratá-lo com cortesia. O senhor discute minhas ideias; convém que eu
me limite a combater seus argumentos. Suas riquezas, seus prazeres são
vantagens que eu tenho no debate, mas não seria delicado servir-me delas.
Prometo não mais usá-las.
— Eu o agradeço! — disse o bispo.
— Vamos à explicação que me pediu. Onde estávamos? O que o senhor
me dizia? Que 1793 foi inexorável!
— Inexorável, isso mesmo! — disse o bispo. — Que lhe parece Marat
batendo palmas em frente à guilhotina?
— Que lhe parece Bossuet cantando o Te Deum pelas dragonadas?
A resposta era dura, mas acertava o alvo com a rigidez de uma ponta
de aço. O bispo estremeceu e não teve resposta, porém ficou ressentido
com esse modo de falar sobre Bossuet. Os espíritos mais esclarecidos têm
seus ídolos, e às vezes sentem-se vagamente mortificados com os
desrespeitos da lógica.
O convencional começava a arquejar; a asma da agonia entrecortava-
lhe a voz misturada ao que lhe restava de fôlego; todavia, possuía ainda
uma perfeita lucidez de alma nos olhos. Ele prosseguiu:
— Digamos ainda algumas palavras, eu gostaria muito. Tirando a
Revolução, que, vista em seu conjunto, foi uma imensa afirmativa
humana, 1793, desgraçadamente, é uma réplica. O senhor acha-a
inexorável; mas o que tem sido a monarquia, senhor? Carrier é um
facínora; e que nome dar a Montrevel? Fouquier-Tinville é um miserável,
mas que conceito o senhor faz de Lamoignon-Bâville? Maillard é
execrável; mas que diz de Saulx-Tavannes? O padre Duchêne é feroz; mas
que adjetivo acha o senhor que merece o padre Letellier? Jourdan-Coupe-
Tête é um monstro, porém menos do que o marquês de Louvois. Senhor,
meu senhor, eu lamento por Maria Antonieta, arquiduquesa e rainha, mas
lamento também por aquela pobre mulher huguenote que, em 1685, no
reinado de Luís, o Grande, caro senhor, enquanto amamentava seu
filhinho, foi atada a um poste, nua até a cintura, e a criança foi mantida à
distância; o seio se enchia de leite e o coração de angústia; o pequeno,
esfomeado e pálido, vendo aquele seio, agonizava e gritava, e o algoz dizia
à mulher, mãe e ama de leite: “Abjure!”, oferecendo-lhe como escolha a
morte do filho ou a morte de sua consciência. Que lhe parece esse suplício
de Tântalo a uma mãe? Senhor, note bem, a Revolução Francesa teve suas
razões. Sua ira será absolvida no futuro. Seu resultado é um mundo
melhor. De seus golpes mais terríveis, nasce um afago ao gênero humano.
Estou resumindo. Estou parando, estou em ótima situação. Aliás, estou
morrendo.
E, parando de olhar para o bispo, concluiu seu pensamento nestas
poucas palavras tranquilas:
— Sim, as brutalidades do progresso chamam-se revoluções! Depois
de acabadas, reconhece-se uma coisa: que o gênero humano foi
maltratado, mas que deu alguns passos adiante!
O convencional nem suspeitava que acabava de derrubar, uma após a
outra, todas as defesas interiores do bispo. No entanto, uma delas ainda
restava, e dela, supremo recurso da resistência de Monsenhor Bienvenu,
saiu a seguinte frase, que mostrava quase toda a severidade inicial:
— O progresso deve crer em Deus. O bem não pode ter servidores
ímpios. É um mau condutor do gênero humano aquele que é ateu.
O antigo representante do povo não respondeu. Estremeceu, olhou o
céu, e uma lágrima apareceu lentamente naquele olhar. Quando os olhos se
encheram, uma lágrima correu por sua face lívida, e ele disse um tanto
balbuciante, como que falando consigo mesmo, com o olhar perdido nas
profundezas:
— Ó você! Ó ideal! Só você existe!
O bispo sentiu uma inexprimível comoção. Após alguns momentos de
silêncio, o convencional, apontando um dedo para o céu, disse:
— Existe o infinito. Ele está aí. Se o infinito não tivesse um “eu”, o eu
seria o seu limite; e ele não seria infinito; em outras palavras, não
existiria. Ora, ele existe. Logo tem um eu. Esse eu do infinito é Deus.
O moribundo havia pronunciado essas últimas palavras em voz alta e
com o estremecimento do êxtase, como se estivesse vendo alguém.
Terminando de falar, seus olhos se fecharam. O esforço o extenuara. Era
evidente que ele acabava de viver em um minuto as poucas horas que lhe
restavam. O que tinha dito o aproximara do anjo da morte. O instante
supremo chegava.
O bispo o compreendeu, o momento oprimia, era como padre que tinha
vindo; da extrema frieza havia passado, gradualmente, à extrema
comoção; fitou aqueles olhos fechados, tomou aquela velha mão, fria e
engelhada, e inclinando-se para o moribundo disse:
— Esta é a hora de Deus. Não acha que seria lamentável que
tivéssemos nos encontrado em vão?
O convencional reabriu os olhos. Uma gravidade cheia de sombra
impregnou seu semblante.
— Senhor bispo — disse ele com uma lentidão vinda talvez mais da
dignidade da alma do que do esmorecimento de forças —, tenho passado
toda a minha vida em meditação, estudo e contemplação. Tinha sessenta
anos quando meu país me chamou e me ordenou a tomar parte em seus
negócios. Obedeci. Havia abusos, os combati; havia tiranias, as destruí;
havia direitos e princípios, proclamei-os e professei-os. O território fora
invadido, o defendi; a França estava ameaçada, expus meu peito. Não era
rico, estou pobre. Fui um dos senhores do Estado; os subterrâneos do
Tesouro achavam-se abarrotados de dinheiro, a ponto de ser preciso
escorar as paredes, prestes a fender-se com o peso do ouro e da prata; e eu
ia comer na rua de l’Arbre-Sec, a vinte e dois soldos por cabeça. Socorri
os oprimidos, dei alívio aos que sofriam. Rasguei as toalhas dos altares, é
verdade, mas foi para fazer curativo nas feridas da pátria. Sempre
sustentei o avanço da humanidade em direção à luz, e algumas vezes
resisti ao progresso impiedoso. Sempre que pude, protegi meus próprios
adversários. E existe em Peteghem, em Flandres, exatamente onde os reis
merovíngios possuíam seu palácio de verão, um convento de urbanistas, a
abadia de Sainte-Claire, que eu salvei em 1793. Cumpri meu dever de
acordo com minhas forças e fiz o bem que me foi possível. Ao fim de tudo
isso, fui expulso, acuado, perseguido, denegrido, escarnecido,
conspurcado, amaldiçoado, proscrito. Depois de muitos anos, apesar dos
meus cabelos brancos, sinto que muita gente julga ter direito de desprezar-
me; para a multidão ignorante, tenho cara de maldito, e aceito, sem odiar
ninguém, o isolamento do ódio. Agora, com oitenta e seis anos, vou
morrer. O que o senhor vem me pedir?
— Sua bênção — disse o bispo. E ajoelhou-se.
Quando o bispo ergueu a cabeça, o rosto do convencional tornara-se
imponente. Ele acabava de morrer.
O bispo voltou para casa profundamente absorvido não se sabe em que
pensamentos. Passou a noite toda orando. No dia seguinte, alguns curiosos
tentaram falar-lhe do convencional G.; o bispo limitou-se a apontar o céu.
A partir daquele momento, redobrou de ternura e fraternidade para com os
pequenos e sofredores.
Qualquer alusão ao “velho malvado” suscitava-lhe uma preocupação
singular. Ninguém poderia afirmar que a passagem daquele espírito diante
do seu, e o reflexo daquela grande consciência sobre a sua, não tivesse
contribuído para sua aproximação da perfeição.
Essa “visita pastoral” foi naturalmente uma oportunidade para o
burburinho dos grupinhos locais: “A cabeceira de um moribundo daqueles
era lugar para um bispo? Não havia, evidentemente, esperança de
conversão. Todos esses revolucionários são relapsos. Então, por que ir lá?
O que ele foi fazer lá? Era preciso que estivesse muito curioso para ver o
diabo carregando uma alma”.
Um dia, uma senhora da elite, da variedade impertinente das que se
pretendem espirituosas, disse-lhe esta pérola: “Monsenhor, andam
perguntando quando Sua Grandeza receberá o barrete vermelho”. “Ora,
ora! Essa é uma grande cor”, respondeu o bispo. “Ainda bem que os que a
desprezam em um barrete a veneram em um chapéu.”

XI. UMA RESTRIÇÃO


Correríamos um grande risco de nos enganarmos se concluíssemos daí
que Monsenhor Bienvenu fosse um “bispo filósofo” ou um “padre
patriota”. Seu encontro, ou melhor, sua quase conjunção com o
convencional G. causou-lhe um tipo de assombro que o tornou ainda mais
terno. Nada mais.
Embora Monsenhor Bienvenu não tenha sido nada menos que um
homem político, cabe aqui, indicar resumidamente, qual foi sua atitude em
meio aos acontecimentos de então, supondo-se que ele alguma vez tenha
pensado em ter uma atitude.
Remontemos, pois, a alguns anos antes.
Pouco tempo depois da elevação do senhor Myriel ao episcopado, o
imperador o nomeou barão do Império, bem como a vários outros bispos.
Por ocasião da prisão do papa, que, como é sabido, ocorreu na noite de 5
para 6 de julho de 1809, Myriel foi convidado por Napoleão a assistir ao
sínodo dos bispos da França e Itália convocado em Paris. Esse sínodo
ocorreu na igreja de Notre-Dame, reunindo-se pela primeira vez em 15 de
junho de 1811, sob a presidência do cardeal Fesch. Myriel foi um dos
noventa e cinco bispos que lá estiveram, mas não assistiu senão a uma
sessão e três ou quatro conferências particulares. Bispo de uma diocese
montanhesa, vivendo rusticamente tão perto da natureza, parece que ele
trazia, em meio àqueles eminentes personagens, ideias que alteravam a
temperatura da assembleia. Rapidamente regressou a Digne. Interrogado
sobre o motivo daquele pronto retorno, respondeu:
— Eu os incomodava. O ar de fora lhes chegava através de mim. Eu
lhes causava o efeito de uma porta aberta.
Uma outra vez disse ainda: O que querem? Aqueles monsenhores são
príncipes. E eu, não passo de um pobre bispo aldeão.
O fato é que ele causou desagrado. Entre outras coisas estranhas, teria-
lhe escapado dizer, uma noite em que se encontrava na casa de um de seus
colegas mais qualificados:
— Belos relógios! Belos tapetes! Belos librés! Tudo isso deve ser bem
importuno! Oh, eu que não queria ter todo esse supérfluo gritando sem
cessar em meus ouvidos: “Tem gente passando fome! Tem gente passando
frio! Tem gente pobre! Tem gente pobre!”
Diga-se de passagem, não seria inteligente nutrir ódio pelo luxo. Esse
ódio implicaria o ódio às artes. No entanto, entre os ministros da Igreja, o
luxo, a não ser nos casos de representação ou de cerimônias, é um erro
porque parece revelar hábitos na realidade pouco caridosos. Um padre
opulento é um contrassenso. O padre deve se manter próximo aos pobres.
Ora, é possível estar dia e noite, incessantemente, em contato com todo
tipo de misérias, indigências e infortúnios, sem ter sobre si mesmo um
pouco dessa miséria, à semelhança do pó do trabalho? Pode-se conceber
um homem que esteja próximo de um braseiro e que não sinta calor?
Pode-se conceber um operário que lida continuamente com uma fornalha e
que não tenha nem um cabelo queimado, nem uma unha escurecida, nem
uma gota de suor, nem um pouco de fuligem no rosto? A prova mais
concludente da caridade de um padre, e sobretudo de um bispo, é a
pobreza.
Sem dúvida era assim que pensava o bispo de Digne.
Não se deve pensar, aliás, que ele tivesse, sobre certos pontos
delicados, o que chamaríamos “ideias do século”. Ele pouco se intrometia
nas questões teológicas da época, e calava-se sobre questões em que
estivessem comprometidos a Igreja e o Estado, mas, se o apertassem
muito, veriam que tinha mais de ultramontano do que de galicano. Como
fazemos um retrato e nada desejamos ocultar, vemo-nos obrigados a
acrescentar que ele foi absolutamente frio em relação à decadência de
Napoleão. A partir de 1813, seguia ou aplaudia quaisquer manifestações
hostis. Recusou-se a ver Napoleão em sua passagem de retorno da ilha de
Elba e absteve-se de ordenar, em sua diocese, as preces públicas pelo
imperador durante os Cem Dias.
Além de sua irmã, a senhorita Baptistine, ele tinha dois irmãos, um
general e outro prefeito, aos quais escrevia com frequência. Por algum
tempo, usou de rigor com o primeiro porque, sendo comandante de uma
praça da Provença na ocasião do desembarque de Cannes, colocara-se à
frente de mil e duzentos homens, e perseguira Napoleão como alguém a
quem se quer deixar escapar. Sua correspondência tornou-se mais afetuosa
para com o outro irmão, antigo prefeito, bravo e digno homem que vivia
retirado em Paris, na rua Cassette.
Monsenhor Bienvenu teve também, como os outros, sua época de
espírito de partido, sua época de amargura, sua nuvem. A sombra das
paixões do momento perpassou aquele grande e sereno espírito ocupado
com as coisas eternas. Claro, um homem assim merecia não ter opiniões
políticas. Não se enganem sobre nossa ideia: não confundimos o que
chamam “opiniões políticas” com a grande aspiração ao progresso, com a
sublime fé patriótica, democrática e humanitária que, hoje em dia, deve
ser a base de qualquer inteligência generosa. Sem aprofundar questões que
tocam apenas indiretamente o assunto deste livro, diremos simplesmente o
seguinte: foi muito bom Monsenhor Bienvenu não ter sido realista e seu
olhar não ter-se desviado um só instante da serena contemplação em que
se vê brilhar, distintamente, acima deste tempestuoso vaivém das coisas
humanas, estas três puras luzes, a Verdade, a Justiça e a Caridade.
Embora reconheçamos que não tenha sido para uma função política
que Deus criou Monsenhor Bienvenu, compreenderíamos e admiraríamos
o protesto em nome do direito e da liberdade, a orgulhosa oposição, a
perigosa e justa resistência a Napoleão todo-poderoso. Mas o que nos
agrada em relação aos que sobem, desagrada-nos em relação aos que
caem. Não gostamos do combate senão enquanto há perigo; e, em todos os
casos, os combatentes da primeira hora são os únicos que têm direito a ser
os exterminadores na última. Quem não acusava incessantemente no
tempo da prosperidade deve calar-se diante do infortúnio. Aquele que
aponta o triunfo é o único legítimo justiceiro da queda. Quanto a nós,
quando a Providência intervém e fere, não oferecemos resistência. 1812
começa a nos desarmar. Em 1813, o covarde rompimento do silêncio desse
taciturno corpo legislativo, encorajado pelas catástrofes, só merecia
indignação, e não aplauso; em 1814, diante daqueles marechais traidores,
daquele senado que passava de um atoleiro a outro, insultando depois de
ter divinizado, diante daquela idolatria que recuava e cuspia sobre o ídolo,
era um dever desviar o rosto; em 1815, quando grandes desastres estavam
no ar e a França estremecia por causa de sua sinistra aproximação, quando
podia-se vagamente distinguir Waterloo se abrindo diante de Napoleão, a
dolorosa aclamação do exército e do povo ao condenado pelo destino nada
tinha de risível, e, com toda a restrição que se faça ao déspota, um coração
como o do bispo de Digne talvez não devesse enganar-se sobre o que havia
de augusto e tocante, à beira do abismo, no estreito abraço de uma grande
nação e de um grande homem.
A não ser por isso, ele era e foi, em tudo, justo, verdadeiro, equitativo,
inteligente, humilde e digno; benéfico e benevolente, que é outra espécie
de beneficência. Era um padre, um sábio e um homem. Até mesmo, é
preciso dizer, nessa opinião política que acabamos de reprovar-lhe, e que
estamos dispostos a julgar quase severamente, era tolerante e fácil, mais
talvez do que nós, que aqui falamos.
Havia na Câmara um porteiro, ali colocado por Napoleão.
Era um oficial inferior da antiga guarda, legionário de Austerlitz,
bonapartista como a águia do estandarte imperial. Às vezes escapavam do
pobre homem palavras pouco refletidas que a lei de então qualificava de
ditos sediciosos. Desde que a efígie imperial desaparecera da Legião de
Honra, nunca mais se vestira à ordenança, como ele dizia, para não se ver
obrigado a colocar sua cruz.
Ele tirara devotadamente a efígie imperial da cruz que Napoleão lhe
havia dado, criando ali um buraco, e não quis colocar nada no lugar.
Antes morrer, dizia ele, do que trazer sobre o peito os três sapos! Ele
ridicularizava, com vontade e bem alto, Luís XVIII. Velho doente, com
polainas de inglês, que vá para a Prússia com sua peruca e tudo!, dizia,
feliz por reunir na mesma imprecação as duas coisas que mais detestava, a
Prússia e a Inglaterra. Tantas fez que perdeu o emprego.
Agora estava na rua, sem pão, com mulher e filhos.
O bispo o chamou, o repreendeu afetuosamente e o nomeou porteiro da
catedral.
Em nove anos, a poder de santas ações e maneiras afáveis, Monsenhor
Bienvenu preenchera a cidade de Digne de uma espécie de terna e filial
veneração. Sua conduta, mesmo em relação a Napoleão, foi aceita, e como
que tacitamente perdoada pelo povo, bom e frágil rebanho que adorava seu
imperador, mas amava seu bispo.

XII. SOLIDÃO DE MONSENHOR BIENVENU


Quase sempre há em torno de um bispo um batalhão de padres novos,
como há em torno de um general um bando de jovens oficiais. É a isso que
o encantador São Francisco de Sales chama de “padres inexperientes”.
Todas as carreiras têm seus aspirantes, que cortejam os já bem-sucedidos.
Não há potência que não tenha o seu séquito, fortuna que não tenha o seu
cortejo. Os que buscam um futuro cômodo se acercam de um presente
esplêndido. Toda metrópole tem seu estado-maior. Todo bispo influente é
cercado por uma patrulha de querubins seminaristas, que guarda e mantém
a boa ordem no paço episcopal fazendo sentinela em torno do sorriso de
monsenhor. Agradar um bispo é meio caminho andado para um
subdiaconato. É preciso preparar o terreno, e o apostolado não desdenha o
canonicato.
Assim como há grandes influentes na política, há grandes influentes na
Igreja. São os bispos bem-aceitos no mundo social, ricos, com bons
rendimentos, hábeis, que decerto sabem rezar, mas que também sabem
pedir, pouco escrupulosos, fazendo-se de sala de espera em favor de toda
uma diocese, sendo a ligação entre a sacristia e a diplomacia, mais abades
do que padres, mais prelados do que bispos. Feliz de quem deles se acerca!
Homens de confiança que são, fazem chover em torno de si, sobre os
servis e os favorecidos, e sobre toda essa multidão de jovens que sabem
agradar, as gordas paróquias, as prebendas, os arcediagados, as capelanias
e as funções das catedrais, à espera das dignidades episcopais. À medida
que eles avançam, fazem avançar seus satélites; é um completo sistema
solar em movimento.
Seu esplendor tinge de púrpura os que lhes seguem. Sua prosperidade
esmigalha-se nos bastidores em pequenas e boas promoções. Quanto maior
a diocese para o amo, maior a abadia para o protegido. E depois, lá está
Roma. Um bispo que sabe chegar a arcebispo, um arcebispo que sabe
chegar a cardeal, leva você como conclavista, você entra para o tribunal
eclesiástico, recebe a insígnia pontificial, torna-se auditor, camarista,
monsenhor; e de Grandeza a Eminência é só um passo, e entre Eminência
e Santidade não há mais que a fumaça de um escrutínio. Qualquer solidéu
pode aspirar à tiara. Hoje em dia, o padre é o único homem que pode
chegar a rei, e que rei! O rei supremo! Igualmente, que sementeira de
aspirações é um seminário! Quantos rosados meninos de coro, quantos
jovens párocos não trazem à cabeça o jarro de leite de Perrette! Com que
facilidade a ambição se intitula vocação, quem sabe de boa-fé e iludindo a
si mesma, beata como é!
Monsenhor Bienvenu, humilde, pobre, com seu jeito singular, não
fazia parte dos bispos influentes, o que era visível pela total ausência de
jovens padres em torno dele.
Como se viu, em Paris “ele não pegou”. Nem um só destino sonhava
agregar-se àquele velho solitário. Nem uma nascente ambição cometia a
loucura de crescer à sua sombra.
Seus cônegos e vigários-gerais eram bons velhinhos, gente do povo
como ele, fechados como ele naquela diocese sem saída para o
cardinalato; eram parecidos com seu bispo, com a diferença de que
aqueles estavam acabados e este, completado.
Sentia-se tão bem a impossibilidade de crescer perto de Monsenhor
Bienvenu que, mal saíam do seminário, os jovens por ele ordenados
faziam-se recomendar aos arcebispos de Aix ou de Auch, e partiam
rapidamente, porque, enfim, repetimos, todos desejam um empurrãozinho.
Um santo que vive em um caminho de abnegação é uma perigosa
companhia; ele poderia nos contagiar com alguma pobreza incurável, com
um reumatismo nas articulações úteis ao caminhar; em suma, mais
renúncia do que se pode almejar; foge-se dessa leprosa virtude. Daí o
isolamento de Monsenhor Bienvenu. Vivemos em uma sociedade sombria.
Ser bem-sucedido, eis o ensinamento que, gota a gota, vai caindo da
corrupção que avança.
Diga-se de passagem, o sucesso é algo bastante repugnante. Sua falsa
semelhança com o mérito engana os homens. Para a multidão, o sucesso
tem quase o mesmo perfil que a superioridade. O sucesso, sósia do talento,
tem um joguete: a história. Somente Tácito e Juvenal rosnaram para ele.
Hoje em dia, uma filosofia quase oficial entrou em intimidade com ele,
enverga sua libré e lhe serve de antecâmara. Ser bem-sucedido: teoria.
Prosperidade supõe capacidade. Ganhe na loteria e será considerado um
homem hábil. Quem triunfa é venerado. Nasça com sorte e pronto, o resto
virá por si; seja feliz, e será visto como grande. Fora cinco ou seis grandes
exceções, que fazem o esplendor de um século, a admiração
contemporânea não passa de miopia. O dourado passa por ouro. Ser o
primeiro a chegar não prejudica nada, desde que sejamos este primeiro.
O vulgar é um velho Narciso que adora a si próprio e aplaude a
vulgaridade. Esta grande faculdade pela qual se é um Moisés, um Ésquilo,
um Dante, um Michelangelo ou um Napoleão, o povo a outorga sem
dificuldade, e por aclamação, a quem quer que atinja seus objetivos, seja
no que for. Que um tabelião se transforme em deputado; que um falso
Corneille componha Tiridate; que um eunuco chegue a possuir um harém;
que um Prudhomme militar ganhe por acidente a batalha decisiva de uma
época; que um boticário invente solas de papelão para o exército de
Sambre-et-Meuse, e, vendendo-as como couro, construa uma fortuna de
quatrocentos mil francos; que qualquer bufão case com a usura e a faça
parir sete ou oito milhões, dos quais ele é pai e ela mãe; que qualquer
pregador se torne bispo pelo falar anasalado; que o mordomo de um
palacete saia de lá tão rico que o façam ministro das finanças, a isso os
homens chamam Talento, do mesmo modo que chamam Beleza à figura de
Mousqueton, e Majestade à aparência de Cláudio. Confundem com as
constelações do infinito as estrelas impressas pelas patas dos gansos na
superfície mole do lodaçal.
XIII. EM QUE ACREDITAVA
Do ponto de vista da ortodoxia, não precisamos sondar o bispo de
Digne. Diante de almas como a dele, devemos sentir respeito. A
consciência do justo deve ter crédito pelas palavras. Além disso, dadas
certas naturezas, admitimos o desenvolvimento possível de todas as
belezas da virtude humana em uma crença diferente da nossa.
O que ele pensava a respeito de tal dogma ou de tal mistério? Esses
segredos de foro íntimo só os conhece o túmulo, onde as almas entram em
completa nudez. O que sabemos com certeza é que jamais as dificuldades
da fé eram resolvidas por ele de forma hipócrita. O diamante não é
suscetível a nenhuma podridão. Ele acreditava o máximo possível, Credo
in Patrem — Acredito no Pai —, exclamava com frequência. Tirando,
aliás, das boas obras aquela satisfação que basta à consciência, e que nos
diz baixinho: “Estás com Deus!”
O que julgamos dever observar é que, afora e, por assim dizer, acima
de sua fé, o bispo possuía um excesso de amor. Era por isso, quia multum
amavit — quem amou muito —, que era visto como vulnerável pelos
“homens sérios”, pelas “pessoas sisudas”, por “gente sensata”, expressões
favoritas de nosso triste mundo, onde o egoísmo recebe a palavra de
ordem do pedantismo.
Que excesso de amor era esse?
Era uma benevolência serena, que abarcava todos os homens e às vezes
chegava, como já dissemos, a estender-se às coisas. Vivia sem arrogância.
Era indulgente para com as criaturas de Deus. Todo homem, mesmo o
mais bondoso, é dotado de uma dureza irrefletida, que serve de reserva
para os animais. O bispo de Digne não era dotado dessa dureza, aliás
peculiar a muitos padres. Não chegava ao exagero do bramanismo, mas
parecia ter refletido sobre estas palavras do Eclesiastes: “Por acaso
alguém sabe para onde vão as almas dos animais?”
A feiura do aspecto, as deformidades do instinto não o perturbavam
nem o indignavam; comoviam-no, quase o enterneciam. Parecia que,
pensativo, ia além da vida aparente procurar a causa, a explicação ou a
desculpa. Parecia às vezes pedir a Deus a diminuição de certas penas.
Examinava sem ressentimento, e com o olhar do linguista que decifra um
pergaminho, o caos que ainda existe na natureza. Esse devaneio fazia, às
vezes, com que dissesse coisas estranhas. Uma manhã, estava no jardim e
supunha-se só, mas sua irmã caminhava atrás dele sem ser vista; de
repente ele parou, olhou alguma coisa que estava no chão: era uma enorme
aranha, negra, peluda, asquerosa. Sua irmã o ouviu dizer:
— Pobre bicho! Não é culpa dele.
Por que não falar dessas infantilidades quase divinas da bondade?
Puerilidades, que seja, mas puerilidades sublimes como as de São
Francisco de Assis e de Marco Aurélio. Um dia, sofreu uma entorse só
para não esmagar uma formiga.
Assim vivia aquele homem justo. Às vezes adormecia no jardim, e
então não havia nada de mais venerável.
Monsenhor Bienvenu havia sido, em outros tempos, se dermos crédito
às histórias sobre sua juventude e virilidade, um homem de paixões, e
violento, talvez. Sua mansidão universal era menos um instinto da
natureza que o resultado de uma grande convicção filtrada em seu coração
através da vida, e lentamente absorvida por ele, pensamento por
pensamento; pois um caráter, assim como uma rocha, pode ser escavado
por gotas de água. E essas escavações nunca mais se desfazem; essas
formações são indestrutíveis.
Em 1815, acreditamos já ter dito, ele tinha setenta e cinco anos, mas
parecia ainda não ter sessenta. Não era alto; era um tanto gordo, o que
tentava combater fazendo longas caminhadas a pé, tinha o andar firme e a
postura apenas um pouco curvada, detalhes com os quais nada
pretendemos concluir; Gregório XVI, aos oitenta anos, mantinha a boa
postura e era sorridente, o que não o impedia de ser um mau bispo.
Monsenhor Bienvenu possuía o que o povo chama “uma bela cabeça”, mas
tão amável que até se esquecia que era bela.
Quando conversava, com aquela alegria infantil que era uma de suas
graças, o que já dissemos neste livro, ficava-se muito à vontade perto dele,
parecia que toda a sua pessoa emanava alegria. Sua tez rosada e fresca, os
dentes bem brancos que havia conservado e que seu riso deixava ver
davam-lhe esse ar de franqueza e afabilidade que leva a dizer de um
homem: “É um bom rapaz”, e de um velho: “É um bom homem”.
Foi essa, como os leitores estarão lembrados, a impressão que ele
causou em Napoleão.
No primeiro relance, para quem nunca o tivesse visto, não passava
efetivamente de um bom homem. Mas ficando-se algumas horas com ele,
por menos que estivesse pensativo, pouco a pouco via-se sua
transfiguração, assumia um não sei que de imponência; sua fronte larga e
séria, venerável pelos cabelos brancos, tornava-se venerável também pela
meditação; a majestade desprendia-se da bondade, sem que esta deixasse
de fulgurar; experimentava-se algo da emoção que causaria ver um anjo
sorridente abrir lentamente as asas, sem deixar de sorrir. Um inexprimível
respeito tomava conta gradualmente do coração de quem o contemplava,
sentia-se estar diante de uma dessas almas fortes, indulgentes e ricas de
provações, em que o pensamento é tão grande que não pode deixar de ser
suave.
Como já foi visto, a oração, a celebração dos ofícios religiosos, a
esmola, a consolação aos aflitos, o cultivo de um canteiro, a fraternidade,
a frugalidade, a hospitalidade, o desapego, a confiança, o estudo, o
trabalho ocupavam cada um dos dias de sua vida. Ocupavam é exatamente
o termo, porque, de fato, esses dias do bispo eram repletos até as bordas de
bons pensamentos, de boas palavras e de boas ações. Só não eram
completos se a chuva ou o frio o impedissem de passar, à noite, quando as
duas mulheres já se houvessem recolhido, uma ou duas horas em seu
jardim, antes de deitar-se. Parecia ser para ele uma espécie de rito
preparar-se para dormir pela meditação em presença dos grandes
espetáculos do céu noturno. Às vezes, mesmo em uma hora bem avançada
da noite, caso as duas mulheres estivessem acordadas, elas o ouviam
caminhar lentamente pelo jardim. Ali permanecia consigo mesmo, em
plácido recolhimento e adoração, comparando a serenidade de seu coração
com a serenidade do éter, emocionado na escuridão pelos esplendores
visíveis das constelações e pelos esplendores invisíveis de Deus, abrindo
sua alma aos pensamentos que descem do Desconhecido. Naqueles
momentos, oferecendo seu coração na mesma hora em que as flores
noturnas oferecem seu perfume, iluminado como uma lâmpada no centro
da noite estrelada, enlevado em êxtase no cintilar universal da criação,
nem ele mesmo saberia dizer o que se passava em seu espírito; sentia
alguma coisa desprender-se dele e alguma coisa descer sobre ele.
Misteriosas trocas entre os abismos da alma e os abismos do universo!
Meditava sobre a grandeza e a presença de Deus; sobre a eternidade
futura, estranho mistério; sobre a eternidade passada, mistério mais
estranho ainda; sobre todos os infinitos que se afastavam sob seu olhar em
todas as direções; e, sem tentar compreender o incompreensível, limitava-
se a fitá-lo. Não analisava Deus; deslumbrava-se com Ele. Refletia sobre
esses magníficos encontros de átomos que dão forma à matéria, revelam
as forças ao constatá-las, criam as individualidades na unidade, as
proporções na extensão, o inumerável no infinito, e, por meio da luz,
produzem a beleza. Esses encontros se enlaçam e se desenlaçam sem
cessar, daí resultando a vida e a morte.
Sentava-se em um banco de madeira encostado a uma velha parreira, e
daí contemplava os astros através das silhuetas imprecisas e raquíticas de
suas árvores frutíferas. Aquele pedaço de terra tão pobremente plantado,
tão atulhado de casebres, era-lhe caro e bastava-lhe.
Que mais faltava àquele velho que dividia o pouco lazer de sua
existência entre a jardinagem durante o dia e a contemplação à noite?
Aquele estreito recinto, tendo o céu como telhado, não era suficiente para
poder adorar a Deus em suas obras mais sublimes?
Um pequeno jardim para passear e a imensidão para meditar. Que mais
podia ele querer?
A seus pés, o que se pode cultivar e colher; sobre sua cabeça, o que se
pode estudar e meditar; algumas flores na terra e todas as estrelas no céu.

XIV. O QUE PENSAVA


Uma última palavra.
Como pormenores dessa natureza, especialmente na época atual,
poderiam, para nos servirmos de uma expressão da moda, dar ao bispo de
Digne certa fisionomia “panteísta” e levar a crer, quer para seu desabono,
quer para seu louvor, que ele possuía alguma dessas filosofias pessoais,
peculiares ao nosso século, que às vezes germinam nos espíritos solitários,
ali se edificando e crescendo até substituírem as crenças religiosas,
repetimos que ninguém, entre as pessoas que conheceram Monsenhor
Bienvenu, jamais se julgou autorizado a pensar algo semelhante. O que
iluminava aquele homem era o coração. Sua sabedoria era feita da luz que
nele existia.
Nada de teoria, muita ação. As especulações obscuras causam
vertigens. Não há indício de que ele aventurasse seu espírito em questões
apocalípticas. O apóstolo pode ser ousado, mas o bispo deve ser tímido.
Provavelmente tinha escrúpulos de sondar profundamente certos
problemas reservados, de alguma forma, aos grandes espíritos terríveis.
Existe um horror sagrado sob os pórticos do enigma; essas entradas
sombrias estão ali escancaradas, mas alguma coisa nos diz, a nós que
estamos de passagem pela vida, para não entrarmos. Infeliz de quem o
fizer! Os gênios, nas profundezas desconhecidas da abstração e da
especulação pura, situados, pode-se dizer, acima dos dogmas, expõem a
Deus suas ideias. Sua prece é uma audaciosa proposta de discussão. Sua
adoração interroga. Essa é a religião direta, cheia de ansiedade e
responsabilidade para quem tenta passar por esse terreno.
A meditação humana não tem limite. Com riscos e perigos, analisa e
esquadrinha seu próprio deslumbramento. Quase poderíamos dizer que,
por uma espécie de esplêndida reação, ela deslumbra também a natureza; o
misterioso mundo que nos cerca devolve o que recebe, é provável que os
contempladores sejam contemplados. Seja como for, na Terra há homens
— serão homens? — que distinguem claramente, no fundo dos horizontes
do sonho, as alturas do absoluto e a terrível visão da montanha infinita.
Monsenhor Bienvenu não era um desses homens; Monsenhor Bienvenu
não era um gênio. Receava essas sublimidades de onde alguns, mesmo os
grandes, como Swedenborg e Pascal, escorregaram para a demência. Não
há dúvida de que essas poderosas idealizações têm sua utilidade moral, e
que é por esses árduos caminhos que o homem se avizinha da perfeição
ideal; o bispo seguia o caminho mais curto: o evangelho.
Ele não tentava dar à sua vestimenta sacerdotal as dobras do manto de
Elias, não projetava nenhum raio de futuro sobre o tenebroso redemoinho
dos acontecimentos, não procurava transformar em chama o clarão das
coisas; nada tinha de profeta nem de mago. Aquela alma humilde amava,
eis tudo.
Que dilatasse a oração até uma aspiração sobre-humana, isso é
provável; mas não se pode orar em demasia mais do que amar em
demasia; e se fosse heresia rezar além dos textos, Santa Teresa e São
Jerônimo seriam hereges.
Interessa-se por aquilo que geme e por aquilo que expia. Para ele, o
universo era como uma imensa enfermidade, por toda parte sentia a febre,
por toda parte auscultava o sofrimento e, sem procurar desvendar o
enigma, tratava de fazer o curativo nas feridas. O temeroso espetáculo das
coisas criadas inspirava-lhe enternecimento; não se ocupava a não ser de
encontrar para si mesmo, e ensejar nos outros, o melhor meio de consolar
e aliviar. Tudo o que existe era, para esse bom e raro sacerdote, um motivo
permanente de tristeza procurando consolo.
Há homens que trabalham na extração do ouro; ele trabalhava na
extração da piedade. Sua mina era a miséria universal. O sofrimento geral
era sempre uma ocasião para a bondade. Amai-vos uns aos outros., era sua
afirmação mais completa; não desejava nada mais que isso, ali estava toda
a sua doutrina.
Um dia, aquele homem que se julgava “filósofo”, o tal senador de
quem já falamos, disse ao bispo:
— Ora, veja que espetáculo pelo mundo: guerra de todos contra todos;
o mais forte é o mais esperto! O seu “amai-vos uns aos outros” é uma
bobagem!
— Pois bem, se é uma bobagem, a alma deve encerrar-se nela como a
pérola dentro da concha! — respondeu o bispo, sem entrar em disputa. E
ele assim fazia, satisfazendo-se plenamente com isso, deixando de lado as
prodigiosas questões que atraem e amedrontam, as perspectivas
insondáveis da abstração, os precipícios da metafísica, todos esses
abismos que fazem convergir o apóstolo a Deus, e o ateu ao nada: o
destino, o bem e o mal, a guerra da criatura contra a criatura, a consciência
do homem, o sonambulismo melancólico do animal, a transformação na
morte, a recapitulação de existências encerradas em um túmulo, a
incompreensível filiação dos amores sucessivos ao “eu” persistente, a
essência, a substância, o Nada e o Ser, a alma, a natureza, a liberdade, a
necessidade; problemas que se acumulam, espessuras sinistras sobre as
quais se debruçam os arcanjos do espírito humano; formidáveis abismos
que Lucrécio, Manu, Dante e São Paulo contemplam com olhares
fulgurantes que, ao fixarem o infinito, parecem fazer surgir estrelas.
Monsenhor Bienvenu era apenas um homem que observava de fora as
questões misteriosas, sem as investigar, sem as debater, sem perturbar
com elas seu próprio espírito, um homem que trazia na alma o grave
respeito da sombra.

__________________________
1 “Ora, até o senhor a compreende?”; “Onde terão passado?”; “Trago um bom carneiro com
um bom queijo gordo”.
2 “Velam em vão aqueles que guardam uma morada que não é protegida pelo Senhor.
3 Espécie de jornal oficial, que publicava os debates das Assembleias de 1789.
4 Expressão do latim: “Entre taças”: após beber, ou antes.
5 “Sinite parvulos ad me venire” (Marcos, 10, 14) — Vinde a mim as crianças.
6“Ego autem sum vermis, et non homo” (Salmo 21, 7) — Sou um verme da terra, não um
homem.
LIVRO II
A QUEDA

I. O FIM DE UM DIA DE CAMINHADA


NOS PRIMEIROS DIAS do mês de outubro de 1815, quase uma hora antes
do pôr do sol, um homem que viajava a pé entrou na pequena cidade de
Digne.
Os raros moradores que, àquela hora, achavam-se à janela ou à porta
de suas casas olhavam-no com uma espécie de preocupação. Era difícil
encontrar alguém com aspecto mais miserável. Era um homem ainda no
vigor da idade, robusto, encorpado, de estatura mediana. Poderia ter uns
quarenta e seis ou quarenta e oito anos. Escondia-lhe parte do rosto,
queimado pelo sol e pelo calor, e banhado de suor, um boné de pala de
couro. A camisa, de um grosseiro tecido amarelo, fechada no pescoço por
uma ancorazinha de prata, deixava-lhe o peito a descoberto; usava uma
gravata retorcida, calças de um tecido azul desbotado e esgarçado, ruças
em um joelho, rasgadas no outro; uma velha blusa cinzenta, remendada em
um dos cotovelos com um pedaço de pano verde costurado com barbante;
nas costas, uma mochila de soldado muito cheia, bem fechada e ainda
nova; na mão, um enorme cajado nodoso; os pés sem meias calçando
sapatos ferrados; a cabeça rapada e uma longa barba.
O suor, o calor, a poeira, a viagem a pé acrescentavam algo de sórdido
a esse conjunto deteriorado.
O cabelo era bem curto, mas eriçado, pois já começava a crescer,
parecendo não ser cortado havia algum tempo.
Ninguém o conhecia. Era, evidentemente, alguém só de passagem. De
onde viria? Do sul, talvez da beira-mar, pois entrava em Digne pela
mesma rua que, sete meses antes, tinha visto passar o imperador Napoleão
vindo de Cannes para Paris. Aquele homem devia ter caminhado o dia
inteiro. Parecia muito cansado. Algumas mulheres do antigo bairro,
situado na parte baixa da cidade, viram-no parar sob as árvores do bulevar
Gassendi e beber no chafariz que fica na extremidade da rua. Devia estar
com muita sede, pois as crianças que iam atrás dele viram quando tornou a
parar e beber, uns duzentos passos adiante, no chafariz da praça do
mercado.
Chegando à esquina da rua Poichevert, virou à esquerda e dirigiu-se à
prefeitura, onde entrou. Um quarto de hora depois, saiu. Um guarda estava
sentado perto da porta, no banco de pedra em que o general Drouot subira,
no dia 4 de março, para ler à multidão sobressaltada de Digne a
proclamação do Golfo Juan.1
O homem tirou o boné e saudou humildemente o soldado. Sem
responder ao cumprimento, este olhou-o atentamente, seguiu-o algum
tempo com o olhar, e depois entrou.
Existia então em Digne uma boa hospedaria chamada La Croix–de-
Colbas, cujo dono era um tal Jacquin Labarre, homem conceituado na
cidade por seu parentesco com outro Labarre, que serviu na guarda pessoal
do imperador, dono da hospedaria Trois-Dauphins, em Grenoble, a
respeito da qual muitos boatos correram naquela região por ocasião do
desembarque do imperador. Contava-se que o general Bertrand, disfarçado
de charreteiro, fizera para lá frequentes viagens no mês de janeiro,
distribuindo condecorações aos soldados e punhados de moedas aos
habitantes. A realidade é que, em sua chegada a Grenoble, o imperador
recusara-se a instalar-se no palácio da prefeitura e agradecera ao prefeito
dizendo: Vou para a casa de um homem de bem, meu conhecido. E foi
hospedar-se na hospedaria Trois-Dauphins. Essa glória do Labarre do
Trois-Dauphins refletia-se a vinte e cinco léguas de distância sobre o
Labarre da Croix-de-Colbas. Costumavam dizer na cidade, quando
falavam dele: É o primo daquele de Grenoble.
O homem dirigiu-se à hospedaria, que era a melhor da região. Entrou
na cozinha, que dava para a rua; todos os braseiros estavam acesos; uma
grande chama ardia alegremente na lareira. O hospedeiro, que, ao mesmo
tempo, era o cozinheiro, ia do forno para as panelas, muito ocupado,
preparando um excelente jantar destinado aos carroceiros, que riam e
conversavam ruidosamente numa sala próxima. Quem já viajou sabe que
ninguém é melhor garfo que os carroceiros. Uma gorda marmota, ao lado
de perdizes brancas e galos silvestres, girava num grande espeto sobre o
braseiro; nos fornos, duas grandes carpas do lago de Lauzet e uma truta do
lago de Alloz eram assadas.
Ao ouvir a porta se abrir e entrar um outro freguês, o dono da
hospedaria perguntou sem tirar os olhos do que fazia:
— O que o senhor deseja?
— Comer e dormir — respondeu o homem.
— Nada mais fácil! — replicou o hospedeiro. Nesse momento, voltou-
se para o recém-chegado, olhou-o dos pés à cabeça e acrescentou: —
Pagando!
O homem tirou do bolso de sua blusa uma bolsa de couro cheia e
respondeu:
— Eu tenho dinheiro.
— Nesse caso, estamos às suas ordens.
O homem guardou a bolsa, descarregou sua mochila no chão, perto da
porta, continuou com o cajado na mão e foi sentar-se numa banqueta
próxima ao fogo. Digne fica nas montanhas, onde as noites de outubro são
frias.
No entanto, mesmo indo de um lado para outro, o dono da hospedaria
observava o viajante.
— Vamos jantar logo? — perguntou o homem.
— Logo mais — respondeu o hospedeiro.
Enquanto o recém-chegado se aquecia, de costas, o digno estalajadeiro
Jacquin Labarre tirou um lápis do bolso, rasgou um pedaço de jornal que
andava sobre uma mesinha perto da janela, escreveu uma ou duas linhas à
margem, dobrou-o sem colar e entregou-o a um garoto que parecia servir-
lhe de ajudante de cozinha e criado; disse-lhe qualquer coisa ao ouvido e o
garoto foi correndo em direção à prefeitura. O viajante nada percebeu.
Perguntou outra vez:
— Vamos jantar logo?
— Daqui a pouco — respondeu o estalajadeiro.
O garoto voltou, trazendo o papel. O estalajadeiro abriu-o rapidamente,
como quem esperava por uma resposta. Parecia ler com atenção, depois do
que, sacudiu a cabeça e ficou pensativo por um momento. Enfim, foi em
direção ao viajante, que parecia imerso em reflexões pouco serenas.
— Senhor — disse —, não posso recebê-lo.
O homem ajeitou-se na banqueta.
— Mas como? Tem medo que eu não pague? Quer que eu pague
adiantado? Tenho dinheiro, estou lhe dizendo.
— Não é por isso.
— Então por que é?
— O senhor traz dinheiro…
— Trago — respondeu.
— Mas eu não tenho quarto…
O homem replicou tranquilamente:
— Coloque-me na estrebaria.
— Não posso.
— Por quê?
— Porque os cavalos ocupam o espaço todo.
— Bem — disse o homem —, um canto do celeiro, um feixe de
palha… Veremos isso depois do jantar.
— Não posso lhe dar o jantar.
Essa declaração, feita em tom comedido, mas firme, pareceu grave ao
desconhecido. Ele levantou-se.
— Mas estou morrendo de fome. Estou caminhando desde o nascer do
sol. Andei doze léguas e vou pagar. Quero comer.
— Não tenho nada — disse o estalajadeiro.
O homem soltou uma gargalhada, voltando-se para o braseiro e os
fornos.
— Não tem nada? E aquilo tudo?
— Tudo está reservado.
— Por quem?
— Pelos carroceiros.
— E quantos são eles?
— Doze.
— A comida que está ali dá para vinte.
— Mas eles querem tudo e já pagaram adiantado.
O homem tornou a sentar-se e disse em tom moderado:
— Estou na hospedaria, tenho fome, vou ficar aqui.
O hospedeiro aproximou-se de seu ouvido e disse-lhe num tom que o
fez estremecer:
— Vá embora!
O viajante achava-se curvado naquele momento, empurrando algumas
brasas para o fogo com a ponta de seu cajado; voltou-se rapidamente, e,
quando ia abrir a boca para retrucar, o dono da hospedaria, olhando
fixamente para ele, disse-lhe em voz baixa:
— Olhe, chega dessa conversa. Quer que lhe diga seu nome? Chama-se
Jean Valjean! Agora quer também que lhe diga quem é? Logo que o vi
entrar, desconfiei de alguma coisa e mandei pedir informações, e aqui está
o que me responderam. Sabe ler?
Dizendo isso, o estalajadeiro estendeu ao estrangeiro o papel que
acabava de ir e voltar da prefeitura à hospedaria. O homem o olhou de
relance; e, após uma pausa, o hospedeiro continuou:
— Costumo ser bem educado com todo o mundo. Vá embora!
O homem abaixou a cabeça, pegou a mochila que tinha deixado no
chão e partiu.
Pegou a rua principal, caminhando ao acaso, quase encostado nas
casas, como um homem humilhado e triste. Não olhou para trás uma única
vez. Se tivesse olhado, teria visto o dono do Croix-de-Colbas na porta,
rodeado por todos os seus hóspedes e por todos os que passavam, falando
com alvoroço e apontando-o com o dedo; e, pelos olhares de desconfiança
e medo daquele grupo, adivinharia que, em pouco tempo, sua chegada
seria o acontecimento da cidade inteira.
Porém ele não viu nada. Quem se sente oprimido não olha para trás e
sabe muito bem que a má sorte o persegue. Caminhou assim algum tempo,
sem parar, passando a esmo por ruas que não conhecia, esquecendo o
cansaço, como acontece a quem está triste.
De repente, sentiu novamente a fome. A noite ia chegando. Olhou em
torno de si para ver se descobria algum abrigo.
A bela hospedaria fora-lhe fechada; o que ele procurava era alguma
taverna humilde, algum lugar mais pobre.
Naquele momento, uma luz acendeu-se no final da rua; um galho de
pinheiro pendurado numa peça de ferro desenhava-se no céu crepuscular.
Encaminhou-se para lá.
Era, efetivamente, uma taverna, a da rua Chaffaut.
O viajante parou um instante, examinou pela vidraça o interior da
taverna, iluminada por um lampião colocado sobre uma mesa e pelo fogo
que ardia na lareira. Alguns homens bebiam, e o taverneiro aquecia-se. A
chama fazia chiar um caldeirão suspenso por uma cremalheira.
Entra-se nessa taverna, que é ao mesmo tempo uma espécie de
estalagem, por duas portas. Uma dá para a rua, outra para um pequeno
quintal cheio de esterco.
O viajante não ousou entrar pela porta da rua. Entrou pelo quintal,
tornou a parar, e, levantando timidamente o fecho, empurrou a porta.
— Quem está aí? — perguntou o dono da taverna.
— Alguém que quer comer e dormir.
— Pode entrar. Aqui há o que comer e onde dormir.
Ele entrou. Todos os que bebiam se voltaram. O lampião o iluminava
de um lado, e o fogo de outro. Enquanto ele tirava a mochila, puseram-se a
examiná-lo.
O dono da taverna disse-lhe:
— Olhe o fogo, camarada; venha aquecer-se enquanto a comida
cozinha.
Foi sentar-se perto da lareira, estendendo os pés machucados de
cansaço; um cheiro gostoso exalava da panela. Tudo o que se podia
distinguir em seu rosto, em parte oculto pela viseira do boné, tinha uma
vaga aparência de bem-estar, entremeada por esse outro aspecto tão
pungente causado pelo hábito do sofrimento.
Era, aliás, um perfil firme, enérgico e triste, o daquele homem. Sua
fisionomia era singularmente composta; no começo parecia humilde, mas
terminava por parecer severa. Os olhos reluziam sob as sobrancelhas como
o fogo reluz no mato.
No entanto, um dos homens que estavam à mesa era um vendedor de
peixes que, antes de vir para a taverna da rua Chaffaut, tinha ido deixar o
cavalo na estrebaria de Labarre. O acaso o fizera, naquela mesma manhã,
cruzar com um desconhecido de mau aspecto, enquanto caminhava entre
Bras d’Asse e… (Esqueci o nome, acho que era Escoublon.) Ora,
encontrando-o, o homem, que parecia já estar muito cansado, pedira-lhe
que o levasse na garupa, ao que o peixeiro respondeu dobrando o passo.
Esse fazia parte, meia hora antes, do grupo que rodeava Jacquin Labarre, e
ele próprio contara seu desagradável encontro da manhã aos fregueses da
Croix-de-Colbas.
Do lugar onde estava, fez um imperceptível sinal ao taverneiro, que se
aproximou. Trocaram algumas palavras em voz baixa. O homem havia
recaído em suas reflexões. O taverneiro retornou à lareira, colocou
bruscamente a mão no ombro do desconhecido, e disse-lhe:
— Vá embora daqui!
O desconhecido virou-se e respondeu brandamente:
— Ah! O senhor sabe?…
— Sei!
— Fui mandado embora da outra hospedaria.
— E o expulsam desta também.
— Para onde quer que eu vá?
— Qualquer outro lugar.
O homem pegou seu cajado e sua mochila, e se foi.
Ao sair, alguns moleques que o haviam seguido desde o Croix de
Colbas, e que pareciam estar à sua espera, começaram a atirar-lhe pedras.
Ele deu uns passos para trás cheio de raiva e ameaçou-os com o cajado; os
moleques se dispersaram como um bando de passarinhos.
Passou em frente à cadeia. À porta, pendia uma corrente de ferro presa
a uma sineta; puxou-a.
Abriu-se um guichê.
— Senhor porteiro — disse ele tirando respeitosamente o boné —,
poderia, por favor, acolher-me por esta noite?
Uma voz respondeu:
— A cadeia não é um albergue. Faça-se prender, e o receberemos.
O guichê tornou a fechar-se.
Seguiu por uma pequena rua onde havia muitos jardins, alguns deles
cercados apenas por sebes, o que a deixava alegre. Entre esses jardins e
sebes, avistou uma casinha cuja janela estava iluminada. Espreitou pela
vidraça como fizera na taverna. Era um grande aposento caiado, com uma
cama coberta por uma colcha estampada e um berço em um dos cantos,
algumas cadeiras de madeira e uma espingarda de dois canos pendurada na
parede. No centro, a mesa estava posta; uma lamparina de cobre iluminava
a toalha de grosseiro tecido branco, o jarro de estanho reluzente como
prata e cheio de vinho e a terrina de barro escuro, que fumegava. À mesa
estava sentado um homem de aproximadamente quarenta anos, rosto
franco e alegre, brincando com uma criancinha que tinha nos joelhos.
Perto dele, uma mulher bem jovem amamentava outra criança. O pai ria, a
criancinha ria, a mãe sorria.
O desconhecido permaneceu um instante contemplativo diante desse
sereno e doce espetáculo. Que se passava dentro dele? Só ele poderia dizer.
É provável que pensasse que aquela casa alegre seria hospitaleira e que ali,
onde via tanta felicidade, talvez encontrasse um pouco de compaixão.
Bateu de leve na vidraça. Ninguém ouviu. Bateu uma segunda vez e
ouviu a mulher dizer:
— Meu marido, parece que estão batendo.
— Não — disse o marido.
Bateu pela terceira vez.
O marido levantou-se, pegou a lamparina, foi até a porta e abriu. Era
um homem alto, meio camponês, meio artesão. Vestia um amplo avental
de couro que lhe subia até o ombro esquerdo, onde faziam volume um
martelo, um lenço vermelho, um polvorinho, todo tipo de objetos contidos
em algo como um bolso. Inclinava a cabeça para trás; a camisa bem aberta
mostrava um pescoço taurino e alvo. Tinha espessas sobrancelhas,
enormes costeletas pretas, olhos saltados, queixo sobressalente, e além de
tudo isso aquele ar de quem está em sua casa, algo que é inexprimível.
— Perdão, senhor — disse o viajante. — Se eu lhe pagar, o senhor
poderia dar-me um prato de sopa e deixar-me dormir em um canto daquele
coberto ali do quintal? Por favor, senhor, eu pago.
— Quem é você? — perguntou o dono da casa.
O homem respondeu:
— Senhor, eu venho de Puy-Moisson. Caminhei o dia inteiro, andei
doze léguas. E então?
— Eu não me recusaria a acolher um homem de bem que me pagasse
— disse o camponês. — Mas por que não vai para uma hospedaria?
— Não há lugar.
— Ah! Não é possível. Hoje não é dia de feira nem de mercado. Já foi
à hospedaria do Labarre?
— Já, sim, senhor.
— E então?
O viajante respondeu com embaraço:
— Não sei, não quis receber-me.
— E já foi àquela da rua Chaffaut?
— Também não me receberam.
O rosto do camponês assumiu uma expressão de desconfiança;
examinou o recém-chegado da cabeça aos pés, e de repente exclamou com
uma espécie de tremor:
— Você será o tal?…
Deu mais uma olhada no desconhecido, foi três passos para trás,
colocou a lamparina sobre a mesa e tirou a espingarda da parede.
Ao ouvir as palavras do camponês: Você será o tal?… a mulher
levantou-se, pegou as duas crianças no colo e refugiou-se
precipitadamente atrás do marido, olhando com terror para o
desconhecido, com o peito descoberto, o olhar espantado, murmurando em
voz baixa: Tso-maraude.2
Tudo isso ocorreu em menos tempo do que se pode imaginar.
Depois de examinar o homem por alguns instantes, como quem
examina uma víbora, o dono da casa voltou para a porta e disse:
— Dê o fora!
— Por piedade, senhor, um copo de água!
— Que tal um tiro! — disse o camponês.
Em seguida, fechou a porta violentamente, e o homem pôde ouvi-lo
passar dois trincos. Um momento depois, a janela também foi fechada, e o
barulho de uma tranca de ferro sendo colocada chegou lá fora.
A noite continuava a cair e a aragem fria dos Alpes soprava. Na
luminosidade do dia que acabava, o desconhecido avistou, em um dos
jardins que orlam a rua, uma espécie de cabana, que lhe pareceu feita de
torrões e galhos.
Saltou resolutamente uma cerca de madeira e entrou no jardim.
Aproximou-se da cabana que tinha como porta uma abertura estreita e
baixa, e assemelhava-se a esses barracões que os trabalhadores constroem
à beira das estradas; pensou que provavelmente fosse mesmo o alojamento
de um deles. Sofria com o frio e a fome, havia-se resignado a ela, mas ali,
pelo menos, tinha um abrigo contra o frio. Esse tipo de alojamento
normalmente não está ocupado à noite. Deitou de bruços e escorregou para
dentro da cabana. Lá dentro estava quente, e ele encontrou uma boa cama
de palha. Permaneceu um instante estendido sobre ela, sem poder fazer o
menor movimento, tão cansado que estava; em seguida, como a mochila
que trazia às costas o incomodava e, além disso, poderia servir de
travesseiro, começou a desatar uma das correias. Nesse momento, ouviu
um rosnar feroz. Levantou os olhos. A cabeça de um enorme cão
desenhava-se na sombra à abertura da cabana.
Era uma casinha de cachorro.
Como era forte e destemido, armou-se do cajado, fez da mochila um
escudo e saiu dali como pôde, não sem aumentar os rasgões de seus
andrajos.
Saiu também do jardim, mas ia recuando, obrigado a se servir daquela
manobra com o cajado, chamada pelos mestres desse tipo de esgrima la
rose couverte (a rosa coberta), para manter o cachorro afastado.
Depois que transpôs a cerca, não sem dificuldade, vendo-se outra vez
no meio da rua, só, sem asilo, sem teto, sem abrigo, expulso até daquela
cama de palha e daquela miserável casinha de cachorro, mais deixou-se
cair do que sentou-se sobre uma pedra, e parece que alguém que passava o
ouviu exclamar: “Nem sequer sou um cão!”
Logo levantou-se e pôs-se de novo a caminhar. Saiu da cidade,
esperando encontrar nos arredores alguma árvore ou algum moinho onde
se abrigar.
Caminhou assim algum tempo, sempre de cabeça baixa. Quando se viu
longe de qualquer habitação humana, levantou a cabeça e olhou em volta.
Estava em um campo e tinha diante de si uma dessas colinas baixas,
cobertas de colmo cortado rente que, depois da ceifa, parecem cabeças
rapadas. O horizonte estava muito escuro; não era só o escuro da noite,
eram nuvens muito baixas, que pareciam apoiar-se na colina e que se
elevavam cobrindo todo o céu. No entanto, como a lua estava para surgir e
no zênite ainda flutuasse um resto de claridade crepuscular, essas nuvens
formavam, no alto do céu, uma espécie de abóbada esbranquiçada, de onde
caía sobre a terra um brilho.
A terra, então, estava mais iluminada que o céu, fenômeno
particularmente sinistro, e a colina, de pobre e vago contorno, desenhava-
se pálida no horizonte escuro. Todo esse conjunto era medonho,
mesquinho, lúgubre e limitado. No campo e na colina, nada além de uma
árvore disforme que se agitava a alguns passos do viajante.
Esse homem estava, evidentemente, muito longe de possuir os
delicados hábitos de inteligência e espírito que nos tornam sensíveis aos
aspectos misteriosos das coisas; no entanto, havia naquele céu, naquela
colina, naquela planície e naquela árvore algo de tão profundamente triste
que, após um momento de imobilidade e meditação, ele retomou
subitamente o caminho de volta. Há momentos em que a natureza parece
hostil.
Voltou para a cidade. As portas de Digne estavam fechadas. Digne, que
no tempo das guerras religiosas fora assediada, em 1815, ainda era cercada
por velhas muralhas guarnecidas de torres que depois foram demolidas.
Ele passou por uma brecha e entrou na cidade.
Deveriam ser oito horas da noite, mais ou menos. Como não conhecia
as ruas, recomeçou a vaguear ao acaso.
Chegou assim à prefeitura, depois ao seminário. Ao passar pela praça
da catedral, ameaçou a igreja com o punho cerrado.
Em um dos cantos dessa praça, há uma tipografia onde foram
impressas, pela primeira vez, as proclamações do imperador e da guarda
imperial ao exército, trazidas da ilha de Elba e ditadas pelo próprio
Napoleão.
Morto de cansaço e desalentado, deitou-se no banco de pedra que fica à
porta da tipografia.
Nesse momento, uma senhora que saía da igreja, vendo-o deitado no
escuro, perguntou-lhe:
— Que faz aí, meu amigo?
Ele respondeu secamente e com raiva:
— Não está vendo, minha boa senhora? Vou dormir.
A boa senhora, de fato digna desse adjetivo, era a marquesa de R.
— Nesse banco? — tornou ela.
— Por dezenove anos tive um colchão de tábua — disse o homem —;
hoje vou ter um colchão de pedra.
— Então foi soldado?
— Sim, minha senhora, fui soldado.
— Por que não vai para a hospedaria?
— Porque não tenho dinheiro!
— Que pena! — disse a senhora de R. — Só tenho quatro moedas na
bolsa.
— Pode me dar.
O homem pegou as quatro moedas e a senhora de R. continuou:
— Não vai conseguir se alojar com tão pouco em uma hospedaria. Já
tentou, não foi? Não pode passar a noite aqui! Deve estar com frio e com
fome. Poderiam tê-lo acolhido por caridade.
— Já bati em todas as portas.
— E então?
— Fui enxotado de todos os lugares.
A “boa senhora” tocou no braço do homem e apontou-lhe, no outro
lado da praça, uma casinha branca pegada ao paço episcopal.
— Já bateu em todas as portas? — replicou ela.
— Já.
— Naquela também?
— Não.
— Pois então bata lá.

II. A PRUDÊNCIA ACONSELHADA PELA


SABEDORIA
Naquela noite, o bispo de Digne, após seu passeio pela cidade, ficou
até bem tarde fechado em seu quarto, ocupado com uma grande obra sobre
os Deveres que, infelizmente, estava incompleta. Nela analisava
cuidadosamente tudo o que os padres e doutores têm dito sobre essa
importante matéria. O livro dividia-se em duas partes: a primeira tratava
dos deveres de todos, a segunda tratava dos deveres de cada um, segundo a
classe a que pertence. Os deveres de todos são os principais. Há quatro que
são os indicados por São Mateus: deveres para com Deus (Mt 6), deveres
para consigo mesmo (Mt 5,29-30), deveres para com o próximo (Mt 7,12),
deveres para com as criaturas (Mt 6,20.25). Quanto aos outros deveres, o
bispo os havia encontrado indicados e prescritos em outras fontes; aos
soberanos e aos súditos, na Epístola aos Romanos; aos magistrados, às
esposas, às mães e aos jovens, em São Pedro; aos maridos, aos pais, aos
filhos e aos criados, na Epístola aos Efésios; aos fiéis, na Epístola aos
Hebreus; às virgens, na Epístola aos Coríntios. Com todas essas
prescrições, ele formava laboriosamente um todo harmônico, que
tencionava apresentar às almas.
Às 8 horas, ainda trabalhava, escrevendo incomodamente em pedaços
de papel, com um volumoso livro aberto sobre os joelhos, quando a
senhora Magloire entrou, como era seu costume, para pegar os talheres de
prata do armário próximo à cama. Passado um momento, calculando que a
mesa estivesse posta e que talvez sua irmã o esperasse, fechou o livro,
levantou-se e foi para a sala de jantar.
Esta sala era uma peça oblonga, com lareira, uma porta que dava para a
rua (já o dissemos) e uma janela para o jardim.
Efetivamente, a senhora Magloire acabava de pôr a mesa. Já
desocupada desse serviço, conversava com a senhorita Baptistine.
Havia uma lamparina sobre a mesa, que ficava perto da lareira, onde
um bom fogo fora aceso.
Pode-se facilmente imaginar as duas mulheres, ambas já passadas dos
sessenta anos: a senhora Magloire, baixa, gorda, ativa; a senhorita
Baptistine, meiga, magra, frágil, um pouco mais alta que seu irmão,
trajando um vestido de seda marrom, cor da moda em 1806, comprado
então em Paris e que ainda lhe durava. Para nos servirmos de uma dessas
expressões vulgares, cujo o mérito de exprimir facilmente uma ideia em
uma página mal se conseguiria esboçar, a senhora Magloire parecia uma
“caipira” e a senhorita Baptistine uma “fidalga”.
A senhora Magloire usava uma touca branca, uma cruzinha de ouro no
pescoço, única joia feminina que havia na casa, um lenço muito branco
aparecendo sobre um vestido de lã preto, com mangas largas e curtas, um
avental de algodão xadrez verde e vermelho, amarrado à cintura por uma
fita verde, com um gorjete da mesma fazenda, preso por dois alfinetes nas
pontas de cima; nos pés, sapatos grosseiros e meias amarelas, como as
mulheres de Marselha.
O vestido da senhorita Baptistine era talhado aos moldes de 1806:
cintura baixa, saia estreita, mangas com ombreiras, presilhas e botões. Ela
escondia os cabelos grisalhos com uma peruca encaracolada, à moda
chamada à l’enfant (como criança).
A senhora Magloire tinha ar inteligente, vivaz e bondoso; os dois
cantos da boca desigualmente elevados e o lábio superior mais grosso que
o inferior davam-lhe um não sei que de teimosia e altivez. Quando o bispo
se calava, ela lhe falava resolutamente, com certa mistura de respeito e
liberdade; porém, desde que monsenhor dissesse algo, ela obedecia, como
já vimos, passivamente, como a senhorita Baptistine.
Esta nem sequer falava. Limitava-se a obedecer e a condescender.
Mesmo quando era jovem, não fora bonita; tinha grandes olhos azuis
saltados, nariz comprido e arqueado; mas todo o seu rosto, toda a sua
pessoa, conforme já dissemos, mostravam uma inefável bondade. Ela
sempre fora predestinada à mansidão; mas a fé, a caridade e a esperança,
essas três virtudes que animam docemente a alma, foram gradualmente
elevando essa mansidão à santidade. A natureza fizera dela uma ovelha, a
religião, um anjo. Pobre santa! Doce recordação desaparecida!
A senhorita Baptistine contou tantas vezes o que ocorreu aquela noite
no paço episcopal que muitas pessoas, ainda hoje vivas, se recordam dos
mínimos pormenores.
No momento em que o bispo entrou, a senhora Magloire falava com
certa vivacidade. Entretinha a senhorita com um assunto que lhe era
familiar e com o qual o bispo estava acostumado. Tratava-se dos fechos da
porta de entrada.
Parece que, ao fazer algumas compras para a ceia, a senhora Magloire
ouvira dizer certas coisas em diversos lugares. Falava-se de um vagabundo
mal-encarado; um vadio suspeito que teria chegado, que estaria em algum
lugar da cidade; que poderiam ocorrer encontros desagradáveis àqueles
que voltassem tarde para casa naquela noite. Que, de resto, a polícia estava
mal-arranjada, já que o delegado e o prefeito não se entendiam e
procuravam prejudicar-se, deixando que as coisas acontecessem. Que,
então, os espertos bancassem, eles próprios, a polícia e tomassem cuidado,
fechando, trancando solidamente suas casas e mantendo bem fechadas as
portas.
A senhora Magloire carregou nessas últimas palavras; mas o bispo
vinha de seu quarto, onde sentira bastante frio, sentou-se diante da lareira
para aquecer-se, e, em seguida, tinha o pensamento em outras coisas. Ele
não prestou atenção ao que a senhora Magloire acabava de dizer. Ela
repetiu. Baptistine, então, querendo satisfazer a senhora Magloire, sem
desagradar seu irmão, aventurou-se a dizer timidamente:
— Meu irmão, ouviu o que disse a senhora Magloire?
— Ouvi vagamente qualquer coisa — respondeu o bispo. Depois,
voltando a cadeira de lado, colocou as duas mãos nos joelhos e, virando
para a velha criada seu rosto cordial e risonho, que o fogo iluminava por
baixo, disse: — Vejamos, o que há? O que há? Estamos então correndo
algum grande perigo?
A senhora Magloire repetiu então toda a história, exagerando-a um
pouco, sem dar-se conta.
Parecia que um boêmio, um maltrapilho, uma espécie de mendigo
perigoso, estava naquele momento na cidade. Tentara alojar-se na
hospedaria de Jacquin Labarre, que não quis recebê-lo. Viram-no chegar
pelo bulevar Gassendi e perambular pelas ruas ao anoitecer. Um malvado
com uma cara terrível.
— Verdade?! — disse o bispo.
Essa condescendência em interrogá-la animou a senhora Magloire;
aquilo pareceu-lhe indicar que o bispo não estava longe de se alarmar, e
ela prosseguiu triunfante:
— É verdade, monsenhor. É isso mesmo. Acontecerá alguma desgraça
esta noite na cidade. Todo o mundo diz isso. Ainda mais com a polícia
desse jeito (repetição útil). Viver numa região montanhosa e nem sequer
haver lampiões pelas ruas à noite! A gente sai, que escuridão! Eu digo,
monsenhor, e aqui a senhorita também diz…
— Eu? — interrompeu a irmã. — Eu não digo nada. O que meu irmão
faz está bem feito.
A senhora Magloire continuou como se não tivesse havido protesto:
— Dizíamos que esta casa não é nem um pouco segura, e que, se
monsenhor permitir, vou chamar o serralheiro Paulin Musebois para vir
recolocar os antigos trincos da porta; estão ali, é um instante; e digo que é
preciso pôr os trincos, monsenhor, não só por esta noite, pois eu digo uma
porta se abre por fora com uma tramela, pelo primeiro que passar… não há
nada mais terrível; e ainda com o costume que monsenhor tem de mandar
logo entrar, mesmo no meio da noite, ai meu Deus, nem é preciso pedir
licença…
Naquele instante, bateram à porta, uma batida bastante violenta.
— Entre — disse o bispo.

III. HEROÍSMO DA OBEDIÊNCIA PASSIVA


A porta se abriu.
E se abriu completamente, como se alguém a empurrasse com energia
e resolução.
Entrou um homem.
Esse homem, já o conhecemos; é o viajante que há pouco vimos
vagueando à procura de um abrigo.
Entrou, deu um passo e parou, deixando a porta aberta atrás de si.
Trazia a mochila às costas, o cajado na mão, e uma expressão rude,
ousada, cansada e violenta no olhar.
O fogo da lareira o iluminava; estava medonho. Era uma visão sinistra.
A senhora Magloire não teve forças nem para dar um grito.
Sobressaltou-se e ficou boquiaberta. A senhorita Baptistine voltou-se, viu
o homem entrando e ergueu-se meio assustada; em seguida, virando a
cabeça devagar em direção à lareira, olhou para seu irmão, e, então, seu
semblante tornou-se outra vez profundamente calmo e sereno.
O bispo olhava para o homem de um modo tranquilo.
Quando abria a boca, decerto para perguntar ao recém-chegado o que
queria, este apoiou as duas mãos no cajado, passou os olhos pelo velho e
pelas mulheres e, sem esperar que o bispo falasse, disse em voz alta:
— Bem, meu nome é Jean Valjean. Era presidiário, passei dezenove
anos na cadeia. Fui liberado há quatro dias e estou indo para Pontarlier,
que é meu destino. Quatro dias andando desde Toulon. Hoje andei doze
léguas a pé. No fim da tarde, chegando a este lugar, fui a uma hospedaria,
mas mandaram-me embora por causa do passaporte amarelo que eu tinha
apresentado na prefeitura. Era preciso. Fui a outra pousada; disseram-me:
“Vá embora!” Assim, tenho andado de um lado para o outro, sem que
ninguém queira acolher-me. Bati à porta da cadeia; o carcereiro não quis
abrir. Entrei numa casinha de cachorro; o cão me mordeu e expulsou como
se ele fosse um homem; diriam até que ele sabia quem eu era! Parti em
direção ao campo, para dormir ao relento. Não havia estrelas, pensei que
poderia chover e que não haveria nenhum Deus para impedir que
chovesse; voltei para a cidade tentando encontrar um nicho em alguma
porta. Ali, na praça, ia deitar-me em cima de uma pedra, mas uma boa
senhora apontou sua casa e me disse: “Bata ali”. E eu bati. O que é aqui?
Algum albergue? Tenho dinheiro, o que juntei. Cento e nove francos e
quinze soldos que ganhei na prisão com meu trabalho em dezenove anos.
Vou pagar, que me importa? Aqui está o dinheiro. Estou muito cansado,
doze léguas a pé… e com bastante fome. Posso ficar?
— Senhora Magloire — disse o bispo —, ponha mais um prato na
mesa.
O homem deu três passos e continuou, aproximando-se da lamparina
que estava sobre a mesa. Continuou, como se não tivesse compreendido
direito:
— Olhe, não é isso; o senhor entendeu? Sou um presidiário, um
condenado, estou vindo da prisão.
Tirou do bolso uma grande folha de papel amarelo e a abriu.
— É meu passaporte. Amarelo, como veem. Serve para que me
expulsem de todo lugar para onde eu vá. Querem ler? Eu sei ler, aprendi na
prisão. Há uma escola para os que querem aprender. Escutem o que
puseram no passaporte: “Jean Valjean, condenado libertado, natural de…
(isso é indiferente para vocês), passou dezenove anos na prisão. Cinco
anos por roubo com arrombamento, catorze por tentar quatro vezes evadir-
se. É um homem muito perigoso”. É isso. Todo o mundo me pôs para fora!
O senhor quer me receber, quer? É um albergue? Vão dar-me de comer e
deixar-me dormir? Têm uma estrebaria?
— Senhora Magloire — disse o bispo —, coloque lençóis limpos na
cama da alcova.
Já explicamos de que natureza era a obediência das duas mulheres. A
senhora Magloire saiu para executar as ordens.
O bispo virou-se para o homem.
— Sente-se, senhor, e aqueça-se. Vamos cear em um instante, enquanto
isso sua cama será arrumada.
Então o homem compreendeu tudo. A expressão de seu rosto, até
aquele momento sombria e dura, impregnou-se de pasmo, de dúvida, de
alegria, e tornou-se extraordinária. Pôs-se a balbuciar como um demente:
— Será verdade? O senhor vai me acolher? Não vai me expulsar? Um
condenado! Trata-me por senhor e não por você! “Fora, cachorro!” Não
vai dizer isso, como me dizem sempre? Eu bem pensei que o senhor
também me mandaria embora. Por isso disse logo quem era. Oh! Bendita
mulher que me mostrou sua casa! Vou comer! Vou dormir numa cama com
colchão e lençóis! Como todo o mundo! Uma cama! Há dezenove anos que
não durmo em uma cama! Querem mesmo que eu não vá embora! São
pessoas dignas! Mas eu tenho dinheiro; vou pagar bem. Desculpe, senhor,
como se chama? Pagarei o que pedir. O senhor é um bom homem. É
estalajadeiro, não é?
— Eu sou um padre que mora aqui — disse o bispo.
— Um padre! — replicou o homem. — Ah! Um bom padre! Então não
vai me pedir dinheiro? É o abade, não é? Daquela grande igreja? É mesmo,
como sou tolo! Não tinha reparado no barrete!
Enquanto falava, colocou sua mochila e seu cajado em um canto,
guardou o passaporte no bolso e sentou-se.
A senhorita Baptistine o olhava com ar de bondade.
Ele continuou:
— O senhor é humano, padre, não sente desprezo. É bom encontrar um
bom padre. Então não é preciso que eu lhe pague?
— Não — disse o bispo —, guarde seu dinheiro. Quanto traz? Não
disse cento e nove francos?
— E quinze soldos — acrescentou o homem.
— Cento e nove francos e quinze soldos. E quanto tempo levou para
ganhar essa quantia?
— Dezenove anos.
— Dezenove anos! — E o bispo suspirou profundamente.
O homem prosseguiu:
— Ainda tenho todo o meu dinheiro. Em quatro dias, só gastei vinte e
cinco soldos, que ganhei descarregando uns carros em Grasse. Como o
senhor é um padre, então vou contar-lhe. Na prisão, tínhamos um capelão.
E um dia vi um bispo. Monsenhor, como lhe chamam. Era o bispo de
Majore, em Marselha. É o abade superior aos outros abades. Desculpe, não
falo direito disso, o senhor sabe, para mim é tão distante! O senhor
entende a gente! Rezou a missa num altar no meio da prisão, com uma
coisa pontuda e dourada na cabeça. À luz do meio-dia, aquilo brilhava.
Estávamos em filas, em três lados, os canhões com as mechas acesas
diante de nós. Não enxergávamos bem. Ele falava, mas, por estar muito ao
fundo, não entendíamos. Isso é um bispo.
Enquanto ele falava, o bispo fora fechar a porta, que tinha ficado
completamente aberta.
A senhora Magloire voltou trazendo um prato, que pôs sobre a mesa.
— Senhora Magloire — disse o bispo —, ponha esse prato bem perto
do fogo. — E, voltando-se para o hóspede, acrescentou: — O vento da
noite é forte nos Alpes, deve estar com frio, não é, senhor?
Cada vez que ele dizia a palavra senhor, com sua voz de suave
gravidade e seu modo atencioso, o rosto do homem se iluminava. Senhor, a
um condenado, é um copo de água a um náufrago da Méduse.3 A
ignomínia tem sede de consideração.
— Esta lamparina ilumina bem mal! — disse o bispo.
A senhora Magloire compreendeu e foi buscar, na lareira do quarto do
bispo, os dois castiçais de prata, que acendeu e colocou sobre a mesa.
— Padre — disse o homem —, o senhor é bom, não tem desprezo por
mim. Recebe-me em sua casa. Manda acender os seus castiçais. E eu não
lhe escondi de onde venho, nem que sou um homem desgraçado.
O bispo, sentado perto dele, tocou de leve sua mão.
— Poderia não ter dito quem era. Esta casa não é minha, é de Jesus
Cristo. Aquela porta não pergunta a quem entra se tem nome, mas se tem
alguma amargura. O senhor sofre; tem fome e sede, seja bem-vindo! Não
me agradeça por isso, não diga que o recebo em minha casa. Ninguém aqui
está em sua casa, a não ser aquele que precisa de asilo. Digo isso a quem
passa, aqui estão em casa mais que eu mesmo. Tudo o que há aqui é de
vocês. Que necessidade tenho de saber seu nome? Além disso, antes que
me digam, vocês têm um nome que eu já conhecia.
O homem arregalou os olhos.
— Verdade? O senhor sabia como me chamo?
— Sabia — respondeu o bispo —; chama-se meu irmão!
— Olhe, senhor padre — exclamou o homem —, quando entrei aqui,
estava morrendo de fome, mas o senhor é tão bom, que já não sei o que
sinto; a fome passou!
O bispo olhou para ele e disse:
— O senhor sofreu muito?
— Oh! A vestimenta vermelha, os pesos no pé, uma tábua para dormir,
o calor, o frio, o trabalho, aquele bando de condenados, as pancadas! A
corrente dupla por um nada, o calabouço por uma palavra. Mesmo doente,
as correntes. Os cães, eles são mais felizes! Dezenove anos! E tenho
quarenta e seis. E agora o passaporte amarelo! É isso.
— É — replicou o bispo —, o senhor saiu de um lugar de tristeza. Mas
lembre-se que haverá mais alegria no céu pelo rosto lavado em lágrimas
de um pecador arrependido do que pela cândida veste de cem justos. Se
saiu desse lugar doloroso com pensamentos de ódio e de raiva contra os
homens, é digno de pena; se saiu com pensamentos de benevolência, de
ternura e de paz, vale mais que qualquer de nós!
A senhora Magloire havia servido a ceia; uma sopa feita de água,
azeite, pão e sal, um pouco de toucinho, um pedaço de carne de carneiro,
figos, um queijo fresco e um pão de centeio. Por sua conta, acrescentara ao
trivial do bispo uma garrafa de vinho velho de Mauves.
O semblante do bispo tomou repentinamente essa expressão de alegria
peculiar aos temperamentos hospitaleiros.
— Para a mesa — disse ele com vivacidade. Como de costume, quando
algum estranho ceava com ele, fez o homem sentar-se à sua direita. A
senhorita Baptistine, de todo tranquilizada e natural, tomou lugar à sua
esquerda.
O bispo rezou o benedicite (oração católica que antecede as refeições e
começa por essa palavra) e, em seguida, serviu a sopa. O homem pôs-se a
comer avidamente.
De repente, o bispo disse:
— Mas me parece que nesta mesa falta alguma coisa.
Efetivamente, a senhora Magloire só tinha posto os três talheres
necessários. Ora, era costume da casa, todas as vezes que o bispo tinha
hóspedes, colocar na mesa os seis talheres de prata. Ostentação inocente,
esse gracioso arremedo de luxo era uma infantilidade cheia de encanto
naquela serena e severa casa, onde a pobreza era elevada à dignidade.
A senhora Magloire compreendeu a observação, saiu sem dizer uma
palavra, e, um instante depois, os três talheres reclamados pelo bispo
luziam sobre a toalha, simetricamente dispostos diante de cada um dos
três convivas.

IV. PORMENORES SOBRE AS QUEIJARIAS DE


PONTARLIER
Agora, para darmos uma ideia do que se passou naquela mesa, nada
melhor do que aqui transcrevermos uma passagem de uma carta da
senhorita Baptistine à senhora De Boischevron, na qual a conversa entre o
desconhecido e o bispo é relatada com ingênua minuciosidade:

“…Aquele homem não prestava atenção em ninguém. Comia com uma voracidade de
esfaimado. No fim da refeição, porém, disse:
— Senhor padre do bom Deus, tudo isso é bom demais para mim, mas tenho de dizer
que os carroceiros que não quiseram deixar-me comer com eles passam melhor que o
senhor!
Cá entre nós, essa observação chocou-me um pouco. Meu irmão respondeu:
— Eles sentem mais cansaço que eu!
— Não — replicou o homem —, eles têm mais dinheiro. O senhor é pobre, bem vejo.
Talvez nem seja padre. O senhor é mesmo padre? Ah! Por exemplo, se Deus fosse justo, o
senhor deveria mesmo ser padre.
— O bom Deus é mais que justo — disse meu irmão.
E um momento depois acrescentou:
— Senhor Jean Valjean, é para Pontarlier que está indo?
— Com itinerário obrigatório.
Creio que foi assim que o homem disse. Em seguida, continuou:
— É preciso que eu esteja a caminho amanhã ao nascer do dia… É duro viajar. Se as
noites são frias, durante o dia faz muito calor.
— O senhor está indo para uma excelente terra — prosseguiu meu irmão. — Por ocasião
da Revolução, minha família ficou sem nada, refugiei-me primeiro em Franche-Conté, onde
vivi algum tempo à custa de meu trabalho. Tinha boa vontade e encontrei ocupação. É só
escolher. Há fábricas de papel, curtumes, destilarias, lagares de azeite, fábricas de relógios,
fábricas de aço, de cobre, pelo menos vinte oficinas de ferreiro, quatro das quais em Lods,
Châtillon, Audincourt e Beure, que são bem consideráveis…
Acho que não me engano e que foram esses os nomes que meu irmão citou. Depois,
interrompeu-se e dirigiu-me a palavra:
— Minha cara irmã, não temos parentes naquela região?
— Tínhamos — respondi. — Entre outros, o senhor Lucenet, que era capitão das
entradas em Pontarlier no Antigo Regime.
— É verdade — continuou meu irmão —, mas em 1793 não tínhamos mais parentes; só
tínhamos nossos braços. Eu trabalhei. Na região de Pontarlier, para onde o senhor vai, há
uma indústria patriarcal e encantadora. São suas queijarias, que eles chamam de fruitières (a
que dá frutos).
Então, enquanto fazia o homem comer, meu irmão explicou-lhe com detalhes em que
consistiam as fruitières de Pontarlier: que se distinguiam duas espécies, as “grandes
granjas”, dos ricos, onde há quarenta ou cinquenta vacas e produzem sete ou oito mil
queijos cada verão; e as “fruitières de associação”, dos pobres, camponeses do centro da
montanha que cuidam de suas vacas em comum e repartem os produtos. Pagam a um
queijeiro, que eles chamam de grurin, para receber o leite dos associados três vezes por dia
e marcar as quantidades. É lá pelo final de abril que o trabalho das queijarias começa e, em
meados de junho, os queijeiros conduzem suas vacas para a montanha.
O homem ia se reanimando ao comer. Meu irmão o fazia beber do bom vinho de
Mauves, que ele mesmo não bebe porque diz que é vinho caro. Explicava-lhe esses
pormenores com aquela alegria que a senhora conhece, entremeando suas palavras com
graciosas atenções para comigo. Ele voltou bastante ao assunto sobre o trabalho de grurin,
como se quisesse dar a entender ao homem, sem aconselhá-lo diretamente, que poderia ser
um ofício para ele. Uma coisa causou-me admiração. Aquele homem era o que eu lhe
contei. Muito bem, durante toda a ceia, durante a noite inteira, com exceção de algumas
palavras sobre Jesus, quando entrou, meu irmão não disse uma só palavra que pudesse
lembrá-lo quem ele era, nem mostrar-lhe quem era meu irmão. Poderia bem ter sido uma
ocasião que se apresentava para um sermão e para que o bispo deixasse uma marca em sua
passagem. Talvez parecesse a outros que fosse o caso, tendo o infeliz nas mãos, de
alimentar-lhe a alma ao mesmo tempo que o corpo, fazendo-lhe uma reprimenda com
toques de moral e conselho, ou de mostrar compadecimento, exortando-o a comportar-se
melhor no futuro. Meu irmão, porém, nem sequer perguntou-lhe de onde era, nem sua
história, pois nela havia seu erro e meu irmão parecia evitar tudo o que o fizesse lembrar
disso. De tal maneira que, em dado momento, ao falar dos montanheses de Pontarlier, que
têm um suave trabalho perto do céu e que, acrescentava ele, são felizes porque são
inocentes, ele parou de repente, com medo de que essa frase, que lhe escapara, pudesse, de
alguma forma, ofender o homem.
À força de pensar nisso, parece-me que percebi o que se passava no coração de meu
irmão. Sem dúvida ele pensava que aquele homem, que se chama Jean Valjean, tinha seu
infortúnio por demais presente na alma, que o melhor seria distraí-lo, fazê-lo acreditar, nem
que só por um momento, que era uma pessoa como outra qualquer, e mostrar-se para ele
uma pessoa comum. Não é exatamente isso conhecer a caridade? Não acha, minha boa
amiga, que há algo de verdadeiramente evangélico nessa delicadeza que se abstém do
sermão, da moral, das alusões? E a maior piedade para com um homem a tal ponto dolorido
não é não tocar em sua ferida?
Pareceu-me que poderia ser assim que pensasse meu irmão. Em todo caso, o que posso
dizer é que, se ele teve todos esses pensamentos, não deu demonstração nem mesmo a mim;
do princípio ao fim foi o mesmo homem de todas as noites, ceando com o tal Jean Valjean
com o mesmo ar, os mesmos modos que teria tido com o senhor Gédéon Le Prévost ou com
o vigário da paróquia.
No final, quando estávamos à sobremesa, bateram à porta. Era a senhora Gerbaud com
seu filhinho no colo. Meu irmão beijou a criancinha na testa e pediu-me quinze soldos que
estavam comigo para dar à mulher. O homem quase não prestava atenção ao que se
passava. Não falava mais nada e parecia muito cansado. Assim que a senhora Gerbaud saiu,
meu irmão deu graças e, voltando-se para o homem, disse: ‘O senhor deve estar precisando
de sua cama’.
A senhora Magloire tirou a mesa bem rápido. Eu entendi que devíamos nos retirar para
deixar o caminhante dormir; subimos ambas para nossos quartos. Passado um instante, disse
à senhora Magloire que fosse colocar na cama do homem uma pele de cabrito-montês da
Floresta Negra que estava em meu quarto. As noites são muito frias e a pele mantém o calor.
Pena é que ela esteja velha, tem-lhe caído quase todo o pelo. Foi comprada por meu irmão
no tempo em que esteve na Alemanha, em Tottlingen, próximo à nascente do Danúbio,
assim como a faquinha de cabo de marfim que uso à mesa.
A senhora Magloire voltou logo em seguida, começamos a rezar na sala onde
estendemos a roupa, e depois fomos para nossos quartos sem nos dizer nada”.

V. TRANQUILIDADE
Após dar boa-noite a sua irmã, Monsenhor Bienvenu tirou de cima da
mesa um dos castiçais de prata, entregou o outro a seu hóspede e disse-lhe:
— Senhor, vou conduzi-lo a seu quarto.
O homem o seguiu.
Como acima dissemos, a casa era repartida de tal modo que, para
passar ao oratório, onde ficava a alcova, ou sair dele, era preciso
atravessar o quarto do bispo.
No momento em que ambos o atravessavam, a senhora Magloire
guardava os talheres de prata no armário que ficava à cabeceira da cama.
Era o último serviço que fazia todas as noites antes de deitar-se.
O bispo instalou seu hóspede na alcova; uma cama limpa e fresca
estava preparada. O homem colocou o castiçal sobre uma mesinha.
— Tenha uma boa noite — disse-lhe o bispo. — Amanhã cedo, antes
de partir, irá tomar uma xícara do leite quentinho de nossas vacas.
— Obrigado, senhor abade — disse o homem.
Mal acabou de dizer essas palavras cheias de serenidade e teve
repentinamente, e sem transição, um movimento impetuoso, que gelaria de
susto as duas virtuosas mulheres se dele fossem testemunhas. Ainda hoje
nos é difícil determinar a causa que, naquele momento, o moveu. Queria
fazer uma advertência ou uma ameaça? Obedeceria simplesmente a uma
espécie de impulso instintivo, obscuro para ele mesmo? Voltou-se
bruscamente para o bispo, cruzou os braços e, fitando seu hospedeiro com
um olhar selvagem, exclamou com a voz rouca:
— Decididamente! Como o senhor recolhe-me em sua casa, tão
próximo assim de todos?
Interrompeu-se e acrescentou com um riso que tinha algo de
monstruoso:
— Pensou bem no que está fazendo? Quem lhe garante que não sou um
assassino?
O bispo respondeu:
— Isso é com Deus.
E, dizendo isso, elevou os dois dedos da mão direita com ar grave,
mexendo os lábios como quem reza ou fala sozinho, e abençoou o homem,
que não se inclinou, e, sem virar a cabeça nem olhar para trás, entrou em
seu quarto.
Quando alguém ocupava a alcova, uma grande cortina de sarja,
esticada de um lado ao outro do oratório, escondia o altar. Ao passar para
diante da cortina, o bispo ajoelhou-se e fez uma curta oração.
Um momento depois, já estava em seu jardim, caminhando,
meditando, contemplando, com a alma e o pensamento voltados
completamente a esses grandes mistérios que Deus mostra durante a noite
aos olhos que velam.
Quanto ao homem, estava realmente tão cansado, que nem aproveitou
os gostosos lençóis limpos. Apagou a vela com as narinas, segundo o uso
dos condenados, e atirou-se de roupa e tudo na cama, logo adormecendo
profundamente.
Soava meia-noite quando o bispo vinha do jardim para seu quarto.
Alguns minutos depois, tudo dormia na casa.

VI. JEAN VALJEAN


Pelo meio da noite, Jean Valjean acordou.
Jean Valjean era oriundo de uma pobre família de camponeses de Brie.
Na infância, não aprendera a ler. Já adulto, era podador em Faverolles. Sua
mãe chamava-se Jeanne Mathieu; seu pai Jean Valjean ou Vlajean, alcunha
talvez formada pela contração de Voilà Jean.
Jean Valjean era de caráter pensativo sem ser triste, o que é próprio das
naturezas afetuosas. Era, afinal, uma criatura bem dorminhoca e
insignificante, ao menos aparentemente. Perdera os pais ainda muito novo.
A mãe morrera de uma febre de leite mal cuidada; o pai, que também fora
podador, morrera ao cair de uma árvore. Jean Valjean ficou apenas com
uma irmã, mais velha do que ele, viúva, com sete filhos, entre meninos e
meninas. Essa irmã criou Jean Valjean, e, enquanto seu marido era vivo,
deu casa e comida ao irmão. Morreu o marido. A mais velha das sete
criancinhas tinha oito anos, a mais nova apenas um. Jean Valjean acabava
de chegar aos vinte e cinco anos; tomou o lugar de pai, amparando por sua
vez a irmã que o criara. Isso ocorreu simplesmente, como um dever,
apesar de algum enfado por parte de Jean Valjean. Assim, consumira a
mocidade num trabalho rude e mal pago. Na região, ninguém nunca soube
que tivesse uma “amiga”. Não lhe sobrou tempo para apaixonar-se.
À noite, voltava cansado e tomava sua sopa sem dizer uma só palavra.
Enquanto comia, com frequência, sua irmã tirava-lhe da tigela o melhor da
refeição, o pedaço de carne, a fatia de toucinho, o miolo da couve, para dar
a algum de seus filhos; ele não parava de comer e, debruçado sobre a
mesa, com a cabeça quase metida na tigela, os longos cabelos caídos em
volta dela e cobrindo seus olhos, parecia nada ver, nem se importar.
Havia em Faverolles, não longe da cabana dos Valjean, do outro lado
da ruazinha, uma caseira chamada Marie-Claude; as crianças Valjean,
quase sempre esfaimadas, iam às vezes pedir-lhe, em nome da mãe, um
pouco de leite, que bebiam atrás de alguma sebe ou em um cantinho do
caminho, arrancando um do outro a vasilha com tanta pressa que as
meninas derramavam-no nos aventais e golas. Se a mãe tomasse
conhecimento dessa travessura, puniria severamente os pequenos
delinquentes. Jean Valjean, rude e rabugento, pagava o leite a Marie-
Claude às escondidas da mãe, e as criancinhas não eram castigadas.
No tempo das podas, ganhava dezoito soldos por dia; depois, colocava-
se como ceifeiro, como cavador, como ajudante de fazenda, como
carregador. Fazia o que podia. Sua irmã trabalhava a seu lado, mas que
fazer com sete crianças? Era um triste grupo que a miséria ia envolvendo e
abraçando pouco a pouco. Aconteceu de haver um inverno rigoroso, em
que Jean Valjean ficou sem trabalho. A família ficou sem pão. Sem pão,
literalmente. Sete crianças.
Um domingo à noite, Maubert Isabeau, padeiro estabelecido no largo
da igreja, em Faverolles, ia deitar-se quando ouviu uma violenta pancada
na vidraça gradeada de sua loja. Chegou a tempo de ver um braço
passando por uma abertura feita com um murro na grade e na vidraça. O
braço pegou um pão e levou. Isabeau saiu correndo; o ladrão fugia muito
rápido, mas Isabeau o alcançou e o agarrou. O ladrão havia jogado o pão
fora, mas ainda tinha o braço ensanguentado. Era Jean Valjean.4
Isso ocorreu em 1795. Jean Valjean foi conduzido perante os tribunais
da época “por roubo com arrombamento, durante a noite, de uma casa
habitada”. Possuía uma espingarda, da qual se servia como bom atirador, e
às vezes caçava em locais proibidos. Tudo isso lhe foi prejudicial. Há
contra os caçadores furtivos um preconceito legítimo; assim como os
contrabandistas, avizinham-se muito dos bandidos. Contudo, seja dito de
passagem, existe um abismo entre essas raças de homens e o medonho
assassino das cidades. O caçador furtivo vive na floresta, o contrabandista,
na montanha ou no mar. As cidades produzem homens ferozes, porque
produzem homens corruptos. A montanha, o mar, a floresta, produzem
homens selvagens; desenvolvem o lado feroz, mas frequentemente não
destroem o lado humano.
Jean Valjean foi declarado culpado. As palavras do código eram
formais. Há momentos terríveis em nossa civilização: quando a penalidade
pronuncia um naufrágio. Que minuto funesto aquele em que a sociedade se
desvia e decreta o irreparável desamparo a uma criatura racional! Jean
Valjean foi condenado a cinco anos de galés.
Em 22 de abril de 1796, proclamava-se em Paris a vitória de
Montenotte alcançada pelo general-chefe do exército da Itália, que a
mensagem do Diretório ao Conselho dos Quinhentos, datada de 2 de
Floreal do ano IV, chama Buona-Parte, e nesse mesmo dia uma grande
corrente foi passada em Bicêtre. Jean Valjean fazia parte dos acorrentados.
Um antigo carcereiro daquela prisão, que hoje tem perto de noventa
anos, lembra-se ainda perfeitamente daquele infeliz que foi acorrentado na
extremidade do quarto cordão, no ângulo norte do pátio. Estava sentado no
chão como todos os outros, e parecia nada compreender de sua situação, a
não ser que era horrível. É provável que, por entre suas vagas ideias de
homem ignorante, lhe parecesse haver algo de excessivo. Enquanto o
prendiam, a golpes de martelo, à argola de ferro, ele chorava, e as lágrimas
sufocavam-no, impedindo-o de falar; de tempos em tempos apenas
conseguia dizer: “Eu era podador em Faverolles”. E então, aos soluços,
levantava e abaixava gradualmente a mão direita sete vezes, como se
tocasse sucessivamente sete cabeças desiguais, e, por esse gesto,
depreendia-se que, o que quer que ele tivesse feito, havia feito para vestir
e alimentar sete criancinhas.
Partiu para Toulon. Lá chegou após uma viagem de vinte e sete dias
sobre uma charrete e com a corrente no pescoço. Em Toulon, colocaram-
lhe a vestimenta vermelha. Desde então, tudo o que constituíra sua
existência se apagou, até mesmo seu nome; não era mais Jean Valjean, era
apenas o número 24.601. E sua irmã? Que destino teve? Que destino
tiveram aquelas sete criancinhas? Quem se ocupa delas? O que se passa
com o punhado de folhas de uma jovem árvore serrada pelo pé?
É sempre a mesma história. Aquelas pobres criaturas de Deus, sem
apoio agora, sem guia, sem asilo, ficaram ao acaso, quem é que sabe?
Talvez cada um tenha até seguido um caminho, embrenhando-se pouco a
pouco nessa névoa fria onde se perdem os destinos solitários, mornas
trevas no meio das quais, sucessivamente, desaparecem tantas frontes
desafortunadas na obscura marcha do gênero humano. Abandonaram sua
terra de origem; o campanário de sua aldeia os esqueceu; o limite do que
havia sido seu campo os esqueceu; após alguns anos passados nas galés,
até o próprio Jean Valjean os esqueceu. Naquele coração, no lugar onde
existira uma ferida, restou uma cicatriz. Isso é tudo. Durante todo o tempo
que esteve em Toulon, uma única vez ouviu falar da irmã. Foi, acredito, lá
pelo final de seu quarto ano de cativeiro. Já não sei mais por que via
chegou-lhe essa informação, mas alguém que os conhecera em sua terra
tinha visto sua irmã. Estava em Paris, onde morava numa rua pobre das
proximidades de Saint-Sulpice, a rua de Geindre. Tinha em sua companhia
apenas um filho, o mais novo de todos. Que fora feito dos outros seis?
Talvez nem ela mesma soubesse. Toda manhã ia a uma tipografia na rua
Sabot, número 3, onde trabalhava na montagem de livros. Tinha de chegar
às seis horas da manhã, muito antes de nascer o dia durante o inverno. No
mesmo local, havia uma escola à qual levava o filhinho, que tinha sete
anos. Como ela entrava às seis horas, e a escola só abria às sete, o menino
tinha de esperar, ao relento, a escola abrir; uma hora ao relento da noite,
no inverno. Não queriam que a criança entrasse na tipografia porque
poderia atrapalhar, diziam. Todas as manhãs os operários que passavam
viam o pobre menino sentado no chão, caindo de sono ou adormecido,
encolhido e dobrado sobre sua cesta.
Quando chovia, a porteira tinha pena dele, levava-o para seu quartinho,
onde não havia mais que uma simples cama, uma roca e duas cadeiras de
madeira, e o pequeno deitava-se em um canto, encostando-se no gato para
não sentir tanto frio. Às sete horas, a escola era aberta, e ele entrava. Isso
foi o que disseram a Jean Valjean. No dia em que lhe contaram, foi um
momento de claridade, como uma janela repentinamente se abrindo sobre
o destino daqueles entes que havia amado, fechando-se logo em seguida.
Nunca mais ouviu falar deles.
Nada mais a respeito deles chegou a seus ouvidos; nunca tornou a vê-
los, nunca mais os encontrou, e, no decurso desta dolorosa história, não
mais os reencontraremos.
No final do quarto ano, ocorreu a tentativa de evasão de Jean Valjean.
Seus camaradas, como de costume naquele lugar triste, ajudariam-no.
Fugiu. Vagou dois dias em liberdade pelos campos, se é que estar livre é
ver-se perseguido, olhar para trás a todo instante, estremecer ao menor
ruído, ter medo de tudo, da fumaça que sai do telhado, do homem que
passa, do cão que ladra, do cavalo que galopa, da hora que soa, do dia,
porque se vê, da noite, porque não se vê, da estrada, do atalho, do
arvoredo, do sono.
Na noite do segundo dia, Jean Valjean foi recapturado.
Havia trinta e seis horas que ele não comia nem dormia.
Por esse novo delito, o tribunal marítimo o condenou a um
prolongamento de três anos, o que perfez oito anos. No sexto ano, tentou
novamente fugir; mas não pôde consumar a fuga. Não respondeu à
chamada; dispararam o tiro de alarme. Durante a noite, o pessoal da ronda
o encontrou escondido debaixo da quilha de um navio em construção.
Resistiu aos guardas que o prenderam. Crime de evasão e rebelião. Esse
delito, previsto pelo código especial, foi punido com um agravo de cinco
anos, sendo dois com duplas correntes. Treze anos.
No décimo ano, mais uma tentativa, mas não se saiu melhor. Mais três
anos. Dezesseis anos. Finalmente, no décimo terceiro ano, acredito, tentou
uma última vez, e o que conseguiu foi ser recapturado apenas quatro horas
depois da fuga. Três anos por essas quatro horas. Em outubro de 1815, foi
posto em liberdade, tendo entrado ali em 1796, por quebrar um vidro e
furtar um pão.
Momento para um curto parêntese. É a segunda vez que o autor deste
livro, em seus estudos sobre a questão penal e a condenação pela lei, se
depara com o roubo de um pão como origem da catástrofe de um destino.
Claude Gueux roubara um pão; Jean Valjean tinha roubado um pão. Uma
estatística inglesa constata que, em Londres, de cada cinco roubos, quatro
têm como causa imediata a fome.
Jean Valjean entrou para as galés soluçante e trêmulo; saiu de lá
impassível. Entrou desesperado, saiu sombrio.
Que se passou naquela alma?

VII. O INTERIOR DO DESESPERO


Tentemos explicar.
É realmente necessário que a sociedade olhe para essas coisas, já que é
ela que as produz. Jean Valjean, como dissemos, era um ignorante, mas
não um imbecil. A luz natural brilhava nele. O infortúnio, que também
possui sua claridade, aumentou um pouco a luz que havia naquele espírito.
Apesar dos castigos, das correntes, do calabouço, do cansaço, do sol
ardente das galés, da cama de tábua, ele voltou-se para sua consciência e
refletiu.
Constituiu-se em tribunal.
Principiou por julgar a si mesmo.
E então reconheceu que não era um inocente injustamente punido.
Confessou a si próprio que cometera uma ação extrema e repreensível; que
talvez não lhe recusassem aquele pão se o tivesse pedido; que, em todo
caso, teria sido melhor esperá-lo, ou da compaixão ou do trabalho; que não
é uma razão indiscutível dizer: “pode-se esperar quando se tem fome?”;
que, primeiramente, é muito raro que se morra literalmente de fome;
depois que, feliz ou infelizmente, o homem é moldado de tal forma que
pode padecer muito e por muito tempo, quer física, quer moralmente, sem
morrer; que devia, portanto, ter paciência; que o mesmo teria sido melhor
para aquelas pobres criancinhas; que fora um ato de loucura, o seu,
mesquinha criatura impotente, querer arcar com a sociedade inteira e
imaginar que se sairia da miséria através do roubo; que, em todo caso,
seria uma péssima porta para sair da miséria, aquela pela qual se entra
para a infâmia; enfim, que havia errado.
Depois, fez a si próprio as seguintes perguntas:
Fora ele o único a proceder mal em sua fatal história? Antes de tudo,
não era uma coisa grave que um trabalhador como ele não tivesse
trabalho? Que um homem laborioso como ele não tivesse o que comer? E
então, confessado o erro cometido, o castigo aplicado não havia sido feroz
e exagerado? Não houvera maior abuso por parte da lei na aplicação da
pena do que por parte do culpado na falta? Não houvera excesso de peso
no prato da balança que contém a expiação? O excesso do castigo não seria
a aniquilação do delito, resultando na inversão da situação, o erro do
delinquente sendo substituído pelo erro da repressão, fazendo do
criminoso a vítima e do devedor o credor, e pondo definitivamente o
direito do lado de quem o violara? Aquele castigo, complicado por
sucessivos agravos devido às tentativas de evasão, não seria um tipo de
atentado do mais forte contra o mais fraco, um crime da sociedade contra
o indivíduo, um crime que recomeçava todos os dias, um crime que durava
dezenove anos?
Perguntou-se se a sociedade humana podia ter o direito de fazer sofrer
igualmente todos os seus membros, ora com sua incompreensível
imprevidência, ora com sua impiedosa previdência, e de manter
indefinidamente um infeliz entre uma falta e um excesso, falta de
trabalho, excesso de castigo.
Se não era exorbitante que a sociedade tratasse precisamente desse
modo seus membros menos contemplados na repartição dos bens que faz o
acaso e, em consequência, os mais dignos de consideração.
Propostas e resolvidas essas questões, julgou a sociedade e condenou-
a. Condenou-a a seu ódio.
Julgou-a responsável por sua sorte e pensou que talvez não hesitasse
em ajustar contas com ela algum dia. A si próprio, afirmou que não havia
equilíbrio entre o dano que causara e o dano que lhe causaram; concluiu,
por fim, que seu castigo não era, é verdade, uma injustiça, mas,
inquestionavelmente, tinha sido uma iniquidade.
A cólera pode ser absurda e insensata; podemos nos irritar sem razão,
porém, só nos indignamos se sentimos que, de alguma forma, temos razão,
e Jean Valjean sentia-se indignado.
E, ademais, a sociedade humana não lhe fizera senão mal; ele nunca
conhecera senão seu aspecto irado, chamado por ela de justiça, que mostra
àqueles a quem toca. Os homens nunca se aproximavam, a não ser para
maltratá-lo. Todo contato com eles havia sido um golpe. Nunca mais,
desde sua infância, desde sua mãe, sua irmã, nunca mais encontrara uma
palavra amiga, um olhar benévolo. De sofrimento em sofrimento, chegou,
pouco a pouco, à convicção de que a vida é uma guerra; guerra em que o
vencido era ele. A única arma que possuía era seu ódio. Resolveu afiá-la
na prisão e levá-la consigo quando fosse embora. Havia em Toulon uma
escola para os condenados, mantida pelos Irmãos Ignorantinos, onde se
ensinava o essencial àqueles, dentre esses infelizes, que tinham boa
vontade. Jean Valjean fazia parte dos homens de boa vontade. Foi à escola
aos quarenta anos, aprendeu a ler, escrever e contar, e percebeu que
fortalecer a inteligência era fortalecer seu ódio.
Em certos casos, a instrução e a luz podem servir de incremento ao
mal.
É triste dizer, mas, após ter julgado a sociedade que causara seu
infortúnio, julgou a Providência que criou a sociedade, e condenou-a
também.
Assim, durante os dezenove anos de tortura e escravidão, aquela alma
elevou-se e degradou-se ao mesmo tempo. Por um lado, nela entrou luz,
por outro, trevas. Jean Valjean não era, como se viu, de natureza má.
Quando entrou para as galés, ainda era bom. Ali condenou a sociedade e
tornou-se maldoso; condenou a Providência e sentiu tornar-se ímpio.
Neste ponto, não se pode deixar de refletir um momento.
A natureza humana transforma-se assim completamente? O homem
que saiu bom das mãos de Deus pode tornar-se mau pelas mãos do
homem? A alma pode ser refeita pelo destino e tornar-se má, se for ruim o
destino? O coração pode tornar-se disforme, contrair deformidades e
enfermidades incuráveis sob pressão de um desproporcionado infortúnio,
como acontece com a coluna vertebral sob uma abóbada extremamente
baixa? Acaso não há, em toda alma humana, acaso não havia, em
particular na alma de Jean Valjean, uma primeira centelha, um elemento
divino, incorruptível neste mundo, imortal no outro, que o bem pode
desenvolver, atiçar, acender e fazer fulgurar esplendidamente, e que o mal
jamais pode apagar inteiramente?
Graves e obscuras perguntas, à última das quais qualquer fisiologista
provavelmente teria respondido não, sem hesitar, se visse Jean Valjean em
Toulon, nos momentos de repouso que para ele eram momentos de
devaneio, sentado, de braços cruzados sobre a travessa de algum cabresto,
com a extremidade da corrente no bolso para impedi-lo de se arrastar,
aquele prisioneiro taciturno, sério, silencioso e pensativo, pária das leis,
que olhava para os homens com raiva, condenado pela civilização, que
olhava para o céu com severidade.
Por certo, e não queremos dissimular, o fisiologista observador veria
ali uma miséria irremediável; lamentaria talvez aquele enfermo produzido
pela lei, mas nem sequer tentaria um tratamento; desviaria o olhar das
cavernas que entrevisse naquela alma, e, como o Dante da porta do
inferno, riscaria daquela existência a palavra que o dedo de Deus escreveu
na fronte de todo homem: Esperança!
O estado da alma de Jean Valjean, que tentamos analisar, seria tão
perfeitamente claro para ele como temos procurado torná-lo aos que nos
leem? Jean Valjean via distintamente, após sua formação e à medida que
se formava, todos os elementos de que se compunha sua miséria moral?
Esse homem rude e iletrado havia claramente percebido a sucessão de
ideias mediante as quais gradualmente havia subido e tombado até os
lúgubres aspectos que eram, já havia tantos anos, o horizonte interior de
seu espírito? Teria perfeita consciência de tudo que se passara e de tudo
que se revolvia dentro dele?
Não ousaríamos dizer que sim, e nem mesmo acreditamos nisso.
Havia demasiada ignorância em Jean Valjean para que, mesmo após
tantos infortúnios, não lhe restasse um grande vazio. Em alguns
momentos, não sabia ao certo o que sentia. Jean Valjean encontrava-se nas
trevas; sofria nas trevas; odiava nas trevas; podia-se dizer que odiava
adiante de si. Vivia habitualmente nessa escuridão, tateando como um
cego ou como um sonhador. Só às vezes o acometia subitamente, vindo
dele mesmo ou de fora, um acesso de raiva, um aumento do sofrimento;
um pálido e rápido brilho que iluminava toda a sua alma, fazendo
repentinamente aparecerem à sua volta os pavorosos precipícios e as
sombrias perspectivas de seu destino. Passado esse brilho, a escuridão
retornava, e onde ele estava? Não sabia mais.
A característica das punições dessa natureza, nas quais domina a
impiedade, isto é, o elemento embrutecedor, é a transformação gradual,
mediante uma espécie de estúpida transfiguração, de um homem em um
animal perigoso, algumas vezes em um animal feroz. As tentativas de fuga
de Jean Valjean, sucessivas e obstinadas, bastariam para provar esse
estranho trabalho feito pela lei sobre a alma humana. Ele teria renovado
essas tentativas, tão completamente ineficazes e tolas, tantas vezes
quantas fossem as oportunidades que tivesse tido, sem refletir, nem por
um instante, no resultado nem nas experiências já feitas. Ele escapava
impetuosamente, como o lobo que encontra a jaula aberta. O instinto lhe
dizia: fuja! A razão lhe diria: fique! Mas, diante de tão forte tentação, a
razão desaparecia, ficando só o instinto.
Só o animal agia. Quando era preso novamente, as novas severidades
que lhe infligiam conseguiam apenas torná-lo ainda mais assustado. Um
detalhe que não devemos omitir é que tinha uma força física para a qual
nenhum dos outros habitantes das galés era páreo. Mesmo cansado, para
soltar ou prender as amarras, Jean Valjean valia por quatro homens.
Levantava, e às vezes sustentava às costas, enormes pesos, substituindo,
quando era preciso, o instrumento chamado cric (guincho), antigamente
chamado orgueil (orgulho), de onde, diga-se de passagem, vem o nome da
rua Montorgueil, próxima do Mercado de Paris.
Seus camaradas o apelidaram de Jean-le-Cric.
Uma vez, enquanto a varanda da Câmara de Toulon era reformada, uma
das admiráveis cariátides de Puget que a sustentavam se desprendeu e
quase caiu. Jean Valjean, que lá estava, a sustentou com os ombros, dando
tempo para que os operários chegassem.
Sua flexibilidade era maior ainda que seu vigor. Alguns condenados,
perpétuos sonhadores de evasões, acabam por fazer da combinação de
força e agilidade uma verdadeira ciência. É a ciência dos músculos. Uma
misteriosa dinâmica é cotidianamente posta em prática pelos presos,
eternos invejosos dos pássaros e das moscas. Escalar em vertical e achar
pontos de apoio onde apenas se via uma saliência era uma brincadeira para
Jean Valjean. Dependendo do ângulo da parede, com a tensão das costas e
da musculatura das pernas, com os cotovelos e os calcanhares fincados nas
asperezas da pedra, içava-se como que por magia à altura de um terceiro
andar. Às vezes subia, desse modo, até o telhado da prisão.
Jean Valjean falava pouco e não ria. Só alguma emoção extrema para
arrancar-lhe, uma ou duas vezes por ano, aquele lúgubre riso de
condenado, que é como um eco do riso do demônio. A quem o visse,
parecia ocupado em olhar continuamente algo de terrível.
De fato, andava absorto.
Por entre as confusas percepções de uma natureza incompleta e de uma
inteligência atrofiada, sentia confusamente que uma coisa mostruosa
pesava sobre ele. Em meio a essa obscura e desmaiada penumbra por onde
rastejava, cada vez que virava a cabeça e tentava levantar o olhar, via, com
terror e raiva, surgir, erguer-se, elevar-se a perder de vista acima dele,
horrivelmente escarpado, uma espécie de pavoroso empilhamento de
coisas, leis, preconceitos, homens e fatos, cujos contornos mal distinguia,
cuja aglomeração o amedrontava, e que não era nada mais do que essa
maravilhosa pirâmide a que nós chamamos civilização. No meio desse
formigueiro disforme, divisava, aqui e além, ora próximo, ora distante e
sobre planos inacessíveis, algum grupo, algum detalhe vivamente
iluminado, aqui, o carcereiro com seu cassetete, ali, o guarda com seu
sabre, mais ao longe, o arcebispo mitrado, bem acima, numa espécie de
aura, o imperador coroado e resplandecente.
Parecia-lhe que esses esplendores distantes, longe de dissiparem a
escuridão em que vivia, tornavam-na ainda mais fúnebre e negra. Tudo
isso, leis, preconceitos, fatos, homens, coisas, iam de um lado para outro
acima dele, conforme o misterioso e complicado movimento que Deus
imprime à civilização, pisando-o, esmagando-o não se sabe com que
plácida crueldade e inexorável indiferença.
Almas caídas no fundo do infortúnio, homens infelizes perdidos no
mais baixo dos limbos, para onde ninguém olha mais, os réprobos da lei
sentem sobre si todo o peso da sociedade humana, tão formidável para os
que se acham de fora, tão terrível para quem está por baixo.
Naquela situação, Jean Valjean sonhava. E de que natureza poderiam
ser seus devaneios?
Se um grãozinho de milho apertado pela mó pudesse pensar, pensaria,
sem dúvida, o que Jean Valjean pensava.
Todas essas coisas, realidades cheias de espectros, fantasmagorias
cheias de realidade, acabaram por criar nele um certo estado interior quase
inexprimível. Às vezes, durante suas tarefas de prisioneiro, parava e
punha-se a pensar. Sua razão, ao mesmo tempo mais madura e mais
perturbada do que antes, revoltava-se. Parecia-lhe absurdo tudo o que lhe
havia acontecido, tudo o que o rodeava parecia-lhe impossível. Pensava: é
um sonho. Olhava o carcereiro em pé perto dele, e este parecia-lhe um
fantasma. De repente, o fantasma dava-lhe uma pancada.
Para ele, mal existia a natureza visível.
Seria quase verdadeiro dizer que para Jean Valjean não havia sol, nem
belos dias de verão, nem céu límpido, nem frescas manhãs de abril. Não
sei que réstia de luz iluminava habitualmente sua alma.
Para resumir e terminar, o que pode ser resumido e traduzido em
resultados positivos de tudo que acabamos de expor, nos limitaremos a
constatar que, em dezenove anos, Jean Valjean, o inofensivo podador de
Faverolles, o temível condenado de Toulon, tornara-se capaz, graças à
maneira como a prisão o moldara, de duas espécies de más ações:
primeiro, de uma má ação rápida, irrefletida, plena de perturbação,
inteiramente instintiva, como uma represália pelo mal sofrido; segundo,
de uma má ação grave, séria, debatida em consciência e meditada com as
falsas ideias que podem vir de tal infortúnio. Suas premeditações
passavam pelas três fases sucessivas que só as naturezas de certa têmpera
são capazes de percorrer: raciocínio, vontade, obstinação. Tinha como
motivação a indignação habitual, a amargura da alma, o profundo
sentimento das iniquidades sofridas, a reação, mesmo contra os bons, os
inocentes e os justos, se é que eles existem. A origem e o alvo de todos os
seus pensamentos era o ódio contra a lei humana, ódio que, se não for
interrompido em seu desenvolvimento por algum acaso providencial, se
transforma, após certo tempo, em ódio contra a sociedade, depois em ódio
contra a humanidade, depois, em ódio contra a Criação, e se traduz por um
vago, incessante e brutal desejo de fazer mal, seja a quem for, a um ser
vivo qualquer.
Como se vê, não era sem razão que o passaporte classificava Jean
Valjean como homem muito perigoso.
De ano em ano, aquela alma fora-se dessecando cada vez mais, lenta,
mas fatalmente. Para corações insensíveis, olhos enxutos. Quando saiu da
prisão, havia dezenove anos que Jean Valjean não vertia uma lágrima.

VIII. A ONDA E A SOMBRA


Homem ao mar!
Que importa? O navio não para. O vento sopra, o sombrio navio
continua em sua rota forçada e passa.
O homem desaparece, depois reaparece, mergulha e volta à tona,
chama, estende os braços; ninguém o ouve. O navio, estremecendo sob o
tufão, se volta para suas manobras; nem os marujos nem os passageiros
veem mais o homem submerso; sua cabeça é apenas um ponto escuro na
imensidão das ondas.
Grita desesperadamente das profundezas. Que o espectro dessa vela
que lhe foge! Olha freneticamente para ela. E ela se afasta, vai
desaparecendo, some. Havia pouco, ele ainda estava lá, fazia parte da
tripulação, ia e vinha no convés com os outros, tinha sua porção de ar e de
sol, vivia. Agora, o que havia acontecido? Escorregara, caíra, tudo se
acabara.
Está dentro da água, que é monstruosa. Sob os pés, nada mais que
ruína, nada encontra. As vagas envolvem-no pavorosamente, rasgadas e
sacudidas pelo vento; o vaivém do abismo o empurra; os farrapos das
águas agitam-se em volta de sua cabeça; uma multidão de ondas rebenta
sobre ele; estranhas aberturas quase o devoram; cada vez que afunda,
entrevê precipícios escuros; uma medonha vegetação o prende, emaranha-
se em seus pés, o atrai para ela; ele sente se transformar em abismo, fazer
parte da espuma; as ondas jogam-no de um lado para o outro; ele bebe o
amargo; o oceano, covarde, se empenha em afogá-lo; a imensidão brinca
com sua agonia. Parece que toda essa água é o ódio.
Mas ele luta.
Ele tenta defender-se, tenta sustentar-se, esforça-se, nada. Ele, com sua
pobre força logo esgotada, combate o inesgotável.
Onde está o navio? Longe. Mal se avista por entre as trevas pálidas do
horizonte.
Sopram rajadas; a espuma das ondas o vence. Levanta os olhos e não
vê mais que a lividez das nuvens. Assiste agonizante ao imenso delírio do
mar. Ele é o castigado por essa loucura. Ouve ruídos estranhos ao homem,
que parecem vir de fora da terra e de algum lugar terrível.
Há pássaros nas nuvens, assim como há anjos por cima dos infortúnios
humanos. Mas o que podem fazer por ele? Os pássaros voam, cantam,
planam, e ele, ele agoniza.
Sente-se sepultado ao mesmo tempo por estes dois infinitos: o oceano
e o céu; um é sepulcro, o outro, mortalha.
Vem a noite. Há horas em que ele nada, está no fim de suas forças;
aquele navio, aquele vulto longínquo onde havia homens, apagou-se; ele
está só num formidável turbilhão crepuscular; afunda, se debate, se
retorce, sente abaixo monstruosas vagas do invisível; chama.
Não há mais homens. Onde está Deus?
Grita. Alguém! Alguém! Grita sem parar. Nada no horizonte, nada no
céu.
Implora ao espaço, à onda, à alga, ao recife; são surdos. Suplica à
tempestade; a tempestade, imperturbável, só obedece ao infinito.
Em torno dele, escuridão, névoa, solidão, tumulto tempestuoso e
inconsciente, redemoinho incessante das águas bravias. Dentro dele,
horror e cansaço. Abaixo dele, a desgraça. Nenhum ponto de apoio.
Pensa nas tenebrosas aventuras de um cadáver na escuridão sem
limites. Um frio imenso o paralisa. Suas mãos crispam-se, fecham-se e
agarram o nada. Ventos, nuvens, turbilhões, rajadas, estrelas inúteis! Que
fazer? Desesperado, abandona-se, cansado, deixa-se morrer, não se
importa, deixa-se ir, larga mão, para sempre avança pelas lúgubres
profundezas da voragem que o engole.
Ó implacável marcha das sociedades humanas! Perda de homens e de
almas no meio do caminho! Oceano, onde desaparece tudo o que a lei
desampara! Sinistro sumiço de socorro! Ó morte moral!
Mar, a inexorável escuridão social aonde a penalidade arremessa seus
condenados. Mar, a imensa miséria!
A alma, na correnteza desse abismo, tornar-se cadáver. Quem a
ressuscitará?

IX. NOVOS AGRAVOS


Quando chegou a hora de sair da prisão, quando Jean Valjean ouviu
esta estranha frase: está livre! foi um momento inverossímil e incrível, um
raio de fulgurante luz, um raio da verdadeira luz dos vivos que
subitamente o iluminou por dentro. Esse clarão, porém, não demorou a se
esvanecer.
A ideia da liberdade o deslumbrara; acreditara na possibilidade de uma
nova vida, mas bem depressa deu-se conta do que era a liberdade
acompanhada de um passaporte amarelo.
E, em torno disso, muitas amarguras. Calculara que seu pecúlio,
durante o tempo em que esteve preso, deveria ser de cento e oitenta e um
francos. Devemos, porém, declarar que ele se esquecera de incluir em seus
cálculos o repouso forçado aos domingos e dias santos que, em dezenove
anos, levara a uma diminuição de vinte e quatro francos aproximadamente.
Fosse como fosse, a verdade é que essa soma havia sido reduzida,
depois de diversas retenções locais, a cento e nove francos e quinze soldos,
que lhe deram ao sair.
Não compreendeu nada e julgou-se lesado. Melhor diremos, roubado.
No dia seguinte ao que foi posto em liberdade, viu em Grasse, à porta
de uma fábrica de destilação de flores de laranjeira, alguns homens
descarregando fardos; ofereceu seus serviços. O trabalho era urgente,
aceitaram-no. Pôs mãos à obra. Era inteligente, robusto e hábil; fazia o
melhor que podia; o patrão parecia estar satisfeito. Enquanto trabalhava,
um soldado passou, o notou, pediu seus documentos. Ele teve de mostrar o
passaporte amarelo, mas depois continuou a trabalhar. Um pouco antes,
havia perguntado a um dos trabalhadores quanto ganhavam por dia;
responderam-lhe: trinta soldos.
Como na manhã seguinte teria de partir, no final daquele dia de
trabalho apresentou-se ao dono da destilaria e pediu que lhe pagasse. O
patrão não disse uma só palavra e deu-lhe quinze soldos. Ele reclamou. O
patrão respondeu: Isso já está bom demais para você. Jean Valjean insistiu.
O dono da fábrica o encarou e disse: Olhe a cadeia!
Mais uma vez considerou-se roubado.
A sociedade, o Estado, diminuindo o que ganhara, roubara-o muito.
Agora era a vez de um indivíduo roubá-lo um pouco pequeno. Liberdade
não é estar solto. Pode-se sair da prisão, mas não da condenação.
Eis o que lhe aconteceu em Grasse. Já vimos de que maneira foi
recebido em Digne.

X. O HOMEM ACORDADO
Ao soarem duas horas da manhã no relógio da catedral, Jean Valjean
acordou. O que o acordou foi a cama, que era boa demais. Havia quase
vinte anos não dormia em uma cama, e, embora estivesse vestido, aquela
sensação era bastante nova para que não perturbasse seu sono. Havia
dormido mais de quatro horas, seu cansaço tinha passado. Estava
acostumado a não ter muitas horas de repouso.
Abriu os olhos, olhou um momento a escuridão à sua volta e tornou a
fechá-los para adormecer.
Quando muitas sensações diferentes agitam o dia, quando alguma
coisa preocupa o espírito, pode-se adormecer, mas dificilmente consegue-
se readormecer; o sono vem com mais facilidade do que volta. Foi o que
aconteceu a Jean Valjean. Ele não conseguiu voltar a dormir, então pôs-se
a pensar. Encontrava-se em um desses momentos em que as ideias eram
confusas em seu espírito. Havia uma espécie de vaivém obscuro na sua
cabeça. Suas lembranças antigas e recentes flutuavam misturadas,
cruzavam-se confusamente perdendo suas formas, crescendo
desmesuradamente e desaparecendo de repente, como que em meio a uma
água lodosa e agitada. Numerosos pensamentos ocorriam-lhe, havia um,
porém, que voltava-lhe continuamente e expulsava todos os outros.
Tratava-se do pensamento que contamos a seguir: ele havia reparado nos
seis talheres de prata e na concha de sopa que a senhora Magloire colocara
na mesa.
Aqueles seis talheres de prata obcecavam-no. Estavam ali, a dois
passos. No momento em que passara pelo quarto ao lado deste onde se
achava, vira a criada guardando-os em um armário que ficava à cabeceira
da cama. Também havia reparado naquele armário à entrada da sala de
jantar, do lado direito. Os talheres eram de prata maciça e antiga.
Juntamente com a concha, dariam, ao menos, duzentos francos. O dobro
do que havia ganho em dezenove anos. Verdade é que teria ganho mais se a
administração não o tivesse roubado.
Seu espírito oscilou durante uma hora inteira em reflexões
entremeadas por um certo esforço.
Soaram três horas. Ele abriu novamente os olhos, ergueu-se
bruscamente, estendeu o braço, tateando para encontrar a mochila que
tinha jogado em um canto da alcova, depois deixou as pernas penderem,
pousou os pés no chão e, quase sem saber como, ficou sentado na cama.
Permaneceu algum tempo com ar pensativo, em uma atitude que
pareceria sinistra a alguém que o visse naquele escuro, único acordado
enquanto todos dormiam. De repente, agachou-se, tirou os sapatos,
colocando-os cuidadosamente sobre o tapete à beira da cama, retomou sua
atitude pensativa e ficou novamente imóvel.
Em meio àquela pavorosa meditação, as ideias que acabamos de
descrever tumultuavam continuamente sua cabeça, entravam, saíam,
retornavam, oprimindo-o; também pensava, sem saber por que, em um
condenado chamado Brevet, que conhecera nas galés: suas calças eram
presas por um único suspensório de algodão tricotado. O desenho desse
suspensório, que era xadrez, voltava sem parar à sua mente.
Permaneceu desse jeito, e talvez assim tivesse ficado indefinidamente
até romper o dia, se o relógio não desse uma badalada — um quarto ou
meia hora. Pareceu que aquela badalada lhe dissesse: “Vamos!”
Levantou-se, hesitou ainda um instante, ouviu à sua volta: tudo estava
quieto na casa; encaminhou-se, então, cautelosamente para a janela.
A noite não era das mais escuras; havia uma lua cheia entrecortada por
largas nuvens sopradas pelo vento, produzindo, lá fora, efeitos alternados
de sombra e luz, clarões e eclipses, e, lá dentro, uma espécie de
crepúsculo. Esse crepúsculo, suficiente para que fosse possível se guiar, e
intermitente por causa das nuvens, assemelhava-se ao tipo de
luminosidade que entra pelas frestas de um porão em frente ao qual os
passantes vão e vêm.
Chegando à janela, Jean Valjean examinou-a. Não tinha ferrolhos, dava
para o jardim e estava fechada apenas, seguindo o uso da região, por uma
simples tramela. Abriu-a, mas, como um ar muito frio entrava
bruscamente no quarto, fechou-a imediatamente. Olhou o jardim de modo
atento, mais observando do que contemplando.
O jardim era cercado por um muro branco bem baixo, fácil de escalar.
Ao fundo, avistou a copa de algumas árvores espaçadas a distâncias iguais,
indicando que o muro separava o quintal de alguma avenida ou ruela
arborizada.
Concluído o exame, fez um movimento de homem determinado;
dirigiu-se à alcova, pegou a mochila, revolveu-a, tirou de dentro alguma
coisa que pôs sobre a cama, meteu os sapatos em um bolso, fechou tudo,
colocou a mochila nos ombros, pôs o boné na cabeça, baixando a viseira
sobre os olhos, procurou seu cajado às apalpadelas e foi colocá-lo no canto
da janela, veio outra vez para junto da cama e pegou resolutamente no
objeto que havia pousado sobre ela. Parecia uma barra de ferro curta,
pontiaguda como uma lança em uma das extremidades.
Seria difícil, na escuridão, adivinhar para que uso teria sido preparado
aquele pedaço de ferro. Seria talvez uma alavanca? Seria talvez uma
clava?
Vista à claridade, ela não era mais do que um candeeiro usado nas
minas. Às vezes, os condenados eram empregados na extração de rochas
das elevadas colinas que rodeiam Toulon, e não era raro que tivessem à sua
disposição esse tipo de objeto. Os candeeiros usados nas minas são de
ferro maciço, com a extremidade inferior apontada, por meio da qual são
espetados nas rochas.
Segurou o candeeiro com a mão direita e, retendo a respiração e
andando sem fazer barulho, encaminhou-se para a porta do quarto
contíguo, que, como se sabe, era o do bispo.
Encontrou a porta entreaberta. O bispo não a havia fechado.

XI. O QUE ELE FAZ


Jean Valjean apurou os ouvidos. Nenhum ruído.
Empurrou a porta.
Empurrou-a com a ponta do dedo, levemente, com a furtiva e inquieta
delicadeza de um gato que quer entrar.
A porta cedeu à pressão e fez um movimento imperceptível e
silencioso, que pouco alargou a abertura.
Deteve-se um momento, empurrou novamente a porta, desta vez com
mais força. Ela continuou a ceder em silêncio. A abertura agora já era
suficiente para que pudesse passar. Porém, junto da porta ficava uma mesa
pequena, formando com ela um ângulo que obstruía a entrada.
Jean Valjean percebeu a dificuldade. Era preciso que a abertura se
alargasse ainda mais.
Resolveu-se e empurrou a porta uma terceira vez, mais energicamente
que das vezes anteriores. Desta feita, uma dobradiça enferrujada lançou de
repente um grito rouco e prolongado no meio da escuridão.
Jean Valjean estremeceu. O ranger daquela dobradiça soou em seus
ouvidos com algo de estrepitoso e formidável, feito a trombeta do Juízo
Final.
Na fantástica exageração do primeiro momento, imaginou que a
dobradiça acabava de animar-se e de assumir repentinamente uma vida
terrível, latindo como um cão para avisar todo o mundo e despertar os
adormecidos.
Estancou, trêmulo, atordoado, caindo das pontas dos pés sobre os
calcanhares. Ouviu suas artérias baterem nas têmporas como dois
martelos, e parecia-lhe que sua respiração saía do peito como o ruído do
vento que sai de uma caverna. Parecia-lhe impossível que o horrível
clamor daquela dobradiça irritada não abalasse toda a casa, como o tremor
de um terremoto; a porta empurrada por ele tinha dado alarme, havia
chamado; o velho não tardaria a levantar-se, as duas velhas não tardariam
a gritar, logo viriam em socorro; antes de um quarto de hora, a cidade
estaria em movimento e os soldados a postos. Por um momento,
considerou-se perdido.
Permaneceu onde estava, petrificado como uma estátua de sal, sem
ousar fazer o menor movimento.
Alguns minutos se passaram. A porta abriu-se completamente. Ele se
aventurou a olhar dentro do quarto, nada se mexera. Apurou os ouvidos,
nada se movia na casa. O ruído da dobradiça enferrujada não acordara
ninguém.
Esse primeiro perigo havia passado, mas em seu interior havia ainda
um medonho tumulto. Ele, porém, não recuou; não recuara nem mesmo
quando acreditava-se perdido. Só pensava em terminar rapidamente. Deu
um passo e entrou no quarto, que estava em profundo silêncio.
Aqui e ali, divisavam-se algumas formas vagamente confusas que,
vistas na claridade, eram papéis espalhados por cima de uma mesa, in-
fólios abertos, alguns livros empilhados sobre uma banqueta, uma poltrona
coberta de roupas, um genuflexório, coisas que, àquela hora, eram apenas
vultos tenebrosos e esbranquiçados. Jean Valjean avançou com precaução,
evitando esbarrar nos móveis. Ouvia a compassada e serena respiração do
bispo adormecido vindo da extremidade do quarto.
De repente, parou; estava junto da cama, aonde havia chegado mais
depressa do que podia imaginar.
Às vezes, a natureza entremeia seus efeitos e espetáculos com nossas
ações, com uma espécie de propósito sombrio e inteligente, como se
quisesse fazer-nos refletir. Havia aproximadamente meia hora, uma
espessa nuvem cobria o céu. No momento em que Jean Valjean parou em
frente à cama, a nuvem rasgou-se como que de propósito, e um raio de
luar, atravessando a janela, veio subitamente iluminar o pálido rosto do
bispo. Ele dormia serenamente. Estava praticamente vestido, por causa das
noites frias dos Baixos Alpes, com uma roupa de lã escura que lhe cobria
os braços até os pulsos. A cabeça debruçava-se sobre o travesseiro com o
abandono do repouso; a mão, de onde saíram tantas boas obras e santas
ações, pendia-lhe da cama, ornada com o anel pastoral. Seu rosto
iluminava-se com uma vaga expressão de satisfação, esperança e
beatitude. Era mais que um sorriso, era quase um resplendor. Havia,
naquela fronte, a inexprimível reverberação de uma luz que não se via. A
alma dos justos adormecidos contempla um céu misterioso.
Um reflexo desse céu projetava-se sobre o bispo.
Era, ao mesmo tempo, uma transparência luminosa, porque esse céu
achava-se dentro dele. Esse céu era sua consciência.
No momento em que o raio da lua se sobrepôs, por assim dizer, àquele
clarão interior, o bispo adormecido pareceu como que rodeado de uma
glória suavemente encoberta por uma meia-luz inefável. Aquela lua no
céu, aquela natureza adormecida, aquele jardim tranquilo, aquela casa tão
calma, a hora, o momento, o silêncio, tudo acrescentava um não sei que de
solene e de indizível ao venerável repouso daquele homem, envolvendo,
em uma espécie de majestosa e serena auréola, os cabelos brancos e os
olhos fechados, a fronte onde tudo era esperança e confiança, a cabeça
envelhecida e o sono infantil.
Sem que suspeitasse, havia uma espécie de divindade naquele homem.
Jean Valjean, de pé e imóvel no escuro, com o candeeiro na mão,
estava assombrado diante da serenidade do velho. Nunca vira coisa
semelhante. Tal confiança o espantava. O mundo moral não conhece
espetáculo mais grandioso: uma consciência perturbada e inquieta, à beira
de uma má ação, contemplando o sono de um justo.
Esse sono, em tal isolamento, e com um vizinho igual a ele, tinha algo
de sublime que ele próprio sentia, de forma vaga, mas imperiosa.
Ninguém, nem ele mesmo, podia dizer o que se passava em seu íntimo.
Para tentar entender, é preciso imaginar o que há de mais violento em
presença do que há de mais terno. Em seu rosto, não se poderia distinguir
coisa alguma com certeza. Mostrava uma espécie de assombro desvairado.
Olhava. Nada mais. Porém, quais eram seus pensamentos? Impossível
adivinhá-los. O que era evidente é que estava emocionado e abalado. De
que natureza, no entanto, era essa emoção?
Não tirava os olhos do velho. A única coisa que claramente deixavam
transparecer sua atitude e sua fisionomia era uma estranha indecisão.
Parecia hesitar entre dois abismos, o da perdição e o da salvação. Parecia
prestes ou a esmagar aquele crânio ou a beijar aquela mão. Após alguns
instantes, levantou vagarosamente o braço esquerdo até a cabeça, tirou o
boné, baixou o braço com a mesma lentidão e voltou à sua contemplação,
boné na mão esquerda, candeeiro na direita, cabelos eriçados na cabeça de
animal arisco.
O bispo continuava a dormir na maior serenidade sob aquele olhar
assustador.
Um reflexo da lua tornava confusamente visível, acima da chaminé, o
crucifixo, que parecia abrir os braços para ambos, com a bênção para um e
o perdão para o outro.
De repente, Jean Valjean colocou novamente o boné na cabeça,
caminhou rapidamente ao lado da cama, sem olhar para o bispo, foi direto
ao armário, que ele entrevia junto à cabeceira; levantou o castiçal de ferro
para forçar a fechadura, mas a chave estava ali; abriu. A primeira coisa
que viu foi a cesta com a prataria; pegou-a, atravessou o quarto a grandes
passos, sem precaução e sem se importar em fazer barulho, chegou à porta,
entrou no oratório, abriu a janela, pegou seu cajado, saltou o peitoril,
colocou os talheres na mochila, jogou a cesta, transpôs o jardim, saltou o
muro como um tigre e fugiu.

XII. O BISPO TRABALHA


No dia seguinte, ao nascer do sol, Monsenhor Bienvenu passeava no
jardim quando a senhora Magloire correu em sua direção completamente
aflita.
— Monsenhor, monsenhor! — gritou ela. — Vossa Grandeza sabe
onde está a cesta com a prataria?
— Sei — respondeu o bispo.
— Bendito seja o Senhor — tornou ela —; eu não sabia que fim tinha
levado.
O bispo acabava de apanhar a cesta em um canteiro e entregou-a à
senhora Magloire.
— Aí a tem.
— Mas não há nada dentro! — disse ela. — E os talheres?
— Ah! — replicou o bispo. — Então é a prata que procura? Não sei
onde está.
—Jesus Senhor! Então foi roubada! Foi o homem de ontem à noite que
a roubou!
Num piscar de olhos, a senhora Magloire, com toda a vivacidade que
tinha, correu ao oratório, entrou na alcova e voltou até o bispo. Este
acabara de abaixar-se e contemplava com a maior tristeza uma planta
quebrada pela cesta que caíra pela platibanda; ao ouvir os gritos da
senhora Magloire, ergueu-se.
— Monsenhor, o homem foi-se embora e a prata foi roubada!
Ao fazer essa exclamação, seus olhos bateram em um ângulo do jardim
onde viam-se traços recentes de escalada, e um caibro havia sido
arrancado.
— Olhe, foi por ali que ele fugiu! Saltou para a viela Cochefilet. Que
maldade, roubou nossos talheres!
O bispo ficou silencioso por um momento depois, com; olhar sério,
disse calmamente à senhora Magloire:
— Antes de mais nada, aquela prataria nos pertencia?
A senhora Magloire ficou sem saber o que dizer. Mais um momento de
silêncio, e o bispo prosseguiu:
— Senhora Magloire, havia muito que eu era ilícito possuidor daquela
prata. Ela pertencia aos pobres. E quem era aquele homem? Um pobre,
evidentemente.
— Ai meu Deus! — replicou a senhora Magloire. — Não é por mim
nem pela senhorita Baptistine, para nós tanto faz. Mas é por sua causa,
monsenhor. Como Vossa Grandeza irá comer agora?
O bispo encarou-a com ar de espanto e respondeu:
— Ora essa! Então não há talheres de estanho?
A senhora Magloire deu de ombros.
— O estanho deixa mau cheiro.
— Nesse caso, talheres de ferro.
A senhora Magloire fez uma careta expressiva.
— O ferro deixa gosto.
— Então, talheres de madeira — disse o bispo.
Daí a alguns instantes, ele almoçava àquela mesma mesa em que Jean
Valjean, no dia anterior, estivera sentado. Enquanto comia, Monsenhor
Bienvenu dizia, gracejando, à irmã, que não falava uma palavra, e à
senhora Magloire, que resmungava baixinho, que não é preciso garfo nem
colher, mesmo de madeira, para molhar um bocado de pão numa xícara de
leite.
—Também, cada ideia! — falava sozinha a senhora Magloire, andando
para lá e para cá. — Recolher um homem daquele! E mandá-lo dormir
bem ao lado! Ainda bem que só roubou! Santo Deus! Só de lembrar, me
arrepio!
No instante em que o bispo e sua irmã iam levantar-se da mesa,
bateram à porta.
— Entre — disse o bispo.
A porta se abriu. Um estranho e violento grupo apareceu na soleira.
Três homens agarravam um outro pelo pescoço. Eram três soldados, e Jean
Valjean.
Um cabo, que parecia chefiar o grupo, avançou em direção ao bispo
fazendo a continência militar, e disse:
— Monsenhor…
Ao ouvir essa palavra, Jean Valjean, que parecia prostrado, ergueu a
cabeça com ar de assombro e murmurou:
— Monsenhor?! Não era então o abade…
— Silêncio! — disse um soldado. — É o senhor bispo.
Monsenhor Bienvenu aproximou-se com a presteza que lhe permitia
sua idade avançada.
— Ah! Então voltou? — exclamou olhando para Jean Valjean. —
Estimo muito vê-lo. Mas então, dei-lhe também os castiçais, que são de
prata como o resto, com o que pode obter uns duzentos francos. Por que
não os levou juntamente com seus talheres?
Jean Valjean abriu os olhos e encarou o venerável bispo com uma
expressão que nenhuma língua humana poderia traduzir.
— Então o que este homem diz é verdade, monsenhor? — perguntou o
que chefiava. — Nós o encontramos, ele andava como alguém que foge.
Foi preso para averiguação. Levava esta prataria…
— E disse aos senhores — atalhou o bispo, sorrindo — que a tinha
recebido de um pobre padre, na casa de quem passara a noite? Vejo que foi
isso. E os senhores trouxeram-no aqui? Foi um engano.
— Sendo assim — replicou o chefe —, podemos soltá-lo?
— Sem dúvida — respondeu o bispo.
Os soldados largaram Jean Valjean, que recuou.
— É verdade que estão me soltando? — exclamou ele em voz quase
inarticulada e como se falasse dormindo.
— É verdade, está solto, não ouviu? — disse um soldado.
— Meu amigo — disse o bispo —, antes de ir embora, pegue os
castiçais.
Foi até a lareira, pegou os dois castiçais de prata e os entregou a Jean
Valjean.
As duas mulheres viam o que fazia sem dizer uma palavra, sem fazer
um gesto, sem lançar um olhar que pudesse constrangê-lo.
Jean Valjean tremia inteiro; pegou os dois castiçais maquinalmente e
com ar desvairado.
— Agora — disse o bispo —, vá em paz. A propósito, quando voltar,
meu amigo, não precisa passar pelo jardim. Pode sempre entrar e sair pela
porta da rua, ela está fechada apenas por uma tramela, seja de dia ou de
noite.
E, voltando-se para os soldados, acrescentou:
— Os senhores podem retirar-se.
Os soldados afastaram-se.
Jean Valjean sentiu-se como quem fosse desmaiar. O bispo aproximou-
se dele e disse-lhe em voz baixa:
— Não se esqueça, jamais se esqueça de que me prometeu empregar
este dinheiro para tornar-se um homem de bem.
Jean Valjean, que não tinha lembrança alguma de ter prometido o que
quer que fosse, ficou sem saber o que dizer. O bispo carregara nas palavras
que proferiu. Retomou com solenidade:
— Jean Valjean, meu irmão, lembre-se de que já não pertence ao mal,
mas sim ao bem. É sua alma que acabo de comprar; furto-a aos maus
pensamentos e ao espírito de perdição para entregá-la a Deus.

XIII. O PEQUENO GERVAIS


Jean Valjean saiu da cidade como quem estivesse fugindo e se pôs a
caminhar apressadamente pelos campos, pegando os caminhos e atalhos
que apareciam, sem reparar que a cada instante voltava para onde já havia
passado. Assim vagou toda a manhã, sem comer nem ter fome. Muitas
sensações desconhecidas o agitavam. Sentia uma espécie de ira, mas nem
sabia contra quem. Não sabia dizer se estava emocionado ou humilhado.
Em alguns momentos, era tomado por um singular enternecimento, que
combatia, opondo a ele o endurecimento de seus últimos vinte anos. Esse
estado o afligia. Via com preocupação abalar-se em seu íntimo uma
espécie de pavorosa calma que a injustiça de seu infortúnio lhe havia dado.
Perguntava-se o que substituiria aquilo. Às vezes, realmente preferia ter
sido preso pelos soldados, e que as coisas não tivessem ocorrido daquela
maneira; assim ficaria menos agitado.
Embora a estação já estivesse bem adiantada, ainda havia, aqui e ali,
por entre as sebes, algumas flores tardias, cujo odor, que sentia ao passar,
trazia-lhe recordações da infância. Essas lhe eram quase insuportáveis,
tanto que havia muito não lhe assaltavam.
Assim, inexprimíveis pensamentos amontoaram-se dentro dele durante
todo o dia.
Ao pôr do sol, momento em que a sombra do menor seixo se alonga,
Jean Valjean estava sentado atrás de um arbusto, em uma extensa e
escalvada planície absolutamente deserta. No horizonte, não se via nada
além dos Alpes. Nem mesmo o campanário de alguma aldeia longínqua.
Jean Valjean achava-se a umas três léguas de Digne. Um atalho que
cortava a planície passava perto dali.
Em meio a essa meditação, que não contribuía nem um pouco para
tornar seus andrajos mais medonhos a quem o encontrasse, ouviu um
rumor alegre.
Virou a cabeça e viu, andando pelo atalho, um menino de uns dez anos,
cantando e trazendo seu fole a tiracolo. Um desses meigos e alegres
meninos que vão de um lugar a outro, com os joelhos à mostra através das
calças rasgadas.
Sempre cantando, o menino interrompia sua caminhada, de tempos em
tempos, para brincar com algumas moedas que tinha na mão,
provavelmente toda a sua fortuna. Entre elas, havia uma de quarenta
soldos.
Ele parou ao lado do arbusto sem ver Jean Valjean e atirou ao ar o
punhado de moedas que, até então, vinha aparando nas costas da mão com
bastante destreza.
Dessa vez, escapou-lhe a moeda de quarenta soldos, rolando por entre
o mato até Jean Valjean. E este colocou o pé sobre a moeda.
O menino, que seguira a moeda com os olhos, viu onde ela tinha ido
parar, não se admirou e foi em direção ao homem. Era um local
absolutamente solitário. Até onde a vista pudesse alcançar, não havia
ninguém nem na planície, nem no atalho. Ouvia-se apenas o fraco barulho
de um bando de pássaros que atravessavam o céu a uma altura imensa. O
pequeno dava as costas para o sol, que lhe punha fios dourados nos cabelos
e avermelhava o rosto selvagem de Jean Valjean.
— Moço, minha moeda! — disse o menino, com aquela confiança
infantil que é um misto de ignorância e inocência.
— Como se chama? — perguntou Jean Valjean.
— Gervais.
— Vá embora! — disse Jean Valjean.
— Moço, devolva minha moeda! — replicou o menino.
Jean Valjean baixou a cabeça e não respondeu.
O menino repetiu:
— Minha moeda, moço!
Os olhos de Jean Valjean continuaram fixos no chão.
— Minha moeda! — gritou o menino. — Minha moeda de prata! Meu
dinheiro!
Parecia que Jean Valjean não ouvia mais. O pequeno agarrou-o pela
gola da blusa e o sacudiu. Ao mesmo tempo, esforçava-se para tirar o
pesado sapato ferrado de cima de seu tesouro.
— Quero minha moeda! Minha moeda de quarenta soldos!
O menino chorava. Jean Valjean, que continuava sentado, levantou a
cabeça, seus olhos estavam turvos. Olhou para o garoto com certo
assombro, então estendeu a mão para alcançar seu cajado e gritou com
uma voz terrível:
— Quem está aí?
— Eu, moço! — respondeu o menino. — Gervais! Sou eu! Sou eu!
Devolva meus quarenta soldos, por favor! Tire o pé, moço, por favor!
Em seguida, irritado e tornando-se quase ameaçador, apesar do
tamanho:
— Ai… vai tirar o pé, não vai? Tire o pé, vai…!
— Você ainda está aí! — disse Jean Valjean, e erguendo-se
repentinamente, sem tirar o pé de cima da moeda, acrescentou: — Acho
bom você ir embora!
O garoto olhou para ele assustado, começou a tremer da cabeça aos pés
e, após alguns segundos de estupefação, saiu correndo com toda a força,
sem se atrever a olhar para trás, nem a soltar um grito.
A certa distância, no entanto, já não tinha mais fôlego e foi obrigado a
parar; Jean Valjean ouviu-o soluçar em meio a um devaneio.
Alguns instantes depois, o menino tinha desaparecido.
O sol já se havia posto. A noite ia descendo sobre Jean Valjean; ele não
tinha comido nada durante o dia inteiro, era provável que tivesse febre.
Desde que o pequeno fugira, continuava em pé, sem mudar de posição. Sua
respiração elevava seu peito em intervalos longos e desiguais. Seu olhar,
fixo a dez ou doze passos de distância, parecia estudar com profunda
atenção a forma de um caco de louça azul caído no mato. De repente,
estremeceu, acabava de sentir o frio da noite. Enterrou mais o boné na
cabeça, tentou, maquinalmente, fechar mais a blusa, deu um passo e
agachou-se para pegar seu cajado no chão.
Aí então avistou a moeda de quarenta soldos que seu pé enterrara um
pouco, e que brilhava entre as pedrinhas. Foi como uma comoção
galvânica.
— O que é isto? — murmurou ele por entre os dentes.
Recuou três passos e parou, sem poder despregar os olhos daquele
ponto que seu pé pisara há um instante, como se aquela coisa que luzia ali
no escuro fosse um olho aberto fixamente sobre ele.
Alguns minutos depois, lançou-se convulsivamente em direção à
moeda de prata, apanhou-a e, erguendo-se, pôs-se a olhar planície afora,
todos os pontos do horizonte ao mesmo tempo, de pé e trêmulo como um
animal feroz em busca de abrigo.
Não enxergou nada. A noite chegava, a planície estava fria e deserta,
uma névoa em tom violeta pairava na claridade crepuscular.
Suspirou, e começou a caminhar rapidamente na direção em que o
garoto tinha desaparecido. Após uns trinta passos, parou, olhou e, como
nada visse, gritou com toda a sua força: “Gervais! Gervais!”
Calou-se e esperou. Ninguém respondeu.
A planície estava deserta e calma. Rodeava-o uma imensidão de
sombra e silêncio onde seu olhar e sua voz se perdiam. O vento norte,
glacial, soprava e dava aos objetos que o rodeavam uma espécie de vida
lúgubre. Os arbustos agitavam seus pequenos e finos galhos com uma fúria
incrível, parecendo ameaçar e perseguir alguém.
Tornou a caminhar, depois correu e, de vez em quando, parava e
gritava, com uma voz que era o que se podia ouvir de mais espantoso e
desolador: “Gervais! Gervais!”
Claro que, se o menino o ouvisse, teria medo e não apareceria, mas
sem dúvida já estava muito longe.
Encontrou um padre que vinha a cavalo. Foi até ele e perguntou:
— Padre, viu passar um menino?
— Não — respondeu o padre.
— Um pequeno chamado Gervais?
— Não vi ninguém.
Tirou duas moedas de cinco francos de dentro da mochila e entregou-
as ao padre.
— Padre, é para seus pobres. Era um menino de uns dez anos, com um
fole, creio eu. Ia para lá, sabe?
— Não o encontrei.
— Gervais? Não será destes vilarejos daqui? Sabe me dizer?
— Se é como diz, amigo, é algum menino de fora. Passam por aqui,
mas ninguém os conhece.
Jean Valjean pegou violentamente duas outras moedas de cinco francos
e deu ao padre.
— Para seus pobres — disse.
E depois acrescentou desorientado:
— Padre, mande prender-me, sou um ladrão!
O padre cravou as esporas no cavalo e fugiu amedrontado.
Jean Valjean começou a correr na direção que tomara antes. Assim
acabou percorrendo um caminho bastante grande, olhando, chamando e
gritando, mas não encontrou mais ninguém.
Duas ou três vezes correu para alguma coisa que lhe parecia ser um
ente vivo deitado ou agachado; mas nada mais eram que sebes ou rochas à
flor da terra. Enfim, parou em um lugar onde se cruzavam três caminhos.
Havia lua. Correu o olhar ao longe, no horizonte, e chamou uma última
vez: “Gervais! Gervais! Gervais!” Seus gritos perderam-se na bruma sem
produzir sequer um eco. Murmurou mais uma vez: “Gervais!”, mas com
uma voz fraca, quase inarticulada.
Foi seu último esforço; os joelhos curvaram-se bruscamente, como se
um poder invisível o oprimisse repentinamente com todo o peso de sua
consciência; caiu esgotado sobre uma pedra, os punhos na cabeça e o rosto
contra os joelhos, exclamando: “Sou um miserável!”
Então, com o coração partido, desatou a chorar. Era a primeira vez que
chorava em dezenove anos!
Como vimos, quando Jean Valjean saiu da casa do bispo estava alheio
a todo o seu modo de pensar até então. Nem ele próprio conseguia explicar
o que se passava com ele. Resistia à ação angelical e às suaves palavras do
bispo: “Lembre-se de que me prometeu tornar-se um homem de bem.
Acabo de comprar-lhe a alma. Furto-a ao espírito de perdição para
entregá-la a Deus!” Essas palavras vinham-lhe à memória sem parar.
A essa celeste indulgência, ele opunha o orgulho, que é em nós como
uma fortaleza do mal. Sentia confusamente que o perdão daquele padre era
o maior assalto e o mais pavoroso ataque que já o havia abalado; que seu
endurecimento seria definitivo se resistisse àquela clemência; que, se
cedesse, teria de renunciar ao ódio, que o agradava, e com o qual as ações
dos outros homens vinham saturando sua alma ao longo de muitos anos;
que, desta vez, era vencer ou ser vencido, e que uma luta, colossal e
definitiva, estava começando, entre a sua perversidade e a bondade
daquele homem.
Em presença de todas essas luzes, Jean Valjean andava como que
embriagado. Enquanto caminhava assim, com o olhar desvairado, teria
uma percepção distinta da que poderia resultar-lhe de sua aventura em
Digne? Ouvia todos esses misteriosos sussurros, que advertem ou
importunam o espírito em certos momentos da vida? Uma voz dizia-lhe ao
ouvido que acabava de atravessar o momento solene de seu destino, que já
não tinha meio-termo; que, a partir de então, se não fosse o melhor dos
homens, seria o pior; que agora precisava, por assim dizer, elevar-se acima
do bispo ou ficar ainda abaixo do condenado; que, se quisesse tornar-se
bom, deveria virar anjo, e, se quisesse continuar perverso, deveria virar
monstro.
Aqui, é preciso ainda uma vez fazer a pergunta que já foi feita: haveria
alguma sombra disso tudo em seu pensamento? É certo, já dissemos, que o
infortúnio educa a inteligência; porém, é duvidoso que Jean Valjean se
achasse em estado de discriminar tudo o que foi exposto aqui. Se tinha
essas ideias, mais as entrevia do que via, e apenas serviam para causar-lhe
uma perturbação inexprimível, quase dolorosa. Ao sair desta coisa
disforme e negra a que chamamos de prisão, o bispo causou-lhe mal à
alma, assim como uma claridade muito forte teria feito mal a seus olhos
ao sair da escuridão. A vida futura, a vida possível que a ele se oferecia de
agora em diante, pura e radiante, enchia-o de temor e ansiedade.
Realmente não sabia mais onde estava.
Como uma coruja que visse o sol surgir de repente, o condenado ficara
ofuscado e quase cego em razão da virtude.
O que era certo, e disso não duvidava, é que já não era mais o mesmo
homem, que tudo nele havia mudado, que não estava em seu controle o
fato de o bispo ter-lhe falado e ter-lhe comovido.
Nesse estado de espírito, encontrara Gervais e roubara-lhe os quarenta
soldos. Por quê? Decerto nem ele saberia explicar. Teria sido um último
efeito, e talvez um supremo esforço, dos maus pensamentos com que saíra
das galés, um resto de impulsividade, um resultado do que em dinâmica se
denomina força adquirida?
Era isso, mas talvez fosse ainda menos do que isso.
Vamos dizer sem rodeios, não foi ele quem roubou, não foi o homem,
mas a besta que, por hábito e instinto, colocou estupidamente o pé em
cima daquela moeda de prata, enquanto a razão se debatia entre tantas
obsessões inauditas e desconhecidas. Quando a razão acordou e viu a ação
do bruto, Jean Valjean recuou com angústia e soltou um grito de aflição.
Estranho fenômeno, possível apenas na situação em que ele se
encontrava: roubando o dinheiro daquela criança, havia feito uma coisa de
que já não era capaz.
Fosse como fosse, esta última má ação produziu nele um efeito
decisivo; atravessou rapidamente o caos que tinha no espírito e dissipou-o;
colocou de um lado as trevas e de outro a luz, e agiu sobre sua alma, no
estado em que estava, como certos reagentes químicos agem sobre uma
mistura turva, precipitando um elemento e clarificando o outro.
Antes de mais nada, antes mesmo de se examinar e de refletir,
alucinado e como quem tenta fugir, tentou encontrar o menino para
devolver-lhe o dinheiro; depois, quando viu que isso era inútil e
impossível, parou desesperado.
Quando gritou: sou um miserável! acabou enxergando-se tal como era,
e já estava a tal ponto separado de si próprio, que ele aparentava a si
mesmo não ser mais que um fantasma, que tinha ali, diante de si, em carne
e osso, com o cajado na mão, a blusa vestida, a mochila às costas, cheia de
objetos roubados, o semelhante resoluto e sombrio, o pensamento cheio de
abomináveis projetos, o medonho condenado Jean Valjean.
O excesso de infortúnio, como já observamos, tornara-o de alguma
forma visionário. Isso tudo foi, então, como que uma visão. Viu diante de
si, verdadeiramente, aquele Jean Valjean, aquele rosto sinistro. Esteve
quase a ponto de perguntar quem era tal homem e horrorizou-se com ele.
Sua cabeça achava-se em um desses momentos violentos, e ao mesmo
tempo temerosamente serenos, em que a abstração é tão profunda que
absorve a realidade; não vemos mais os objetos que temos diante de nós e
vemos as figuras que temos na mente como se estivessem fora de nós.
Jean Valjean contemplou-se, por assim dizer, face a face; e ao mesmo
tempo, através daquela alucinação, via, em misteriosa profundidade, uma
espécie de luz que, em princípio, tomou por uma chama. Olhando com
mais atenção para essa luz que se mostrava à sua consciência, viu que ela
tinha forma humana, viu que essa chama era o bispo.
Sua consciência contemplou alternadamente os dois homens assim
colocados diante dele, o bispo e Jean Valjean. Para enfraquecer o segundo,
não fora preciso mais que o primeiro. Por um desses singulares efeitos,
próprios daquela espécie de êxtase, à medida que se prolongava seu
devaneio, o bispo se avultava e resplandecia a seus olhos, e Jean Valjean
diminuía e se apagava. Em determinado momento, não era mais que uma
sombra, e de repente desapareceu. Apenas o bispo havia restado. Preenchia
toda a alma daquele miserável com um brilho magnífico.
Jean Valjean chorou por muito tempo. Chorou abundantemente, chorou
e soluçou, com franqueza maior que a de uma mulher, com pavor maior
que o de uma criança.
Enquanto chorava, uma clareza cada vez maior se fazia em sua cabeça,
clareza a um só tempo deslumbrante e terrível. Sua vida passada, seu
primeiro erro, sua longa expiação, seu embrutecimento exterior, seu
endurecimento interior, sua recondução à liberdade acompanhada por
tantos planos de vingança; o que lhe acontecera na casa do bispo, a última
coisa que fizera, esse roubo de quarenta soldos a uma criança, crime tanto
mais covarde e monstruoso, posto que o cometera após o perdão do bispo,
tudo isso lhe ocorreu claramente, mas com uma clareza que até então
nunca vira. Olhou para a sua vida e achou-a horrível; olhou para a sua
alma e achou-a medonha. No entanto, uma luz suave se refletia sobre
aquela vida e aquela alma. Parecia-lhe que via Satanás à luz do paraíso.
Quantas horas chorou assim? Que fez depois de chorar? Para onde foi?
Ninguém jamais soube.
Ao menos parece fato que, naquela mesma noite, o estafeta do correio
que fazia o serviço de Grenoble, e que chegou a Digne por volta das três
horas da manhã, ao atravessar a rua do palácio episcopal, viu um homem
ajoelhado na calçada, em posição de quem reza, diante da porta de
Monsenhor Bienvenu.

__________________________
1 Golfo Juan foi onde Napoleão desembarcou ao voltar da ilha de Elba em 1815.
2 Expressão em dialeto patois: Chat de maraude, correspondente a gatuno, em português.
3 Méduse: navio de guerra encalhado em 1816 com quatrocentos marinheiros e soldados a
bordo. Ao serem resgatados, os náufragos eram apenas quinze.
4 Jean Valjean foi inspirado em Pierre Maurin, que teve prisão decretada por roubar um pão.
Sua história foi a inspiração do autor.
LIVRO III
NO ANO DE 1817

I. O ANO DE 1817
1817 FOI O ANO que Luís XVIII, com certo aprumo régio, ao qual não
faltava arrogância, qualificou como o vigésimo segundo de seu reinado.
Foi o ano em que Bruguière de Sorsum tornou-se célebre. Em que
todas as barbearias foram pintadas de azul com flores-de-lis, à espera dos
polvilhos e do regresso do pássaro real. Era o inocente tempo em que o
conde de Lynch, todos os domingos, sentava-se, como tesoureiro da igreja,
no banco de Saint-Germain-des-Près, vestido como par da França, com sua
fita vermelha, seu grande nariz, e aquele aspecto de majestade típico de
um homem que praticou uma ação célebre.
A ação célebre praticada pelo senhor Lynch consistia no seguinte:
como prefeito de Bordeaux, haver entregue a cidade, em 12 de março de
1814, um pouco cedo demais ao duque de Angoulême. O que rendeu-lhe o
pariato. Em 1817, a moda inventara, para as crianças de quatro a seis anos,
uns enormes bonés de couro, com abas para cobrir as orelhas, que
pareciam gorros de esquimós. O exército francês usava uniformes brancos,
à moda austríaca; os regimentos chamavam-se legiões, e, em lugar de
números, traziam os nomes dos departamentos. Napoleão estava em Santa
Helena, e, como a Inglaterra não lhe enviava tecido verde, mandava virar
suas velhas roupas do avesso. Em 1817, Pellegrini cantava, mademoiselle
Bigottini dançava, Potier reinava, e Odry ainda não existia. Madame Saqui
sucedia a Forioso. Havia ainda prussianos na França. Delalot era um
homem notável. Sua legitimidade acabava de consolidar-se ao cortar o
punho, e em seguida a cabeça, de Pleignier, de Carbonneau e de Tolleron.
O príncipe de Talleyrand, camareiro-mor, e o abade Louis, indicado para
ministro das finanças, olhavam-se com o riso de dois áugures; ambos
haviam celebrado a missa da Federação no Champ-de-Mars, em 14 de
julho de 1790, Talleyrand oficiando como bispo, Louis como acólito. Em
1817, nas alamedas laterais desse mesmo Champ-de-Mars, viam-se
grossos cilindros de madeira expostos à chuva, apodrecendo no mato,
pintados de azul com traços de águias e abelhas douradas. Eram as colunas
que, dois anos antes, tinham servido para sustentar o estrado do imperador
no Champ-de-Mai (cerimônia cívica e militar). Estavam escurecidas aqui
e ali pelas fogueiras do acampamento austríaco estabelecido perto de
Gros-Caillou. Duas ou três dessas colunas haviam desaparecido nas
fogueiras, feitas para aquecerem as enormes mãos dos kaiserlicks. Notável
na festa de Champ-de-Mai é ter ocorrido em junho e no Champ-de-Mars!
Nesse ano de 1817, duas coisas eram populares: o Voltaire-Touquet e as
caixas de rapé. A emoção parisiense mais recente era o crime de Dautun,
que lançara a cabeça do irmão no chafariz do Marché-aux-Fleurs. No
Ministério da Marinha, começava o inquérito sobre a fatal fragata Méduse,
que cobriria Chaumareix de vergonha e Géricault de glória. O coronel
Selves partia para o Egito, para ali tornar-se o paxá Soliman. O palácio des
Thermes, na rua de la Harpe, servia de loja a um tanoeiro. Na plataforma
do torreão octogonal do palácio de Cluny, via-se ainda a cabine de tábuas
que servira de observatório a Messier, astrônomo da Marinha no reinado
de Luís XVI. A duquesa de Duras lia a três ou quatro amigos, em seu
gabinete forrado de cetim azul-celeste, o manuscrito de Ourika (primeiro
romance escrito por ela), ainda inédito. No Louvre, raspavam-se os N
(inicial de Napoleão). A ponte de Austerlitz passava a chamar-se ponte
Jardin du Roi, duplo enigma que disfarçava, ao mesmo tempo, o Jardim
Botânico e a ponte de Austerlitz. Luís XVIII, atento a Horácio por causa
dos heróis que se fazem imperadores e dos sapateiros que se fazem
herdeiros do trono, tinha duas preocupações: Napoleão e Mathurin
Bruneau. A Academia Francesa dava como tema a ser premiado: A
felicidade que provém do estudo. Bellart era oficialmente eloquente. Via-
se germinar à sua sombra o futuro advogado-geral de Bröe, destinado aos
sarcasmos de Paul-Louis Courier. Havia um falso Chateaubriand chamado
Marchangy, à espera de um falso Marchangy chamado d’Arlincourt. Claire
d’Albe e Malek-Adel eram obras-primas, e madame Cottin era declarada a
maior escritora da época. O Instituto deixava riscar de sua lista o
acadêmico Napoleão Bonaparte. Uma ordem régia elevava Angoulême a
escola de Marinha, pois, sendo o duque de Angoulême almirante-mor, era
evidente que a cidade de Angoulême possuía por direito todas as
qualidades de um porto de mar, sem o que ficaria abalado o princípio
monárquico. Agitava-se no conselho de ministros a questão de saber se
deveriam ser toleradas as vinhetas representando cordas-bambas nos
cartazes de Franconi, os quais atraíam os garotos de rua (sem dúvida,
menos pelas proezas dos acrobatas que pelas vestimentas de suas
parceiras). Paër, autor de Agnese, camarada de rosto quadrado com uma
verruga na face, dirigia os pequenos concertos íntimos para a marquesa de
Sassenaye, na rua de la Ville-l’Evêque. Todas as moças cantavam Ermite
de Saint-Avelle, letra de Edmond Géraud. Le Nain jaune [O Anão Amarelo
— jornal de artes, ciências e literatura] passou a chamar-se Miroir
[Espelho]. O café Lemblin era a favor do imperador e contra o café Valois,
que era a favor dos Bourbons. O duque de Berry acabava de casar com
uma princesa da Sicília, já espreitado por Louvel (seu assassino). Havia
um ano que madame de Staël morrera. Os guardas reais vaiavam
mademoiselle Mars (atriz). Os grandes jornais eram publicados em
formato pequeno. O tamanho fora restringido, mas a liberdade era grande.
O Constitutionnel [Constitucional] era constitucional. Minerve [Minerva]
chamava Chateaubriand de Chateaubriant. Este t fazia os burgueses rirem
muito à custa do grande escritor. Em jornais vendidos, jornalistas
prostituídos insultavam os proscritos de 1815; David não tinha mais
talento, Arnault não tinha mais espírito, Carnot não tinha mais probidade,
Soult não ganhara uma só batalha; verdade é que Napoleão não tinha a
mesma engenhosidade. Ninguém ignora ser muito raro que as cartas,
enviadas pelo correio a um exilado, lhes cheguem às mãos, pois a polícia
tem como religioso dever interceptá-las. Isso não é de agora; Descartes já
fazia a mesma queixa quando fora banido. Ora, David, em um jornal belga,
deu mostras de descontentamento por não receber as cartas que lhe
escreviam; isso parecia divertido aos jornais realistas, que aproveitavam a
ocasião para achincalhar o proscrito. Dizer regicidas ou votantes, inimigos
ou aliados, Napoleão ou Bonaparte, separava dois homens mais do que um
abismo. Todas as pessoas sensatas concordavam que a era das revoluções
fora para sempre encerrada pelo rei Luís XVIII, cognominado “o imortal
autor da Carta”. Na base da Pont-Neuf, foi gravada a palavra Redivivus
(Ressuscitado) no pedestal destinado a receber a estátua de Henrique IV;
Piet preparava seu conciliábulo para consolidar a monarquia na rua
Thérèse, número 4. Nas conjunturas graves, os chefes da direita diziam: “É
preciso escrever a Bacot”. Canuel O’Mahony e De Chappedelaine
esboçavam, com alguma aprovação de Monsieur (irmão mais velho do
rei), o que mais tarde veio a ser a “conspiração de bord de l’eau” (à beira
d’água — por ter sido planejada às margens do Sena). L’Épingle Noire (O
Alfinete Negro — sociedade secreta) igualmente conspirava. Delaverderie
conferenciava com Trogoff. Decazes, espírito até certo ponto liberal,
dominava. Chateaubriand, todas as manhãs em frente à janela de sua casa,
à rua Saint-Dominique, número 27, de calças e chinelos, um lenço de seda
da índia cobrindo os cabelos grisalhos, os olhos fixos em um espelho, e
um estojo completo de cirurgião-dentista aberto diante de si, ocupava-se
de limpar os belíssimos dentes, ditando ao mesmo tempo A Monarquia
segundo a Carta ao senhor Pilorge, seu secretário. A crítica autorizada
preferia Lafon a Talma (atores). Féletz assinava A., Hoffman assinava Z.;
Charles Nodier escrevia Thérèse Aubert. Estava abolido o divórcio. Os
liceus chamavam-se colégios, e os colegiais, que traziam na gola uma flor-
de-lis dourada, socavam-se por causa do rei de Roma. A polícia secreta do
Castelo denunciava à Alteza Real o retrato, exposto por toda parte, do
duque de Orléans, que fazia melhor figura vestido de coronel-general dos
hussardos do que o duque de Berry com a farda de coronel-general dos
dragões, grave inconveniente. A cidade de Paris mandava dourar
novamente, às suas custas, a cúpula de Invalides. Os homens sérios
perguntavam-se que faria Trinquelaque nesta ou naquela situação. Clausel
de Montals separava-se em vários pontos de Clausel Coussergues; De
Salaberry não andava satisfeito. O ator Picard, membro da Academia em
que Molière não conseguiu ser admitido, fazia representar Les deux
Philibert no Odéon, em cujo frontispício, mesmo com as letras arrancadas,
lia-se ainda distintamente: THÉÂTRE DE L’IMPÉRATRICE. Uns eram a
favor, outros contra Cugnet de Montarlot. Fabvier era faccioso, Bavoux
revolucionário. O livreiro Pélicier publicava uma edição de Voltaire com o
título Oeuvres de Voltaire (Obras de Voltaire), da Academia Francesa.
“Isso atrai os compradores”, dizia o ingênuo editor. Era opinião geral que
Charles Loyson seria o gênio do século; a inveja começava a cravar-lhe os
dentes, indício de glória, e a respeito dele foi feito o seguinte verso:

Même quand Loyson vole, on sent qu’il a des pattes


(Até quando Loyson voa, percebe-se que tem patas).

Como o cardeal Fesch se recusava a pedir demissão, Monsenhor de


Pins, arcebispo d’Amasie, administrava a diocese de Lyon. A querela sobre
o vale de Dappes iniciava-se entre a França e a Suíça com uma nota do
capitão Dufour, mais tarde general.
Saint-Simon, ainda ignorado, projetava seu sonho sublime. Na
Academia das Ciências havia um Fourier célebre que a posteridade
esqueceu, e, em algum sótão, um Fourier obscuro cujo futuro será
lembrado. Lorde Byron começava a despontar; uma nota de um poema de
Millevoye anunciava-o à França nos seguintes termos: um certo Lorde
Baron. David d’Angers (escultor) tentava modelar o mármore. O abade
Caron falava elogiosamente, durante pequena reunião de seminaristas no
beco des Feuillantines, de um padre desconhecido chamado Félicité
Robert, que depois veio a ser Lamennais. Uma coisa que fumegava e
agitava o Sena com um barulho de cachorro nadando, ia e voltava sob as
janelas das Tulherias, da ponte Royal à ponte Louis XV; um mecanismo
que não era grande coisa, uma espécie de brinquedo de um inventor-
sonhador, uma utopia: um barco a vapor. Os parisienses olhavam com
indiferença para aquela inutilidade. Vaublanc, reformador do Instituto por
golpe de Estado, ordem régia e suborno, distinto criador de muitos
acadêmicos, depois de tantos ter criado não conseguiu chegar a sê-lo. O
bairro de Saint-Germain e o pavilhão Marsan queriam Delaveau como
chefe de polícia por causa de sua devoção. Dupuytren e Récamier
discutiam no anfiteatro da Escola de Medicina, e ameaçavam esmurrar-se,
por causa da divindade de Jesus Cristo. Cuvier, um olho no Gênesis e
outro na natureza, esforçava-se por agradar à reação carola, pondo os
fósseis de acordo com os textos bíblicos e fazendo com que os
mastodontes lisonjeassem Moisés. François de Neufchâteau, louvável
cultivador da memória de Parmentier, fazia mil esforços para que pomme
de terre (batata) se pronunciasse parmentière, mas não conseguiu. O abade
Grégoire, antigo bispo, antigo convencional, antigo senador, passou, na
polêmica realista, ao estado de “infame Grégoire”. A locução que
acabamos de empregar, passar ao estado de, era denunciada como
neologismo por Royer-Collard. Podia-se ainda distinguir, por sua alvura,
sob o terceiro arco da ponte d’Iéna, a pedra nova com a qual, dois anos
antes, fora tapado o buraco de mina feito por Blucher para fazer a ponte
voar pelos ares. A justiça chamava a seus tribunais um homem que, ao ver
o conde d’Artois entrar na igreja de Notre-Dame, exclamara em voz alta:
Arre! Tenho saudades do tempo em que via Bonaparte e Talma entrarem de
braço dado no Bal-Sauvage. Dizer sedicioso. Seis meses de prisão. Os
traidores mostravam-se descaradamente; os homens que tinham passado
para o lado inimigo na véspera de uma batalha não escondiam a
recompensa, e caminhavam impudicamente, em pleno dia, no cinismo das
riquezas e das dignidades; os desertores de Ligny e de Quatre-Bras, com o
despudor da sua venal torpeza, ostentavam às claras seu devotamento à
monarquia; esqueciam o que se acha escrito na parede interior dos
banheiros públicos da Inglaterra: Please adjust your dress before leaving
(Favor arrumarem suas roupas antes de sair).
Eis, ao acaso, o que confusamente acontecia no ano de 1817, hoje
esquecido. A história negligencia quase todas essas particularidades, e não
pode fazer de outro modo, ou seria invadida por um infinito delas. Esses
detalhes, que chamamos erradamente de pequenos — não há pequenos
fatos na humanidade, nem pequenas folhas na vegetação —, são úteis. É da
fisionomia dos anos que se compõem a feição dos séculos.
Nesse ano de 1817, quatro jovens parisienses pregaram “uma boa
peça”.

II. DUPLO QUARTETO


Esses parisienses eram um de Toulouse, outro de Limoges, o terceiro
de Cahors, o quarto de Montauban, mas eram estudantes, e quem diz
estudante diz parisiense. Estudar em Paris é nascer em Paris.
Quatro jovens insignificantes; todo o mundo conhece figuras assim;
quatro amostras comuns; nem bons nem maus, nem sábios nem
ignorantes, nem gênios nem imbecis; belos como um encantador abril de
vinte anos. Imaginem quatro Oscares quaisquer; pois, naquele tempo,
ainda não existiam os Arthurs. Queimem para ele os perfumes da Arábia,
dizia a canção. Oscar s’avance (Oscar se aproxima), Oscar, je vais le voir!
(Vou ver Oscar!). Ossian aparecia; a elegância era escandinava e
caledoniense; o estilo inglês puro só mais tarde viria a prevalecer; e o
primeiro dos Arthurs, Wellington, mal acabava de ganhar a batalha de
Waterloo.
Os tais Oscares chamavam-se Félix Tholomyès, de Toulouse; Listolier,
de Cahors; Fameuil, de Limoges; Blachevelle, de Montauban. Como é
natural, cada qual tinha sua amante.
Blachevelle amava Favourite, assim chamada porque havia estado na
Inglaterra; Listolier adorava Dhalia, que usava como nome de guerra um
nome de flor; Fameuil idolatrava Zéphine, abreviatura de Joséphine; a
Tholomyès pertencia Fantine, conhecida por Loira em razão de seus belos
cabelos cor de sol.
Favourite, Dhalia, Zéphine e Fantine eram quatro encantadoras moças,
perfumadas e radiantes, ainda operárias da costura, que distraídas pelos
namoros não haviam de todo abandonado suas agulhas, e que ainda
conservavam no semblante um resto da serenidade do trabalho e na alma
essa flor de honestidade que, nas mulheres, sobrevive à primeira queda.
Entre as quatro havia uma a quem chamavam de a jovem, por ser a
caçula, e outra a quem chamavam de a velha; a velha tinha vinte e três
anos. Para nada ocultar, as três primeiras eram mais experientes, menos
preocupadas e mais envolvidas pela agitação da vida do que Fantine, a
Loira, que se achava em sua primeira ilusão. O mesmo não poderiam dizer
Dhalia, Zéphine e especialmente Favourite. Já tinha mais de um episódio
seu romance que mal havia começado, e o amado, que no primeiro
capítulo se chamava Adolphe, no segundo era Alphonse, e no terceiro
Gustave. Pobreza e luxo são dois conselheiros fatais; um recrimina, outro
adula, e as jovens do povo têm ambos a falar-lhes baixinho ao ouvido, um
de cada lado. As almas mal guardadas escutam-nos. Daí os tombos que
levam e as pedras que lhes atiram. São oprimidas com o esplendor de tudo
o que é imaculado e inacessível. Oh! E se a Jungfrau (jovem) tivesse
fome?
Favourite, como estivera na Inglaterra, tinha Zéphine e Dhalia como
admiradoras. Muito cedo já tinha uma casa para si. Seu pai era um antigo
professor de Matemática, brutal, fanfarrão, solteiro e, apesar da avançada
idade, vivia atrás do que fazer. Quando jovem, viu um dia o vestido de
uma criada enroscar-se em um cinzeiro e apaixonou-se por esse incidente.
Resultou daí Favourite. De tempos em tempos, ela encontrava o pai e o
cumprimentava. Uma manhã, uma senhora com ar de beata entrou em sua
casa e disse-lhe:
— Não me conhece, mocinha?
— Não.
— Sou sua mãe.
Em seguida a velha abriu o armário, comeu e bebeu, mandou trazer um
colchão que tinha e instalou-se. Rabugenta e beata, nunca falava com
Favourite, passava horas sem abrir a boca; almoçava, jantava e ceava por
quatro, depois ia conversar com o porteiro, falando mal da filha.
O que arrastara Dhalia para Listolier, para outros talvez, e para a
ociosidade, era ter umas belas unhas cor-de-rosa. Como pôr para trabalhar
aquelas unhas? Quem quiser ser virtuosa não deve ter dó das mãos. Quanto
a Zéphine, conquistara Fameuil pelo jeitinho vivaz e meigo de dizer:
“Sim, senhor”.
Os rapazes eram companheiros, as moças eram amigas. Esses amores
costumam andar sempre acompanhados dessas amizades.
Sábio e filósofo são coisas diferentes, e a prova é que, feitas todas as
reservas a cada um desses pares, Favourite, Zéphine e Dhalia eram
filósofas, e Fantine, sábia.
— Sábia? — perguntariam. — E Tholomyès?
Salomão responderia que o amor faz parte da sabedoria. Limitamo-nos
a dizer que o amor de Fantine era um primeiro amor, um amor único, um
amor fiel.
Era a única das quatro a quem só um homem tratava com intimidade.
Fantine era uma dessas criaturas que desabrocham, por assim dizer, do
seio do povo. Saída das mais insondáveis regiões das sombras sociais,
trazia na fronte o sinal do anônimo e do incógnito. Nascera em Montreuil-
sur-Mer. Quem foram seus pais? Quem poderia dizer? Nunca souberam de
seu pai nem de sua mãe. Por que se chamava Fantine? Nunca souberam
que tivesse outro nome. Por ocasião de seu nascimento, existia ainda o
Diretório. Nada de sobrenome, já que não tinha família; nada de nome de
batismo, já que a Igreja não estava mais lá. Tinha o nome que agradou ao
primeiro que a encontrou, pequenina, andando descalça pela rua. Recebeu
um nome, como recebia na fronte a água das nuvens quando chovia.
Chamavam-na de pequena Fantine. Ninguém sabia mais nada sobre ela.
Essa criatura viera assim ao mundo. Aos dez anos deixou a cidade e foi
trabalhar na casa de uns sitiantes dos arredores. Aos quinze foi para Paris,
“em busca de fortuna”. Fantine era bela e conservou-se pura o máximo que
pôde. Era uma linda moça loira e com belos dentes. Ouro e pérolas eram
seu dote, mas seu ouro estava nos cabelos e suas pérolas na boca.
Trabalhou para viver; depois,o tempo todo para viver, porque o
coração tem igualmente sua fome, amou.
Amou Tholomyès.
Para ele, passatempo; para ela, paixão. As ruas do Quartier Latin,
cheias desses enxames de estudantes e costureiras, viram o começo deste
sonho.
Fantine, nos labirintos da colina do Panthéon, onde tantas aventuras se
atam e desatam, esquivara-se por muito tempo de Tholomyès, mas sempre
de modo a encontrá-lo. Há uma maneira de evitar que se assemelha a
procurar. Enfim, o romance começou.
Blachevelle, Listolier e Fameuil formavam uma espécie de grupo do
qual Tholomyès era o cabeça. Era ele quem tinha o humor.
Tholomyès era o estudante veterano; era rico, tinha quatro mil francos
de rendimento; quatro mil francos de rendimento, esplêndido escândalo no
monte Sainte-Geneviève. Era um amante da diversão com trinta anos,
malconservado. Estava sem dentes, cheio de rugas e começava a mostrar
uma calvície da qual ele próprio dizia sem tristeza: calvo aos trinta,
careca aos quarenta. Sofria de má digestão e um olho lhe lacrimejava.
Mas, à medida que sua juventude se apagava, intensificava-se sua alegria;
substituía os dentes por animação, os cabelos por alegria, a saúde por
ironia, e o olho que chorava ria sem parar.
Estava acabado, mas cheio de viço. Sua mocidade, indo embora antes
do tempo, batia em retirada em boa ordem, rindo sempre, e cheia de
energia. Teve uma peça recusada no Vaudeville. Às vezes compunha uns
versos. Além disso, duvidava de tudo com superioridade, o que é indício
de grande força aos olhos dos fracos. Então, por ser irônico e calvo, era o
chefe.
Iron é uma palavra inglesa que significa ferro. Seria daí que viria a
ironia? Um dia, Tholomyès chamou os três outros de lado, fez um gesto de
oráculo e disse-lhes:
— Faz quase um ano que Fantine, Dhalia, Zéphine e Favourite nos
pedem para fazer-lhes uma surpresa, o que prometemos solenemente.
Falam sempre disso, principalmente a mim. Do mesmo modo que as
velhas em Nápoles gritam a São Januário: “Faccia gialluta, fa o miracolo,
cara amarela, faz teu milagre!”, as nossas belas dizem-me sem parar:
“Tholomyès, quando vai dar à luz sua surpresa?” Enquanto isso, nossos
pais nos escrevem. Vamos cortar dos dois lados. Parece-me que o
momento chegou. Vamos conversar.
Então, Tholomyès baixou a voz e disse misteriosamente algo tão
engraçado que uma vasta e entusiástica gargalhada saiu das quatro bocas
ao mesmo tempo, e Blachevelle exclamou:
— Boa ideia!
Chegaram a um botequim esfumaçado, entraram, e o resto de sua
conferência perdeu-se no escuro.
O resultado daquela escuridão foi um gostoso passeio que aconteceu
no domingo seguinte; os quatro rapazes convidaram as quatro amigas.

III. QUATRO A QUATRO


Mal se imagina hoje o que, há quarenta e cinco anos, era um passeio de
estudantes e costureiras no campo. Paris já não tem os mesmos arredores;
aquilo que se podia chamar de vida circumparisiense vem mudando
completamente há meio século. Onde passava a carruagem, passa uma
locomotiva; onde navegava a barca, navega o vapor; fala-se hoje em
Fécamp como então se falava de Saint-Cloud. Paris de 1862 é uma cidade
que tem a França como arrabalde.
Os quatro pares fizeram conscienciosamente todas as loucuras
campestres possíveis naquele tempo. Era o começo das férias, um quente e
límpido dia de verão. Na véspera, Favourite, a única que sabia escrever,
escreveu o seguinte a Tholomyès, em nome das quatro: “Quanto mais cedo
sairmos, melhor.”1 Por isso, levantaram-se às cinco horas da manhã.
Foram de carruagem para Saint-Cloud, viram a cascata seca e
exclamaram: “Deve ser muito lindo quando tem água!” Almoçaram no
Tête-Noire, onde Castaing ainda não havia passado, jogaram uma partida
de argolas no bosque do lago grande, subiram à lanterna de Diogène,
apostaram docinhos de amêndoa na roleta da ponte de Sèvres, colheram
flores em Puteaux, compraram flautas de madeira em Neuilly, em todos os
lugares comeram torta de maçã; estavam muito felizes.
As jovens tagarelavam e faziam barulho, como passarinhos que
escaparam da gaiola. Era um delírio. De vez em quando, davam tapinhas
nos rapazes. Matutina embriaguês da vida! Adoráveis anos! As asas das
libélulas vibram. Oh! Seja quem for, leitor, você se lembra? Já andou pelo
mato, desviando os galhos por causa da graciosa cabecinha que vem atrás
de você? Já escorregou em alguma ribanceira molhada pela chuva, rindo,
com a mulher amada segurando sua mão e gritando: “Ah! As minhas botas
novinhas, em que estado ficaram!”
Vamos logo dizer que esse alegre contratempo, um aguaceiro, faltou ao
encontro tão bem-humorado, embora Favourite, ao partir, tivesse dito em
tom magistral e maternal: Os caracóis estão passeando por aí, sinal de
chuva, crianças!
As quatro estavam muito bonitas. Um velho poeta clássico, já
renomado, que tinha sua Éléonore, cavaleiro de Labouïsse, andando nesse
dia pelas castanheiras de Saint-Cloud, exclamara ao vê-las passar às dez
horas da manhã: Tem uma a mais, referindo-se às Três Graças (divindades
greco-romanas). Favourite, a amante de Blachevelle, a que tinha vinte e
três anos, a velha, corria na frente por entre os grandes ramos verdes,
saltava os fossos, pulava as moitas e encabeçava aquela alegria com
entusiasmo de jovem fauna. Zéphine e Dhalia, que o acaso fizera belas, de
modo que juntas sobressaíam mais e se completavam, não se largavam,
mais por instinto de vaidade do que por amizade, e, encostadas uma à
outra, tinham pose de inglesas. Acabavam de aparecer os primeiros
keepsakes,2 a melancolia despontava para as mulheres, do mesmo modo
que mais tarde o byronismo para os homens, e os cabelos do sexo amável
começavam a usar-se soltos. Zéphine e Dhalia estavam de cachos.
Listolier e Fameuil, discutindo sobre seus professores, explicavam a
Fantine a diferença que havia entre Delvincourt e Blondeau. Blachevelle
parecia ter sido criado expressamente para levar debaixo do braço, aos
domingos, o xale de Favourite.
Tholomyès ia atrás, dominando o grupo. Era muito alegre, mas dava
para ver que tinha as rédeas; havia certa ditadura em sua jovialidade; seu
ornamento principal eram umas calças escuras bem largas, com presilhas
de cobre; trazia na mão uma enorme bengala que custara duzentos francos,
e, como permitia-se tudo, tinha na boca uma coisa estranha chamada
charuto. Como nada para ele era sagrado, fumava.
— Este Tholomyès é surpreendente! — diziam os outros com
veneração. — Que calças! Que energia!
Quanto a Fantine, era a própria alegria. Seus esplêndidos dentes
inquestionavelmente tinham recebido de Deus a função de sorrir. Preferia
trazer na mão, mais do que na cabeça, seu pequeno chapéu de palha com
longas fitas brancas. Seus espessos cabelos louros, propensos a flutuar e
facilmente desatar, o que a obrigava a prendê-los o tempo todo, pareciam
ter nascido para a fuga de Galateia3 por entre os salgueiros.
Seus lábios rosados tagarelavam com encanto. Os cantos da boca,
voluptuosamente salientes, como nas antigas carrancas de Erígone,
pareciam encorajar a audácia; mas seus longos cílios baixavam-se
discretamente como que para abafar a provocação dos lábios. Tudo o que
vestia tinha um algo que cantava e fulgurava. Usava um vestido de lã cor
de malva, botinhas amarronzadas, cujos cordões se cruzavam em X sobre a
fina meia branca, e essa espécie de spencer de musseline, invenção
marselhesa, cujo nome, canezou, corruptela de quinze août,4 pronunciado
à Canebière, significa bom tempo, calor e meio-dia. As outras três, menos
tímidas, como dissemos, trajavam vestidos decotados, o que no verão, por
baixo de chapéus cobertos de flores, é extremamente gracioso e
provocador; mas, ao lado desses trajes ousados, o canezou da loira
Fantine, com suas transparências, indiscrições e reticências, escondendo e
mostrando ao mesmo tempo, parecia uma provocadora descoberta da
decência, e o famoso tribunal do amor, presidido pela viscondessa de
Cette, de olhos verde-mar, talvez desse o prêmio de sedução àquele
canezou que concorria para a castidade. O mais ingênuo é às vezes o mais
sábio. Isso acontece.
Vista de frente, brilhante, e, de perfil, delicada, olhos azuis-escuros,
pálpebras grandes, pés pequenos e arqueados, pulsos e tornozelos
admiravelmente torneados, pele branca, mostrando algumas ramificações
azuladas das veias, faces infantis e viçosas, pescoço robusto como o de
Juno, nuca forte e flexível, ombros como que modelados por Couston,
tendo no centro uma voluptuosa cavidade visível através da musseline,
uma alegria melancólica, formas esculturais e delicadas, assim era
Fantine. Sob aqueles tecidos e fitas entrevia-se uma estátua e dentro dessa
estátua, uma alma.
Fantine era bela, sem ter muita consciência disso. Os raros pensadores,
misteriosos sacerdotes do belo, que confrontam silenciosamente todas as
coisas com a perfeição, entreveriam naquela jovem costureira, através da
transparência da graça parisiense, a antiga eufonia sagrada. Aquela filha
das sombras possuía nobreza de raça. Era bela em duas frentes: estilo e
ritmo. O estilo é a forma do ideal, o ritmo, seu movimento.
Dissemos que Fantine era a personificação da alegria; Fantine era
igualmente a personificação do pudor.
Para um observador que a estudasse atentamente, o que se desprendia
dela, através de toda a embriaguez da idade, da estação e do namoro, era
uma irresistível expressão de comedimento e modéstia. Ficava sempre um
tanto admirada. E a inocência dessa admiração é a nuance que separa
Psiquê de Vênus. Fantine tinha os longos, alvos e delgados dedos da vestal
que revolve as cinzas do fogo sagrado com um alfinete de ouro.
Embora, como em breve verão, ela nada tivesse recusado a Tholomyès,
seu rosto em repouso era soberanamente virginal; uma espécie de grave e
quase austera dignidade tomava subitamente conta dela em alguns
momentos; e não havia coisa mais singular e embaraçosa do que ver a
alegria repentinamente extinguir-se nela, dando lugar, sem transição, ao
recolhimento. Essa súbita gravidade, às vezes severamente acentuada,
parecia o desdém de uma deusa. Sua fronte, seu nariz e seu queixo
ofereciam aquele equilíbrio de linhas, diferente do equilíbrio de
proporções, do qual resulta a harmonia do rosto; no intervalo tão
característico que separa a base do nariz do lábio superior, tinha essa
imperceptível e graciosa curvinha, misterioso sinal da castidade que fez
Barberousse apaixonar-se por uma Diana encontrada nas escavações
d’Icône.
O amor é um delito; muito bem. Fantine era a inocência boiando sobre
o delito.

IV. THOLOMYÈS ESTÁ TÃO ALEGRE QUE CANTA


UMA CANÇÃO ESPANHOLA
Aquele dia foi, do começo ao fim, uma aurora. Toda a natureza parecia
repousar e sorrir. Os canteiros de Saint-Cloud exalavam perfumes; a brisa
do Sena agitava brandamente as folhas; os galhos gesticulavam ao vento;
as abelhas saqueavam os jasmins; as borboletas pousavam aos bandos nas
mil-folhas, trevos e aveias; no augusto parque do rei da França, via-se um
bando de vagabundos, os pássaros.
Os quatro alegres pares resplandeciam confundidos com o sol, os
campos, as flores e as árvores.
E, no meio dessa comunhão de paraíso, falando, cantando, correndo,
dançando, caçando borboletas, colhendo campainhas, molhando as meias
cor-de-rosa nas ervas, todas elas viçosas, loucas, sem maldade, recebiam,
de quando em quando, beijos de todos, exceto Fantine, encerrada em sua
vaga resistência sonhadora e arisca, porque amava.
— Você está sempre esquisita! — dizia-lhe Favourite.
Assim é a alegria. A passagem desses casais felizes é um profundo
apelo à vida e à natureza, fazendo brotar de tudo a carícia e a luz. Houve
uma vez uma fada que fez os prados e as árvores expressamente para os
enamorados. Daí essa eterna escola campestre de amantes, que sempre
recomeça, e que há de durar enquanto houver campos e estudantes. Daí a
popularidade da primavera entre os pensadores. O patrício e o plebeu, o
duque, o par e o magistrado, as pessoas da corte e as da cidade, como se
dizia antigamente, são todos súditos dessa fada. Risos, procuras, uma
claridade de apoteose iluminando a atmosfera; que transfiguração a do
amor! Os escreventes de cartório são deuses. E os gritinhos, as
perseguições na relva, os abraços furtados, a gíria que se torna melodiosa,
as adorações que se mostram no modo de pronunciar uma sílaba, essas
cerejas arrancadas de uma boca à outra, tudo isso flameja e passa nas
glórias celestes. As jovens formosas fazem um doce desperdício de si
mesmas. Pensam que isso jamais acabará. Os filósofos, os poetas, os
pintores contemplam esses êxtases sem saber o que fazer com eles, tal é
seu deslumbramento. “A partida para Cythère!”, exclama Wateau; Lancret,
pintor da plebe, contempla seus burgueses envoltos em azul; Diderot
estende os braços a todos esses amores; e d’Urfé mistura-lhes os druidas.
Depois do almoço, os quatro casais foram ver, no que então se
chamava canteiro do rei, uma planta havia pouco chegada da Índia, cujo
nome nos foge agora, e que, naquela ocasião, atraía Paris inteira a Saint-
Cloud: era um estranho e gracioso arbusto de haste elevada, cujos
inumeráveis ramos, delgados como barbantes, sem folhas, eram cobertos
por um milhão de pequeninas rosas brancas, o que dava ao arbusto o
aspecto de uma cabeleira pontilhada de flores. Havia sempre uma grande
multidão admirando-o.
Visto o arbusto, Tholomyès exclamou: “Pago os cavalos!”, e,
combinado o preço com o dono dos animais, estavam de volta por Vanves
e Issy. Em Issy, um incidente. O parque, propriedade nacional, naquele
tempo em posse do fornecedor Bourguin, estava casualmente aberto.
Entraram, visitaram o anacoreta autômato em sua gruta, experimentaram
os pequenos efeitos misteriosos da famosa sala dos espelhos, lasciva
armadilha digna de um sátiro que se tornou milionário, ou de Turcaret
metamorfoseado em Príapo. Empurraram com energia o grande balanço
preso aos dois castanheiros celebrados pelo abade de Bernis. Enquanto
balançava cada uma das jovens, o que fazia entre risos, esvoaçar suas
saias, Tholomyès, meio espanhol, pois Toulouse (na França) é prima de
Tolosa (na Espanha), cantava uma melancólica e antiga canção gallega,
provavelmente inspirada por alguma linda moça balançando com força
sobre uma corda entre duas árvores:

Soy de Badajoz.
Amor me llama.
Toda mi alma
Es en mis ojos
Porque enseñas
A tus piernas.

Sou de Badajoz.
O amor me chama.
Toda a minh’alma
Está em meus olhos
Porque me mostras
Tuas pernas.

Só Fantine não quis balançar-se.


— Não gosto que digam coisas desse tipo! — resmungou Favourite,
meio zangada.
Após deixarem os cavalos, novo prazer: atravessaram o Sena de barco,
e, de Passy, foram a pé até l’Étoile. Como se recordam, eles estavam a pé
desde as cinco horas da manhã. Mas e daí? Não existe cansaço aos
domingos; no domingo, o cansaço não trabalha, dizia Favourite. Por volta
das três horas, os quatro casais, muito felizes, despencavam pela
montanha-russa, interessante construção que então ocupava as alturas de
Beaujon, e cuja silhueta tortuosa se avistava por cima das árvores dos
Champs-Elysées.
De vez em quando, Favourite exclamava:
— E a surpresa? Quero a surpresa!
— Tenham paciência — respondia Tholomyès.

V. NO RESTAURANTE BOMBARDA
Acabado o divertimento da montanha-russa, pensavam no jantar; o
jubiloso grupo, já um tanto cansado, parou no Bombarda, filial
estabelecida no Champs-Elysées do célebre restaurante Bombarda, cuja
tabuleta se via, naquele tempo, na rua de Rivoli, próximo à travessa
Delorme.
Uma sala grande, mas feia, com alcova e cama ao fundo (em vista da
grande afluência à casa nos domingos, tiveram de contentar-se com este
aposento), com duas janelas, de onde, por entre os olmos, podia-se
contemplar o cais e o rio; um magnífico sol de agosto entrava pelas
janelas; duas mesas: em uma, uma enorme pilha de buquês misturados
com chapéus de homens e de mulheres, na outra, os quatro casais sentados
em volta de um engraçado amontoado de pratos, travessas, copos e
garrafas; canjirões de cerveja e frascos de vinho; pouca ordem sobre a
mesa, alguma desordem por baixo:

Ils faisaient sous la table


Un bruit, un trique-trac de pieds épouvantable

Faziam sob a mesa


Um barulho, um tric-trac insuportável com os pés,

escreveu Molière.
Era onde estavam, lá pelas quatro e meia da tarde, no passeio que
começara às cinco da manhã. O sol já declinava, o apetite se aplacava.
O Champs-Elysées, cheios de sol e de gente, cobriam-se de luz e
poeira, duas coisas de que se compõe a glória. Os cavalos de Marly,
mármores relinchadores, empinavam-se no meio de uma nuvem dourada.
Os carros iam e vinham. Um esquadrão magnífico de guardas reais, clarins
à frente, descia a avenida Neuilly; a bandeira branca, levemente rosada
pelo reflexo do sol poente, esvoaçava sobre a cúpula das Tulherias. A
Place de la Concorde, novamente chamada Place Louis XV, estava lotada
de gente satisfeita. Muitos traziam a flor-de-lis de prata presa à fita branca
ondeada, que em 1817 ainda não tinha desaparecido inteiramente das
golas. Aqui e ali, no meio dos passantes que formavam círculos e
aplaudiam, rodas de moças cantavam uma canção monarquista, então
célebre, destinada a fulminar os Cem Dias, cujo estribilho era assim:

Rendez-nous notre père de Gand


Rendez-nous notre père.

Mandem-nos de volta nosso pai, de Gand


Mandem-nos nosso pai de volta.

Grupos de pessoas dos arrabaldes, em trajes domingueiros, alguns até


com suas flores-de-lis ao feitio dos burgueses, espalhados pelo grande
canteiro e pelo canteiro Marigny, jogavam argolas e giravam nos cavalos
de madeira; outros bebiam; alguns outros, aprendizes gráficos, usavam
bonés de papel; ouvia-se muita risada. Todos estavam muito alegres. Era
um tempo de incontestável paz e de profunda segurança realista; era a
época em que um relatório confidencial e especial do chefe de polícia,
Anglès, ao rei, a respeito dos bairros afastados de Paris, terminava por
estas linhas: “Tudo bem considerado, senhor, não há nada a temer por
parte desta gente. São tranquilos e indolentes como gatos. O populacho das
províncias é inquieto, o de Paris não. São todos pequenos, senhor, e seriam
necessários dois deles para fazer um de vossos granadeiros. Por parte do
povo da capital, nada há a recear. É notável que a estatura dessa gente
tenha diminuído em cinquenta anos; o povo dos arrabaldes de Paris está
menor do que antes da Revolução. Não são perigosos. Em suma, é gente
inofensiva”.
Os chefes de polícia de Paris não acreditavam ser possível um gato
transformar-se em leão; todavia, acontece; esse é o milagre do povo de
Paris. O gato, aliás tão desprezado pelo conde Anglès, tinha a estima das
repúblicas antigas, encarnando, a seu ver, a liberdade; e, como que para
servir de pendente à Minerva sem braços do Pireu, havia, na praça pública
de Corinto, um colossal gato de bronze.
A ingênua polícia da Restauração via em demasia “o lado bom” do
povo de Paris. Não é gente tão inofensiva como se imagina. O parisiense
está para o francês como o ateniense estava para o grego: ninguém dorme
mais que ele, ninguém é mais francamente frívolo e preguiçoso que ele,
ninguém parece esquecer mais que ele. Mas que ninguém se fie nas
aparências: ele é propenso a todo tipo de indolência, mas quando visa a
glória, é de admirável fúria. Dê-lhe uma lança e ele fará o 10 de Agosto;
dê-lhe uma espingarda e terá Austerlitz. Foi o ponto de apoio de Napoleão
e a defesa de Danton. Trata-se da pátria? Ele se apresenta. Trata-se da
liberdade? Levanta barricadas. Cuidado! Seus cabelos cheios de cólera
tornam-se épicos; sua blusa transforma-se em clâmide. Cuidado! Da
primeira rua Greneta — símbolo de resistência — que vier, fará uma
forca. Ao chegar a hora, o parisiense dos arredores cresce, o homem
pequeno se eleva, sua expressão parece terrível, sua respiração torna-se
tempestade, e do seu débil peito saem rajadas capazes de abalar as dobras
dos Alpes. É graças a esses parisienses, juntamente com os exércitos, que
a Revolução conquista a Europa. Sua alegria é cantar. Faça uma canção
proporcional à sua natureza e verá! Enquanto tiver como refrão apenas a
Carmagnole, só conseguirá derrubar Luís XVI; faça-o cantar a
Marselhesa, e ele libertará o mundo.
Escrita essa nota à margem do relatório Anglès, retornemos aos nossos
quatro casais.
Como dizíamos, o jantar terminava.

VI. CAPÍTULO EM QUE TODOS SE ADORAM


Conversas de mesa, conversas de amor; tão impalpáveis umas como as
outras; as conversas de amor são nuvens, as conversas de mesa são
fumaça.
Fameuil e Dhalia cantarolavam; Tholomyès bebia, Zéphine ria, Fantine
sorria. Listolier soprava uma flauta de madeira comprada em Saint-Cloud.
Favourite olhava ternamente para Blachevelle e dizia:
— Blachevelle, eu te adoro!
Isso levou a uma pergunta por parte de Blachevelle:
— O que você faria, Favourite, se eu deixasse de amá-la?
— Eu? — exclamou Favourite.—Não diga isso nem de brincadeira! Se
deixasse de me amar, pularia em cima de você, o arranharia, o agarraria,
atiraria água e mandaria prendê-lo!
Blachevelle sorriu com a voluptuosa fatuidade de quem se vê
acariciado em seu amor-próprio. Favourite prosseguiu:
— É, chamaria a polícia! Ah! Eu me constrangeria! Canalha!
Blachevelle, extasiado, recostou-se na cadeira e fechou os olhos.
Dhalia, sem deixar de comer, disse em voz baixa para Favourite, no
meio do barulho que todos faziam:
— Você idolatra o seu Blachevelle, não?
— Eu? Eu o detesto! — respondeu Favourite no mesmo tom, pegando
no garfo. — É um sovina! Eu gosto de um rapaz que mora em frente à
minha casa. Ele é muito bonito. Conhece? Dá impressão de ser um artista.
Eu gosto de artistas. Assim que ele chega, a mãe dele diz: “Ai, meu Deus!
Meu sossego acabou. Já vai começar a gritar. Meu filho, você me dá dor de
cabeça”. Porque ele anda pela casa, vai para o sótão, vai para todo canto,
vai para o mais alto que pode, e canta, e declama, nem sei o que, que dá
para ouvir lá embaixo! Já ganha vinte soldos por dia com um advogado,
para escrever sentenças. É filho de um antigo cantor de Saint-Jacques-du-
Haut-Pas. Ah! Ele sim! Gosta tanto de mim que um dia, vendo-me fazer a
massa dos bolinhos, disse: Menina, faça bolinhos das suas luvas, e eu os
comerei. Só os artistas é que sabem dizer essas coisas. Ah! Como é bonito!
Estou ficando louca por ele! Assim mesmo eu digo a Blachevelle que o
adoro. Que mentira, hein? Como eu sei mentir!
Após uma pausa, Favourite continuou:
— Dhalia, sabe, ando triste. Só faz chover o verão inteiro, o vento me
irrita, não para de soprar, Blachevelle é um sovina, quando muito só se
encontram ervilhas no mercado, a gente não sabe o que comer, sinto o
spleen, como dizem os ingleses, a manteiga está tão cara! E ainda por
cima viemos jantar em um lugar onde tem uma cama; isso me dá desgosto
de viver!

VII. SABEDORIA DE THOLOMYÈS


Assim, enquanto alguns cantavam, outros conversavam
tumultuadamente, tudo ao mesmo tempo; aquilo não passava de uma
barulheira. Tholomyès então interveio:
— Vamos parar de falar à toa e depressa demais. Se quisermos ser
brilhantes, vamos pensar. Improvisação demais esvazia tolamente o
espírito. Cerveja que escorre não junta espuma. Senhores, nada de pressa.
Vamos juntar majestade à comilança, vamos comer com recolhimento e
banquetear vagarosamente. Sem nos apressar. Vejam a primavera; se
adiantar, está perdida, irá congelar. O excesso de zelo põe a perder os
pessegueiros e damasqueiros; o excesso de zelo tira a graça e o prazer de
bons jantares. Nada de zelo, senhores. Grimod de La Reynière é da mesma
opinião de Talleyrand.
Uma surda rebelião se fez entre o grupo.
— Tholomyès, deixe a gente em paz! — disse Blachevelle.
— Abaixo o tirano! — disse Fameuil.
— Bombarda, Bombance e Bamboche! — exclamou Listolier.
— O domingo existe! — replicou Fameuil.
— Estamos sóbrios! — acrescentou Listolier.
— Tholomyès, contemple minha calma — atalhou Blachevelle.
— Você é o marquês dela — respondeu Tholomyès.
Esse medíocre jogo de palavras fez o efeito de uma pedra atirada em
um charco: calaram-se todas as rãs. É que o marquês de Montcalm era,
então, um célebre realista.5
— Amigos — exclamou Tholomyès no tom de quem reassumiu a
autoridade perdida —, acalmem-se. Não é preciso tanta admiração por um
trocadilho caído das nuvens. Nem tudo o que vem desse jeito é digno de
entusiasmo e respeito. O trocadilho é a imundície que se solta do espírito.
A bobagem cai em qualquer lugar; e o espírito, depois que uma asneira é
dita, volatiliza-se. A nódoa esbranquiçada que se estende sobre o rochedo
não impede o condor de pairar. Longe de mim o insulto ao trocadilho!
Venero-o na proporção de seus méritos, nada mais. Tudo o que há de mais
augusto, sublime e encantador na humanidade, e talvez além dela, já fez
jogo de palavras. Jesus Cristo fez um trocadilho a respeito de São Pedro;
Moisés, a respeito de Isaac; Ésquilo, a respeito de Polínice; Cleópatra, a
respeito de Otávio. E notem que o trocadilho de Cleópatra precedeu a
batalha de Actium, e que, sem ele, ninguém se lembraria da cidade de
Turim, nome grego que quer dizer concha. Dito isto, volto à minha
exortação. Meus irmãos, repito, nada de zelo, nada de balbúrdia, nada de
excessos, nem mesmo com alfinetadas, gracejos, alegrias e trocadilhos.
Escutem-me, que eu tenho a prudência de Anfiaraus6 e a calva de César.
Tudo tem limite, até os gracejos. Est modus in rebus.7 É preciso ter
limites, até para os jantares. Gostam de torta de maçã, senhoras? Mas não
abusem. Até para as tortas deve haver bom senso e arte. A gulodice castiga
o glutão — Gula punit Gulax. A indigestão foi incumbida por Deus de
moralizar os estômagos. E, guardem isso, cada uma de nossas paixões,
inclusive o amor, tem um estômago que não devemos encher demais. Em
tudo deve-se escrever, a tempo, a palavra finis; devemos nos conter;
quando for urgente, colocar ferrolhos no apetite, guardar a fantasia e
colocarmos a nós mesmos no devido lugar. Sábio é aquele que, em dado
momento, sabe conduzir-se a sua própria prisão. Tenham ao menos alguma
confiança em mim. Porque eu fiz um pouco de Direito, segundo dizem
meus exames, porque sei a diferença que existe entre questão movida e
questão pendente, porque defendi uma tese em latim sobre o modo como
aplicavam a tortura em Roma no tempo em que Munatius Demens, juíz de
instrução em Roma, era questor do parricida Nero, porque vou me tornar
doutor, não quer dizer necessariamente, ao que parece, que eu seja um
imbecil. Recomendo-lhes moderação em seus desejos. E tão certo como eu
chamar-me Félix Tholomyès, é que sei falar. Feliz daquele que, chegada a
hora, toma uma resolução heróica, abdicando, como Silas ou Orígenes!
Favourite escutava com profunda atenção.
— Félix! — disse ela. — Que bela palavra! Adoro esse nome. É do
latim. Quer dizer Próspero.
Tholomyès prosseguiu:
— Quirites, gentlemen, caballeros, meus amigos! Querem deixar de
sentir qualquer entusiasmo, não sentir falta de leito nupcial e enfrentar o
amor? Nada mais simples. Eis a receita: limonada, exercício em excesso,
trabalho forçado, extenuar-se, carregar pedras, não dormir, passar em
claro, tomar bebidas nitrosas e chás de nenúfares, saborear emulsões de
papoulas e agnus-castos; apimentem tudo isso com uma dieta rigorosa,
morram de fome, e juntem ainda banhos frios, cintos de ervas, a aplicação
de uma chapa de chumbo, loções com licor de Saturne e fricções de água e
vinagre.
— Prefiro uma mulher! — disse Listolier.
— Uma mulher! — continuou Tholomyès. — Desconfiem delas! Pobre
de quem se entrega ao volúvel coração de uma mulher! A mulher é pérfida
e tortuosa. Detesta a serpente por inveja de ofício. A serpente é a
concorrente do seu negócio.
— Tholomyès, você está bêbado! — bradou Blachevelle.
— Que bêbado! — disse Tholomyès.
— Então, alegria! — replicou Blachevelle.
— Está bem! — respondeu Tholomyès.
E, enchendo seu copo, levantou-se:
— Glória ao vinho! Nunc te, Bacche, canam!8 Perdão, meninas; é
espanhol. E a prova, señoras, ei-la: tal povo, tal vasilha. A arroba de
Castela contém dezesseis litros, o cântaro de Alicante, doze, o almude das
Canárias, vinte e cinco, o cuartin das Baleares, vinte e seis, a bota do czar
Pedro, trinta. Viva o czar, que era grande, e viva sua bota, que era maior
ainda! Senhoras, um conselho de amigo: enganem-se com seus parceiros
se isso lhes convém. Errar é próprio do amor. Os namoricos não devem
servir para que se agachem e embruteçam como uma criada inglesa com
calos nos joelhos. A doce namorada não foi feita para isso, mas para errar
alegremente. Já disseram: l’erreur est humaine; eu digo: terreur est
amoureuse.9 Senhoras, eu as idolatro, todas! Ó Zéphine, ó Joséphine, cara
mais que amarrotada, seria encantadora, se não andasse de esguelha!
Parece ter um formoso rosto em cima do qual alguém se sentou por
descuido. Quanto a Favourite, ó ninfas e musas! Um dia em que
Blachevelle passava pelo riacho da rua Guérin-Boisseau, viu uma bela
moça, de meias brancas muito justas, que mostrava as pernas. Agradou-lhe
esse prólogo e eis Blachevelle enamorado. A escolhida de seu coração era
Favourite. Ó Favourite, seus lábios são jônios! Havia um pintor grego
chamado Euphorion, conhecido como pintor de lábios. Só esse grego seria
digno de pintar sua boca! Antes de você, não existia criatura digna deste
nome! Foi feita para aceitar a maçã, como Vênus, ou para comê-la, como
Eva. A beleza começa em você! Falei agora em Eva; foi você quem a
criou. Merece a patente de invenção da mulher bonita. Agora passo da
poesia à prosa. Há pouco você falava do meu nome. Aquilo me enterneceu;
mas quem quer que sejamos, desconfiemos dos nomes, eles podem
enganar. Eu me chamo Félix e não sou feliz. As palavras são mentirosas.
Não aceitemos cegamente as indicações que elas nos dão. Seria um erro
escrever para Liège pedindo rolhas, ou para Pau pedindo luvas. Miss
Dhalia, em seu lugar, me chamaria Rosa. A flor deve cheirar bem e a
mulher deve ser espirituosa. Sobre Fantine, não falarei nada; é uma
sonhadora, pensativa e sensitiva; é um fantasma que tem forma de ninfa e
pudor de freira, que vive extraviada como costureira, mas se refugia nas
ilusões, que canta e reza, que olha para o espaço sem bem saber o que vê
nem o que faz, e que, com os olhos no céu, vagueia por um jardim onde há
mais pássaros do que realmente existem. Ó Fantine, saiba de uma coisa:
eu, Tholomyès, sou uma ilusão; mas ela nem me escuta, a loira filha das
quimeras! De resto, tudo nela é frescor, suavidade, juventude, doce
claridade matinal. Ó Fantine, moça digna de chamar-se Margarida ou
Pérola, você é uma mulher do mais belo oriente. Outro conselho, minhas
senhoras: não se casem. O casamento é um enxerto, que ora pega, ora não
pega; evitem semelhante risco. Mas o que estou dizendo? Estou falando à
toa. As moças são incuráveis quanto ao casamento; e quanto a nós, os
sábios, nada que dissermos impedirá que essas fazedoras de coletes e
botinhas sonhem com maridos cobertos de diamantes! Que seja; mas
reparem bem, meninas; vocês comem açúcar demais. Vocês só têm um
defeito, comer doces. Ó sexo roedor, seus dentinhos brancos adoram o
açúcar! Ouçam bem: o açúcar é um sal. Todo sal é secante. O açúcar é o
mais secante de todos os sais. Suga através das veias os líquidos do
sangue; daí a coagulação, em seguida, a solidificação do sangue; as
tuberculoses no pulmão; depois, a morte. E por isso o diabetes confina a
tísica. Portanto, não mastiguem açúcar e viverão mais! Agora dirijo–me
aos homens. Senhores, façam conquistas. Furtem as amantes uns dos
outros, sem remorsos! Revezem-se. No amor não há amigos! Onde houver
uma mulher bonita, haverá hostilidades! Nada de quartel; guerra e mais
guerra! Uma mulher bonita é um casus belli — motivo de guerra —, uma
mulher bonita é um flagrante delito. Todas as invasões da história foram
causadas por saias. A mulher é o direito do homem. Rômulo raptou as
sabinas, Guilherme as saxônias, César as romanas. O homem que não é
amado paira como abutre sobre as amantes dos outros. Quanto a mim, a
todos os infelizes que são viúvos, lanço a sublime proclamação de
Bonaparte ao exército da Itália: “Soldados, falta-lhes tudo. O inimigo tem
tudo que lhes falta”.
Tholomyès interrompeu-se.
— Respire, Tholomyès — disse Blachevelle.
Ao mesmo tempo, ajudado por Listolier e Fameuil, Blachevelle
cantou, em tom de lamento, uma dessas canções de improviso, compostas
pelas primeiras palavras que vêm à cabeça, ricamente rimadas ou sem
rima alguma, vazias de sentido como os gestos das árvores e o sussurro do
vento, que nascem da fumaça dos cachimbos e com ela se dissipam. Eis a
canção com que o grupo respondeu à arenga de Tholomyès:

Les pères dindons donnèrent


De l’argent à un agent,
Pour que mons Clermont Tonnerre
Fût fait Pape à la Saint-Jean.
Mais Clermont ne put pas être
Fait Pape, n’étant pas Prêtre;
Alors leur agent rageant
Leur rapporta leur argent.

Os padres patetas deram


Dinheiro a um agente,
Para que Monsenhor Clermont Tonnerre
Fosse eleito papa na noite de São João.
Mas Clermont não pôde ser
Feito papa, não sendo padre;
Então seu agente enfurecido
Devolveu-lhes o dinheiro.

Mas isso não conseguiu acalmar as improvisações de Tholomyès. Ele


esvaziou o copo, tornou a enchê-lo e continuou:
— Abaixo a sabedoria! Esqueçam tudo o que eu disse. Não sejamos
nem graves, nem prudentes, nem pretensiosos. Faço um brinde à alegria;
sejamos alegres! Completemos nosso curso de Direito com loucuras e
comida. Indigestão e digesto!10 Que Justiniano seja o varão e Ripaille a
fêmea! Alegria profunda! Viva, ó criação! O mundo é um grande
diamante. Estou feliz. Os pássaros são admiráveis. Que festa por toda
parte! O rouxinol é um Elleviou grátis.11 Verão, eu o saúdo! Ó
Luxemburgo! Ó Geórgicas da rua Madame e da alameda de
l’Observatoire! Ó soldados sonhadores! Ó graciosas criadinhas que,
enquanto tomam conta das crianças, divertem-se preparando outras! Os
pampas da América me agradariam se eu não tivesse as arcadas do Odéon.
Minha alma esvoaça pelas savanas e florestas virgens! Tudo é belo! As
moscas zumbem na luz. O sol espirrou um beija-flor. Abrace-me, Fantine!
Enganou-se, e abraçou Favourite.

VIII. MORTE DE UM CAVALO


— Come-se melhor no Édon do que no Bombarda — exclamou
Zéphine.
— Prefiro o Bombarda — disse Blachevelle. — Há mais luxo. É mais
asiático. Vejam a sala de baixo, tem espelhos pelas paredes.
— Eu prefiro o que vem no prato — disse Favourite.
Blachevelle insistiu:
— Olhem as facas. No Bombarda, os cabos são de prata, no Édon, são
de osso. Ora, a prata é mais preciosa do que o osso.
— Exceto para os que têm queixo de prata! — observou Tholomyès,
que, naquele instante, olhava para a cúpula de Invalides, visível das
janelas do Bombarda.
Seguiu-se uma pausa.
— Tholomyès — disse Fameuil —, há pouco, eu e Listolier tivemos
uma discussão.
— Discutir é bom — respondeu Tholomyès —, mas uma brigazinha é
melhor.
— Discutíamos filosofia.
— E então?
— Quem você prefere: Descartes ou Spinoza?
— Désaugiers — disse Tholomyès.
Proferida essa sentença, bebeu e continuou:
— Consinto em viver. Nem tudo está acabado sobre a Terra, pois ainda
se pode fazer extravagâncias! Rendo graças aos deuses imortais! Mente-
se, mas ri-se. Afirma-se, mas duvida-se. O inesperado jorra do silogismo.
É lindo! Ainda há neste mundo homens que sabem abrir e fechar
alegremente a caixinha de surpresas do paradoxo. Saibam, senhoras, que
isto que estão bebendo com ar tranquilo é vinho da Madeira, da colheita do
Curral das Freiras, que fica a trezentas e dezessete toesas acima do nível
do mar! Atenção quando beberem! Trezentas e dezessete toesas! E o
senhor Bombarda, o excelente dono desta casa, lhes dá trezentas e
dezessete toesas por quatro francos e cinquenta cêntimos!
Fameuil interrompeu-o outra vez:
— Ó Tholomyès, suas opiniões têm força de lei; qual é seu autor
favorito?
— Ber…
— Quin?
— Não. Choux.
E Tholomyès prosseguiu:
— Honra a Bombarda! Ele se igualaria a Munophis d’Éléphanta se
pudesse colher-me uma almeia, e a Thygélion de Chéronée se conseguisse
trazer-me uma hetaira; pois, ó minhas senhoras, na Grécia e no Egito havia
Bombardas. É Apulée quem nos conta isso. Ai, ai, sempre as mesmas
coisas e nada de novo! Nada inédito na criação do Criador! Nil sub sole
novum — nada de novo sob o sol —, diz Salomão; amor omnibus idem —
o amor é igual para todos —, diz Virgílio; e Carabine entra com Carabin
na barca de Saint-Cloud, assim como Aspásia embarcava com Péricles na
armada de Samos. Uma última palavra. Sabem quem era Aspásia, minhas
senhoras? Embora tivesse vivido em um tempo em que as mulheres ainda
não tinham alma, era uma alma; uma alma com nuances de rosa e púrpura,
mais abrasadora que o fogo, mais fresca que a aurora. Aspásia era uma
criatura em que os dois extremos da mulher se tocavam: era a deusa
prostituta. Sócrates mais Manon Lescaut. Aspásia foi criada para o caso de
Prometeu precisar de uma prostituta.
Tholomyès, empolgado, dificilmente pararia, se um dos cavalos não
tivesse caído bem naquele momento, enquanto passava pelo cais. O
mesmo choque fez parar o carro e o orador. Era uma égua de Beauce,
magra, velha, digna de um équarrisseur,12 puxando uma charrete muito
pesada. Chegando em frente ao Bombarda, o animal, cansado e extenuado,
recusou-se a ir mais adiante. Esse incidente fez juntar muita gente. Mal o
charreteiro, zangado e praguejando, teve tempo de dizer, com a energia
conveniente, a palavra sacramental arre! reforçada por uma implacável
chicotada, o animal tombou para não mais se erguer.
Ouvindo o tumulto dos transeuntes, os alegres ouvintes de Tholomyès
voltaram a cabeça, e ele aproveitou o ensejo para fechar seu discurso com
a seguinte estrofe filosófica:

Elle était de ce monde où coucous et carrosses


Ont le même destin,
Et, rosse, elle a vécu ce que vivent les rosses,
L’espace d’un: mâtin!

Ela era deste mundo onde pássaros e carroças


Têm o mesmo destino,
E, jumenta, ela viveu o que vivem os jumentos,
O tempo de um: arre!

— Pobre cavalo! — suspirou Fantine.


E Dhalia:
— Lá vem Fantine se lamentar pelos cavalos! Como pode ser tão boba
assim!
No mesmo momento, Favourite cruzou os braços, inclinou a cabeça
para trás e disse, encarando resolutamente Tholomyès:
— É mesmo! E a surpresa?
—Justamente! Chegou a hora — respondeu Tholomyès. — Senhores, é
hora de surpreender estas damas. Minhas senhoras, esperem um instante
por nós.
— Começa com um beijo — disse Blachevelle.
— Na testa — acrescentou Tholomyès.
Cada um, com toda a solenidade, deu um beijo na fronte de sua
amante; depois foram para a porta, os quatro, em fila, o indicador sobre os
lábios.
— Já está engraçado — disse Favourite, batendo palmas enquanto eles
saíam.
— Não demorem — murmurou Fantine. — Estamos esperando.

IX. ALEGRE FIM DA ALEGRIA


Ao ficarem sós, as jovens apoiaram-se, duas a duas, no parapeito das
janelas, curvando-se e inclinando a cabeça para falarem umas com as
outras. Viram os rapazes saindo do Bombarda de braços dados; eles
voltaram-se, rindo, fizeram-lhes sinais e desapareceram no meio da
empoeirada multidão que, semanalmente, invade o Champs-Elysées.
— Não demorem! — gritou-lhes Fantine.
— Que será que eles vão nos trazer? — disse Zéphine.
— Com certeza será alguma coisa bonita — disse Dhalia.
— Eu quero que seja algo de ouro! — retomou Favourite.
Logo distraíram-se com a agitação da margem do rio, que avistavam
por entre os galhos das árvores, e que muito as divertia. Era a hora da
saída do correio e das diligências. Quase todas as linhas de transportes do
sul e do oeste passavam então pelo Champs-Elysées. A maior parte delas
seguia pelo cais e saía pela barreira de Passy. De minuto em minuto,
alguma enorme carruagem pintada de preto e amarelo, pesadamente
carregada, estrepitosamente puxada, disforme pelo peso de malas, baús e
trouxas, cheia de cabeças que logo desapareciam, triturando o calçamento,
transformando o piso em tijolos, precipitava-se no meio da multidão, com
mais faíscas que uma forja, levantando, com ar de fúria, uma nuvem de pó.
Essa balbúrdia causava imenso prazer às jovens.
Favourite exclamava:
— Que barulheira! Parece que tem um monte de correntes voando!
Aconteceu que um dos carros que mal ser distinguiam por entre os
olmos parou um instante e partiu outra vez a galope. Isso deixou Fantine
admirada.
— Interessante! — disse ela. — Eu pensava que a diligência nunca
parava!
Favourite deu de ombros.
— Essa Fantine é engraçada, acabo de vê-la como uma curiosidade!
Espanta-se com as coisas mais simples! Imagine: sou um viajante, digo à
diligência: vou andando, pegue-me quando passar pelo cais. A diligência
me vê, para e eu entro. É assim todo dia. Você não conhece mesmo a vida,
minha amiga.
Dessa forma decorreu algum tempo. De repente, Favourite fez o
movimento de alguém que acorda:
— E então, e a surpresa?
— É mesmo — disse Dhalia —, a famosa surpresa?
— Estão demorando bastante! — disse Fantine.
Mal Fantine acabava de soltar esse suspiro, o garçom que havia
servido o jantar entrou. Tinha na mão algo que parecia uma carta.
— O que é isso? — perguntou Favourite.
— É um papel que aqueles senhores deixaram para as senhoras —
respondeu o garçom.
— Por que não o trouxe logo?
— Porque os senhores — replicou o garçom — deram-me ordem para
trazê-lo só depois de uma hora.
Favourite arrancou o papel das mãos dele. Era efetivamente uma carta.
— Vamos ver — disse ela. — Não tem endereço, mas eis o que está
escrito:

Esta é a surpresa.

Ela abriu rapidamente a carta e leu (Favourite sabia ler):

“Ó nossas amantes!
Saibam que temos pais. Decerto não conhecem isso muito bem. São chamados de pai e
mãe no Código Civil, pueril e honesto. Ora, esses pais reclamam, esses velhinhos querem
nos ver, essas excelentes criaturas chamam-nos de filhos pródigos, querem que retornemos,
prometem nos oferecer boa comida. E, como somos virtuosos, lhes obedecemos. Quando
estiverem lendo isto, cinco fogosos cavalos nos transportarão ao seio de nossos papais e
mamães. Leventamos acampamento, como diz Bossuet. Vamos embora, já fomos. Fugimos
nos braços de Lafitte e nas asas de Caillard. A diligência de Toulouse arranca-nos do
abismo, e o abismo são vocês, nossas pequenas encantadoras! Voltamos à sociedade, ao
dever e à ordem, a galope, à razão de três léguas por hora. Interessa à pátria que sejamos,
como todo o mundo, prefeitos, pais de família, guardas campestres e conselheiros de Estado.
Venerem-nos, porque nos sacrificamos. Chorem-nos rapidamente e substituam-nos depressa.
Se esta carta as dilacera, façam-lhe o mesmo! Adeus. Durante dois anos foram felizes
conosco. Não nos guardem rancor.

Assinado: Blachevelle, Fameuil, Listolier, Félix Tholomyès

P. S. — O jantar está pago”.

As quatro jovens entreolharam-se.


Favourite foi a primeira a romper o silêncio:
— E então! Foi uma boa peça — exclamou ela.
— Foi muito engraçado — disse Zéphine.
— Deve ter sido Blachevelle quem teve essa ideia — disse Favourite.
— Isso me torna apaixonada por ele. É só ir embora, logo é amado. Essa é
a história!
— Não — disse Dhalia. — Foi ideia de Tholomyès. Dá para
reconhecer.
— Nesse caso — replicou Favourite —, morte a Blachevelle; e viva
Tholomyès!
— Viva Tholomyès! — exclamaram Dhalia e Zéphine.
E desataram a rir. Fantine riu como as outras.
Uma hora depois, porém, ao entrar em seu quarto, chorou. Como
dissemos, este era seu primeiro amor; dera-se a Tholomyès como a um
marido, e a pobre moça tinha uma criança.

__________________________
1“C’est un bonne heure de sortir de bonheur”; esta frase original, escrita erradamente por
Favourite, encerra um jogo de palavras que não se encontra na tradução. De bonne heure, bem
cedo; bonheur, felicidade, produziria corretamente a frase “C’est un bonheur de sortir de bonne
heure”.
2 Livros ilustrados, contendo extratos sentimentais escolhidos.
3 Referência a uma passagem de Virgílio.
4 Quinze août — quinze de agosto, mês de verão no hemisfério norte, justificando bom tempo
e calor.
5 Jogo de palavras que se faz, em francês, pela semelhante pronúncia de “minha calma” —
mon calme e o nome do marquês — Montcalm.
6 Adivinho da Corte de Argos, muito conhecido por sua coragem e prudência.
7 “É preciso ter medida para todas as coisas” — referência a Horácio, Sátiras.
8 “E agora é a você, Baco, que vou cantar” — Virgílio, Geórgicas.
9 “O erro é humano; terror está apaixonado”. O autor joga com palavras de sons semelhantes,
erreur/terreur, e que, em francês, são do gênero feminino.
10 Digesto — código promulgado pelo imperador romano Justiniano.
11 François Elleviou (1769-1842), renomado cantor de óperas, muito apreciado.
12 Équarrisseur, espécie de “açougueiro” que abate animais impróprios ao consumo para
tirar-lhes o que ainda é aproveitável.
LIVRO IV
CONFIAR É, ÀS VEZES, ENTREGAR

I. UMA MÃE ENCONTRA OUTRA


HAVIA, NO PRIMEIRO quarto deste século, em Montfermeil, perto de
Paris, uma espécie de taverna que hoje já não existe; era administrada
pelos Thénardier, marido e mulher. Ficava na travessa Boulanger. Via-se,
acima da porta, uma tabuleta pregada na parede. Nessa tabuleta, estava
pintada alguma coisa que se assemelhava a um homem carregando nos
ombros outro homem, este com grandes dragonas douradas de general e
largas estrelas prateadas; algumas manchas vermelhas representavam
sangue; o resto do quadro era uma nuvem de fumaça e provavelmente
representava uma batalha. Embaixo, lia-se esta inscrição: AO SARGENTO
DE WATERLOO.
Nada mais comum do que uma carroça ou uma carruagem à porta de
uma estalagem. No entanto, o veículo, ou, melhor dizendo, o fragmento de
veículo que obstruía a rua diante da taverna Sargento de Waterloo, numa
tarde de primavera de 1818, teria infalivelmente, por suas dimensões,
atraído a atenção de um pintor que por ali passasse. Era a parte dianteira
de uma dessas carroças usadas nas regiões de muitas florestas, e que
servem para carregar grandes pranchas e troncos de árvores. Compunha-se
de um eixo de ferro maciço, onde se encaixava um pesado timão,
sustentando duas rodas enormes. Todo aquele conjunto era grosseiro,
pesado e disforme; parecia a carreta de um canhão gigante, com todas as
partes envoltas em uma camada de barro, horrível pintura amarelada,
bastante parecida com a que se usa para ornar as catedrais. A madeira
desaparecia sob a lama e o ferro sob a ferrugem. Sob o eixo, pendia, como
um cortinado, uma enorme corrente digna de amarrar um Golias, que mais
fazia lembrar os mastodontes e mamutes que ela poderia atrelar, do que as
traves de madeira que tinha de transportar. Aquilo tinha um ar de prisão,
mas de uma prisão ciclópica e sobre–humana; parecia ter-se desprendido
de algum monstro. Homero teria ali prendido Polifemo, e Shakespeare,
Caliban.
Por que aquela dianteira de uma carroça estava naquele lugar?
Primeiro, para obstruir a rua; depois, para acabar de enferrujar.
Na antiga ordem social há um sem-número de instituições que
encontramos assim de passagem, sem mais nem menos, sem outras razões
para existir.
O centro da corrente pendia sob o eixo bem próximo ao chão, e na
curva que se formava, como se fosse a corda de um balanço, viam-se
sentadas e agrupadas em estranho enlaçamento duas meninas, uma de uns
dois anos e meio, a outra de uns dezoito meses, a menor nos braços da
mais velha. Um lenço muito bem amarrado impedia que caíssem. Uma
mãe tinha visto a medonha corrente e disse: “Veja só! Um brinquedo para
minhas crianças”.
As duas meninas graciosamente vestidas, até com certo esmero,
estavam radiantes, pareciam duas rosas no ferro-velho; seus olhos eram
um triunfo, as faces rosadas sorriam. Uma tinha cabelos castanhos, a outra
cabelos escuros; seus rostos ingênuos eram duas maravilhas. Um arbusto
florido que ficava perto dali desprendia um perfume que parecia vir delas.
A menor mostrava a barriguinha nua com a casta indecência da infância.
Acima e em volta das duas cabecinhas delicadas, pintadas de felicidade e
luminosidade, a gigantesca dianteira, escura de ferrugem, quase terrível,
emaranhada de curvas e ângulos ferozes, arredondava-se como a entrada
de uma caverna.
A alguns passos, agachada na soleira da estalagem, a mãe, mulher de
aspecto pouco agradável, mas enternecedor naquele momento, balançava
as meninas por meio de um cordel, vigiando-as, receosa de algum
acidente, com aquela expressão animal e celeste peculiar à maternidade; a
cada movimento de vaivém, os elos da corrente produziam um rangido
estridente parecido com um grito de raiva; as pequenas extasiavam-se, o
sol poente misturava-se a essa alegria, e nada era mais encantador do que
esse capricho do acaso, que fazia de uma cadeia de titãs um balanço de
querubins.
Enquanto embalava suas filhinhas, a mãe cantarolava uns versinhos
então famosos:

Il le faut, disait un guerrier…

É preciso, dizia um guerreiro…

Sua canção e a atenção às duas filhas impediam-na de ver e ouvir o que


se passava na rua. Entretanto, alguém se aproximara ao começar a
primeira estrofe da cantiga, e, de repente, ela ouviu uma voz que lhe dizia
muito perto dos ouvidos:
— A senhora tem duas lindas crianças!

À la belle et tendre Imogine,

À bela e terna Imogine,

disse a mãe, continuando sua cantiga, e depois virou a cabeça.


Uma mulher estava diante dela, a alguns passos. Também tinha uma
filhinha, que segurava no colo. Trazia também um grande saco, que
parecia muito pesado.
A criança dessa mulher era uma das mais divinas criaturas que já se
viu. Era uma menina de dois a três anos. Poderia competir com as outras
duas pela graça do que vestia; usava uma blusa com lacinhos e uma touca
com rendas e lacinhos. A dobra da sainha curta deixava ver a perninha
branca, roliça e firme. Era admiravelmente corada e saudável. Dava
vontade de morder-lhe as bochechinhas. Não havia o que dizer de seus
olhos, senão que deviam ser grandes e ter belos cílios. A criança dormia.
Dormia com aquele sono de absoluta confiança, próprio de sua idade.
Os braços das mães são feitos de ternura; neles, as crianças dormem
profundamente.
Quanto à mãe, parecia pobre e triste. Tinha trajes de uma operária que
voltava a ser camponesa, e era jovem. Era bela? Talvez; mas com aquelas
roupas não parecia ser. Seus cabelos, de onde escapava uma mecha loura,
pareciam muito espessos, mas desapareciam sob uma touca de beata, feia,
apertada, estreita e atada no queixo. O riso mostra os belos dentes de quem
os tem, mas ela não ria. Os olhos não pareciam ficar secos havia muito
tempo. Estava pálida e mostrava estar cansada e doente. Olhava a filhinha,
adormecida em seus braços, daquele modo peculiar a uma mãe que
amamentou sua criança. Um largo lenço azul, dobrado, como aqueles
usados para enxugar os doentes, cobria-lhe pesadamente o colo; trajava
um vestido de chita, uma manta escura de lã grosseira, e calçava pesados
sapatos. Tinha as mãos queimadas e salpicadas de sardas, o indicador
calejado e perfurado por agulhas. Era Fantine.
Era Fantine. Difícil de reconhecer. Mas, se examinada atentamente,
tinha ainda sua beleza. Uma marca triste, parecida com uma expressão de
ironia, enrugava sua face direita. Sua roupa, aquela roupa leve de
musseline e fitas, que parecia feita de alegria, loucura e música, cheia de
guizos e perfumada de lilás, desvanecera-se como gotas de orvalho, que
passam por diamantes se vistas ao sol, mas depois derretem, deixando os
ramos negros como antes.
Dez meses haviam transcorrido desde aquela “boa peça”.
O que teria acontecido nesses dez meses? Pode-se adivinhar.
Após o abandono, a dificuldade. Fantine logo perdera de vista
Favourite, Zéphine e Dhalia; quebrado o laço pelo lado dos homens,
desfeito também pelo lado das mulheres; quem, quinze dias depois, lhes
dissesse que tinham sido amigas, as espantaria; já não havia nisso razão de
ser. Fantine ficara só. O pai de sua filha estava longe — infelizmente esses
rompimentos são irrevogáveis —, ela viu-se absolutamente isolada, com o
hábito do trabalho a menos e o gosto pelo prazer a mais. Levada por sua
ligação com Tholomyès a desprezar o humilde ofício que conhecia,
negligenciara essa saída, que acabou se fechando. Ficou sem recursos.
Fantine mal sabia ler, e não sabia escrever; na infância, haviam-lhe
ensinado apenas a assinar seu nome; por isso, mandou que um escrevente
público escrevesse uma carta a Tholomyès, depois mais uma e ainda uma
terceira. Tholomyès não respondeu a nenhuma. Um dia, Fantine ouviu
umas bisbilhoteiras, que olhavam para sua filhinha, dizerem: “Será que
levam essas crianças a sério? Dão de ombros para elas!” Então ela pensou
em Tholomyès, que dava de ombros para sua filha e não levaria a sério
aquela inocente criaturinha; e seu coração tornou-se sombrio em relação
àquele homem. Que resolução tomar? Ela já não sabia a quem recorrer.
Tinha cometido uma falta, mas o fundo de sua natureza, como se lembram,
era pudor e virtude. Sentia vagamente que estava em via de cair na miséria
e de escorregar para o pior. Precisava de coragem; ela a conseguiu e
resistiu. Teve a ideia de regressar a sua cidade natal, Montreuil-sur-Mer,
onde talvez alguém a conhecesse e lhe arranjasse trabalho. Sim, mas
precisava ocultar sua falta. E entrevia confusamente a possível
necessidade de uma separação mais dolorosa ainda do que a primeira.
Ficou com o coração apertado, mas decidiu. Fantine, como veremos, tinha
a bravura feroz da vida. Já havia renunciado resolutamente à aparência,
vestindo-se de chita e colocando toda a sua seda, os seus enfeites, fitas e
rendas sobre a filha, única e santa vaidade que lhe restara. Vendeu tudo o
que tinha, o que lhe rendeu duzentos francos; pagas todas as suas pequenas
dívidas, sobraram-lhe apenas uns oitenta francos. Aos vinte e dois anos,
em uma bela manhã de primavera, deixava Paris, levando a filhinha. Quem
quer que as visse passar, teria compaixão. Aquela mulher só tinha aquela
criança no mundo e aquela criança só tinha aquela mulher no mundo.
Fantine amamentara a filha, o que havia cansado seu peito; ela tossia um
pouco.
Não teremos mais oportunidade para falar do senhor Félix Tholomyès.
Limitemo-nos a dizer que vinte anos mais tarde, no reinado de Luís Filipe,
era um importante procurador de província, influente e rico, eleitor
circunspecto e jurado severíssimo, mas sempre amigo dos prazeres.
Perto da metade do dia, após andar algumas vezes, para poder
descansar, mediante três ou quatro soldos por légua, no que então
chamavam de Pequenos Carros dos Arredores de Paris, Fantine achava-se
em Montfermeil, na travessa Boulanger.
Ao passar diante da estalagem Thénardier, as duas meninas,
encantadoras sobre seu monstruoso balanço, tinham sido para ela uma
espécie de deslumbramento, fazendo com que parasse diante daquela visão
de alegria.
Existem encantamentos. As duas criancinhas o foram para essa mãe.
Fantine olhava para elas comovida. A presença dos anjos é um anúncio
de paraíso. Fantine acreditou ver acima daquela estalagem o misterioso
AQUI da Providência. As duas pequenas eram evidentemente felizes!
Olhava-as, admirava-as tão enternecida que, no momento em que a mãe
tomava fôlego entre dois versos de sua canção, não pôde impedir-se de
dizer-lhe o que se leu acima:
— A senhora tem duas lindas crianças!
As criaturas mais ferozes são desarmadas por um afago em seus filhos.
A mãe levantou a cabeça e agradeceu, fez a passante sentar no banco da
porta e ficou na soleira. As duas mulheres conversaram.
— Eu me chamo senhora Thénardier — disse a mãe das duas crianças.
— Nós administramos essa estalagem.
Depois, sempre cantarolando, continuou por entre os dentes:

Il le faut, je suis chevalier


Et je pars pour la Palestine.

É preciso, eu sou cavaleiro


E parto para a Palestina.

A senhora Thénardier era uma mulher ruiva, carnuda, angulosa; o tipo


“mulher de soldado” em toda a sua falta de graça. E, que coisa
extravagante, com um ar afetado que devia a leituras romanescas. Era uma
virago cheia de trejeitos. Romances antigos desfiados sobre a imaginação
de taverneiras causam esse tipo de efeito. Ainda era nova, tinha apenas
trinta anos. Se aquela mulher, que estava agachada, tivesse ficado de pé,
talvez sua estatura elevada e seus ombros largos de colosso ambulante,
próprios para serem exibidos em feiras, tivessem logo assustado a viajante
e perturbado sua confiança, e nada existiria do que temos para contar. Uma
pessoa que está sentada em vez de estar de pé; os destinos às vezes
dependem disso.
A viajante contou sua história, um tanto modificada.
Que era operária; que o marido havia morrido e que, faltando-lhe
trabalho em Paris, estava à procura em outro lugar, em sua terra; que tinha
saído de Paris a pé naquela manhã; que, sentindo-se cansada por carregar a
criança, entrou na carruagem que ia para Villemomble, e de Villemomble
tinha vindo a pé para Montfermeil; que a pequenina tinha andado um
pouquinho, mas bem pouco — tão novinha! —, e que não houvera remédio
senão pegá-la no colo, e que o anjinho havia adormecido.
E, ao dizer isso, deu-lhe um beijo apaixonado que a fez acordar. A
criança abriu os olhos, uns grandes olhos azuis, como os da mãe, e olhou.
O quê? Nada, tudo, com aquele ar sério e por vezes severo das crianças,
que é um mistério de sua luminosa inocência diante de nossos crepúsculos
de virtude. Como se se sentissem anjos e nos soubessem homens. Depois,
começou a rir, e, por mais que a mãe quisesse retê-la, escorregou para o
chão com a indomável energia de um pequeno ser que deseja correr. De
repente, avistou as outras duas meninas no balanço, parou, e mostrou a
língua, um sinal de admiração.
A mãe Thénardier desprendeu as filhas e ajudou-as a descer, dizendo:
— Divirtam-se as três!
Nessa idade, familiarizam-se bem rápido, e um minuto depois as
pequenas Thénardier brincavam com a recém-chegada, faziam buracos no
chão, prazer imenso.
Essa mostrava-se muito alegre; a bondade das mães está escrita na
alegria dos filhos. A pequenina pegara um pauzinho que lhe servia de pá, e
cavava energicamente uma cova boa para uma mosca. O que torna o
coveiro torna-se engraçado quando é feito por uma criança.
As duas mulheres continuavam a conversar.
— Como se chama sua filhinha?
— Cosette.
Cosette, leia-se Euphrasie. A pequena chamava-se Euphrasie, que a
mãe fez Cosette por esse doce instinto das mães e do povo, que faz de
Josefa, Pepita e de Françoise, Sillette. Este é um gênero de derivados que
atrapalha e desconcerta toda a ciência dos etimologistas. Conhecemos uma
avó que conseguiu fazer de Théodore, Gnon.
— Que idade ela tem?
— Quase três anos.
— Então é como a minha mais velha.
Durante esse tempo, as três meninas tinham-se agrupado numa postura
de beatitude e ansiedade profunda; houve um acontecimento: acabava de
sair da terra um grande verme, as pequenas tinham medo e estavam
assustadas.
Suas frontes radiantes se tocavam, pareciam três cabeças em uma
auréola.
— Como são as crianças! — exclamou a mãe Thénardier. — Como
ficam amigas depressa! Veja só, daria para jurar que são três irmãs.
Essa frase foi a faísca que provavelmente a outra mãe esperava.
Segurou a mão da senhora Thénardier e disse-lhe, olhando-a fixamente:
— A senhora quer ficar com a minha criança?
A senhora Thénardier teve um desses movimentos de surpresa, que não
são nem de consentimento nem de recusa.
A mãe de Cosette prosseguiu:
— A senhora vê que não posso levar a pequena comigo para minha
terra; o trabalho não permitiria. Com uma criança não se encontra
colocação. A gente daquela terra é tão ridícula! Foi o Senhor que me fez
passar pela porta de sua estalagem. Quando vi suas meninas tão lindas, tão
asseadinhas, tão contentes, fiquei comovida. Pensei: aí está uma boa mãe.
É isso; serão três irmãs. E, depois, não vou demorar muito para voltar.
Quer ficar com minha filha?
— Preciso ver — disse a senhora Thénardier.
— Darei seis francos por mês.
Nesse momento, ouviu-se uma voz de homem gritando do fundo da
taverna:
— Por menos de sete francos, nada feito, e seis meses pagos adiantado.
— Seis vezes sete… quarenta e dois — disse a senhora Thénardier.
— Está bem, darei isso — disse a mãe.
— E quinze francos, fora isso, para as primeiras despesas —
acrescentou a voz de homem.
— Total, cinquenta e sete francos — disse a senhora Thénardier.
E, em meio àquelas contas, cantarolava vagamente:

Il le faut, disait un guérrier.

É preciso, dizia um guerreiro.

— Vou pagar, tenho oitenta francos. Com o que sobrar, ainda dá para
chegar à minha terra, indo a pé. Quero ganhar algum dinheiro lá, e, assim
que conseguir, virei buscar o meu amorzinho.
A voz de homem tornou:
— A pequena tem algum enxoval?
— É meu marido — disse a senhora Thénardier.
— Ela tem um enxoval sim, meu pobre tesouro. E um belo enxoval.
Logo vi que era seu marido. Um enxoval incrível, tudo às dúzias, e
vestidos de seda como uma daminha! Está ali, no meu saco de viagem.
— Então tem que deixar aqui — replicou a voz de homem.
— Eu sei que eu tenho que deixar aqui! — disse a mãe. — Ia ser muito
engraçado se eu deixasse a minha filha completamente sem roupa!
O dono da taverna apareceu.
— Então está bem — disse ele.
Concluiu-se o ajuste. A mãe pernoitou na estalagem, deu o dinheiro e
deixou a criança; amarrou novamente o saco de viagem, que ficava mais
leve agora sem o enxoval, e partiu na manhã seguinte, contando voltar em
breve. Essas partidas são combinadas tranquilamente, mas são um
verdadeiro desespero.
Uma vizinha dos Thénardier encontrou Fantine enquanto ia embora, e
veio dizer:
— Acabo de ver na rua uma mulher chorando de cortar o coração.
Depois que a mãe de Cosette partiu, o homem disse à mulher:
— Com isso vou pagar minha dívida de cento e dez francos que vence
amanhã. Faltavam cinquenta francos. Senão, logo o oficial de justiça viria
com um protesto, sabia? Você preparou uma bela ratoeira com as
pequenas!
— Sem dar-me conta — disse a mulher.

II. PRIMEIRO ESBOÇO DE DUAS FIGURAS


SUSPEITAS
O rato apanhado na ratoeira era bastante franzino, mas o gato regala-se
mesmo com um rato magro.
Quem eram os Thénardier?
Digamos desde já alguma coisa a seu respeito. E mais adiante
completaremos o esboço.
Essas pessoas pertenciam àquela classe bastarda, composta de gente
grosseira que subiu na vida e de gente inteligente decaída, que está entre
as chamadas classe média e classe inferior, e que combina alguns dos
defeitos da segunda com quase todos os vícios da primeira, sem ter o
generoso impulso do operário, nem a honesta ordem do burguês.
Eram dessas figuras anãs, que se tornam monstruosas se por acaso
forem aquecidas por algum fogo sombrio. Havia na mulher um fundo
tosco e no homem um estofo de velhaco. Ambos eram extremamente
suscetíveis àquele tipo de progresso abjeto que se faz no sentido do mal.
Existem almas que, como os caranguejos, recuam continuamente para as
trevas, retrocedendo mais do que avançando na vida, empregando a
experiência para aumentar sua deformidade, piorando sem cessar, e
impregnando-se mais e mais com uma crescente perversidade. Aquele
homem e aquela mulher eram almas assim.
O marido, particularmente, era constrangedor para um fisionomista.
Basta olhar para certos homens e desconfiar deles, porque logo pode-se
senti-los tenebrosos dos pés à cabeça. São ameaçadores na frente dos
outros e medrosos por atrás. Há neles algo de obscuro. Não se pode ter
mais certeza em relação ao que fizeram do que em relação ao que farão. O
sinistro que trazem no olhar os denuncia. Só de ouvi-los dizer uma
palavra, ou vê-los fazer um gesto, já se entreveem sombrios segredos em
seu passado e sombrios mistérios em seu futuro.
Este Thénardier, se formos dar-lhe crédito, tinha sido soldado;
sargento, dizia ele; fizera provavelmente a campanha de 1815, e, ao que
parece, até havia se portado com bravura. Mais tarde veremos o que ele
era. A tabuleta de sua taverna fazia alusão a um dos seus feitos de armas.
Ele mesmo a pintara, porque sabia fazer um pouco de tudo; mal.
Era a época em que o antigo romance clássico — que, depois de ter
sido Clélie não era mais que Lodoïska, ainda nobre, mas cada vez mais
vulgar, decaindo de mademoiselle de Scudéri a madame Bournon–
Malarme, e de madame de Lafayette a madame Barthélemy-Hadot —
incendiava a alma amorosa das portas de Paris e já devastava um pouco os
arrabaldes. A senhora Thénardier tinha apenas a inteligência suficiente
para ler essa espécie de livros. Nutria-se disso; afogava ali tudo o que
tinha de cérebro; isso lhe dera, enquanto jovem, e mesmo algum tempo
depois, uma espécie de atitude pensativa em comparação a seu marido,
velhaco de certa profundidade, rufião letrado fora da gramática, grosseiro
e finório ao mesmo tempo, mas que, em termos de sentimentalismo, lia
Pigault-Lebrun, e “em tudo o que toca ao sexo”, como ele dizia em seu
jargão, inepto rematado e sem mistura. Sua mulher tinha uns doze ou
quinze anos menos que ele. Mais tarde, quando os cabelos
romanescamente soltos começaram a embranquecer, quando a Megera se
desprendeu de Pamela, ela não passava de uma gorda má, que saboreara
romances estúpidos. Ora, ninguém lê bobagens impunemente, e o
resultado disso foi sua filha mais velha chamar-se Éponine; e a mais nova,
coitadinha, quase se chamou Gulnare, mas deveu-se a não sei qual feliz
diversão, causada por um romance de Ducray-Duminil, chamar-se apenas
Azelma.
De resto, diga-se de passagem, nem tudo é ridículo e superficial nessa
curiosa época à qual aqui fazemos alusão, no que poderíamos chamar de
anarquia dos nomes de batismo. Ao lado do elemento romanesco, que
acabamos de citar, existe o sintoma social. Não é raro hoje em dia que um
vaqueiro se chame Arthur, Alfred ou Alphonse, e o visconde, se é que
ainda há viscondes, Thomas, Pierre ou Jacques. Este deslocamento, que dá
ao plebeu um nome “elegante”, e um nome camponês ao aristocrata, nada
mais é que um borbulhar de igualdade. A irresistível penetração do novo
sopro está nisso como em tudo o mais. Sob essa aparente discordância,
existe uma coisa grande e profunda: a Revolução Francesa.

III. A COTOVIA
Não basta ser mau para prosperar. A taverna ia mal. Graças aos
cinquenta e sete francos da viajante, Thénardier pudera evitar um protesto
e honrar sua assinatura. No mês seguinte, tiveram ainda necessidade de
dinheiro; a mulher levou a Paris e empenhou, na casa de penhora
municipal, o enxoval de Cosette pela quantia de sessenta francos. Gasta
essa soma, o casal Thénardier acostumou-se a não ver na inocente senão
uma criança que tinham em casa por caridade, e como tal a tratavam.
Como já não possuía enxoval, vestiam-na com saias e camisas velhas que
tinham sido das outras duas pequenas, isto é, com farrapos. Alimentavam-
na com os restos de todo o mundo, um pouco melhor que o cão, e um
pouco pior que o gato. O cão e o gato eram, aliás, seus comensais
habituais; Cosette comia com eles debaixo da mesa, numa tijela de
madeira, semelhante à deles.
A mãe, que se instalara, como mais tarde veremos, em Montreuil–sur-
Mer, escrevia, ou, melhor dizendo, mandava escrever todos os meses
pedindo notícias de sua filha. O casal Thénardier respondia
invariavelmente:
— Cosette está maravilhosamente bem.
Passados os seis primeiros meses, a mãe enviou sete francos para
pagamento do sétimo mês e continuou com a maior exatidão suas
remessas mensais. O ano nem havia terminado quando Thénardier disse:
— Que grande favor ela nos faz! O que ela quer que nós façamos com
os seus sete francos?
E escreveu exigindo doze. A mãe, a quem persuadiram de que sua filha
estava feliz e “passava bem”, sujeitou-se, e remeteu os doze francos.
Certas naturezas não podem amar de um lado sem odiar de outro. A
mãe Thénardier amava apaixonadamente suas filhas, o que fez com que
detestasse a estranha. É triste pensar que o amor de mãe pode ter aspectos
abjetos. O lugar que Cosette ocupava em sua casa, por menor que fosse,
parecia-lhe algo tomado dos seus, como se a menina diminuísse o ar que
suas filhas respiravam.
Essa mulher, como muitas outras mulheres de sua laia, tinha uma
porção de carícias e outra de pancadas e injúrias para distribuir todo dia.
Se ela não tivesse Cosette, é certo que suas filhas, mesmo idolatradas
como eram, tudo teriam recebido; mas a criança de fora fazia-lhes o favor
de desviar as pancadas sobre si, e elas duas só recebiam as carícias.
Cosette não fazia nenhum movimento que não levasse a desabar sobre ela
uma saraivada de castigos violentos e imerecidos. Doce e frágil ser que
não devia compreender nada deste mundo, nem de Deus, incessantemente
punida, repreendida, tratada com aspereza, espancada, e vendo a seu lado
duas criaturinhas como ela que viviam em um raio de aurora!
Como mãe Thénardier era má para Cosette, Éponine e Azelma também
eram más. As crianças dessa idade não são mais que exemplares da mãe.
Só o formato é menor, mais nada.
Um ano se passou, e mais outro.
Dizia-se na aldeia:
— Esses Thénardier são honrados. Não são ricos e, apesar disso, criam
uma pobre criança que abandonaram em sua casa.
Julgavam que a mãe de Cosette a havia esquecido.
Enquanto isso, Thénardier tomou conhecimento, não sabemos por
quais obscuras vias, de que a criança provavelmente era bastarda, coisa
que a mãe não podia admitir; exigiu quinze francos por mês, dizendo que
“a criatura” crescia e comia, e ameaçava mandá-la embora. “Ela que não
me aborreça!”, exclamava ele, “senão eu atiro essa menina bem no meio
dos seus segredinhos. Tem que me pagar mais”. A mãe pagou os quinze
francos.
De ano em ano, a criança crescia, e crescia também sua miséria.
Enquanto Cosette era pequena, foi o bode expiatório das outras duas
crianças; desde que começou a se desenvolver um pouco, quer dizer, antes
ainda de ter cinco anos, tornou-se a criada da casa.
Cinco anos, dirão, é inacreditável. Mas infelizmente é verdade. O
sofrimento social começa em qualquer idade. Não vimos recentemente o
processo de um tal Dumolard, órfão que se tornou bandido, pois desde a
idade de cinco anos, segundo dizem os documentos oficiais, vendo-se só
no mundo, “trabalhava para viver, e roubava”?
Obrigavam Cosette a dar os recados, a varrer os quartos, o quintal, a
rua, a lavar a louça, e até a carregar peso. O casal Thénardier julgava-se
ainda mais autorizado a assim proceder já que a mãe, que continuava em
Montreuil-sur-Mer, começava a falhar no pagamento. Alguns meses
ficaram em suspenso.
Se aquela mãe tivesse voltado a Montfermeil após esses três anos, não
teria reconhecido a filha. Cosette, tão fresca e tão linda quando chegou
àquela casa, estava agora magra e pálida. Tinha uma aparência inquieta.
“Sonsa!”, diziam os Thénardier.
A injustiça a tornara intratável, e a miséria, feia.
Não lhe restavam mais que seus belos olhos, que davam dó, porque,
grandes como eram, parecia que neles se via uma quantidade maior de
tristeza.
Era doloroso ver, no inverno, aquela pobre criança, que ainda não tinha
seis anos, tiritando de frio, coberta por uns farrapos, varrendo a rua antes
do sol aparecer, com uma enorme vassoura nas mãozinhas roxas do frio, e
uma lágrima nos olhos.
Na aldeia a chamavam de Cotovia. Agradou ao povo, que gosta de
imagens, denominar assim aquela criaturinha, pouco maior que um
passarinho, trêmula, assustada, medrosa, primeira a se levantar toda
manhã, não só na casa, mas em toda a aldeia, e sempre na rua ou nos
campos antes da aurora. Mas a pobre Cotovia jamais cantava.
LIVRO V
A DECADÊNCIA

I. HISTÓRIA DE UM PROGRESSO NO RAMO DOS


VIDRILHOS PRETOS
E AQUELA MÃE que, no dizer do povo de Montfermeil, parecia ter
abandonado a filha, o que era feito dela? Onde se encontrava? O que fazia?
Após ter deixado sua pequena Cosette aos Thénardier, continuara seu
caminho e chegara a Montreuil-sur-Mer. Era 1818, como se lembram.
Fantine tinha deixado sua província havia uns dez anos; Montreuil–
sur-Mer mudara de aspecto. Enquanto Fantine descia lentamente de
miséria em miséria, sua cidade natal havia prosperado.
Havia aproximamente dois anos, ali ocorrera uma dessas realizações
industriais que representam os grandes acontecimentos das cidades
pequenas.
Esse detalhe é importante, e julgamos útil desenvolvê-lo, ou melhor,
sublinhá-lo.
Desde os tempos mais remotos, Montreuil-sur-Mer tinha como
indústria especial a imitação das miçangas inglesas e dos vidrilhos pretos
da Alemanha, indústria que sempre vegetara por causa da carestia das
matérias-primas, que recaía sobre a mão de obra. Na ocasião em que
Fantine voltou a Montreuil-sur-Mer, operava-se uma transformação
inédita na produção desses “artigos pretos”. Em fins de 1815, viera
estabelecer-se na cidade um homem, um desconhecido, a quem ocorreu a
ideia de substituir, na fabricação desses artigos, a resina pela goma-laca e,
em particular, no caso dos braceletes, as correntes soldadas por simples
correntes engatadas. Essa pequena mudança foi uma revolução.
Essa pequena mudança, com efeito, reduzira espantosamente o custo
da matéria-prima, o que permitiu: primeiro, elevar o custo da mão de obra,
beneficiando a localidade; segundo, melhorar a fabricação, o que era
vantagem para o consumidor; terceiro, vender mais barato, triplicando os
lucros, o que era proveito para o fabricante.
Assim, para uma só ideia, três resultados.
Em menos de três anos, o inventor desse processo tornara-se rico, o
que foi bom, e fizera tudo enriquecer em torno dele, o que foi ainda
melhor. Era alguém estranho à região; de sua origem, nada se sabia; de
como começara, muito pouco.
Contava-se que tinha vindo para a cidade com bem pouco dinheiro,
algumas centenas de francos, se tanto.
Foi desse pequeno capital, posto a serviço de uma engenhosa ideia,
fecundada pela ordem e pelo pensamento, que ele tirara toda a sua fortuna
e a fortuna de toda aquela localidade. Quando chegou a Montreuil-sur-
Mer, suas roupas, seu aspecto e sua linguagem eram de um simples
operário.
Parece que, no mesmo dia em que entrou obscuramente na pequena
cidade de Montreuil-sur-Mer, em um anoitecer de dezembro, com seu saco
às costas e um cajado na mão, acabava de ocorrer um grande incêndio no
conselho municipal. O tal homem lançara-se ao fogo, e salvara, arriscando
a própria vida, duas crianças, filhos do capitão da guarda, o que ensejou
não lhe pedirem seu passaporte. Desde então, conheceu-se seu nome.
Chamava-se Pai Madeleine.

II. MADELEINE
Era um homem de aproximadamente cinquenta anos, com aparência de
preocupado, mas era um homem bom; isso era tudo o que se podia dizer
dele.
Graças aos rápidos progressos dessa indústria, que ele havia tão
admiravelmente inovado, Montreuil-sur-Mer tornara-se um considerável
centro de comércio. A Espanha, que consome muita miçanga preta, fazia
ali enormes encomendas por ano. Nesse ramo de comércio, Montreuil-sur-
Mer praticamente fazia concorrência a Londres e a Berlim. Os lucros de
Pai Madeleine foram tais que, já no segundo ano, permitiram-lhe construir
uma grande fábrica na qual existiam duas vastas oficinas, uma para os
homens, outra para as mulheres. Quem quer que tivesse fome podia ali se
apresentar, e estar certo de achar emprego e pão. Pai Madeleine pedia aos
homens que tivessem boa vontade, às mulheres, bons costumes, e a todos,
probidade. Dividiu as oficinas para separar os sexos, para que moças e
mulheres pudessem permanecer íntegras. Nesse ponto, era inflexível. Era
essa a única coisa em relação à qual tinha alguma intolerância. E ele
justificava bem essa severidade porque, em Montreuil-sur-Mer, por ser
essa uma cidade de guarnição, abundavam as oportunidades para a
corrupção. De resto, sua vinda fora um bem, e sua presença, uma
providência. Antes de sua chegada, tudo esmorecia naquela terra; agora,
tudo ali tinha a vida sadia do trabalho. Uma forte corrente aquecia tudo e
penetrava em toda parte. Miséria e desemprego eram desconhecidos. Não
havia bolso, por mais obscuro que fosse, em que não houvesse algum
dinheiro, nem uma casa tão pobre em que não houvesse um pouco de
alegria.
Pai Madeleine empregava todo o mundo, fazendo uma única exigência:
“Seja um homem honesto! Seja uma mulher honrada!”
Como já dissemos, em meio a essa atividade, de qual era a causa e o
eixo, fazia sua fortuna; mas, coisa bem singular em um simples homem de
comércio, não dava a impressão de ser essa sua principal preocupação;
parece que pensava muito nos outros e muito pouco nele mesmo. Em
1820, sabia-se que tinha uma quantia de seiscentos e trinta mil francos,
depositada em seu nome no banco Laffitte; antes, porém, de reservar para
si esses seiscentos e trinta mil francos, havia despendido mais de um
milhão em favor da cidade e dos pobres.
O hospital estava mal dotado; ele acrescentou mais dez leitos.
Montreuil-sur-Mer era dividida em cidade alta e cidade baixa. A cidade
baixa, onde ele habitava, tinha apenas uma escola, péssimo casebre em
ruínas; construiu mais duas, uma para meninas e outra para meninos.
Pagava do próprio bolso aos dois professores o dobro do magro ordenado
oficial, dizendo um dia a alguém que se admirava disso: “Os dois
principais funcionários do Estado são o professor e a ama”. Criara, a suas
expensas, uma casa de asilo, coisa então quase desconhecida na França, e
uma caixa de assistência para os operários velhos e enfermos. Sendo sua
fábrica um centro, rapidamente surgiu em torno dela um novo bairro, onde
havia grande número de famílias indigentes; ali estabeleceu uma farmácia
gratuita.
Nos primeiros tempos, quando o viram começar, as boas almas
disseram: “É um espertalhão que quer enriquecer”. Quando o viram
enriquecer a cidade antes de enriquecer a si próprio, as mesmas boas
almas disseram: “É um ambicioso”. Isso parecia ainda mais provável
porque aquele homem era religioso, e, em certa medida, até mesmo
praticante, coisa muito bem vista naquela época. Assistia regularmente à
missa dos domingos. O deputado local, que farejava concorrências em
tudo, não demorou a se preocupar com tal religiosidade. Esse deputado,
que fora membro do corpo legislativo do império, abraçava as ideias
religiosas de um padre da Congregação do Oratório, conhecido pelo nome
de Fouché, duque d’Otrante, de quem tinha sido protegido e amigo. No
íntimo, ria levemente de Deus, mas quando viu o rico fabricante
Madeleine ir à missa das sete horas, entreviu a possibilidade de um
concorrente, e resolveu superá-lo; tomou um jesuíta como confessor, foi à
missa solene e às vésperas. Naquele tempo, a ambição era, na verdadeira
acepção da palavra, o caminho do campanário. Os pobres aproveitaram-se
desse terror como o bom Deus, porque o respeitável deputado dotou o
hospital com mais dois leitos; agora eram doze.
Entretanto, em 1819, certa manhã espalhou-se pela cidade o boato de
que, por proposta do senhor chefe de departamento, e em consideração aos
serviços prestados àquela localidade, Pai Madeleine seria nomeado, pelo
rei, prefeito de Montreuil-sur-Mer. Os que haviam declarado o recém-
chegado “um ambicioso” aproveitaram com gosto esta oportunidade, que
todos desejam, para exclamarem: “Vejam só! Nós não falamos?”
Montreuil-sur-Mer inteira ficou alvoroçada; o boato tinha fundamento.
Alguns dias depois, a nomeação apareceu no Moniteur. No dia seguinte,
Pai Madeleine recusava.
Nesse mesmo ano de 1819, os produtos do novo processo inventado
por Madeleine figuraram na Exposição Industrial; baseado no relatório do
júri, o rei o nomeou inventor cavaleiro da Legião de Honra. Novo rumor
na pequena cidade. “Muito bem! Era a condecoração o que ele queria!” Pai
Madeleine também a recusou.
Decididamente, aquele homem era um enigma. As boas almas saíram
do caso dizendo: “Afinal de contas, é uma espécie de aventureiro”.
Como acima se viu, o lugar devia-lhe muito, os pobres deviam-lhe
tudo; ele era tão bom que acabaram por prestar-lhe honras, e tão afável
que não era possível deixar de amá-lo; seus operários, especialmente,
adoravam-no, adoração que ele recebia com uma espécie de gravidade
melancólica. Quando constatou-se que estava rico, “as pessoas da
sociedade” passaram a cumprimentá-lo e chamá-lo de senhor Madeleine;
seus operários e as crianças continuaram a tratá-lo por Pai Madeleine, e
era isso o que mais o fazia sorrir. À medida que subia, choviam convites
sobre ele. “A sociedade” o reclamava. Os pequenos salões afetados de
Montreuil-sur-Mer, que, bem entendido, nos primeiros tempos se
fecharam ao artesão, abriram-se por completo ao milionário. Fizeram-lhe
mil oferecimentos. Ele recusou sempre.
Ainda desta vez, as boas almas não se sentiram impedidas de dizer: “É
um homem ignorante e de pouca educação. Não se sabe de onde saiu. Ele
não saberia portar-se em sociedade. Nem está provado que saiba ler”.
Quando o viram ganhar dinheiro, disseram: “É um negociante”.
Quando o viram semear esse dinheiro, disseram: “É um ambicioso”.
Quando o viram repelir as honras, disseram: “É um aventureiro”. Quando
o viram repelir todo mundo, disseram: “É um bruto”.
Em 1820, cinco anos após sua chegada a Montreuil-sur-Mer, os
serviços que ele tinha prestado à localidade eram tão valiosos, os votos da
região foram tão unânimes, que o rei o nomeou novamente prefeito da
cidade. Recusou ainda, mas o chefe de departamento resistiu a essa recusa,
os notáveis da cidade vieram rogar, o povo em plena rua suplicava; a
insistência foi tão intensa que ele acabou aceitando. Notou-se que o que
pareceu especialmente determiná-lo foi a observação quase irritada de
uma velha mulher do povo que lhe disse, gritando da soleira de sua porta,
com impaciência: Um bom prefeito é muito útil. Por que recuar diante do
bem que pode fazer?
Foi esta a terceira fase de sua ascensão. Pai Madeleine havia se
tornado senhor Madeleine, e o senhor Madeleine tornou-se o senhor
prefeito.
III. SOMAS DEPOSITADAS NO BANCO LAFFITTE
Afinal, permanecera tão simples quanto era no primeiro dia.
Tinha os cabelos grisalhos, o olhar grave, a tez morena de um operário,
e o rosto pensativo de um filósofo. Usava habitualmente um chapéu de
abas largas e um longo casaco de tecido grosso, abotoado até o queixo.
Exercia suas funções de prefeito, mas, fora isso, vivia solitário,
convivendo com pouca gente, furtando-se a cumprimentos e trocas de
finezas, saudando de passagem, esquivando-se rapidamente, sorrindo para
dispensar-se de conversar, e sendo generoso para dispensar-se de sorrir. As
mulheres diziam dele: “Que grande urso!” Seu maior gosto era passear
sozinho pelos campos.
Fazia suas refeições sempre sozinho, tendo diante de si um livro aberto
para ler. Possuía uma pequena biblioteca bem montada, e amava os livros,
que são amigos imparciais e seguros. À medida que a fortuna lhe
proporcionava mais tempo de lazer, parecia aproveitá-lo para cultivar o
espírito. Notava-se que, desde sua chegada a Montreuil-sur-Mer, seu
linguajar se tornava, a cada ano, mais polido, mais agradável e mais
seleto.
Em seus passeios, gostava de levar uma espingarda, mas raramente
servia-se dela. Quando, vez por outra, isso acontecia, sua pontaria certeira
era espantosa. Nunca, porém, matava um animal inofensivo. Nunca atirava
em um pássaro.
Embora já não fosse tão jovem, dizia-se que tinha uma força
prodigiosa. Sempre dava uma mão a quem precisava, levantava um cavalo,
empurrava alguma carroça atolada e segurava pelos chifres um touro
fugido. Tinha sempre os bolsos cheios de moedas ao sair, e vazios ao
voltar. Quando passava por alguma aldeia, os moleques esfarrapados
corriam alegremente atrás dele, cercando-o como uma nuvem de
mosquitos.
Acreditava-se que outrora tinha vivido a vida do campo, porque sabia
todo tipo de segredos úteis, que transmitia aos camponeses. Ensinava-lhes
a destruir a traça dos trigos, aspergindo o celeiro e inundando as fendas do
assoalho com uma solução de sal comum, e a preservar-se do gorgulho,
suspendendo por toda parte, nas paredes e nos tetos, nas pastagens e nas
casas, ramos de uma planta que o afugenta. Tinha “receitas” para extirpar
de um campo o joio, a ferrugem, a ervilhaca, o olho de sapo, a cauda da
raposa, todas as ervas parasitas nocivas ao trigo. Defendia as coelheiras
contra os ratos simplesmente com o cheiro de um pequeno porco da
Barbária, que colocava entre os coelhos.
Um dia, ao ver uns aldeões muito atarefados arrancando urtigas, olhou
para aquele amontoado de plantas arrancadas e já secas, dizendo: “Já estão
mortas, mas seria bom se soubessem aproveitá-las. A folha da urtiga,
enquanto tenra, é um excelente legume; e, depois de velha, tem filamentos
e fibras, como o linho e o cânhamo. O tecido de urtiga é tão bom como o
de cânhamo. Cortada, é boa para as aves; moída, é boa para os bovinos. A
semente da urtiga misturada à comida dá brilho ao pelo do gado, e a raiz
misturada com sal produz uma bela cor amarela, além de ser ainda um
excelente pasto que se pode segar duas vezes. E de que a urtiga precisa?
Um pouco de terra, nenhum cuidado, nenhuma cultura. Só custa colher a
semente que vai caindo enquanto amadurece, mais nada. Com mais algum
trabalho, a urtiga seria útil; como é desprezada, torna-se nociva, e então a
destroem. Quantos homens se parecem com as urtigas!” E acrescentou,
depois de uma pausa: “Meus amigos, lembrem-se disso, não há ervas más,
nem homens maus, mas sim maus cultivadores”.
As crianças gostavam dele também porque sabia fazer lindas
bugigangas de palha e da casca de coco.
Quando via a porta de uma igreja forrada de preto, entrava; ele
procurava um enterro como outros procuram um batizado. A viuvez e a
dor alheia o atraíam por causa de seu caráter terno; misturava-se aos
amigos em luto, às famílias vestidas de preto, aos sacerdotes orando em
volta de um caixão. Parecia gostar de ter no pensamento aquelas salmodias
fúnebres, cheias da visão de um outro mundo. Escutava, com os olhos
voltados para o céu e uma espécie de aspiração em relação aos mistérios
do infinito, essas vozes tristes que cantam à beira do obscuro abismo da
morte.
Praticava uma infinidade de boas ações, escondendo-se como quem se
esconde das más. À noite, entrava furtivamente nas casas, subia cauteloso
as escadas. Às vezes, um pobre homem chegando em seu casebre
encontrava a porta aberta, até mesmo forçada enquanto estivera ausente.
Vendo isso, exclamava: algum malfeitor esteve aqui! Porém, ao entrar, a
primeira coisa que via era uma moeda de ouro deixada em cima de algum
móvel. O “malfeitor” que por ali havia andado era Pai Madeleine.
Ele era afável e triste, e o povo dizia: “Este é um homem rico que não
aparenta orgulho, é um homem feliz que não aparenta estar contente”.
Alguns achavam que fosse um personagem misterioso, e afirmavam
que não deixava ninguém entrar em seu quarto, o qual seria uma
verdadeira cela de anacoreta, mobiliada com ampulhetas aladas e adornada
com caveiras e tíbias em cruz. Falava-se tanto disso tudo que, um dia,
foram à casa dele algumas senhoras elegantes e maliciosas de Montreuil-
sur-Mer e lhe pediram: “Senhor prefeito, mostre-nos seu quarto; temos
ouvido dizer que parece uma gruta”. Ele sorriu e as levou imediatamente
para a tal “gruta”. Foram punidas por sua curiosidade. Era um quarto
mobiliado simplesmente, com feios móveis de acaju, como todos os
móveis desse gênero, e forrado com papel barato.
Nada viram ali além de dois castiçais de feitio antigo, que estavam
sobre a lareira e que pareciam ser de prata, “porque traziam uma marca de
controle”. Observação cheia do espírito das cidades pequenas.
Nem por isso deixou-se de dizer que ninguém entrava em seu quarto e
que aquilo era uma caverna de ermitão, um retiro, um buraco, um túmulo.
Cochichava-se também que ele tinha “imensas” somas depositadas no
banco Laffitte, com a particularidade de estarem sempre à sua imediata
disposição, de modo que, acrescentavam, o senhor Madeleine podia chegar
ao banco pela manhã, assinar um recibo e retirar seus dois ou três milhões
em dez minutos. Na realidade, esses “dois ou três milhões” reduziam-se,
como já dissemos, a seiscentos e trinta ou seiscentos e quarenta mil
francos.

IV. O SENHOR MADELEINE DE LUTO


No começo de 1821, os jornais anunciaram a morte do senhor Myriel,
bispo de Digne, “cognominado Monsenhor Bienvenu e falecido com odor
de santidade na idade de oitenta e dois anos”.
O bispo de Digne, para acrescentar aqui um detalhe omitido pelos
jornais, quando morreu, estava cego havia vários anos, mas contente em
sua cegueira, tendo a irmã a seu lado.
Diga-se de passagem, ser cego e ser amado é, de fato, nesta terra onde
nada é completo, uma das formas mais estranhamente esquisitas de
felicidade. Ter continuamente perto de si uma mulher, uma filha, uma
irmã, um ser encantador que está ali porque você tem necessidade dele, e
porque ele não pode ficar sem você, saber-se indispensável a quem nos é
necessário, poder incessantemente medir a afeição que nos têm pela
quantidade de presença que nos dão, e dizer: consagra-me todo o seu
tempo porque ocupo-lhe todo o coração; ver o pensamento, na falta de ver
o rosto; constatar a fidelidade de um ser no eclipse do mundo; perceber o
roçar de um vestido como um ruído de asas; ouvir este alguém ir e vir,
sair, voltar, falar, cantar, e pensar que somos o centro daqueles passos,
daquelas palavras, daquele canto; manifestar a cada minuto nossa própria
atração; sentir-se poderoso, ainda mais por estar enfermo, e tornar-se, na
obscuridade e pela obscuridade, o astro em torno do qual gravita aquele
anjo; poucas felicidades igualam-se a esta. A ventura suprema da vida é a
convicção de que somos amados, mas amados por nós mesmos, ou, melhor
ainda, amados a despeito de nós mesmos. Essa convicção, o cego a tem.
Em meio a essa aflição, ser servido é ser acariciado. Falta-lhe alguma
coisa? Não. É quase nada não ver a luz tendo amor. E que amor! Um amor
inteiramente feito de virtude. Não há cegueira onde existe certeza.
Tateando, uma alma procura outra alma, e a encontra. E essa alma
encontrada e provada é uma mulher. Uma mão o sustenta, é a dela; uma
boca roça-lhe a fronte, é a dela; ouve uma respiração por perto, é ela. Ter
tudo o que vem dela, desde o que cultua até o que a compadece; nunca ser
abandonado; contar com essa doce fraqueza que o socorre; apoiar-se
naquela delicadeza inabalável; tocar com as mãos a Providência, podendo
segurá-la nos braços; Deus palpável, que êxtase! O coração, essa celeste
flor obscura, inicia um misterioso desabrochar. Ninguém trocaria essa
escuridão por qualquer claridade que fosse. Está ali a alma-anjo, sempre
ali; se se afasta, é para voltar; apaga-se como o sonho e reaparece como a
realidade. Sente-se um calor que se aproxima, lá está ela. Transborda-se de
serenidade, de alegria, de êxtase; é como ser um raio dentro da escuridão.
E mil pequenos cuidados. Nadas que são enormes dentro do vazio. Os mais
inefáveis acentos da voz feminina empregados para nos embalar,
preenchendo em nós o universo esvanecido. É sentirmo-nos acariciados
com a alma. Não vemos nada, mas nos sentimos adorados. Paraíso de
trevas.
Foi desse paraíso que Monsenhor Bienvenu passou ao outro.
A notícia de sua morte foi reproduzida pelo jornal de Montreuil–sur-
Mer. No dia seguinte, o senhor Madeleine apresentou-se todo vestido de
preto e com uma tira de luto no chapéu.
A cidade reparou naquele luto, e se encheu de comentários. Aquilo
parecia iluminar um pouco as origens do senhor Madeleine. Concluiu-se
daí que tinha alguma ligação com o venerável bispo. Está de luto pelo
bispo de Digne, disseram nos salões, e isso realçou muito o senhor
Madeleine, dando-lhe subitamente certa consideração entre a nobreza de
Montreuil-sur-Mer. O microscópico bairro Saint-Germain pensou em fazer
cessar a quarentena do senhor Madeleine, provável parente de um bispo. E
ele logo percebeu que recebia mais reverências das senhoras idosas e mais
sorrisos das jovens. Certa noite, uma decana daquela sociedadezinha
aristocrática, curiosa por direito de antiguidade, aventurou-se a perguntar-
lhe:
— O senhor prefeito decerto era primo do falecido bispo de Digne,
não?
Ele respondeu:
— Não, minha senhora.
— Mas — replicou a matrona — está de luto por ele?
O homem tornou:
— É que na juventude fui criado de sua família.
Outra observação que faziam é que, todas as vezes que passava pela
cidade algum jovem de fora, andando pela região e procurando chaminés
para limpar, o prefeito mandava chamá-los, perguntava-lhes o nome e
dava-lhes algum dinheiro. Os limpa-chaminés contavam esse fato uns aos
outros e por isso muitos deles passavam ali.

V. VAGOS CLARÕES NO HORIZONTE


Pouco a pouco, e com o passar do tempo, tinham caído todas as
oposições. No princípio, houve contra o senhor Madeleine um tipo de lei a
que estão sujeitos todos os que se destacam: perversidades e calúnias;
depois, foram apenas insinuações maldosas, em seguida, não passavam de
ditos maliciosos, e, afinal, tudo isso se desvaneceu inteiramente; o
respeito tornou-se completo, unânime, cordial; e chegou um momento, em
1821, em que as palavras senhor prefeito foram pronunciadas em
Montreuil-sur-Mer quase no mesmo tom em que se pronunciava
Monsenhor Bienvenu em Digne, em 1815. Vinha gente de dez léguas dali
para consultar o senhor Madeleine. Ele punha fim às disputas, impedia
processos, reconciliava os inimigos. Cada qual o tomava por juiz de seus
direitos. Parecia ter na alma o livro da lei natural. Era como um contágio
de veneração, que em seis ou sete anos, e progressivamante, tomou conta
de toda a região.
Um único homem, em toda a cidade e suas redondezas, esquivou-se de
todo esse contágio, e, por mais que Pai Madeleine fizesse, permaneceu
rebelde, como se uma espécie de instinto, incorruptível e imperturbável, o
despertasse e afligisse. Parece, de fato, que existe em certos homens um
verdadeiro instinto bestial, puro e íntegro, como todo instinto, que cria as
simpatias e as antipatias, que separa fatalmente uma natureza de outra, que
não hesita nem vacila, que não se cala e jamais se desmente, claro em sua
obscuridade, infalível, imperioso, refratário a todos os conselhos da
inteligência e a tudo que possa embotar a razão, e que, sejam como forem
delineados os destinos, secretamente adverte o homem-cão da presença do
homem-gato, e o homem-raposa da presença do homem-leão.
Frequentemente, quando o senhor Madeleine passava por uma rua,
calmo, afetuoso, coberto das bênçãos de todos, ocorria a um homem alto,
que usava uma capa cinza-escuro, chapéu com abas baixas, bengala na
mão, voltar-se bruscamente e segui-lo com o olhar até que desaparecesse,
cruzando os braços, sacudindo lentamente a cabeça e levantando o lábio
superior junto com o inferior até o nariz, trejeito significativo, que se
poderia traduzir por:
— Mas quem é esse homem? Já o vi em algum lugar, não há dúvida.
Em todo caso, ele não me engana!
Esse personagem, sério, de uma seriedade quase ameaçadora, era
daqueles que, mesmo vistos de passagem, preocupam o observador.
Chamava-se Javert, e era da polícia.
Exercia então, em Montreuil-sur-Mer, a penosa, mas útil, função de
inspetor. Não presenciara os primeiros passos de Madeleine. Javert devia
seu emprego à proteção do senhor Chabouillet, secretário do ministro de
Estado conde Anglès, então chefe de polícia em Paris. Quando Javert
chegou a Montreuil-sur-Mer, a fortuna do grande fabricante já estava feita,
e Pai Madeleine já se transformara em senhor Madeleine.
Certos membros da polícia têm uma fisionomia característica,
mesclada a um ar de baixeza e a um ar de autoridade. Javert tinha essa
fisionomia, menos a baixeza.
É nossa convicção que, se as almas fossem visíveis aos olhos,
veríamos distintamente essa estranha coisa de cada um dos indivíduos da
espécie humana corresponder a alguma das espécies da criação animal; e
poderíamos reconhecer facilmente esta verdade, entrevista apenas pelos
filósofos, de que, desde a ostra até a águia, desde o porco até o tigre, todos
os animais estão no homem, e cada um deles está em um homem.
Algumas vezes, vários deles ao mesmo tempo.
Os animais não são mais do que as imagens das nossas virtudes e
vícios vagando diante de nossos olhos, fantasmas visíveis de nossas almas
que Deus nos mostra para fazer-nos refletir. Como são simples sombras,
Deus não os fez educáveis em toda a extensão da palavra. Para quê? Ao
contrário, sendo nossas almas realidades, e tendo um fim que lhes é
próprio, Deus lhes deu a inteligência, isto é, a educação possível. A
educação social, sendo bem aplicada, pode extrair de uma alma, qualquer
que seja ela, toda a utilidade que contém.
Dizemos isso, bem entendido, restringindo-nos ao ponto de vista da
vida terrestre aparente, e sem julgar de antemão a profunda questão da
personalidade anterior ou ulterior dos seres que não são o homem. O eu
visível não autoriza de modo algum o pensador a negar o eu latente. Feita
essa restrição, prossigamos.
Agora, se por um momento admitem conosco que em todo homem há
uma das espécies de animais da Criação, será fácil dizer o que era o
policial Javert. Os camponeses asturianos têm a convicção de que, em
cada ninhada de loba, há um cão, a quem a mãe mata, senão ao crescer lhe
devoraria os outros filhotes.
Deem uma face humana a esse cão, filho de uma loba, e terão Javert.
Javert nascera em uma prisão, de uma cartomante que tinha o marido
nas galés. À medida que crescia, pensava estar fora da sociedade, e se
desesperou por retornar a ela. Notou que a sociedade conserva
irremissivelmente de fora duas classes de homens, os que a atacam e os
que a protegem; só podia escolher entre essas duas classes, ao mesmo
tempo que sentia em si um fundo de rigidez, de regularidade e de
probidade emaranhado a um ódio a essa raça de boêmios a que pertencia.
Entrou na polícia. Deu-se bem; aos quarenta anos era inspetor.
Em sua mocidade, fora vigia dos condenados do sul.
Antes de mais nada, entendamo-nos sobre as palavras face humana,
que acima aplicamos a Javert.
A face humana de Javert consistia em um nariz achatado, com largas
narinas, em direção às quais enormes costeletas subiam-lhe pelas faces. As
pessoas sentiam-se pouco à vontade ao ver pela primeira vez essas duas
florestas e as duas cavernas. Quando Javert ria, o que era raro e terrível,
seus lábios delgados separavam-se, deixando ver, não só os dentes, mas as
gengivas, formando-se em torno de seu nariz uma dobra achatada e
selvagem, como sobre o focinho de um animal feroz. Javert sério era um
cão de fila; quando ria, era um tigre. De resto, crânio pequeno, mandíbulas
grandes, cabelos escondendo a testa e a sobrancelha, entre os olhos, uma
ruga central permanente, como uma estrela de raiva, olhar sombrio, boca
contraída e temível, um ar de comando feroz.
Esse homem era composto de dois sentimentos muito simples e
relativamente muito bons, mas que ele tornava maus por exagerá-los; o
respeito à autoridade e o ódio à rebelião. E a seu ver o roubo, o homicídio,
todos os crimes, enfim, eram apenas formas de rebelião. Ele envolvia, em
uma espécie de fé cega e profunda, todos os que tinham uma função no
Estado, desde o primeiro-ministro até o guarda campestre, e cobria de
desprezo, de aversão e asco tudo o que tivesse, por uma vez, ultrapassado
o limite legal do mal. Era absoluto e não admitia exceções. De um lado,
dizia: “O funcionário não se engana, o magistrado nunca está errado”. E,
de outro lado: “Estes estão irremediavelmente perdidos. Nada de bom
pode sair deles”.
Compartilhava plenamente a opinião desses espíritos extremos que
atribuem à lei humana não se sabe que poder de fazer ou, se assim
quiserem, de provar que há demônios, e que colocam um Styx1 no fundo da
sociedade. Era um homem estoico, sério e austero; triste sonhador;
humilde e altivo como os fanáticos. Seu olhar era um estilete, frio e
perfurante. Toda a sua vida se encerrava nestas duas palavras: velar e
vigiar. Introduzira a linha reta no que havia de mais tortuoso no mundo;
tinha consciência de sua utilidade, a religião de suas funções, e era espião
como qualquer um seria sacerdote. Desgraçado de quem lhe caísse nas
mãos! Prenderia o próprio pai, se o encontrasse fugindo da prisão;
denunciaria a mãe, se ela escapasse do exílio; e teria feito isso com uma
espécie de satisfação interior própria da virtude. Com isso, uma vida de
privações, isolamento, abnegação, castidade; jamais uma distração. Era o
dever implacável, a polícia compreendida como os espartanos
compreendiam Esparta, uma sentinela impiedosa, uma honestidade feroz,
um espião de mármore, Brutus encarnado em Vidocq.
Toda a pessoa de Javert mostrava o homem que espia e que se esconde.
A escola mística de Joseph de Maistre, que naquela época dava um sabor
de alta cosmogonia ao que chamavam jornais-ultras, não deixaria de dizer
que Javert era um símbolo. Não se via sua testa, oculta pelo chapéu; não se
viam seus olhos, perdidos sob as sobrancelhas; não se via seu queixo,
mergulhado na gravata; não se viam suas mãos, enfiadas nas mangas; não
se via sua bengala, que trazia debaixo do casaco. Mas, havendo
oportunidade, via-se subitamente sair de toda essa sombra, como de uma
emboscada, uma estreita fronte angulosa, um olhar funesto, um queixo
ameaçador, umas mãos enormes, e um bastão monstruoso.
Nos momentos de ócio, pouco frequentes, embora odiasse os livros, ele
lia. Por isso não era de todo analfabeto. Reconhecia-se isso pela ênfase
com que falava.
Já dissemos que não tinha um só vício. Quando estava satisfeito
consigo mesmo, permitia-se uma pitada de rapé; assim mostrava gostar da
humanidade.
Facilmente compreender-se-á que Javert era o terror de toda esta
classe que a estatística anual do Ministério da Justiça designa pela rubrica:
Gente sem ocupação. O nome de Javert pronunciado fazia-os debandar; o
aparecimento de seu rosto petrificava-os.
Assim era esse homem temível.
Javert era como um olho continuamente fixo no senhor Madeleine,
mas um olho cheio de suspeita, de conjecturas. O senhor Madeleine
acabou percebendo, mas parecia não dar muita importância. Não fez uma
só pergunta a Javert; não o procurava, nem o evitava; suportava, não
parecendo prestar atenção, aquele olhar constrangedor e quase pesado.
Tratava Javert como tratava todo o mundo, com bondade e tranquilidade.
Por algumas palavras que Javert deixava escapar, adivinhava-se que
ele procurara secretamente, com aquela curiosidade característica da raça,
e em que há tanto de instinto como de vontade, todos os vestígios
anteriores que Pai Madeleine tivesse por acaso deixado atrás de si. Parecia
saber, e às vezes até dizia por meias palavras, que alguém havia tirado
algumas informações em certa região, a respeito de certa família
desaparecida. Uma vez ocorreu-lhe dizer, falando sozinho: “Acho que o
peguei!” Depois andou três dias pensativo, sem pronunciar uma palavra.
Parece que perdera o fio da meada.
De resto, e esse é o corretivo necessário caso o sentido de certas
palavras tenha se mostrado absoluto demais, não pode haver nada
verdadeiramente infalível na criatura humana, e é característico do
instinto justamente poder ser perturbado, desnorteado e derrotado, sem o
que seria superior à inteligência, e a besta viria a possuir melhor
compreensão que o homem.
Javert ficara evidentemente um tanto desconcertado com a serenidade
e o modo inteiramente natural do senhor Madeleine.
Um dia, porém, o proceder estranho daquele homem pareceu
impressionar Madeleine. Eis aqui em que ocasião.

VI. O PAI FAUCHELEVENT


O senhor Madeleine passava certa manhã por uma viela não calçada de
Montreuil-sur-Mer; ouviu barulho e viu um grupo de pessoas a pouca
distância. Aproximou-se. Um senhor de idade, chamado Pai Fauchelevent,
acabava de cair e ficara sob sua charrete, de onde o cavalo também
tombara.
O tal Fauchelevent era um dos raros inimigos que o senhor Madeleine
ainda tinha naquela época. Quando Madeleine chegou à cidade,
Fauchelevent, antigo tabelião e camponês quase letrado, tinha um
comércio, que começava a ir mal. Fauchelevent viu que aquele simples
operário enriquecia, enquanto ele, que era patrão, se arruinava. Isso o
encheu de inveja, de modo que fez o que podia para prejudicar Madeleine.
Depois veio a falência e, já velho, sem ter mais que uma charrete e um
cavalo, sem família e sem filhos, tornou-se charreteiro para ganhar a vida.
O cavalo tinha as duas pernas quebradas e não podia levantar-se; o
velho estava preso entre as rodas. A queda fora tão desastrosa que o
veículo todo pesava sobre seu peito; a charrete estava bastante carregada e
Pai Fauchelevent lançava gemidos lamentáveis. Tentaram retirá-lo dali,
mas em vão. Um esforço desordenado, um impulso desajeitado, um
movimento em falso poderiam matá-lo. Era impossível livrá-lo de outro
modo que não elevando o carro por baixo. Javert, que tinha chegado no
momento do acidente, mandara buscar um guincho.
O senhor Madeleine chegou; as pessoas afastaram-se com respeito.
— Socorro! — gritava o velho Fauchelevent. — Quem é a boa alma
que vai socorrer este velho?
Madeleine voltou-se para os circunstantes:
— Há um guincho por aí?
— Foram arranjar um — respondeu um camponês.
— Em quanto tempo vai chegar?
— Foram aonde era mais perto, em Flachot, onde há um ferrador; mas
vai demorar, pelo menos um quarto de hora.
— Um quarto de hora! — exclamou Madeleine.
Como tinha chovido na véspera, o chão estava encharcado e a charrete
afundava a cada instante, comprimindo cada vez mais o peito do velho
charreteiro. Era evidente que antes de cinco minutos estaria com as
costelas quebradas.
— É impossível esperar um quarto de hora — disse Madeleine aos
camponeses que olhavam.
— O jeito é esperar.
— Mas não chegará a tempo. Não estão vendo a charrete afundar?
— Caramba!
— Olhem — tornou Madeleine —, ainda há espaço para um homem
passar embaixo da charrete e erguê-la com as costas. Só um minuto e
tiramos o pobre homem. Há alguém aí que tenha rins e coração? Ganha
cinco moedas de ouro!
Ninguém do grupo se mexeu.
— Dez moedas! — disse Madeleine.
Os circunstantes baixaram os olhos. Um deles murmurou:
— Precisaria ser alguém forte como o diabo. E depois, é arriscado,
pode-se acabar esmagado!
— Vamos — recomeçou Madeleine —, vinte moedas!
O mesmo silêncio.
— Não é boa vontade que falta — disse uma voz.
Madeleine voltou-se e reconheceu Javert; não havia percebido que ele
chegava.
Javert continuou:
— É força; seria preciso ser um homem incrível para levantar um
carro assim com as costas.
Depois, olhando fixamente para o senhor Madeleine, prosseguiu,
acentuando cada uma das palavras que pronunciava:
— Senhor Madeleine, não conheci senão um homem que fosse capaz
de fazer o que o senhor quer.
Madeleine estremeceu.
Javert acrescentou com ar de indiferença, mas sem despregar os olhos
de Madeleine.
— Era um condenado.
— Ah! — disse Madeleine.
— Da prisão de Toulon.
Madeleine ficou pálido.
Enquanto isso, a charrete continuava a afundar lentamente. Pai
Fauchelevent gemia e urrava.
— Vou sufocar! Minhas costelas estão se quebrando! Um guincho!
Qualquer coisa! Ai!
Madeleine olhou em volta.
— Então não há ninguém que queira ganhar vinte moedas salvando a
vida deste pobre velho?
Ninguém se moveu. Javert tornou:
—Jamais conheci outro homem que pudesse substituir um guincho; era
o tal condenado.
— Ai! Estou sendo esmagado! — gritou o velho.
Madeleine ergueu a cabeça, encontrou o olhar de falcão de Javert,
sempre pregado nele, olhou para os camponeses imóveis, e sorriu com
tristeza. Depois, sem dizer uma palavra, caiu de joelhos, e antes mesmo
que a multidão tivesse tempo de soltar um grito, entrou debaixo do carro.
Houve um momento terrível de silêncio e de espera.
Viram-no quase de bruços, embaixo daquele peso medonho, tentar em
vão, por duas vezes, aproximar os cotovelos dos joelhos, e gritaram-lhe:
— Saia daí, Pai Madeleine!
O próprio Fauchelevent lhe disse:
— Senhor Madeleine, vá-se embora, tenho mesmo de morrer! Deixe-
me! O senhor também vai ser esmagado! — Madeleine não respondeu.
Os circunstantes estavam ofegantes. As rodas continuaram a afundar, e
já se tornara quase impossível que Madeleine saísse de debaixo do carro.
De súbito, viu-se a enorme massa se mover, a charrete erguia-se
vagarosamente e as rodas saíam um pouco da lama. Ao mesmo tempo,
ouviu-se uma voz abafada gritando:
— Rápido, ajudem!
Era Madeleine que acabava de fazer um último esforço.
Precipitaram-se todos. A dedicação de um só dera força e coragem a
todos. A charrete foi levantada por vinte braços. O velho Fauchelevent
estava salvo. Madeleine ergueu-se. Estava pálido e banhado em suor; suas
roupas rasgadas e cobertas de lama. Todo o mundo chorava. O velho o
abraçava pelos joelhos, chamando-o de Deus. Quanto a ele, tinha no rosto
certa expressão de sofrimento feliz e celeste, e fixava seu olhar tranquilo
em Javert, que ainda continuava a encará-lo.

VII. FAUCHELEVENT TORNA-SE JARDINEIRO EM


PARIS
Fauchelevent deslocara a rótula ao cair. Pai Madeleine ordenou que o
conduzissem a uma enfermaria que havia instalado para seus operários no
mesmo edifício em que tinha a fábrica; era cuidada por duas irmãs de
caridade. Na manhã seguinte, o velho achou uma nota de mil francos sobre
o criado-mudo, com a seguinte frase escrita pelo punho de Pai Madeleine:
Estou comprando sua charrete e seu cavalo.
A charrete estava quebrada e o cavalo morto. Fauchelevent sarou, mas
seu joelho ficou ancilosado. O senhor Madeleine, por recomendação das
irmãs e de seu abade, arranjou-lhe o lugar de jardineiro em um convento
de freiras no bairro de Saint-Antoine, em Paris.
Algum tempo depois, o senhor Madeleine foi nomeado prefeito. A
primeira vez que Javert o viu, com a faixa que lhe dava toda a autoridade
sobre a cidade, sentiu o tremor que percorreria o corpo de um cão de fila
que farejasse um lobo sob a roupa de seu dono. Daí em diante, evitou-o ao
máximo. Quando as obrigações do serviço o exigiam imperiosamente, e
não tinha outro remédio senão estar com o prefeito, falava-lhe com
profundo respeito.
A prosperidade de Montreuil-sur-Mer, criada pelo Pai Madeleine,
tinha, além dos sinais visíveis que já apontamos, um outro sintoma que,
mesmo não sendo visível, não deixava de ser significativo. Não há engano.
Quando a população sofre, quando falta trabalho, quando o comércio é
nulo, o contribuinte resiste ao imposto por penúria, não paga dentro dos
prazos, e o Estado despende muito dinheiro com taxas de cobrança.
Quando o trabalho é abundante, quando o lugar é rico e feliz, o imposto é
pago sem problemas e custa pouco ao Estado. Pode-se dizer que a miséria
e a riqueza pública têm um termômetro infalível, as despesas feitas com a
arrecadação de impostos. Em sete anos, as despesas dessa natureza
tinham-se reduzido a um quarto no distrito de Montreuil-sur-Mer, o que o
fazia, com frequência, ser citado entre todos os outros pelo senhor De
Villele, então ministro das finanças.
Essa era a situação da localidade quando Fantine para lá regressou.
Ninguém se lembrava mais dela. Felizmente, a porta da fábrica do senhor
Madeleine era como um rosto amigo. Apresentou-se ali e foi admitida na
oficina das mulheres. O serviço era inteiramente novo para ela; não tendo
ainda muita habilidade, tirava pouca coisa de sua jornada de trabalho, mas,
enfim, esse pouco bastava, o problema estava resolvido, ela ganhava sua
vida.

VIII. A SENHORA VICTURNIEN DESPENDE TRINTA


E CINCO FRANCOS COM A MORAL
Quando Fantine viu que conseguia ganhar a vida, teve um momento de
alegria. Que dom do céu, viver honradamente de seu trabalho. O gosto
pelo trabalho realmente voltara-lhe. Comprou um espelho, regozijou-se ao
ver sua juventude, seus belos cabelos e seus belos dentes, esqueceu muitas
coisas para não pensar senão em sua Cosette e na possibilidade de um
futuro melhor, sentindo-se quase feliz. Alugou um pequeno quarto e o
mobiliou a crédito sobre seu trabalho futuro, resto de seus hábitos de
desordem.
Como não podia dizer que era casada, teve todo o cuidado, como já
deixamos entrever, de nunca falar sobre sua filhinha.
No começo, já vimos, Fantine pagava com exatidão os Thénardier.
Como não sabia nada mais do que assinar seu nome, era obrigada a
escrever-lhes por intermédio de um escrevente público.
Escrevia sempre e isso foi notado. Começaram a murmurar na oficina
das mulheres que Fantine “escrevia cartas” e tinha “certas condutas”.
Não há nada melhor para espiar nossas ações do que gente a quem elas
não dizem respeito.
Por que será que aquele sujeito só vem à noitinha? Por que é que
fulano não deixa nunca a chave na porta às quintas-feiras? Por que sempre
pega as ruas mais estreitas? Por que será que aquela senhora sempre desce
da carruagem antes de chegar a casa? E para que manda comprar um bloco
de papel de carta, tendo “uma pasta cheia deles?”, etc., etc.
Há pessoas que, para decifrarem esses enigmas, que, aliás, lhes são
completamente indiferentes, despendem mais dinheiro, desperdiçam mais
tempo e têm mais trabalho do que seria preciso para praticar dez boas
ações; e isso gratuitamente, por puro prazer, por pura curiosidade.
Andarão dias inteiros atrás deste ou daquela; ficarão de sentinela por horas
nas esquinas, à entrada de uma alameda, à noite, no frio e na chuva;
subornarão mensageiros; embebedarão cocheiros e criados; pagarão
camareiras e porteiros. E para quê? Para nada. Puro empenho em ver, em
saber e penetrar. Puro comichão de falar. E, com frequência, o
conhecimento desses segredos, a publicação desses mistérios, o
esclarecimento desses enigmas engendram catástrofes, duelos, falências,
ruína de famílias, desgraça de existências, para o grande prazer dos que
“descobriram tudo” sem interesse e por puro instinto. Coisa triste!
Certas pessoas são maldosas unicamente pela necessidade que têm de
falar. Aquilo que dizem, conversa de salão, tagarelice nas salas de espera,
é como essas lareiras que consomem a lenha depressa, precisam de muito
combustível, e o combustível é a vida dos outros.
Assim, ficaram de olho em Fantine.
Além disso, mais de uma pessoa invejava seus cabelos loiros e seus
dentes brancos.
Repararam que, na oficina, no meio das outras, muitas vezes, ela
virava o rosto para enxugar uma lágrima. Eram os momentos em que
pensava em sua filhinha, e talvez também no homem que amara.
É um esforço doloroso a ruptura dos vínculos sombrios do passado.
Constataram que ela escrevia, pelo menos duas vezes por mês, sempre
para o mesmo endereço, e que as cartas eram franqueadas. Conseguiram
descobrir o endereço: Senhor Thénardier, estalajadeiro, Montfermeil.
Levaram o escrevente para a taverna, velho simplório que não podia
encher o estômago de vinho sem esvaziar a bolsa dos segredos. Logo se
soube que Fantine tinha uma criança. “Devia ser alguma mulher da vida.”
Houve uma bisbilhoteira que chegou a ir a Montfetmeil, falou com os
Thénardier, e voltou dizendo: “Pelos meus trinta e cinco francos, consegui
saber o que queria. Vi a criança!”
A bisbilhoteira que fez isso era uma mulher chamada Victurnien,
sentinela e porteira da virtude de todo o mundo. A senhora Victurnien
tinha cinquenta e seis anos, e usava a dupla máscara da feiura e da velhice.
Voz de cabra, espírito caprino. E, coisa admirável, essa velha tinha sido
jovem! E, na juventude, em pleno 1793, casou-se com um monge que
fugira do claustro com um barrete de cardeal na cabeça, passando dos
bernardinos para os jacobinos. Era uma velha seca, áspera, azeda, geniosa,
espinhosa, quase venenosa, sempre se lembrando de seu monge, de quem
ficara viúva, que conseguira amansá-la e subjugá-la. Era uma urtiga na
qual se via a marca da batina. No tempo da Restauração, fizera-se beata, e
tão intensamente que os padres chegaram a perdoá-la por seu monge.
Tinha uma pequena fortuna, que doara ruidosamente a uma comunidade
religiosa, ficando assim muito bem vista no bispado de Arras.
Essa senhora Victurnien, então, foi a Montfermeil, e voltou de lá
dizendo: “Eu vi a criança”.
Tudo isso levou certo tempo. Fantine trabalhava havia mais de um ano
na fábrica quando um dia a encarregada da oficina entregou-lhe cinquenta
francos, por parte do senhor prefeito, dizendo-lhe que não fazia mais parte
da oficina, e intimando-a, por parte do senhor prefeito, a deixar a cidade.
Isso aconteceu exatamente no mesmo mês em que os Thénardier, já
tendo exigido doze francos em vez de sete, acabavam de exigir quinze em
vez de doze.
Fantine ficou aterrorizada. Não podia ir embora, devia o aluguel e os
móveis. Cinquenta francos não eram suficientes para pagar essa dívida.
Balbuciou algumas frases suplicantes, mas a encarregada comunicou-lhe
que devia sair imediatamente da oficina. Fantine, afinal, não passava de
uma operária medíocre. Oprimida, mais pela vergonha do que pelo
desespero, saiu da oficina e foi para seu quarto. Seu erro já era então
conhecido de todos!
Não teve forças para dizer mais uma palavra; aconselharam-na a falar
com o prefeito, mas não se atreveu. Ele dera-lhe cinquenta francos porque
era bom, e a expulsava porque era justo. Ela vergou-se ao peso de tal
sentença!
IX. SUCESSO DA SENHORA VICTURNIEN
A viúva do monge, portanto, serviu para alguma coisa.
Mas o senhor Madeleine nada soube de tudo aquilo. É dessas
combinações de acontecimentos que a vida está cheia.
Ele tinha por hábito quase nunca entrar na oficina das mulheres. Pusera
à testa dessa oficina uma senhora que lhe fora recomendada pelo padre, e
em quem tinha toda a confiança, pois era uma pessoa realmente
respeitável, firme, justa, íntegra, cheia do espírito de caridade que consiste
em dar, mas não tendo o mesmo grau do espírito de caridade que consiste
em compreender e perdoar. O senhor Madeleine entregava tudo nas mãos
dela. Os melhores homens são muitas vezes obrigados a delegar sua
autoridade. Foi com esses plenos poderes, e a convicção de que fazia o
certo, que a encarregada instruíra o processo, julgara, condenara e
executara Fantine.
Quanto aos cinquenta francos, tirou-os de uma quantia que o senhor
Madeleine lhe confiava, à guisa de esmolas e ajuda às operárias, e da qual
não tinha de prestar contas.
Fantine ofereceu-se como criada na cidade; foi de casa em casa, mas
ninguém quis seus serviços. Não pôde sair da cidade. O negociante a quem
devia os móveis usados — e que móveis! — disse-lhe: “Se você for
embora, mando prendê-la como ladra”.
E o senhorio a quem devia o aluguel disse-lhe: “Você é nova e bonita,
conseguirá pagar”.
Ela repartiu os cinquenta francos entre o senhorio e o vendedor de
móveis, devolveu a este parte da mobília, ficando só com o necessário, e
viu-se sem trabalho, sem profissão, não tendo mais que sua cama, e
devendo ainda quase cem francos.
Começou a costurar camisas grosseiras para os soldados da guarnição,
ganhando doze soldos por dia. Tirava dez para custear a filha. Foi nessa
ocasião que ela começou a falhar no pagamento aos Thénardier.
Mas uma velhinha, que lhe acendia a vela quando retornava à noite,
ensinou-lhe a arte de viver na miséria. Ainda além do viver com pouco, há
o viver com nada. São duas câmaras: a primeira é sombria, a segunda é
negra.
Fantine aprendeu como passar inteiramente sem fogo no inverno,
como renunciar a um passarinho que come um pouquinho de painço a cada
dois dias, como fazer de uma saia um cobertor e de um cobertor uma saia,
como poupar a vela, ceando à luz que vem da janela do vizinho. Não
sabemos tudo o que certos entes frágeis, envelhecidos na penúria e na
honestidade, sabem tirar de um soldo. Afinal de contas, isso é um talento.
Fantine adquiriu esse sublime talento, e recobrou um pouco de coragem.
Nessa época, ela dizia a uma vizinha:
— Sabe, eu penso: tirando só cinco horas para dormir, e trabalhando
todo o resto na costura, sempre vou conseguir ganhar meu pão. E também,
quando a gente está triste, a gente come menos. É isso, sofrimentos,
preocupações, um bocadinho de pão daqui, mágoas dali, tudo isso vai me
alimentar.
No meio dessa aflição, poder estar com sua filhinha teria sido uma
estranha felicidade. Pensou em mandar buscá-la. Mas quê! Fazê-la
partilhar de sua penúria! E depois, estava devendo aos Thénardier! Como
pagar? E a viagem! Como pagar?
A velha, que lhe dera o que se poderia chamar de lições de vida
indigente, era uma santa mulher chamada Marguerite, devota, mas da boa
devoção, pobre e caridosa com os pobres, e até com os ricos, sabendo
escrever apenas o suficiente para assinar Marguerite, mas acreditando em
Deus, o que é a verdadeira ciência.
Existe muita gente de virtude que está por baixo; um dia elas estarão
por cima. Essa vida tem seu amanhã.
Nos primeiros tempos, Fantine ficara tão envergonhada que não ousava
sair. Quando estava na rua, percebia que todos se voltavam para olhá-la e
apontá-la com o dedo; todo o mundo a via, mas ninguém a saudava. O
desprezo amargo e frio dos que passavam penetrava-lhe na alma e na carne
como um vento gelado.
Nas cidades pequenas, parece que uma infeliz dessas está nua diante do
sarcasmo e da curiosidade de todos. Em Paris, ao menos, ninguém se
conhece, e essa obscuridade é uma proteção. Oh! Como ela desejou ir para
Paris! Impossível.
Precisava acostumar-se à falta de consideração como havia se
acostumado à indigência. Pouco a pouco resignou-se. Após dois ou três
meses, pôs de lado a vergonha e começou a sair, como se nada tivesse
acontecido. “Que me importa!”, disse ela.
Ia e voltava de cabeça erguida, um sorriso amargo nos lábios, sentindo
que se tornava audaciosa.
A senhora Victurnien, de sua janela, às vezes a via passar e notava a
pobreza “daquela criatura” que, graças a ela, tinha voltado “a seu lugar”, e
se felicitava. Os maus têm uma felicidade negra.
O excesso de trabalho cansava Fantine, e aquela tossezinha seca que
tinha aumentou. Às vezes dizia para sua vizinha:
— Sinta como minhas mãos estão quentes.
No entanto, pela manhã, enquanto penteava, com um pente velho e
quebrado, seus belos cabelos que pendiam como uma seda aveludada,
tinha um minuto de vaidade feliz.

X. CONTINUAÇÃO DO SUCESSO
Fantine fora despedida no final do inverno; o verão passou e veio outro
inverno. Dias curtos, menos trabalho. No inverno, nem calor, nem luz,
nem meio-dia, a noite emenda com o dia, neblina, crepúsculo, janela
cinzenta; não se vê com clareza. O céu é um respiradouro; o dia inteiro,
um porão; o sol tem um aspecto pobre. Que horrível estação! O inverno
transforma em pedra a água do céu e o coração do homem.
Seus credores a importunavam.
Fantine ganhava pouquíssimo. Suas dívidas tinham crescido. Os
Thénardier, mal pagos, escreviam-lhe a todo instante cartas cujo conteúdo
a preocupava, e cujas franquias a arruinavam. Um dia escreveram-lhe
dizendo que a pequena Cosette estava praticamente nua para o frio que
fazia, que precisava de uma saia de lã, e que para isso era necessário que a
mãe remetesse dez francos. Recebeu a carta e ficou com ela nas mãos o
dia todo. À noite, entrou em uma barbearia que ficava na esquina da rua,
desfez o penteado. Seus admiráveis cabelos louros caíram até a cintura.
— Que belos cabelos! — exclamou o barbeiro.
— Quanto me daria por eles? — perguntou.
— Dez francos.
— Corte-os.
Comprou uma saia de lã e remeteu-a aos Thénardier, que se
enfureceram porque era o dinheiro que queriam. Deram a saia a Éponine, e
a pobre Cotovia continuou a tiritar.
Fantine pensou: “Minha filhinha não tem mais frio, a vesti com meus
cabelos”.
Usava umas toucas redondas que escondiam o cabelo cortado, mas
mesmo assim continuava bonita.
Ocorria algo tenebroso no coração de Fantine. Quando viu que já não
podia pentear-se, começou a ter ódio de tudo o que a cercava. Por muito
tempo, partilhara a veneração geral por Pai Madeleine; contudo, à força de
repetir a si mesma que tinha sido ele quem a despedira, e que era ele a
causa de seu sofrimento, passou a odiá-lo também e principalmente.
Quando passava diante da fábrica, nas horas em que os operários estavam
à porta, fingia rir e cantar.
Uma velha operária, que uma vez a viu cantar e rir daquela maneira,
disse: “Essa moça vai acabar mal”.
Arrumou um amante, o primeiro que apareceu, um homem a quem não
amava, por fanfarrice, com raiva no coração. Era um miserável, uma
espécie de músico mendigo, um velhaco ocioso que batia nela, e que a
abandonou do mesmo modo como ela ficara com ele, com desprezo.
Fantine adorava sua filha.
Quanto mais descia, quanto mais sombrio tudo se tornava ao seu redor,
mais aquele doce anjinho iluminava o fundo de sua alma. Ela dizia:
“Quando eu for rica, minha Cosette ficará comigo”. E ria. A tosse não a
largava, e tinha sempre as costas suadas.
Um dia, recebeu uma carta dos Thénardier, nos seguintes termos:
“Cosette está doente, é uma moléstia que vem ocorrendo nesta região, uma
febre miliar, como estão chamando. Os remédios de que ela necessita são
caros, e isso está nos arruinando, não podemos mais pagar. Se não nos
enviar quarenta francos dentro de oito dias a pequena morrerá”.
Começou a gargalhar, dizendo para sua velha vizinha:
— Ah! Eles são incríveis! Quarenta francos! Só isso! São dois
napoleões! De onde eles querem que eu tire? São idiotas esses
camponeses!
Porém, subiu a escada e releu a carta perto de uma janela. Depois
desceu e saiu correndo, saltando e rindo sem parar.
Alguém que a encontrou disse-lhe:
— O que acontece para estar tão alegre?
Ela respondeu:
— É uma bobagem que umas pessoas do campo acabam de me
escrever. Pedem quarenta francos. Coisa de camponeses!
Ao passar pela praça, viu muita gente que, de forma estranha, cercava
uma carruagem, em cuja parte superior discursava, de pé, um homem
vestido de vermelho. Era um dentista charlatão que oferecia ao público
dentaduras completas, opiatos, pós e elixires.
Fantine misturou-se ao grupo e pôs-se a rir, como os outros, daquela
arenga onde havia gíria para o populacho e frases pretenciosas para as
pessoas de melhor nível. O arrancador de dentes viu aquela bela moça
rindo, e exclamou de repente:
— Você tem uns lindos dentes, essa moça que está rindo aí. Se quiser
vender-me suas duas palettes, dou-lhe um napoleão de ouro por cada uma.
— Minhas palettes! O que é isso?
— As palettes — tornou o professor dentista — são os dentes da
frente, os dois de cima.
— Que horror! — exclamou Fantine.
— Dois napoleões! — resmungou uma velha desdentada que estava
por ali. — Essa é que é feliz!
Fantine fugiu tapando os ouvidos para não escutar a voz rouquenha do
homem que lhe gritava:
— Pense bem, minha flor! Dois napoleões, pode ser bem útil! Se o
coração lhe pedir, vá esta noite ao albergue do Tillac d’argent, estarei lá.
Fantine voltou para casa furiosa, e foi contar o caso à sua boa vizinha
Marguerite:
— A senhora faz ideia disso? Não é um homem abominável, aquele?
Como é que deixam uma gente daquela andar na cidade! Arrancar meus
dois dentes da frente! Eu ficaria horrível! Os cabelos, esses ainda tornam a
nascer, mas os dentes! Ah! Que monstro de homem! Antes me jogar de
cabeça de um quinto andar! Disse-me que esta noite estará no Tillac
d’argent.
— E quanto é que oferecia? — perguntou Marguerite.
— Dois napoleões.
— Isso dá quarenta francos.
— É — disse Fantine —, dá quarenta francos.
Ficou pensativa, mas foi pegar na costura. Passado um quarto de hora,
parou a costura e tornou a ir à escada ler a carta dos Thénardier.
Quando voltou, perguntou a Marguerite, que trabalhava perto dela:
— O que é mesmo febre miliar? A senhora sabe?
— Sei — respondeu a velha —, é uma doença.
— E é preciso tomar muitos remédios?
— Nossa! E remédios fortes!
— E como se pega isso?
— É uma doença que a gente pega por acaso.
— Então ataca as crianças?
— Principalmente as crianças.
— Será que se morre disso?
— Oh! Se morre, sim — disse Marguerite.
Fantine saiu e mais uma vez foi ler a carta na escada.
À noite, desceu, e viram-na ir para os lados da rua de Paris onde ficam
os albergues.
No outro dia, quando Marguerite entrou no quarto de Fantine ainda
antes de se fazer dia, pois trabalhavam sempre juntas, para assim
acenderem uma só vela, encontrou Fantine sentada na cama, pálida,
gelada. Não havia deitado. Sua touca caíra sobre os joelhos, e a vela, que
ardera a noite inteira, estava quase de todo consumida.
Marguerite parou na soleira, petrificada com aquela grande desordem,
e exclamou:
— Senhor! A vela toda gasta! Alguma coisa aconteceu!
Depois olhou para Fantine, que voltava para ela a cabeça sem cabelos.
Fantine havia envelhecido dez anos, desde a véspera.
— Jesus! — disse Marguerite. — O que você tem, Fantine?
— Não tenho nada — respondeu Fantine. — Pelo contrário. Minha
filha não morrerá dessa terrível doença por falta de recursos.
E, ao dizer isso, mostrava à velha dois napoleões que brilhavam em
cima da mesa.
—Ai! Santo Deus! — disse Marguerite. — Que fortuna! Onde arrumou
essas moedas de ouro?
— Ganhei — respondeu Fantine, sorrindo ao mesmo tempo. A vela
iluminava seu rosto. Era um sorriso ensanguentado. Uma saliva
avermelhada sujava-lhe os cantos dos lábios, e ela tinha um buraco escuro
na boca.
Os dois dentes foram arrancados.
Fantine remeteu os quarenta francos a Montfermeil. Porém, tudo
aquilo fora um ardil dos Thénardier para obter dinheiro. Cosette não
estava doente.
Fantine jogou seu espelho pela janela. Havia muito, saíra de seu
quarto, no segundo andar, para ocupar um cubículo fechado por um
ferrolho, um desses sótãos cujo teto faz ângulo com o assoalho, e onde a
cada instante se machuca a cabeça. O pobre não pode chegar no fundo de
seu quarto, nem de seu destino, senão curvando-se mais e mais. Fantine já
não tinha cama; restava-lhe um farrapo a que chamava de cobertor, um
colchão no chão e uma cadeira sem assento. Uma pequena roseira havia
secado em um canto, esquecida. Em outro canto, via-se um recipiente para
colocar água, que gelava no inverno, e no qual os diferentes níveis da água
ficavam por muito tempo marcados em círculos de gelo. Ela perdera a
vergonha e a vaidade. Último sinal. Saía com a touca suja; por falta de
tempo, ou por indiferença, não consertava mais a roupa; à medida que os
calcanhares das meias se rasgavam, puxava-os para dentro dos sapatos, o
que se via pelas pregas perpendiculares que se formavam; remendava seu
colete, velho e estragado, com pedaços de chita que rasgavam ao menor
movimento. As pessoas a quem devia faziam-lhe “cenas” e não lhe davam
sossego; encontrava-as na rua, tornava a encontrá-las nas escadas de onde
morava.
Passava noites e noites chorando e pensando. Tinha os olhos muito
brilhantes e sentia uma dor fixa no ombro, na região da omoplata
esquerda. Tossia muito. Odiava profundamente o Pai Madeleine, mas não
se queixava. Costurava dezessete horas por dia, mas um fornecedor de
trabalho das prisões, que fazia as prisioneiras trabalharem por muito
pouco, fez de repente os preços baixarem, o que reduziu o salário das
costureiras livres a nove soldos. Dezessete horas de trabalho e nove soldos
por dia! Os credores estavam mais do que nunca desapiedados; o
negociante de móveis, que havia retomado quase tudo, dizia-lhe sem
parar:
— Quando vai me pagar, descarada?
Que queriam que ela fizesse, bom Deus? Sentia-se perseguida e se
desenvolvia nela alguma coisa de animal feroz. Nessa mesma ocasião,
Thénardier escreveu-lhe dizendo que decididamente esperara com
demasiada bondade, mas que precisava de cem francos, imediatamente,
senão colocaria Cosette no meio da rua, ainda convalescente da grave
doença, exposta ao frio e aos perigos, e que ela se virasse como pudesse,
que morresse se quisesse.
Cem francos, pensou Fantine. Mas onde há um lugar onde se ganhem
cem soldos por dia?
— Vamos lá! — disse ela. — Vamos vender o resto.
E a infeliz fez-se prostituta.

XI. CHRISTUS NOS LIBERAVIT2


O que é essa história de Fantine? É a sociedade comprando uma
escrava.
De quem? Da miséria.
Da fome, do frio, do isolamento, do abandono, da privação. Dolorosa
negociação. Uma alma por um pedaço de pão. A miséria oferece, a
sociedade aceita.
A sagrada lei de Cristo governa a nossa civilização, mas ainda não a
impregnou. Dizem que a escravidão desapareceu da civilização europeia: é
um erro. Existe ainda, mas não pesa senão sobre a mulher, e chama-se
prostituição.
Pesa sobre a mulher, isto é, sobre a graça, sobre a fraqueza, sobre a
beleza, sobre a maternidade. E essa não é uma das menores vergonhas do
homem.
No ponto a que chegamos deste doloroso drama, nada restou a Fantine
daquilo que havia sido. Tornou-se mármore ao converter-se em lama.
Quem a toca sente frio. Ela passa, ela nos suporta, ela nos ignora; é a
figura severa da desonra. A vida e a ordem social deram a ela sua última
palavra. Já lhe aconteceu tudo o que tinha de acontecer. Sentiu tudo,
suportou tudo, experimentou tudo, sofreu tudo, perdeu tudo e chorou tudo.
Resignou-se, com aquela resignação que se assemelha à indiferença, como
a morte se assemelha ao sono. Não evita mais nada. Não teme mais nada.
Recaem sobre ela todas as nuvens pesadas, passa sobre ela o oceano todo.
Que lhe importa? É uma esponja embebida.
É o que ela pensa, ao menos; mas é um erro imaginar que se esgota o
destino e que se chega ao fundo do que quer que seja.
Ah! Que são todos esses destinos impelidos assim confusamente? Para
onde vão? Por que têm de ser assim?
Aquele que sabe a resposta vê todas as sombras.
É um só. Chama-se Deus.
XII. A OCIOSIDADE DO SENHOR BAMATABOIS
Há, em todas as cidades pequenas, e havia em Montreuil-sur-Mer,
particularmente, uma classe de jovens que abocanham mil e quinhentos
francos de renda na província com o mesmo ar com que, em Paris, seus
pares devoram duzentos mil francos por ano. São entes da grande espécie
neutra; estéreis, parasitas, nulos; que têm um pouco de terra, um pouco de
tolice e um pouco de espírito; que seriam uns caipiras em um salão,
pretendendo-se fidalgos em uma taverna; que dizem: meus prados, meus
bosques, meus camponeses; que ovacionam as atrizes de teatro para provar
que são pessoas de gosto; que discutem com os oficiais da guarnição para
mostrar que são valentes; caçam, fumam, bocejam, bebem, cheiram a
tabaco, jogam bilhar, olham os viajantes descerem da diligência, passam a
vida nos cafés, jantam nas hospedarias, têm um cão que rói os ossos
debaixo da mesa e uma amante que põe os pratos em cima; fazem questão
de um soldo, exageram na moda, admiram as tragédias, olham para as
mulheres com desprezo, desgastam suas botas velhas, copiam Londres
através de Paris e Paris através de Pont-à–Mousson, envelhecem patetas,
não trabalham, não servem para nada, mas tampouco causam grande mal.
Félix Tholomyès, se tivesse ficado em sua província e nunca tivesse
visto Paris, teria sido um desses homens.
Se fossem mais ricos, diriam: são elegantes; se fossem mais pobres,
diriam: são vadios. São ociosos, simplesmente. E há entre eles os que
aborrecem, os que se aborrecem, os tresloucados, e alguns esquisitos.
Naquele tempo, um elegante se fazia com grandes colarinhos, uma
bela gravata, um relógio com berloques, três coletes de cores diferentes
sobrepostos, o azul e o vermelho por dentro, uma casaca curta cor de oliva,
com a cauda aberta, duas fileiras de botões prateados apertados uns contra
os outros e subindo acima do ombro, e umas calças cor de oliva mais
clara, com pregas em número indeterminado, mas sempre ímpar, variando
de uma a onze, limite que nunca era ultrapassado. Acrescentem a isso
botas com chapinhas de ferro nos saltos, chapéu de copa alta e abas
estreitas, cabelo com topete, uma grande bengala, e uma linguagem
rebuscada, com trocadilhos de Poitier. Além de tudo isso, esporas e
bigode. Naquela época, bigode significava burguês, e esporas, peão.
O elegante de província usava esporas maiores e bigodes mais
selvagens.
Era o tempo da luta das repúblicas da América Meridional contra o rei
da Espanha, de Bolívar contra Murillo. Os chapéus de abas estreitas eram
realistas e chamavam-se “murillos”; os liberais usavam chapéus de abas
largas, chamados “bolívares”.
Oito ou dez meses, então, após o que foi contado nas páginas
precedentes, nos primeiros dias de janeiro de 1823, em uma noite em que
tinha nevado, um desses elegantes, um desses ociosos, um “bom
pensador”, pois usava um “murillo”, aconchegadamente agasalhado com
um dos amplos capotes que completavam, no tempo do frio, o traje da
moda, divertia-se a chacotear uma criatura que andava, com vestido de
baile, toda decotada, com flores na cabeça diante das vidraças do café dos
oficiais. O tal elegante fumava, porque, decididamente, essa era a moda.
Cada vez que aquela mulher passava diante dele, o elegante lançava-
lhe, junto com uma baforada de fumaça do seu charuto, alguma frase que
julgava espirituosa e engraçada, algo assim:
— Como você é feia! Melhor se esconder! Não tem dentes! Etc., etc.
Esse homem chamava-se senhor Bamatabois.
A mulher era um triste espectro paramentado que ia e vinha por cima
da neve, sem lhe responder, sem nem mesmo olhar para ele, e nem por
isso sem deixar de completar, em silêncio, e com uma regularidade
sombria, o vaivém que a levava, de cinco em cinco minutos, ao sarcasmo
dele, como o soldado condenado que volta para receber a chicotada. Não
ver nenhum resultado naquilo incomodou o folgado, que, aproveitando-se
de um momento em que ela se virava, seguiu-a na ponta dos pés,
sufocando o riso, abaixou-se, pegou um punhado de neve do chão, e atirou
bruscamente em suas costas, entre os ombros nus. A moça soltou um
rugido, voltou-se, saltou como uma pantera, e arremessou-se sobre ele,
cravando-lhe as unhas no rosto, falando as mais horríveis palavras que
podia. Essas injúrias, vomitadas por uma voz enrouquecida pela bebida,
saíam torpemente de uma boca à qual, de fato, faltavam os dois dentes da
frente. Era Fantine.
Ouvindo o rumor que isso causou, os oficiais saíram aos montes do
café, juntaram-se aos que passavam e formavam imediatamente um
grande círculo, que ria, vaiava e aplaudia, em volta daquele turbilhão
composto de duas pessoas que mal se distinguia serem um homem e uma
mulher; o homem debatendo-se, seu chapéu pelo chão; a mulher dando
pontapés e murros, despenteada, berrando, sem dentes e sem cabelos,
lívida de cólera, horrível.
Subitamente, um homem de porte alto saiu do meio da multidão,
agarrou a mulher pela cintura do vestido de cetim coberto de lama, e
disse-lhe:
— Venha comigo!
A mulher levantou a cabeça; sua voz furiosa desvaneceu-se
rapidamente. Seus olhos ficaram vidrados, de lívida tornou-se pálida, e
tremia com um estremecimento de terror. Ela reconhecera Javert.
O elegante aproveitou o incidente para se safar.

XIII. SOLUÇÃO DE ALGUMAS QUESTÕES DE


POLÍCIA MUNICIPAL
Javert afastou os circunstantes, rompeu o círculo e pôs-se a andar
rapidamente em direção à delegacia de polícia, na extremidade da praça,
arrastando a miserável, que se deixava ir maquinalmente. Nem ele nem ela
diziam uma só palavra. A nuvem de espectadores, no auge da alegria, os
seguia dizendo gracejos. A suprema miséria dá oportunidade a
obscenidades.
Chegando à delegacia, uma sala baixa, aquecida por um fogareiro e
protegida por um corpo de guarda, com uma porta envidraçada e gradeada
que dava para a rua, Javert entrou com Fantine, fechando a porta atrás de
si, para grande desapontamento dos curiosos, que se ergueram nas pontas
dos pés e estenderam o pescoço diante do vidro meio tampado pelos
soldados da guarda, tentando ver o que se passava. A curiosidade é uma
guloseima. Ver é devorar.
Ao entrar, Fantine caiu em um canto, imóvel e calada, encolhida como
uma cadela amedrontada.
O sargento da guarda colocou uma vela acesa sobre uma mesa; Javert
sentou-se, tirou uma folha de papel timbrado do bolso e pôs-se a escrever.
Esta classe de mulheres está, pelas nossas leis, inteiramente à
disposição da polícia, que faz dela o que lhe apraz, punindo-a como bem
entende e confiscando-lhe a bel prazer as duas tristes coisas que ela chama
sua indústria e sua liberdade. Javert estava impassível, seu rosto sério não
demonstrava emoção alguma. No entanto, ele estava grave e
profundamente preocupado. Era um daqueles momentos em que ele
exercia, sem controle, mas com todos os escrúpulos de uma consciência
severa, seu temível poder discricionário. Naquele instante, ele sentia, seu
lugar de agente de polícia era um tribunal. Ele julgava. Ele julgava e ele
condenava. Fazia apelo a todas as ideias que podia ter no espírito sobre a
importante tarefa que cumpria. Quanto mais examinava o procedimento
daquela mulher, mais revoltado se sentia; era evidente que ele acabava de
presenciar um crime. Acabava de ver, ali, no meio de uma rua, a
sociedade, representada por um proprietário-eleitor, atacada, insultada por
uma criatura excluída de tudo. Uma prostituta atentando contra um
burguês. Ele, Javert, viu tudo; e escrevia em silêncio.
Após terminar, assinou, dobrou o papel e, entregando-o ao sargento da
guarda, disse:
— Chame três soldados, e conduza essa mulher à cadeia.
Depois, voltando-se para Fantine:
— Vai ficar aí por seis meses.
A infeliz estremeceu.
— Seis meses! Seis meses de prisão! — gritou ela. — Seis meses
ganhando sete soldos por dia! Mas que será de Cosette? Minha filha!
Minha filha! Mas eu ainda devo mais de cem francos aos Thénardier,
senhor inspetor, sabia?
Ela arrastou-se pelo piso molhado, entre as botas enlameadas de todos
aqueles homens, sem se levantar, de mãos juntas, dando grandes passos
com os joelhos.
— Senhor Javert — disse ela —, peço seu perdão. Asseguro-lhe que eu
não errei. Se tivesse presenciado como aquilo começou, teria visto! Juro
pelo bom Deus que eu não errei! Foi aquele burguês, que eu nem conheço,
que colocou neve em minhas costas. Será que alguém tem direito de nos
jogar neve nas costas, quando a gente passa assim tranquilamente, sem
fazer mal a ninguém? Aquilo me enfureceu. O senhor vê que estou doente,
e, além disso, já fazia tempo que ele me falava gracinhas: “Você é feia!
Não tem dentes!” Sei muito bem que não tenho mais meus dentes. Eu não
estava fazendo nada; eu pensava: é um senhor que quer se divertir! Fui
bem educada, não falei com ele. Foi então que ele jogou neve em mim.
Senhor Javert, meu bom senhor inspetor! Será que ninguém ali viu a cena,
para dizer ao senhor que essa é a verdade? Talvez eu tenha feito mal em
me aborrecer, mas o senhor sabe, na hora, a gente não pensa. Foi um
impulso. E depois, sentir uma coisa tão fria nas costas, sem a gente
esperar! Fiz mal em estragar o chapéu daquele senhor, mas por que ele foi
embora? Eu ia pedir-lhe perdão. Oh, meu Deus, não me custaria nada
pedir-lhe perdão! Perdoe-me desta vez, senhor Javert. Olhe, o senhor não
sabe, na cadeia a gente só ganha sete soldos, não é por culpa do governo,
mas só se ganha sete soldos, e imagine que tenho de pagar cem francos,
senão vão colocar minha filhinha na rua. Oh, meu Deus! Eu não posso
ficar com ela aqui; é tão torpe a vida que levo! Ó minha Cosette, ó meu
anjinho do céu, que será dela, coitadinha! Vou lhe contar, são os
Thénardier, os estalajadeiros, gente da aldeia, com eles não tem conversa,
precisam de dinheiro. Não me ponha na cadeia! Veja, é uma criança que
vão abandonar pela rua, ao deus-dará, em pleno inverno, é preciso ter
compaixão dessas coisas, meu bom senhor Javert. Se já fosse mais
crescidinha, iria ganhando sua vida, mas naquela idade não dá. Eu não sou
uma mulher má. Não foi a covardia, nem a avidez que me fizeram isso. Eu
bebi, mas é por causa da miséria; eu não gosto disso, mas faz esquecer.
Quando eu era mais feliz, bastava olharem meus armários para verem que
eu não era uma desleixada. Tinha roupas, muitas roupas. Tenha piedade de
mim, senhor Javert!
Assim falava Fantine, partida em duas, sacudida pelos soluços, com a
vista turvada pelas lágrimas, o pescoço nu, retorcendo as mãos, com
acessos de uma tosse seca e curta, balbuciando com a voz lenta da agonia.
Uma grande dor é um raio divino e terrível que transfigura os miseráveis.
Naquele instante, Fantine voltara a ser bela. Em alguns momentos, parava
e beijava com ternura o casaco do inspetor. Fantine teria enternecido um
coração de granito, mas não se enternece um coração de madeira.
— Vamos! — disse Javert. — Já escutei você; disse tudo o que queria?
Agora ande. Serão seis meses; nem o Padre Eterno em pessoa poderia
fazer alguma coisa.
Ouvindo as solenes palavras nem o Padre Eterno em pessoa poderia
fazer alguma coisa, ela compreendeu que sua prisão estava decretada.
Curvou-se murmurando:
— Piedade!
Javert deu-lhe as costas.
Os soldados seguraram-na pelo braço.
Havia alguns minutos, um homem entrara, sem que ninguém
percebesse. Fechou a porta, encostou-se nela, e ouviu as súplicas
desesperadas de Fantine.
No momento em que os soldados colocaram a mão na infeliz, que não
queria levantar-se, o tal homem deu um passo, saindo da sombra, e disse:
— Um instante, por favor!
Javert levantou os olhos e reconheceu o senhor Madeleine; tirou o
chapéu e o saudou com uma espécie de constrangimento aborrecido,
dizendo:
— Perdão, senhor prefeito.
As palavras senhor prefeito causaram em Fantine um estranho efeito.
Pôs-se de pé, de uma só vez, como um espectro que saísse da terra,
empurrou os soldados com os braços, foi em direção ao senhor Madeleine
antes que pudessem segurá-la e, olhando-o fixamente, com ar desvairado,
gritou:
— Ah! Então é você o senhor prefeito?
E cuspiu-lhe no rosto, desatando a rir.
O senhor Madeleine enxugou o rosto e disse:
— Inspetor Javert, ponha essa mulher em liberdade.
Javert sentiu-se a um passo de enlouquecer. Naquele instante,
experimentava, uma após a outra, e quase todas misturadas, as emoções
mais violentas que já havia sentido na vida. Ver uma mulher de rua cuspir
no rosto de um prefeito era uma coisa tão monstruosa que, em suas
suposições mais medonhas, teria considerado um sacrilégio só imaginar
essa possibilidade. Por outro lado, no fundo de seu pensamento, fazia
confusamente uma aproximação pavorosa entre o que era aquela mulher e
o que podia ser aquele prefeito, e entrevia então com horror algo de muito
simples naquele prodigioso atentado. Quando viu, porém, aquele prefeito,
aquele magistrado, limpar o rosto tranquilamente e dizer: ponha essa
mulher em liberdade, teve uma espécie de vertigem de espanto; falharam-
lhe igualmente o pensamento e as palavras; tinha ultrapassado os limites
do espanto possível. Ficou mudo.
Aquela frase não causou menos estranheza a Fantine. Levantou o braço
nu e agarrou-se ao fogareiro, como alguém que cambaleia. Enquanto isso,
olhando tudo a seu redor, começou a falar em voz baixa, como se falasse a
si própria:
— Em liberdade! Que me deixem ir! Que eu não fique seis meses na
cadeia! Quem disse isso? Não é possível que alguém tenha dito isso. Eu
entendi mal. Não pode ter sido aquele monstro daquele prefeito! Será que
foi o meu bom senhor Javert que disse para me colocarem em liberdade?
Oh! Ouça, eu vou lhe contar e depois o senhor vai me deixar ir embora.
Esse monstro desse prefeito, esse tratante desse velho, é que foi a causa de
tudo. Imagine, senhor Javert, que me mandou embora por causa de um
bando de fofoqueiras que ficam falando dos outros na oficina. Não é um
horror? Despedir uma pobre moça que vivia honestamente do seu
trabalho! Desde então, não ganhei o suficiente, e toda a desgraça começou.
Em primeiro lugar, há um melhoramento que os senhores da polícia
deveriam fazer: impedir que os fornecedores de trabalho das prisões
prejudiquem os pobres. Vou explicar isso. Olhe, a gente ganha doze soldos
nas camisas, mas então cai para nove, não há mais como se viver. Então a
gente se vira como pode. Eu, que tenho a minha pequena Cosette, fui
obrigada a me tornar uma mulher da vida. Agora o senhor entende o que é
esse patife desse prefeito que causou todo esse mal. Foi depois disso que
eu pisoteei o chapéu daquele senhor, em frente ao café dos oficiais. Mas
ele tinha estragado meu vestido todo com a neve. Só tenho um vestido de
seda, para usar à noite. Olhe, eu nunca fiz mal de propósito, senhor Javert,
verdade, mas vejo por aí mulheres piores do que eu e que são bem mais
felizes. Ó senhor Javert, foi o senhor que disse para me deixarem sair, não
foi? Consiga informações, fale com meu senhorio, agora já pago o aluguel;
vão dizer que eu sou uma mulher honesta. Ai, meu Deus! Peço perdão ao
senhor, encostei sem querer no fogareiro, e fez essa fumaça.
O senhor Madeleine a escutava com profunda atenção e, enquanto ela
falava, procurou no colete a carteira, abriu-a, mas estava vazia. Tornou a
colocá-la no bolso e disse para Fantine:
— Quanto disse que devia?
Fantine, que só olhava para Javert, virou-se para ele:
— Por acaso estou falando com você?
E, dirigindo-se depois aos soldados:
— Digam, então, vocês. Viram como eu cuspi na cara dele? Ah, seu
velho malvado! Você vem aqui para me fazer medo, mas eu não tenho
medo nenhum de você. Tenho medo é do bom senhor Javert!
E, tendo dito isso, voltou-se para o inspetor:
— Veja, senhor inspetor, com isso é preciso ser justo. E eu entendo que
o senhor é justo, inspetor. Na verdade, é muito simples; um homem brinca
de colocar um pouco de neve nas costas de uma mulher, fazendo rir os
oficiais; a gente precisa se divertir com alguma coisa; e nós estamos ali
para que se divirtam, oras. E depois, vem o senhor, o senhor é mesmo
obrigado a impor a ordem, prende a mulher que estava errada, mas
pensando no caso, e como tem bom coração, manda que me ponham em
liberdade, por causa da menina, porque ficar seis meses na cadeia ia me
impedir de sustentar minha filha. Ora, não faça mais isso, sua sem-
vergonha! Ah! Não faço, não, senhor Javert; façam o que me fizerem,
agora eu nem vou me mexer. Só hoje, sabe, eu gritei porque aquilo me fez
mal, eu não esperava de jeito nenhum aquela neve daquele senhor, e, como
já lhe disse, não ando muito bem, tenho uma tosse, e é como se tivesse
uma bola que me queima no estômago, e o médico me disse: tome
cuidado. Veja, ponha a mão, não tenha medo, é aqui.
Ela não chorava mais, sua voz era meiga; apoiava a mão grosseira e
rude de Javert no alvo e delicado pescoço e olhava para ele sorrindo.
De repente, recompôs rapidamente a desordem de sua roupa, fez cair
as dobras do vestido que ficara erguido quase até a altura do joelho ao ser
arrastada, e caminhou para a porta, dizendo a meia voz e com um
amigável aceno de cabeça aos soldados:
— Rapazes, o senhor inspetor disse para me soltarem, eu vou embora.
E pôs a mão no trinco; mais um passo e estaria na rua.
Até aquele instante, Javert ficara de pé, imóvel, olhos pregados no
chão, deslocado no meio daquela cena, como uma estátua quebrada que
espera ser levada para outro lugar.
O ruído do trinco o despertou. Levantou a cabeça com uma expressão
de autoridade soberana, expressão tanto mais terrível quanto mais de baixo
vem o poder, feroz no animal bravio, atroz no homem nulo.
— Sargento — gritou ele —, não vê que essa rameira está saindo!
Quem mandou que a deixassem ir embora?
— Eu — disse o senhor Madeleine.
Ao ouvir a voz de Javert, Fantine estremeceu e soltou o trinco, como
um ladrão surpreendido solta o que roubou. Ao ouvir a voz de Madeleine,
virou-se, e, a partir desse instante, sem falar uma palavra, sem mesmo
ousar respirar livremente, seu olhar ia alternadamente de Madeleine a
Javert, e de Javert a Madeleine, conforme fosse um ou outro quem falasse.
Era evidente que Javert tinha de estar, como se diz, “fora de eixo” para
falar daquele modo ao sargento, após a ordem do prefeito de coloca
Fantine em liberdade. Teria esquecido a presença do senhor prefeito? Ou
teria acabado por declarar a si mesmo que era impossível a “uma
autoridade” dar uma ordem como aquela, e que, quase com certeza, o
prefeito tinha dito, sem querer, uma coisa por outra? Ou então, perante as
barbaridades que testemunhara havia duas horas, pensaria que era preciso
tomar resoluções supremas, que era necessário o pequeno fazer-se grande,
o espião transformar-se em magistrado, o homem de polícia transformar-
se em homem de justiça, e, naquela circunstância extrema, a ordem, a lei,
a moral, o governo, a sociedade inteira se personificarem nele, Javert?
Fosse como fosse, quando o senhor Madeleine disse aquele eu, que
acabava de se ouvir, o inspetor de polícia Javert voltou-se para o senhor
prefeito, pálido, frio, os lábios roxos, o olhar desesperado, o corpo todo
agitado por um imperceptível tremor, e, coisa inaudita, disse-lhe, de olhos
baixos, mas com voz firme:
— Senhor prefeito, isso não é possível.
— Por quê? — perguntou o senhor Madeleine.
— Essa infeliz insultou um cidadão.
— Inspetor Javert — replicou Madeleine em tom conciliador e calmo
—, escute. O senhor é um homem de bem, com quem não tenho nenhuma
dificuldade em explicar-me. A verdade é a seguinte: eu passava pela praça
quando o senhor prendia essa mulher; ainda havia gente ali, e eu me
informei, fiquei a par de tudo; foi o homem que fez mal e que, em boa
justiça, deveria ter sido preso.
Javert atalhou:
— Essa miserável acaba de insultá-lo, prefeito.
— Isso diz respeito a mim — retrucou o senhor Madeleine. — Acho
que a injúria é minha e posso fazer o que quiser com ela.
— Peço-lhe desculpas, senhor prefeito, mas a injúria não lhe pertence,
pertence à justiça.
— Inspetor Javert — replicou o senhor Madeleine —, a primeira
justiça é a consciência. Ouvi essa mulher, sei o que estou fazendo.
— E eu, senhor prefeito, não entendo o que vejo.
— Contente-se, então, em obedecer.
— Obedeço ao meu dever, e meu dever ordena que essa mulher
cumpra seis meses de prisão.
O senhor Madeleine respondeu com brandura:
— Ouça bem o que eu digo. Ela não ficará nem um dia.
A essas palavras decisivas, Javert ousou encarar fixamente o prefeito,
e disse-lhe, mas com um tom de voz ainda profundamente respeitoso:
— É terrível ter de resistir ao senhor prefeito, é a primeira vez em
minha vida, mas queira permitir observar-lhe que estou dentro dos limites
de minhas atribuições. Atenho-me, já que é assim que o senhor quer,
apenas aos fatos que envolveram aquele cidadão. Eu estava lá. Foi essa
mulher que atirou-se sobre o senhor Bamatabois, que é eleitor, e dono
daquela linda casa de três andares com varanda, toda de pedra, na esquina
da praça. Enfim, há cada coisa neste mundo! Seja como for, senhor
prefeito, esse é um caso de polícia de rua, que diz respeito a mim, e vou
prender a tal Fantine.
Então, o senhor Madeleine cruzou os braços e disse com uma de voz
severa, que ninguém na cidade jamais tinha ouvido:
— O caso de que fala é um caso de polícia municipal. Nos termos dos
artigos nove, onze, quinze e sessenta e seis do código de instrução
criminal, eu devo julgá-lo. Ordeno que essa mulher seja posta em
liberdade.
Javert quis tentar um último esforço.
— Mas, senhor prefeito…
— Devo lembrar ao senhor o artigo oitenta e um da lei de 13 de
dezembro de 1799, sobre a detenção arbitrária.
— Senhor prefeito, permita…
— Nem mais uma palavra.
— Contudo…
— Saia — disse o senhor Madeleine.
Javert recebeu o golpe, de pé, de frente, bem no peito, como um
soldado russo. Fez uma reverência até o chão ao prefeito, e saiu.
Fantine afastou-se da porta e o viu, estupefata, passar diante dela.
No entanto, ela também sentia uma estranha perturbação. Acabava de
ver-se, de certa forma, disputada por duas forças opostas; viu lutarem,
diante de seus olhos, dois homens que tinham sua liberdade nas mãos, sua
vida, sua alma, sua filha; um deles a puxava para o lado escuro, o outro em
direção à luz. Nessa luta, entrevista pela lente de aumento do assombro, os
dois homens pareceram-lhe dois gigantes; um falava como se fosse seu
demônio, o outro como seu anjo bom. O anjo vencera o demônio, mas o
que a fazia estremecer dos pés à cabeça era esse anjo, esse libertador, ser
justamente o homem que ela abominava; esse prefeito que, por tanto
tempo, ela havia considerado o causador de todos os seus males, esse
Madeleine! E, bem no momento em que ela acabava de insultá-lo de modo
tão horrível, ele a salvava! Será que ela estava enganada? Será que
deveria, então, mudar toda a sua alma?… Não sabia; tremia; escutava
meio confusa, olhava espantada, e, a cada palavra dita pelo senhor
Madeleine, ela sentia fundirem e desmoronarem dentro dela as trevas
medonhas do ódio, e sentia nascer no coração algo de confortador e de
inefável, a alegria, a confiança, o amor.
Quando Javert saiu, o senhor Madeleine voltou-se para ela e disse-lhe
lentamente, tendo dificuldade para falar como um homem sério que não
quer chorar:
— Ouvi o que falava; eu não sabia nada do que contou. Acredito que é
verdade e sinto que é verdade. Ignorava até que tivesse deixado de
trabalhar em minhas oficinas. Mas por que não se dirigiu a mim? Mas
então, vou pagar suas dívidas, vou mandar buscar sua filhinha, ou irá
encontrá-la. Viverão aqui, em Paris, ou onde quiserem. Vou encarregar-me
de você e de sua filha. Não precisa mais trabalhar se não quiser. Darei todo
o dinheiro que lhe for necessário. Voltará a ser honrada se voltar a sentir-
se feliz. E também, escute, digo desde já que, se tudo é como diz, e eu
acredito nisso, nunca deixou de ser virtuosa e santa perante Deus! Oh!
Pobre mulher!
Isso era mais do que a pobre Fantine podia suportar. Ter Cosette por
perto! Sair daquela vida infame! Viver livre, rica, feliz, honrada, com
Cosette! Ver repentinamente surgir do meio de seu infortúnio todas essas
realidades do paraíso! Ela olhava, admirada, aquele homem que lhe falava,
e só conseguia emitir alguns soluços: oh! oh! oh! Suas pernas se dobraram,
e ela ajoelhou-se diante do senhor Madeleine. E, antes que ele pudesse
impedir, sentiu que ela segurava sua mão, encostando-a em seus lábios.
Em seguida, Fantine perdeu os sentidos.

__________________________
1 Da mitologia grega, rio e fronteira dos Infernos, guardados por um cão.
2 “Cristo nos libertou.”
LIVRO VI
JAVERT

I. INÍCIO DO REPOUSO
O SENHOR Madeleine mandou transportar Fantine para a enfermaria que
estabelecera em sua própria casa, e confiou-a às irmãs, que a colocaram na
cama. Sobreviera-lhe uma febre ardente, de modo que passou parte da
noite a delirar e a falar em voz alta. Por fim, adormeceu.
Ao meio-dia seguinte, acordou, ouviu uma respiração muito perto de
sua cama; desviou o cortinado e viu o senhor Madeleine, de pé, olhando
para alguma coisa acima de sua cabeceira. Era um olhar piedoso, súplice e
cheio de angústia. Fantine seguiu esse olhar e viu que se dirigia a um
crucifixo pregado na parede.
O senhor Madeleine estava, a partir daquele momento, transfigurado
aos olhos de Fantine. Parecia-lhe rodeado de luz. Estava absorvido em
uma espécie de oração. Ela o observou por muito tempo, sem ousar
interrompê-lo, mas enfim disse-lhe timidamente:
— O que o senhor faz aqui?
Havia uma hora que o senhor Madeleine ali estava, esperando que
Fantine acordasse. Tomou-lhe a mão, sentiu-lhe o pulso e respondeu:
— Como está?
— Bem — disse ela —; dormi, acho que estou melhor. Isso não há de
ser nada.
O senhor Madeleine continuou, respondendo à pergunta que ela lhe
fizera antes, como se tivesse acabado de ouvi-la:
— Eu orava ao mártir que está no céu.
E acrescentou em seu pensamento: “Pela mártir que está na terra”.
Ele havia passado a noite e a manhã buscando informações. Sabia tudo,
agora. Conhecia a história de Fantine em seus mais pungentes pormenores.
Continuou:
— Pobre mãe, tem sofrido bastante; oh, mas não se lastime, agora tem
o dote dos escolhidos. É assim que os homens fazem anjos. Mas não é
culpa deles; não sabem fazer de outro modo. Veja, esse inferno do qual sai
é a primeira forma do céu; era preciso começar por ele.
E suspirou profundamente. Ela, então, sorriu-lhe, com aquele sorriso
sublime ao qual faltavam dois dentes.
Nessa mesma noite, Javert escreveu uma carta que, na manhã seguinte
e em pessoa, foi entregar na administração do correio de Montreuil-sur-
Mer. Estava assim endereçada a Paris: Ao Senhor Chabouillet, secretário
do Senhor chefe de polícia. Como o caso ocorrido no corpo da guarda
havia feito ruído, a direção do correio e algumas outras pessoas, que viram
a carta antes de ser enviada e reconheceram a letra de Javert no envelope,
pensaram que fosse sua carta de demissão.
O senhor Madeleine apressou-se a escrever aos Thénardier, a quem
Fantine devia cento e vinte francos. Remeteu-lhes trezentos, dizendo que
estavam pagos com tal quantia e que mandassem imediatamente a criança
a Montreuil-sur-Mer, onde sua mãe doente queria vê-la.
Isso deixou o estalajadeiro impressionado.
— Diabo! — disse ele para a mulher. — Não vamos mandar a criança.
Essa cotovia vai transformar-se em vaca leiteira! Eu sei o que é isso:
algum baboca que se apaixonou pela mãe.
E replicou, enviando uma conta de quinhentos e tantos francos, muito
bem feita. Figuravam nela mais de trezentos francos em duas notas
incontestáveis, a de um médico e a de um boticário, que tinham tratado e
medicado Éponine e Azelma em duas longas enfermidades. Cosette, como
dissemos, não estivera doente. Foi o caso de uma insignificante
substituição de nomes. Thénardier colocou no fim da carta: Recebidos por
conta trezentos francos. O senhor Madeleine imediatamente remeteu
outros trezentos francos, dizendo:
— Traga Cosette o quanto antes.
— Cristo! — disse Thénardier. — Não vamos soltar a menina.
Enquanto isso, Fantine não se restabelecia; continuava ainda na
enfermaria. As irmãs, no começo, aceitaram e trataram “aquela mulher”
com repugnância. Quem viu os baixos-relevos de Reims lembra da
intumescência do lábio inferior das virgens sábias olhando para as virgens
loucas. Esse antigo desprezo das vestais pelas mulheres da vida é um dos
mais profundos instintos da dignidade feminina; as irmãs o
experimentaram, com o acréscimo de intensidade que vem da religião.
Mas, em poucos dias, Fantine as desarmou, com suas palavras cheias de
doçura e humildade, e com aquele enternecimento de mãe que havia nela.
Um dia, as irmãs ouviram-na dizer por entre a febre: “Tenho sido uma
pecadora, mas quando tiver minha filhinha a meu lado, é sinal de que Deus
me perdoou. Enquanto estive na má vida, não quis Cosette em minha
companhia, não poderia suportar seus olhos tristes e espantados. Mas era
por ela que eu estava naquela vida, e é por isso que Deus me perdoa.
Sentirei a bênção do Senhor quando ela estiver aqui. Vou olhar para ela,
me fará bem ver aquela inocente. Ela não sabe nada. É um anjo, hão de
ver, irmãs. Naquela idade, as asas ainda não caíram”.
O senhor Madeleine ia visitá-la duas vezes por dia, e toda vez ela lhe
perguntava:
— Será que logo verei minha Cosette?
Ele lhe respondia:
— Talvez amanhã pela manhã. Eu espero que ela chegue de um
momento para o outro.
E o rosto pálido da mãe iluminava-se.
— Oh! — dizia ela. — Como eu ficarei feliz!
Acabamos de dizer que Fantine não se restabelecia. Ao contrário, seu
estado parecia agravar-se semana a semana. Aquele punhado de neve
lançado sobre a pele nua, entre seus ombros, determinara uma súbita
supressão de transpiração, e, em consequência disso, a doença nela
incubada havia vários anos acabou por declarar-se violentamente.
Começavam, então, a seguir as belas indicações de Laënnec para estudo e
tratamento das moléstias de pulmão. O médico auscultou Fantine e
balançou a cabeça.
O senhor Madeleine perguntou ao médico:
— E então?
— Ela não tem uma filha a quem deseja ver? — indagou o médico.
— Tem.
— Então, apresse-se em mandar trazê-la.
O senhor Madeleine sentiu um estremecimento. Fantine perguntou-lhe:
— Que foi que disse o médico?
Ele esforçou-se para sorrir.
— Disse que mandasse vir sua filhinha o quanto antes, pois isso lhe
devolveria a saúde.
— Oh! — replicou ela. — Ele tem razão! Mas que interesse têm
aqueles Thénardier em ficar com a minha Cosette? Oh! Ela logo virá. Até
que enfim vejo a felicidade perto de mim!
Thénardier, porém, não “largava a criança”, dando mil fracas
desculpas. Cosette não estava muito bem para se pôr a caminho no
inverno. E, além disso, havia ainda umas pequenas dívidas com alguns
comerciantes da região, cujas contas estava juntando, etc., etc.
— Vou mandar alguém buscar Cosette — disse Pai Madeleine — e, se
for preciso, irei eu mesmo.
Escreveu a seguinte carta, ditada por Fantine, e depois assinada por
ela:

“Senhor Thénardier,
Entregue Cosette ao portador desta.
Serão pagas todas as pequenas contas.
Tenho a honra de saudá-lo com toda a consideração.

Fantine”.

Entrementes, ocorreu um grave incidente. Por mais que tentemos


esculpir o melhor possível a pedra misteriosa de que nossa vida é feita, o
veio negro do destino insiste sempre em reaparecer.

II. COMO JEAN PODE TORNAR-SE CHAMP


Uma manhã, o senhor Madeleine estava em seu gabinete, ocupado de
colocar em ordem alguns negócios urgentes da prefeitura, caso se tornasse
necessária sua ida a Montfermeil, quando vieram lhe dizer que o inspetor
Javert pretendia falar-lhe. Ao ouvir aquele nome, não conseguiu impedir-
se de ter uma impressão desagradável. Desde o ocorrido na repartição de
polícia, Javert evitava-o ao máximo, e o senhor Madeleine não tornara a
vê-lo.
— Mande-o entrar — respondeu ele.
Javert entrou.
O senhor Madeleine ficara sentado perto da lareira, com uma pena na
mão, os olhos em alguns papéis, que folheava e anotava, contendo autos de
contravenções da inspeção de limpeza de ruas. Não se mexeu por causa de
Javert. Não podia deixar de pensar na pobre Fantine, e convinha-lhe
parecer glacial.
Javert cumprimentou respeitosamente o prefeito, que estava de costas
e continuou a fazer anotações sem olhar para ele.
Javert deu dois ou três passos pela sala e parou, sem romper o silêncio.
Um fisionomista que tivesse familiaridade com a natureza de Javert, que
tivesse estudado longamente aquele selvagem a serviço da civilização,
aquele extravagante composto de romano, de espartano, de monge e de
soldado, aquele espião incapaz de uma mentira e ainda virgem; um
fisionomista que soubesse de sua secreta e antiga aversão pelo senhor
Madeleine, de seu conflito com o prefeito em relação a Fantine, e que o
observasse naquele momento, teria pensado: o que aconteceu? Era
evidente, para quem conhecesse aquela consciência reta, clara, sincera,
proba, austera e feroz, que Javert acabava de passar por algum grande
acontecimento interior. Javert não trazia nada na alma que não deixasse
transparecer no rosto. Era, como as pessoas de gênio irascível, sujeito a
mudanças repentinas. Nunca sua fisionomia denotara mais estranha e
inesperada expressão. Ao entrar, inclinou-se ante o senhor Madeleine, com
um olhar em que não havia nem rancor, nem cólera, nem desconfiança;
parara a alguns passos de distância, por trás da cadeira do prefeito, e agora
mantinha-se de pé, em atitude quase disciplinar, com a rudez ingênua e
fria de um homem que nunca foi afável, mas que sempre foi paciente;
esperava sem dizer uma palavra, sem fazer um movimento, com
humildade verdadeira e resignação tranquila, até que aprouvesse ao
prefeito voltar-se; permanecia sereno, sério, chapéu na mão, olhos no
chão, com uma expressão que estava entre a do soldado diante de seu
comandante e a do réu diante do juiz. Haviam desaparecido todos os seus
supostos sentimentos e lembranças. Naquele rosto, impenetrável e simples
como o granito, não havia mais que uma morna tristeza. Todo o seu ser
demonstrava submissão e firmeza, e não sei que desalento corajoso.
Finalmente, o prefeito pousou a pena e voltou-se um pouco:
— Então, o que foi? O que há, Javert?
Javert permaneceu um instante em silêncio, como se meditasse, depois
elevou a voz com uma espécie de solenidade triste, que não excluía,
contudo, a simplicidade:
— O que há, senhor prefeito, é que foi cometido um ato criminoso.
— Que ato?
— Um agente de autoridade inferior faltou com respeito a um
magistrado, do modo mais grave. Venho, como é meu dever, trazer o fato a
seu conhecimento.
— Quem é esse agente? — perguntou o senhor Madeleine.
— Eu, disse Javert.
— O senhor?
— Eu.
— E qual é o magistrado que teria motivo para se queixar do agente?
— O senhor, prefeito.
O senhor Madeleine endireitou-se na cadeira, e Javert prosseguiu, com
ar severo e os olhos sempre baixos:
— Senhor prefeito, venho rogar-lhe que solicite minha destituição
junto à autoridade competente.
O senhor Madeleine, admirado, ia falar. Javert o interrompeu:
— O senhor dirá que eu podia ter pedido minha demissão, mas isso
não é suficiente. Pedir demissão é algo honorável. Eu falhei, devo ser
punido. Tenho de ser expulso.
E, após uma pausa, acrescentou:
— Prefeito, outro dia, o senhor foi injustamente severo para comigo;
seja-o hoje justamente.
— Mas por quê? — exclamou o prefeito. — Que negócio é esse? Que
quer dizer tudo isso? Onde há um ato criminoso cometido contra mim? O
que você me tem feito? Que erros tem em relação a mim? Acusa a si
próprio, quer ser substituído…
— Expulso — disse Javert.
— Expulso, que seja; está muito bem, mas não compreendo.
— Vai compreender, senhor prefeito.
Javert suspirou profundamente e replicou, sempre fria e tristemente:
— Senhor prefeito, há seis semanas, em seguida à cena por causa
daquela mulher, fiquei furioso e o denunciei.
— Denunciou-me?
— Ao departamento de polícia de Paris.
O senhor Madeleine, que não ria com mais frequência que Javert,
desatou a rir.
— Como prefeito usurpador das atribuições da polícia?
— Como antigo condenado.
O prefeito ficou lívido.
Javert, que não havia levantado os olhos, continuou:
— Eu acreditava nisso. Havia muito eu tinha essas ideias. Alguma
semelhança, algumas informações que o senhor mandou pedir em
Faverolles, a força que tem nas costas, o caso do velho Fauchelevent, sua
perícia em atirar, o jeito que tem de arrastar a perna… que sei eu? Tolices!
Mas, enfim, tomava-o por um tal Jean Valjean.
— Um tal?… Como foi que o chamou?
—Jean Valjean. Um forçado que eu conheci há vinte anos, quando era
guarda-ajudante dos presos em Toulon. Esse tal Jean Valjean, segundo
consta, depois que saiu das galés, roubou um bispo, depois cometeu outro
roubo à mão armada em uma estrada, do qual foi vítima um rapazinho. Há
oito anos, ele desapareceu, não se sabe como, e o procuravam. Eu
imaginei… Enfim, fiz isso! A raiva fez-me decidir, e eu o denunciei à
polícia.
O prefeito, que tornara a pegar nos papéis havia alguns instantes, disse
com um tom de perfeita indiferença:
— E o que lhe responderam?
— Que eu estava doido.
— E então?
— Então tinham razão.
— Ainda bem que o reconhece!
— Era preciso, pois o verdadeiro Jean Valjean foi encontrado.
A folha que ele segurava escapou-lhe da mão e, levantando a cabeça,
olhou fixamente para Javert, exclamando com um acento inexprimível:
— Ah!
Javert prosseguiu:
— Eis o que aconteceu, prefeito. Parece que havia, para os lados de
Ailly-le-Haut-Clocher, um pobre homem, chamado Pai Champmathieu,
que vivia em extrema miséria. Ninguém prestava-lhe a menor atenção.
Essa gente, não se sabe do que vive. Ultimamente, neste outono, Pai
Champmathieu foi preso pelo roubo de umas maçãs do pomar de… enfim,
não importa de quem; houve um roubo, um muro pulado e ramos de
árvores quebrados. Prenderam o tal Champmathieu, que ainda tinha na
mão um ramo da macieira, e o engaiolaram. Até aqui, nada mais que um
processo correcional. Mas é então que entra a Providência. Como a cadeia
estava em mau estado, o juiz de instrução achou conveniente mandar
transferir Champmathieu para Arras, onde fica a prisão departamental. Ali
há um antigo condenado chamado Brevet, que está preso não sei por que e
a quem fizeram porteiro da prisão por sua boa conduta. Senhor prefeito,
mal Champmathieu colocou os pés na prisão, Brevet exclamou: “Ei! Eu
conheço aquele homem! É um antigo forçado! Olhe para mim, camarada.
Você é Jean Valjean!” “Jean Valjean! Que Jean Valjean?” Champmathieu
se faz de desentendido. “Não se faça de tolo”, diz Brevet. “Você é Jean
Valjean; esteve nas galés em Toulon, há vinte anos. Estivemos juntos lá.”
Champmathieu nega. Meu Deus! O senhor compreende; aprofundam-se,
vão investigar essa história, e eis o que descobrem: esse Champmathieu,
há uns trinta anos, foi podador de árvores em diversos lugares,
principalmente em Faverolles. Ali perderam seu rastro. Muito tempo
depois, foi visto em Auvergne, depois em Paris, onde disse ter sido
carpinteiro, e ter uma filha lavadeira, mas isso não está provado, e, por
último, nesta região. Ora, que era Jean Valjean antes de ter ido para as
galés pelo crime de roubo qualificado? Podador. Onde? Em Faverolles.
Outro fato. O nome de batismo desse tal Valjean era Jean e o sobrenome
da mãe, Mathieu. Ora, que coisa mais natural pensar que ele, ao sair da
prisão, usasse o nome da mãe para se ocultar, fazendo-se chamar Jean
Mathieu? Aí vai para Auvergne, onde a pronúncia de Jean é Chan, e
começam a chamá-lo de Chan Mathieu. Nosso homem deixa correr o
negócio e pronto, vira Champmathieu. Está me acompanhando, certo? Vão
informar-se em Faverolles, a família de Jean Valjean não está mais lá, nem
se sabe que fim levou. O senhor sabe, nessas classes acontecem desses
completos desaparecimentos de famílias. Procuram, mas não encontram
mais nada. Essa gente, quando não é lama, é pó. E depois, como o começo
dessas histórias vem de trinta anos, já não há ninguém em Faverolles que
se lembre de Jean Valjean. Vão informar-se em Toulon. Além de Brevet,
há apenas dois forçados que já viram Jean Valjean. São Cochepaille e
Chenildieu, condenados à prisão perpétua. Tiram-nos da prisão, são
confrontados com o tal Champmathieu. Tanto para eles como para Brevet,
aquele é Jean Valjean. A mesma idade, ele tem cinquenta e quatro anos, a
mesma altura, a mesma aparência, o mesmo homem, enfim; é ele. Foi
nessa ocasião que eu remeti minha denúncia à polícia de Paris.
Respondem-me que estou doido, porque Jean Valjean está em Arras em
poder da justiça. Imagine como isso me espantou, já que eu pensava ter
nas mãos o mesmo Jean Valjean! Escrevo ao juíz de instrução, que me diz
para ir até lá, e trazem Champmathieu à minha presença…
— E então? — interrompeu o senhor Madeleine.
Javert respondeu com sua expressão incorruptível e triste:
— Senhor prefeito, a verdade é a verdade. Não fiquei contente, mas
aquele homem é Jean Valjean. Eu também o reconheci.
O senhor Madeleine tornou em voz muito baixa:
— Está certo disso?
Javert desatou a rir com aquele riso doloroso que escapa de uma
profunda convicção:
— Oh! Certíssimo.
Ficou um momento pensativo, remexendo maquinalmente o pó mata-
borrão que estava sobre a mesa, e depois acrescentou:
— E agora que eu vi o verdadeiro Jean Valjean, não entendo como
pude acreditar em outra coisa. Peço-lhe perdão, prefeito.
Dirigindo essas palavras suplicantes e graves àquele que, seis semanas
antes, o humilhara no corpo de guarda ao dizer: saia!, Javert, esse homem
altivo, estava, sem se dar conta, cheio de simplicidade e dignidade. O
prefeito respondeu à sua súplica com esta repentina pergunta:
— E o que diz esse homem?
— Ah, prefeito, o negócio vai mal. Se é Jean Valjean, há reincidência.
Pular um muro, quebrar um galho, furtar uma maçã, para uma criança é
uma peraltice; para um homem, é um delito; mas, para um forçado, é um
crime. E foi tudo o que ele fez. Já não é com a polícia correcional, é com o
tribunal do júri; não são alguns dias de cadeia, mas a condenação perpétua
ao trabalho forçado. E depois, ainda há o caso do rapazinho de fora, que,
eu espero, também será lembrado. Diabos! Há muito com o que se debater.
Sim, mas para um outro que não seja Jean Valjean. Mas Jean Valjean é um
dissimulado. É bem por isso que o reconheço. Outro qualquer sentiria que
aquilo esquentava; se agitaria, gritaria, como a chaleira chia diante do
fogo; não ia querer ser Jean Valjean, et coetera. Mas ele não parece
entender e diz: “Sou Champmathieu, não saio daqui!” Faz cara de espanto,
se faz de tolo, assim é melhor. Oh, aquele é esperto, mas tanto faz, as
provas estão aí. Foi reconhecido por quatro pessoas, o velho patife será
condenado. Será levado ao tribunal de Arras; vou até lá para testemunhar.
Fui citado.
O senhor Madeleine retornou à escrivaninha, retomou seus papéis,
folheando-os tranquilamente, ora lendo, ora escrevendo como homem
atarefado. Depois voltou-se para Javert:
— Está bem, Javert. Na verdade, interessam-me muito pouco todos
esses pormenores. Estamos perdendo tempo, e temos negócios urgentes a
tratar. Javert, precisa ir o quanto antes à casa da senhora Buseaupied,
aquela que vende ervas na esquina da rua Saint-Saulve, dizer-lhe para dar
queixa do carroceiro Pierre Chesnelong. Esse homem é um bruto que
quase esmagou a pobre mulher e seu filho; ele deve ser punido. Vá depois
à casa do senhor Charcellay, na rua Montre-de-Champigny; ele se queixa
de que há uma calha na casa vizinha que leva água da chuva para a casa
dele, minando os alicerces. Verifique depois se são exatas as
contravenções que me foram apontadas, na rua Guibourg, pela viúva
Doris, e na rua Du Garraud-Blanc, pela senhora Renée le Bossé; pode
lavrar o auto. Mas assim lhe dou muito trabalho, não vai estar ausente?
Não me disse que iria a Arras dentro de oito ou dez dias por causa da tal
questão?…
— Antes disso, prefeito.
— Então em que dia?
— Eu pensei já ter-lhe dito que o julgamento vai ocorrer amanhã, e
que eu parto esta noite na diligência.
O senhor Madeleine fez um movimento imperceptível.
— E quanto tempo levará o julgamento?
— Um dia, no máximo. A sentença será proferida o mais tardar
amanhã à noite. Mas não vou esperar pela sentença, que deve ser infalível;
assim que eu der meu depoimento, estarei de volta.
— Está bem — disse o senhor Madeleine.
E despediu-se de Javert com um aceno de mão. Javert, porém, não
saiu.
— Desculpe, prefeito — disse ele.
— O que mais? — perguntou o senhor Madeleine.
— Senhor prefeito, ainda preciso lembrá-lo de uma coisa.
— Qual?
— Que devo ser destituído.
O senhor Madeleine levantou-se.
— Javert, é um homem de bem, por isso o estimo. Exagera a falta que
cometeu. Aliás, aquela é uma ofensa que diz respeito a mim. O senhor é
digno de subir e não de descer. Entendo que deve continuar em seu cargo.
Javert olhou para o senhor Madeleine com suas cândidas pupilas, no
fundo das quais parecia ver-se aquela consciência pouco esclarecida, mas
rígida e casta, e disse com voz serena:
— Prefeito, não posso concordar com isso.
— Repito-lhe — replicou Madeleine — que essa questão é da minha
conta.
Mas Javert, atento ao seu único pensamento, continuou:
— Quanto a exagerar, eu não exagero. É assim que eu raciocino.
Suspeitei do senhor injustamente; mas isso não é nada. Temos o direito de
suspeitar, ainda que seja um abuso suspeitar de pessoas que nos são
superiores. Mas é que, sem provas, em um acesso de cólera, com o intuito
de me vingar, eu denunciei como forçado um homem respeitável, um
prefeito, um magistrado! Isso é grave, muito grave. Eu, agente da
autoridade, ofendi a autoridade em sua pessoa! Se algum dos meus
subordinados fizesse o que eu fiz, eu o declararia indigno do serviço e o
expulsaria. E então? Só mais uma palavra, prefeito. Durante minha vida,
frequentemente fui severo para com os outros. E era justo; estava certo.
Agora, se não for severo comigo mesmo, tudo o que fiz de justo se tornaria
injusto. Acaso eu deveria poupar-me mais do que aos outros? Não, oras!
Eu teria servido apenas para castigar os outros, e não a mim mesmo? Eu
seria um miserável! Aí os que dizem: aquele safado do Javert! teriam
razão! Prefeito, não desejo que me trate com bondade; sua bondade fez
esquentar meu sangue quando era voltada aos outros, não a quero para
mim. A bondade que consiste em dar razão a uma mulher da vida contra
um cidadão, ao agente de polícia contra o prefeito, ao que está em uma
posição inferior contra o que ocupa uma posição superior é o que chamo
de bondade ruim. É com essa bondade que a sociedade se desorganiza.
Meu Deus! É muito fácil ser bom, o difícil é ser justo. Não, se o senhor
fosse o que eu imaginava, eu não teria sido bom para consigo! O senhor ia
ver! Prefeito, devo tratar a mim mesmo como trataria qualquer outro.
Quando reprimia os malfeitores, quando castigava os tratantes, dizia
muitas vezes a mim mesmo: se der um tropeço, se eu o pegar em alguma
falta, vai ver! E eu tropecei, peguei-me em falta; pior assim. Pronto,
demitido, quebrado, expulso! Está certo. Tenho braços, posso trabalhar na
terra, para mim tanto faz. Senhor prefeito, o bem do serviço precisa de um
exemplo. Eu só estou pedindo a destituição do inspetor Javert.
Tudo isso era dito em um tom humilde, orgulhoso, desesperado e
convicto, que dava não sei que estranha grandeza a esse estranho homem
honesto.
— Veremos — disse o senhor Madeleine. E estendeu-lhe a mão.
Javert recuou e disse em tom feroz:
— Desculpe, prefeito, mas isto não deve acontecer. Um prefeito não dá
a mão a um espião.
E acrescentou entre os dentes:
— Espião, sim; desde o momento em que abusei da polícia, não passo
de um espião.
Depois, despediu-se seriamente e encaminhou-se para a porta. Ali,
virou-se, os olhos permaneciam baixos:
— Senhor prefeito, continuarei em serviço até ser substituído.
E saiu. O senhor Madeleine ficou pensativo, escutando aqueles passos
firmes e seguros que se afastavam pelo corredor.
LIVRO VII
O CASO CHAMPMATHIEU

I. A IRMÃ SIMPLICE
NÃO SE TEM conhecimento em Montreuil-sur-Mer de todos os incidentes
que serão lidos aqui, mas o pouco deles que transpirou deixou tal
recordação naquela cidade, que seria uma grave lacuna se não os
relatássemos, em seus menores detalhes, neste livro.
Entre esses detalhes, o leitor encontrará duas ou três circunstâncias
inverossímeis, que conservaremos por respeito à verdade.
Na tarde que se seguiu à visita de Javert, o senhor Madeleine foi visitar
Fantine, como de costume, mas antes mandou chamar a irmã Simplice.
As duas religiosas que faziam o serviço da enfermaria, lazaristas como
todas as irmãs de caridade, chamavam-se irmã Perpétue e irmã Simplice.
A irmã Perpétue foi a primeira camponesa a tornar-se grosseiramente
irmã de caridade, entrando para a casa de Deus como quem entra em uma
praça. Era religiosa assim como se é cozinheira. Um tipo que não é tão
raro. As ordens monásticas aceitam de boa vontade esta rústica cerâmica
camponesa facilmente moldável em capuchinhas ou ursulinas. Sua
rusticidade é utilizada para as pesadas tarefas da devoção. A transição de
um boiadeiro em carmelita nada tem de chocante, um torna-se o outro sem
grande trabalho; o fundo comum de ignorância da aldeia e do claustro é
uma preparação completa, e nivela imediatamente o camponês ao monge.
Mais amplidão ao avental e está pronta a batina. A irmã Perpétue era uma
robusta religiosa, de Marines, nas imediações de Pontoise, usando seu
dialeto, salmodiando, resmungando, adoçando o chá segundo a beatice ou
a hipocrisia do enfermo, rude com os doentes, grossa com os moribundos,
praticamente atirando-lhes Deus ao rosto, apedrejando a agonia com
preces encolerizadas, e era ainda insolente, honesta e ruborizada.
A irmã Simplice era branca, de uma brancura de cera. Ao lado da irmã
Perpétue, era um círio ao lado de uma vela. São Vicente de Paulo fixou
divinamente a figura da irmã de caridade nestas admiráveis palavras, em
que mistura o mesmo tanto de liberdade e de servidão: “Elas não terão
mais do que, por mosteiro, a casa dos doentes, por aposento, um quarto de
aluguel, por capela, a igreja da paróquia, por claustro, as ruas da cidade ou
as salas dos hospitais, por clausura, a obediência, por proteção, o temor a
Deus, por véu, a modéstia”. Esse ideal se realizava na irmã Simplice.
Ninguém poderia dizer sua idade; nunca fora jovem e parecia que nunca
envelheceria. Era uma pessoa — não ousamos dizer uma mulher — doce,
austera, boa companhia, fria, e que nunca dissera uma mentira. Era tão
doce que parecia frágil, mas, na verdade, era mais sólida que o granito.
Tocava nos doentes com seus encantadores dedos finos e puros. Havia, por
assim dizer, silêncio em seu falar; falava somente o necessário, e tinha um
tom de voz que poderia, ao mesmo tempo, edificar quem se confessa e
encantar um salão. Essa delicadeza se acomodava no hábito grosseiro,
encontrando no rude contato com ele o contínuo chamado do céu e de
Deus. Insistamos em um detalhe. Nunca ter mentido, nunca ter dito, por
um interesse qualquer, nem por indiferença, qualquer coisa que não fosse a
verdade; a santa verdade, era o traço marcante da irmã Simplice, a base de
sua virtude. Ela era quase célebre na Congregação por sua veracidade
imperturbável. O abade Sicard fala da irmã Simplice em uma carta ao
surdo-mudo Massieu. Por mais sinceros e mais puros que sejamos, todos
temos em nossa candura a fenda de uma pequena mentira inocente. Ela
não. Mentirinha, mentira inocente, será que isso existe? Mentir é o
absoluto do mal. Não é possível mentir pouco; quem mente, mente a
mentira toda; mentir é a própria face do demônio. Satanás tem dois nomes,
chama-se Satanás e chama-se Mentira. Assim ela pensava; e assim como
pensava, praticava. Daí resultava aquela brancura de que falamos,
brancura que cobria com um briho seus lábios e até seus olhos.Seu sorriso
era branco, seu olhar era branco. Não havia uma só teia de aranha, um só
grão de poeira no espelho daquela consciência. Quando entrou para a
Congregação de São Vicente de Paulo, tomou o nome de Simplice por uma
escolha especial. Simplice de Sícilia, como se sabe, foi a santa que
preferiu ter os seios arrancados a responder que tinha nascido em Segesto,
quando nascera em Siracusa, mentira que a salvaria. Essa padroeira
convinha a uma alma assim.
Irmã Simplice, ao entrar para a Ordem, tinha dois defeitos que, pouco
a pouco, foi corrigindo; gostava de gulodices e de receber cartas. Não lia
outra coisa senão um livro de orações, em grandes letras e em latim. Ela
não entendia o latim, mas compreendia o livro.
A piedosa irmã se afeiçoara a Fantine, talvez por sentir nela a virtude
latente, e dedicava-se quase exclusivamente a tratá-la.
O senhor Madeleine chamou irmã Simplice à parte e recomendou-lhe
Fantine de um modo singular, do qual sempre se lembrou. Deixando a
irmã, aproximou-se de Fantine.
Fantine esperava todo dia pela vinda do senhor Madeleine como se
espera um raio de calor e de alegria. Ela dizia às irmãs: “Eu não vivo
senão quando o senhor prefeito está aqui”.
Naquele dia, ela estava com muita febre. Assim que viu o senhor
Madeleine, perguntou-lhe:
— E Cosette?
Ele respondeu-lhe, sorrindo:
— Logo, logo.
Conversou com ela como de costume. Mas, em vez de meia hora,
demorou-se uma, para grande contentamento de Fantine. Fez mil
recomendações a todos para que nada faltasse à doente. Notou-se que, em
certo momento, seu semblante ficou muito sombrio. Mas tudo se explicou
quando soube-se que o médico lhe dissera ao ouvido: “Ela piorou muito”.
Depois voltou à prefeitura, e seu auxiliar de gabinete viu-o
examinando com atenção um mapa das estradas da França pendurado na
parede e escrevendo a lápis alguns números sobre um papel.

II. PERSPICÁCIA DE MESTRE SCAUFFLAIRE


Da prefeitura, foi ao outro lado da cidade, à casa de um flamengo,
Mestre Scaufflaer, afrancesado para Scaufflaire, que alugava cavalos e
“cabriolés à vontade”.
O caminho mais curto para ir à casa do tal Scaufflaire era pegar uma
rua pouco frequentada, onde ficava o presbitério da paróquia em que o
senhor Madeleine morava, e cujo abade, segundo se dizia, era um homem
digno, respeitável e bom conselheiro. No instante em que o senhor
Madeleine chegou, havia uma única pessoa em frente ao presbitério, e essa
pessoa notou o seguinte: o prefeito, depois de ter passado pela casa
paroquial, parou, ficou imóvel algum tempo, deu meia-volta e retornou até
a porta do presbitério, que tinha um fecho em forma de martelo de ferro.
Pegou no martelo e o levantou, depois parou de novo, meio pensativo e,
após alguns segundos, em vez de deixar o martelo cair bruscamente,
pousou-o lentamente e continuou seu caminho com uma pressa que não
tinha antes.
O senhor Madeleine encontrou mestre Scaufflaire ocupado em reparar
uns arreios.
— Mestre Scaufflaire — perguntou ele —, tem um cavalo bom?
— Prefeito — disse o flamengo —, meus cavalos são todos bons. O
que o senhor entende por um cavalo bom?
— Entendo que seja um cavalo capaz de andar vinte léguas em um dia.
— Diabos! — retrucou o flamengo. — Vinte léguas!
— Sim.
— Atrelado a um cabriolé?
— Sim.
— E quanto tempo ele irá repousar depois da corrida?
— Em caso de necessidade, deve poder continuar no dia seguinte.
— Para fazer outra vez o mesmo trajeto?
— Sim.
— Diabos! Diabos! E são vinte léguas?
O senhor Madeleine tirou do bolso o papel em que escrevera uns
números a lápis, e o mostrou ao flamengo. Eram os números 5, 6, 8 1/2.
— Vê? — disse. — No total, dezenove e meia, o mesmo que dizer
vinte léguas.
— Prefeito — tornou o flamengo —, tenho o que precisa. Meu cavalo
branco, que o senhor já deve ter visto algumas vezes, é um pequeno animal
do baixo Boulonnais, mas cheio de energia. Primeiro quiseram usá-lo para
montaria, impossível! Dava coices e atirava todo o mundo no chão.
Achavam que era manhoso, não sabiam o que fazer com ele. Então eu o
comprei e o coloquei no cabriolé: era o que ele queria! É dócil como uma
moça, e anda como o vento. Mas não deve ser montado, porque ele não
pensa em ser cavalo de sela. Cada um tem sua ambição. Puxar, sim;
carregar, não; é de supor que tenha dito isso a si mesmo.
— E será capaz de fazer essa corrida?
— Suas vinte léguas, sempre a galope, e em menos de oito horas. Mas
com as seguintes condições.
— Diga.
— Primeira, tem de deixá-lo tomar fôlego, uma hora, a meio caminho;
quando for comer, alguém tem de ficar por perto para impedir que o moço
da estalagem lhe furte a aveia; porque eu tenho notado que, nas estalagens,
a aveia é na maior parte das vezes usada para alimentar os criados do que
os cavalos.
— Ficarão por perto.
— Segunda, o cabriolé é para o senhor mesmo?
— Sim.
— O senhor sabe conduzi-lo?
— Sei.
— Está bem, nesse caso, viajará só e sem bagagem, para não
sobrecarregar o cavalo.
— Combinado.
— Mas, não levando ninguém junto, será obrigado a cuidar, o senhor
mesmo, da aveia.
— Está certo.
— Quero trinta francos por dia, e os dias parados pagos. Nem um
tostão a menos, e a ração do animal por conta do senhor prefeito.
O senhor Madeleine tirou três napoleões da carteira e colocou-os sobre
a mesa.
— Aí estão dois dias adiantados.
— Quarta, como para uma corrida dessas seria muito pesado um
cabriolé, e o cavalo cansaria, o senhor precisa consentir em fazer a viagem
em um pequeno tílburi que tenho.
— Consinto.
— É leve, mas é descoberto.
— Isso não me importa.
— Prefeito, o senhor já pensou que estamos no inverno?
O senhor Madeleine não respondeu e o flamengo continuou:
— Que faz muito frio?
O prefeito ficou calado e mestre Scaufflaire tornou:
— Que pode chover?
O senhor Madeleine ergueu a cabeça e disse:
— O cavalo e o tílburi devem estar à porta de minha casa amanhã, às
quatro e meia da manhã.
— Estamos entendidos, senhor prefeito — respondeu Scaufflaire;
depois, raspando com a unha do polegar uma mancha na madeira da mesa,
retomou com aquele ar indiferente que os flamengos sabem tão bem
misturar à sua delicadeza: — Mas agora me lembro! O senhor não me
disse para onde vai. Para onde o senhor vai?
Ele não pensava em outra coisa desde o começo da conversa, mas não
sabia por que não tinha ousado fazer essa pergunta.
— Seu cavalo tem boas pernas dianteiras? — perguntou o senhor
Madeleine.
—Tem, senhor prefeito. Segure-o um pouco nas descidas. Há muitas
descidas daqui até onde vai?
— Não se esqueça de estar à minha porta às quatro e meia em ponto —
respondeu o senhor Madeleine. E foi embora.
O flamengo ficou com “cara de bobo”, como ele próprio dizia daí a
algum tempo. O prefeito saíra havia dois ou três minutos quando a porta
foi reaberta: era ele outra vez.
Tinha ainda o mesmo ar impassível e preocupado.
— Senhor Scaufflaire — disse ele —, em quanto avalia o cavalo e o
tílburi que me aluga, um carregando o outro?
— Um puxando o outro, prefeito — disse o flamengo com um largo
sorriso.
— Que seja, e então?
— O senhor quer comprá-los?
— Não, mas quero garanti-los ao senhor contra qualquer ocorrência;
quando eu retornar o senhor me devolve essa quantia. Em quanto avalia o
cabriolé e o cavalo?
— Em quinhentos francos, senhor prefeito.
— Aqui estão.
O senhor Madeleine colocou uma nota em cima da mesa, depois saiu, e
dessa vez não retornou.
Mestre Scaufflaire lamentou amargamente não ter dito mil francos. Na
verdade, o cavalo e o tílburi juntos não valiam mais que cem francos.
O flamengo chamou a mulher e contou-lhe o caso. Onde diabos
poderia estar indo o prefeito?
Trocaram ideias e a mulher disse:
— Ele vai a Paris.
— Acho que não — disse o marido.
O senhor Madeleine esquecera sobre a lareira o papel onde escrevera
os números; o flamengo o pegou e pôs-se a estudá-lo. “Cinco, seis, oito e
meia? Isto deve marcar as paradas da diligência.” E, voltando-se para sua
mulher:
— Já sei!
— Então?
— Daqui a Hesdin são cinco léguas, seis de Hesdin a Saint-Pol, e oito e
meia de Saint-Pol a Arras. Ele vai a Arras.
Nesse meio tempo, o senhor Madeleine voltara para casa. Para vir da
casa de Mestre Scaufflaire, tomou o caminho mais longo, como se a porta
do presbitério fosse uma tentação que ele queria evitar. Subira para seu
quarto e encerrara-se nele, o que era uma coisa muito simples, pois
gostava de deitar-se cedo. No entanto, a zeladora da fábrica, que era, ao
mesmo tempo, a única criada do senhor Madeleine, observou que a luz de
seu quarto se apagara às oito e meia; ela contou isso ao caixeiro, que
retornava, acrescentando:
— Será que o prefeito está doente? Achei-o um tanto esquisito.
Esse caixeiro, que ocupava um quarto situado exatamente abaixo do
quarto do senhor Madeleine, não deu muita atenção às palavras da
zeladora, deitou-se e adormeceu. Por volta da meia-noite, acordou
sobressaltado; ouvira, em meio ao sono, um barulho acima de sua cabeça e
pusera-se a escutar. Era um som de passos que iam e vinham, como se
alguém andasse no quarto de cima. Escutou com mais atenção e
reconheceu o andar do senhor Madeleine. Aquilo pareceu-lhe estranho;
normalmente não se ouvia ruído algum no quarto do prefeito antes da hora
em que se levantava. Um momento depois, o caixeiro ouviu algo que
parecia com o abrir e fechar de um armário, depois arrastaram um móvel,
houve um silêncio e recomeçaram os passos. Sentou-se na cama, despertou
de todo, olhou e, através das vidraças da sacada, avistou sobre a parede da
frente o reflexo avermelhado de uma janela iluminada. Pela direção dos
raios, só podia ser a janela do quarto do senhor Madeleine. O reflexo
tremia, como se fosse produzido mais pelo fogo do que por uma lâmpada.
Não se desenhava na parede a sombra dos caixilhos, sinal de que a janela
estava completamente aberta. Era de causar espanto aquela janela aberta,
com o frio que fazia. O caixeiro tornou a adormecer, mas daí a uma ou
duas horas acordou outra vez. Por cima de sua cabeça continuavam a ir e
vir os mesmos passos, lentos e regulares, e na parede desenhava-se ainda o
reflexo da luz, agora, porém, pálida e serena como a luminosidade de uma
vela. A janela continuava aberta. Eis o que se passava no quarto do senhor
Madeleine.

III. UMA TEMPESTADE SOB UM CRÂNIO


Sem dúvida, o leitor já adivinhou que o senhor Madeleine era ninguém
menos que Jean Valjean.
Já olhamos para as profundezas daquela consciência; é chegado o
momento de tornar a olhar. Não o fazemos sem emoção e sem
estremecimento, porque não há nada mais aterrador do que essa espécie de
contemplação. O olhar do espírito não pode encontrar, em lugar algum,
mais deslumbramentos e mais trevas do que no homem; nem fixar-se em
nada mais temível, complicado, misterioso e infinito. Há um espetáculo
mais grandioso que o mar, é o céu; e há outro mais grandioso que o céu, é
o interior da alma.
Fazer o poema da consciência humana, ainda que fosse a respeito de
um só homem, e ainda que fosse a respeito do mais ínfimo dos homens,
seria fundir todas as epopeias em uma epopeia superior e definitiva. A
consciência é o caos das quimeras, das ambições e das tentativas, a
fornalha dos sonhos; o antro das ideias vergonhosas; é o pandemônio dos
sofismas, é o campo de batalha das paixões. Em certos momentos,
penetrem através da face lívida de um ser humano, e olhem por trás dela,
olhem dentro dessa alma, olhem dentro dessa obscuridade. Há ali, sob a
superfície do silêncio exterior, combates de gigantes como em Homero,
brigas de dragões e hidras, e nuvens de fantasmas como em Milton,
espirais visionárias como em Dante. Coisa sombria esse infinito que todo
homem trás em si, e pelo qual mede, desesperado, as vontades de seu
cérebro e as ações de sua vida!
Alighieri encontrou um dia uma porta sinistra, diante da qual hesitou.
Eis uma delas também diante de nós, em cujo limiar hesitamos. Entremos,
porém.
Pouco temos a acrescentar ao que o leitor já sabe sobre o que
acontecera a Jean Valjean desde a aventura do pequeno Gervais. Desde
aquele momento, como se viu, Jean Valjean foi outro homem. O que o
bispo quisera fazer dele, ele mesmo o fez. Foi mais do que uma
transformação, foi uma transfiguração.
Conseguiu desaparecer, vendeu as pratas do arcebispo, guardando
apenas os castiçais como lembrança, andou de cidade em cidade,
atravessou a França, veio para Montreuil-sur-Mer, onde teve a ideia que
dissemos, realizou aquilo que já contamos, conseguiu ficar inatingível e
inacessível e, desde então, estabelecido em Montreuil-sur-Mer, feliz por
sentir sua consciência entristecida com seu passado e a primeira metade de
sua vida desmentida pela última, vivia sossegado, tranquilo e cheio de
esperanças, preocupado com dois únicos pensamentos: ocultar seu nome e
santificar sua vida; escapar aos homens, e voltar para Deus.
Esses dois pensamentos estavam tão estreitamente confundidos em seu
espírito, que verdadeiramente formavam um só; eram igualmente
absorventes e imperiosos, e dominavam suas menores ações.
Normalmente, estavam de acordo para regular a conduta de sua vida;
voltavam-no para a sombra, faziam-no benévolo e simples, ambos o
aconselhavam as mesmas coisas. Às vezes, porém, entravam em conflito
e, nesse caso, como estarão lembrados, o homem que toda a gente de
Montreuil-sur-Mer chamava de senhor Madeleine não hesitava em
sacrificar o primeiro ao segundo, sua segurança à sua virtude. Desse modo,
apesar de toda a reserva e prudência, tinha conservado os castiçais do
bispo, guardado luto por ele, chamado e interrogado todos os rapazes de
fora que passavam, indagado o que era feito das famílias de Faverolles, e
salvado a vida do velho Fauchelevent, a despeito das inquietantes
insinuações de Javert. Parecia, como já observamos, que ele, a exemplo de
todos os que têm sido sábios, santos e justos, pensava que seu primeiro
dever não era para com ele mesmo.
Devemos dizer, porém, que ainda não havia acontecido nada
semelhante ao caso presente. Jamais as duas ideias que governavam o
homem infeliz, cujos sofrimentos aqui narramos, haviam travado entre si
luta mais séria. Ele compreendeu isso confusa, mas profundamente, às
primeiras palavras que Javert pronunciara quando entrou em seu gabinete.
No momento em que tão estranhamente foi articulado aquele nome que
enterrara sob espessas camadas, ficou abismado, e como que embriagado,
com a sinistra extravagância de seu destino; e, por meio desse pasmo,
sentiu o estremecimento que precede os grandes abalos; curvou-se como o
carvalho à aproximação da tempestade, como o soldado à aproximação do
ataque. Sentiu subirem-lhe à cabeça sombras cheias de raios e relâmpagos.
Ao escutar Javert, seu primeiro pensamento foi sair, correr, denunciar-se,
tirar da prisão esse Champmathieu, e meter-se ali dentro; isso tudo foi
doloroso e pungente como uma incisão na carne viva; depois passou, e ele
disse a si mesmo: “Vamos ver! Vamos ver!” Mas reprimiu aquele primeiro
movimento generoso, recuando ante o heroísmo.
Seria lindo, sem dúvida, depois das santas palavras do bispo, depois de
tantos anos de arrependimento e abnegação, em meio a uma penitência
admiravelmente principiada, que este homem, mesmo em presença de tão
terrível conjuntura, não tropeçasse um instante, continuando a caminhar
com o mesmo passo em direção a esse precipício aberto, no fundo do qual
estava o céu; seria lindo, mas não foi assim. Devemos expor as coisas que
se passavam naquela alma, e só podemos falar do que havia lá dentro. O
que, em princípio, o arrebatou foi o instinto de conservação; reatou às
pressas o fio de suas ideias, sufocou as emoções que sentia, considerou a
presença de Javert, aquele grande perigo, adiou, com a firmeza do terror,
qualquer resolução que pudesse tomar, atordoou-se com o que devia fazer,
e retomou a calma, como um lutador recolhe seu escudo.
Passou o resto do dia nesse estado, um turbilhão por dentro, uma
tranquilidade profunda por fora, tomando apenas o que se poderia chamar
de “medidas conservadoras”. Tudo ainda era confuso e se chocava em seu
cérebro; era tamanha sua perturbação que ele não via distintamente a
forma de nenhuma ideia; e nem ele próprio poderia dizer alguma coisa a
respeito de si mesmo, a não ser que acabava de receber um grande golpe.
Foi, como de costume, visitar o leito sofrido de Fantine, e prolongou
sua visita por um instinto de bondade, dizendo a si mesmo que precisava
agir assim e recomendá-la às irmãs para o caso de ter de ausentar-se.
Sentiu vagamente que devia ir a Arras; e, sem estar minimamente
resolvido a fazer essa viagem, pensou que, estando como estava ao abrigo
de qualquer suspeita, não havia inconveniente em ser testemunha do que
iria se passar; e alugou o tílburi de Scaufflaire, para estar preparado para
qualquer acontecimento.
Jantou com bastante apetite, foi para o quarto e recolheu-se. Examinou
a situação e achou-a inédita; tão inédita que, em meio a suas cogitações,
levado por algum impulso de ansiedade quase inexplicável, ergueu-se da
cadeira e foi fechar a porta com o trinco. Receava que entrasse alguma
coisa, entrincheirava-se contra o possível.
Instantes depois, apagou sua vela, o clarão o incomodava. Parecia-lhe
que poderiam vê-lo.
Mas quem?
Ai! O que ele queria expulsar, havia entrado; o que ele queria cegar,
olhava para ele. Era sua consciência.
Sua consciência, quer dizer, Deus.
Todavia, no primeiro ímpeto, chegou a iludir-se; tinha uma sensação
de segurança e solidão; passado o trinco, julgou-se inacessível; apagada a
luz, julgou-se invisível. Tornou-se então senhor de si, colocou os cotovelos
na mesa, apoiou a cabeça nas mãos e, no escuro, pôs-se a pensar:
— Onde estou? Será que não estou sonhando? O que foi que me
disseram? É mesmo verdade que vi esse Javert, e que me falou daquele
modo? Quem será esse Champmathieu? Parece mesmo comigo? É
possível? Quando penso que ainda ontem estava tão tranquilo e tão longe
de duvidar das coisas! O que eu fazia ontem a essa hora? O que há nesse
incidente? Que desenlace terá? O que fazer?
Eis a tormenta em que se encontrava. Seu cérebro perdera a força de
reter suas ideias, elas passavam como ondas e ele segurava a cabeça com
as duas mãos, para fazê-las parar.
Desse tumulto, que lhe abalava a vontade e a razão, e do qual
procurava tirar uma evidência e uma resolução, produzia-se apenas
angústia.
Sua cabeça queimava. Foi até a janela e abriu-a por completo. Não
havia uma só estrela no céu. Ele voltou a sentar-se perto da mesa.
Decorreu assim a primeira hora.
Pouco a pouco, começaram, porém, a formar-se e a fixar-se em seu
pensamento uns vagos raciocínios, e pôde entrever, com a exatidão da
realidade, não o conjunto da situação, mas algumas circunstâncias.
Começou reconhecendo que, por mais extraordinária e crítica que
fosse a situação, era ele quem a dominava inteiramente.
Com isso seu pasmo só cresceu.
Independentemente do severo e religioso objetivo com o qual todas as
suas ações se propunham, tudo o que ele havia feito até aquele dia não era
mais do que um buraco que ele cavava para nele enterrar seu nome. O que
ele mais temia nas horas em que se voltava sobre si mesmo, em suas
noites de insônia, era ouvir pronunciado aquele nome; dizia consigo que,
para ele, seria esse o fim de tudo; que, no dia em que esse nome tornasse a
aparecer, faria desaparecer, em torno dele, sua vida nova e, talvez até,
quem sabe, a nova alma que havia dentro dele. Estremecia só de pensar
nessa possibilidade. Claro, se alguém, naqueles momentos, lhe dissesse
que chegaria uma hora em que esse nome soaria a seus ouvidos, em que
esse medonho nome, Jean Valjean, sairia subitamente do escuro e se
ergueria diante dele, em que aquela luz incrível, feita para dissipar o
mistério no qual se envolvia, resplandeceria subitamente sobre sua cabeça;
e que esse nome não o ameaçaria, que essa luz produziria apenas uma
obscuridade mais espessa, que o rasgar desse véu aumentaria o mistério,
que aquele tremor de terra consolidaria seu edifício, que esse prodigioso
incidente não teria outro resultado, se assim lhe aprouvesse, senão tornar-
lhe a existência, a um só tempo, mais clara e mais impenetrável, e que, de
seu confronto com o fantasma de Jean Valjean, o bom e digno burguês
senhor Madeleine sairia mais honrado, sereno e respeitado do que nunca
— se alguém lhe tivesse dito isso, ele teria balançado a cabeça e
considerado tais palavras insensatas. Pois bem! Tudo isso acabava
exatamente de acontecer; todo esse amontoado de impossíveis era um fato,
e Deus permitira que essas coisas loucas se tornassem coisas reais!
Seu devaneio continuava a clarear-se; cada vez mais, tinha consciência
de sua posição.
Parecia-lhe que acabava de acordar não se sabe de que sono, e que se
encontrava escorregando por uma ladeira, no meio da noite, de pé,
trêmulo, recuando em vão, à beira de um abismo. Ele entrevia
distintamente, por entre as sombras, um desconhecido, um estranho que o
destino tomava por ele e empurrava, em seu lugar, para o abismo. Era
preciso, para que o abismo se fechasse, que alguém caísse lá dentro, ele ou
o outro.
Não havia mais o que fazer senão deixar as coisas acontecerem.
Tornou-se completa a clareza, e ele confessou a si mesmo o seguinte:
que seu lugar nas galés estava vazio, mas, por mais que ele fizesse,
continuava sempre a sua espera; que o roubo ao pequeno Gervais ali o
reconduziria; que aquele lugar vazio o esperaria e atrairia até que ele ali
estivesse, o que era inevitável e fatal.
E depois ainda pensou: que naquele momento tinha um substituto, que
parecia que um tal Champmathieu tinha tido aquela má sorte, e que,
quanto a ele, presente nas galés na pessoa desse Champmathieu, presente
na sociedade com o nome de Madeleine, nada tinha a temer, desde que não
impedisse os homens de selarem sobre a cabeça do tal Champmathieu a
pedra da infâmia que, semelhante à pedra do sepulcro, cai uma só vez, e
não mais se levanta.
Tudo aquilo era tão estranho e violento que, dentro dele, fez-se o tipo
de movimento indescritível que homem algum experimenta mais do que
duas ou três vezes em toda a sua vida, espécie de convulsão da consciência
que revolve tudo aquilo que o coração tem de duvidoso, que se compõe de
ironia, de alegria e de desespero, e que poderia chamar-se de gargalhada
íntima.
Acendeu rapidamente a vela.
— Mas o quê! — pensou. — Do que eu tenho medo? Por que tenho de
me preocupar tanto? Estou salvo! Acabou! Só havia uma porta entreaberta
por onde meu passado poderia irromper em minha vida; essa porta está
fechada! Para sempre! Esse Javert, que há tanto me perturba, esse temível
instinto que parecia ter-me adivinhado, caramba! e que me seguia por toda
parte; esse medonho cão de caça sempre alerta atrás de mim, aí está ele
extraviado, ocupado em outro canto, completamente despistado. Está
satisfeito agora e me deixará em paz; já tem seu Jean Valjean! Quem sabe,
e é até bem provável, queira deixar a cidade! E tudo se deu sem minha
intervenção! Não tenho responsabilidade alguma! Mas, o que pode haver
de mal nisso? Palavra de honra que quem me visse pensaria que me
aconteceu alguma catástrofe! Afinal de contas, se há algum mal para
alguém, não é de modo algum minha culpa. Foi a Providência que fez
tudo. É que aparentemente ela assim o quer. Tenho direito de desarrumar o
que ela arruma? O que pretendo agora? Onde vou intrometer-me? Não é da
minha conta! Mas como! Não estou satisfeito! Mas então o que me falta?
O objetivo ao qual aspiro há tantos anos, o sonho das minhas noites, objeto
das minhas preces ao céu, a segurança, já o atingi! Deus quer assim, e não
tenho nada a fazer contra a vontade de Deus. E por que Deus assim o quer?
Para que eu continue o que comecei, para que eu faça o bem, para que um
dia eu seja um grande e animador exemplo, para que se diga, enfim, que
houve alguma felicidade ligada a esta penitência que tenho sofrido e a esta
virtude que reencontrei! Realmente não entendo por que ainda há pouco
tive medo de ver aquele respeitável abade, de contar-lhe tudo, como a um
confessor, de pedir-lhe conselho, porque, evidentemente, seria isso que ele
me teria dito. Está decidido, vamos deixar as coisas aconteceram! Vamos
deixar por conta do bom Deus!
Assim pensava aquele homem nas profundezas de sua consciência,
inclinado por sobre o que se poderia chamar de seu próprio abismo.
Ergueu-se da cadeira e pôs-se a andar pelo quarto.
— Vamos — disse ele —, chega de pensar nisso. Minha resolução já
está tomada! — Mas não sentiu alegria nenhuma.
Pelo contrário.
Não se pode impedir o pensamento de retornar a uma ideia, assim
como não se impede o mar de retornar à praia. Para o marinheiro, o nome
disso é maré; para o culpado, remorso. Deus agita a alma como agita o
oceano.
Passados alguns instantes, por mais que não quisesse, retomou esse
sombrio diálogo no qual era ele que falava e ele que escutava, dizendo o
que desejaria calar, escutando o que desejaria não ouvir, cedendo a essa
força misteriosa que lhe dizia: pense! como há dois mil anos dizia a outro
condenado: caminhe!
Antes de irmos mais longe, e para sermos completamente
compreendidos, insistiremos em uma observação necessária.
É certo que falamos a nós mesmos; não há um só ser racional que não
tenha feito isso. Pode-se até dizer que o verbo nunca é um mistério tão
magnífico como quando vai, no íntimo do homem, do pensamento à
consciência, e retorna da consciência ao pensamento. É somente neste
sentido que devem ser entendidas as palavras, frequentemente empregadas
neste capítulo, ele disse, ele exclamou. Nós nos dizemos, nos falamos,
exclamamos cada um em si mesmo, sem que seja quebrado o silêncio
exterior. Há um grande tumulto; tudo fala em nós, exceto nossa boca. As
realidades da alma não deixam de ser realidades por não serem visíveis e
palpáveis.
Perguntou, então, a si mesmo, onde estava. Interrogou-se sobre aquela
“resolução tomada”. Confessou a si mesmo que tudo o que acabava de
dispor em seu espírito era monstruoso, que “deixar as coisas aconteceram,
deixar por conta do bom Deus” era simplesmente horrível. Deixar aquele
desacerto do destino e dos homens completar-se, não o impedir, até
favorecê-lo com seu silêncio, nada fazer, enfim, era fazer tudo! Era o
último grau da indignidade hipócrita! Era um crime baixo, covarde,
dissimulado, abjeto, horrendo!
Pela primeira vez em oito anos, o infeliz acabava de sentir o sabor
amargo de um mau pensamento e de uma má ação.
Cuspiu-o com aversão e continuou a interrogar-se. Perguntou-se
severamente o que tinha entendido por: “Atingi meu objetivo!” Declarou
que efetivamente sua vida tinha um objetivo. Mas qual? Esconder seu
nome? Enganar a polícia? Tinha sido por uma coisa tão pequena que fizera
tudo o que fizera? Será que não tinha outro objetivo, que fosse o grande,
que fosse o verdadeiro? Salvar, não sua pessoa, mas sua alma. Tornar a ser
honrado e bom. Ser um justo! Não estaria sobretudo nisso, unicamente
nisso o que ele sempre desejara, e o que o bispo lhe ordenara? Fechar a
porta a seu passado? Mas ele não a fechava, santo Deus! Ele a reabria ao
praticar uma ação infame! Estava voltando à condição de ladrão, e o mais
odioso dos ladrões! Roubava a um outro sua existência, sua vida, sua paz,
seu lugar ao sol! Tornava-se um assassino! Ele matava, matava
moralmente um homem miserável, infligindo-lhe essa terrível morte em
vida, essa morte a céu aberto, chamada prisão! Pelo contrário, entregar-se,
salvar aquele homem, vítima de um erro tão lúgubre, retomar seu nome,
tornar a ser, por dever, o forçado Jean Valjean, com isso, completaria
verdadeiramente sua ressurreição e trancaria para sempre o inferno de
onde saía! Tornar a cair nele, em aparência, era, na realidade, sair dele!
Tinha de fazer isso! Não teria feito nada se não fizesse isso! Toda a sua
vida seria inútil, toda a sua penitência estaria perdida, e só restaria dizer:
para quê? Sentia que o bispo estava ali, que o bispo se achava ainda mais
presente por estar morto, que o bispo o olhava fixamente, que o agora
prefeito Madeleine, com todas as suas virtudes, iria parecer-lhe
abominável enquanto o forçado Jean Valjean seria admirável e puro diante
dele. Que os homens só viam sua máscara, mas que o bispo via seu rosto.
Que os homens viam sua vida, mas que o bispo via sua consciência.
Precisava então ir a Arras, libertar o falso Jean Valjean e denunciar o
verdadeiro! Ah! Era este o maior dos sacrifícios, a mais pungente das
vitórias, o último passo a transpor; mas era necessário. Doloroso destino!
Não entraria na santidade aos olhos de Deus se não entrasse na infâmia aos
olhos dos homens!
— Está bem — disse ele —, vamos tomar essa decisão e cumprir
nosso dever. Salvemos esse homem!
E pronunciou essas palavras em voz alta, sem perceber que falava alto.
Pegou seus livros, verificou-os e colocou-os em ordem, jogando no
fogo um maço de dívidas de alguns pequenos comerciantes em
dificuldades. Escreveu uma carta, que lacrou, em cujo envelope podia-se
ler, se naquele instante houvesse alguém em seu quarto: “Ao Senhor
Laffitte, banqueiro, Rua d’Artois, Paris”.
Tirou da escrivaninha uma carteira contendo algumas notas e o
passaporte que usara naquele mesmo ano para participar das eleições.
Quem o visse enquanto fazia essas coisas, envolvido em uma meditação
tão grave, não teria dúvidas de que algo se passava com ele. Movia os
lábios apenas em alguns momentos; outras vezes erguia a cabeça e fixava
o olhar em um ponto qualquer da parede, como se houvesse exatamente ali
alguma coisa que ele queria esclarecer ou interrogar. Terminada a carta
para Laffitte, colocou-a no bolso, juntamente com a carteira, e recomeçou
a andar pelo quarto.
Seus pensamentos não se desviavam. Continuava a ver claramente seu
dever escrito em letras luminosas, fulgurando diante de seus olhos e se
deslocando conforme seu olhar: Vá, diga quem é, denuncie-se!
Via igualmente, como que movendo-se diante dele, e com formas
sensíveis, as duas ideias que, até então, haviam sido a dupla regra de sua
vida: esconder seu nome, santificar sua alma. Pela primeira vez,
apareciam-lhe absolutamente distintas, ele via a diferença que as separava.
Reconhecia que uma delas era necessariamente boa, enquanto que a outra
podia tornar-se má; que uma era a dedicação, e a outra, a personalidade;
que uma dizia: o próximo, e que a outra dizia: eu; que uma vinha da luz, e
a outra vinha das trevas.
Elas se combatiam, e ele via esse combate. À medida que refletia, elas
cresciam diante do olhar de seu espírito, e agora tinham proporções
colossais; parecia-lhe ver lutar, em seu íntimo, dentro daquele infinito de
que falamos há pouco, em meio a sombras e clarões, uma deusa e uma
gigante. Estava cheio de espanto, mas parecia-lhe que o bom pensamento
levava vantagem. Sentia que chegava a outro momento decisivo de sua
consciência e de seu destino, que o bispo marcara a primeira fase de sua
vida nova, e que Champmathieu marcaria a segunda. Após a grande crise,
a grande provação.
No entanto, essa febre, adormecida por instantes, voltava-lhe pouco a
pouco. Mil pensamentos passavam em sua mente, mas continuavam a
fortificá-lo em sua resolução.
Chegou a pensar que talvez estivesse levando a coisa muito a sério,
que esse Champmathieu nem fosse interessante e que, afinal, havia
roubado. Mas respondeu a si mesmo: “Se esse homem efetivamente
roubou algumas maçãs, é um mês de prisão. Daí às galés, há uma enorme
distância. E quem sabe mesmo se roubou? Foi provado? O nome de Jean
Valjean o arruína e parece dispensar outras provas. Os procuradores do
governo não procedem habitualmente assim? Acham que é ladrão porque
sabem que foi um condenado”.
Em outro momento, veio-lhe à mente a ideia de que, ao denunciar-se,
talvez levassem em consideração o heroísmo de seu ato, e a vida honesta
que levava havia sete anos, e tudo o que havia feito pela cidade, e o
perdoariam.
Mas essa suposição desvaneceu-se logo; sorriu amargamente,
lembrando-se de que o roubo dos quarenta soldos ao pequeno Gervais o
fazia reincidente, e esse processo sem dúvida reapareceria, tornando-o, nos
termos rigorosos da lei, passível de condenação a trabalhos forçados por
toda a vida.
Afastou-se de toda ilusão, desapegou-se cada vez mais da terra,
procurando consolação e força em outras coisas. Disse a si mesmo que era
preciso cumprir com seu dever; que talvez depois de tê-lo cumprido não
ficasse mais infeliz do que ficaria se não o cumprisse; que, se deixasse as
coisas acontecerem, se ficasse em Montreuil-sur-Mer, a consideração que
tinha, sua boa reputação, suas boas obras, a deferência e veneração com
que o tratavam, sua riqueza, popularidade e virtude seriam temperadas
com um crime. E que gosto teriam todas essas coisas santas, ligadas a essa
coisa medonha? Enquanto que, se ele cumprisse seu sacrifício, na prisão,
no pelourinho, acorrentado, boné verde na cabeça, trabalhando sem
descanso, humilhado sem piedade, estaria mesclado a uma ideia celeste!
Finalmente, disse que havia necessidade disso, que assim estava
traçado seu destino, que não era mestre em desarranjar as disposições dos
céus, que, em todo o caso, era preciso escolher: ou a virtude por fora e a
abominação por dentro, ou a santidade por dentro e a infâmia por fora.
Remoendo tantas ideias lúgubres, sua coragem não enfraquecia, mas
seu cérebro se cansava e, contra sua vontade, começava a pensar em outras
coisas, em coisas indiferentes.
Sentia suas veias baterem fortemente nas têmporas, e andava de um
lado para o outro sem cessar. Soou meia-noite, primeiro no relógio da
igreja, depois na prefeitura. Contou as doze badaladas nos dois relógios,
comparando o som dos dois sinos, e lembrou-se que alguns dias antes vira,
à venda, na loja de um negociante de ferro-velho, um velho sino no qual
estava escrito este nome: Antoine Albin de Romainville.
Como sentia frio, acendeu um pouco o fogo, mas não pensou em fechar
a janela. Tornara, porém, a cair naquele torpor. Precisava fazer um grande
esforço para lembrar daquilo em que pensava antes de soar meia-noite;
enfim conseguiu.
— Ah! É mesmo — disse consigo —, eu tinha tomado a resolução de
denunciar-me.
Em seguida, subitamente pensou em Fantine.
— Mas e agora! — disse. — E essa pobre mulher?
Uma nova crise iniciou-se.
A imagem de Fantine, aparecendo-lhe de repente em meio a seus
devaneios, foi como um raio de luz inesperado. Pareceu-lhe que tudo em
torno dele mudava de aspecto, e exclamou:
— Ah! Mas é que até agora só considerei a mim mesmo! Só olhei para
as minhas conveniências! Convém calar-me ou denunciar-me, ocultar o
que sou ou salvar minha alma, ser um magistrado desprezível e respeitado,
ou um forçado infame e venerável; eu, sempre eu, exclusivamente eu!
Mas, meu Deus, tudo isso é egoísmo! São formas diversas do egoísmo,
mas é o egoísmo! E se eu pensasse um pouco nos outros! A primeira
virtude é pensarmos nos outros. Deixe ver, examinar. Excluindo o eu,
apagando o eu, esquecendo o eu, que será de tudo isso? Se me denuncio,
vão me prender, vão soltar esse Champmathieu, vão mandar-me de volta
às galés; está bem, mas, e depois? O que vai acontecer aqui? Ah! Aqui, há
uma região, uma cidade, fábricas, uma indústria, operários, homens,
mulheres, avós velhinhos, crianças, gente pobre! Criei tudo isso, dei vida a
tudo isso; em todo lugar onde há uma chaminé que fumega, fui eu quem
pôs a lenha no fogão e a carne na panela; criei o bem-estar, a circulação, o
crédito; antes de mim, não havia nada; reergui, vivifiquei, animei,
fecundei, estimulei, enriqueci toda essa terra; se eu faltar, faltará alma a
tudo isso; se eu me retirar, tudo acabará. E essa mulher que tanto tem
sofrido, que tem tantos méritos em sua queda, e a quem eu, sem querer,
causei todo o dano? E essa criança que eu deveria ir buscar, que eu
prometi à mãe? Porventura não devo alguma coisa a essa mulher, em
reparação ao mal que lhe causei? Que acontecerá se eu desaparecer? A
mãe vai morrer, e a criança vai ser o que Deus quiser. É o que acontecerá
se eu me denunciar. E se não me denunciar? Vamos, e se não me
denunciar?
E parou depois de ter-se feito essa pergunta; teve um momento de
hesitação e tremor, mas esse momento durou pouco, e respondeu a si
mesmo com serenidade:
— Então, aquele homem vai para as galés, é verdade; mas que diabo!
Ele roubou! Por mais que eu diga que ele não roubou, ele roubou! Quanto
a mim, fico aqui, continuo. Dentro de dez anos, terei ganho dez milhões,
espalho-os por toda essa gente, e fico sem nada para mim. Mas que tem
isso? Não é por mim o que faço! Vai crescendo a prosperidade de todos, as
indústrias despertam e se estimulam, as manufaturas e as fábricas se
multiplicam, as famílias, cem famílias, mil famílias, são felizes; a região
se povoa, nascem aldeias onde só existiam fazendas, nascem fazendas
onde não existia nada; a miséria desaparece e, com ela, desaparece a
devassidão, a prostituição, o roubo, o assassínio, todos os vícios, todos os
crimes! E essa pobre mãe cria sua filha! E aí está a cidade inteira rica e
honrada! Ah! Na verdade, eu estava louco, absurdo, como eu podia falar
em denunciar-me? É preciso prestar muita atenção, e não agir com
precipitação. Que é isso! Só porque eu iria gostar de fazer-me de grande e
de generoso! Puro melodrama, afinal de contas! Por não pensar apenas em
mim, unicamente em mim, ora! Para salvar de um castigo talvez um tanto
exagerado, mas justo, no fundo, não se sabe quem, um ladrão, um velhaco
evidentemente, por causa disso uma terra inteira deve perecer? E uma
pobre mulher morrer no hospital, e uma pobre menina morrer pela rua,
como os cães? Oh, isso é abominável! Sem ao menos a mãe ter revisto sua
filha! Sem a filha chegar sequer a conhecer a mãe! E tudo por causa desse
maroto, desse ladrão de maçãs que, com toda a certeza, se não mereceu as
galés por isso, mereceu por outra coisa! Belos escrúpulos, que salvam um
criminoso e sacrificam os inocentes, que salvam um velho vagabundo que
não tem mais que alguns anos de vida, afinal de contas, e que não será
mais infeliz na prisão do que em seu casebre, e que sacrificam uma
população inteira, mães, filhos e mulheres! Essa pobre Cosette que só tem
a mim no mundo, e que decerto, a esta hora, está roxa de frio na pocilga
desses Thénardier! Uns belos canalhas, esses aí! E eu faltaria a meus
deveres para com essas pobres criaturas? E ia denunciar-me? E ia fazer
essa besteira? Vamos encarar tudo pelo pior lado. Suponhamos que haja
uma má ação minha nisso tudo, e que a consciência um dia me cobre, para
o bem de outrem, aceitar essas recriminações que só dizem respeito a
mim; essa má ação só compromete minha alma, e é aí que estão a
dedicação, a virtude.
Levantou-se e recomeçou a andar; dessa vez parecia sentir-se
satisfeito.
Assim como apenas nas entranhas da terra se encontram os diamantes,
somente nas profundezas do pensamento se encontram as verdades.
Parecia-lhe que, depois de ter descido a essas profundezas, depois de ter
por bastante tempo tateado no mais fundo e escuro dessas entranhas,
acabava enfim de encontrar um desses diamantes, uma dessas verdades,
que tinha segura nas mãos; deslumbrava-se a contemplá-la.
— Sim, é isso! — pensou. — Cheguei à verdade; consegui a solução. É
preciso acabar por se ater a alguma coisa. Minha decisão está tomada.
Agora é deixar acontecer! Sem vacilar, nem recuar; isso é no interesse de
todos, não só no meu. Sou Madeleine, e permaneço Madeleine. Desgraça a
quem é Jean Valjean; não sou mais eu! Não conheço esse homem, não sei
mais o que é isso; se ocorrer de, nessas alturas, alguém ser Jean Valjean,
que se vire, não é de minha conta. É um nome fatal que flutua nas trevas;
se para e recai sobre uma cabeça, azar dela!
Olhou-se no espelho que ficava sobre a lareira e disse:
— Pois bem, estou aliviado por ter tomado uma resolução! Sinto-me
outro agora!
Deu ainda alguns passos, e parou de repente:
— Vamos! Nada de hesitações diante das consequências da resolução
tomada. Há ainda alguns fios que me ligam a esse Jean Valjean; é
necessário quebrá-los. Há, aqui mesmo neste quarto, objetos que me
acusam, coisas mudas que seriam testemunhas; já disse, tudo isso tem de
desaparecer.
Remexeu em seus bolsos, tirou deles uma pequena bolsa, abriu-a, e
dali retirou uma chave. Introduziu essa chave em uma fechadura, da qual
mal se via o buraco, disfarçado como estava nas nuances mais escuras do
desenho que cobria o papel de parede. Abriu-se um esconderijo, uma
espécie de armário falso colocado entre o ângulo da parede e a lareira.
Nesse esconderijo, havia apenas alguns farrapos; um casaco de tecido azul,
umas calças velhas, uma mochila velha e um cajado com as duas pontas de
metal. Quem tivesse visto Jean Valjean na época em que ele passou por
Digne, em outubro de 1815, facilmente teria reconhecido todas as peças
desse miserável vestuário.
Ele as conservara, assim como tinha conservado os castiçais de prata,
para lembrar-se sempre de seu ponto de partida. Escondia o que tinha
vindo das galés, e deixava à mostra os castiçais, que tinham vindo do
bispo.
Lançou um olhar furtivo para a porta, como se receasse que ela se
abrisse, apesar do trinco que a fechava; depois, com um movimento vivo e
rápido, sem dar sequer uma olhadela naqueles objetos, tão religiosa e
perigosamente guardados havia tantos anos, de uma só vez pegou farrapos,
cajado e mochila e atirou tudo no fogo.
Tornou a fechar o falso armário e, redobrando as precauções agora
inúteis, já que estava vazio, escondeu-lhe a porta atrás de um grande
móvel.
Após alguns segundos, o quarto e a parede frontal foram iluminadas
por um grande reflexo vermelho e trêmulo. Tudo queimava. O cajado
estalava e lançava faíscas até a metade do quarto.
A mochila, consumindo-se com os sujos trapos que continha, deixara a
descoberto na cinza alguma coisa que brilhava. Quem se inclinasse para
examiná-la teria facilmente reconhecido uma moeda de prata. Era decerto
a moeda de quarenta soldos roubada ao pequeno Gervais. Ele não olhava
para o fogo e andava de um lado para o outro, sempre no mesmo passo.
De súbito, deu com os olhos nos dois castiçais de prata, que o reflexo
fazia vagamente reluzir em cima da lareira.
— Ora! — disse ele consigo. — Jean Valjean ainda permanece naquilo.
É preciso destruí-los também.
E pegou os dois castiçais.
Havia fogo suficiente para deformá-los prontamente, fazendo deles
uma espécie de barra irreconhecível. Inclinou-se sobre a lareira e aqueceu-
se um pouco; sentiu um verdadeiro bem-estar. “Que calor bom!”, disse ele,
e remexeu o braseiro com um dos castiçais.
Mais um minuto e estariam no fogo.
Naquele momento, porém, pareceu-lhe ouvir uma voz que gritava em
seu íntimo:
— Jean Valjean! Jean Valjean!
Seus cabelos arrepiaram-se, e ele sentiu-se como alguém que escuta
uma coisa terrível.
— Sim, é isso, acabe! — dizia a voz. — Complete o que está fazendo,
destrua esses castiçais! Aniquile essa lembrança, esqueça o bispo, esqueça
tudo! Perca esse Champmathieu, vá, está bem! Aplauda-se! Assim, está
decidido, está resolvido, está dito, que aquele homem, aquele velho, que
não sabe o que querem dele, que talvez nada tenha feito, um inocente, a
quem seu nome causa tanto infortúnio, sobre quem seu nome pesa como
um crime, será preso em seu lugar, será condenado, acabará seus dias na
abjeção e no horror! Está bem! Seja honesto, homem. Continue a ser o
senhor prefeito, continue a ser respeitável e respeitado, enriqueça a cidade,
alimente indigentes, crie órfãos, viva feliz, virtuoso e admirado, e, durante
esse tempo, enquanto estiver aqui na alegria e na luz, haverá alguém
usando sua vestimenta vermelha, levando seu nome na ignomínia e
arrastando sua corrente de forçado! É, bem arrumado esse negócio! Ah,
miserável!
O suor escorria de sua da fronte. Olhava de modo desvairado para as
chamas. E aquele que falava dentro dele ainda não tinha acabado; a voz
continuava:
— Jean Valjean! Haverá em torno de você muitas vozes que farão um
grande barulho, que falarão bem alto e que irão abençoá-lo, e uma só que
ninguém ouvirá, e que irá amaldiçoá-lo nas trevas. Pois bem! Escute, seu
infame! Todas essas bênçãos cairão antes de chegarem aos céus, e só a
maldição subirá até Deus!
Essa voz, em princípio bem fraca, que se elevara do mais obscuro de
sua consciência, ia se tornando gradualmente estrondosa e formidável, e
agora ele a ouvia bem dentro do ouvido. Parecia-lhe que saíra de dentro
dele mesmo e falava agora fora dele. Julgou ouvir as últimas palavras tão
distintamente, que olhou pelo quarto com uma espécie de terror.
— Tem alguém aí? — perguntou ele em voz alta e meio alucinado.
Depois, retomou com um riso semelhante ao de um idiota:
— Como sou bobo! Não pode ter ninguém aí!
Havia alguém ali, mas era alguém que os olhos humanos não podem
ver.
Ele colocou os castiçais na lareira. Recomeçou então aquele caminhar
monótono e lúgubre, que perturbava os sonhos e despertava em sobressalto
o homem adormecido do andar de baixo.
Aquele caminhar aliviava-o e embriagava-o ao mesmo tempo. Às
vezes, parece que em ocasiões supremas nos movemos para pedir conselho
a tudo o que podemos encontrar nesses deslocamentos. Depois de alguns
instantes, já não sabia onde estava.
Recuava agora, com igual espanto, diante das duas resoluções que
alternadamente tomara; as duas ideias que o aconselhavam pareciam-lhe
uma tão funesta quanto a outra. Que fatalidade! Que acaso aquele
Champmathieu ser tomado por ele! Ser derrubado justamente pelos meios
que a Providência parecia, em princípio, ter empregado para fortalecê-lo.
Houve um momento em que pensou no futuro. Denunciar-se, grande
Deus! Entregar-se! Encarou com imenso desespero tudo o que teria de
deixar, e tudo o que teria de retomar. Teria de dizer adeus àquela existência
tão boa, tão pura, tão radiante, ao respeito de todos, à honra, à liberdade.
Não tornaria a passear pelos campos, não tornaria a ouvir cantar os
passarinhos no mês de maio, não tornaria a dar esmolas às criancinhas!
Não tornaria a sentir a amenidade dos olhares de gratidão e amor que nele
se fixavam! Deixaria essa casa que havia construído, o quarto onde
dormia! Tudo naquela hora parecia-lhe belo. Não tornaria a ler seus livros,
nem a escrever na mesinha branca de madeira. A velha zeladora, a única
criada que tivera, não tornaria a trazer-lhe o café pela manhã. Em vez
disso — santo Deus! — o bando de condenados, a argola no pescoço, a
vestimenta vermelha, a corrente no pé, o cansaço, a cela, a cama dura,
todos aqueles horrores conhecidos! Na sua idade, e depois de ter sido o
que era! Se ele ainda fosse novo! Mas velho, não ser mais tratado por
senhor pelo primeiro que aparecesse, ser revistado pelo vigilante dos
forçados, levar pancadas dos guardas! Ter os pés nus metidos em sapatos
ferrados! Estender a perna, de manhã e de noite, ao martelo do vigia que
revista a manilha! Sofrer a curiosidade dos estranhos, aos quais diriam:
Aquele é o famoso Jean Valjean, que foi prefeito de Montreuil-sur-Mer! À
noite, banhado de suor, morto de cansaço, com o boné verde sobre os
olhos, subir, dois a dois, sob o açoite do sargento, a escada da prisão
flutuante! Oh! Que miséria! O destino pode então ser mau como um ser
inteligente, e tornar-se monstruoso como o coração humano!
E, o que quer que fizesse, recaía sempre nesse pungente dilema que
ficava no fundo de seus devaneios: ficar no paraíso e tornar-se demônio!
Voltar para o inferno e tornar-se anjo!
Que fazer, santo Deus, que fazer?
A tormenta, da qual havia saído a tanto custo, novamente desencadeou-
se dentro dele. Suas ideias tornaram a confundir-se, tomando um não sei
que de estupefação e de maquinal, o que é próprio do desespero. O nome
de Romainville reaparecia sem parar em sua mente, com dois versos de
uma canção que ouvira havia muito tempo. Lembrava-se de que
Romainville era um bosquezinho nas imediações de Paris onde os jovens
amantes iam colher lilases no mês de abril.
Oscilava exteriormente tanto quanto intimamente, caminhando como
uma criança a quem deixam andar sozinha.
Em alguns momentos, lutando contra o cansaço, esforçava-se por
retomar sua racionalidade e procurava colocar-se, pela última e definitiva
vez, o problema sobre o qual caíra esgotado. Devo denunciar-me? Devo
calar-me? Não chegava, porém, a ver nada distintamente. Os vagos
aspectos de todos os raciocínios delineados em suas reflexões tremiam e
dissipavam-se, uns após outros, como fumaça. Mas sentia que, qualquer
que fosse a decisão que tomasse, necessariamente, e sem que disso fosse
possível escapar, alguma porção dele ia morrer; que entraria em um
sepulcro, tomasse a esquerda ou a direita; que cumpriria uma agonia, a
agonia de sua virtude ou a agonia de sua felicidade.
Ah! Outra vez se tinham apossado dele todas as suas irresoluções. Não
estava agora mais à frente do que no princípio.
Assim se debatia em angústia aquela desventurada alma. Mil e
oitocentos anos antes desse homem desafortunado, o ente misterioso, no
qual se resumem todas as santidades e sofrimentos da humanidade,
também tinha desviado com a mão, ao sussurrar das oliveiras agitadas
pelo vento feroz do infinito, o cálice terrível que lhe aparecia jorrando
sombras e transbordando trevas na imensidão cheia de estrelas.

IV. FORMAS QUE TOMA O SOFRIMENTO DURANTE


O SONO
Três horas da manhã acabavam de soar, fazia cinco horas que andava
daquele jeito, quase sem interrupção, quando deixou-se cair em uma
cadeira. Adormeceu e teve um sonho.
Aquele sonho, como a maioria dos sonhos, não tinha ligação com a
realidade a não ser por algo de funesto e pungente, mas o impressionou.
Aquele pesadelo mexeu de tal forma com ele, que mais tarde o descreveu.
E foi esta uma das coisas que deixou escritas de próprio punho. Julgamos
dever aqui transcrevê-la textualmente. Qualquer que seja este sonho, a
história dessa noite ficaria incompleta se o omitíssemos. É a sombria
aventura de uma alma doente.
Ei-lo. No envelope encontramos escritas estas palavras: O sonho que
eu tive naquela noite.

“Eu estava em uma campina, era uma campina grande e triste onde não havia vegetação
alguma, e não me parecia ser nem dia, nem noite.
Eu passeava com meu irmão; o irmão dos meus anos da infância, esse irmão em quem,
devo dizer, nunca penso, e do qual quase não me lembro.
Conversávamos e encontrávamos outros passantes. Falávamos de uma vizinha que
tínhamos antigamente, e que, desde que morava naquela rua, trabalhava sempre com a
janela aberta. Ao mesmo tempo que conversávamos, sentíamos frio por causa da tal janela
aberta.
Não havia uma só árvore naquela campina.
Vimos um homem que passava perto de nós, completamente nu, cor de cinza, montado
em um cavalo cor de terra. Esse homem não tinha cabelos; via-se seu crânio, e sobre este
viam-se veias. Trazia na mão uma varinha flexível como vime e pesada como ferro. Esse
cavaleiro passou por nós e não nos disse nada.
Meu irmão me disse: ‘Vamos pelo caminho de baixo’.
Havia um caminho mais baixo onde não se via nem um arbusto, nem um pingo de
musgo. Era tudo cor de terra, até o céu. Após alguns passos, ninguém me respondia quando
eu falava. Percebi que meu irmão já não estava comigo.
Entrei então em uma aldeia que avistei. Imaginei que devia ser Romainville (por que
Romainville?).1
A primeira rua em que entrei estava deserta. Entrei na segunda e, atrás do ângulo
formado pelas duas ruas, vi um homem de pé, encostado na parede. Perguntei-lhe: que lugar
é este? Onde estou? Mas o homem não me respondeu. Vi a porta de uma casa aberta e
entrei.
O primeiro quarto estava vazio. Entrei em outro. Atrás da porta desse quarto havia um
homem de pé, encostado na parede. Perguntei a ele: de quem é essa casa? Onde estou? Mas
o homem não me respondeu.
A casa tinha um jardim. Saí da casa e entrei no jardim, que estava deserto. Por trás da
primeira árvore, encontrei um homem que estava de pé. Perguntei a ele: de quem é este
jardim? Onde estou? Mas o homem não me respondeu.
Percorri a aldeia, e percebi que era uma cidade. Todas as ruas estavam desertas, todas as
portas estavam abertas. Nenhum ser vivo andava pelas ruas, pelos aposentos, ou passeava
nos jardins. Mas em cada canto, por trás de cada porta, por trás de cada árvore, havia um
homem de pé e calado. Não se via mais do que um em cada lugar, e todos olhavam para
mim quando eu passava.
Saí da cidade e me pus a caminhar pela campina.
Daí a algum tempo, voltei-me e vi que uma grande multidão vinha atrás de mim.
Reconheci todos os homens que tinha visto na cidade; tinham umas cabeças estranhas. Não
pareciam vir depressa, no entanto, caminhavam mais rápido que eu. Não faziam barulho
algum ao andar. Num abrir e fechar de olhos, aquela multidão alcançou-me e cercou-me. Os
rostos daqueles homens eram cor de terra.
Então, o primeiro que eu vira e interrogara quando entrei na cidade disse-me: ‘Aonde
vai? Não sabe que já morreu há muito tempo?’
Abri a boca para responder e vi que não havia ninguém à minha volta.”

Acordou. Estava gelado. Um vento frio como a aragem da manhã fazia


girar em seus eixos os caixilhos das vidraças que ficaram abertas. O fogo
estava apagado e a vela quase toda gasta. Era ainda noite fechada.
Levantou-se e foi até a janela. O céu continuava sem estrelas.
De sua janela, avistava-se o pátio da casa e a rua. Um ruído seco e
duro, que ressoou de repente no chão, fez com que abaixasse os olhos. Viu,
abaixo dele, duas estrelas vermelhas cujos raios se alongavam e encolhiam
estranhamente no escuro.
Como seu pensamento estava ainda meio submerso em uma atmosfera
de sonhos, pensou:
— Oh! Não tem estrelas no céu; agora elas estão na terra.
No entanto, aquela perturbação dissipou-se, e um segundo ruído,
semelhante ao primeiro, acabou de despertá-lo; olhou e reconheceu que as
duas estrelas eram as lanternas de uma carruagem. Pela claridade que
lançavam, pôde distinguir a forma da tal carruagem. Era um tílburi puxado
por um cavalo branco. O ruído que ele ouvira vinha das patas do cavalo
batendo no calçamento da rua.
— Que carruagem é essa? — disse consigo. — Quem é que vem a essa
hora da noite?
Nesse momento, bateram de leve na porta de seu quarto. Ele
estremeceu da cabeça aos pés.
— Quem está aí?
Alguém respondeu:
— Eu, senhor prefeito.
Ele reconheceu a voz da velha zeladora.
— E então — tornou ele —, o que há?
— Logo serão cinco horas da manhã, prefeito.
— E que tenho eu com isso?
— Senhor prefeito, é o cabriolé.
— Que cabriolé?
— O tílburi.
— Que tílburi?
— Então o senhor não tinha encomendado um tílburi?
— Não — disse ele.
— Mas o cocheiro pergunta pelo senhor prefeito.
— Que cocheiro?
— O cocheiro do senhor Scaufflaire.
— Senhor Scaufflaire!
Esse nome o fez estremecer como se um raio tivesse passado diante de
seus olhos.
— Ah! Sim! — tornou ele. — O senhor Scaufflaire!
Se a velha pudesse vê-lo naquele momento, ficaria espantada.
Houve um longo silêncio. Ele examinava com ar estúpido a chama da
vela, e, da volta do pavio, tirava um pouco de cera quente que embolava
nos dedos. A velha esperava, mas, passado algum tempo, aventurou-se
ainda a levantar a voz:
— O que devo responder, senhor prefeito?
— Diga que está bem, que já estou indo.

V. CRIANDO DIFICULDADES
Naquela época, o serviço do correio entre Arras e Montreuil-sur-Mer
era ainda feito por meio de malas-postas do tempo do império. Eram
cabriolés de duas rodas, forrados internamente com couro, suspensos por
molas, e só com dois lugares, um para o condutor, outro para o viajante.
As rodas eram armadas com longos cabos ofensivos que conservavam as
outras carruagens à distância, e que ainda são vistos nas estradas da
Alemanha. Na parte de trás do cabriolé ficava a caixa de correspondência,
grande e oblonga, fazendo corpo com ele. Essa caixa era pintada de preto e
o cabriolé de amarelo.
Essas carruagens, com as quais nada se parece hoje em dia, tinham
algo de disforme e encurvado, e quando vistas de longe, passando por
alguma estrada na linha do horizonte, pareciam com aqueles insetos que,
creio eu, chamam-se tanajuras, que têm a parte dianteira do corpo bem
pequena e arrastam uma grande parte posterior. Mas, de resto, andavam
bem rápido. A mala-posta partia de Arras todas as noites à uma hora,
depois da chegada do correio de Paris, chegando a Montreuil-sur-Mer
pouco antes das cinco horas da manhã.
Naquela noite, a mala-posta que vinha para Montreuil-sur-Mer pela
estrada de Hesdin chocou-se, ao dobrar a esquina de uma rua, quando
entrava na cidade, com um pequeno tílburi puxado por um cavalo branco,
que vinha em sentido inverso, no qual havia uma única pessoa, um homem
envolto em seu casaco. A roda do tílburi recebeu um choque bastante
violento; o condutor da mala-posta gritou a esse homem que parasse, mas
ele não ouviu e continuou seu caminho a galope.
— Esse homem está com uma pressa dos diabos! — disse o condutor.
O homem tão apressado é o mesmo que ainda há pouco vimos
debatendo-se em convulsões certamente dignas de compaixão.
Para onde ia? Nem ele podia dizer. Por que ia com tanta pressa? Nem
ele sabia. Ia adiante, ao acaso. Para onde? Para Arras, é certo; mas ia
talvez a outro lugar também, que por instantes bem sabia, e até estremecia.
Embrenhava-se naquelas trevas como para dentro de um abismo. Alguma
coisa o impelia, alguma coisa o atraía. Ninguém podia dizer o que se
passava com ele, mas todos o compreenderão. Que homem ainda não
entrou, ao menos uma vez na vida, nessa caverna obscura do
desconhecido?
Afinal, aquele homem nada resolvera, nada decidira, nada concluíra,
nem fizera; nenhum dos atos de sua consciência era definitivo. Estava
mais do que nunca como no primeiro momento.
Para que ia a Arras?
Repetia-se o que já tinha dito a si mesmo ao alugar o cabriolé de
Scaufflaire: que qualquer que fosse o resultado, não havia inconveniente
nenhum em ver com os seus olhos, em julgar as coisas por si mesmo; que
isso era até prudente e que devia saber o que se passaria; que nada podia
ser decidido sem ter primeiro observado e escutado; que, de longe,
imagina-se tudo mais difícil; que, afinal de contas, quando visse o tal
Champmathieu, um miserável, provavelmente sua consciência se sentiria
bem aliviada por deixá-lo ir para as galés em seu lugar; que, na verdade, lá
estaria Javert, os tais Brevet, Chenildieu e Cochepaille, antigos forçados
que o haviam conhecido mas, com toda certeza, não o reconheceriam
agora — ah, que ideia! —; que Javert estava a cem léguas dali; que todas
as conjecturas e todas as suposições estavam voltadas a esse
Champmathieu, e que nada é mais teimoso do que suposições e
conjecturas, e que não havia, portanto, perigo algum.
Que aquele, sem dúvida, era um momento negro, mas que sairia dele;
que, afinal, tinha seu destino nas mãos; por pior que ele fosse, era senhor
dele. Agarrava-se a esse pensamento.
No fundo, para dizer a verdade, ele bem preferia não ter ido a Arras.
No entanto, dirigia-se para lá.
E, pensando, chicoteava o cavalo, que trotava com aquele bom trote,
regular e seguro, fazendo duas léguas e meia por hora.
À medida que o cabriolé avançava, ele sentia que alguma coisa nele
recuava.
Ao despontar do dia, estava em pleno campo; a cidade de Montreuil–
sur-Mer já estava bem longe. Observou o horizonte a clarear; viu, mas sem
enxergar, passarem diante de seus olhos todas as figuras frias de um
amanhecer de inverno. A manhã também tem seus espectros, como a noite.
Ele não os enxergava, mas, sem que soubesse, e por uma espécie de
penetração quase física, aquelas escuras silhuetas de árvores e colinas
acrescentavam ao estado perturbado de sua alma algo de tristonho e
sinistro. Cada vez que passava diante de alguma dessas casas isoladas, que
às vezes ladeiam as estradas, dizia consigo:
— Mas ali dentro tem gente dormindo!
O trote do cavalo, os guizos dos arreios e as rodas girando no
pavimento da estrada faziam um ruído suave e monótono. Coisas dessa
natureza são encantadoras quando estamos alegres, e lúgubres quando
estamos tristes.
Era dia claro quando chegou a Hesdin, onde parou à porta de uma
estalagem para deixar o cavalo tomar fôlego e mandar que dessem aveia
ao animal.
O cavalo, como dissera Scaufflaire, era da raça pequena de Boulonnais,
de cabeça grande, ventre volumoso, pouco pescoço, mas de peitoral aberto,
ancas largas, pernas magras e finas, e patas sólidas; raça feia, mas robusta
e sadia. O excelente animal andara cinco léguas em duas horas e não tinha
uma só gota de suor nas ancas.
Não desceu do tílburi. Ao colocar a aveia para o cavalo, o moço da
estrebaria abaixou-se e examinou a roda esquerda.
— O senhor vai para longe? — perguntou o rapaz.
Ele respondeu praticamente sem sair de suas reflexões.
— Por quê?
— O senhor vem de longe? — tornou o moço.
— De cinco léguas daqui.
— Ah!
— Por que diz: ah?
O moço inclinou-se de novo, permaneceu um instante silencioso, com
os olhos fixos na roda, depois endireitou-se, dizendo:
— É que tem uma roda que acabou de fazer cinco léguas, não duvido,
mas, com toda certeza, não andará nem um quarto de légua a mais.
Ele então saltou do tílburi.
— O que está dizendo, meu amigo?
— Digo que só por milagre o senhor andou as cinco léguas sem cair, o
senhor e seu cavalo, em algum barranco da estrada. Venha ver.
A roda estava, de fato, seriamente danificada. O choque com a mala-
posta fizera romper dois de seus raios e abalara o cubo, cuja porca já não
segurava.
— Amigo — disse ele ao rapaz da estrebaria —, por aqui há alguém
que conserte isso?
— Há, sim, senhor!
— Quer fazer o favor de buscá-lo?
— Ele está a dois passos daqui. É o Mestre Bourgaillard!
Mestre Bourgaillard, o carpinteiro, estava na soleira da porta; veio
examinar a roda e fez a careta de um cirurgião ao ver uma perna quebrada.
— O senhor poderia consertar esta roda imediatamente?
— Sim, senhor.
— E quando poderei partir?
— Amanhã.
— Amanhã!
— Isso é trabalho para um dia. O senhor tem muita pressa?
— Muita. Preciso partir, o mais tardar, em uma hora.
— Impossível, senhor.
— Pago o que quiser.
— Impossível.
— Está bem! Duas horas.
— Para hoje é impossível; é preciso refazer dois raios e um cubo. O
senhor não poderá partir antes de amanhã.
— Meu negócio não pode esperar até amanhã. Mas, e se em vez de
consertar esta roda colocássemos uma nova?
— Como?
— O senhor não fabrica carros?
— Isso mesmo, senhor.
— Então, não teria uma roda para vender-me? Assim eu poderia ir
embora rapidamente.
— Uma roda sobressalente?
— Isso.
— Não tenho uma roda que sirva exatamente para o seu cabriolé. Duas
rodas fazem o par, e não formam conjunto assim, ao acaso.
— Nesse caso, venda-me o par.
— Mas é que nem todas as rodas se encaixam em qualquer eixo.
— Experimente mesmo assim.
— Não adianta, senhor. Eu só tenho rodas de charrete para vender. Isso
aqui é um lugar pequeno.
— E não teria um cabriolé para alugar-me?
O mestre carpinteiro, ao primeiro olhar, tinha percebido que o tílburi
era de aluguel; encolheu os ombros e disse:
— O senhor toma conta tão bem dos cabriolés que lhe alugam! Se eu
tivesse um, não o alugaria ao senhor.
— E vender, então?
— Mas eu não tenho.
— Como! Nem uma carriola? Não sou difícil de contentar, como pode
ver.
— Isto aqui, senhor, é um lugar pequeno; tenho na cocheira —
acrescentou o carpinteiro — uma caleça velha que é de um sujeito da
cidade; ele a deixou guardada aqui, Mas não a usa nunca. Eu bem que a
alugaria, que me importa? Mas o sujeito não deve vê-la por aí, e, além
disso, é uma caleça; seriam necessários dois cavalos.
— Pegarei cavalos de posta.
— Para onde o senhor vai?
— Para Arras.
— E quer chegar hoje?
— Quero, sim.
— Mas com cavalos de posta?
— E por que não?
— Não faz mal se chegar às quatro horas da madrugada?
— De modo algum.
— É porque, veja bem, vou dizer-lhe uma coisa, pegando cavalos de
posta… O senhor tem passaporte?
— Tenho.
— Então, com cavalos de posta o senhor não chega em Arras antes de
amanhã. Estamos em um atalho, as mudas não são boas porque os cavalos
estão nos campos. Está começando a época das grandes lavouras, precisam
de muitas parelhas, então pegam cavalos de todo canto, e até na posta. O
senhor vai ter que esperar três ou quatro horas em cada muda; além disso,
precisa ir devagar porque há muitas subidas.
— Então irei a cavalo. Desatrele o cabriolé. Deve ter alguém que me
venda um selim por aqui.
— Sem dúvida, mas o cavalo vai tolerar o selim?
— É verdade, fez-me lembrar que ele não consente selim!
— Então…
— Será que eu não encontro na cidade um cavalo para alugar?
— Um cavalo para ir daqui a Arras sem parar?
— Sim.
— Teria que ser um cavalo do tipo que não temos por aqui. E, antes de
tudo, o senhor ia precisar comprá-lo, porque ninguém o conhece. Mas nem
para vender, nem para alugar, nem por quinhentos, nem por mil francos, o
senhor não o encontraria!
— O que fazer?
— Honestamente, o melhor é consertar a roda, e o senhor continua sua
viagem amanhã.
— Amanhã é tarde demais.
— Meu Deus!
— Não há uma mala-posta que vá a Arras? Ela passa a que horas?
— Amanhã à noite. As duas fazem o serviço à noite, tanto a que vai,
como a que vem.
— Como! E o senhor leva um dia para consertar essa roda?
— Um dia, e olhe lá!
— E com mais dois ajudantes?
— Nem que fosse com dez!
— E se os raios fossem amarrados com umas cordas?
— Os raios, sim, mas o cubo, não. Além disso, a camba também está
em péssimo estado.
— Tem alguém que alugue carruagens na cidade?
— Não, senhor.
— Nem outro carpinteiro?
O rapaz da estrebaria e o carpinteiro responderam ao mesmo tempo,
sacudindo a cabeça:
— Não.
Ele sentiu uma alegria imensa.
Era evidente que a Providência tinha a ver com isso. Ela havia
quebrado a roda do tílburi e o fazia parar no meio do caminho. Ele, porém,
não se rendia a essa espécie de primeiro aviso, e acabava de fazer todos os
esforços possíveis para continuar sua viagem, tendo, leal e
escrupulosamente, esgotado todos os recursos, não recuando, nem diante
do tempo, nem diante da fadiga, nem diante da despesa; assim não tinha
nada a recriminar-se. Se não ia mais longe, isso já não era com ele. Não
era mais sua culpa, não tinha a ver com sua consciência, mas com a
Providência.
Respirou. Respirou livremente e a plenos pulmões pela primeira vez
desde a visita de Javert. Parecia-lhe que o punho de ferro, que havia vinte
horas lhe apertava o coração, acabava de soltá-lo.
Parecia-lhe que Deus estava agora a seu favor, e se declarava.
Dizia a si mesmo que tinha feito tudo o que podia, e que agora a única
coisa a fazer era dar meia-volta, tranquilamente.
Se sua conversa com o carpinteiro tivesse ocorrido em algum quarto da
estalagem, não teria tido testemunhas, ninguém a teria ouvido, as coisas
teriam parado por aí, e provavelmente não teríamos nada para contar dos
acontecimentos que serão lidos. Mas ela aconteceu no meio da rua, e todo
diálogo no meio da rua inevitavelmente chama a atenção. Sempre há gente
que só quer ser espectador. Enquanto ele fazia perguntas ao carpinteiro,
alguns dos passantes pararam em torno deles. Após ter escutado a
conversa durante alguns minutos, um rapazinho que ninguém notara
deixou o grupo correndo.
No momento em que o viajante, após a deliberação interior que
acabamos de relatar, tomava a resolução de pegar o caminho de volta, o
rapaz voltou acompanhado de uma senhora de idade.
— Senhor — disse ela —, meu filho me falou que o senhor gostaria de
alugar um cabriolé.
Esta simples frase, proferida por uma senhora que estava com uma
criança, fez o suor escorrer por suas costas. Ele imaginou reaparecendo na
sombra, prestes a segurá-lo outra vez, a mão de ferro que o tinha largado.
— É verdade, minha senhora — respondeu ele —, estou procurando
um cabriolé para alugar.
E acrescentou depressa:
— Mas por aqui não há nenhum.
— Há sim — disse ela.
— Mas onde? — atalhou o carpinteiro.
— Na minha casa — ela respondeu.
Ele estremeceu. A mão fatal tornara a alcançá-lo.
Efetivamente, a velha tinha em casa, em um galpão, uma espécie de
carro de vime, mas o carpinteiro e o moço da estalagem, lamentando
verem que o viajante lhes escapava, intervieram:
— Mas é uma carroça horrível… deve estar fixada diretamente sobre o
eixo… é verdade que os assentos estão presos por tiras de couro… chove
lá dentro… as rodas estão enferrujadas e carcomidas pela umidade… isso
não vai muito mais longe do que o tílburi… uma verdadeira carroça… este
senhor faria muito mal em embarcar naquilo… etc., etc.
Tudo isso era verdade, mas aquela carroça, aquela carriola, aquela
coisa, o que quer que fosse, movia-se sobre duas rodas e podia ir a Arras.
Pagou o que lhe pediram, deixou o tílburi para consertar com o
carpinteiro, devendo buscá-lo na volta; mandou atrelar o cavalo branco à
carriola, subiu e retomou a estrada pela qual seguia desde a manhã.
Quando a carriola se moveu, confessou a si mesmo que, um momento
antes, tivera certa alegria ao pensar que não iria para onde estava indo.
Examinou com uma espécie de raiva a alegria que sentira e achou-a
absurda. Por que havia de sentir prazer em ir para trás? Afinal, ele fazia
essa viagem livremente, ninguém o forçava a isso.
E certamente só lhe aconteceria aquilo que ele bem quisesse.
Ao sair de Hesdin, ouviu uma voz que lhe gritava: “Pare! Pare!”
Fez o carro parar com um movimento rápido, no qual ainda havia
alguma coisa de febril e convulsivo, semelhante à esperança.
Era o filho daquela senhora.
— Senhor — disse ele —, fui eu que lhe arranjei a carriola.
— E daí?
— O senhor não me deu nada.
Ele, que dava a todos, com tanta facilidade, achou exorbitante e quase
odiosa aquela pretensão.
— Ah! Foi você, engraçadinho? — disse ele. — Não vou lhe dar nada!
Deu uma chicotada no cavalo e saiu a galope.
Tinha perdido muito tempo em Hesdin e queria recuperá-lo. O
cavalinho era vigoroso e puxava por dois; mas era mês de fevereiro, havia
chovido, os caminhos estavam ruins. Além disso, já não era o tílburi; a
carriola era dura e pesada, e ainda havia muitas subidas.
Levou quase quatro horas para ir de Hesdin a Saint-Pol. Cinco léguas
em quatro horas.
Em Saint-Pol, parou na primeira estalagem que apareceu, e mandou
levar o cavalo para a estrebaria. Como prometera a Scaufflaire, manteve-
se por perto enquanto o cavalo comia, sempre pensando em coisas tristes e
confusas.
A mulher do estalajadeiro entrou na estrebaria e disse-lhe:
— O senhor não quer almoçar?
— Puxa, é mesmo! — disse ele. — Estou mesmo com bastante apetite.
E seguiu a mulher, que tinha um aspecto de frescor e alegria. Ela o
conduziu a uma sala onde as mesas tinham um oleado como toalha.
— Seja rápida — disse ele —, preciso partir o quanto antes; estou bem
apressado.
Uma gorda criada flamenga pôs a mesa rapidamente. Ele olhava para
ela com um sentimento de bem-estar.
— Era isso que eu tinha — pensou —; falta de almoço.
Foi servido; pegou o pão, deu uma mordida, tornou a colocá-lo devagar
sobre a mesa e não tocou mais nele. Um carroceiro comia em outra mesa;
ele lhe disse:
— Por que o pão daqui é tão amargo?
O homem era alemão e não entendeu.
Voltou à estrebaria, para perto do cavalo.
Uma hora depois, tinha deixado Saint-Pol, dirigindo-se para Tinques,
que fica apenas a cinco léguas de Arras.
O que ele fazia durante esse trajeto? Em que pensava? Via passar,
como pela manhã, as árvores, os tetos de colmo, os campos cultivados, e
as mudanças da paisagem que se desloca em cada curva do caminho. Essa
é uma contemplação que algumas vezes basta à alma, e quase a dispensa
de pensar. Ver mil objetos pela primeira e pela última vez, o que pode
haver de mais melancólico e mais profundo? Viajar é nascer e morrer a
cada instante. Talvez, nas mais vagas regiões de seu espírito, ele fizesse
paralelos entre aqueles horizontes cambiantes e a existência humana.
Todas as coisas desta vida fogem continuamente diante de nós. As sombras
e os clarões entremeiam-se. Após o ofuscar, um eclipse; olhamos, nos
apressamos, estendemos as mãos para agarrar o que passa; cada
acontecimento é uma mudança de caminho; e, de repente, estamos velhos.
Sentimos como que um abalo, tudo é negro, distinguimos uma porta
obscura, o sombrio cavalo da vida que nos arrastava para. Vemos alguém
desconhecido, coberto com um véu, desatrelá-lo nas trevas.
O crepúsculo caía quando as crianças que saíam da escola viram esse
viajante entrar em Tinques. É verdade que ainda estávamos nos dias curtos
do ano. Ele não parou ali. Quando saía da aldeia, um trabalhador que
assentava pedras na estrada ergueu a cabeça e disse:
— Esse cavalo aí está bem cansado.
Efetivamente, o pobre animal já não podia andar senão a passos lentos.
— O senhor vai para Arras? — acrescentou o trabalhador.
— Vou.
— Se continuar nesse ritmo, não chegará lá muito cedo.
Ele parou o cavalo e perguntou ao homem:
— Quanto há ainda daqui a Arras?
— Umas boas sete léguas.
— Mas como? O roteiro marca cinco léguas e um quarto.
— Ah! — tornou o trabalhador. — Então o senhor não sabe que essa
estrada está sendo reparada? Vai encontrá-la bloqueada a um quarto de
hora daqui, e não há meio de ir mais adiante.
— Verdade?
— Entre à esquerda no caminho que vai para Carency, depois passe o
rio; quando chegar a Camblin, entre à direita, é a estrada de Mont–Saint-
Éloy que vai para Arras.
— Mas logo será noite, posso me perder.
— O senhor não é da região?
— Não.
— Ainda mais isso; só tem atalhos. Olhe, senhor — tornou o homem
—, quer que eu lhe dê um conselho? Seu cavalo está cansado, volte para
Tinques. Tem uma boa estalagem. Durma lá e amanhã o senhor segue para
Arras.
— Tenho que estar lá esta noite.
— Aí é outra coisa. Mas vá assim mesmo à estalagem e arranje um
cavalo de reforço; o moço do cavalo pode guiá-lo pelo atalho.
Ele seguiu o conselho do homem, voltou e, meia hora depois, tornava a
passar pelo mesmo lugar, mas a galope, com um bom cavalo de reforço.
Um ajudante de estrebaria, que se dizia condutor de posta, ia sentado em
uma barra da carriola. Ele, porém, sentia que perdera muito tempo. Já era
noite fechada.
Pegaram um atalho. A estrada tornou-se medonha, e a carriola caía de
uma valeta em outra. Ele disse ao rapaz:
— Sempre a galope, e a gorjeta será em dobro.
Em um daqueles solavancos, o tirante se quebrou.
— Senhor — disse o rapaz —, o tirante está quebrado, não dá mais
para segurar meu cavalo; essa estrada é muito ruim à noite; se quiser
voltar para Tinques e pernoitar lá, poderíamos estar amanhã cedo em
Arras.
Ele respondeu:
— Você tem um pedaço de corda e uma faca?
— Tenho sim, senhor.
Cortou um galho de árvore e fez um tirante com ele.
Foram mais vinte minutos perdidos; partiram a galope outra vez.
A planície estava tenebrosa. Uma névoa baixa, espessa e escura subia
pelas colinas, espalhando-se como fumaça. Havia uns clarões
esbranquiçados nas nuvens. Um forte vento que soprava do mar fazia, em
todos os cantos do horizonte, o barulho de alguém arrastando móveis.
Tudo o que se entrevia tinha atitudes de terror. Quanta coisa se agita com
os vastos sopros da noite!
O frio o cortava. Ele não comia desde a véspera. Lembrava-se
vagamente de sua outra corrida noturna pela grande planície dos arredores
de Digne. Já fazia oito anos, mas parecia-lhe que tinha sido ontem.
Soou uma hora em algum campanário longínquo, e ele perguntou ao
moço:
— Que horas são?
— Sete horas, senhor; às oito estaremos em Arras; só nos faltam três
léguas.
Nesse momento fez, pela primeira vez, a seguinte reflexão, achando
estranho que ela não lhe tivesse ocorrido mais cedo: que talvez fosse inútil
todo o trabalho que tinha, porque nem sequer sabia a hora do julgamento;
que deveria ao menos ter-se informado; que era extravagante ir assim em
frente sem saber se aquilo serviria para alguma coisa. Depois, fez alguns
cálculos em sua consciência: que as sessões do júri normalmente
começavam às nove horas da manhã; que aquele julgamento não deveria
se alongar muito; que, para um roubo de maçãs, seria rápido; que, em
seguida, haveria apenas uma questão de identidade; quatro ou cinco
depoimentos, pouco o que dizer por parte dos advogados; que decerto
chegaria quando tudo estivesse acabado!
O rapaz chicoteava os cavalos. Já haviam passado o rio e deixado
Mont-Saint-Éloy para trás.
A noite tornava-se cada vez mais profunda.

VI. A IRMÃ SIMPLICE POSTA À PROVA


Enquanto isso, no mesmo momento, Fantine entrara em estado de
alegria.
Havia passado uma noite péssima, com uma tosse horrível,
recrudescimento da febre, e havia sonhado. Pela manhã, durante a visita do
médico, ela delirava. Ele ficou alarmado e recomendou que o avisassem
assim que o senhor Madeleine voltasse.
Passou a manhã inteira tristonha, falou pouco, fez dobras nos lençóis
murmurando em voz baixa alguns cálculos que pareciam ser cálculos de
distâncias. Tinha os olhos encovados e fixos, meio apagados, mas, por
momentos, tornavam a iluminar-se e brilhavam como estrelas. Parece que,
à aproximação daquela hora sombria, a claridade do céu inunda aqueles
que a claridade da terra vai abandonar.
Cada vez que a irmã Simplice lhe perguntava como estava, ela
respondia invariavelmente:
— Bem. Eu queria ver o senhor Madeleine.
Alguns meses antes, na ocasião em que acabara de perder o resto do
pudor, da vergonha e da alegria que ainda possuía, Fantine era a sombra
dela mesma; agora, era seu espectro. O mal físico completara a obra do
mal moral. Aquela criatura de vinte e cinco anos tinha a fronte cheia de
rugas, as faces sem vigor, as narinas contraídas, os dentes abalados, a tez
do rosto cor de chumbo, o pescoço magro, as clavículas salientes, os
membros mirrados, a pele cor de terra, e os cabelos louros já entremeados
de cabelos grisalhos. Oh! Como a doença improvisa a velhice.
Ao meio-dia, o médico retornou, prescreveu alguma coisa, perguntou
se o prefeito havia aparecido na enfermaria, e balançou a cabeça.
O senhor Madeleine, normalmente, vinha às três horas visitar a
enferma. Como a pontualidade vem da bondade, ele era pontual.
Por volta das duas e meia, Fantine começou a agitar-se; em um espaço
de vinte minutos perguntou mais de dez vezes à religiosa: “Irmã, que
horas são?”
Soaram três horas. Na terceira badalada, Fantine sentou-se, ela que em
geral mal podia mexer-se na cama; juntou as mãos descarnadas e
amareladas em uma espécie de aperto convulsivo, e a religiosa ouviu sair-
lhe do peito um desses estranhos suspiros profundos que parecem aliviar
as opressões. Depois, Fantine virou-se e olhou para a porta. Ninguém
entrou; a porta não se abriu.
Ficou assim durante um quarto de hora, os olhos pregados na porta,
imóvel, como se prendesse a respiração. A irmã não ousava falar-lhe.
Quando soaram três horas e um quarto no relógio da igreja, Fantine
deixou-se cair sobre o travesseiro; não disse nada, e pôs-se outra vez a
fazer dobras nos lençóis. Passou meia hora, passou uma hora. Ninguém
veio. Cada vez que o relógio soava, Fantine ajeitava-se e olhava para o
lado da porta, depois tornava a deitar-se.
Viam-se claramente seus pensamentos, mas ela não pronunciava uma
palavra, não se queixava, não acusava ninguém. Apenas tossia de um
modo lúgubre. Seria possível dizer que algo de obscuro abatia-se sobre
ela. Estava lívida, com os lábios roxos, às vezes entreabertos num sorriso.
Soaram cinco horas. A irmã ouviu quando ela disse baixinho e
devagar:
— Mas, já que eu vou embora amanhã, ele faz mal de não vir hoje!
Mesmo a irmã Simplice estava admirada com a demora do senhor
Madeleine.
De sua cama, Fantine olhava para o céu com o ar de quem procura
lembrar-se de alguma coisa. De repente, pôs-se a cantar com uma voz
muito fraca. A religiosa escutava. Eis o que Fantine cantava:
Nous achèterons de bien belles choses
En nous promenant le long des faubourgs.
Les bleuets sont bleus, les roses sont roses,
Les bleuets sont bleus, j’aime mes amours.

Compraremos coisas muito belas


Passeando pelos bairros da cidade.
Os azulões são azuis, as rosas são cor-de-rosa,
Os azulões são azuis e eu amo meus amores.

La vierge Marie auprès de mon poêle


Est venue hier en manteau brodé,
Et m’a dit: — Voici caché sous mon voile,
Le petit qu’un jour tu m’as demandé.
Courez à la ville, ayez de la toile
Achetz du fil, achetez un dé.

A Virgem junto à minha lareira


Ontem chegou com um manto bordado,
E disse-me: — Escondida sob o meu véu,
Está a criança que um dia me pediste.
Corre até a cidade, compra tecido
Compra linha e um dedal.

Nous achèterons de bien belles choses


En nous promenant le long des faubourgs.

Compraremos coisas muito belas


Passeando pelos bairros da cidade.

Bonne sainte Vierge, auprès de mon poêle


J’ai mis le berceau de rubans orné.
Dieu me donnerait sa plus belle étoile,
J’aime mieux l’enfant que tu m’as donné
— Madame, que faire avec cette toile?
— Faites un trousseau pour mon nouveau-né.

Santa Virgem, junto à minha lareira


Coloquei um berço ornado com fitas.
Mesmo que Deus me desse sua mais bela estrela,
Eu preferiria a criança que me destes
— Senhora, o que fazer com esse tecido?
— Faça um enxoval para o recém-nascido.

Les bleuets sont bleus, les roses sont roses,


Les bleuets sont bleus, j’aime mes amours.
Os azulões são azuis, as rosas são cor-de-rosa,
Os azulões são azuis e eu amo meus amores.

— Lavez cette toile. — Où? — Dans la rivière.


— Faites-en, sans rien gâter ni salir,
Une belle jupe avec sa brassière
Que je veux broder et de fleurs emplir.
— L’enfant n’est plus là, madame, qu’en faire?
— Faites-en un drap pour m’ensevelir.

— Lave esse tecido. — Onde? — No riacho.


— Faça com ele, sem estragar nem sujar,
Uma bela saia e um colete
Que eu quero encher de flores e bordar.
— A criança se foi, senhora, que fazer com isso?
— Faça um lençol para me enterrar.

Nous achèterons de bien belles choses


En nous promenant le long des faubourgs.
Les bleuets sont bleus, les roses sont roses,
Les bleuets sont bleus, j’aime mes amours.

Compraremos coisas muito belas


Passeando pelos bairros da cidade.
Os azulões são azuis, as rosas são cor-de-rosa,
Os azulões são azuis e eu amo meus amores.

Era uma antiga cantiga de ninar, com a qual outrora embalava sua
Cosette, e que não lhe voltava à memória desde que estava privada da
filhinha, havia cinco anos. Cantava com uma voz tão triste e um ar tão
doce, que era de fazer chorar até mesmo uma religiosa. A irmã, afeita às
coisas austeras, sentiu uma lágrima escorrer.
O relógio deu seis horas, mas foi como se Fantine não ouvisse. Parecia
que não reparava em coisa alguma à sua volta.
A irmã Simplice mandou uma criada informar-se com a zeladora da
fábrica se o prefeito já havia voltado, e se iria logo à enfermaria. A moça
voltou depois de alguns minutos. Fantine continuava imóvel, parecendo
atenta às próprias ideias.
A criada contou baixinho à irmã Simplice que o prefeito partira
naquela manhã, antes das seis horas, num tílburi pequeno, puxado por um
cavalo branco, apesar do frio que fazia; que partira só, até mesmo sem
cocheiro, não se sabendo o caminho que pegara; que uns diziam tê-lo visto
na estrada para Arras, outros afirmavam tê-lo encontrado na estrada para
Paris. Que, ao partir, estava como sempre muito afável, e que apenas disse
à porteira que não o esperasse aquela noite.
Enquanto as duas mulheres cochichavam de costas para a cama de
Fantine, a irmã perguntando e a criada fazendo conjecturas, Fantine, com a
vivacidade febril de certas moléstias orgânicas, que junta os movimentos
livres da saúde à magreza assustadora da morte, pusera-se de joelhos sobre
a cama, com as mãos crispadas apoiadas no travesseiro e a cabeça entre as
cortinas, e escutava. De súbito, exclamou:
— Estão falando do senhor Madeleine! Por que falam tão baixo? O que
ele está fazendo? Por que ele não vem hoje?
Sua voz estava tão áspera e rouca que as duas mulheres pensaram ter
ouvido uma voz de homem, e viraram-se assustadas.
— Então não respondem? — gritou Fantine.
A criada balbuciou:
— A zeladora me disse que ele não poderá vir hoje.
— Filha — disse a irmã —, fique tranquila e volte a deitar.
Fantine, sem mudar de atitude, voltou a falar alto e em tom, ao mesmo
tempo, imperioso e dilacerante:
— Ele não pode vir? E por quê? Vocês sabem a razão, estavam
cochichando; eu quero saber também.
A criada apressou-se em dizer no ouvido da religiosa:
— Responda que é porque ele está ocupado com o Conselho
Municipal.
A irmã Simplice corou, era uma mentira o que a criada lhe sugeria.
Mas, por outro lado, parecia-lhe que dizer a verdade à doente seria, com
certeza, dar-lhe um golpe terrível, o que era grave no estado de Fantine. O
rubor durou pouco; a irmã olhou para ela de um jeito calmo e triste, e
disse:
— O senhor prefeito partiu.
Fantine ergueu-se e sentou nos calcanhares; seus olhos brilharam e
uma alegria incomum surgiu naquela fisionomia sofrida.
— Partiu? — ela exclamou. — Ele foi buscar Cosette!
Depois levantou as mãos para o céu e sua expressão tornou-se inefável;
seus lábios remexiam-se, estava rezando em voz baixa.
Quando terminou sua oração, disse:
— Irmã, quero deitar novamente, vou fazer tudo que quiserem; há
pouco, fui maldosa, mas peço perdão por ter falado tão alto, é mau
costume falar alto, sei muito bem, boa irmã; mas veja como estou
satisfeita. Deus é bom, e o senhor Madeleine também; imagine que foi
buscar Cosette em Montfermeil.
Voltou a deitar-se, ajudou a religiosa a arrumar o travesseiro e beijou
uma cruzinha de prata que tinha no pescoço, a qual lhe fora dada pela irmã
Simplice.
— Filha — disse-lhe a irmã —, procure descansar agora, e não fale
mais.
Fantine tomou entre suas mãos úmidas a mão da irmã, que se afligia
por sentir-lhe aquele suor.
— Ele partiu esta manhã para ir a Paris; na verdade, ele nem precisa
passar por Paris. Vindo para cá, Montfermeil fica um pouco à esquerda.
Lembra-se do que ele me disse ontem, quando eu lhe falei de Cosette:
logo, logo? Ele quer fazer-me uma surpresa, sabe? Ele me fez assinar uma
carta para que os Thénardier entregassem a pequena. Eles não vão ter nada
a dizer, não é? Vão devolver Cosette, pois já estão pagos. As autoridades
não consentiriam que retivessem uma criança depois de estarem pagos.
Irmã, não me faça sinal de que não devo falar; sinto-me extremamente
feliz; estou muito bem, já não tenho mal nenhum. Vou rever Cosette! Até
estou com fome. Há quase cinco anos não a vejo. A senhora não imagina
como a gente gosta dos filhos! E ela deve estar tão linda! Se a senhora
soubesse os dedinhos rosados que ela tem! Agora deve estar com as mãos
bem bonitas. Quando tinha um ano, suas mãos eram pequenas assim! Deve
estar bem crescida, agora. Já está com sete anos! É uma senhorita. Eu a
chamo de Cosette, mas seu nome é Euphrasie. Sabe, esta manhã, eu olhava
para o pó que está na lareira, e isso me deu a ideia de que em breve eu iria
rever Cosette. Meu Deus, como a gente faz mal em passar tantos anos sem
ver nossos filhos. A gente devia considerar bem que a vida não é eterna!
Oh! Que bom que o senhor Madeleine foi buscá-la! É verdade que está
muito frio? Ele ao menos levou a capa? Será que ele volta amanhã? Vai ser
uma festa. Amanhã cedo, irmã, lembre-me de pôr minha touca de rendas.
Montfermeil é uma bela terra. Já fiz esse caminho a pé; para mim foi bem
distante. Mas as diligências andam muito depressa! Amanhã estará aqui
com Cosette. Quanto tem daqui a Montfermeil?
A irmã, que não tinha nenhuma ideia das distâncias, respondeu:
— Oh! Acho que ele deve estar aqui amanhã!
— Amanhã! Amanhã! — disse Fantine. — Vou ver Cosette amanhã!
Veja, irmã de Deus, já não estou doente. Estou enlouquecida; até dançaria,
se quisessem.
Quem a tivesse visto um quarto de hora antes não teria entendido nada.
Fantine agora estava rosada, falava com voz animada e natural, seu
semblante era apenas sorriso; ria, às vezes, falando em voz baixa. Alegria
de mãe é quase alegria de criança.
— Está bem — atalhou a religiosa —, você está toda feliz, então me
obedeça, não fale mais.
Fantine colocou a cabeça no travesseiro e disse a meia voz:
— Isso, deite e comporte-se, que sua filha vem aí. A irmã Simplice
tem razão; todos os que estão aqui têm razão.
E depois, sem se mexer nem mover a cabeça, pôs-se a olhar para todos
os lados, com os olhos muito abertos e um ar alegre no rosto. Não disse
mais nada. A irmã fechou novamente as cortinas esperando que ela
adormecesse.
Entre sete e oito horas, o médico voltou. Não ouvindo nenhum ruído,
achou que Fantine dormia, entrou devagarinho e aproximou-se da cama na
ponta dos pés. Entreabriu as cortinas, e, ao clarão da lamparina, viu seus
grandes olhos serenamente fixos nele.
— Doutor, vão deixar que ela durma em uma caminha a meu lado, não
é? — disse ela ao médico.
Ele pensou que ela delirasse.
— Olhe — acrescentou ela —, tem um lugar bem aqui.
O médico chamou irmã Simplice à parte, e ela explicou-lhe o caso: que
o senhor Madeleine estaria ausente por um ou dois dias, e, na dúvida, não
quiseram contrariar a doente, que pensava ter ele partido para
Montfermeil, até porque era possível que ela tivesse adivinhado. O médico
concordou. Aproximou-se outra vez da cama de Fantine, que retomou:
— É que, pela manhã, quando ela acordar, já vou dizer bom-dia à
minha pobre gatinha, e à noite, como não durmo, quero ouvi-la dormir; a
suave respiração dela vai me fazer bem.
— Dê-me sua mão — disse o médico.
Ela estendeu o braço e exclamou risonha:
— Ah! É mesmo, o senhor não sabe! Estou curada. Cosette chega
amanhã.
O médico ficou surpreso. Ela estava melhor; a opressão diminuíra, o
pulso havia retomado vitalidade. Uma espécie de vida inesperada
reanimava aquela pobre criatura extenuada.
— Doutor, a irmã lhe disse que o prefeito foi buscar meu anjinho?
O médico recomendou silêncio e que se evitasse qualquer emoção
mais forte. Receitou depois uma infusão de quinina pura, e uma
beberagem calmante, caso a febre voltasse à noite. Ao sair, disse à irmã:
— Ela está melhor. Se a sorte permitisse que o prefeito realmente
voltasse amanhã com a criança, quem sabe? Há crises tão espantosas; têm-
se visto grandes alegrias acabarem repentinamente com algumas
moléstias. Eu bem sei que esta é uma doença orgânica, e já muito
avançada, mas há tanto mistério nisso tudo! Talvez a salvássemos.

VII. O VIAJANTE QUE CHEGOU TOMA SUAS


PRECAUÇÕES PARA PARTIR
Eram quase oito horas da noite quando a carriola que deixamos no
caminho entrou pelo portão da hospedaria do Correio em Arras. O homem
que temos seguido até este momento desceu, respondendo com ar distraído
às gentilezas dos criados da hospedaria, mandou embora o cavalo que
tomara de reforço, e levou, ele mesmo, o pequeno cavalo branco à
estrebaria; depois, abriu a porta de uma sala de bilhar que ficava na parte
térrea, e acomodou-se em uma mesa. Gastara catorze horas no trajeto que
contava fazer em seis; justificava-se dizendo que não fora por culpa dele,
mas, no fundo, não estava aborrecido com o contratempo.
A dona da hospedaria entrou e perguntou-lhe:
— Senhor, vai jantar? Vai se deitar?
Ele fez um sinal negativo com a cabeça.
— O rapaz da estrebaria disse que seu cavalo está bem cansado!
Então, ele rompeu o silêncio.
— Será que o cavalo não poderá prosseguir amanhã cedo?
— Olhe, senhor, ele precisa de dois dias de descanso pelo menos.
— Não fica aqui o escritório do correio? — perguntou ele.
— Fica sim, senhor.
Ela o conduziu ao escritório; ele mostrou seu passaporte, perguntando
se seria possível voltar na mala-posta dessa mesma noite a Montreuil-sur-
Mer; o lugar ao lado do condutor ainda estava disponível; ele o reservou e
pagou.
— Senhor — disse-lhe o atendente —, não deixe de estar aqui à uma
hora da manhã, em ponto.
Feito isso, saiu da hospedaria e foi passear pela cidade. Não conhecia
Arras, as ruas estavam escuras e ele caminhava ao acaso. No entanto,
parecia obstinar-se em não perguntar o caminho aos passantes. Atravessou
o riacho Crinchon e viu-se em um labirinto de vielas estreitas, onde se
perdeu. Um sujeito passava com uma lanterna na mão; após alguma
hesitação, resolveu-se a falar com ele, não sem primeiro olhar para os
lados, como se receasse que alguém ouvisse a pergunta que ia fazer.
— Senhor, pode me dizer onde fica o Palácio de Justiça?
— O senhor não é da cidade, certo? — respondeu o homem, que era
um senhor de idade já avançada. — Por favor, venha comigo. Vou
justamente para os lados da prefeitura, porque o tribunal está em reforma,
e as audiências ocorrem provisoriamente na prefeitura.
— E ali também ocorrem os julgamentos?
— Sim, senhor; mas veja, o que hoje é a prefeitura, era o paço
episcopal antes da Revolução. Monsenhor Conzié, que era o bispo da
diocese em 1782, mandou construir ali uma grande sala onde hoje ocorrem
os julgamentos.
Durante o caminho, o homem disse:
— Se o senhor quer assistir algum julgamento, é um pouco tarde,
porque normalmente as sessões acabam às seis horas.
No entanto, ao chegarem à grande praça, o homem apontou-lhe quatro
janelas iluminadas na fachada de um vasto edifício escuro.
— Nossa, o senhor teve sorte, ainda chegou a tempo. Vê aquelas quatro
janelas? É o tribunal. Está tudo aceso, então ainda não acabou a sessão. O
caso deve ter-se prolongado e foi feita uma audiência noturna. O senhor se
interessa por esse caso? É um processo criminal? O senhor é testemunha?
— Não venho para nenhum processo — respondeu ele —;
simplesmente preciso falar com um advogado.
— Ah! É outra coisa — disse o homem. — Pronto, senhor, ali está a
porta; ali, onde está o sentinela. Só precisa subir a escadaria.
Seguiu as indicações do homem, e após alguns minutos achava-se em
uma sala onde havia muita gente, e onde, aqui e ali, viam-se grupos, dos
quais faziam parte alguns advogados cochichando entre si.
É uma coisa que sempre aperta o coração ver esses ajuntamentos de
homens vestidos de preto, murmurando em voz baixa, no limiar dos
tribunais de justiça. É raro que compaixão e caridade saiam de todas
aquelas palavras. O que mais frequentemente sai dali são condenações
feitas de antemão. Ao observador que passa, esses grupos parecem
sombrias colmeias, onde espíritos que zumbem constroem em comum
toda espécie de edifícios tenebrosos.
Aquela sala, espaçosa e iluminada por um só candelabro, era uma
antiga sala do paço episcopal, servia de antecâmara do tribunal. Uma porta
de dois batentes, fechada naquele momento, a separava da grande câmara
que sediava o tribunal criminal.
Era tal a escuridão que ele não receou dirigir-se ao primeiro advogado
que encontrou.
— Senhor — disse ele —, em que ponto estão?
— Já acabaram.
— Acabaram!
Essa palavra foi dita de tal forma que o advogado virou-se.
— Perdão, o senhor por acaso é algum parente?
— Não, não conheço ninguém aqui. E foi condenado?
— Sem dúvida. Nem podia ser diferente.
— A trabalhos forçados?
— A prisão perpétua.
Ele falou com uma voz tão fraca que mal se ouvia:
— Sua identidade então foi constatada?
— Que identidade? — respondeu o advogado. — Não havia identidade
nenhuma a constatar. O caso era simples. Esta mulher matou seu filho, o
infanticídio foi provado, o júri descartou a premeditação e ela foi
condenada por toda a vida.
— Ah! Então é uma mulher? — disse ele.
— Isso. De sobrenome Limosin. O senhor então me falava de quê?
— De nada; mas já que acabou, por que a sala ainda está iluminada?
— É por causa do outro julgamento que começou há mais ou menos
duas horas.
— Que outro julgamento?
— Oh! Esse também é claro. É um gatuno, um reincidente, um forçado
que cometeu um roubo; não sei direito o nome dele. Esse tem mesmo cara
de bandido. Só por ter aquele aspecto eu já o mandaria para as galés.
— O senhor acha que é possível entrar na sala?
— Não acredito que seja. Há muita gente. Mas a audiência está
suspensa, e, como algumas pessoas saíram, o senhor pode tentar quando a
audiência for retomada.
— E por onde se entra?
— Por esta porta grande.
O advogado saiu. Em poucos instantes, ele havia experimentado, quase
ao mesmo tempo e um tanto misturadas, todas as emoções possíveis. As
palavras daquele homem indiferente haviam, uma por uma, atravessado
seu coração, como agulhas de vidro e lâminas de fogo. Quando viu que o
julgamento ainda não terminara, respirou, mas não saberia dizer se o que
sentia era satisfação ou dor.
Aproximou-se de alguns grupos e escutou o que diziam. Havendo
grande número de causas pendentes, o presidente marcara para aquele dia
dois processos simples e rápidos. Haviam começado pela infanticida, e
agora estavam no caso do forçado, do reincidente, do “cavalo que retorna”.
Aquele homem havia roubado umas maçãs, mas parece que isso não estava
bem provado; o que estava provado é que já estivera nas galés de Toulon, o
que tornava seu caso complicado. O interrogatório do réu terminara, bem
como o depoimento das testemunhas, mas havia ainda a defesa do
advogado e o requisitório do Ministério Público, e isso não deveria acabar
antes da meia-noite. O homem provavelmente seria condenado; o
promotor era muito bom — e não perdia seus acusados —; era um rapaz
espirituoso que fazia versos.
Um oficial de justiça permanecia de pé, junto à porta que dava para a
sala do tribunal. Ele perguntou a esse oficial:
— A porta será aberta logo?
— A porta não será reaberta — disse o oficial de justiça.
— Como? Ela não será reaberta quando for recomeçar a audiência? A
audiência não foi suspensa?
— A audiência acaba de ser retomada — respondeu o oficial —, mas a
porta não será mais aberta.
— Por quê?
— Porque a sala está lotada.
— Será? Não há sequer um lugar?
— Nem um só. A porta está fechada e ninguém mais pode entrar.
E, após uma pausa, o oficial acrescentou:
— Ainda há dois ou três lugares atrás da cadeira do presidente, mas ele
só permite que funcionários públicos fiquem ali.
Dizendo isso, o oficial virou as costas.
Ele retirou-se de cabeça baixa, atravessou a antecâmara e desceu as
escadas lentamente, como se hesitasse a cada degrau. Era provável que se
aconselhasse consigo mesmo. O combate violento que se travava dentro
dele desde a véspera ainda não havia terminado; a cada instante, uma nova
peripécia tinha de ser enfrentada. Chegando ao patamar da escada,
encostou-se ao corrimão e cruzou os braços. De repente, desabotoou o
casaco, pegou uma caderneta, tirou de dentro dela um lápis, rasgou uma
folha onde escreveu rapidamente as seguintes palavras: Senhor Madeleine,
prefeito de Montreuil-sur-Mer. Tornou a subir a escada, a passos largos,
abriu passagem por entre a multidão, foi direto ao oficial e disse-lhe em
tom autoritário:
— Entregue isto ao senhor presidente.
O oficial pegou o papel, leu rapidamente, e obedeceu.

VIII. ENTRADA DE FAVOR


Sem que tivesse consciência, o prefeito de Montreuil-sur-Mer gozava
de certa celebridade. Havia sete anos sua reputação de virtude corria todo
o baixo Boulonnais, e acabara por transpor os limites de uma pequena
região para espalhar-se nos dois ou três departamentos vizinhos. Além do
considerável serviço que prestara à capital do distrito, ali restaurando a
indústria dos vidrilhos negros, não havia uma única comuna, das cento e
quarenta e uma do distrito de Montreuil-sur-Mer, que não lhe devesse
algum benefício. Quando necessário, soube auxiliar e fecundar as
indústrias dos outros distritos. Foi assim que ele sustentou, na época, com
seu crédito e seu capital, a fábrica de tecido de Bolonha, a fiação de linho
de Frévent e a manufatura hidráulica de tecidos de Boubers–sur-Canche.
Em todos os lugares, pronunciava-se com veneração o nome do senhor
Madeleine. Arras e Douai invejavam o prefeito da feliz cidadezinha de
Montreuil-sur-Mer.
O conselheiro do Real Tribunal de Douai, que presidia aquela sessão
do júri em Arras, conhecia, como todo o mundo, aquele nome tão profunda
e universalmente respeitado. Quando o oficial, abrindo com discrição a
porta que fazia comunicação entre a sala do Conselho e a da audiência,
inclinou-se por trás da cadeira do presidente e entregou-lhe o papel em que
estavam escritas as palavras que acabamos de ler, acrescentando: Este
senhor deseja assistir à audiência, o presidente fez um notório sinal de
deferência, pegou uma pena, escreveu algumas palavras no mesmo papel,
e entregou-o ao oficial, dizendo-lhe: “Faça-o entrar”.
O homem infeliz, cuja história contamos, ficara junto à porta da sala,
no mesmo lugar e postura em que o deixara o oficial. Ouviu, em meio a
suas reflexões, uma voz que lhe dizia: “Senhor, tenha a bondade de seguir-
me”. Era o mesmo oficial que, instantes antes, virara-lhe as costas e que
agora fazia-lhe uma profunda reverência, ao mesmo tempo em que lhe
devolvia o papel. Desdobrou-o e, uma vez que estivesse perto do lampião,
pôde ler:
“O presidente do Tribunal Criminal apresenta seus respeitos ao senhor
Madeleine”.
Ele amarrotou o papel entre as mãos, como se aquelas poucas palavras
tivessem para ele um amargo e estranho gosto. Seguiu o oficial.
Alguns minutos depois, estava só, em uma espécie de gabinete forrado
de madeira, de aspecto severo, iluminado por duas velas colocadas sobre
uma mesa coberta de tecido verde. Ainda tinha nos ouvidos as últimas
palavras do oficial que acabava de deixá-lo: “Senhor, aqui é sala do
Conselho; precisa apenas virar o puxador desta porta e estará na audiência,
atrás da cadeira do senhor presidente”.
Essas palavras mesclavam-se, em seu pensamento, a uma vaga
lembrança de corredores estreitos e escadas escuras por onde acabara de
passar.
O oficial deixara-o sozinho. Era chegado o momento supremo; tentava
concentrar-se, mas não conseguia. Sobretudo nos momentos em que mais
é preciso uni-los às realidades pungentes, os fios do pensamento rompem-
se no cérebro. Ele estava exatamente no lugar em que os juízes deliberam
e condenam. Olhava com estúpida tranquilidade aquela sala pacífica e
temível onde tantas existências haviam sido destruídas, onde, em breve,
seu nome ressoaria, e onde seu destino o colocara naquele momento.
Olhava as paredes, depois olhava para si mesmo, admirado por ser aquela
sala, e por estar nela.
Não comia havia mais de vinte e quatro horas, estava quebrado com os
solavancos da carriola, mas nem se dava conta; parecia não sentir nada.
Aproximou-se de um quadro negro pendurado na parede, onde havia
uma antiga carta de Jean Nicolas Pache, ministro e prefeito de Paris,
datada de nove de junho do ano II, decerto por erro, na qual Pache
mandava à Comuna a lista dos ministros e dos deputados feitos
prisioneiros em suas próprias casas. Se alguém pudesse vê-lo e observá-lo
naquele momento, sem dúvida pensaria que aquela carta parecera-lhe bem
curiosa, pois não desgrudava os olhos dela, chegando a lê-la duas ou três
vezes; mas lia-a sem prestar atenção e sem perceber. Pensava mesmo em
Fantine e Cosette.
Em meio a suas cogitações, voltou-se e deu com os olhos no puxador
de cobre da porta que o separava da sala de audiências. Quase havia
esquecido aquela porta. Seu olhar, calmo a princípio, fixou-se naquele
puxador de cobre, e depois tornou-se sobressaltado e parado,
impregnando-se pouco a pouco de medo. Gotas de suor escorriam-lhe da
cabeça para as têmporas.
Em dado momento fez, com uma espécie de autoridade entremeada de
rebelião, um gesto indescritível que quer dizer e tão bem diz: Ora essa!
Quem é que me obriga a isto? Depois, voltando-se rapidamente, viu diante
de si a porta por onde entrara, foi até lá, abriu-a e saiu. Já não estava
naquele lugar, estava fora, em um corredor comprido, estreito, cortado por
degraus e guichês, cheio de meandros, iluminado aqui e ali por lamparinas
semelhantes às que iluminam os quartos dos doentes; era o corredor por
onde viera. Respirou, e pôs-se a escutar: nenhum rumor à sua frente, nem
às suas costas; começou a fugir como se o perseguissem.
Depois de ter dobrado vários ângulos do corredor, aplicou outra vez o
ouvido; o mesmo silêncio e a mesma penumbra em torno dele. Estava
ofegante e vacilante, então encostou-se à parede. A pedra estava fria, o
suor gelado em seu rosto; endireitou-se ainda trêmulo.
Então, sozinho, de pé naquela obscuridade, trêmulo de frio, e de outra
coisa, talvez, voltou a pensar.
Ele pensara a noite toda, pensara o dia todo e não ouvia em si nada
além de uma voz que dizia: ai de ti!
Assim decorreu um quarto de hora. Enfim, inclinou a cabeça, suspirou
angustiado, deixou pender os braços e deu meia-volta. Caminhava com
lentidão, e como que sem forças. Parecia que alguém o havia apanhado em
sua fuga e o trazia de volta.
Tornou a entrar na sala do conselho, e a primeira coisa que viu foi o
fecho da porta. Aquele fecho de cobre arredondado tinha para ele o brilho
de uma estrela funesta. Olhava para ele como uma ovelha olharia no olho
de um tigre. Seu olhar não conseguia desviar-se.
De tempos em tempos, dava um passo e chegava-se à porta.
Se tivesse escutado, ouviria, como uma espécie de murmúrio confuso,
o ruído que se fazia na sala vizinha; mas ele não escutava, ele não ouvia.
De repente, sem que ele mesmo soubesse como, estava junto à porta.
Segurou convulsivamente o fecho e a porta se abriu.
Estava na sala da audiência.

IX. UM LUGAR ONDE CONVICÇÕES VÃO SENDO


FORMADAS
Deu um passo, fechando a porta maquinalmente, e ficou de pé,
contemplando o que via.
Era um vasto recinto mal iluminado, ora silencioso, ora cheio de
rumores, onde se desenrolava, com sua mesquinha e lúgubre gravidade, no
meio da multidão, todo o aparato de um processo criminal.
Em uma das extremidades da sala, aquela em que ele se encontrava,
viam-se alguns juízes em becas desgastadas, fechando as pálpebras ou
roendo as unhas com ar distraído; na outra extremidade, uma multidão de
esfarrapados; advogados com todo tipo de atitude; soldados de semblante
honesto e rude; velhos revestimentos de madeira manchados, teto sujo,
mesas cobertas de sarja mais amarelada que verde; portas encardidas pelo
manuseio; nos pregos espetados no revestimento, candeeiros de botequim
produzindo mais fumaça que claridade; sobre as mesas, velas em
candelabros de cobre; a escuridão, a fealdade, a tristeza; e de tudo aquilo
se desprendia uma impressão austera e augusta, pois sentia-se ali esta
grande coisa humana chamada lei, e esta grande coisa divina chamada
justiça.
Ninguém naquela multidão reparou nele. Todos os olhares convergiam
para um único ponto, um banco de madeira encostado a uma porta
pequena, ao longo da parede, à esquerda do presidente. Naquele banco,
iluminado por várias velas, um homem estava sentado entre dois soldados.
Aquele era o homem.
Ele nem o procurou, logo o viu. Seus olhos dirigiram-se naturalmente
para lá, como se, de antemão, soubessem onde estaria.
Imaginou ver a si mesmo, envelhecido, não semelhante de fisionomia,
mas muito parecido em atitude e aspecto, com aqueles cabelos
emaranhados, com aquelas pupilas inquietas e ariscas, com uma blusa tal
qual usava no dia em que entrou em Digne, cheio de ódio, e ocultando na
alma um medonho tesouro de pensamentos terríveis que levou dezenove
anos para acumular nas galés.
Pensou, estremecendo: “Meu Deus! Será que voltarei a ser assim?”
Aquele homem aparentava pelo menos sessenta anos, e tinha alguma
coisa de rude, de estúpido e de assustadiço.
Ao ruído da porta, algumas pessoas ajeitaram-se para que tivesse
lugar; o presidente voltou a cabeça e, compreendendo que o personagem
que acabara de entrar era o prefeito de Montreuil-sur-Mer, saudou-o. O
advogado-geral, que já tinha visto o senhor Madeleine em Montreuil-sur-
Mer, onde, mais de uma vez, as funções do cargo o haviam conduzido, o
reconheceu e igualmente o saudou. Ele mal percebeu; dominava-o uma
espécie de alucinação; apenas olhava.
Juízes, um escrivão, soldados, uma multidão de cabeças cruelmente
curiosas, ele já tinha visto tudo aquilo uma vez, havia vinte e sete anos.
Reencontrava agora essas coisas funestas, elas estavam ali, se agitavam,
existiam. Não era mais um esforço de sua memória ou uma miragem de
suas fantasias, eram verdadeiros soldados, verdadeiros juízes, uma
verdadeira multidão, verdadeiros homens em carne e osso. Era verdade,
via reaparecerem e reviverem em torno dele, com tudo o que a realidade
tem de formidável, os aspectos monstruosos de seu passado.
Tudo aquilo estava escancarado diante dele.
Teve horror àquilo, fechou os olhos e exclamou do fundo de sua alma:
“Nunca!”
E por um trágico jogo do destino, que fazia vacilarem todas as suas
ideias, deixando-o quase louco, era um outro ele que estava ali! Aquele
homem que julgavam era chamado por todos de Jean Valjean!
Tinha sob seus olhos, visão inédita, uma espécie de representação do
momento mais horrível de sua vida, desempenhada por seu fantasma.
Tudo estava ali, o mesmo aparato, a mesma hora da noite, quase os
mesmos rostos de juízes, de soldados e de espectadores. A única diferença
era a existência, acima da cabeça do presidente, de um crucifixo, que
faltava nos tribunais do tempo de sua condenação. Quando foi julgado,
Deus estava ausente.
Deixou-se cair sobre uma cadeira que se achava atrás dele,
atemorizado pela ideia de que pudessem vê-lo. Depois de sentado,
aproveitou-se de uma pilha de papéis que estava sobre a mesa dos juízes
para esconder seu rosto aos olhares de toda a sala. Agora podia ver sem ser
visto. Pouco a pouco se refez. Voltou-lhe plenamente o sentimento da
realidade; chegou àquela fase de calma em que é possível escutar.
O senhor Bamatabois estava entre os jurados.
Procurou Javert, mas não o viu. O banco das testemunhas ficava
escondido pela mesa do escrivão e, como já dissemos, havia pouca luz na
sala.
No momento em que ele entrara, o advogado do acusado acabava seu
discurso de defesa. A atenção de todos havia chegado ao mais alto ponto
de excitação; o julgamento já durava três horas. Havia três horas aquela
multidão via, pouco a pouco, vergar, ao peso de uma incrível semelhança,
um homem, um desconhecido, um tipo de criatura miserável,
profundamente estúpida ou profundamente hábil. Como sabem, esse
homem era um vagabundo que fora apanhado em um campo levando um
galho carregado de maçãs maduras, arrancado de uma macieira de um
pomar vizinho, chamado de chácara Pierron. Quem era aquele homem?
Fora feita uma investigação, algumas testemunhas acabavam de ser
ouvidas e foram unânimes; de todo esse debate proviera alguma luz. A
acusação dizia: “Não se trata de um simples ladrão de frutas, de um
gatuno; temos em nossas mãos um bandido, um relapso evadido das galés,
um antigo forçado, um malfeitor dos mais perigosos, chamado Jean
Valjean, a quem a justiça procura há muito tempo, e que há oito anos, ao
fugir da prisão de Toulon, roubou à mão armada, no meio de uma estrada,
um rapaz chamado Pequeno-Gervais, crime previsto pelo artigo 383 do
Código Penal, sobre o qual falaremos mais adiante, quando estiver
judicialmente provada a identidade. E ele acaba de praticar outro roubo, é
um caso de reincidência. Devem condená-lo pelo novo crime; mais tarde
será julgado pelo antigo”.
À vista dessas acusações, à vista da unanimidade das testemunhas, o
réu parecia principalmente espantado. Fazia gestos e sinais de negação, ou
então olhava para o teto. Falava com dificuldade, respondia com
embaraço, mas, da cabeça aos pés, toda a sua pessoa negava. Era como um
idiota em presença de todas aquelas inteligências colocadas em ordem de
batalha em volta dele, ou como um estrangeiro no meio daquela sociedade
que o agarrava. No entanto, seu futuro se delineava o mais ameaçador; a
cada minuto, crescia a semelhança, e toda aquela multidão olhava, com
mais ansiedade que ele próprio, aquela sentença cheia de calamidades que
lhe pendia mais e mais sobre a cabeça.
Uma eventualidade deixava até mesmo entrever, mais do que a prisão,
a possibilidade da pena de morte, se fosse provada a identidade, e se o
caso do Pequeno-Gervais terminasse, mais tarde, em condenação. Quem
era aquele homem? De que natureza era sua apatia? Aquilo era
imbecilidade ou astúcia? Ele compreendia demais ou não compreendia
absolutamente nada? Essas perguntas dividiam a multidão e pareciam
também dividir o júri. Havia naquele processo algo de aterrador e
intrincado; o drama não era apenas sombrio, era obscuro.
O defensor advogara demoradamente em favor do réu, nessa
linguagem provinciana que por muito tempo constituiu a eloquência dos
tribunais, que outrora fora usada por todos os advogados, quer em Paris,
quer em Romorantin ou em Montbrison, e que hoje, tendo-se tornado
clássica, quase já não é falada senão pelos oradores oficiais do Ministério
Público, aos quais convém por sua grave sonoridade e majestosa
aparência; linguagem em que um marido se chama um esposo, uma mulher
uma esposa, Paris, o centro das artes e da civilização, o rei, monarca, o
bispo, santo pontífice, o advogado-geral, eloquente intérprete da punição
dos crimes, os discursos, as palavras que acabamos de ouvir, o século de
Luís XIV, o grande século, um teatro, o templo de Melpomène, a família
reinante, o augusto sangue de nossos reis, um concerto, uma solenidade
musical, o general comandante da divisão, o ilustre guerreiro que, etc., os
alunos do seminário, esses tenros levitas, os erros imputados aos jornais, a
impostura que destila seu veneno nas colunas destes órgãos, etc., etc. O
advogado, então, começara explicando o roubo das maçãs — coisa
dificultosa para o belo estilo; mas até Bénigne Bossuet2 foi obrigado a
fazer alusão a uma galinha no meio de uma oração fúnebre, saindo-se com
pompa do aperto. O advogado observou que o furto das maçãs não estava
materialmente provado. Ninguém vira seu cliente, a quem ele, na
qualidade de defensor, insistia em chamar de Champmathieu, saltar o
muro ou cortar o galho. Fora preso tendo nas mãos aquele galho (que o
advogado preferia chamar de ramo), mas dizia tê-lo achado no chão e
recolhido. Onde estava a prova do contrário? Sem dúvida aquele galho
fora quebrado e furtado após escalarem o muro; depois o gatuno teve
medo e atirou-o fora; não há dúvida que houve um ladrão. Mas quem
podia provar que esse ladrão era Champmathieu? Só uma coisa. Sua
qualidade de antigo forçado. O advogado não negava essa qualidade
infelizmente mais que constatada; o réu residira em Faverolles, onde
exercera a profissão de podador; o nome Champmathieu podia muito bem
ter como origem Jean Mathieu; tudo isso era verdade; finalmente, havia
quatro testemunhas que reconheciam, positivamente e sem hesitar, esse
Champmathieu como o forçado Jean Valjean; a esses indícios, a esses
testemunhos, o advogado só podia opor a negação de seu cliente, negação
interessada; mas, supondo que ele fosse o forçado Jean Valjean, isso
provava que fosse o ladrão das maçãs? Era, quando muito, uma suposição,
mas nunca uma prova. Verdade era que o réu, e seu denfensor, “em sua boa
fé”, devia concordar, adotara um “sistema de defesa ruim”, obstinando-se
em negar tudo, o furto e sua qualidade de forçado. Uma confissão sobre
este último ponto certamente teria sido de mais valia, ter-lhe-ia concedido
a indulgência dos juízes; o advogado o aconselhara a isso, mas o réu
obstinadamente recusou-se a fazê-lo, acreditando na possibilidade de
salvar tudo não confessando nada. Era um erro. Porém, não deveria ser
considerada a miudeza daquela inteligência? Aquele homem era
visivelmente estúpido. Sua prolongada desventura nas galés, sua longa
miséria fora da prisão fizeram-no embrutecido, etc., etc.; ele não sabia se
defender, mas isso era razão para o condenarem? Quanto ao caso de
Gervais, não estava em causa, portanto o advogado não tinha obrigação de
discuti-lo. Sua conclusão foi uma súplica aos jurados e aos juízes que, se
lhes parecesse evidente a identidade de Jean Valjean, lhe aplicassem as
penas de polícia cabíveis aos condenados por deserção das galés, e não o
temível castigo que a lei impõe aos forçados reincidentes.
O procurador replicou ao advogado de defesa, de forma violenta e
floreada, como fazem habitualmente os procuradores.
Felicitou-o por sua “lealdade”, e aproveitou habilmente dessa lealdade
atingindo o réu por meio de todas as concessões que o defensor fizera.
Este parecia concordar em que o réu era Jean Valjean; isso serviu para que
se afirmasse que aquele homem era então Jean Valjean. Concedia-se isso à
acusação, e não havia mais como contestar. Nesse ponto, por meio de uma
hábil antonomásia, o procurador, remontando às fontes e causas da
criminalidade, esbravejou contra a imoralidade da escola romântica, então
em sua aurora sob o nome de escola satânica, nome que lhe fora dado
pelos críticos do La Quotidienne e do Oriflamme; atribuiu, não sem
verossimilhança, à influência dessa perversa literatura o delito de
Champmathieu, ou, melhor dizendo, de Jean Valjean. Terminadas tais
considerações, passou ao próprio Jean Valjean. Quem era esse Jean
Valjean? Descrição de Jean Valjean: um monstro vomitado, etc. O modelo
desses tipos de descrição vem da narrativa de Teramenes, a qual não é útil
para a tragédia, mas presta, todos os dias, grandes serviços à eloquência
judiciária. O auditório e os jurados “estremeceram”. Acabada a descrição,
o procurador retomou, com arroubo oratório capaz de elevar ao mais alto
grau, na manhã do dia seguinte, o entusiasmo do Jornal da Prefeitura: “É
um homem assim, etc., etc., vagabundo, mendigo, sem meios de
subsistência, etc., etc., habituado por sua vida passada às ações criminosas,
que não se corrigiu em sua estadia nas galés, como o prova o crime
cometido contra o pequeno Gervais, etc., etc.; é um homem assim que,
encontrado no meio de uma estrada em flagrante delito de roubo, a poucos
passos de um muro transposto, tendo ainda na mão o objeto roubado, nega
o flagrante delito, o roubo, o escalamento, nega tudo, até o próprio nome,
até a própria identidade! Além de cem outras provas, às quais não
voltaremos agora, quatro testemunhas o reconhecem, Javert, o íntegro
inspetor de polícia Javert, e três de seus antigos companheiros de
ignomínia, os forçados Brevet, Chenildieu e Cochepaille. E que opõe ele a
essa fulminante unanimidade? Nega. Que endurecimento! Os senhores
farão justiça, senhores jurados, etc., etc.”
Enquanto o procurador falava, o réu escutava de boca aberta, com uma
espécie de espanto impregnado de admiração. Estava evidentemente
surpreso de ver um homem falar daquela maneira. Às vezes, nos
momentos mais “enérgicos” da acusação, naqueles instantes em que a
eloquência, não podendo conter-se, extravasava um fluxo de epítetos
aviltantes, envolvendo o réu como uma tempestade, ele abanava a cabeça
com lentidão da direita para a esquerda, e da esquerda para a direita, como
uma espécie de protesto mudo e triste com que se contentava desde o
princípio dos debates. Os espectadores colocados mais perto dele ouviram-
no, por duas ou três vezes, dizer a meia voz:
— Isso é que dá, não ter pedido ao senhor Baloup!
O procurador fez notar ao júri aquela atitude estúpida, evidentemente
calculada, que denotava, não a imbecilidade, mas a finura, a astúcia, o
hábito de enganar a justiça, e mostrava, com toda a evidência, “a profunda
perversidade” daquele homem. Terminou fazendo suas reservas a respeito
do caso Gervais, e reclamando uma severa condenação, que, como estarão
lembrados, consistia em trabalhos forçados, por toda a vida.
O advogado de defesa levantou-se, começou elogiando o “digno
advogado-geral” por seu “admirável discurso”, e depois replicou como
pôde, mas enfraquecia; o terreno evidentemente ia desabando sob seus pés.

X. O SISTEMA DE NEGAÇÕES
Chegava o momento de fechar a sessão. O presidente mandou o réu
levantar-se e lhe fez a pergunta usual:
— Tem alguma coisa a acrescentar em sua defesa?
O homem, de pé, girando nas mãos um boné horrível, pareceu não
ouvir. O presidente repetiu a pergunta. Desta vez o homem ouviu, e
pareceu compreender. Fez o movimento de alguém que está acordando,
olhou em torno de si, olhou para o público, para os soldados, para seu
advogado, para os jurados e juízes, apoiou o enorme punho na beirada da
grade de madeira que ficava diante do banco em que estava, tornou a olhar
e, de repente, começou a falar, fixando seu olhar no promotor público. Foi
como uma erupção. Parecia, pelo modo como saíam-lhe da boca,
incoerentes, impetuosas, quebradas, misturadas, que as palavras se
apressavam para saírem todas ao mesmo tempo. Ele disse:
— O que tenho a dizer é isto: que eu fazia carros em Paris, que
trabalhava com o senhor Baloup. É uma situação difícil. Nessa coisa de
fazer carros, a gente sempre trabalha ao ar livre, em pátios, ou em algum
lugar coberto, quando se tem bons patrões, mas nunca em oficinas
fechadas, porque precisa de espaço, sabe. No inverno, a gente sente tanto
frio que, para se esquentar, esfrega as mãos e os braços, mas os patrões
não gostam, porque dizem que se perde tempo. Mexer com ferro, quando
tudo está coberto de neve, é duro; isso acaba depressa com um homem.
Envelhece a gente antes do tempo; aos quarenta anos o homem está gasto.
Eu tinha cinquenta e três, e andava bem mal. E, ainda por cima, os
operários são uma corja. Se um homem já não é novo como eles, o
chamam de velho tonto, de besta velha. Eu não ganhava mais que trinta
soldos por dia, me pagavam o mais barato possível, os patrões se
aproveitavam da minha idade. E também eu tinha uma filha lavadeira de
beira de rio. Ela ganhava um pouquinho com o trabalho dela, pra nós dois
estava dando. Era difícil para ela também. O dia inteiro, metida em uma
tina até a cintura, com chuva, com neve, com aquele vento de cortar; se cai
geada, dá na mesma, tem que lavar. Muitas pessoas não têm lá muita roupa
e ficam esperando; se a gente não lava, perde freguês. As pranchas são mal
coladas, e cai água na gente por todo lado. E fica com a saia toda molhada.
Aquilo penetra. Ela também trabalhou na lavanderia Enfants Rouges; lá, a
água vem pelas torneiras. Lá não tem tina. É para lavar com a água que
vem da torneira e depois enxaguar no tanque. Como aquilo é fechado, a
gente sente menos frio no corpo; mas tem um vapor que sai da água quente
que é terrível, que acaba com a vista. Ela voltava às sete horas da noite, e
logo se deitava, de tão cansada. O marido ainda batia nela. Ela morreu. A
gente nunca foi muito feliz. Era uma moça boa, muito sossegada. Ainda
me lembro de uma terça-feira gorda em que ela foi deitar às oito horas,
isso mesmo. É verdade. É só perguntar. Ah! Ora essa, perguntar! Como sou
tolo! Paris é enorme; quem é que conhece o Pai Champmathieu? Mas eu já
disse, o senhor Baloup; é só perguntar na casa do senhor Baloup. Daí, não
sei mais o que querem de mim.
Calou-se e ficou ainda de pé. Ele disse essas coisas depressa, em voz
alta, rouca, dura e com uma espécie de ingenuidade irritada e selvagem.
Uma vez interrompeu-se para saudar alguém na multidão. As palavras que
parecia lançar ao acaso vinham-lhe como soluços; ele acrescentava a cada
uma delas o gesto de um lenhador que racha a lenha. Quando acabou de
falar, a plateia desatou a rir. Ele olhou para o público, vendo que todos
riam, e, não entendendo por que, pôs-se também a rir.
Aquilo era sinistro.
O presidente, homem benévolo e atencioso, elevou então a voz.
Lembrou aos “senhores jurados” que “o senhor Baloup, antigo mestre
carpinteiro, na casa de quem o réu dizia ter trabalhado, fora inutilmente
citado, porque havia falecido, e não pudera ser encontrado”. Depois,
voltando-se para o réu, pediu-lhe que escutasse o que ia dizer e
acrescentou:
— O senhor está em uma situação em que deve refletir. Pesam sobre o
senhor as mais graves presunções, que podem trazer-lhe consequências
fatais. Réu, em seu interesse o interrogo pela última vez; explique-se com
muita clareza sobre estes dois pontos: primeiro, saltou, sim ou não, o muro
do quintal de Pierron, quebrou o ramo e roubou as maçãs, isto é, cometeu
o crime de roubo com escalada? Segundo, é ou não o antigo forçado Jean
Valjean?
O réu abanou a cabeça como quem entendeu muito bem e sabe o que
vai responder. Abriu a boca, voltou-se para o presidente e disse:
— Primeiro…
Depois olhou para o boné, olhou para o teto e calou-se.
— Réu — disse o promotor com voz severa —, preste atenção. O
senhor não responde a nada do que lhe perguntam; sua perturbação pode
condená-lo. É evidente que não se chama Champmathieu, que é o forçado
Jean Valjean disfarçado, primeiro, com o nome de Jean Mathieu, que era o
sobrenome de sua mãe; que o senhor foi para Auvergne e que nasceu em
Faverolles, onde foi podador. É evidente que roubou, depois de ter saltado
o muro, umas maçãs maduras da chácara Pierron. Os senhores jurados irão
levar tudo em conta.
O réu, que voltara a sentar-se, levantou-se rapidamente quando o
promotor acabou de falar, e exclamou:
— O senhor é muito maldoso! O que eu queria dizer era isto, mas antes
não consegui: eu não roubei nada. Eu sou um homem que nem come todo
dia. Eu vinha de Ailly, eu andava pela região depois de desabar uma
grande carga d’água que deixou tudo amarelo pelos campos, com os
charcos transbordando e só deixando ver alguma areia e umas pontinhas de
mato nas beiras da estrada; achei um galho quebrado no chão, com
algumas maçãs, que eu peguei, sem imaginar que ia me causar tanto
problema. Faz três meses que eu estou preso e que andam às voltas
comigo. Depois disso, não sei explicar, falam contra mim, me dizem:
responda! O guarda, que é bom rapaz, me dá sinal com o cotovelo e diz
baixinho: anda, responde. Mas eu não sei explicar, não tenho estudo, eu
sou um homem pobre. É isso que fazem mal de não ver. Eu não roubei
nada, só peguei o que estava no chão. Os senhores falam de Jean Valjean,
Jean Mathieu! Eu não conheço esses homens. São do interior. Eu trabalhei
com o senhor Baloup, bulevar de l’Hôpital. Eu me chamo Champmathieu.
São muito espertos para me dizerem onde eu nasci. Eu mesmo não sei.
Nem todo o mundo tem uma casa para vir ao mundo; seria muito cômodo.
Eu acho que meu pai e minha mãe eram gente que andava na estrada; não
sei mais do que isso. Quando eu era criança, me chamavam de Pequeno,
agora me chamam de Velho. São esses os meus nomes de batismo.
Encarem isso como quiserem. Eu estive em Auvergne, estive em
Faverolles, caramba! E daí? Então não se pode ter estado em Auvergne e
em Faverolles sem ter estado nas galés? Estou dizendo que eu sou o Pai
Champmathieu e que eu não roubei nada. Trabalhei com o senhor Baloup,
ali foi meu domicílio. No fim das contas, estão me aborrecendo com seus
disparates! Por que todo o mundo anda tão encarniçado atrás de mim?
O promotor, que permanecera de pé, dirigiu-se ao presidente:
— Senhor presidente, em vista das negações confusas, mas sobremodo
hábeis do réu, que bem gostaria de se fazer passar por idiota, mas não
conseguirá — desde já o prevenimos —, requeremos que tenha a bondade,
bem como os senhores jurados, de tornar a chamar a este recinto os
condenados Brevet, Cochepaille e Chenildieu, e o inspetor de polícia
Javert, para interrogá-los uma última vez sobre a identidade do réu como o
forçado Jean Valjean.
— Faço uma observação ao senhor advogado-geral — disse o
presidente —; que o inspetor de polícia Javert, chamado pelas obrigações
do cargo à capital de um distrito vizinho, saiu da casa de audiências, e até
da cidade, assim que prestou seu depoimento. Foi-lhe concedida
autorização, com o consentimento do senhor, promotor, e do advogado de
defesa.
— Exato, senhor presidente — replicou o promotor. — Na ausência do
senhor Javert, julgo ser meu dever lembrar aos senhores jurados o que ele
disse aqui há poucas horas. Javert é um homem estimado, que, por sua
rigorosa e estrita probidade, honra as inferiores, mas importantes, funções
que exerce. São estes os termos de seu depoimento:
“Eu não preciso de presunções morais, nem mesmo de provas
materiais que desmintam as negativas do réu. Reconheço-o perfeitamente.
Esse homem não se chama Champmathieu; é um antigo forçado, muito
perigoso e muito temido, chamado Jean Valjean. Foi liberado após o
cumprimento de sua pena, mas com extrema reserva. Sofreu dezenove
anos de trabalhos forçados por roubo qualificado. Por cinco ou seis vezes
tentou evadir-se. Além do roubo Pequeno-Gervais e do roubo Pierron, é
suspeito de um roubo à Sua Grandeza, o falecido bispo de Digne. Eu o vi
muitas vezes enquanto trabalhei como guarda da prisão de Toulon. Repito,
reconheço-o perfeitamente”.
Essa declaração tão precisa parece ter produzido viva impressão no
público e nos jurados. O promotor terminou insistindo para que, na falta
de Javert, as três testemunhas, Brevet, Chenildieu e Cochepaille, fossem
ouvidas novamente e solenemente interrogadas.
O presidente transmitiu a ordem a um oficial de justiça, e, um instante
depois, abriu-se a porta da sala de testemunhas. O oficial, acompanhado de
um guarda, pronto a usar da força, trouxe o sentenciado Brevet. O
auditório estava em suspense e todos os corações palpitavam como se
tivessem uma só alma.
O antigo forçado Brevet usava a vestimenta preta e parda das prisões
centrais. Era uma figura de uns sessenta anos, com aparência de homem de
negócios e ar de velhaco, duas coisas que às vezes andam juntas. Na
prisão, para onde novos delitos o reconduziram, tornara-se uma espécie de
chaveiro; era um homem de quem os chefes diziam: “Ele procura ser útil”.
Os capelães davam boas informações sobre seus hábitos religiosos. Deve-
se levar em conta que isso se passava no tempo da Restauração.
— Brevet — disse o presidente —, o senhor recebeu uma sentença
infamante e, por isso, não pode prestar juramento.
Brevet baixou os olhos.
— Todavia — continuou o presidente —, mesmo em um homem
degradado pela lei pode ainda restar, quando a misericórdia divina o
permite, um sentimento de honra e equidade. É a esse sentimento que faço
apelo nesta hora decisiva. Se, como espero, ele ainda existe dentro do
senhor, reflita antes de me responder, considere, de um lado, aquele
homem, que uma palavra sua pode condenar, e, de outro lado, a justiça,
que uma palavra sua pode esclarecer. O momento é solene, e ainda é tempo
de se retratar, se acredita ter se enganado. Réu, levante-se. Brevet, olhe
bem para o réu, junte suas lembranças e diga-nos, de toda a alma e
consciência, se persiste em reconhecer neste homem seu antigo
companheiro de galés Jean Valjean.
Brevet olhou para o réu e depois voltou-se para os jurados.
— Sim, senhor presidente. Fui eu quem primeiro o reconheceu, e
persisto. Este homem é Jean Valjean, chegou a Toulon em 1796 e saiu em
1815. No ano seguinte, saí eu. Ele agora tem uma aparência rude, mas
deve ser a idade que o embruteceu; na prisão era um dissimulado.
Reconheço-o positivamente.
— Vá sentar-se — disse o presidente. — Réu, fique de pé.
Foi introduzido Chenildieu, forçado para sempre, como indicava sua
vestimenta vermelha e seu boné verde. Estava cumprindo a pena nas galés
de Toulon, de onde fora tirado para participar desse julgamento. Era um
homem pequeno, de seus cinquenta anos, vivo, cheio de rugas, de aspecto
doentio, amarelado, atrevido, febril, que tinha, nos membros e em toda a
sua pessoa, certa fraqueza doentia, e, no olhar, uma força imensa. Os
companheiros de prisão deram-lhe o apelido de Nega-a-Deus.
O presidente dirigiu-lhe praticamente as mesmas palavras que a
Brevet. Quando lembrou-lhe que sua infâmia tirava-lhe o direito de prestar
juramento, Chenildieu ergueu a cabeça e encarou a multidão. O presidente
pediu-lhe que se concentrasse e perguntou-lhe, como a Brevet, se persistia
em reconhecer o acusado.
Chenildieu desatou a rir.
— Ora essa! Se o reconheço? Pois nós andamos cinco anos presos à
mesma corrente. Vai ficar com essa cara, meu velho?
— Vá sentar-se — disse o presidente.
O oficial conduziu Cochepaille, outro sentenciado a prisão perpétua,
que vinha das galés vestido de vermelho como Chenildieu; era um
camponês de Lourdes, quase um urso dos Pirineus, fora guardador de
rebanhos nas montanhas e, de pastor, passara a salteador. Cochepaille não
era menos selvagem do que o réu, e parecia ainda mais estúpido. Era um
desses homens infelizes que a natureza esboçou como animal bravio e a
sociedade faz acabar como forçado.
O presidente tentou comovê-lo com algumas palavras patéticas e
graves e perguntou-lhe, como aos outros dois, se persistia, sem hesitação
nem perturbação, em reconhecer o homem de pé diante dele.
— É Jean Valjean — disse Cochepaille. — Por sinal era chamado de
Jean-le-Cric, de tão forte que era.
Cada uma das afirmações dos três homens, evidentemente sinceras e
de boa-fé, tinha produzido no auditório um murmúrio de mau agouro para
o réu, murmúrio que crescia e se prolongava por mais tempo todas as
vezes que uma nova declaração vinha acrescentar-se à precedente. O réu as
escutara com o ar de espanto que, segundo a acusação, era o seu principal
meio de defesa. Na primeira, os guardas próximos a ele ouviram-no
resmungar por entre dentes: “Ah, bom! Um já foi!” Após a segunda, disse
em voz um tanto mais alta e com ar quase satisfeito: “Que bom!” Na
terceira, exclamou: “Maravilha!”
O presidente o interpelou:
— Senhor réu, ouviu o que foi dito; que tem agora a dizer?
Ele respondeu:
— Eu digo: que maravilha!
Um rumor começou entre o público, e quase tomou conta do júri. Era
evidente que o homem estava perdido.
— Oficiais — disse o presidente —, mandem fazer silêncio. Vou
encerrar os debates.
Neste momento, houve um movimento ao lado do presidente. Ouviu-se
uma voz gritando:
— Brevet, Chenildieu, Cochepaille, olhem para este lado.
Todos os que ouviram essa voz sentiram-se gelados, tanto ela era
lamentosa e terrível. Todos os olhos se voltaram para o ponto de onde ela
vinha. Um homem, que estava entre os espectadores privilegiados
sentados atrás dos juízes, acabava de levantar-se, abrira a porta que
separava o tribunal do pretório, e estava de pé no meio da sala.
O presidente, o advogado-geral, o senhor Bamatabois, vinte pessoas o
reconheceram e exclamaram ao mesmo tempo:
— Senhor Madeleine!

XI. CHAMPMATHIEU CADA VEZ MAIS ESPANTADO


De fato, era ele. A luminária do escrivão clareava seu rosto. Segurava
seu chapéu na mão, suas roupas estavam em completo alinho e o casaco
cuidadosamente abotoado. Estava muito pálido e levemente trêmulo. Os
cabelos, grisalhos quando chegou a Arras, estavam agora completamente
brancos. Embranqueceram durante aquela hora em que ficou ali.
Todas as cabeças se ergueram. Foi indescritível a sensação; houve um
momento de hesitação no auditório. A voz tinha sido tão pungente, o
homem que ali estava parecia tão sereno que, num primeiro momento,
ninguém entendeu o que acontecia. Todos se perguntavam quem havia
gritado. Não dava para acreditar que era aquele homem tranquilo quem
tinha soltado aquele grito assustador.
Essa indecisão durou apenas alguns segundos. Antes que o presidente e
o advogado-geral pudessem dizer uma palavra, antes que os guardas e os
oficiais pudessem fazer um gesto, o homem que todos chamavam, ainda
naquele momento, de senhor Madeleine avançara para as testemunhas
Cochepaille, Brevet e Chenildieu.
— Não me reconhecem? — disse ele.
Os três ficaram calados, indicando com um sinal de cabeça que não o
conheciam. Cochepaille, intimidado, lhe fez uma saudação militar. O
senhor Madeleine voltou-se para os jurados e para a corte e disse com voz
suave:
— Senhores jurados, mandem soltar o réu. Senhor presidente, mande
prender-me. O homem que procuram não é ele, sou eu. Eu sou Jean
Valjean.
Nem uma só boca respirava. À primeira comoção de surpresa sucedera
um silêncio sepulcral. Sentia-se na sala uma espécie de terror religioso
que se apossa da multidão quando alguma coisa grandiosa acontece.
O presidente, em cujo rosto havia uma expressão de simpatia e
tristeza, trocou um rápido sinal com o advogado-geral, e algumas palavras
em voz baixa com os conselheiros assessores; dirigiu-se ao público,
perguntando com um acento que foi compreendido por todos:
— Há um médico aqui?
O advogado-geral tomou a palavra.
— Senhores jurados, o incidente tão estranho e inesperado que
perturba a audiência só nos inspira, bem como aos senhores, um
sentimento que não precisamos exprimir. Todos conhecem, ao menos pela
reputação, o respeitável senhor Madeleine, prefeito de Montreuil-sur-Mer.
Se houver algum médico na audiência, nos juntamos ao senhor presidente
para pedir que tenha a bondade de assistir o senhor Madeleine e reconduzi-
lo à sua casa.
O senhor Madeleine nem deixou o advogado-geral terminar,
interrompendo-o com um acento cheio de mansidão e autoridade. Estas
são as palavras que, literalmente, ele proferiu, tais como foram escritas
logo depois da audiência por uma das testemunhas daquela cena, tais como
ainda soam nos ouvidos dos que as ouviram, há quase quarenta anos:
— Agradeço-lhe, senhor promotor, mas não estou louco. O senhor
verá. Os senhores estavam a ponto de cometer um grande erro, soltem esse
homem, estou cumprindo um dever, eu sou o infeliz condenado. Eu sou o
único que vê claramente aqui, digo-lhes a verdade. O que faço neste
momento, Deus, lá em cima, está vendo, e isso é o bastante. Agora podem
prender-me, já que estou aqui; mas fiz o mais que pude. Escondi-me sob
outro nome, tornei-me rico, tornei-me prefeito; queria novamente fazer
parte das pessoas de bem. Mas parece que isso não é possível. Enfim, há
muita coisa que eu não posso falar, não vou lhes contar minha vida; um
dia saberão. Roubei o bispo, isso é verdade; roubei o Pequeno-Gervais,
também é verdade. Tinham razão os que disseram que Jean Valjean era um
miserável muito perigoso; porém, talvez a culpa não seja toda dele. Por
favor, escutem, senhores juízes, um homem tão rebaixado como eu não
pode reclamar da Providência, nem dar conselhos à sociedade; mas,
senhores, a infâmia de onde tentei sair é uma coisa daninha. A prisão forja
o prisioneiro. Tomem nota disso, se quiserem. Antes de ir para as galés, eu
era um pobre camponês, muito pouco inteligente, uma espécie de idiota; a
prisão me transformou. De estúpido, tornei-me mau; de lenha, tornei-me
brasa. Mais tarde, a indulgência e a bondade me salvaram, do mesmo
modo que a severidade me perdera. Mas, perdão, os senhores não podem
compreender o que eu estou dizendo. Encontrarão em minha casa, nas
cinzas da lareira, a moeda de quarenta soldos que roubei, há sete anos, do
Pequeno-Gervais. Não tenho mais nada a acrescentar. Prendam-me agora.
Meu Deus! O promotor faz que não com a cabeça e os senhores dizem: o
senhor Madeleine perdeu o juízo. Ninguém acredita em mim. Isso é que
me aflige; mas ao menos não condenem esse homem. Como? Aqueles ali
não me conhecem! Eu gostaria que Javert estivesse aqui, ele sim me
reconheceria!
Ninguém conseguiria traduzir toda a melancolia benévola e sombria
que havia no tom com que essas palavras foram ditas.
Virou-se para os três forçados e disse:
— Pois eu os reconheço. Brevet! Lembra-se?…
Interrompeu-se, hesitando um instante, depois disse:
— Lembra-se daqueles suspensórios de malha xadrez que você usava
na prisão?
Brevet sentiu como que um abalo de surpresa, e olhou para ele com ar
assustado da cabeça aos pés. Ele continuou:
— Chenildieu, você, que apelidava a si mesmo de Nega-a-Deus, você
tem todo o ombro direito profundamente queimado, porque uma vez o
encostou em um aquecedor cheio de brasas para apagar as três letras T. F.
P. que, apesar disso, ainda são visíveis. Responda, não é verdade?
— É verdade — disse Chenildieu.
— Cochepaille — continuou ele —, você tem na parte interna do braço
esquerdo uma data, que foi gravada em letras azuis, com pólvora
queimada. É a data do desembarque do imperador em Cannes, 1º de março
de 1815. Arregace a manga.
Cochepaille arregaçou a manga e todos os olhares se voltaram para seu
braço nu. Um guarda aproximou um candeeiro; a data estava ali.
O infeliz voltou-se para o auditório e para os juízes com um sorriso
que ainda dilacera, só de lembrar, todos aqueles que o viram. Era o sorriso
do triunfo, e também era o sorriso do desespero.
— Podem ver muito bem — disse ele — que eu sou Jean Valjean.
Naquele recinto já não havia juízes, nem acusadores, nem guardas; só
havia olhos fixos e corações comovidos. Ninguém mais se lembrava que
papel tinha a desempenhar; o promotor esquecera-se de que estava ali para
acusar, o presidente de que estava ali para presidir, o advogado da defesa
de que estava ali para defender. Coisa impressionante! Nenhuma pergunta
foi feita, nenhuma autoridade interveio. É característico dos espetáculos
sublimes arrebatar todas as almas e fazer de todos os presentes meros
espectadores. Ninguém talvez soubesse dizer o que sentia; ninguém, com
certeza, pensava ver ali resplandecer uma grande luz; todos, no íntimo,
sentiam-se ofuscados.
Era evidente que tinham Jean Valjean sob os olhos; era gritante.
Bastara a aparição desse homem para encher de clareza o que, um
momento antes, era tão obscuro. Sem que precisasse de mais explicações,
toda aquela multidão compreendeu de imediato, e como que por meio de
uma espécie de revelação elétrica, num piscar de olhos, esta simples e
magnífica história de um homem que se entregava para que outro não
fosse condenado em seu lugar. Os pormenores, as hesitações, as pequenas
resistências possíveis perderam-se na vastidão desse fato luminoso.
Impressão que passou rapidamente, mas que naquele instante foi
irresistível.
— Não quero incomodar mais a audiência — continuou Jean Valjean.
— Vou-me embora, visto que não me prendem; tenho muito que fazer. O
senhor advogado-geral sabe quem sou, sabe para onde vou, mandará
prender-me quando bem quiser.
E dirigiu-se à porta. Nem uma só voz se elevou, nem um só braço se
estendeu para o impedir de sair; todos se desviaram para deixá-lo passar.
Ele tinha, naquele momento, algo de divino que faz com que as multidões
se afastem e se perfilem diante de um homem. Passou pela assistência a
passos lentos. Nunca se soube quem abriu a porta, mas é certo que ela
estava aberta quando a alcançou. Então, voltou-se e disse:
— Estou à sua disposição, senhor promotor.
Depois, acrescentou, dirigindo-se ao auditório:
— Todos vocês, todos os que aqui se encontram, acham-me digno de
compaixão, não é? Meu Deus! Quando penso no que estive para fazer,
acho-me digno de inveja. No entanto, eu acharia muito melhor que nada
disso tivesse acontecido.
Ele saiu, e a porta foi fechada do mesmo modo que fora aberta, pois os
que fazem alguma coisa com soberania estão sempre certos de serem
servidos por alguém dentre a multidão.
Daí a menos de uma hora, o veredito do júri absolvia de qualquer
acusação o tal Champmathieu; e Champmathieu, posto imediatamente em
liberdade, partira estupefato, achando todos os homens malucos, sem
compreender nada daquela visão.

__________________________
1 Esse parêntese é da mão de Jean Valjean. (N. A.)
2 Jacques-Bégnine Bossuet (1627-1704) bispo e teólogo francês. Nesse trecho o autor faz
referência ao seu discurso em uma ocasião fúnebre, na qual exemplificou o amor materno por
meio da galinha e seus pintinhos.
LIVRO VIII
CONTRAGOLPE

I. EM QUE ESPELHO O SENHOR MADELEINE OLHA


SEUS CABELOS
COMEÇAVA A despontar o dia. Fantine passara a noite com febre e
insônia, mas cheia de imagens felizes; adormeceu de madrugada. A irmã
Simplice, que cuidava dela, aproveitou aquele momento de sono para ir
preparar uma nova poção de quinina. A digna irmã estava, havia alguns
instantes, no laboratório da enfermaria, inclinada sobre suas drogas e
frascos, olhando tudo muito de perto por causa do nevoeiro que o
crepúsculo dissipa sobre os objetos. De repente, voltou a cabeça e deu um
pequeno grito. O senhor Madeleine estava diante dela, acabara de entrar
silenciosamente.
— Ah! É o senhor, prefeito! — exclamou ela.
Ele respondeu em voz baixa:
— Como está aquela pobre mulher?
— Agora não está mal, mas estivemos muito preocupados!
Ela explicou-lhe o que ocorrera, que Fantine estivera bastante mal na
véspera, mas que agora estava melhor, porque pensava que o prefeito tinha
ido buscar sua filhinha em Montfermeil. A irmã não ousou perguntar-lhe,
mas, pelo seu jeito, logo percebeu que não era de lá que ele vinha.
— Está bem — disse ele —; fizeram bem em não desiludi-la.
— Certo — tornou a irmã —, mas agora, prefeito, ela vai ver o senhor
e não a menina, o que nós diremos a ela?
Ficou um instante pensativo e depois respondeu:
— Deus há de nos inspirar.
— Mas não deveríamos mentir — murmurou a irmã a meia voz.
A claridade do dia entrava no quarto. E iluminava diretamente o rosto
do senhor Madeleine. Por acaso, a irmã levantou os olhos.
— Meu Deus! — ela exclamou. — O que aconteceu? Seus cabelos
estão completamente brancos!
— Brancos! — disse ele.
A irmã Simplice não tinha espelho; remexeu em um estojo e tirou um
pequeno espelho que o médico da enfermaria usava para verificar se um
doente estava morto, se não respirava mais.
O senhor Madeleine pegou o espelho, olhou seus cabelos, e disse:
“Veja só!”
Disse isso com indiferença, como se pensasse em outra coisa.
A irmã entrevia em tudo aquilo algo de misterioso, que lhe gelava o
sangue.
— Posso falar com ela? — perguntou Madeleine.
— Então o senhor vai mandar buscar a menina, ou não? — disse a
irmã, mal ousando fazer a pergunta.
— Sem dúvida, mas são necessários pelo menos dois ou três dias.
— Se ela não visse o senhor até então — replicou timidamente a irmã
—, ela nem saberia que o senhor retornou, não seria tão difícil pedir-lhe
paciência, e quando a criança chegasse suporia muito naturalmente que o
senhor tinha vindo com ela. E não teríamos de mentir.
Refletiu um instante, depois disse com sua tranquila gravidade:
— Não, irmã, necessito falar com ela, porque talvez eu tenha de me
apressar.
A religiosa pareceu não notar aquele “talvez” que dava um sentido
obscuro e singular às palavras do prefeito, e respondeu, baixando
respeitosamente os olhos e a voz:
— Neste caso, ela está descansando, mas o senhor prefeito pode entrar.
Ele fez algumas observações a respeito de uma porta que não fechava
bem, e cujo ruído podia acordar a doente, depois entrou no quarto de
Fantine, aproximou-se da cama e entreabriu as cortinas. Fantine dormia.
Sua respiração saía do peito com um ruído trágico, próprio dessas
moléstias, que partem o coração das pobres mães enquanto velam, durante
a noite, à cabeceira de um filho adormecido e condenado. Mas essa
respiração penosa mal perturbava uma espécie de serenidade inefável que
tinha no rosto e que, em seu sono, a transfigurava. Sua palidez convertera-
se em brancura; suas faces estavam rosadas. Seus longos cílios louros,
única beleza que lhe restara de sua virgindade e juventude, palpitavam
apesar das pálpebras fechadas. Todo o seu corpo tremia, agitado por uma
espécie de sacudir de asas prestes a se entreabrirem e a carregá-la, que
podia ser sentido, mas não visto. Ao vê-la daquele modo, ninguém
imaginaria que estava ali uma doente quase sem esperança. Mais parecia
algo que vai voar do que algo que vai morrer.
Um ramo com flores, quando sente uma mão se aproximar para colher
a flor, estremece, e parece, ao mesmo tempo, esconder-se e entregar-se. O
corpo humano mostra também um pouco desse estremecimento quando é
chegado o momento em que os misteriosos dedos da morte chegam para
colher a alma.
O senhor Madeleine permaneceu algum tempo imóvel junto daquele
leito, olhando alternadamente para a doente e para o crucifixo, como fizera
dois meses antes, no dia em que, pela primeira vez, viera visitar Fantine
naquele asilo. Ali estavam ambos, conservando a mesma atitude, ela
dormindo, ele orando; só que agora, passados esses dois meses, ela tinha
os cabelos grisalhos, e ele, brancos.
A irmã não entrara com ele. O senhor Madeleine conservava-se de pé,
ao lado da cama, com o dedo apoiado sobre os lábios, como se precisasse
impor silêncio a alguém que estivesse no quarto.
Fantine abriu os olhos e, ao vê-lo, disse serenamente, com um sorriso:
— E Cosette?

II. FANTINE FELIZ


Fantine não fez um movimento de surpresa, nem um gesto de alegria;
ela era a própria alegria. Aquela simples pergunta: “E Cosette?” foi feita
com tão profunda fé, com tanta certeza, com tão completa ausência de
receio e de dúvida, que ele não encontrou nada para dizer. Ela continuou:
— Eu sabia que o senhor estava aqui; eu dormia, mas o via. Há muito
tempo que o vejo, e o segui com os olhos durante a noite toda. O senhor
estava na glória, e tinha à sua volta todo tipo de figuras celestes.
Ele ergueu os olhos para o crucifixo, e Fantine prosseguiu:
— Mas diga, onde está Cosette? Por que não a puseram aqui na cama,
para eu vê-la quando acordasse?
Ele respondeu qualquer coisa, maquinalmente, tanto que nunca mais
conseguiu se lembrar. Felizmente, o médico, que fora avisado, apareceu e
lhe valeu naquele aperto.
— Filha — disse o médico —, fique calma. Sua pequena está aí.
Os olhos de Fantine se iluminaram, inundando seu rosto de luz. Ela
juntou as mãos com uma expressão que encerrava tudo o que a súplica
pode ter de mais violento e de mais doce ao mesmo tempo.
— Oh! — exclamou ela. — Podem trazê-la a mim!
Tocante ilusão materna! Cosette ainda era para ela uma criancinha de
colo.
— Ainda não — respondeu o médico —; por enquanto ainda não. Você
ainda tem um pouco de febre. Ver sua filha pode agitá-la e fazer-lhe mal. É
preciso sarar primeiro.
Ela o interrompeu impetuosamente.
— Mas eu já estou boa! Estou dizendo que já estou boa. Ele está doido,
esse médico! O que é isso! Quero ver minha filha!
— Olhe — disse o médico — como você se exalta. Enquanto estiver
assim, vou opor-me a que veja sua filha. Não basta só vê-la, é preciso que
viva para ela. Quando estiver tranquila, eu mesmo a trarei.
A pobre mãe curvou a cabeça.
— Doutor, peço-lhe perdão, peço-lhe mesmo que me perdoe. Se fosse
antes, não lhe falaria desse jeito, mas tenho sofrido tantas desgraças que,
às vezes, nem sei o que digo. Eu entendo, o senhor receia a emoção, vou
esperar o tempo que quiser, mas juro-lhe que não me faria mal nenhum ver
minha filha. Eu a vejo, desde ontem à noite não a perco de vista. Sabe, se
ela viesse agora, eu falaria com ela calmamente. É verdade. Não é natural
que eu queira ver minha filha, que foram, para isso mesmo, buscar em
Montfermeil? Eu não estou brava; tenho certeza que vou ser feliz. A noite
inteira vi coisas brancas, e pessoas que sorriam para mim. Quando o
doutor quiser, trará minha Cosette aqui. Não tenho mais febre, já sarei;
sinto perfeitamente que não tenho mais nada, mais vou fazer de conta que
estou doente, e não vou me mexer, para agradar a estas senhoras. Quando
virem que estou bem sossegada, vão dizer: temos que levar a menina para
ela.
O senhor Madeleine estava sentado em uma cadeira ao lado da cama.
Ela virou-se para ele fazendo visíveis esforços para parecer serena e “bem
comportada”, como ela dizia no enfraquecimento da doença, que tanto se
assemelha à infância, a fim de que, vendo-a tão sossegada, não colocassem
dificuldade em trazer-lhe Cosette. Todavia, apesar de seus esforços, não
podia impedir-se de fazer mil perguntas ao senhor Madeleine.
— Fez boa viagem, prefeito? Oh! Quanta bondade, ir o senhor mesmo
buscá-la! Diga-me somente como ela está. Ela aguentou bem o trajeto?
Que pena! Ela não vai me reconhecer! Depois de tanto tempo, deve ter
esquecido de mim, coitadinha! As crianças são assim mesmo, não
lembram. São como os passarinhos; hoje veem uma coisa, amanhã outra, e
não pensam em mais nada. Ela tinha suas roupinhas? Os Thénardier
mantinham-na bem cuidada? Como a alimentavam? Oh! Se soubesse
como eu sofri, quando, no tempo da minha miséria, me fazia todas essas
perguntas! Agora acabou. Estou contente. Oh! Como eu gostaria de vê-la!
Prefeito, o senhor a achou bonita? Ela é linda, não é, minha filhinha? O
senhor deve ter passado muito frio nessa viagem. Será que não podiam
trazê-la só um pouquinho? E logo a levariam de volta. Diga, o senhor é
que manda, se o senhor quisesse!
Ele pegou em sua mão:
— Cosette é linda — disse — e está muito bem, você a verá logo, mas
fique tranquila. Está falando muito, e descobrindo os braços; isso a faz
tossir.
De fato, acessos de tosse a interrompiam a todo instante.
Fantine não retrucou, temendo comprometer, com lamentos muito
emocionados, a confiança que queria inspirar; então começou a dizer
coisas indiferentes.
— Montfermeil é uma cidade bonita, não é? No verão as pessoas vão
lá para se divertir. Os Thénardier têm feito bons negócios? Não é muita
gente que passa por lá. Aquela estalagem é uma bela espelunca.
O senhor Madeleine ainda segurava sua mão e olhava para ela com
ansiedade; era evidente que viera com intenção de dizer-lhe coisas diante
das quais agora hesitava. O médico, ao terminar sua visita, retirara-se.
Apenas a irmã Simplice ficara por lá. Quando tudo estava em silêncio,
Fantine exclamou:
— Eu a ouço, meu Deus! Eu a ouço!
E estendeu o braço em sinal de que ficassem calados em volta dela,
prendeu a respiração e pôs-se a escutar maravilhada.
Havia uma criança brincando no quintal, era a filha da zeladora ou de
alguma das operárias. Foi um desses acasos que às vezes acontecem, e que
parecem fazer parte da misteriosa encenação dos acontecimentos lúgubres.
Era uma menininha que corria de um lado a outro para se aquecer,
rindo e cantando alto. Ai! Para que as brincadeiras de criança podem
servir! Era aquela menina que Fantine ouvira cantar.
— Oh! — exclamou ela. — É minha Cosette, reconheço sua voz!
A criança afastou-se do mesmo modo que viera, sua voz ia se
apagando, e Fantine ainda a ouviu por algum tempo; depois, seu semblante
ficou sombrio; o senhor Madeleine a ouviu dizer em voz baixa:
— Como esse médico é perverso por não me deixar ver minha filha!
Ele não tem mesmo uma cara boa, aquele homem!
No entanto, o fundo agradável de suas ideias retornou, e ela continuou
a falar consigo mesma, a cabeça no travesseiro:
— Como vamos ser felizes! Primeiro, vamos ter um jardinzinho; o
senhor Madeleine prometeu. Minha filha vai brincar lá. Ela já deve saber
as letras; vou pedir para ela soletrar. Ela vai correr pela grama, atrás das
borboletas. E eu vou ficar olhando. Depois, vai fazer a primeira comunhão.
Ah, é mesmo! Quando ela vai fazer a primeira comunhão?
E pôs-se a contar nos dedos:
— Um, dois, três, quatro… ela tem sete anos. Daqui a cinco anos,
então. Ela vai ter um véu branco e meias bordadas; vai parecer uma
senhorinha. Ó minha boa irmã, olhe que boba estou parecendo! Já estou
pensando na primeira comunhão da minha filha!
E desatou a rir.
O senhor Madeleine largara a mão de Fantine, e escutava aquelas
palavras como quem escuta o sussurrar do vento, com os olhos voltados
para o chão e o espírito mergulhado em reflexões sem fim. De súbito,
Fantine parou de falar, e isso o fez levantar a cabeça maquinalmente. Ela
se tornara assustadora.
Não falava mais, não respirava mais; havia-se erguido um pouco, seu
ombro magro aparecia através da camisola, seu rosto, havia ainda pouco
radiante, ficara pálido, e ela parecia fixar em algo de formidável diante
dela, na outra extremidade do quarto, seus olhos arregalados de medo.
— Meu Deus! — exclamou ele. — O que você tem, Fantine?
Ela não respondeu, nem despregou os olhos do objeto que parecia ver;
tocou-lhe o braço com uma mão, e com a outra fez-lhe sinal que olhasse
para trás. Ele virou-se, e viu Javert.

III. JAVERT SATISFEITO


Eis o que acontecera:
Acabava de soar meia-noite e meia quando o senhor Madeleine saiu da
sala do tribunal de Arras, voltando à estalagem exatamente a tempo de
tomar a diligência na qual, como se lembram, tinha reservado lugar. Pouco
antes das seis da manhã, estava de volta a Montreuil-sur-Mer, e seu
primeiro cuidado fora colocar no correio a carta ao senhor Laffitte e
depois entrar na enfermaria para ver Fantine.
No entanto, mal ele deixara a sala de audiências do tribunal, o
advogado-geral, voltando a si daquela comoção, tomou a palavra para
deplorar o ato de loucura do respeitável prefeito de Montreuil-sur–Mer,
declarar que suas convicções em nada tinham sido alteradas por aquele
extravagante incidente, que mais tarde viria a esclarecer-se, e requerer,
enquanto aguardava tais esclarecimentos, a condenação de Champmathieu,
certamente o verdadeiro Jean Valjean. A persistência do advogado-geral
estava em visível contradição com o sentimento de todos, do público, dos
juízes e dos jurados. O advogado de defesa não encontrou dificuldade para
refutar tal discurso, e afirmar que, em virtude das revelações do senhor
Madeleine, ou seja, do verdadeiro Jean Valjean, o processo mudava
completamente de figura, sendo que o júri tinha em sua presença nada
menos que um inocente. O defensor aproveitou-se de uma retórica,
infelizmente pouco criativa, para falar de erros judiciários, etc., etc.; o
presidente, em seu sumário, juntou-se à defesa, e o júri, em alguns
minutos, colocou Champmathieu fora de questão.
No entanto, o advogado-geral precisava de um Jean Valjean, e, não
tendo mais Champmathieu, voltou-se para Madeleine.
Logo após a liberação de Champmathieu, o promotor fechou-se com o
presidente e discutiram “a necessidade de apanharem a pessoa do prefeito
de Montreuil-sur-Mer”. Esta frase é do próprio promotor, totalmente
escrita de próprio punho na minuta de seu relatório ao procurador-geral.
Passada a primeira emoção, o presidente fez poucas objeções. Era
necessário que a justiça seguisse seus trâmites. Além disso, para dizer
tudo, ainda que o presidente fosse um homem bom e bastante inteligente,
era também um realista ferrenho, quase exaltado, e ficara chocado quando
o prefeito de Montreuil-sur-Mer, falando do desembarque em Cannes,
disse o imperador e não Bonaparte.
A ordem de prisão foi então expedida. O advogado-geral mandou-a por
um enviado especial, e com urgência, a Montreuil-sur-Mer, encarregando
de seu cumprimento o inspetor de polícia Javert. Como sabem, Javert
retornara a Montreuil-sur-Mer logo após dar seu depoimento.
Ele acabava de levantar-se quando foram entregar-lhe a ordem de
prisão e a ordem de comparecimento em juízo. O enviado especial era
também um homem da polícia, muito experiente, e em duas palavras pôs
Javert a par do que havia ocorrido em Arras. A ordem de prisão, assinada
pelo advogado-geral, foi concebida nos seguintes termos: “O inspetor
Javert prenderá a pessoa do senhor Madeleine, prefeito de Montreuil-sur-
Mer, que, na audiência de hoje, foi reconhecido como o forçado liberado
Jean Valjean”.
Quem não conhecesse Javert, e o visse entrando na antecâmara da
enfermaria, não seria capaz de adivinhar o que se passava, e acharia sua
aparência a mais normal possível. Estava frio, calmo, grave, com os
cabelos grisalhos perfeitamente penteados sobre a testa, subindo as
escadas com sua habitual lentidão. Mas quem o conhecesse a fundo e o
examinasse com atenção teria estremecido.
O fecho de sua gola de couro, em vez de estar sobre a nuca, estava
próximo à sua orelha esquerda. Isso revelava uma agitação extraordinária.
Javert tinha o mesmo caráter em relação a tudo, não consentia rugas
em seu dever, nem em seu uniforme; metódico com os criminosos, rígido
com os botões de seu traje. Para que tivesse colocado erradamente aquele
fecho, devia ter sido tomado por uma dessas emoções que podem ser
chamadas de terremotos interiores.
Ele viera só, requisitara um cabo e quatro soldados da guarda vizinha,
mas os deixara no pátio, pedindo à porteira que lhe indicasse o quarto de
Fantine, o que ela fez sem desconfiança, pois tinha se habituado a ver o
prefeito ser procurado por homens armados.
Chegando ao quarto de Fantine, Javert girou a chave, abriu a porta com
a leveza de um enfermeiro, ou de um espião, e entrou. Para ser exato, ele
não entrou; ficou de pé na porta entreaberta, chapéu na cabeça, e a mão
esquerda metida no casaco abotoado até o pescoço. Na dobra do cotovelo,
podia-se ver o castão de chumbo de sua enorme bengala, que desaparecia
por trás dele.
Assim conservou-se por quase um minuto, sem que ninguém desse por
sua presença, até que Fantine, elevando os olhos, o avistou, e fez com que
o senhor Madeleine se voltasse.
No instante em que o olhar do senhor Madeleine encontrou o olhar de
Javert, esse, sem se mexer, sem se mover, sem se aproximar, tornou-se
assustador. Não há sentimento humano mais assustador do que a alegria.
Era o rosto de um demônio que acabava de encontrar seu condenado.
A certeza de finalmente agarrar Jean Valjean fez com que aparecesse
em sua fisionomia tudo o que havia em sua alma. O fundo remexido subia
à superfície. A humilhação de ter perdido um pouco a pista, e de ter-se
enganado por alguns minutos sobre aquele Champmathieu, apagava-se sob
o orgulho de ter tão bem adivinhado, em princípio, e de ter tido, por muito
tempo, o instinto certeiro. O contentamento de Javert mostrava-se em sua
atitude majestosa. A deformidade do triunfo se espalhava sobre aquela
fronte estreita. Era a mais completa manifestação de horror que pode dar
um homem satisfeito.
Naquele momento, Javert estava no céu. Sem claramente dar-se conta,
no entanto, com uma intuição confusa de sua necessidade e de seu sucesso,
ele personificava, ele, Javert, a justiça, a luz e a verdade, que têm como
função celeste acabar com o mal. Por trás e em volta dele, a uma
profundidade infinita, tinha a autoridade, a razão, a coisa julgada, a
consciência legal, a punição pública, todas as estrelas; ele protegia a
ordem, fazia o raio sair da lei, vingava a sociedade, dava pulso forte ao
absoluto; dirigia-se à glória; havia em sua vitória uma réstia de desafio e
de combate; de pé, altivo, fulgurante, ele ostentava, no imenso azul, a
bestialidade sobre-humana de um arcanjo feroz; a sombra temível da ação
que conduzia tornava visível, em seu punho contraído, o vago flamejar da
espada social; feliz e indignado, mantinha sob seus pés o crime, o vício, a
rebelião, a perdição, o inferno; ele brilhava, ele exterminava, ele sorria, e
havia uma incontestável grandeza naquele São Miguel monstruoso.
Javert, mesmo medonho, não tinha nada de ignóbil.
A probidade, a sinceridade, a candura, a convicção, a noção do dever
são coisas que podem tornar-se medonhas quando mal interpretadas, mas
que, mesmo medonhas, continuam grandiosas; sua majestade, própria da
consciência humana, persiste no horror. São virtudes que têm um vício, um
erro. A alegria impiedosa, mas honesta, de um fanático em plena
atrocidade, conserva um certo brilho lugubremente venerável. Javert, sem
suspeitar, em meio a sua formidável felicidade, era lamentável, como todo
ignorante que triunfa. Nada mais pungente e terrível que aquele rosto,
mostrando o que poderia ser chamado de toda a maldade do bem.

IV. A AUTORIDADE RETOMA SEUS DIREITOS


Fantine não tornara a ver Javert desde o dia em que o prefeito a
arrancara de suas mãos. Seu cérebro doente não se dava conta de nada,
assim ela não teve dúvidas de que ele estava ali para levá-la outra vez. Não
pôde suportar aquela visão terrível, sentiu que ia expirar, escondeu o rosto
entre as mãos, e gritou com angústia:
— Senhor Madeleine, me salve!
Jean Valjean, não o chamaremos mais por outro nome, levantara-se.
Disse a Fantine, com a voz mais doce e serena que tinha:
— Fique tranquila, não foi por sua causa que ele veio.
Depois acrescentou, dirigindo-se a Javert:
— Eu sei o que quer.
— Vamos! Depressa! — respondeu Javert.
Na inflexão com que pronunciou essas duas palavras havia algo de
selvagem e frenético. Javert não disse: “Vamos! Depressa!”, mas algo
como: “Vampressa”! Ortografia nenhuma seria capaz de traduzir o tom
com que aquilo foi dito; não foi uma palavra humana, foi um rugido.
Javert não procedeu como de costume; não deu explicações, não
mostrou a ordem de prisão. Para ele, Jean Valjean era uma espécie de
combatente misterioso e inacessível, um lutador tenebroso que havia cinco
anos vinha encurralando sem poder derrubar. Aquela prisão não era um
começo, era um final. Limitou-se a dizer: “Vamos! Depressa!”
Dizendo isso, não deu sequer um passo; lançou sobre Jean Valjean
aquele olhar que ele jogava como um gancho, com o qual costumava puxar
violentamente os miseráveis em sua direção. Era esse o olhar que Fantine,
dois meses antes, sentira penetrar até a medula dos ossos. Ao grito de
Javert, Fantine reabriu os olhos; mas ali estava o prefeito. O que ela podia
recear?
Javert avançou para o meio do quarto e gritou:
— Então? Vem ou não vem?
A infeliz olhou à sua volta; não havia mais ninguém além da religiosa
e do prefeito. A quem poderia se dirigir aquela forma tão desrespeitosa de
tratamento? Apenas a ela. Fantine estremeceu. Viu então uma coisa
inesperada, tão inesperada que nunca algo semelhante lhe aparecera, nem
nos mais negros delírios de febre.
Viu o espião Javert agarrar o prefeito pelo colarinho, viu o prefeito
curvar a cabeça. Pareceu-lhe que o mundo estava acabando.
Javert, de fato, agarrara Jean Valjean pelo colarinho.
— Senhor prefeito! — gritou Fantine.
Javert desatou a rir, com aquele riso medonho que lhe deixava à
mostra todos os dentes.
— Não há mais nenhum senhor prefeito aqui!
Jean Valjean nem tentou desprender a mão que o segurava pela gola de
seu casaco. Disse:
— Javert…
Javert o interrompeu:
— Trate-me por senhor inspetor.
— Senhor — tornou Jean Valjean —, gostaria de dizer-lhe uma palavra
em particular.
— Fale alto, fale bem alto! — respondeu Javert. — A mim falam em
voz alta!
Jean Valjean continuou, baixando a voz:
— É um pedido que tenho a lhe fazer…
— Já disse para falar alto!
— Mas é algo que só o senhor deve ouvir…
— Que me importa? Não estou ouvindo!
Jean Valjean voltou-se para ele e disse-lhe rapidamente, e bem
baixinho:
— Conceda-me três dias! Três dias para ir buscar a filha dessa pobre
mulher! Pagarei o que for preciso; acompanhe-me se quiser.
— Você está brincando! — gritou Javert. — O que é isso! Nunca
pensei que fosse tão tolo! Está pedindo três dias para fugir, dizendo que
vai buscar a filha dessa meretriz! Ah! Ah! Essa é boa! Essa é muito boa!
Fantine estremeceu.
— Minha filha! — ela exclamou. — Ir buscar minha filha! Então ela
não está aqui! Irmã, diga-me: onde está Cosette? Eu quero a minha filha!
Senhor Madeleine! Senhor prefeito!
Javert bateu o pé no chão.
— Agora é a outra! Quer ficar quieta, sem-vergonha! Que diabo de
lugar é esse onde os forçados são magistrados, e as meretrizes são tratadas
como condessas!… Mas tudo isso vai mudar, já não era sem tempo!
Olhou fixamente para Fantine e acrescentou, agarrando novamente a
gravata, a camisa e o colarinho de Jean Valjean:
— Já lhe disse que aqui não existe mais nenhum senhor Madeleine,
nem senhor prefeito! O que existe é um ladrão, um salteador, um forçado
chamado Jean Valjean! Este que eu tenho nas mãos! Isso sim é o que
existe!
Fantine ergueu-se em sobressalto, apoiada nos braços rígidos e nas
duas mãos, olhou para Jean Valjean, olhou para Javert, olhou para a
religiosa, e abriu a boca como se fosse falar; um gemido saiu do fundo de
sua garganta, seus dentes se bateram, estendeu os braços com angústia,
abrindo convulsivamente as mãos e procurando ao seu redor, como alguém
que se afoga. Depois caiu de uma vez sobre o travesseiro. A cabeça bateu
na cabeceira da cama, curvando-se sobre seu peito, a boca ficou aberta, e
os olhos arregalados e sem brilho.
Estava morta.
Jean Valjean colocou sua mão sobre a mão com que Javert o segurava,
a abriu como abriria a mão de uma criança, e depois lhe disse:
— Você matou essa mulher!
— Vamos acabar com isso! — gritou Javert furioso. — Não estou aqui
para ouvir desculpas! Vamos economizar essas coisas; a guarda está lá
embaixo. Vamos imediatamente, senão vai amarrado!
Havia, em um canto do quarto, uma velha cama de ferro, em péssimo
estado, que servia de cama de acompanhante às irmãs que cuidavam dos
doentes. Jean Valjean foi até essa cama e, num abrir e fechar de olhos,
deslocou a cabeceira, já bem estragada, coisa fácil para músculos como os
dele, empunhou a barra mais forte, e fixou os olhos em Javert. Este recuou
para a porta.
Jean Valjean, barra de ferro na mão, caminhou lentamente até o leito
de Fantine. Chegando ali, voltou-se para Javert e disse, com um tom de
voz que mal se ouvia:
— Não o aconselho a me perturbar neste momento.
O certo é que Javert tremia. Pensou em chamar a guarda, mas Jean
Valjean poderia aproveitar-se desse ensejo para evadir-se. Então, ficou ali;
segurou sua bengala pela extremidade menor, e encostou-se no batente da
porta, sem despregar os olhos de Jean Valjean.
Jean Valjean apoiou o cotovelo na cabeceira da cama, encostou a
cabeça nas mãos e pôs-se a olhar para Fantine, estendida e imóvel.
Permaneceu assim, absorto, mudo, sem pensar, evidentemente, em
qualquer outra coisa desta vida. Não havia em seu semblante e em sua
atitude nada mais que uma inexprimível piedade. Após alguns instantes
naquela abstração, inclinou-se para Fantine e falou com ela em voz baixa.
O que lhe estaria dizendo? O que poderia dizer esse homem réprobo
àquela mulher morta? Que palavras seriam aquelas? Ninguém na terra as
ouviu. Será que a morta as ouvira? Há ilusões tocantes, que talvez sejam
realidades sublimes. O que não admite dúvida é que a irmã Simplice,
única testemunha do que se passou, contou muitas vezes que, no momento
em que Jean Valjean falou ao ouvido de Fantine, viu claramente aparecer
um inefável sorriso naqueles lábios pálidos e nas pupilas vidradas, cheias
de espanto do além.
Jean Valjean tomou entre as mãos a cabeça de Fantine, arrumou-a
sobre o travesseiro, como uma mãe faria por seu filho, amarrou o cordão
de sua camisola e colocou seus cabelos para dentro da touca. Fazendo isso,
fechou-lhe os olhos.
O rosto de Fantine naquele instante parecia estranhamente iluminado.
A morte é a entrada para a grande luz.
A mão de Fantine pendia para fora do leito. Jean Valjean ajoelhou-se
diante dessa mão, levantou-a ternamente e a beijou.
Depois, ergueu-se e, voltando-se para Javert, disse:
— Agora estou à sua disposição.
V. TÚMULO CONVENIENTE
Javert conduziu Jean Valjean à cadeia da cidade.
A prisão do senhor Madeleine produziu em Montreuil-sur-Mer uma
sensação, ou, melhor dizendo, uma comoção extraordinária. Entristece-nos
não podermos dissimular que, por causa desta única frase: era um forçado,
todos o abandonaram. Em menos de duas horas, todo o bem que tinha feito
foi esquecido, e agora não passava de “um forçado”. Devemos dizer que
ainda não eram conhecidos os pormenores do que ocorrera em Arras.
Durante todo o dia, ouviam-se nos quatro cantos da cidade conversas como
esta:
— Então não sabem? Era um antigo forçado! — Quem? — O prefeito.
— O quê! O senhor Madeleine? — Sim. — Verdade? — Ele não se chama
Madeleine, tem um nome horrível, Béjean, Bójean, Boujean, uma coisa
assim. — Oh! Deus do céu! — Foi preso. — Preso! — Está na cadeia da
cidade, esperando ser transferido. — Vai ser transferido! Para onde vão
transferi-lo? — Vai ser julgado no tribunal criminal por um roubo que
cometeu há tempos em uma estrada. — Ora, eu logo vi! Aquele homem
era bom demais, perfeito demais e curtido demais. Recusou a
condecoração, dava moedas a todos os garotos que encontrava; eu sempre
achei que aí tinha alguma história mal contada.
“Os salões”, principalmente, encheram-se de conversas assim.
Uma senhora de idade, assinante da Drapeau Blanc [Bandeira Branca],
fez a seguinte reflexão, cuja profundidade é quase impossível sondar:
— Eu gostei disso, assim os bonapartistas aprendem!
Foi assim que aquele fantasma chamado senhor Madeleine dissipou-se
em Montreuil-sur-Mer. Apenas três ou quatro pessoas em toda a cidade
permaneceram fiéis à sua memória. A velha zeladora que o servira estava
entre elas.
Naquela mesma noite, essa digna senhora estava sentada em seu
quarto, ainda sobressaltada e refletindo tristemente. A fábrica estava
fechada desde a manhã, o portão trancado, e a rua deserta. Na casa
estavam apenas as duas religiosas, irmã Perpétue e irmã Simplice, que
velavam o corpo de Fantine.
Na hora em que o senhor Madeleine costumava recolher-se, a boa
zeladora levantou-se maquinalmente, pegou a chave do quarto dele em
uma gaveta, e o castiçal que ele usava todas as noites para ir a seu quarto,
depois dependurou a chave no prego onde ele costumava pegá-la, e
colocou o castiçal ao lado, como se o esperasse. Em seguida, tornou a
sentar e voltou a pensar. A pobre velha fizera tudo aquilo sem ter
consciência do que fazia. Só depois de duas horas saiu daquele devaneio,
exclamando:
— Ai, meu bom Jesus! E eu que pendurei a chave no prego!
Nesse momento, a vidraça do quarto se abriu, uma mão passou pela
abertura, alcançou a chave e o castiçal, e acendeu a vela em outra que já
estava acesa. A zeladora levantou os olhos e ficou boquiaberta,
suspendendo um grito que quase lhe escapou da garganta. Ela conhecia
aquela mão, aquele braço, a manga daquele casaco.
Era o senhor Madeleine. Antes de conseguir falar, ficou, por alguns
segundos, apavorada, como ela própria dizia depois, contando o caso que
havia acontecido.
— Meu Deus! Senhor prefeito! — exclamou ela enfim. — Eu pensei
que o senhor estivesse…
E parou, porque o fim da frase não condiria com o princípio. Jean
Valjean, para ela, era ainda o senhor prefeito.
Ele completou a frase dela.
— Na cadeia — disse ele. — E estava. Quebrei uma barra de ferro da
janela, joguei-me telhado abaixo, e aqui estou. Enquanto vou até meu
quarto, procure a irmã Simplice. Provavelmente está com aquela pobre
mulher.
Ela obedeceu apressadamente.
Ele não lhe fez nenhuma recomendação; estava certo de que ela o
protegeria mais do que ele mesmo o faria.
Nunca se soube como ele pôde entrar no pátio sem abrir o portão
principal. Ele tinha, e carregava sempre com ele, um passe-partout — uma
destas chaves que podem abrir várias portas —, e abriu uma pequena porta
lateral. Mas deveriam tê-lo revistado e tomado seu passe–partout. Esse
ponto não foi esclarecido.
Subiu a escada que conduzia a seu quarto e, chegando lá em cima,
deixou o castiçal nos últimos degraus, abriu a porta sem fazer barulho, foi
fechar a janela no escuro, e veio depois pegar o castiçal; então entrou no
quarto. Era útil a precaução, pois, como lembram, da rua podia-se ver sua
janela.
Deu uma olhada em torno de si, sobre a mesa, sobre a cadeira, sobre a
cama, que havia três dias não era desfeita. Não havia um só vestígio da
desordem da penúltima noite; a zeladora havia “arrumado o quarto”. Ela
apanhara, nas cinzas, as duas extremidades metálicas do cajado e a moeda
de quarenta soldos, enegrecida pelo fogo.
Ele pegou uma folha de papel, na qual escreveu: Aqui estão as duas
pontas do meu cajado e a moeda de quarenta soldos roubada do pequeno
Gervais, as quais mencionei no tribunal, e colocou sobre ela a moeda de
prata e os dois pedaços de ferro, de modo que fosse a primeira coisa que
veriam ao entrar no quarto. Tirou de um armário uma camisa velha, que
rasgou, usando os pedaços de tecido para embrulhar os castiçais de prata.
De resto, não dava mostras de pressa, nem de agitação; e, enquanto
embrulhava os castiçais do bispo, mordia um pedaço de pão escuro. Era
provável que fosse o pão da cadeia que ele pegara ao evadir-se.
Isso foi constatado pelas migalhas encontradas no chão, quando a
justiça, mais tarde, fez uma investigação.
Deram duas batidinhas na porta.
— Pode entrar — disse ele.
Era a irmã Simplice, pálida, com os olhos vermelhos, trazendo um
castiçal nas mãos trêmulas. As violências do destino têm de peculiar que,
por mais perfeitos ou indiferentes que sejamos, arrancam nossa natureza
humana do fundo das entranhas, forçando-a a mostra-se exteriormente. Em
meio às emoções daquele dia, a religiosa voltou a ser uma mulher. Ela
havia chorado e agora tremia.
Jean Valjean acabava de escrever umas linhas em um papel que
estendeu à religiosa, dizendo:
— Irmã, entregue isto ao senhor abade.
A religiosa viu que o papel estava desdobrado.
— Pode ler — ele disse.
Ela leu: “Peço ao senhor abade que tome conta de tudo o que estou
deixando aqui. Queira pagar as despesas de meu processo e o sepultamento
da mulher falecida hoje. O resto ficará para os pobres”.
A irmã tentou falar, mas mal pôde balbuciar alguns sons inarticulados.
No entanto, conseguiu dizer:
— Prefeito, o senhor não gostaria de ver pela última vez aquela pobre
infeliz?
— Não — disse ele —; estão atrás de mim, e se me prendessem no
quarto dela isso a perturbaria.
Mal terminou de dizer isso, ouviu-se um grande ruído na escada, um
tumulto de passos subindo, e a velha zeladora que falava o mais alto que
podia:
— Meu bom senhor, juro por Deus que ninguém entrou aqui, nem de
dia, nem de noite; eu não saí desta porta!
Um homem respondeu:
— Mas naquele quarto há luz.
Eles reconheceram a voz de Javert.
O quarto era disposto de modo que, ao abrir-se a porta, o canto direito
da parede ficava escondido. Jean Valjean apagou a vela e colocou-se
naquele canto. A irmã Simplice ficou de joelhos perto da mesa. A porta se
abriu; Javert entrou.
Ouvia-se o cochichar de vários homens e os protestos da zeladora no
corredor.
A religiosa nem levantou os olhos. Ela orava.
A vela que estava sobre a lareira clareava muito pouco.
Javert entreviu a irmã, e parou embaraçado.
Como se lembram, o importante para Javert, seu elemento, seu meio
respirável era a veneração a qualquer autoridade. Não era maleável, não
admitia objeções, nem restrições. Para ele, bem entendido, a autoridade
eclesiástica era a primeira de todas; era religioso, superficial e correto a
respeito desse ponto, como de todos os demais. A seus olhos, um padre era
um espírito que não se engana, e uma religiosa, uma criatura sem pecados;
almas fechadas para este mundo, com uma só porta, que só se abria para
dar passagem à verdade.
Vendo a irmã, seu primeiro ímpeto foi o de retirar-se.
No entanto, havia outro dever que o segurava, empurrando-o
imperiosamente em sentido inverso. Seu segundo ímpeto foi o de ficar, e
fazer ao menos uma pergunta. Ali estava a irmã Simplice, que nunca em
sua vida havia mentido. Javert bem o sabia, e a venerava particularmente
por isso.
— Irmã — disse ele —, está sozinha neste quarto?
Este momento foi terrível para a pobre zeladora, que se sentia
desfalecer.
A irmã, levantando os olhos, respondeu:
— Estou.
— Sendo assim — continuou Javert —, desculpe minha insistência,
mas é meu dever, não viu esta noite uma pessoa, um homem que se
evadiu? Nós o procuramos, o tal que se chama Jean Valjean, não o viu?
— Não — respondeu a irmã.
Ela mentiu. Mentiu duas vezes em seguida, sem hesitação,
rapidamente, como quem se dedica.
— Então desculpe — disse Javert, e retirou-se, saudando-a
profundamente.
Ó santa mulher, já não és deste mundo há muitos anos, foste na luz
celeste unir-te às virgens tuas irmãs e aos anjos teus irmãos; que essa
mentira seja a ti recompensada no paraíso!
A resposta da irmã foi tão decisiva para Javert que ele nem sequer
notou a singularidade daquela vela que acabava de ser apagada, e ainda
fumegava sobre a mesa.
Uma hora depois, um homem afastava-se rapidamente de Montreuil-
sur-Mer, caminhando por entre as árvores e a neblina da noite, na direção
de Paris. Esse homem era Jean Valjean. Ficou provado, pelo testemunho de
dois ou três carroceiros que o encontraram, que carregava um embrulho e
vestia uma blusa. De onde lhe viera aquela blusa? Nunca se soube. No
entanto, dias antes, um velho operário havia morrido na enfermaria da
fábrica, deixando apenas sua blusa. Talvez fosse a mesma.
Uma última palavra a respeito de Fantine.
Todos nós temos uma mãe comum, a terra. Fantine foi restituída a essa
mãe.
O abade julgou que procedia com acerto, e talvez tenha procedido,
reservando para os pobres a maior quantia possível do dinheiro que Jean
Valjean deixara. Afinal das contas, de quem se tratava? De um forçado e
de uma prostituta. Por isso simplificou o sepultamento de Fantine ao
estritamente necessário, à chamada vala comum.
Ela então foi enterrada no canto gratuito do cemitério, que pertence a
todos e a ninguém, e onde os pobres se perdem para sempre. Felizmente,
Deus sabe onde encontrar as almas. Fantine foi colocada na escuridão,
entre os primeiros ossos que apareceram; sofreu a promiscuidade das
cinzas. Seu túmulo assemelhou-se a seu leito.
SEGUNDA PARTE
Cosette
LIVRO I
WATERLOO

I. O QUE SE ENCONTRA VINDO DE NIVELLES


ANO PASSADO (1861), em uma bela manhã de maio, um viajante, o
mesmo que conta esta história, dirigia-se de Nivelles a La Hulpe. Andava
a pé. Seguia, entre duas fileiras de árvores, por uma larga estrada calçada
que ondulava pelas colinas enfileiradas, subindo e descendo como uma
enorme onda. Já havia passado por Lillois e Bois-Seigneur–Isaac,
avistando, a oeste, o campanário de ardósia de Braine-l’Alleud, que tem a
forma de um vaso virado para baixo. Também deixava para trás um
bosque, em um local elevado, e, na curva de um atalho, onde se via uma
espécie de cavalete carcomido sustentando a inscrição: “Antiga barreira
número 4”, uma taverna com o seguinte letreiro na fachada: Aos Quatro
Ventos. Échabeau, café particular.
Meio quarto de légua adiante dessa taverna, chegou ao fundo de um
pequeno vale, onde passa um riacho sob o arco que se forma no aterro da
estrada. O arvoredo, pouco espesso mas muito verde, que cobre um dos
lados do vale, se estende, do outro lado, em pradarias, continuando em
graciosa desordem até Braine-l’Alleud.
Na beira da estrada, do lado direito, havia uma estalagem, uma
charrete de quatro rodas em frente à porta, um grande feixe de caules de
lúpulo, uma charrua, uma pilha de galhos secos ao lado de uma sebe, um
pouco de cal fumegando dentro de uma cova quadrada, e uma escada
encostada a um velho galpão, fechado com tapumes de palha. Uma jovem
revolvia a terra em um campo onde um grande cartaz amarelo,
provavelmente anunciando um espetáculo de ambulantes de alguma
quermesse, balançava ao vento. No canto da estalagem, ao lado de um
charco onde nadavam alguns patos, havia um caminho mal calçado que se
embrenhava na vegetação. Foi ali que o viajante entrou.
Após uma centena de passos, após ter passado ao longo de um muro do
século XV coberto por uma carreira de tijolos contrapostos, viu-se diante
de uma grande porta de pedra, construída em arco com impostas retilíneas,
no grave estilo de Luís XIV, e ornada com dois medalhões lisos. Uma
severa fachada dominava essa porta; uma parede perpendicular à fachada
quase a tocava, flanqueando-a em inesperado ângulo reto. No prado que se
estendia em frente à porta, jaziam três grades, por entre as quais cresciam
misturadas todas as flores de maio. A porta estava fechada por dois
batentes decrépitos, ornados por um velho martelo enferrujado.
O sol estava lindo; os ramos das árvores tinham o doce sussurro de
maio, que mais parece vir dos ninhos que do vento. Um passarinho,
provavelmente apaixonado, cantava perdidamente, pousado em uma
grande árvore.
O viajante curvou-se e pôs-se a examinar uma escavação circular
bastante grande, semelhante ao alvéolo de uma esfera, feita em uma pedra
do lado direito da porta. Neste momento, a porta foi aberta e uma
camponesa saiu.
Ela viu o viajante e reparou no que ele examinava.
— Foi uma bala francesa que fez isso — ela lhe disse.
Depois acrescentou:
— O que o senhor vê ali, mais no alto, perto daquele prego, é o buraco
da bala de uma grande espingarda, que não chegou a atravessar a madeira.
— Como se chama este lugar? — perguntou o viajante.
— Hougomont — disse a camponesa.
O viajante endireitou-se e deu alguns passos para olhar por cima das
sebes. Avistou no horizonte, por entre as árvores, uma espécie de
montículo e, sobre ele, algo que, de longe, se assemelhava a um leão.
Estava no campo de batalha de Waterloo.
II. HOUGOMONT
Hougomont, este foi um lugar fúnebre, o primeiro obstáculo, a
primeira resistência que encontrou, em Waterloo, este grande lenhador da
Europa chamado Napoleão; foi o primeiro nó sob o golpe de seu machado.
Era um castelo, hoje não é mais que uma fazenda. Hougomont, para o
antiquário, é Hugomons. Essa mansão foi construída por Hugo, Senhor de
Somerel, o mesmo que dotou a Abadia de Villers com a sexta capelania.
O viajante abriu a porta, empurrou uma velha carruagem sob o
alpendre e entrou no pátio.
A primeira coisa que lhe chamou a atenção ali foi uma porta do século
XVI simulando uma arcada no meio das ruínas que a rodeavam. O aspecto
monumental muitas vezes nasce das ruínas. Junto da arcada, abria-se na
parede outra porta, com fechos do tempo de Henrique IV, pela qual se
avistavam as árvores de um pomar. Ao lado dessa porta, uma cova para
curtir estrume, enxadas e pás, algumas charretes, um poço com sua calha
de pedra e seu torniquete de ferro, um potro aos saltos, um peru ostentando
a cauda, uma capela com um pequeno campanário, uma pereira florida
espalhando-se sobre a parede da capela; esse era o palácio cuja conquista
foi um dos sonhos de Napoleão. Se tivesse conseguido apoderar-se dele,
esse pedaço de terra talvez lhe desse o mundo. Ali, algumas galinhas
espalham poeira com seus bicos. Ouve-se um rosnar: é um grande cão
arreganhando os dentes, e substituindo os ingleses.
Ali, os ingleses foram admiráveis. As quatro companhias de guarda de
Cooke resistiram por sete horas a um encarniçado exército.
Hougomont, visto no mapa, em plano geométrico, incluindo
construções e cercas, parece uma espécie de retângulo irregular, como se
tivesse um dos ângulos entalhado. É nesse ângulo que fica a porta
meridional, protegida bem de perto por um muro. Hougomont tem duas
portas: a meridional, do castelo, e a setentrional, da fazenda. Napoleão
enviou seu irmão Jérôme contra Hougomont; as divisões de Guilleminot,
Foy e Bachelu ali se bateram; quase todo o corpo de Reille foi ali
empregado e derrotado; as balas de Kellermann esgotaram-se sobre essa
heroica superfície. A brigada de Bauduin não foi suficiente para forçar
Hougomont pelo lado norte; e a brigada de Soye só conseguiu destruir uma
pequena parte dele ao sul, mas não tomá-lo.
As construções da fazenda limitam o palácio ao sul. Um pedaço da
porta norte, quebrada pelos franceses, pende do muro. São quatro tábuas
pregadas sobre duas travessas, onde se distinguem os estragos do ataque.
Essa porta, arrombada pelos franceses, e na qual se colocou um
remendo para tampar o pedaço preso ao muro, abre-se para o fundo do
terreno; está cortada como um quadrado no muro, feita de pedra embaixo e
de tijolos em cima, e fecha a fazenda pelo lado norte. É um simples portão
para passagem de carroças, igual aos que existem em todas as fazendas,
com dois largos batentes feitos de tábuas rústicas; do outro lado, estão as
pradarias. A disputa por essa entrada foi acirrada; por muito tempo, foram
vistas nos batentes marcas de mãos ensanguentadas. Ali foi morto
Bauduin.
A tempestade do combate ainda permanece nesse local; ainda é visível
o seu horror; a desordem da luta ali se petrificou; aquilo vive e morre,
como se fosse ontem. Agonizam as paredes, caem as pedras, gritam as
brechas; os buracos são feridas; as árvores, inclinadas e trêmulas, parecem
esforçar-se para fugir.
Em 1815, esse terreno tinha mais construções do que hoje. As que
depois foram derrubadas formavam ressaltos, ângulos e cotovelos.
Os ingleses ali se entrincheiraram; os franceses ali penetraram, mas
não puderam manter-se. Ao lado da capela, uma ala do castelo, único
fragmento que resta da mansão de Hougomont, se ergue em ruínas, pode-
se dizer que sem as entranhas. O castelo serviu de torre, a capela de
abrigo. Ali os extermínios foram mútuos. Os franceses, alvejados por
todos os lados, por detrás das muralhas, do alto dos celeiros, do fundo das
adegas, por todas as janelas e respiradouros, por todas as fendas das
pedras, trouxeram feixes de lenha e tocaram fogo às paredes e aos homens;
à metralha, replicaram com o incêndio.
Na ala arruinada entreveem-se, pelas grades de ferro das janelas, os
quartos desmoronados de uma construção feita de tijolos. As guardas
inglesas ficavam emboscadas nesses quartos; a espiral da escada, fendida
do chão ao telhado, parece o interior de uma concha quebrada.
A escada tem dois lances; os ingleses refugiaram-se nos degraus
superiores, cortando os inferiores. Eram grandes lajes de pedra azul
formando um amontoado em meio às urtigas. Uma dezena de degraus
permanece ainda presa à parede; sobre o primeiro deles, foi entalhada a
imagem de um tridente. Esses degraus inacessíveis estão sólidos em seus
lugares; o resto parece uma arcada sem dentes. Há ali duas velhas árvores,
uma delas morta; a outra, ferida no pé, reverdece em abril. Desde 1815 se
pôs a crescer por entre a escada.
Houve massacres dentro da capela. Seu interior, de volta à calma, é
estranho. Desde a matança, nunca mais se rezou missa ali. No entanto, o
altar ainda está lá, um grosseiro altar de madeira encostado a um fundo de
pedra bruta. Quatro paredes caiadas, uma porta de frente para o altar, duas
janelas pequenas em arco, um grande crucifixo de madeira acima da porta,
acima do crucifixo, um respiradouro quadrado, tapado com um feixe de
feno, em um canto do chão, uma vidraça velha toda quebrada, assim está
essa capela. Perto do altar, está colocada uma imagem em madeira de
Sant’Ana, do século XV; a cabeça do menino Jesus foi arrancada por uma
bala. Os franceses, por um momento senhores da capela, mas logo
desalojados, a incendiaram. As chamas tomaram conta dela, convertendo-a
em fornalha; a porta foi queimada, o assoalho foi queimado, o Cristo de
madeira, não. O fogo consumiu-lhe os pés, dos quais apenas se veem os
cotos enegrecidos, depois parou. Um milagre, no dizer da gente do lugar. O
menino Jesus decapitado não foi tão feliz como o Cristo.
As paredes estão cobertas de inscrições. Perto dos pés do Cristo, lê-se
este nome: Henquinez. Depois estes outros: Conde de Rio Maior; Marques
y Marquesa de Almagro (Habana). Há nomes franceses com pontos de
exclamação, indicando cólera. As paredes foram novamente pintadas em
1849. Ali, as nações se insultavam.
À porta dessa capela foi encontrado um cadáver que ainda segurava um
machado na mão. Era o cadáver do segundo-tenente Legros.
Saindo-se da capela, vê-se um poço à esquerda. São dois os poços
naquele pátio. Perguntam: por que não tem balde nem roldana naquele ali?
Porque já não se tira água dele. E por que não se tira água dele? Porque
está cheio de esqueletos.
O último que tirou água desse poço chamava-se Guillaume van
Kylsom, um camponês morador de Hougomont, que era jardineiro. No dia
18 de junho de 1815, a família dele fugiu e foi se esconder nos bosques.
A floresta que se estende em volta da abadia de Villers abrigou durante
vários dias e várias noites todas essas infelizes pessoas dispersas. Ainda
hoje, certos vestígios reconhecíveis, como troncos de árvores queimados,
marcam o local desses pobres acampamentos dominados pelo medo ao
fundo das matas.
Guillaume van Kylsom ficou em Hougomont “para proteger o castelo”
e se escondeu em um porão; os ingleses o encontraram, arrancaram-no de
seu esconderijo, e à força de golpes de sabre obrigaram esse homem
apavorado a servi-los.
Tinham sede, Guillaume dava-lhes de beber. Era desse poço que ele
tirava a água. Muitos beberam ali seu último gole. Esse poço, onde
beberam tantos mortos, também devia morrer.
Após o combate, houve pressa em sepultar os cadáveres. A morte tem
uma maneira própria de incomodar a vitória, ela faz a glória vir seguida
pela peste. O tifo é um anexo do triunfo. O poço era profundo, fizeram
dele um sepulcro. Jogaram nele trezentos mortos. Talvez com demasiada
pressa. Estariam todos realmente mortos? Diz a lenda que não. Parece que,
na noite seguinte ao sepultamento, foram ouvidas, saindo do poço, vozes
fracas pedindo ajuda.
O poço fica isolado no meio do terreno, com três lados rodeados por
três paredes de pedra e tijolo, dobradas como as folhas de um biombo,
simulando uma torre quadrada. O quarto lado é aberto, e era por ali que se
tirava a água. A parede do fundo tem como que uma claraboia informe, e
talvez seja um buraco de granada. Do teto dessa torre só restam as traves.
A ferragem de sustentação da parede desenha uma cruz. Os olhos de quem
se inclina perdem-se em um profundo cilindro de tijolos, cheio de trevas.
A base das paredes, como tudo em volta do poço, sumiu em meio às
urtigas.
Esse poço não tem a grande pedra azul que serve de proteção a todos
os poços da Bélgica; ela foi substituída por uma travessa na qual se
apoiam cinco ou seis pedaços de madeira nodosos e encurvados,
semelhantes a grandes ossadas. Já não há nem balde, nem corrente, nem
roldana, mas ainda existe a cuba de pedra que servia de desaguadouro. A
água da chuva se acumula ali, e, de tempos em tempos, algum pássaro da
floresta vem beber e torna a voar.
Há ainda uma casa habitada no meio dessas ruínas, é a casa da fazenda,
cuja porta dá para o pátio. Junto a uma bela fechadura gótica, há um
puxador de ferro em forma de trevo, colocado de través. No momento em
que o tenente hanoveriano Wilda colocava a mão nesse puxador para se
refugiar dentro da casa, um sapador francês decepou-lhe a mão com um
golpe de machado.
A família que ocupa a casa tem como avô o antigo jardineiro Van
Kylsom, que morreu há muito tempo. Uma mulher de cabelos grisalhos
nos disse: “Eu estava lá. Tinha três anos. Minha irmã, que era mais velha,
chorava de medo. Fomos levados para o bosque, eu estava nos braços de
minha mãe. Colávamos os ouvidos no chão para escutar. Eu imitava o
canhão e fazia: bum! bum!”
Uma porta do palácio, à esquerda, dá para o pomar, como já dissemos.
E esse pomar é terrível.
Está dividido em três partes, poderíamos dizer, em três atos. A
primeira é um jardim, a segunda é o pomar, a terceira é um bosque. Essas
três partes têm uma cerca comum, pelo lado da entrada dos edifícios do
castelo e da fazenda; à esquerda, uma sebe, à direita, uma parede, ao
fundo, um muro. O muro da direita é de tijolo, o do fundo, de pedra.
Primeiro entra-se no jardim, que fica situado em um plano inferior,
plantado com groselheiras e atulhado de vegetação selvagem; fecha-o um
terraço monumental de pedra, com balaústres reforçados.
Era um jardim senhorial, no primitivo estilo francês que precedeu
Lenôtre, hoje ruínas e mato. As pilastras terminam em globos que parecem
balas de pedra. Contam-se ainda quarenta e três balaústres em suas bases;
os outros estão caídos no mato. Quase todos estão marcados pela fuzilaria.
Um balaústre partido foi colocado no parapeito, como uma perna
quebrada.
Foi nesse jardim, em um plano mais baixo que o pomar, que seis
atiradores do primeiro regimento de infantaria ligeira, tendo ali penetrado,
e não podendo sair, apanhados e encurralados como ursos em suas covas,
travaram combate com duas companhias hanoverianas, uma das quais
armada com carabinas. Os hanoverianos, colocados em volta dos
balaústres, atiravam de cima. Os atiradores, respondendo de baixo, seis
contra duzentos, intrépidos, tendo como abrigo apenas as groselheiras,
levaram um quarto de hora para morrer.
Subindo-se alguns degraus, passa-se do jardim ao pomar propriamente
dito. Ali, no espaço daquelas poucas toesas1 quadradas, mil e quinhentos
homens caíram em menos de uma hora. O muro parece estar prestes a
recomeçar o combate. Ali estão ainda as trinta e oito seteiras abertas pelos
ingleses em alturas irregulares. Em frente à décima sexta existem dois
túmulos ingleses de granito. Só há seteiras no muro sul; os principais
ataques vinham dali. Esse muro fica exteriormente oculto por uma cerca
viva; os franceses chegaram pensando que só teriam trabalho em transpô-
la, mas então encontraram o muro, obstáculo e emboscada, as guardas
inglesas por trás, as trinta e oito seteiras abrindo fogo ao mesmo tempo,
uma tormenta de balas e metralha; a brigada de Soye acabava ali. Waterloo
começou assim.
O pomar, no entanto, foi tomado. Não tendo escadas, os franceses
escalaram agarrando-se com as unhas. Bateram-se corpo a corpo com os
inimigos sob aquelas árvores. Toda a relva ficou banhada de sangue. Um
batalhão de Nassau, setecentos homens, foi ali fulminado. Por fora, o muro
contra o qual foram encurraladas as duas baterias de Kellermann está todo
esburacado pelas balas.
Esse pomar é sensível ao mês de maio como qualquer outro: tem seus
botões-de-ouro e suas margaridas, a erva é crescida, cavalos usados na
lavoura ali vão pastar; varais que atravessam de uma árvore a outra, onde a
roupa seca, obrigam quem passa a abaixar a cabeça; a cada passo, os pés
afundam nos buracos de toupeiras. No meio da erva, observa-se um tronco
arrancado, mas ainda verde; foi onde se encostou o major Blackmann
antes de expirar. Sob uma grande árvore próxima caiu o general alemão
Duplat, oriundo de uma família francesa refugiada na ocasião da
revogação do Edito de Nantes. Ao lado, pende uma velha macieira doente,
enfaixada com uma bandagem de palha e barro. Quase todas as macieiras
caem de velhas. Não existe uma só delas que não tenha levado uma bala.
Nesse pomar, abundam os esqueletos de árvores mortas. Os corvos voam
pelos galhos; ao fundo, há um bosque cheio de violetas.
Bauduin morto, Foy ferido, o incêndio, o massacre, a matança, um rio
feito de sangue inglês, de sangue alemão e de sangue francês,
furiosamente misturados, um poço atulhado de cadáveres, o regimento de
Nassau e o de Brunswique destruídos, Duplat morto, Blackmann morto, as
guardas inglesas mutiladas, vinte batalhões franceses, dos quarenta do
corpo de Reille, dizimados, três mil homens, apenas na mansão de
Hougomont, esfaqueados, mutilados, degolados, fuzilados, queimados; e
tudo para que, hoje, um camponês diga a um viajante: Senhor, me dê três
francos; se o senhor quiser, eu lhe conto como foi esta história de
Waterloo!

III. O DIA 18 DE JUNHO DE 1815


Retrocedamos, este é um dos direitos do narrador, e coloquemo-nos no
ano de 1815, um pouco antes mesmo da época em que começa a ação
contada na primeira parte deste livro.
Se na noite de 17 para 18 de junho de 1815 não tivesse chovido, o
futuro da Europa teria sido diferente. Algumas gotas de água a mais ou a
menos fizeram Napoleão se curvar. Para que Waterloo fosse o fim de
Austerlitz, bastou à Providência um pouco de chuva; uma nuvem
atravessando o céu, em sentido contrário ao da estação, foi o suficiente
para o desabamento de um mundo.
A batalha de Waterloo não pôde começar senão às onze horas e meia, o
que deu tempo à chegada de Blucher. Por quê? Porque a terra estava
molhada.
Foi preciso esperar que o terreno secasse um pouco para a artilharia
poder manobrar.
Napoleão era oficial de artilharia e ressentia-se disso. No íntimo desse
prodigioso capitão, havia um homem que, no relatório ao Diretório sobre
Aboukir, dizia: Uma de nossas balas matou seis homens. Todos os seus
planos de batalha eram feitos para o projétil. Fazer a artilharia convergir
para um determinado ponto, tal era sua chave de vitória. Tratava a
estratégia do general inimigo como uma cidadela, e a atacava
violentamente. Arruinava o ponto fraco com a artilharia, atava e desatava
as batalhas com o canhão. Seu gênio tinha algo que vinha dos tiros.
Derrotar batalhões, pulverizar os regimentos, romper as linhas, esmagar e
dispersar as massas, para ele tudo era bater, bater, bater sem cessar, e
confiava essa tarefa às balas. Método temível que, juntamente com seu
gênio, tornou invencível por quinze anos esse sombrio atleta do pugilato
de guerra.
No dia 18 de junho de 1815, ele contava com a artilharia ainda mais
por ter vantagem em quantidade: Wellington tinha só cento e cinquenta e
nove bocas de fogo, Napoleão duzentas e quarenta.
Supondo que a terra estivesse enxuta, que a artilharia pudesse girar à
vontade, a ação teria começado às seis horas da manhã. A batalha estaria
concluída e ganha às duas horas, três horas antes da peripécia prussiana.
Que parte da culpa na perda desta batalha cabe a Napoleão? O
naufrágio deve ser imputável ao piloto?
O evidente declínio físico de Napoleão estaria ainda prejudicado,
naquela ocasião, por um certo declínio interior?
Os vinte anos de guerra teriam desgastado a lâmina como desgastaram
a bainha, a alma como o corpo? Porventura o cansaço do veterano não se
fazia sentir no capitão? Em uma palavra: será que esse gênio, como muitos
historiadores acreditaram, começava a eclipsar-se? Entrava em frenesi
para disfarçar, para ele mesmo, seu enfraquecimento? Começava a oscilar
sob o erro de um sopro de aventura? Tornava-se, defeito grave em um
general, inconsciente do perigo? Nesta classe dos chamados grandes
homens, que são vistos como gigantes da ação, haveria uma idade em que
a miopia acomete o gênio? A velhice não alcança os gênios do ideal; para
os Dantes e Michelangelos, envelhecer é crescer; para os Aníbals e
Bonapartes será minguar? Napoleão teria perdido o senso direto da
vitória? Estaria na condição de não mais reconhecer o obstáculo, de não
mais adivinhar a armadilha, de não mais discernir a beira escorregadia do
abismo? Estaria lhe faltando o faro das catástrofes? Ele, que antes
conhecia todos os caminhos do triunfo e que do alto de seu carro
resplandecente os indicava com um gesto soberano, teria agora esta
sinistra perturbação de conduzir aos precipícios suas tumultuosas parelhas
de legiões? Estaria, aos quarenta e seis anos, acometido de uma loucura
suprema? Esse condutor titânico do destino já não seria apenas um grande
imprudente?
Não pensamos assim.
Seu plano de batalha, segundo a opinião geral, era uma obra-prima. Ir
direito ao centro da linha aliada, abrir passagem por entre o inimigo,
dividi-lo em dois, empurrar a metade britânica para Hal e a metade
prussiana para Tongres, fazer de Wellington e de Blucher duas coisas
insignificantes, apossar-se do Mont-Saint-Jean, tomar Bruxelas, atirar o
alemão no Reno e o inglês no mar. Tudo isso, para Napoleão, estava
naquela batalha. Veríamos em seguida.
Nem é preciso dizer que não é nosso intento contar aqui a história de
Waterloo; uma das cenas que dá origem ao drama que narramos se liga a
essa batalha, mas essa história não é nosso tema; aliás, essa história já foi
escrita, e magistralmente escrita, sob um ponto de vista, por Napoleão, e
sob outro, por uma plêiade de historiadores.2 Quanto a nós, deixamos que
os historiadores se entendam; somos apenas uma testemunha à distância,
um viajante que passa pela planície, um investigador curvado sobre essa
terra adubada com carne humana, e que talvez tome simples aparências
por realidade; não temos o direito de nos opor, em nome da ciência, a um
conjunto de fatos nos quais certamente existe alguma miragem, se não
temos nem a prática militar, nem a competência estratégica que autorizam
um sistema; segundo nossa opinião, uma série de acasos dominou os dois
capitães de Waterloo; e quando se trata do destino, esse misterioso
acusado, julgamos como o povo, esse juiz ingênuo.

IV. A
Quem quiser ter uma ideia clara da batalha de Waterloo só precisa
imaginar um A maiúsculo deitado no chão. A perna esquerda do A é a
estrada de Nivelles, a perna direita é a estrada de Genappe e a travessa do
A o caminho de Ohain a Braine-l’Alleud. O vértice do A é Mont–Saint-
Jean, onde está Wellington; a extremidade inferior esquerda, Hougomont,
onde está Reille com Jérôme Bonaparte; a extremidade inferior direita é
Belle-Alliance, onde está Napoleão. Um pouco abaixo do ponto em que a
travessa do A encontra e corta a perna direita, fica Haie-Sainte. O meio
dessa travessa é o ponto exato onde foi dita a palavra final da batalha. Ali
foi colocado o leão, símbolo involuntário do supremo heroísmo da guarda
imperial.
O triângulo compreendido entre o vértice, as duas pernas e a travessa
do A é o planalto de Mont-Saint-Jean. A batalha toda se resumiu à disputa
por esse planalto.
As alas dos dois exércitos estendem-se à direita e à esquerda das duas
estradas, a de Genappe e a de Nivelles, Erlon fazendo frente a Picton e
Reille a Hill.
Por trás da extremidade do A, atrás do planalto de Mont-Saint-Jean,
fica a floresta de Soignes.
Quanto à planície em si, deve-se imaginar um vasto terreno ondulante,
cada dobra dominando a dobra seguinte, e todas as ondulações subindo
para o Mont-Saint-Jean, até terminarem na floresta.
Dois exércitos inimigos em um campo de batalha são como dois
lutadores em um corpo a corpo; cada qual procura derrubar o outro,
agarrando-se àquilo que encontra; um arbusto é um ponto de apoio; um
canto de muro, uma proteção; por falta de uma casinhola onde se encostar,
um regimento pode ceder; um rebaixe na planície, um movimento do
terreno, um atalho transversal em boa hora, um bosque, um barranco,
podem segurar o calcanhar deste colosso chamado exército, impedindo-o
de recuar. Quem sair de campo é vencido. Daí a necessidade que tem o
chefe responsável de examinar o menor grupo de árvores, o menor relevo.
Os dois generais tinham estudado com toda a atenção a planície de
Mont-Saint-Jean, hoje chamada planície de Waterloo. Desde o ano
anterior, Wellington a examinava, com previdente sagacidade, para o caso
de uma grande batalha. Em 18 de junho, neste terreno e para aquele duelo,
Wellington estava do melhor lado, Napoleão do pior. O exército inglês
estava no alto, o exército francês embaixo.
Esboçar aqui o aspecto de Napoleão a cavalo, luneta em punho, nos
altos de Rossomme, na madrugada de 18 de junho de 1815, seria uma
coisa quase supérflua. Antes de ser mostrado, todos já o viram. Esse perfil
sereno, coberto com o pequeno chapéu da Escola de Brienne, de uniforme
verde, com o forro branco escondendo as medalhas, o sobretudo
escondendo as dragonas, a dobra do cordão vermelho sobre o colete, o
cavalo branco com sua capa de veludo púrpura tendo nos cantos letras N
coroadas e águias, botas de montar sobre meias de seda, esporas de prata,
espada de Marengo, toda essa figura de último César, de velho militar com
modos de soldado, paira nas imaginações, aclamada por uns, severamente
vista por outros.
Essa figura permaneceu por muito tempo imersa em luz; isso provinha
de certa obscuridade lendária que a maior parte dos heróis emanam e que
esconde, por mais ou menos tempo, a verdade; hoje, porém, a luz e a
história se fazem.
Esta luz, a história, é impiedosa; o que ela tem de estranho e divino é
que, por mais luminosa que seja, e precisamente por isso, com frequência,
faz sombra onde se via claridade; do mesmo homem, ela faz dois
fantasmas diferentes, e um ataca o outro, as trevas do déspota lutam com o
resplendor do capitão, mas ela faz justiça a ambos. Daí uma medida mais
exata para a definitiva apreciação dos povos. Babilônia violada, diminui
Alexandre; Roma acorrentada, diminui César; Jerusalém destruída,
diminui Tito. A tirania segue o tirano. Desgraçado o homem que deixa
atrás de si a sombra de sua forma.

V. O QUID OBSCURUM DAS BATALHAS


Todo o mundo conhece a primeira fase dessa batalha, seu começo
atribulado, incerto, vacilante, ameaçador para os dois exércitos, porém
ainda mais para os ingleses do que para os franceses.
Chovera a noite inteira; a terra estava impregnada de água, que se
conservava encharcando as cavidades da planície como se estas fossem
tinas; em alguns pontos, as rodas dos carros afundavam até o eixo e as
silhas-mestras das parelhas gotejavam lama líquida; se o trigo e o centeio,
derrubados e calcados por aquela barafunda de carretas, não tivessem
formado como que um estrado de palha, sobre o qual se moviam as rodas,
qualquer movimento, especialmente pelos vales que ficam para os lados
de Papelotte, teria sido impossível.
A ação começou tarde; Napoleão, como já dissemos, costumava
segurar toda a artilharia nas mãos, como uma pistola, fazendo pontaria ora
em um, ora em outro ponto da batalha, e quis esperar que as baterias
atreladas pudessem rodar e galopar livremente; mas para isso era preciso
que o sol aparecesse e secasse a terra. Mas o sol não apareceu. Já não era o
encontro de Austerlitz. Quando se disparou o primeiro tiro de canhão, o
general inglês Colville olhou para o relógio e constatou que eram onze
horas e trinta e cinco minutos.
A ação foi travada com fúria, talvez com mais fúria do que o
imperador quisesse, pela ala esquerda francesa sobre Hougomont. Ao
mesmo tempo, Napoleão atacou o centro, precipitando a brigada de Quiot
sobre Haie-Sainte, e Ney moveu a ala direita contra a ala esquerda inglesa,
que se apoiava em Papelotte.
O ataque a Hougomont tinha alguma coisa de simulado; o plano era
atrair Wellington para lá, fazendo-o ir para a esquerda. Esse plano teria
tido êxito se as quatro companhias da guarda inglesa e os bravos belgas da
divisão de Perponcher não tivessem mantido solidamente sua posição, e se
Wellington, em vez de formar em coluna cerrada, tivesse se limitado a
enviar um reforço de outras quatro companhias de guarda e um batalhão
de Brunswick.
O ataque da ala direita francesa a Papelotte era minucioso; desfazer a
ala esquerda inglesa, cortar a estrada de Bruxelas, barrar a passagem aos
prussianos que pudessem sobrevir, forçar Mont-Saint-Jean, empurrar
Wellington para Hougomont, daí a Braine-l’Alleud e daí a Hal, nada mais
claro. Exceto alguns incidentes, esse plano foi bem-sucedido. Papelotte foi
tomada; Haie-Sainte assaltada.
Um detalhe a notar: havia na infantaria inglesa, particularmente na
brigada de Kempt, um grande número de recrutas. Esses jovens soldados, à
frente de nossa temível infantaria, foram valentes; apesar da
inexperiência, saíram-se intrepidamente da situação; fizeram um excelente
serviço, principalmente como atiradores; o soldado atirador, de certo
modo entregue a si mesmo, torna-se, por assim dizer, general de si
mesmo. Esses recrutas mostraram um pouco da inventividade e da fúria
francesas. O entusiasmo dessa infantaria noviça desagradou a Wellington.
Após a tomada de Haie-Sainte, a batalha começou a vacilar.
Naquele dia, entre meio-dia e quatro horas, houve um intervalo
obscuro; o meio dessa batalha é quase indistinto e participa do sombrio da
refrega. O crepúsculo chegou; entreviam-se vastas flutuações em meio à
bruma, uma miragem vertiginosa, o trem de guerra de então, quase
desconhecido hoje, com seus chapéus emplumados, bolsas laterais
pendentes, correias cruzadas, cartucheiras de granada, casacões, botas
vermelhas de mil dobras, pesados gorros enfeitados com cordões, a
infantaria quase negra de Brunswick mesclada à infantaria escarlate da
Inglaterra, soldados ingleses com dragonas feitas de grandes debruns
brancos circulares, a cavalaria ligeira hanoveriana com seus capacetes de
couro oblongos, envoltos em tiras de cobre e penachos de crina vermelha;
os escoceses de joelhos nus e saiotes xadrez; as polainas brancas dos
nossos granadeiros; quadros e não linhas estratégicas; o que seria
importante para Salvador Rosa, mas não para Gribeauval.3
Um pouco de tempestade sempre se mistura a uma batalha. Quid
obscurum, quid divinun [Algo de obscuro, algo de divino]. Cada
historiador traça as linhas que lhe agradam dessa confusão. Qualquer que
seja a combinação dos generais, o choque das massas armadas produz
refluxos incalculáveis; na ação, os dois planos, dos dois chefes, interferem
um no outro e deformam-se um ao outro. Determinado ponto do campo de
batalha devora mais combatentes que outro, como um solo mais ou menos
esponjoso que suga, com maior ou menor rapidez, a água que nele é
jogada. Fica-se obrigado a colocar ali mais soldados do que seria
desejável. A linha de batalha flutua e serpenteia como um fio, sulcos de
sangue escorrem ilogicamente, as frentes dos exércitos ondulam, os
regimentos formam cabos ou golfos ao entrar ou sair, todos esses escolhos
agitam-se continuamente, uns diante dos outros; onde estava a infantaria,
chega a artilharia, onde estava a artilharia, acorre a cavalaria; os batalhões
são como fumaça. Ali havia alguma coisa, procurem, desapareceu; os
clarões se movem; dobras escuras avançam e recuam; uma espécie de
vento sepulcral impele, repele, infla e dispersa essas trágicas multidões.
O que é um combate? Uma oscilação. A imobilidade de um plano
matemático exprime um minuto e não um dia. Para pintar uma batalha,
deve haver poderosos pintores com o caos em seus pincéis; melhor
Rembrandt que Vandermeulen. Vandermeulen, exato ao meio-dia, mente
às três da tarde. A geometria engana; só o furacão é verdadeiro. É o que dá
a Folard direito de contradizer Polybe.4 Acrescentemos que sempre existe
um momento em que a batalha degenera em combate, particularizando-se,
espalhando-se em inúmeras outras feitas de detalhes que, para nos
servirmos da expressão do próprio Napoleão, “mais pertencem à biografia
dos regimentos que à história do exército”. Nesse caso, o historiador tem o
direito evidente de resumir; ele não pode apanhar senão os contornos
principais da luta, e não é dado a nenhum narrador, por mais consciencioso
que seja, fixar, de maneira alguma, a forma desta horrível nuvem chamada
batalha.
O que é verdadeiro a respeito dos grandes choques armados é
particularmente aplicável a Waterloo.
No entanto, à tarde, em determinado momento, a batalha se definiu.

VI. QUATRO HORAS DA TARDE


Por volta das quatro horas, a situação do exército inglês era grave. O
Príncipe de Orange comandava o centro, Hill a ala direita, Picton a ala
esquerda. O Príncipe de Orange, desorientado e intrépido, gritava aos
holandeses-belgas: Nassau! Brunswick! Recuar jamais! Hill, enfraquecido,
vinha encostar-se em Wellington, Picton estava morto. No mesmo
momento em que os ingleses tomavam dos franceses a bandeira do 105º
regimento de linha, os franceses matavam o general Picton com uma bala
na cabeça. Nessa batalha, Wellington tinha dois pontos de apoio,
Hougomont e Haie-Sainte; Hougomont resistia ainda, mas estava em
chamas; Haie-Sainte estava tomada. Do batalhão alemão que a defendia,
sobreviveram apenas quarenta e dois homens; à exceção de cinco oficiais,
todos os outros haviam sido mortos ou feitos prisioneiros; três mil
combatentes haviam sido massacrados naquela fazenda. Um sargento das
guardas inglesas, primeiro boxeur da Inglaterra, reputado invulnerável por
seus companheiros, foi morto por um pequeno tambor francês. Baring
estava morto, Alten esfaqueado. Várias bandeiras estavam perdidas, uma
das quais pertencia à divisão de Alten e outra ao batalhão de Lunebourg,
conduzida por um príncipe da família de Deux-Ponts. Os escoceses já não
existiam; os fortes dragões de Ponsomby foram mortos a golpes de
machado. Essa valente cavalaria dobrou-se aos lanceiros de Bro e aos
encouraçados de Travers; de mil e duzentos cavalos restavam seiscentos;
de três tenentes-coronéis, dois caíram por terra, Hamilton ferido, Mater
morto. Ponsomby caíra, atravessado por sete golpes de lança, Gordon
estava morto, Marsh estava morto. Duas divisões, a quinta e a sexta,
estavam destruídas.
Hougomont em perigo e Haie-Sainte tomada, restava um único nó, o
centro. Esse nó ainda resistia. Wellington o reforçou, chamando Hill, que
estava em Merbe-Braine, e Chassé, que estava em Braine-l’Alleud.
O centro do exército inglês, um pouco côncavo, muito denso e
compacto, estava fortemente situado. Ocupava o planalto de Mont–Saint-
Jean, tendo em sua retaguarda a aldeia e à sua frente a encosta, então
bastante acentuada. Encostou-se àquela forte casa de pedra — que era
naquela época propriedade senhorial de Nivelles e marcava a intersecção
das estradas —, construção do século XVI, tão robusta que as balas nela
ricocheteavam sem danificá-la. Em volta do planalto, aqui e ali os ingleses
haviam cortado as sebes, feito aberturas nos espinheiros, colocado bocas
de canhão entre os galhos, montado seteiras nos arbustos. A artilharia
deles estava de emboscada sob as moitas. Esse trabalho,
incontestavelmente autorizado pela guerra, a qual admite armadilhas,
estava tão bem feito que Haxo, enviado pelo imperador às nove horas da
manhã para reconhecer as baterias inimigas, não viu nada disso e voltou
dizendo a Napoleão que não havia outro obstáculo além das duas
trincheiras que obstruíam as estradas de Nivelles e de Genappe. Era a
época em que as plantações estavam crescidas; na extremidade do
planalto, um batalhão da brigada de Kempt, o 95º, armado de carabinas,
estava escondido no meio dos trigais.
Assim resguardado e seguro, o centro do exército anglo-holandês
estava bem posicionado.
O perigo dessa posição era a floresta de Soignes, então contígua ao
campo de batalha e cortada pelos pântanos de Groenendael e de Boitsfort.
Um exército não poderia recuar por ali sem se dissolver; os regimentos
imediatamente ficariam desagregados; a artilharia ficaria perdida nos
brejos. A retirada, segundo a opinião de vários homens do meio,
contestada, é verdade, por outros, teria sido um verdadeiro salve-se quem
puder.
Wellington juntou a esse centro uma brigada de Chassé, tirada da ala
direita, e uma brigada de Wincke, tirada da ala esquerda, além da divisão
de Clinton. A seus ingleses, aos regimentos de Halkett, à brigada de
Mitchell, às guardas de Maitland, deu como contraforte e reforço a
infantaria de Brunswick, o contingente de Nassau, os hanoverianos de
Kielmansegge e os alemães de Ompteda, ao todo vinte e seis batalhões. A
ala direita, como disse Charras, foi rebatida para a retaguarda do centro.
Uma enorme bateria estava disfarçada por sacos de terra no local onde é
hoje o chamado “Museu de Waterloo”. Além disso, Wellington tinha, em
uma dobra do terreno, o regimento dos dragões de Somerset, com mil e
quatrocentos cavalos. Era a outra metade da cavalaria inglesa, tão
justamente célebre. Destruído Ponsomby, restava Somerset.
A bateria, que, se estivesse acabada, seria quase um refúgio, estava
colocada por trás de um muro de jardim muito baixo, coberto
apressadamente com sacos de areia e com um talude de terra; essa obra,
porém, não estava terminada, não houve tempo de erguer a paliçada.
Wellington, inquieto mas impassível, estava a cavalo e permaneceu o
dia todo na mesma atitude, um pouco adiante do velho moinho de Mont-
Saint-Jean, que ainda existe, debaixo de um olmo que um inglês, vândalo
entusiasta, depois comprou por duzentos francos, serrou e levou.
Wellington mostrou-se friamente heroico. Choviam balas. O ajudante de
campo Gordon acabava de tombar a seu lado. Lorde Hill, mostrando-lhe
uma bomba que estourava, disse-lhe: “Milorde, quais são suas instruções e
que ordens nos deixa, se vier a morrer?” “Que façam como eu!”,
respondeu Wellington. A Clinton disse laconicamente: “Aqui se resiste até
o último homem!”
Era visível que o dia corria mal. Wellington gritava aos seus antigos
companheiros de Talavera, de Vittoria e de Salamanque: Boys! (rapazes)
Será que se pode pensar em recuar? Pensem na velha Inglaterra!
Por volta das quatro horas, a linha inglesa bateu em retirada. De súbito,
não se via na crista do planalto senão a artilharia e os atiradores; o resto
desapareceu; os regimentos, rechaçados pelas bombas e pelas balas
francesas, entraram na depressão que ainda hoje corta o caminho de
serviço da fazenda de Mont-Saint-Jean, um movimento retrógrado se fez,
a vanguarda de batalha inglesa escondeu-se, e Wellington recuou.
— Começam a se retirar! — gritou Napoleão.

VII. NAPOLEÃO DE BOM HUMOR


O imperador, embora doente e incomodado sobre o cavalo por conta de
dores localizadas, nunca estivera de tão bom humor como naquele dia.
Aquele homem impenetrável sorria desde a manhã. No dia 18 de junho de
1815, essa alma profunda, com máscara de mármore, resplandecia
cegamente. O homem que estivera sombrio em Austerlitz estava alegre em
Waterloo. Os maiores predestinados têm destes contrassensos. Nossas
alegrias são sombra; o supremo sorriso a Deus pertence.
Ridet Caesar, Pompeius flebit,5 diziam os legionários da legião
Fulminatrix. Desta feita, Pompeu não devia chorar, mas é certo que César
ria.
Desde a véspera, à noite, à uma hora, explorando a cavalo, embaixo de
chuva e de vento, em companhia de Bertrand, as colinas que cercam
Rossomme, satisfeito por ver a longa linha de fogueiras inglesas
iluminando todo o horizonte, de Frischemont a Braine-l’Alleud, parecera-
lhe que o destino, marcado por ele em dia fixo no campo de Waterloo,
estava exato; parara seu cavalo e ficara imóvel por algum tempo,
contemplando os relâmpagos, escutando o trovão; ouviu-se esse fatalista
lançar ao vento esta frase misteriosa: “Estamos de acordo”. Enganava-se
Napoleão; não estavam mais de acordo.
Não conseguira conciliar o sono nem por um minuto; para ele, cada
instante daquela noite fora marcado pela alegria.
Havia percorrido toda a linha das guardas principais parando aqui e ali
para conversar com as sentinelas. Às duas e meia, perto do bosque de
Hougomont, ouviu os passos de uma coluna em marcha; por um momento
acreditou que fosse Wellington em retirada, e disse:
— É a retaguarda inglesa levantando acampamento. Farei prisioneiros
os seis mil ingleses que acabam de chegar em Ostende.
Conversava efusivamente; havia reencontrado a verve que tinha
quando do desembarque, em 1º de março, ao mostrar ao grande marechal o
aldeão entusiasta do golfo Juan exclamando:
— Então, Bertrand, já temos reforço!
Na noite de 17 para 18 de junho, ele zombava de Wellington: Esse
inglesinho precisa de uma lição! A chuva redobrava, trovejava enquanto o
imperador falava.
Às três horas da madrugada perdeu uma ilusão; oficiais enviados para
reconhecimento anunciaram-lhe que o inimigo não fazia movimento
algum. Nada se mexia; nem uma só fogueira do acampamento fora
apagada. O exército inglês dormia. Era profundo o silêncio na terra; só no
céu havia ruído. Às quatro horas, os batedores trouxeram-lhe um
camponês que servira de guia a uma brigada da cavalaria inglesa,
provavelmente a brigada Vivian, que ia tomar posição na aldeia de Oham,
na extrema esquerda. Às cinco horas, dois desertores belgas disseram-lhe
que acabavam de deixar seu regimento, e que o exército inglês aguardava
pela batalha.
— Tanto melhor! — exclamara Napoleão. — Prefiro destruí-los a
rechaçá-los.
Pela manhã, na encosta que faz ângulo com o caminho de Plancenoit,
colocou o pé na lama, mandou buscar na fazenda de Rossomme uma mesa
de cozinha e uma cadeira de camponês, sentou-se, tendo um feixe de palha
como tapete, e, desdobrando sobre a mesa o mapa do campo de batalha,
disse para Soult: “Que belo tabuleiro de xadrez!”
Em virtude da chuva que caíra durante a noite, os comboios de víveres,
retidos nas estradas arruinadas, não conseguiram chegar pela manhã; os
soldados não tinham dormido, estavam molhados e em jejum, mas nada
disso impediu que Napoleão gritasse alegremente a Ney: Temos a nosso
favor noventa chances em cem.
Às oito horas, trouxeram o desjejum do imperador, para o qual
convidou vários generais. Durante a refeição, contou-se que Wellington
estivera, na antevéspera, em um baile em Bruxelas, na casa da duquesa de
Richmond; e Soult, rude homem de guerra, com seu ar de arcebispo,
dissera: O baile é hoje.
O imperador gracejava com Ney, que dizia: Wellington não vai ser tão
simplório para esperar por Vossa Majestade. Era este, aliás, seu jeito. Ele
gostava de dizer gracejos, disse Fleury de Chaboulon. No fundo, seu
caráter era de um humor divertido, disse Gourgaud. Ele brincava muito,
com frases mais esquisitas do que espirituosas, disse Benjamin Constant.
Vale a pena insistir a respeito dessas alegrias de gigante. Foi ele quem
chamou seus granadeiros de “os rabugentos”, beliscava-lhes as orelhas e
puxava-os pelo bigode. O imperador não fazia outra coisa a não ser nos
pregar peças, essas são palavras de um deles.
Durante a misteriosa viagem da ilha de Elba para a França, em 27 de
fevereiro, em pleno mar, tendo a embarcação francesa Zéphir cruzado a
embarcação Inconstant, na qual Napoleão estava escondido, e tendo
pedido ao Inconstant notícias dele, o imperador, que naquela ocasião ainda
usava em seu chapéu o laço branco e cor de amaranto ornado com abelhas,
adotado por ele na ilha de Elba, tomou, rindo, o lugar de porta-voz e
respondeu, ele mesmo: O imperador vai bem!
Quem brinca dessa forma é porque está familiarizado com os
acontecimentos. Napoleão teve muitos desses acessos de riso naquele
almoço de Waterloo, após o qual recolheu-se por um quarto de hora;
depois, os dois generais sentaram-se em um feixe de palha, uma pena na
mão e uma folha de papel sobre o joelho, e o imperador ditou-lhes a ordem
de batalha.
Às nove horas, no instante em que o exército francês se pôs em
movimento, formado em cinco colunas, com as divisões em duas linhas, a
artilharia entre as brigadas e música à frente, marchando pelos campos,
tambores rufando e trombetas soando, poderoso, vasto, alegre, mar de
capacetes, espadas e baionetas movendo-se no horizonte, o imperador,
comovido, exclamou duas vezes: “Magnífico! Magnífico!”
Das nove horas até as dez e meia, até parece incrível, todo o exército
tomara posição, formando-se em seis linhas que, para utilizar a expressão
do imperador, descreviam a “figura de seis V”. Instantes depois da
formação da frente de batalha, em meio ao silêncio profundo de começo
de tempestade que precede os combates, o imperador, ao ver desfilar as
três baterias de doze, destacadas por ordem sua do corpo de Erlon, de
Reille e de Lobau, e destinadas a começar a ação atacando Mont-Saint-
Jean no ponto onde se cruzam as estradas de Nivelles e de Genappe, disse
para Haxo, batendo-lhe no ombro: Aí estão vinte e quatro belas moças,
general!
Certo do resultado, encorajou com um sorriso a companhia de
sapadores do primeiro corpo, quando de sua passagem diante dele, a
entrincheirar-se em Mont-Saint-Jean assim que a aldeia fosse tomada.
Toda essa serenidade foi perturbada apenas por uma frase de altiva
compaixão; vendo agruparem-se à sua esquerda, no lugar onde hoje há um
túmulo, os admiráveis escoceses montados em seus soberbos cavalos,
disse: É pena.
Depois, montou a cavalo e foi adiante de Rossomme, escolhendo para
observatório uma estreita colina coberta de relva, à direita da estrada entre
Genappe e Bruxelas, o que foi sua segunda parada durante a batalha. A
terceira parada, aquela das sete horas da tarde, entre Belle–Aliance e Haie-
Sainte, foi temível; era um outeiro bastante elevado, que ainda existe, por
trás do qual a guarda encontrava-se agrupada em um declive da planície.
Em volta desse outeiro, choviam balas no chão da estrada, até junto de
Napoleão. Como em Brienne, zuniam por cima de sua cabeça as balas e
projéteis. Quase no lugar onde seu cavalo tinha as patas, foram
encontradas balas carcomidas, lâminas de espadas velhas e projéteis
informes, comidos pela ferrugem. Scabra rubigine.6 Há poucos anos,
desenterrou-se ali uma granada ainda carregada, com o detonador partido
rente à bomba. Foi nessa parada que o imperador disse a seu guia Lacoste,
camponês hostil, medroso, que se agarrava ao selim de um hussardo,
voltando-se ao estouro de cada granada e procurando esconder-se atrás de
Napoleão:
— Imbecil! É vergonhoso, você vai deixar-se matar pelas costas.
Quem escreve estas linhas encontrou, no declive inconsis tente daquele
outeiro, ao cavar na areia, os restos do bocal de uma bomba desintegrados
pela ferrugem de quarenta e seis anos, e pedaços de ferro que se desfaziam
entre os dedos.
As ondulações das planícies, diversamente inclinadas, onde ocorreu o
encontro de Napoleão e Wellington, ninguém ignora, não são mais como
eram em 18 de junho de 1815. Procurando fazer naquele campo fúnebre
um monumento, mudaram seu relevo real, e a história desconcertada já
não pode ser reconhecida ali. Para glorificá-lo, o desfiguraram. Dois anos
depois, ao rever Waterloo, Wellington exclamou: Mudaram meu campo de
batalha.
Onde agora está a grande pirâmide de terra coroada pelo leão, havia
uma saliência que, na direção da estrada de Nivelles, formava um declive
praticável, mas que, pelo lado da estrada de Genappe, era quase escarpado.
A elevação dessa escarpa ainda hoje pode ser medida pela altura dos dois
outeiros das duas grandes sepulturas que margeiam a estrada de Genappe a
Bruxelas; o túmulo inglês à esquerda; o túmulo alemão à direita. Não há
túmulos franceses; para a França, toda essa planície é um sepulcro. Graças
às milhares de carroças de terra, colocadas naquela elevação de quarenta e
cinco metros de altura, e quase novecentos metros de circunferência, a
subida para o planalto de Mont-Saint-Jean é hoje acessível por um suave
aclive; no dia da batalha, principalmente pelo lado de Haie-Sainte, tinha
um acesso abrupto e difícil. A rampa era tão inclinada que a artilharia
inglesa não enxergava, abaixo dela, a fazenda situada no fundo do vale,
centro do combate. No dia 18 de junho de 1815, as chuvas tinham também
escavado aquela escarpa, a lama dificultava a subida, e não só era
necessário subir agarrando-se, como chegava-se a atolar. Ao longo do topo
do planalto estendia-se um fosso impossível de ser percebido por um
observador colocado à distância.
O que era aquele fosso? Vamos explicar. Braine-l’Alleud é uma aldeia
da Bélgica; Ohain é outra. Essas aldeias, ambas ocultas nas curvas do
terreno, comunicam-se por um caminho de aproximadamente uma légua e
meia de extensão que atravessa uma planície ondulante, e com frequência
adentra as colinas como sulcos, resultando que, em diversos pontos, esse
caminho seja um verdadeiro barranco. Em 1815, do mesmo modo que
agora, essa estrada cortava o topo do planalto de Mont-Saint–Jean entre as
duas estradas, de Genappe e Nivelles, com a diferença de que hoje fica ao
nível da planície, e antes era um caminho baixo. Usaram suas duas
escarpas para assentar o monumento. Essa estrada era, e ainda é, na maior
parte de sua extensão, uma vala cavada, em alguns lugares com três
metros e meio de profundidade, cujas margens, demasiado escarpadas,
desabavam aqui e ali, principalmente no inverno, com as fortes chuvas,
ocasionado acidentes. A estrada era tão estreita na entrada de Braine
l’Alleud que uma ocasião um passante foi ali esmagado por uma carroça,
como o prova uma cruz de pedra erguida perto do cemitério, indicando o
nome do morto, Monsieur Bernard Debrye, negociante em Bruxelas, e a
data do acidente, fevereiro de 1637.7
E era tão profunda sobre o planalto de Mont-Saint-Jean, que um
camponês, Mathieu Nicaise, foi soterrado em 1783 por um desabamento
do barranco, como o prova outra cruz de pedra, cuja parte superior
desapareceu, mas cujo pedestal pode-se ver ainda hoje caído na encosta,
em meio à relva, à esquerda da estrada entre Haie-Sainte e a fazenda de
Mont-Saint-Jean.
Num dia de batalha, esse inadvertido caminho ruim, margeando o alto
de Mont-Saint-Jean como um fosso no topo da escarpa, abismo escondido
na terra, era invisível, ou, melhor dizendo, era terrível.

VIII. O IMPERADOR FAZ UMA PERGUNTA AO GUIA


LACOSTE
Então, naquela manhã de Waterloo, Napoleão estava contente.
Tinha razões para isso; o plano de batalha concebido por ele, como foi
constatado, era, com efeito, admirável.
Uma vez começada a batalha, suas variadas peripécias, a resistência de
Hougomont, a tenacidade de Haie-Sainte, a morte de Bauduin, Foy posto
fora de combate, a inesperada muralha onde foi destruída a brigada de
Soye; o fatal atabalhoamento de Guilleminot, que não tinha nem balas,
nem cartuchos; o atolamento das baterias, os quinze canhões sem escolta,
destruídos por Uxbridge em uma trilha; o pequeno efeito das bombas que
caíam nas linhas inglesas enterrando-se no chão encharcado pelas chuvas,
sem maior efeito que levantar vulcões de lama, de modo que a metralha se
transformava em respingos; a inutilidade da demonstração de Piré contra
Braine-l’Alleud; toda a cavalaria, quinze esquadrões, praticamente
aniquilados, a ala direita inglesa mal atacada, a ala esquerda mal
combatida; o estranho equívoco de Ney, agrupando, ao invés de destacar,
as quatro divisões do primeiro corpo, engrossado com vinte e sete fileiras
e uma vanguarda de duzentos homens, entregues daquele modo à
metralha; a medonha brecha causada pelas balas naquelas massas, as
colunas de ataque desunidas, a bateria das trincheiras subitamente
descoberta pelos flancos; Bourgeois, Donzelot e Durutte em perigo, Quiot
repelido; o tenente Vieux, um hércules saído da Escola Politécnica, ferido
na ocasião em que arrombava, a golpes de machado, a porta de Haie-
Sainte sob o fogo da trincheira inglesa que barrava a curva da estrada de
Genappe a Bruxelas; a divisão de Marcognet, apanhada entre a infantaria e
a cavalaria, fuzilada à queima-roupa, no meio das searas de trigo, por Best
e Pack, apunhalada por Ponsonby, com sua bateria de sete peças atolada; a
resistência do Príncipe de Saxe-Weymar contra o conde de Erlon,
Frischemont e Smohain, para proteger a bandeira que havia tomado do
regimento 105, a bandeira do regimento 45, também tomada; aquele negro
hussardo prussiano, feito prisioneiro pelos batedores da coluna volante de
trezentos caçadores, que batiam a estrada entre Wavre e Plancenoit; as
coisas inquietantes ditas por esse prisioneiro; a demora de Grouchy, os mil
e quinhentos homens mortos em menos de uma hora no pomar de
Hougomont; os mil e oitocentos homens abatidos em menos tempo ainda
em volta de Haie-Sainte; nenhum desses incidentes tempestuosos,
passando como nuvens de batalha diante de Napoleão, perturbaram seu
olhar ou assombraram aquela face imperial da certeza. Napoleão estava
costumado a olhar a guerra fixamente; jamais fazia, cifra por cifra, a soma
pungente do detalhe; as cifras pouco lhe importavam, contanto que lhes
dessem este total: vitória; que as coisas não corressem bem no princípio,
isso não o alarmava, ele que se julgava senhor e mestre do final; sabia
esperar, supondo-se acima de questionamentos, e tratando o destino de
igual para igual. Parecia dizer à sorte: você não ousaria.
Napoleão, meio sombra, meio luz, sentia-se protegido no bem e
tolerado no mal. Havia, ou julgava haver para com ele, uma conivência,
pode-se quase dizer, uma cumplicidade, dos acontecimentos, equivalente à
antiga invulnerabilidade.
Todavia, quando se tem em seu passado Bérésina, Leipsick e
Fontainebleau, parece que se deveria desconfiar de Waterloo. Um
misterioso franzir de sobrancelhas torna-se visível na amplidão do céu.8
Napoleão estremeceu quando Wellington retrocedeu. Viu subitamente
o planalto de Mont-Saint-Jean ser desguarnecido e a vanguarda do exército
inglês desaparecer. Ela passava por ridícula, mas se escondia. O imperador
sentiu-se um pouco mais forte. O brilho da vitória passou em seus olhos.
Wellington, encurralado na floresta de Soignes, e destruído, seria o
sepultamento definitivo da Inglaterra pela França; seria a vingança de
Crecy, Poitiers, Malplaquet e Ramillies. Seria o homem de Marengo
passando uma borracha em Azincourt.
O imperador, então, meditando sobre essa incrível peripécia, examinou
com sua luneta, uma última vez, todos os pontos do campo de batalha. Sua
guarda, colocada atrás dele com as armas em descanso, o observava de
baixo, com uma espécie de adoração. Ele refletia; examinava as encostas,
observava os declives, escrutava as copas das árvores, a amplidão das
searas, os caminhos; parecia contar cada arbusto. Olhou mais fixamente
para as barricadas inglesas das duas estradas, dois grandes montes de
árvores cortadas, um na estrada de Genappe, acima de Haie-Sainte,
guarnecido com dois canhões, os únicos de toda a artilharia inglesa que
podiam visar o fundo do campo de batalha, e o outro na estrada de
Nivelles, onde se viam brilhar as baionetas holandesas da brigada de
Chassé. Observou, perto dessa barricada, a velha capela de Saint-Nicolas
pintada de branco, no ângulo da passagem que vai para Braine-l’Alleud.
Inclinou-se e falou a meia voz ao guia Lacoste. O guia fez um sinal de
cabeça negativo, provavelmente traiçoeiro.
O imperador endireitou-se e voltou a seus pensamentos.
Wellington havia recuado. Não restava senão pôr fim àquela retirada
com um massacre.
Napoleão voltou-se bruscamente e expediu um estafeta a Paris,
anunciando que a batalha estava ganha.
Napoleão era um desses gênios que provocam trovões.
Acabava de encontrar seu raio.
Ordenou aos encouraçados de Milhaud que tomassem o planalto de
Mont-Saint-Jean.

IX. O INESPERADO
Eles eram três mil e quinhentos. Formavam uma vanguarda de um
quarto de légua. Eram gigantes montados em cavalos colossais. Vinte e
seis esquadrões. Tinham em sua retaguarda, para apoiá-los, a divisão de
Lefebvre-Desnouettes, cento e seis soldados de elite, os caçadores da
guarda, mil cento e noventa e sete homens, e os lanceiros da guarda,
oitocentos e oitenta lanças. Usavam capacetes sem penacho, couraças de
ferro batido, pistolas nos coldres e o longo sabre-espada. Pela manhã, todo
o exército os admirou quando, às nove horas, ao toque dos clarins, todos
cantavam velemos pela salvação do Império; vieram em coluna cerrada,
uma de suas baterias ao lado e a outra ao centro, colocar-se em duas filas
entre as estradas de Genappe e Frischemont, e tomaram seu lugar para a
batalha na potente segunda linha tão sabiamente composta por Napoleão, a
qual, tendo em sua extremidade esquerda os encouraçados de Kellermann
e na extremidade direita os encouraçados de Milhaud, era composta, pode-
se dizer, por duas alas de ferro.
O ajudante de campo Bernard levou-lhes a ordem do imperador. Ney
desembainhou a espada e pôs-se à frente dos enormes esquadrões que
começaram a mover-se.
Toda aquela cavalaria, sabres em punho, estandartes e trombetas ao
vento, formada em duas colunas, desceu com um movimento uniforme,
parecendo um só homem, e, com a exatidão de um aríete de bronze que
abre uma brecha, a colina de Belle-Alliance, entranhou-se no terrível vale
onde já tantos homens haviam caído, e desapareceu na fumaça, saindo em
seguida daquela sombra para reaparecer do outro lado, sempre cerrada e
compacta, subindo a galope, em meio a uma chuva de metralha, a
medonha rampa de lama que conduzia ao alto de Mont-Saint-Jean.
Eles subiam, graves, ameaçadores, imperturbáveis; nos intervalos da
fuzilaria e da artilharia, ouvia-se um tropel colossal. Eram duas divisões,
formavam duas colunas; a divisão Wathier à direita, a divisão Delord à
esquerda. De longe, acreditava-se ver, alongando-se em direção ao topo do
planalto, duas imensas serpentes de aço. Aqueles homens atravessaram o
campo de batalha como um prodígio.
Nada parecido era visto desde a tomada do grande reduto de Moscou
pela forte cavalaria; ali faltava Murat, mas Ney estava de volta. Parecia
que aquela massa se convertera em monstro e não tinha mais que uma
alma. Cada esquadrão ondulava e inchava como os anéis de um pólipo. Era
possível distingui-los através de uma vasta nuvem de fumaça que se abria
aqui e ali. Era uma confusão de capacetes, de gritos e sabres, de saltos
impetuosos dos cavalos ao estrondo dos canhões e das fanfarras, tumulto
disciplinado, mas terrível, e, acima de tudo isso, as couraças, como
escamas sobre a hidra.
Parecem histórias de outras eras. Algo parecido com essas visões
provavelmente aparecia nas antigas epopeias órficas, em que se descrevem
homens-cavalos, os lendários centauros, titãs com rosto humano e corpo
equestre, que escalaram o Olimpo, horríveis, invulneráveis, sublimes;
deuses e animais.
Estranha coincidência numérica, vinte e seis batalhões iam receber os
vinte e seis esquadrões. Por trás da crista do planalto, à sombra da bateria
oculta, a infantaria inglesa, formada em treze quadrados, dois batalhões
em cada, e em duas linhas, sete na primeira, seis na segunda, armas nos
ombros, fazendo pontaria para o que viesse, calma, muda, imóvel,
esperava. Os soldados ingleses não viam os encouraçados, nem estes viam
os soldados ingleses. Os ingleses ouviam subir aquela maré de homens;
ouviam aumentar o ruído dos três mil cavalos, o bater alternado e
simétrico dos cascos a galope, o atrito das couraças, o tinir dos sabres e
uma espécie de enorme sopro feroz. Houve um silêncio terrível e depois,
subitamente, uma fila de braços erguidos brandindo sabres apareceu no
horizonte, e os capacetes, e as trombetas, e os estandartes, e três mil
cabeças com bigodes cinzentos, gritando: viva o imperador! Toda essa
cavalaria desembocou no planalto, e foi como o começo de um terremoto.
De repente, coisa trágica, à esquerda dos ingleses, à nossa direita, a
vanguarda da coluna dos encouraçados empinou-se com um clamor
medonho. Chegados ao ponto culminante da crista, desenfreados,
entregues à sua fúria e à sua corrida de extermínio em direção aos
quadrados e canhões, acabavam de perceber um fosso, uma vala entre eles
e os ingleses. Era o caminho de Ohain.
Foi medonho aquele momento. O barranco estava ali, inesperado,
escancarado, na vertical sob as patas dos cavalos, a uma profundidade de
duas toesas entre suas margens; a segunda fileira empurrou a primeira, a
terceira empurrou a segunda; os cavalos empinavam-se, atiravam-se para
trás, escorregavam com as quatro patas no ar e caíam de costas,
derrubando e ferindo os cavaleiros; sem meios de recuar, a coluna toda
transformou-se em projétil, a força adquirida para massacrar os ingleses
massacrou os franceses. O barranco inexorável enchia-se, cavaleiros e
cavalos rolavam ali misturados, enroscados uns nos outros, formando uma
só carne naquele abismo, e, quando a vala ficou cheia de homens vivos, o
restante passou por cima. Quase um terço da brigada desabou naquele
abismo.
Aí começava a perda da batalha.
Diz uma tradição local, evidentemente exagerada, que dois mil cavalos
e mil e quinhentos homens ficaram sepultados no caminho de Ohain. Esse
número verdadeiramente compreende todos os outros cadáveres que no dia
seguinte ao combate foram lançados àquela vala.
Note-se, de passagem, que foi essa brigada Dubois, tão funestamente
exposta, que, uma hora antes, indo isoladamente à carga, tomara a
bandeira do batalhão de Lunebourg.
Napoleão, antes de ordenar esse ataque dos encouraçados de Milhaud,
havia escrutado o terreno, mas não pôde ver o barranco, que não formava
uma ruga sequer na superfície do planalto. Avisado, porém, e como que
despertado pela pequena capela branca que marca o ângulo da estrada de
Nivelles, talvez receoso da eventualidade de qualquer obstáculo, fez uma
pergunta ao guia Lacoste. O guia respondeu que não. Poderíamos quase
dizer que desse gesto de cabeça de um camponês originou-se a catástrofe
de Napoleão.
Outras fatalidades ainda deveriam surgir.
Era possível que Napoleão ganhasse essa batalha? Respondemos que
não. Por quê? Por causa de Wellington? Por causa de Blucher? Não. Por
causa de Deus.
Bonaparte vencedor em Waterloo, isso não mais figurava na lei do
século XIX. Preparava-se uma outra série de fatos na qual Napoleão já não
tinha lugar. Havia muito que a má vontade dos acontecimentos fora
anunciada.
Era tempo desse grande homem cair.
O excessivo peso desse homem nos destinos humanos perturbava o
equilíbrio. Esse indivíduo contava, sozinho, mais que o grupo universal. A
superabundância de toda vitalidade humana concentrada em uma única
mente, o mundo subindo à cabeça de um homem, seria mortal para a
civilização se isso se prolongasse. Chegara o momento de a incorruptível
equidade suprema intervir. Provavelmente os princípios e os elementos de
que dependem as gravitações regulares, tanto na ordem moral como na
ordem material, se queixaram. O sangue ainda quente, o atulhamento dos
cemitérios, as mães em lágrimas, são justificativas temíveis. Quando a
terra sofre de uma sobrecarga, há misteriosos gemidos da sombra ouvidos
pelo abismo.
Napoleão fora denunciado ao infinito, e sua queda estava decidida.
Ele constrangia Deus.
Waterloo não foi apenas uma batalha; foi a mudança de aspecto do
universo.

X. O PLANALTO DE MONT-SAINT-JEAN
Ao mesmo tempo que o barranco, a bateria inglesa se desmascarava.
Sessenta canhões e os homens formados nos treze quadrados
fulminaram os encouraçados à queima-roupa. O intrépido general Delord
fez a saudação militar à bateria inglesa.
Toda a artilharia volante inglesa entrou a galope nos quadrados; os
encouraçados nem sequer tiveram tempo de parar. O desastre do barranco
dizimou-os, mas não os desencorajou. Eram desses homens que,
diminuídos em número, crescem em coragem.
Só a coluna Wathier sofrera o desastre; a coluna Delord, que Ney
desviara para a esquerda como se tivesse pressentido a cilada, chegara
inteira.
Os encouraçados precipitaram-se sobre os esquadrões ingleses.
Arrastando-se no chão, rédeas soltas, sabre nos dentes e pistolas nas
mãos, assim foi o ataque.
Nas batalhas, há alguns momentos em que a alma endurece o homem a
ponto de transformar o soldado em estátua e fazer de toda carne, granito.
Os batalhões ingleses, assaltados desvairadamente, não se moveram.
Então, foi medonho.
Todos os lados dos quadrados ingleses foram atacados ao mesmo
tempo. Um redemoinho frenético os envolveu. Aquela fria infantaria ficou
impassível. A primeira fileira, de joelhos, recebia os encouraçados nas
pontas das baionetas, a segunda os fuzilava; atrás da segunda fileira, os
canhoneiros carregavam os canhões, a frente do quadrado se abria para
deixar passar uma erupção de metralha e tornava a fechar-se. Os
encouraçados respondiam massacrando. Seus grandes cavalos empinavam-
se, saltavam as fileiras, pulavam por cima das baionetas e caíam,
gigantescos, no meio daqueles quatro muros vivos. As balas faziam
aberturas nos encouraçados, os encouraçados abriam brechas nos
quadrados. Filas de homens desapareciam esmagadas sob os cavalos, as
baionetas enterravam-se nos ventres daqueles centauros. Era uma
deformidade de feridas que não se viu, talvez, em nenhuma outra situação.
Os quadrados arruinados por aquela cavalaria enfurecida encolhiam-se
sem vacilar. Com inesgotável metralha, continuavam a explodir em meio
aos assaltantes. Era monstruoso o aspecto do combate. Os quadrados não
eram mais batalhões, eram crateras; os encouraçados não mais uma
cavalaria, mas uma tempestade. Cada quadrado era um vulcão atacado por
uma nuvem; a lava combatendo o raio.
O quadrado da extrema direita, o mais exposto de todos por estar
muito à vista, foi quase aniquilado nos primeiros choques; era formado
pelo 75º regimento de highlanders, soldados provenientes das terras altas
escocesas. O tocador de gaita de fole, postado no centro, instrumento
embaixo do braço, enquanto exterminavam-se ao seu redor, continuava
tocando árias montanhesas, sentado em um tambor, distraído, o olhar
melancólico, cheio do reflexo das florestas e dos lagos. Os escoceses
morriam pensando em Ben Lothian, como morriam os gregos recordando-
se de Argos. O sabre de um encouraçado, abatendo o instrumento e o braço
que o segurava, fez cessar o canto ao matar o cantor.
Os encouraçados, relativamente pouco numerosos, minimizados na
catástrofe do barranco, tinham contra eles quase todo o exército inglês,
mas pareciam multiplicar-se, cada homem valendo por dez. No entanto,
alguns batalhões hanoverianos curvaram-se. Wellington, vendo isso,
pensou em sua cavalaria. Se Napoleão, naquele mesmo momento, tivesse
pensado em sua infantaria, teria vencido a batalha. Esse esquecimento foi
seu erro fatal.
De repente, os encouraçados que atacavam sentiram-se atacados. A
cavalaria inglesa vinha pela retaguarda. À frente deles, os quadrados, por
trás, Somerset; Somerset: eram os mil e quatrocentos dragões-guardas,
tendo, à sua direita, Dornberg com a cavalaria ligeira alemã e, à esquerda,
Trip, com os carabineiros belgas. Os encouraçados atacados pelo flanco,
por cima, pela frente e pela retaguarda, pela infantaria e pela cavalaria,
tiveram de fazer frente por todos os lados. Que lhes importava? Eram um
turbilhão. Sua bravura tornou-se inexprimível.
Além disso, tinham ainda pela retaguarda a artilharia sempre troando.
Só assim aqueles homens podiam ser feridos pelas costas. Uma de suas
couraças, com um buraco de bala na omoplata esquerda, encontra-se na
coleção do Museu de Waterloo.
Para franceses como aqueles, nada menos que ingleses como aqueles.
Aquilo não foi um combate, foi uma sombra, uma fúria, um
arrebatamento vertiginoso de almas e corações, um relampejar de espadas.
Em um instante, os mil e quatrocentos dragões-guardas ficaram reduzidos
a oitocentos; Fuller, seu tenente-coronel, caiu morto. Ney acorreu com os
lanceiros e os caçadores de Lefebvre-Desnouettes, e o planalto de Mont-
Saint-Jean foi tomado, perdido e retomado; os encouraçados deixavam a
cavalaria para voltarem à infantaria, ou, melhor dizendo, era uma
formidável confusão onde todos se agarravam, sem que uns largassem dos
outros. Os quadrados continuavam resistindo. Houve doze ataques. Ney
teve quatro cavalos mortos. Metade dos encouraçados ficou sobre o
planalto. A luta durou duas horas.
O exército inglês ficou profundamente abalado. Não há dúvida de que,
se não tivessem enfraquecido no primeiro choque com o desastre do
barranco, os encouraçados teriam destruído o centro e decidido a vitória.
Essa cavalaria extraordinária petrificou Clinton, que presenciara Talavera
e Badajoz. Wellington, praticamente vencido, admirava heroicamente.
Dizia a meia voz: “Sublime!”9
Os encouraçados aniquilaram sete dos treze quadrados; tomaram ou
inutilizaram sessenta canhões, e arrebataram aos regimentos ingleses seis
bandeiras, que três encouraçados e três caçadores foram levar ao
imperador na fazenda de Belle-Alliance.
A situação de Wellington piorara. Aquela estranha batalha era como
um encarniçado duelo entre dois feridos que, cada um por seu lado,
sempre combatendo e resistindo, perderam todo o seu sangue. Qual deles
cairá primeiro?
A luta do planalto continuava.
Até onde chegaram os encouraçados? Ninguém poderá dizer. O certo é
que, no dia seguinte à batalha, um encouraçado e seu cavalo foram
encontrados mortos junto ao madeiramento da balança onde são pesadas as
carruagens em Mont-Saint-Jean, no exato ponto em que se entrecruzam as
quatro estradas de Nivelles, Genappe, La Hulpe e Bruxelas. Esse cavaleiro
tinha atravessado as linhas inglesas. Um dos homens que retiraram seu
cadáver ainda vive em Mont-Saint-Jean. Chama-se Dehaze e tinha então
dezoito anos.
Wellington sentia-se enfraquecer. A crise estava próxima.
Os encouraçados não tiveram êxito em derrotar o centro. Sendo o
planalto de todos, não era de ninguém, mas, em suma, a maior parte dele
ficara para os ingleses. Wellington apossara-se da aldeia e da planície mais
elevada; Ney tinha a crista e a encosta. Os dois lados pareciam arraigados
àquele solo fúnebre.
Mas o enfraquecimento dos ingleses parecia irremediável. Era horrível
a hemorragia daquele exército. Kempt, na ala esquerda, reclamava reforço.
Não há reforço, respondia Wellington. Que se deixe matar! E quase ao
mesmo tempo, singular paralelo que mostra o esgotamento dos dois
exércitos, Ney pedia infantaria a Napoleão e Napoleão exclamava:
Infantaria? Onde ele quer que eu a arranje? Quer que eu a fabrique?
O exército inglês era o mais enfermo. Os impulsos furiosos daqueles
grandes esquadrões, em couraças de ferro e peitos de aço, haviam moído a
infantaria. Alguns homens em volta de uma bandeira marcavam a posição
de um regimento, alguns batalhões eram comandados apenas por um
capitão ou por um tenente; a divisão Alten, já tão maltratada em Haie-
Sainte, estava quase destruída; os intrépidos belgas da brigada Van Kluze
cobriam os campos de centeio ao longo da estrada de Nivelles; não restava
quase nada dos granadeiros holandeses que, em 1811, engajados em nossas
fileiras na Espanha, combatiam Wellington, e que, em 1815, aliados aos
ingleses, combatiam Napoleão. A perda de oficiais era considerável. Lorde
Uxbridge, que no dia seguinte mandou enterrar sua perna, tinha o joelho
quebrado. Se, pelo lado francês, nessa luta dos encouraçados, Delord,
Lhéritier, Colbert, Dnop, Travers e Blancard estavam fora de combate,
pelo lado inglês Alten estava ferido, Barne estava ferido, Delancey estava
morto, Van Meeren estava morto e Ompteda estava morto, o estado-maior
de Wellington estava dizimado, e a Inglaterra tinha a pior parte naquele
sanguinolento equilíbrio. O segundo regimento de guarda a pé perdera
cinco tenentes-coronéis, quatro capitães e três oficiais; o primeiro
batalhão do 30o regimento de infantaria perdera vinte e quatro oficiais e
cento e doze soldados, o 79o regimento de montanheses tinha vinte e
quatro oficiais feridos, dezoito mortos e quatrocentos e cinquenta soldados
exterminados. Os hussardos hanoverianos de Cumberland, um regimento
inteiro, comandados pelo coronel Hacke, que mais tarde seria julgado e
destituído, deram meia-volta diante do combate, fugindo pela floresta de
Soignes, semeando derrota até Bruxelas. As carretas, os carros de
munição, as bagagens, os furgões cheios de feridos, vendo os franceses
ganharem terreno e se aproximarem da floresta, nela se precipitaram; os
holandeses, apunhalados pela cavalaria francesa, gritavam: alarme!
De Vert-Coucou até Groenendael, em uma extensão de
aproximadamente duas léguas na direção de Bruxelas, os fugitivos eram
tantos, como relatam testemunhas ainda vivas, que atulhavam a estrada. O
pânico foi tamanho que tomou conta do Príncipe de Condé, em Malines, e
de Luís XVIII, em Gand. Com exceção da fraca reserva colocada atrás dos
postos de socorro estabelecidos na fazenda de Mont–Saint-Jean, e das
brigadas Vivian e Vandeleur, que flanqueavam a ala esquerda, Wellington
já não tinha cavalaria. Numerosas baterias jaziam desmontadas. Esses
fatos são constatados por Siborne; Pringle, exagerando o desastre, chega a
dizer que o exército anglo-holandês estava reduzido a trinta e quatro mil
homens. O duque-de-ferro permanecia sereno, mas seus lábios haviam
empalidecido. O comissário austríaco Vincent e o comissário espanhol
Alava, que assistiram à batalha fazendo parte do estado-maior inglês,
julgavam o duque perdido. Às cinco horas, Wellington tirou seu relógio e
ouviram quando disse esta sombria frase: Ou Blucher, ou a noite!
Foi por volta desse momento que uma linha longínqua de baionetas
brilhou no alto de uma colina, para os lados de Frischemont.
Então ocorrerá a peripécia deste drama gigante.

XI. MAU GUIA PARA NAPOLEÃO, BOM GUIA PARA


BULOW
Todos conhecem o pungente equívoco de Napoleão; Grouchy era
esperado, mas foi Blucher quem veio; a morte em lugar da vida.
O destino dá essas voltas. Esperava-se o trono do mundo, avistou-se
Santa Helena.
Se o pequeno pastor que servia de guia a Bulow, que era lugar–tenente
de Blucher, o houvesse aconselhado a sair da floresta, acima de
Frischemont e não abaixo de Plancenoit, talvez a forma do século XIX
fosse diferente. Napoleão teria vencido a batalha de Waterloo. Por
qualquer outro caminho que não saísse abaixo de Plancenoit, o exército
prussiano daria em um barranco instransponível para a artilharia, e Bulow
não conseguiria chegar.
Uma hora a mais de atraso, segundo declaração do general prussiano
Muffling, e Blucher já não encontraria Wellington de pé: “A batalha estava
perdida”.
Era tempo, como se vê, de Bulow chegar. Por sinal, ele estava muito
atrasado. Havia acampado em Dion-le-Mont e partido ao amanhecer. Mas
os caminhos estavam intransitáveis e suas divisões atolavam na lama. Os
canhões afundavam até o eixo das rodas. Além disso, fora preciso
atravessar o rio Dyle pela estreita ponte de Wavre; a rua que conduzia a ela
havia sido incendiada pelos franceses; os caixões de pólvora e os carros de
artilharia, não podendo passar entre duas fileiras de casas em chamas,
tiveram de esperar que o fogo fosse apagado. Já era meio-dia e a
vanguarda de Bulow ainda não tinha conseguido chegar a Chapelle-Saint-
Lambert.
Se a ação tivesse começado duas horas mais cedo, teria acabado às
quatro horas, e Blucher chegaria com a batalha já ganha por Napoleão.
Assim são esses imensos acasos que se oferecem a um infinito que escapa
à nossa compreensão.
Desde meio-dia, o imperador, com sua luneta, foi o primeiro a
perceber, no extremo do horizonte, algo que lhe prendeu a atenção; ele
disse: “Vejo ao longe uma nuvem, parecem-me tropas”. Depois perguntou
ao duque de Dalmatie: “Soult, o que você vê na direção de Chapelle-Saint-
Lambert?” O marechal, apontando a luneta para lá, respondeu: “Quatro ou
cinco mil homens, sire. Evidentemente é Grouchy”.
No entanto, aquilo permanecia imóvel na neblina. Todas as lunetas do
estado-maior estudaram a “nuvem” que o imperador apontara. Alguns
disseram: “São colunas em descanso”. A maior parte disse: “São árvores”.
A verdade era que a nuvem não se movia. Napoleão destacou a divisão de
cavalaria ligeira de Domon para fazer o reconhecimento daquele ponto
obscuro.
Efetivamente, Bulow não se mexera. Sua vanguarda estava muito
enfraquecida, não podia fazer nada. Devia esperar o grosso do corpo do
exército, e tinha ordem de se concentrar antes de entrar em linha; às cinco
horas, vendo o perigo em que estava Wellington, Blucher ordenou a Bulow
que atacasse, e disse esta notável frase: “É preciso dar um pouco de ar ao
exército inglês”.
Pouco depois, as divisões de Losthin, Hiller, Hacke e Ryssel
estenderam-se diante dos batalhões de Lobau, a cavalaria do Príncipe
Guillaume da Prússia saía do bosque de Paris, Plancenoit ardia em chamas
e as balas prussianas começavam a chover até mesmo sobre as fileiras da
guarda de reserva colocada atrás de Napoleão.

XII. A GUARDA
O resto é conhecido; a irrupção de um terceiro exército, a batalha
deslocada, as oitenta e seis bocas de fogo troando de repente, a chegada de
Pirch I com Bulow, a cavalaria de Zieten comandada por Blucher em
pessoa, os franceses rechaçados, Marcognet varrido do planalto de Ohain,
Durutte desalojado de Papelotte, Donzelot e Quiot recuando, Lobau
apanhado pelos lados, uma nova batalha se precipitando sobre nossos
regimentos desmantelados ao cair da noite, toda a linha inglesa retomando
a ofensiva e impelida para frente, a gigantesca brecha feita no exército
francês, a metralha inglesa e a metralha prussiana auxiliando-se
mutuamente, o extermínio, o desastre pela frente e pelos lados, a guarda
entrando em linha no meio desse espantoso desmoronamento.
Sentindo que ia morrer, a guarda gritou: viva o imperador! A história
não tem nada de mais comovente que essa agonia irrompendo em
aclamações.
O céu estivera encoberto a manhã inteira. De repente, exatamente
naquele momento, eram oito horas da noite, as nuvens do horizonte se
afastaram deixando passar, através dos olmos da estrada de Nivelles, a
sinistra vermelhidão do sol poente. Tinham visto o sol se levantar em
Austerlitz.
Nesse desfecho, cada batalhão era comandado por um general. Friant,
Michel, Roguet, Harlet, Mallet, Poret de Morvan estavam lá. Quando os
capacetes dos granadeiros da guarda, com a grande águia de metal,
apareceram em meio à neblina do combate, simétricos, alinhados,
tranquilos, o inimigo sentiu respeito pela França; acreditaram ver entrar
vinte vitórias no campo de batalha, asas abertas, e os que eram vencedores
recuaram, julgando-se vencidos; mas Wellington gritou: De pé, guardas, e
pontaria certeira!
O regimento vermelho das guardas inglesas, deitado por trás das sebes,
levantou-se; uma nuvem de metralha crivou a bandeira tricolor que
tremulava em volta de nossas águias, todos se arrojaram à luta, e a
suprema carnificina começou. A guarda imperial sentiu nas sombras o
exército recuando à sua volta, sentiu o imenso abalo da derrota, ouviu o
salve-se quem puder! que substituía o viva o imperador! E, mesmo com a
fuga atrás dela, continuou a avançar, cada vez mais fulminada, e com mais
mortes a cada passo que dava. Não havia irresolutos ou tímidos. Naquele
regimento, o soldado era tão herói quanto o general. Nem um só homem
fugiu àquele suicídio.
Ney, desorientado, com toda a grandeza da morte que aceitara,
oferecia-se a todos os golpes daquela tormenta. Ali foi morto o quinto
cavalo que montava. Banhado em suor, olhos em chama, espuma nos
lábios, uniforme desabotoado, uma das dragonas semicortada por um
golpe de sabre de um guarda montado, sua grande águia metálica afundada
por uma bala, ensanguentado, enlameado, magnífico, uma espada
quebrada na mão, dizia: Vejam como morre um marechal da França no
campo de batalha! Mas em vão; ele não morreu. Ficou feroz e indignado.
Lançava esta pergunta a Drouet d’Erlon: Será que você não se deixa matar,
não? Gritava no meio de toda aquela artilharia que esmagava um punhado
de homens: Oh! Queria que todas essas balas inglesas me atravessassem o
ventre!
Estavas reservado às balas francesas, infeliz!

XIII. A CATÁSTROFE
A derrota pela retaguarda foi lúgubre.
O exército retrocedeu rapidamente, de todos os lados ao mesmo tempo,
de Hougomont, de Haie-Sainte, de Papelotte, de Plancenoit. O grito:
traição! foi seguido do grito: salve-se quem puder! Um exército em
debandada é um degelo. Tudo se curva, se abre, estala, flutua, rola, cai,
fere, apressa e precipita. Incrível desagregação.
Ney pede um cavalo emprestado, monta, e, sem chapéu, sem gravata,
sem espada, vai colocar-se no través da estrada de Bruxelas, parando
ingleses e franceses ao mesmo tempo. Ele tenta reter o exército,
chamando-o, insultando-o, agarra-se à derrota. Não se contém. Os
soldados fogem a ele, gritando: Viva o marechal Ney!
Dois regimentos de Durutte vão e voltam sobressaltados, como que
agitados entre os sabres dos ulanos, soldados alemães da cavalaria ligeira,
e a fuzilaria das brigadas de Kempt, de Best, de Pack e de Rylandt; o pior
dos combates é a derrota: amigos matam-se para fugir; esquadrões e
batalhões se dispersam e destroem uns aos outros, enorme escória de
batalha. Lobau em uma extremidade, assim como Reille na outra, são
levados pela vaga. Em vão, Napoleão faz muralhas com o que lhe resta da
guarda; em vão, empenha, em um último esforço, seus esquadrões de
serviço. Quiot recua diante de Vivian, Kellermann diante de Vandeleur,
Lobau diante de Bulow, Morand diante de Pirch, Domon e Subervic diante
do Príncipe Guillaume da Prússia. Guyot, que tinha sob seu comando os
esquadrões do imperador, cai aos pés dos dragões ingleses. Napoleão corre
a galope por entre os fugitivos, conclama-os, pressiona, ameaça, suplica.
Todas as bocas que pela manhã gritavam viva o imperador! ficam abertas,
mal o reconhecem. A cavalaria prussiana, chegada há pouco, precipita-se,
voa, acutila, corta, despedaça, mata, extermina. As parelhas de cavalos
escoiceiam; os canhões se vão, os soldados desatrelam os caixões,
pegando os cavalos para fugir; os carros, virados com as quatro rodas para
o ar, estorvam a estrada e dão ensejo a massacres. Esmagam-se,
pisoteiam-se, passam por cima dos mortos e por cima dos vivos. Os braços
estão desvairados. Uma multidão vertiginosa enche as estradas, os atalhos,
as pontes, as planícies, as colinas, os vales, os bosques, atravancados pela
evasão de quarenta mil homens. Gritos, desespero, sacos e fuzis jogados
pelo chão, passagens abertas a golpes de espada, não há mais camaradas,
nem oficiais, nem generais; um horror inexprimível! Zieten apunhalando a
França à vontade. Os leões transformados em cabritos. Assim foi essa
fuga.
Em Genappe, tentaram tomar outras medidas, fazer frente, suspender a
ação. Lobau reuniu trezentos homens que se entrincheiraram à entrada da
aldeia; porém, à primeira descarga da metralha prussiana, a fuga
recomeçou, e Lobau foi capturado. Ainda hoje se vê a marca daquela
descarga de metralha na parede de um casebre, à direita da estrada, alguns
minutos antes da entrada de Genappe. Os prussianos lançaram-se sobre
Genappe, furiosos, decerto, por serem tão pouco vencedores. A
perseguição foi monstruosa. Blucher ordenou o extermínio. Roguet dera o
lúgubre exemplo de ameaçar de morte todo granadeiro francês que lhe
levasse um prisioneiro prussiano. Blucher excedeu Roguet. Duhesme,
general da guarda jovem, encurralado em uma estalagem de Genappe,
entregou sua espada a um hussardo “da morte”, que pegou-a e matou o
prisioneiro. A vitória se completou com o assassinato dos vencidos.
Punamos, já que somos a história: o velho Blucher desonrou-se. Aquela
ferocidade foi o cúmulo do desastre. A derrota desesperada atravessou
Genappe, atravessou Quatre-Bras, atravessou Gosselies, atravessou
Frasnes, atravessou Thuin, atravessou Charleroi, só parando na fronteira.
Ai! E quem fugia desse modo? O grande exército!
Aquela vertigem, aquele terror, aquela queda em ruínas da maior
bravura que já surpreendeu a história, isso tudo ocorrera sem causa? Não.
A sombra de uma mão enorme se projetava sobre Waterloo. Era o dia do
destino. A força que está acima do homem concedeu aquele dia. Daí a ruga
de pavor nas testas; daí a entrega das espadas por todas aquelas grandes
almas. Os que haviam vencido a Europa foram vencidos, não tendo nada a
dizer, nem a fazer, sentindo na sombra uma presença terrível. Hoc erat in
fatis.10 Naquele dia, a perspectiva do gênero humano foi mudada.
Waterloo foi o eixo do século XIX. Era necessário o desaparecimento do
grande homem para a elevação do grande século. Alguém, a quem não se
replica jamais, encarregou-se disso. O pânico dos heróis se explica. Na
batalha de Waterloo, houve mais que nuvens, houve um meteoro. Foi Deus
que passou por ali.
Ao cair da noite, em um campo nas imediações de Genappe, Bernard e
Bertrand seguraram pelo casaco, e fizeram parar, um homem desvairado,
pensativo, sinistro, que, arrastado até ali pela torrente da derrota, acabava
de descer do cavalo, e, depois de enfiar o braço pela rédea, olhos perdidos,
voltava sozinho para Waterloo. Era Napoleão tentando ainda avançar,
gigantesco sonâmbulo desse sonho arruinado.

XIV. O ÚLTIMO ESQUADRÃO


Alguns esquadrões da guarda, imóveis no meio da torrente da derrota,
como rochedos no meio da água que corre, resistiram até a noite.
Chegando a noite, e também a morte, aguardaram essa dupla sombra e,
inabaláveis, deixaram-se envolver por ela. Cada regimento, isolado dos
outros e não tendo mais ligações com o exército, rompido de todos os
lados, morria por sua conta. Para pôr em prática a derradeira ação, haviam
tomado posição, uns nas colinas de Rossomme, outros na planície de
Mont-Saint-Jean, onde, abandonados, vencidos, horríveis, agonizavam
formidavelmente. Ulm, Wagram, Iéna, Friedland morriam neles.
Ao escurecer, por volta das nove horas, no pé do planalto de Mont–
Saint-Jean, restava um esquadrão. Nesse vale funesto, na base dessa
encosta escalada pelos encouraçados, agora inundada pelas massas
inglesas, sob o fogo convergente da vitoriosa artilharia inimiga, sob uma
incrível quantidade de projéteis, esse esquadrão lutava. Era comandado
por um obscuro oficial chamado Cambronne. A cada descarga, o
esquadrão diminuía, mas respondia, replicava à metralha fuzilando,
estreitando continuamente seus quatro paredões. Ao longe, os fugitivos
que paravam alguns momentos para tomar fôlego ouviam na escuridão
esse sombrio trovão decrescente.
Quando aquela legião já não passava de um punhado, quando sua
bandeira já não era mais que um trapo, quando seus fuzis sem munição já
não eram mais que bastões, quando a pilha de cadáveres já era maior que o
grupo dos vivos, houve entre os vencedores uma espécie de terror sagrado
em volta desses sublimes agonizantes, e a artilharia inglesa, voltando a
respirar, silenciou.
Foi uma espécie de pausa. Esses combatentes tinham em torno deles
um formigueiro de espectros, silhuetas de homens a cavalo, o perfil escuro
dos canhões, o céu branco visto através das rodas e das carretas; a colossal
cabeça mortal que os heróis sempre entreveem em meio à fumaça, no
fundo de uma batalha, avançava, fixando seu olhar sobre eles. Podiam
ouvir, na sombra crepuscular, que os canhões eram carregados; as mechas
acesas, como olhos de tigre dentro da noite, fizeram um círculo em volta
de suas cabeças; todas as tochas das baterias inglesas aproximaram-se dos
canhões, e então, comovido, mantendo em suspenso o supremo minuto
acima desses homens, um general inglês, Colville segundo uns, Maitland
segundo outros, gritou-lhes: “Bravos franceses, rendam-se!” Cambronne
respondeu: “Merda!”

XV. CAMBRONNE
Ao leitor francês que quer ser respeitado, a mais bela palavra, talvez,
que um francês já tenha dito não lhe pode ser repetida. Interdição de
colocar o sublime dentro da história.
Por nossa conta e risco, infringimos essa interdição.
Assim, entre aqueles gigantes, houve um titã, Cambronne.
Dizer aquela palavra e morrer em seguida, o que pode haver de mais
grandioso? Pois desejar morrer é morrer, e não foi culpa desse homem se,
fuzilado, sobreviveu.
O homem que ganhou a batalha de Waterloo não foi Napoleão,
derrotado; não foi Wellington, dobrando-se às quatro horas, desesperado às
cinco; não foi Blucher, que nem lutou; o homem que ganhou a batalha de
Waterloo foi Cambronne.
Fulminar com uma palavra dessas o trovão que nos mata, é vencer.
Responder assim à catástrofe, dizer aquilo ao destino, dar aquela base
ao futuro leão, atirar aquela réplica ao vento da noite, ao traiçoeiro muro
de Hougomont, ao barranco de Ohain, ao atraso de Grouchy, à chegada de
Blucher; ser a ironia no sepulcro, fazer de modo a permanecer de pé
depois de ter caído; afogar em duas sílabas a coalizão europeia, oferecer
aos reis as latrinas já conhecidas dos Césares, fazer da última das palavras
a primeira, envolvendo nela o brilho da França; insolentemente concluir
Waterloo com um carnaval, completar Leônidas com Rabelais, resumir
aquela vitória em uma frase suprema, impossível de pronunciar, perder o
terreno e conservar a história, depois de toda a carnificina ter a seu favor
os que gostam de rir, é magnífico! É insultar o relâmpago. É atingir a
grandeza de um Ésquilo.
A palavra de Cambronne produziu o efeito de uma fratura. Foi a
fratura de um coração pelo desdém; foi um excesso de agonia explodindo.
Quem venceu? Foi Wellington? Não. Se não fosse Blucher, estaria perdido.
Foi Blucher? Não. Se Wellington não tivesse começado, Blucher não
poderia terminar. Cambronne, esse passante de última hora, esse soldado
ignorado, essa porção infinitamente pequena da guerra, sente que ali há
uma mentira, uma mentira em uma catástrofe, acréscimo pungente, e, no
momento em que explode de raiva, oferecem-lhe esse escárnio, a vida!
Como não saltar! Eles estão lá, todos os reis da Europa, os generais
felizes, os Júpiteres tonantes, que têm cem mil soldados vitoriosos, e por
trás dos cem mil, um milhão, seus canhões, com as mechas acesas, estão
de boca aberta, têm sob os pés a guarda imperial e o grande exército,
acabam de massacrar Napoleão, e só resta Cambronne; não há mais
ninguém que proteste, a não ser esse verme. E ele protestará. Procura
então uma palavra como quem procura uma espada. Vem uma espuma a
seus lábios, e essa espuma é a palavra. Diante daquela vitória prodigiosa e
medíocre, diante daquela vitória sem vitoriosos, aquele desesperado se
ergue; ele sofre as consequências de sua enormidade, mas constata sua
nulidade; ele faz mais do que cuspir sobre ela, e sob o peso do número, da
força e da matéria, acha na alma uma expressão, o excremento. Repetimos,
dizer aquilo, fazer aquilo, achar aquilo, é ser o vencedor.
O espírito dos grandes dias incorporou-se nesse homem desconhecido
naquele minuto fatal. Cambronne achou a palavra de Waterloo, assim
como Rouget de l’Isle achou a Marselhesa, pela inspiração vinda das
alturas. Um eflúvio do furacão divino se destaca e passa por esses homens;
e eles estremecem, e um canta o canto supremo, e o outro solta o grito
terrível. Aquela palavra do desdém titânico, Cambronne não a joga apenas
sobre a Europa, em nome do Império, seria muito pouco; joga-a sobre o
passado, em nome da Revolução. Os que a ouvem reconhecem em
Cambronne a antiga alma dos gigantes. Parece Danton a falar ou Kleber a
rugir.
À palavra de Cambronne, a voz inglesa respondeu: “Fogo!” As baterias
flamejaram, a colina estremeceu, de todas aquelas bocas de bronze saiu
um derradeiro vômito de metralha, medonho; uma vasta fumaça,
vagamente esbranquiçada pela luz da lua nascente, se espalhou, e, ao se
dissipar, já não havia mais nada. Estava aniquilado aquele resto
formidável, a guarda estava morta. Os quatro muros daquele reduto vivo
jaziam, distinguindo-se apenas, aqui e ali, um leve estremecer entre os
cadáveres; e foi assim que as legiões francesas, maiores que as legiões
romanas, expiraram em Mont-Saint-Jean, sobre a terra úmida de chuva e
de sangue, nas escuras searas de trigo, no local por onde passa, agora, às
quatro horas da manhã, assobiando e açoitando alegremente seu cavalo,
Joseph, que faz o serviço da mala-posta de Nivelles.

XVI. QUOT LIBRAS IN DUCE?11


A batalha de Waterloo é um enigma. É tão obscura para os que a
ganharam quanto para aquele que a perdeu. Para Napoleão, é um pânico.
“Une bataille terminée, une journée finie, de fausses mesures réparées, de
plus grands succès pour le lendemain, tout fut perdu par un moment de
terreur panique.”12 Blucher não vê nela senão fogo; Wellington não
entende nada. Vejam os relatórios. Os boletins são confusos, os
comentários emaranhados. Uns balbuciam, outros gaguejam. Jomini
divide a batalha de Waterloo em quatro momentos; Muffling a reparte em
três peripécias; só Charras, embora em alguns pontos tenhamos uma visão
diferente da sua, percebeu com seu altivo olhar as linhas características
daquela catástrofe do gênio humano em luta com o acaso divino. Todos os
outros historiadores experimentam certo deslumbramento que os faz
tatear. Jornada fulgurante, efetivamente, desabamento da monarquia
militar, que para grande pasmo dos reis arrastou todos os reinos, queda da
força, derrota da guerra.
Nesse acontecimento, marcado por uma necessidade sobre-humana, a
parte dos homens não é nada.
Tirar Waterloo de Wellington e de Blucher é tirar alguma coisa da
Inglaterra e da Alemanha? Não. Nem a ilustre Inglaterra, nem a augusta
Alemanha estão em questão no problema de Waterloo. Graças aos céus, os
povos são grandes sem as lúgubres aventuras de espada. Nem a Alemanha,
nem a Inglaterra, nem a França se sustentam em uma bainha. No momento
em que Waterloo não é mais que um tinir de espadas, acima de Blucher, a
Alemanha tem Goethe, e, acima de Wellington, a Inglaterra tem Byron.
Uma vasta aurora de ideias caracteriza nosso século, e, nessa aurora, a
Inglaterra e a Alemanha irradiam uma luz magnífica. Ambas são
majestosas porque pensam. A elevação de nível que trazem à civilização
lhes é intrínseca, provém delas, e não de um acidente. Seu
engrandecimento no século XIX não teve Waterloo como fonte. Só os
povos bárbaros passaram por súbitos crescimentos após uma vitória. É a
vaidade passageira das torrentes infladas com as águas do temporal.
Os povos civilizados, sobretudo na época em que vivemos, não
crescem ou regridem pela boa ou má sorte de um capitão. Seu peso
específico no gênero humano resulta de algo mais que um combate.
Graças a Deus, sua honra, sua dignidade, sua luz, seu gênio não são
números que os heróis e os conquistadores, esses jogadores, possam
arriscar na loteria das batalhas. Muitas vezes, batalha perdida, progresso
conquistado. Menos glória, mais liberdade. O tambor se cala, a razão fala.
É o jogo em que quem perde ganha. Falemos, então, de Waterloo friamente
dos dois lados.
Deixemos ao acaso o que é do acaso e a Deus o que é de Deus. Que foi
Waterloo? Uma vitória? Não. Um jogo. Jogo ganho pela Europa, pago pela
França.
Nem valia muito a pena colocar ali um leão.
De resto, Waterloo foi o encontro mais estranho que houve na história.
Napoleão e Wellington. Não foram dois inimigos, foram dois adversários.
Deus, a quem as antíteses agradam, nunca fez contraste mais incrível, nem
confronto mais extraordinário. De um lado, a precisão, a previsão, a
geometria, a prudência, a segurança da retirada, a economia das reservas,
um sangue-frio obstinado, um método imperturbável, a estratégia que se
aproveita do terreno, a tática que equilibra os batalhões, a carnificina
calculada, a guerra feita com um relógio nas mãos, nada deixado
voluntariamente ao acaso, a velha coragem clássica, a correção absoluta.
Do outro, a intuição, a adivinhação, o desconhecimento militar, o instinto
sobre-humano, o bater de olhos flamejante, algo que olha como a águia e
fere como o raio, um artifício prodigioso em uma impetuosidade
desdenhosa, todos os mistérios de uma alma profunda, as associações com
o destino, o rio, a planície, a floresta, a colina, somadas e, de certo modo,
forçadas a obedecer; o déspota que chega a tiranizar o campo de batalha; a
fé nas estrelas mesclada à ciência estratégica, aumentando-a, mas
perturbando-a. Wellington era o Barême13 da guerra, Napoleão o
Michelangelo; mas o gênio, dessa vez, foi vencido pelo cálculo.
De ambos os lados, alguém era esperado. Foi quem calculou com
exatidão que teve êxito. Napoleão esperava Grouchy, ele não veio;
Wellington esperava Blucher, ele veio.
Wellington é a guerra clássica que vai à desforra. Bonaparte, em sua
aurora, o encontrara na Itália, e vencera soberbamente. A velha coruja
fugira diante do jovem abutre. A antiga tática fora não só fulminada, mas
escandalizada.
Quem era aquele corso de vinte e seis anos, o que significava aquele
ignorante esplêndido que, tendo tudo contra si, nada a seu favor, sem
víveres, nem munições, sem canhões, sem sapatos, quase sem exército,
com apenas um punhado de homens contra as massas, se arrojava sobre a
Europa confederada e conseguia de forma absurda vitórias no impossível?
De onde vinha aquele brilhante arrebatado que, quase sem retomar fôlego
e com o mesmo jogo de combatentes na mão, pulverizava, um após o
outro, os cinco exércitos do imperador da Alemanha, lançando Beaulieu
sobre Alvinzi, Wurmser sobre Beaulieu, Mélas sobre Wurmser, Mack
sobre Mélas? Quem era aquele recém-chegado à guerra, já tendo a
arrogância de um astro? A escola acadêmica militar o excomungava
enquanto fugia. Daí o rancor implacável do velho cesarismo contra o novo,
do sabre correto contra a espada flamejante, do tabuleiro de xadrez contra
o gênio. No dia 18 de junho de 1815, aquele rancor ditou a última frase e,
acima de Lodi, de Montebello, de Montenotte, de Mantoue, de Marengo e
de Arcole, escreveu: Waterloo. Triunfo dos medíocres, agradável às
maiorias. O destino consentiu tal ironia. Em seu declínio, Napoleão
encontrou diante dele o jovem Wurmser.
Efetivamente, para ter Wurmser, basta embranquecer os cabelos de
Wellington.
Waterloo é uma batalha de primeira ordem, ganha por um capitão de
segunda.
O que se deve admirar na batalha de Waterloo é a Inglaterra, é a
firmeza inglesa, a resolução inglesa, o sangue inglês; o que a Inglaterra ali
demonstrou de soberbo, gostem ou não, foi ela mesma. Não foi seu
capitão, foi seu exército.
Wellington, estranhamente ingrato, declara em uma carta escrita a
Lorde Bathurst que seu exército, o exército que combateu em 18 de junho
de 1815, era “detestável”. Que pensaria disso a sombria confusão de
ossadas enterradas nos campos de Waterloo?
A Inglaterra foi modesta demais face a Wellington. Fazer dele algo tão
grande é fazer da Inglaterra algo muito pequeno. Wellington foi um herói
como qualquer outro. Os escoceses pardos, a guarda a cavalo, os
regimentos de Maitland e de Mitchell, a infantaria de Pack e de Kempt, a
cavalaria de Ponsomby e de Somerset, os highlanders tocando a gaita de
fole sob a metralha, os batalhões de Rylandt, os recrutas novatos, que mal
sabiam manejar o mosquete, resistindo aos antigos e experimentados
soldados de Essling e de Rivoli, isso sim é grande. O mérito de Wellington
foi sua tenacidade, brilho não lhe diminuímos, mas o menor de seus
infantes e de seus cavaleiros foi tão sólido quanto ele. O iron–soldier vale
pelo iron-duke.14 Quanto a nós, toda a nossa glorificação é dirigida ao
soldado inglês, ao exército, ao povo inglês. Se há um troféu, é à Inglaterra
que é devido. A coluna de Waterloo seria mais justa se, em lugar de elevar
às nuvens a figura de um homem, elevasse a estátua de um povo.
Mas essa grande Inglaterra pode irritar-se com o que dizemos aqui. Ela
ainda tem, após seu 1688 e o nosso 1789, a ilusão feudal. Ela acredita na
hereditariedade e na hierarquia. Esse povo, cujo poder e glória nenhum
outro excede, considera-se como nação, não como povo. Como povo,
subordina-se com facilidade, tomando um lorde por um comandante.
Workman,15 deixa-se desdenhar; soldado, deixa-se espancar. Cabe lembrar
que, na batalha de Inkermann, um sargento que, ao que parece, havia salvo
o exército, não pôde ser mencionado por Lorde Raglan porque a hierarquia
militar inglesa não permite citar em relatório nenhum herói com
graduação inferior à de oficial.
O que nós admiramos, acima de tudo, em um encontro como o de
Waterloo, é a prodigiosa habilidade do acaso. Chuva noturna, muro de
Hougomont, barranco de Ohain, Grouchy surdo ao estrondo dos canhões, o
guia de Napoleão que o engana, o guia de Bulow que o esclarece; todo esse
cataclismo foi maravilhosamente conduzido.
No todo, diga-se, em Waterloo houve mais massacre do que batalha.
Waterloo, de todas as batalhas campais, foi aquela de menor frente em
relação ao número de combatentes. Napoleão em três quartos de légua,
Wellington em meia légua; setenta e dois mil combatentes de cada lado.
Dessa aglomeração resultou a carnificina.
Foi feito o seguinte cálculo16 e estabelecida a seguinte proporção.
Perda de homens em Austerlitz, franceses: catorze por cento; russos: trinta
por cento; austríacos: quarenta e quatro por cento. Em Wagram, franceses:
treze por cento; austríacos: catorze. Em Moscou, franceses: trinta e sete
por cento; russos: quarenta e quatro. Em Bautzen, franceses: treze por
cento; russos e prussianos: catorze. Em Waterloo, franceses: cinquenta e
seis por cento; aliados, trinta e um. Total para Waterloo, quarenta e um por
cento. Cento e quarenta e quatro mil combatentes; sessenta mil mortos.
O campo de Waterloo tem hoje a calma que pertence à terra, suporte
impassível do homem, e assemelha-se a qualquer planície.
À noite, no entanto, desprende-se dele uma espécie de bruma
visionária, e se algum viajante passear por ali, e olhar, escutar, pensar
como Virgílio nas funestas planícies de Filipos, será tomado pela
alucinação da catástrofe. O medonho 18 de junho revive; a falsa colina-
monumento se apaga, o tal leão se dissipa, o campo de batalha retoma sua
realidade; as linhas de infantaria ondulam na planície, galopes furiosos
atravessam o horizonte; o viajante que sonha vê assustado o brilho das
espadas, o faiscar das baionetas, o flamejar das bombas, o
entrecruzamento monstruoso dos estrondos; ouve, como um estertor vindo
de uma tumba, o vago clamor da batalha fantasma; aquelas sombras são os
granadeiros; além, aqueles clarões são os encouraçados; aquele esqueleto
ali é Napoleão; aquele outro, Wellington; nada mais daquilo existe, mas
combate e luta ainda; os barrancos se cobrem de púrpura, as árvores
estremecem, a fúria se mostra até mesmo nas nuvens, e, no meio das
trevas, todas aquelas elevações ferozes, Mont-Saint-Jean, Hougomont,
Frischemont, Papelotte e Plancenoit, aparecem confusamente coroadas
com turbilhões de espectros que se exterminam.

XVII. DEVE-SE ACHAR QUE WATERLOO FOI BOM?


Existe uma escola liberal muito respeitável que não odeia Waterloo.
Não nos incluímos nela. Para nós, Waterloo é apenas a data estupefata da
liberdade. Que semelhante águia tenha saído de tal ovo é, com certeza,
algo de inesperado.
Waterloo, se nos colocarmos do ponto de vista culminante da questão,
foi intencionalmente uma vitória contrarrevolucionária. Foi a Europa
contra a França, foi Petersburgo, Berlim e Viena contra Paris, foi o status
quo contra a iniciativa, foi o 14 de julho de 1789 atacado por intermédio
do 20 de março de 1815, foi a ordem de combate das monarquias contra a
indomável revolta francesa. O sonho era extinguir, enfim, esse vasto povo
havia vinte e seis anos em erupção. Solidariedade dos Brunswick, dos
Nassau, dos Romanoff, dos Hohenzollern, dos Habsbourg, com os
Bourbons. Waterloo traz na garupa o direito divino. Verdade é que, tendo o
Império sido despótico, a realeza, pela natural reação das coisas, devia
forçosamente ser liberal, e que uma ordem constitucional saiu a
contragosto de Waterloo, para grande lamento dos vencedores. É que a
Revolução não pode ser verdadeiramente vencida, e, sendo providencial e
absolutamente fatal, ela reaparece sempre, antes de Waterloo, em
Bonaparte, que derruba os velhos tronos, e depois de Waterloo, em Luís
XVIII, que outorga e aceita a Carta. Bonaparte coloca um postilhão no
trono de Nápoles e um sargento no trono da Suécia, empregando a
desigualdade para demonstrar a igualdade; Luís XVIII, em Saint-Ouen,
referenda a Declaração dos Direitos do Homem. Se quiserem saber o que é
a revolução, chamem-na de Progresso, e, se quiserem saber o que é o
progresso, chamem-no de Amanhã. O Amanhã faz irresistivelmente seu
trabalho, e o faz desde hoje. Ele sempre chega a seus objetivos por meios
estranhos. Emprega Wellington para fazer de Foy, que era um mero
soldado, um orador. Foy cai em Hougomont e se destaca na tribuna. Assim
procede o progresso. Não há ferramenta ruim para esse operário. Ele
adapta ao seu trabalho divino, sem se perturbar, o homem que transpôs os
Alpes, ou o bom velho, doente e vacilante, Pai Élysée.17 Serve-se tanto do
reumático como do conquistador; do conquistador externamente, do
reumático internamente. Waterloo, acabando com a demolição dos tronos
europeus pela espada, não teve outro efeito senão o de dar continuidade ao
trabalho revolucionário por um outro lado. Acabaram os homens da
espada, é a vez dos pensadores. O século que Waterloo queria fazer parar
passou-lhe por cima e continuou seu caminho. Aquela sinistra vitória foi
vencida pela liberdade.
Em suma, e incontestavelmente, o que triunfava em Waterloo, o que
sorria por trás de Wellington, o que lhe trazia todos os bastões de marechal
da Europa, inclusive, segundo se diz, o bastão de marechal da França, o
que alegremente movia os carrinhos de terra cheios de ossadas para formar
a elevação do leão, o que triunfantemente escreveu no pedestal esta data:
18 de junho de 1815, o que encorajava Blucher a acutilar a derrota, o que
se curvava do alto do planalto de Mont-Saint-Jean sobre a França, como se
fosse sobre uma presa, era a contrarrevolução. Era a contrarrevolução que
murmurava esta infame palavra: desmembramento. Ao chegar a Paris, viu
a cratera de perto, sentiu aquela cinza queimando-lhe os pés e
reconsiderou. Voltou ao balbuciar de uma constituição.
Vejamos em Waterloo apenas o que está em Waterloo. Nenhuma
liberdade intencional. A contrarrevolução foi involuntariamente liberal, do
mesmo modo que Napoleão, por um fenômeno correspondente, foi
involuntariamente revolucionário. Em 18 de junho de 1815, Robespierre, a
cavalo, foi atirado da sela.

XVIII. RECRUDESCÊNCIA DO DIREITO DIVINO


Fim da ditadura. Todo um sistema da Europa desmoronou.
O Império sucumbiu em sombras semelhantes às que envolveram o
expirar do mundo romano. Viu-se novamente o abismo como no tempo dos
bárbaros. Só que a barbárie de 1815, que é preciso chamar, com seu nome
de batismo, de contrarrevolução, tinha pouco fôlego; rapidamente ficou
sem ar e estacou. O Império, devemos confessar, foi chorado, e chorado
por olhos heroicos. Se a glória estava na espada transformada em cetro, o
Império havia sido a própria glória. Ele havia estendido sobre a terra toda
a luz que a tirania pode oferecer; luz sombria. Digamos mais, luz obscura.
Comparada ao verdadeiro dia, era a treva. Esse desaparecimento da treva
produziu o efeito de um eclipse.
Luís XVIII voltou a Paris. As danças de roda do 8 de julho apagaram o
entusiasmo do 20 de março.18 O corso tornou-se a antítese do bearnês.19 A
bandeira da cúpula das Tulherias era branca. O exílio foi ao trono. A mesa
de pinho de Hartwell foi colocada diante da poltrona ornada com flores-
de-lis de Luís XIV. Falou-se de Bouvines e de Fontenoy como de ontem,
Austerlitz envelhecera. O altar e o trono confraternizaram
majestosamente. Uma das formas mais incontestáveis da salvação da
sociedade no século XIX estabeleceu-se na França e no continente. A
Europa adotou a insígnia branca. Trestaillon20 tornou-se célebre. A divisa
non pluribus impar [superior a todos] reapareceu nos raios representando
um sol, traçados na pedra de fachada da caserna do cais d’Orsay. Onde
havia existido uma guarda imperial, surgia uma casa vermelha. O arco do
Carrousel, carregado de vitórias mal sustentadas, desorientado em meio a
essas novidades, envergonhado talvez de Marengo e de Arcole, saiu do
embaraço com a estátua do duque de Angoulême. O cemitério de La
Madaleine, temível vala comum de 93, cobriu-se de mármore e de jaspe,
os ossos de Luís XVI e de Maria Antonieta fazendo parte daquela poeira.
No fosso de Vincennes, uma coluna sepulcral saía da terra, fazendo
lembrar que o duque de Enghien havia morrido no mesmo mês em que
Napoleão fora coroado. O papa Pio VII, que fizera esta sagração tão perto
daquela morte, abençoou tranquilamente a queda, do mesmo modo que
abençoara a elevação. Em Schoenbrunn havia uma pequena sombra de
quatro anos a quem era revoltante chamar de rei de Roma. E essas coisas
aconteceram, e esses reis retomaram seus tronos, e o senhor da Europa foi
metido em um cárcere, e o Antigo Regime tornou-se o novo, e toda a
sombra e toda a luz da terra mudaram de lugar porque, na tarde de um dia
de verão, um pastor disse a um prussiano no meio de um bosque: vá por
aqui e não por ali!
Aquele 1815 foi uma espécie de abril lúgubre. As velhas realidades
doentias e venenosas cobriram-se de aparências novas. A mentira esposou
1789, o direito divino disfarçou-se em constituição, as ficções tornaram-se
constitucionais, os preconceitos, as superstições e as segundas intenções
envernizaram-se de liberalismo, tendo no coração o artigo 14.21 Troca de
pele das serpentes.
O homem era, ao mesmo tempo, engrandecido e diminuído por
Napoleão. O ideal, naquele reinado da matéria esplêndida, recebeu o
estranho nome de ideologia. Grave imprudência de um grande homem
tornar o futuro ridículo. No entanto, os povos, essa carne de canhão tão
apaixonada pelo canhoneiro, procuravam-no com os olhos. Onde está? O
que faz? Napoleão está morto, dizia um passante a um inválido de
Marengo e de Waterloo. Ele, morto?, exclamou esse soldado, o senhor não
o conhece muito bem! As imaginações desafiavam esse homem vencido. O
fundo da Europa, depois de Waterloo, ficou tenebroso. Algo de muito
grande permaneceu vazio por muito tempo com o sumiço de Napoleão.
Os reis se colocaram nesse vazio. A velha Europa aproveitou-se disso
para reformar-se. Formou-se uma Santa Aliança. Bela Aliança, dissera de
antemão o fatal campo de Waterloo.
Na presença e em face dessa antiga Europa refeita, as linhas de uma
nova França se esboçaram. O futuro, ridicularizado pelo imperador, fez
sua entrada. Tinha na fronte esta estrela, Liberdade. Os olhos ardentes das
jovens gerações voltaram-se para ela. Coisa singular, enamoraram-se ao
mesmo tempo deste futuro, Liberdade, e deste passado, Napoleão. A
derrota engrandecera o vencido. Bonaparte caído parecia mais alto do que
Napoleão de pé. Os que haviam triunfado tiveram medo. A Inglaterra
mandou que fosse vigiado por Hudson Lowe, e a França, que fosse
espreitado por Montchenu. Seus braços cruzados tornaram-se o
desassossego dos tronos. Alexandre o chamava de “minha insônia”. Esse
medo provinha da quantidade de revolução que havia nele. É isso que
explica e desculpa o liberalismo bonapartista. Aquele fantasma fazia
tremer o Velho Mundo. Os reis reinaram muito pouco à vontade com o
rochedo de Santa Helena no horizonte.
Enquanto Napoleão agonizava em Longwood, os sessenta mil homens
caídos no campo de Waterloo apodreciam tranquilamente, espalhando-se
pelo mundo um pouco de sua paz. O Congresso de Viena fez os tratados de
paz de 1815, e a Europa chamou a isso de Restauração.
Aí está o que foi Waterloo.
Mas que importa ao infinito? Toda essa tempestade, toda essa nuvem,
essa guerra, depois essa paz, todas essas sombras, não perturbaram um só
instante a claridade do olho imenso, perante o qual o gafanhoto, saltando
de uma folha de erva para outra, se iguala à águia que voa de campanário
em campanário nas torres de Notre-Dame.

XIX. O CAMPO DE BATALHA À NOITE


Voltemos, é uma necessidade deste livro, a esse fatal campo de
batalha.
Dezoito de junho de 1815, era noite de lua cheia. Aquela claridade
favoreceu a perseguição feroz de Blucher, denunciou o rastro dos
fugitivos, entregou aquela desastrosa multidão à encarniçada cavalaria
prussiana e ajudou o massacre. Às vezes, nas catástrofes, ocorrem essas
trágicas complacências da noite.
Lançado o último tiro de canhão, a planície de Mont-Saint-Jean ficou
deserta. Os ingleses ocuparam o acampamento dos franceses; é prova
habitual da vitória deitar-se no leito do vencido. Montaram seu
acampamento adiante de Rossomme. Os prussianos, soltos atrás dos
vencidos, continuaram avançando; Wellington foi à aldeia de Waterloo
para redigir seu relatório a Lorde Bathurst.
Se o sic vos non nobis22 alguma vez foi aplicável, o foi seguramente à
aldeia de Waterloo. Waterloo nada fez e ficava a meia légua do local da
ação. Mont-Saint-Jean foi bombardeado, Hougomont foi incendiada,
Papellote foi incendiada, Plancenoit foi incendiada, Haie-Sainte foi
tomada de assalto, Belle-Alliance viu o abraço dos dois vencedores, mas
mal se sabem seus nomes, e Waterloo, que não trabalhou pela batalha,
ficou com todas as suas honras.
Não somos daqueles que lisonjeiam a guerra; quando uma
oportunidade se apresenta, dizemos a ela suas verdades. A guerra tem
medonhas belezas que não temos ocultado, mas, convenhamos, tem
também feios aspectos. Um dos mais surpreendentes é a prontidão no
despojar dos mortos após a vitória. A aurora que se segue a uma batalha
sempre mostra cadáveres nus.
Quem faz isso? Quem mancha assim o triunfo? Que repugnante mão é
essa que furtivamente escorrega no bolso da vitória? Quem são esses
gatunos que dão seus golpes por trás da glória? Alguns filósofos, entre
outros Voltaire, afirmam que são exatamente esses os que fazem a glória.
São os mesmos, dizem eles, não há substituição; os que ficam de pé
saqueiam os que ficaram por terra. O herói do dia torna-se o vampiro da
noite. Afinal de contas, bem que se tem o direito de espoliar um cadáver
do qual se foi o autor. Nós, porém, não pensamos assim. Colher os louros e
roubar os calçados de um morto, isso nos parece impossível para a mesma
mão.
O que é certo é que, em geral, após os vencedores, vêm os ladrões. Mas
deixemos o soldado, sobretudo o soldado contemporâneo, fora dessa
questão.
Todo exército tem uma cauda, e é isso que devemos acusar. Homens–
morcego, meio bandidos, meio lacaios, todos os tipos de animais noturnos
engendrados por esse crepúsculo que chamamos de guerra, gente que veste
uniformes mas que não combate, falsos doentes, temíveis estropiados,
taverneiros suspeitos trotando, algumas vezes com suas mulheres, em
cima de pequenas charretes, roubando para revender, mendigos se
oferecendo como guias aos oficiais, homens grosseiros, saqueadores; os
exércitos em marcha de outrora — não falamos do tempo presente —
carregavam tudo isso; em seu jargão eram os chamados “retardatários”.
Nenhum exército e nenhuma nação eram responsáveis por esses entes que
falavam italiano e seguiam os alemães, que falavam francês e seguiam os
ingleses. Foi por um desses miseráveis, um espanhol que falava francês,
que o marquês de Fervacques, enganado pelo ininteligível sotaque picardo,
e tomando-o por um dos nossos, foi morto traiçoeiramente e roubado no
próprio campo de batalha na noite que se seguiu à vitória de Cerisoles.23
Da pilhagem nascia o pilhador. A detestável máxima: viver às custas
do inimigo produzia essa lepra, só curável por uma forte disciplina. Há
reputações que enganam; nem sempre se sabe por que certos generais,
grandes, por sinal, foram tão populares. Turenne era adorado por seus
soldados porque tolerava a pilhagem; o mal consentido faz parte da
bondade; Turenne era tão bom que deixou o Palatinado ser destruído.
Seguindo os exércitos, viam-se mais ou menos desses “retardatários”,
segundo a maior ou menor severidade dos chefes. Hoche e Marceau não
tinham nenhum, Wellington, de boa vontade lhe rendemos essa justiça,
tinha poucos deles.
Contudo, na noite de 18 para 19 de junho, os mortos foram despojados.
Wellington foi rígido; havia ordem de passar pelas armas aquele que fosse
apanhado em flagrante delito; a rapina, porém, é tenaz. Os saqueadores
roubavam em um canto do campo de batalha enquanto outros eram
fuzilados no outro canto.
A lua estava sinistra sobre aquela planície.
Por volta da meia-noite, um homem vagava, ou melhor, rastejava pelos
lados do barranco de Ohain. Era, segundo todas as aparências, um dos que
nós acabamos de caracterizar, nem inglês, nem francês, nem aldeão, nem
soldado, mais vampiro que homem, atraído pelo cheiro dos mortos, tendo
como vitória o roubo; vinha a Waterloo para saquear. Vestia uma roupa que
era como um capote; era inquieto e audacioso, ia adiante e olhava para
trás. Quem era aquele homem? A noite talvez soubesse mais a seu respeito
do que o dia. Não trazia saco, mas é evidente que seu capote tinha grandes
bolsos. De tempos em tempos, parava, examinava em torno da planície
para ver se era observado, abaixava-se rapidamente, mexia em alguma
coisa silenciosa e imóvel no chão, depois erguia-se e afastava-se. O modo
como deslizava, suas atitudes, seus gestos rápidos e misteriosos, faziam-
no semelhante a essas larvas crepusculares que povoam as ruínas,
chamadas pelas antigas lendas normandas de “os Alleurs”.
Certas aves pernaltas noturnas produzem silhuetas como essas no
pântano.
Um olhar que tivesse sondado atentamente a cerração teria notado, a
pouca distância, parado e como que escondido por trás do casebre situado
na beira da estrada de Nivelles, no ângulo com a estrada de Mont-Saint-
Jean a Braine-l’Alleud, um pequeno carro de víveres com uma cobertura
de vime escurecida, puxado por um animal esfomeado que comia a urtiga
através das rédeas, e, dentro desse carro, uma mulher sentada sobre caixas
e embrulhos. Talvez houvesse alguma ligação entre esse carro e aquele
homem.
A escuridão estava serena. Sequer uma nuvem no céu. Que importa que
a terra esteja vermelha? A lua continua branca. Essas são as indiferenças
do céu. Nos prados, galhos de árvores quebrados pelos tiros, mas ainda
pendurados, balançavam levemente ao vento da noite. Um sopro, quase
uma respiração, agitava os arbustos. Havia na relva um tremor semelhante
ao partir de almas.
Ao longe, ouvia-se vagamente o vaivém das patrulhas e das rondas do
acampamento inglês.
Hougomont e Haie-Sainte continuavam a arder, formando, uma a
oeste, outra a leste, duas grandes chamas às quais vinha se prender, como
um colar de rubis estendido, tendo nas extremidades essas duas pedras, o
cordão de fogueiras do acampamento inglês, disposto em um imenso
semicírculo sobre as colinas do horizonte.
Já narramos a catástrofe do caminho de Ohain. O coração se
constrange só de pensar o que foi aquela morte para tantos bravos.
Se alguma coisa é espantosa, se existe uma realidade que ultrapassa o
sonho, é isto: viver, ver o sol, estar em plena posse da força viril, ter saúde
e alegria, rir abertamente, correr em direção a uma glória resplandecente
que temos diante de nós, sentir no peito um pulmão que respira, um
coração que pulsa, uma vontade que raciocina; falar, pensar, ter esperança,
amar; ter mãe, ter mulher, ter filhos, ter a luz, e, de repente, em menos de
um minuto, o tempo de um grito, afundar em um abismo, cair, rolar,
esmagar, ser esmagado; ver as hastes do trigo, flores, folhas, ramos, sem
poder agarrar-se a nada, sentir inútil sua espada, sentir homens por baixo
de si e cavalos por cima, debater-se em vão, os ossos quebrados por algum
coice na escuridão, sentir um calcanhar que lhe faz saltar os olhos, morder
com raiva as ferraduras dos cavalos, sufocar, berrar, se retorcer, estar lá
embaixo e dizer: ainda há pouco eu estava vivo!
Agora tudo era silêncio ali onde havia agonizado o lamentável
desastre. A vala do barranco estava repleta de cavalos e de cavaleiros,
inextricavelmente amontoados. Terrível emaranhado! Não havia mais
encostas, os cadáveres nivelavam o caminho com a planície chegando às
bordas, como um alqueire de cevada bem medido. Uma pilha de mortos na
parte alta, um rio de sangue na parte baixa, assim ficou aquele caminho na
noite de 18 de junho de 1815. O sangue corria até o calçamento de
Nivelles, onde se esparramava em um largo charco diante da trincheira de
árvores cortadas que obstruía a estrada, em um local que ainda hoje é
apontado. Foi, como estarão lembrados, no lado oposto, em direção ao
caminho de Genappe, que ocorreu a derrota dos encouraçados. A
quantidade de cadáveres era proporcional à profundidade do barranco.
Quase no meio, na parte onde se tornava plana, onde passara a divisão
Delord, a camada dos mortos era mais delgada.
O homem perambulando na noite, o que acabamos de fazer o leitor
entrever, ia para aqueles lados. Ele fuçava naquele túmulo imenso. Olhava.
Fazia não se sabe que horrenda revista aos mortos. Caminhava com os pés
no sangue.
De repente parou.
Alguns passos adiante dele, no ponto em que terminava o amontoado
de cadáveres, por baixo daquele monte de homens e de cavalos, saía uma
mão aberta, iluminada pela lua. Aquela mão tinha em um dos dedos algo
que brilhava, era um anel de ouro.
O homem curvou-se, permaneceu um momento agachado, e, quando se
levantou, não havia mais nenhum anel naquela mão.
Ele não chegou precisamente a se levantar, ficou em atitude simulada e
arisca, de costas para os mortos, escrutando o horizonte, de joelhos, a
frente do corpo sobre os indicadores apoiados no chão, a cabeça
espreitando por cima da borda do caminho. As quatro patas do chacal são
muito convenientes para certas ações.
Depois, tomando uma resolução, levantou-se.
Nesse momento, teve um sobressalto. Sentiu que o seguravam por trás.
Voltou-se; era a mão aberta que voltava a se fechar e que agarrava a barra
de seu capote.
Um homem honrado teria tido medo; esse desatou a rir.
— Veja — disse ele —, é só o morto! Prefiro uma alma do outro
mundo a um soldado.
No entanto, a mão desfaleceu e o soltou. Qualquer esforço se esgota
rapidamente dentro de um túmulo.
— O que é isso! — tornou o vagabundo. — Esse morto está vivo?
Então vamos ver.
Curvou-se outra vez, remexeu no amontoado, afastou o que fazia
obstáculo, pegou a mão, segurou o braço, livrou-lhe a cabeça, puxou o
corpo para fora e, alguns instantes depois, arrastava por entre as sombras
do barranco um homem inanimado, pelo menos desmaiado. Era um
encouraçado, um oficial, mas um oficial de certa graduação; uma grande
dragona dourada aparecia por baixo da couraça; esse oficial não tinha mais
o capacete. Um furioso golpe de sabre cortara seu rosto, onde só se via
sangue. De resto, não parecia ter nenhum membro quebrado, e, por algum
feliz acaso, se é que essas palavras podem aqui ser empregadas, os mortos
haviam formado um arco sobre ele, impedindo assim que fosse esmagado.
Seus olhos estavam fechados.
Tinha, sobre a couraça, a cruz de prata da Legião de Honra, que o
vagabundo arrancou, fazendo desaparecer em um dos abismos que havia
sob seu capote.
Depois, apalpou o bolso do oficial, sentiu que ali havia um relógio e o
pegou. Em seguida, vasculhou o colete e achou uma bolsa, que também
levou.
Nessa fase dos socorros que ele dispensava ao moribundo, o oficial
abriu os olhos e disse com voz enfraquecida:
— Obrigado.
A brutalidade dos movimentos do homem que o carregava, o frescor da
noite e a respiração ao ar livre tinham-no tirado de seu estado de letargia.
O vagabundo não respondeu; levantou a cabeça. Ouvia-se na planície
um rumor de passos, talvez os de alguma patrulha que se aproximava.
O oficial murmurou, pois ainda havia agonia em sua voz:
— Quem ganhou a batalha?
— Os ingleses — respondeu o vagabundo.
O oficial continuou:
— Procure em meus bolsos. Vai encontrar uma bolsa e um relógio.
Pegue-os.
Isso já estava feito.
O homem simulou executar o que fora pedido e disse:
— Não há nada aqui.
— Fui roubado — replicou o oficial. — É pena, era para lhe dar.
Os passos da patrulha tornavam-se cada vez mais distintos.
— Alguém está vindo — disse o vagabundo, fazendo um movimento
de quem se retira.
O oficial, levantando o braço com dificuldade, o reteve.
— Devo-lhe a vida. Quem é o senhor?
O vagabundo respondeu rápido e em voz baixa:
— Eu também era do exército francês, como o senhor. Preciso deixá-
lo; se me pegassem, me fuzilariam. Salvei-lhe a vida, agora se arranje
como puder.
— Qual é a sua patente?
— Sargento.
— Como se chama?
— Thénardier.
— Não esquecerei esse nome — disse o oficial. — E o senhor, guarde
o meu. Meu nome é Pontmercy.

__________________________
1 Antiga unidade de medida de comprimento.
2 Walter Scott, Lamartine, Vaulabelle, Charras, Quinet, Thiers. (N. A.)
3 Salvador Rosa, pintor do século XVII, lírico e agitado, da escola de Nápoles. Jean-Baptiste
Vauquette de Gribeauval, comandante da artilharia francesa antes da Revolução.
4 Jean-Charles de Folard, estrategista e escritor militar francês, escreveu sobre Polybe,
historiador grego e autor de Tratado sobre a Tática.
5 “César ri, Pompeu chorará” — Virgílio.
6 Alusão aos versos de Virgílio (Geórgicas): “Trabalhando em seu campo, um agricultor
encontrará armas roídas pela [scabra rubigine] ferrugem”.
7 Eis a inscrição:

D.O.M.*
Cy a éte écrasé
Par malheur
Sous un chariot
Monsieur Bernard
De Brye marchand
À Bruxelles le (ilegível)
Febvrier 1637

* D.O.M.: Deo Optimo Maximo — dedicatória de igrejas e


monumentos.
8 Referência ao franzir de sobrancelhas de Júpiter, que na mitologia, detona o trovão fatal.
9 Splendid! — palavra textual. (N. A.).
10 “Tal era o destino.”
11 “Quanto pesa o chefe?”
12 “Uma batalha que termina, uma jornada que acaba, medidas erradas que são reparadas, os
maiores êxitos assegurados para o dia seguinte, tudo foi perdido em um momento de terror
pânico” (Napoleão, Ditados de Santa-Helena). (N. A.)
13 Referência a François Barême (1640-1703), aritmético francês.
14 O soldado de ferro vale pelo “duque de ferro”, apelido de Wellington.
15 “Trabalhador.”
16 Os números apareceram em um artigo de um jornal belga em 6 de junho de 1861.
17 Referência ao médico de Luís XVIII, a quem a idade e a doença dificultavam caminhar.
18 20 de março de 1815: entrada de Napoleão nas Tulherias, retornando da ilha de Elba; 8 de
julho: entrada de Luís XVIII em Paris.
19 Pessoa natural da antiga província francesa de Béarn.
20 Alcunha de Jacques Dupont, chefe do “terror branco” em Nîmes.
21 Artigo oriundo da Carta Constitucional de julho de 1814, que dava ao chefe de Estado
poderes de exceção.
22 “Assim fizeste, mas não para ti.
23 Batalha de Cerisoles em abril de 1544 entre a França, Espanha e os Países Baixos.
LIVRO II
O NAVIO ORION

I. O NÚMERO 24.601 TORNA-SE O NÚMERO 9.430


JEAN VALJEAN fora preso novamente.
Ficarão gratos por passarmos rapidamente sobre pormenores
dolorosos. Vamos nos limitar a transcrever duas pequenas notícias
publicadas pelos jornais da época poucos meses depois dos surpreendentes
acontecimentos ocorridos em Montreuil-sur-Mer.
Essas notícias são um tanto sumárias. Cabe lembrar que naquela época
ainda não havia a Gazette des Tribunaux.
A primeira notícia, extraímos do Drapeau Blanc, datada de 25 de julho
de 1823:

“Um distrito de Pas-de-Calais acaba de ser palco de um acontecimento pouco comum.


Um homem estranho ao departamento, chamado senhor Madeleine, havia alguns anos vinha
fazendo progredir, graças a novos procedimentos, uma antiga indústria local, a fabricação
de azeviche e de vidrilhos pretos. Esse homem construiu ali sua fortuna e, devemos dizer, a
fortuna da cidade. Em reconhecimento a seus serviços, foi nomeado prefeito. A polícia,
porém, descobriu que o senhor Madeleine era ninguém menos que um antigo forçado
chamado Jean Valjean, saído das galés sem autorização e condenado em 1796 por crime de
roubo. Jean Valjean foi levado novamente à prisão. Parece que, antes disso, conseguiu
retirar do banco Laffitte uma quantia superior a meio milhão que ali havia colocado, e que,
de resto, diga-se, havia ganho muito legitimamente em seu comércio. Não foi possível saber
onde Jean Valjean escondeu esse dinheiro ao regressar às galés de Toulon”.

A segunda notícia, um pouco mais detalhada, foi extraída do Journal


de Paris, da mesma data.

“Um antigo forçado liberado, chamado Jean Valjean, acaba de comparecer perante o
Tribunal Criminal de Var, em circunstâncias que chamam a atenção. Esse facínora havia
conseguido enganar a vigilância policial; mudara de nome e conseguira fazer-se nomear
prefeito de uma de nossas pequenas cidades do Norte, onde havia estabelecido um comércio
bastante considerável. Acaba, enfim, de ser desmascarado e preso, graças ao infatigável zelo
do Ministério Público. No momento de sua prisão, a mulher de rua que tinha como
concubina morreu de susto. Esse miserável, que é dotado de uma força hercúlea, encontrou
um meio de se evadir, mas, três ou quatro dias após sua evasão, a polícia colocou
novamente as mãos sobre ele, em Paris, no momento em que subia em uma dessas
carruagens que transitam entre a capital e a aldeia de Montfermeil (Seine-et-Oise). Dizem
que se aproveitou do intervalo desses três ou quatro dias de liberdade para retirar uma
quantia considerável que havia depositado no estabelecimento de um de nossos principais
banqueiros. Avalia-se essa quantia em seiscentos ou setecentos mil francos. A julgar pelo
auto de acusação, ele a teria escondido em um lugar conhecido apenas por ele mesmo, o
que tornou impossível encontrá-la. Seja como for, o tal Jean Valjean acaba de ser entregue
ao tribunal do departamento de Var, acusado de um roubo à mão armada, há
aproximadamente oito anos, cometido em uma estrada contra a pessoa de um desses
honrados rapazes que, como disse o patriarca de Ferney em versos imortais:

…De Savoie arrivent tous les ans


Et dont la main légèrement essuie
Ces longs canaux engorgés par la suie.1

Da Saboia chegam todos os anos,


E com as mãos limpam, ligeiramente,
Essas longas chaminés cheias de fuligem.

O bandido renunciou a defender-se. Ficou estabelecido, pelo hábil e eloquente órgão do


Ministério Público, que o roubo foi praticado em cumplicidade, e que Jean Valjean fazia
parte de uma quadrilha de ladrões que atuava no sul. Em consequência disso, Jean Valjean,
declarado culpado, foi condenado à pena de morte. Ele recusou-se a apelar da sentença. O
rei, em sua inesgotável clemência, dignou-se a comutar sua pena para a de trabalhos
forçados por toda a vida. Jean Valjean foi imediatamente encaminhado às galés de Toulon.”

Não ficou esquecido que Jean Valjean, quando residente em Montreuil-


sur-Mer, tinha hábitos religiosos. Alguns jornais, entre os quais o
Constitutionnel, apresentaram essa comutação como um triunfo do partido
clerical.
Jean Valjean mudou de número na prisão. Era agora o 9.430.
De resto, falemos neste momento para não mais voltarmos a isso, que
a prosperidade de Montreuil-sur-Mer desapareceu com o senhor
Madeleine; tudo o que ele havia previsto em sua noite de febre e de
hesitações se realizou; faltando ele, faltou, efetivamente, a alma. Após a
sua queda, operou-se em Montreuil-sur-Mer essa partilha egoísta das
grandes existências caídas, esse desmembramento fatal das coisas
florescentes que todos os dias, obscuramente, ocorre na comunidade
humana, e que a história só uma vez fez notar, por ter acontecido após a
morte de Alexandre. Os tenentes foram coroados reis; os contramestres
improvisaram-se em fabricantes. Surgiram então as rivalidades invejosas.
As vastas oficinas do senhor Madeleine foram fechadas, os edifícios
caíram em ruínas, os operários se dispersaram. Uns saíram da cidade,
outros largaram o ofício. Daí em diante, tudo se fez de forma pequena, ao
invés de ser feito em grande forma; visando-se lucro, em vez de visar-se o
bem. Não havia mais um centro; só concorrência por toda parte, e
ganância. O senhor Madeleine dominava e dirigia tudo. Com sua queda,
cada um puxou para si; o espírito de luta sucedeu ao espírito de
organização; a aspereza à cordialidade; o ódio de uns contra os outros à
benevolência do fundador para com todos. Os fios atados por ele
misturaram-se e romperam-se; falsificaram os processos; depreciaram os
produtos; acabaram com a confiança; o escoamento e as encomendas
diminuíram, os salários baixaram, as oficinas ficaram sem trabalho, a
falência chegou. E, depois, nada mais para os pobres. Tudo se evaporou.
Até mesmo o Estado percebeu que alguém havia sido esmagado em
algum lugar. Menos de quatro anos após a sentença do Tribunal Criminal,
constatando em benefício das galés a identidade de pessoa entre o senhor
Madeleine e Jean Valjean, as despesas feitas com o pagamento de
impostos no distrito de Montreuil-sur-Mer haviam duplicado,
circunstância que o senhor Villèle fez observar à tribuna no mês de
fevereiro de 1827.

II. ONDE SERÃO LIDOS DOIS VERSOS QUE TALVEZ


SEJAM DO DIABO
Antes de ir mais adiante, é oportuno narrar com alguns detalhes um
fato singular que ocorreu, mais ou menos na mesma época, em
Montfermeil, e que talvez coincida com certas conjecturas do Ministério
Público.
Em Montfermeil há uma superstição muito antiga, tanto mais curiosa e
tanto mais preciosa posto que uma superstição popular nas vizinhanças de
Paris é como um aloés na Sibéria. Somos dos que respeitam tudo o que
tem a condição de planta rara. Ora, a superstição de Montfermeil consiste
nisto: acredita-se ali que o Diabo, desde tempos imemoriais, escolheu a
floresta para esconder seus tesouros.
As boas velhas senhoras afirmam que não é raro encontrar-se, ao cair
da tarde, em locais afastados do bosque, um homem negro, com aparência
de carroceiro ou lenhador, com tamancos nos pés, calças e jaqueta de
pano, e reconhecível porque, em vez de boné ou chapéu, tem dois imensos
cornos na cabeça. Efetivamente, isso deve torná-lo bastante reconhecível.
O tal homem normalmente está ocupado em cavar um buraco. Há três
maneiras de tirar partido desse encontro. A primeira é aproximar-se do
homem e falar com ele. Vê-se então que ele é simplesmente um aldeão,
que parece negro por causa do crepúsculo, que não cava nenhum buraco,
mas corta capim para suas vacas, e que o que se tomou por cornos nada
mais é que um forcado de estrumeira que carrega nas costas, cujos dentes,
graças à perspectiva do anoitecer, parecem sair-lhe da cabeça. Então,
volta-se para casa e morre-se em uma semana. A segunda maneira consiste
em observá-lo, esperando que ele acabe de abrir sua cova, torne a tapá-la e
vá embora; então corre-se bem depressa até lá, torna-se a abrir a cova e
retira-se o “tesouro” que o homem negro necessariamente depositou ali.
Nesse caso, morre-se em um mês. Finalmente, a terceira maneira consiste
em não falar com o negro, não olhar para ele e fugir apressadamente.
Morre-se em um ano.
Como as três maneiras têm seus inconvenientes, a segunda, que ao
menos oferece algumas vantagens, entre outras a de possuir um tesouro,
ainda que só por um mês, é a mais comumente adotada. Segundo afirmam,
os ousados, que são tentados por qualquer oportunidade, com frequência
reabriram os buracos feitos pelo negro e quiseram roubar o Diabo. Parece
que a operação é medíocre. Ao menos se dermos crédito à tradição, e
particularmente a dois versos enigmáticos sobre esse assunto, em latim
arcaico, deixados por um péssimo monge normando, meio feiticeiro,
chamado Tryphon. O tal Tryphon está enterrado na Abadia de Saint-
Georges de Bocherville, perto de Ruen, e nascem sapos sobre sua
sepultura.
São feitos, então, esforços imensos, as tais covas são geralmente muito
fundas, sua-se, vasculha-se tudo, trabalha-se uma noite inteira, pois é de
noite que isso é feito, molha-se a camisa, gasta-se a vela, inutiliza-se a
enxada, e quando enfim chega-se ao fundo do buraco, quando se vai
colocar a mão no “tesouro”, o que se encontra? O que é esse tesouro do
diabo? Um soldo, às vezes um escudo; uma pedra, um esqueleto, um
cadáver sangrento; algumas vezes um espectro dobrado como uma folha
de papel dentro de uma carteira, outras vezes nada. É o que parecem
anunciar aos curiosos indiscretos os versos de Tryphon:

Fodit, et in fossa thesauros condit opaca


As, nummos, lapides, cadaver, simulacra, nihilque.

Cava, e nas sombras um tesouro oculta


Às vezes, pedras, moedas, esqueleto, cadáver, às vezes nada.

Parece que hoje em dia também se encontram nessas covas ora um


polvorinho com balas, ora um velho baralho, ensebado e chamuscado, que
decerto serviu ao Diabo. Tryphon não registra esses dois achados, visto
que vivia no século XII e, ao que parece, o Diabo não teve a habilidade de
inventar a pólvora antes de Roger Bacon, nem as cartas antes de Carlos VI.
Mas quem jogar com essas cartas pode estar certo de que perderá tudo
quanto possuir; e, quanto à pólvora, ela tem a propriedade de fazer com
que o fuzil estoure em seu próprio rosto.
Ora, pouco tempo depois da ocasião em que pareceu ao Ministério
Público que o forçado liberado Jean Valjean, durante sua evasão de alguns
dias, vagueara em torno de Montfermeil, notou-se na mesma aldeia que
um velho chamado Boulatruelle, trabalhador na manutenção de estradas,
dava seus “passeios” pelo bosque. Acreditava-se, na região, que o tal
Boulatruelle já havia estado nas galés; andava sob certa vigilância da
polícia, e, como não achava trabalho em nenhum lugar, a Administração o
empregava nessa função na estradinha de Gagny a Lagny, por um baixo
salário.
Boulatruelle era um homem malvisto pela gente da terra, respeitoso
demais, humilde demais, pronto a tirar o boné para todos, tremendo e
sorrindo em presença dos soldados, provavelmente membro de quadrilhas,
diziam, e suspeito de armar emboscadas, ao cair da noite, nos cantos das
matas. A única coisa certa é que se embebedava.
Segue o que acreditavam ter reparado:
Havia algum tempo Boulatruelle largava muito cedo sua tarefa de
fazer o calçamento e a conservação da estrada para entrar na floresta com
sua enxada. Era encontrado à noitinha nas clareiras mais desertas, nos
matagais mais fechados, com ar de quem procura alguma coisa, às vezes
cavando buracos. As mulheres que passavam, primeiro o tomavam por
Belzebu, depois o reconheciam, mas nem por isso ficavam mais
tranquilas. Esses encontros pareciam muito contrariar Boulatruelle. Era
visível que procurava ocultar-se e que havia algum mistério naquilo que
fazia.
Na aldeia, dizia-se: “É claro que o Diabo fez alguma aparição.
Boulatruelle o viu, e está procurando. De fato, ele está louco para pôr as
mãos no tesouro escondido de Lúcifer”. Os voltaireanos acrescentavam:
“Será que Boulatruelle vai passar a perna no Diabo, ou é o Diabo que vai
passar a perna em Boulatruelle?”
As velhas faziam muitas vezes o sinal da cruz.
No entanto, as artimanhas de Boulatruelle no bosque cessaram, e ele
retomou regularmente seu trabalho na estrada. Passaram a falar de outra
coisa.
Todavia, a curiosidade de algumas pessoas continuou, pois pensavam
que provavelmente havia em tudo aquilo não os fabulosos tesouros da
lenda, mas alguma boa fortuna, mais séria e mais palpável do que as notas
do Diabo, cujo segredo Boulatruelle tinha, sem dúvida e até certo ponto,
surpreendido.
Os mais “intrigados” eram o mestre-escola e o taverneiro Thénardier,
que era amigo de todo o mundo e não desprezava uma ligação com
Boulatruelle.
— Ele esteve nas galés — dizia Thénardier —, mas não se sabe quem
está lá, nem quem vai estar.
Certa noite, o mestre-escola afirmava que, em outros tempos, a justiça
teria investigado o que Boulatruelle ia fazer no bosque, e que ele teria de
falar; que o teriam torturado, se fosse preciso, e que Boulatruelle não teria
resistido, por exemplo, ao interrogatório da água.
— Vamos fazer-lhe o interrogatório do vinho — disse Thénardier.
Puseram mãos à obra e fizeram o velho cantoneiro beber. Boulatruelle
bebeu muito mas falou pouco. Combinou, com admirável artifício e em
proporções magistrais, a sede de um glutão com a discrição de um juiz. No
entanto, à força de insistir e de confrontar e juntar as poucas e obscuras
frases que o homem deixou escapar, eis o que Thénardier e o mestre-
escola julgaram compreender:
Certa manhã, indo para o trabalho, Boulatruelle ficou admirado de ver,
em um canto do bosque, debaixo de um arbusto, uma pá e uma enxada
como que escondidas; mas achou que provavelmente fossem a pá e a
enxada de Pai Six-Fours, o carregador de água, e não pensou mais naquilo.
Mas, naquela mesma noite, Boulatruelle teria visto, sem poder ser visto,
pois estava encoberto por uma árvore corpulenta, dirigir-se da estrada para
um local muito cerrado do bosque “um sujeito que não era da região, mas
que ele conhecia muito bem”. Tradução de Thénardier: um companheiro
de prisão. Boulatruelle recusou-se obstinadamente a dizer seu nome. O
sujeito trazia um embrulho, qualquer coisa quadrada, como uma grande
caixa ou um cofre pequeno. Surpresa para Boulatruelle. Mas só depois de
passados sete ou oito minutos foi que lhe ocorreu a ideia de seguir “o
sujeito”. Porém, era tarde demais, o sujeito embrenhara-se na mata, já era
noite fechada, Boulatruelle não pôde alcançá-lo. Então decidiu observar
em volta do bosque. “Era noite de luar.” Duas ou três horas depois,
Boulatruelle viu o tal sujeito saindo do bosque, trazendo agora, não a tal
caixa-cofre, mas uma enxada e uma pá. Boulatruelle deixou o sujeito
passar e não quis abordá-lo, pois pensou que o outro era três vezes mais
forte que ele, estava armado com uma enxada, e provavelmente daria cabo
dele, reconhecendo-o e vendo-se reconhecido. Tocante efusão de dois
antigos camaradas que tornam a se encontrar! A enxada e a pá foram um
raio de luz para Boulatruelle, que correu ao local onde estivera pela
manhã, mas não encontrou mais nada. Concluiu daí que o tal sujeito entrou
no bosque, usou a enxada para cavar um buraco, enterrou ali o cofre e
tampou o buraco com a pá. Ora, o cofre era pequeno demais para conter
um cadáver; então continha dinheiro. Daí suas pesquisas. Boulatruelle
explorou, sondou, esburacou a floresta inteira, fuçou em todos os lugares
onde a terra lhe parecia remexida de fresco. Em vão.
Não “desenterrou” nada. Ninguém, em Montfermeil, pensou mais
nisso. Apenas algumas comadres comentaram: “Tenham por certo que o
operário da estrada de Gagny não fez todo esse carnaval por nada; é claro
que o Diabo apareceu”.

III. ERA PRECISO QUE A CORRENTE TIVESSE


PASSADO POR ALGUM PREPARATIVO PARA SER
QUEBRADA COM UMA SÓ MARTELADA
Por volta do final de outubro do mesmo ano de 1823, os habitantes de
Toulon viram entrar em seu porto, após forte temporal e para reparar
algumas avarias, a nau Orion, que depois foi empregada em Brest como
navio-escola, mas que então fazia parte da esquadra do Mediterrâneo.
Esse navio, mesmo no péssimo estado em que se encontrava, pois o
mar o havia maltratado, causou forte impressão ao entrar no ancoradouro.
Levava não se sabe bem que bandeira, que lhe valeu uma salva
regulamentar de onze tiros de canhão, aos quais respondeu com outros
onze; total: vinte e dois tiros. Calculou-se que, em salvas, cumprimentos
reais e militares, trocas de disparos corteses, sinais de etiqueta,
formalidades de cais e cidadelas, saudações, ao nascer e ao pôr do sol,
feitas diariamente por todas as fortalezas e navios de guerra, aberturas e
fechamentos de portos, etc., etc., o mundo civilizado gastava com pólvora,
por toda a terra, a cada vinte e quatro horas, cento e cinquenta mil tiros
inúteis de canhão. A seis francos cada tiro, são novecentos mil francos por
dia, trezentos milhões por ano, que se vão em fumaça. Mero detalhe.
Enquanto isso, os pobres morrem de fome.
O ano de 1823 era o que a Restauração chamou de “época da guerra da
Espanha”.
Essa guerra continha muitos acontecimentos em um único, e muitas
particularidades. Uma importante questão de família na casa Bourbon; o
ramo da França socorrendo e protegendo o ramo de Madri, isto é, dando
provas de primogenitura; um aparente retrocesso às nossas tradições
nacionais, complicado por sujeição e servilismo aos gabinetes do norte; o
senhor duque de Angoulême, apelidado pelas gazetas liberais de o herói de
Andujar, comprimindo, em atitude triunfal, um tanto contradizente com
seus ares pacíficos, o velho terrorismo tão real do Santo Ofício em luta
com o terrorismo quimérico dos liberais; a ressurreição dos sans-culottes,
para grande horror das matronas, com o nome de descamisados; o
monarquismo fazendo obstáculo ao progresso, qualificado como anarquia;
a brusca interrupção das teorias de 89, minadas; um basta da Europa às
ideias francesas que davam sua volta ao mundo; ao lado do generalíssimo
filho da França, o príncipe de Carignan, mais tarde Charles-Albert,
envolveu-se como voluntário na cruzada dos reis contra os povos, com as
dragonas de granadeiro em lã vermelha; os soldados do Império voltando
ao campo de batalha, porém após oito anos de repouso, envelhecidos,
tristes e com a insígnia branca; a bandeira tricolor agitada no estrangeiro
por um heroico punhado de franceses, como trinta anos antes o fora, em
Coblentz, a bandeira branca; os frades misturados às nossas tropas; o
espírito de liberdade e de novidade racionalizado pelas baionetas; os
princípios domados a tiros de canhão; a França desfazendo pelas armas o
que tinha construído com seu espírito; e, de resto, os chefes inimigos
vendidos, os soldados hesitando, as cidades sitiadas por milhões; a
ausência de perigos militares e, todavia, a possibilidade de explosões,
como em minas surpreendidas e invadidas; pouco sangue derramado,
pouca honra conquistada; vergonha para alguns, glória para ninguém;
assim foi essa guerra, feita por príncipes que descendiam de Luís XIV e
comandada por generais saídos de Napoleão. Teve a triste sorte de não
fazer lembrar nem a grande guerra nem a grande política.
Alguns feitos de armas foram importantes; entre outros, a tomada do
Trocadero foi uma bela ação militar; mas, em suma, repetimos, as
trombetas dessa guerra produziram um som fanhoso, o todo foi suspeito; a
história aprova a França na dificuldade de aceitação desse falso triunfo.
Pareceu evidente que alguns oficiais espanhóis, encarregados da
resistência, cederam com demasiada facilidade; a ideia de corrupção
desprendeu-se da vitória; pareceu que mais se havia vencido os generais
do que as batalhas, e o soldado vencedor voltou humilhado. Guerra
humilhante, com efeito, porque podia-se ler Banco da França nas dobras
da bandeira.
Soldados da guerra de 1808, sobre os quais desabaram as muralhas de
Saragoza, franziam as sobrancelhas em 1823 diante da facilidade com que
se abriam as cidadelas, e punham-se a lembrar de Palafox. É
temperamento da França gostar mais de ter diante dela Rostopchine do que
Ballesteros.
De um ponto de vista ainda mais grave, sobre o qual convém também
insistir, essa guerra, que melindrava o espírito militar na França,
indignava o espírito democrático. Era uma tentativa de servidão. Nessa
campanha, o objetivo do soldado francês, filho da democracia, era a
conquista de um jugo para outrem. Horrível contrassenso. A França foi
feita para despertar a alma dos povos, não para sufocá-la. A partir de 1792,
todas as revoluções da Europa são a Revolução Francesa; a liberdade
irradia-se da França. Esse é um fato claro. Cego quem não vê! Foi
Bonaparte quem o disse.
A guerra de 1823, atentado à generosa nação espanhola, foi então, ao
mesmo tempo, um atentado à Revolução Francesa. Essa violência
monstruosa, era a França que a cometia, à força, pois, fora as guerras de
libertação, tudo o que fazem os exércitos, o fazem à força. As palavras
obediência passiva indicam isso. Um exército é um estranho primor de
combinação, em que a força resulta de uma grande soma de impotências.
Desse modo explica-se a guerra, feita pela humanidade, contra a
humanidade e contra a vontade da humanidade.
Quanto aos Bourbon, a guerra de 1823 lhes foi fatal. Eles a tomaram
por um êxito. Não viram o perigo que existe em fazer matar uma ideia
com uma ordem. Enganaram-se, em sua ingenuidade, a ponto de
introduzirem em seu estabelecimento o imenso enfraquecimento de um
crime como elemento de força. O espírito de cilada entrou em sua política.
1830 foi germinado em 1823. A campanha da Espanha tornou-se, em seus
conselhos, um argumento em favor dos golpes de força e das aventuras do
direito divino. A França, tendo restabelecido el rey neto2 na Espanha,
podia muito bem restabelecer o rei absoluto em sua própria casa. Caíram
no terrível erro de tomar a obediência do soldado por consentimento da
nação. Esse tipo de confiança é a perdição dos tronos. Não se deve
adormecer nem à sombra de uma figueira-venenosa, nem à sombra de um
exército.
Voltemos ao navio Orion.
Durante as operações do exército comandado pelo príncipe-
generalíssimo, uma esquadra cruzava o Mediterrâneo. Já dissemos que o
Orion pertencia a essa esquadra e fora levado pelos acontecimentos ao
porto de Toulon.
A presença de um navio de guerra em um porto tem algo que atrai e
ocupa a multidão. É sua grandeza, e a multidão ama o que é grande.
Uma nau de linha é um dos encontros mais magníficos entre o gênio
do homem e o poder da natureza.
Um navio de linha é composto simultaneamente do que há de mais
pesado e de mais leve, porque, ao mesmo tempo, precisa lidar com as três
formas da substância, a sólida, a líquida e a fluida, e deve lutar contra as
três. Tem onze garras de ferro para cravar no granito que forra o fundo do
mar, e mais asas e antenas que os insetos voadores para pegarem o vento
nas nuvens. Sua respiração sai por seus cento e vinte canhões como se
fossem enormes clarins, e responde altivamente ao raio. O oceano procura
desviá-lo na assustadora semelhança de suas vagas, mas o navio tem sua
alma, a bússola, que o aconselha apontando-lhe sempre o norte. Nas noites
escuras, seus faróis substituem as estrelas. Assim, contra o vento tem as
cordas e as velas, contra a água a madeira, contra a rocha o ferro, o cobre,
o chumbo, contra a sombra a luz, contra a imensidão uma agulha.
Se quisermos ter uma ideia de todas as proporções gigantescas cujo
conjunto constitui a nau de linha, basta entrarmos nos estaleiros cobertos,
de seis andares, dos portos de Brest ou Toulon. Os navios em construção se
encontram, por assim dizer, sob uma campânula. A trave colossal é uma
verga; a grossa coluna de madeira, deitada no chão a perder de vista, é o
grande mastro. Da raiz até o cimo, em meio às nuvens, há sessenta toesas
de comprimento, um metro de diâmetro na base. O grande mastro inglês
eleva-se a sessenta e seis metros acima da linha de flutuação. A marinha
dos nossos antepassados empregava cabos, a nossa emprega correntes. O
simples amontoado de correntes de uma nau de cem canhões tem um
metro e meio de altura, seis de largura e dois e meio de profundidade. E
para construir um navio assim, quanta madeira é necessária? Três mil
metros cúbicos. É uma verdadeira floresta flutuante.
E mais, note-se bem, trata-se aqui apenas de uma embarcação militar
de quarenta anos atrás, do simples navio a vela; o vapor, então em sua
infância, acrescentou depois novos milagres ao prodígio chamado navio de
guerra. Presentemente, o navio misto, com hélice, por exemplo, é uma
máquina surpreendente, impelida por um velame de três mil metros
quadrados de superfície e por uma caldeira com a força de dois mil e
quinhentos cavalos.
Sem falar dessas novas maravilhas, o antigo navio de Cristóvão
Colombo e de Ruyter é uma das grandes obras-primas do homem.
Inesgotável em força, como o infinito em sopros, armazena o vento em
suas velas, é preciso na imensa difusão das vagas, flutua e reina.
Chega, no entanto, uma hora em que a tempestade quebra, como se
fosse de palha, aquela trave de dezoito metros de comprimento; em que o
vento dobra como junco aquele mastro de cento e vinte metros de altura;
em que aquela ancora de dez toneladas se torce na garganta da vaga, como
o anzol do pescador nas guelras de grande peixe; em que aqueles canhões
monstruosos soltam rugidos lamentosos e inúteis que a tormenta leva pelo
vazio e pela escuridão; em que todo esse poderio e majestade se arruínam
diante de um poderio e de uma majestade superiores.
Toda vez que uma força imensa se expande para chegar a uma imensa
fraqueza, o homem é levado a pensar. Vem daí que, nos portos, os curiosos
abundam, sem que possam explicar a si mesmo exatamente por que, em
volta dessas maravilhosas máquinas de guerra e de navegação.
Todos os dias, então, desde a manhã até a noite, os cais, diques e
parapeitos do porto de Toulon ficavam cobertos de numerosos ociosos e
palermas, como se diz em Paris, que vinham ali só para ver o Orion.
O Orion era um navio havia muito doente. Em suas navegações
anteriores, camadas espessas de conchas haviam se amontoado em sua
quilha, a ponto de fazê-lo perder a metade de seu ritmo; deixaram-no no
seco, no ano anterior, para lhe rasparem essas conchas, depois o
relançaram ao mar. Mas essa raspagem causou alteração nas cavilhas da
quilha. Na altura das Baleares, com a fadiga, as juntas se abriram, e, como
ainda não se fazia o conjunto das escoas com chapas de ferro, o navio
encheu de água. Um forte vento equinocial bateu, rompendo o talha-mar e
a portinhola de peças a bombordo, e danificando o mecanismo de cabos do
mastro frontal. Em virtude dessas avarias, o Orion havia voltado a Toulon.
Ficou ancorado junto ao Arsenal, estava sendo preparado e consertado
para voltar ao mar. O casco não sofrera dano a estibordo, mas, segundo o
costume, foram despregadas algumas cintas do costado para arejar a
carcaça.
Uma manhã, a multidão que o contemplava foi testemunha de um
acidente.
A tripulação estava ocupada em prender as velas. O marinheiro
encarregado de prender a extremidade da grande vela de estibordo perdeu
o equilíbrio. Viram quando vacilou; a multidão que se aglomerava no cais
do Arsenal soltou um grito; a cabeça puxou o corpo, o homem deu uma
volta em torno da verga, as mãos estendidas para o abismo; na passagem,
agarrou um cabo estendido, primeiro com uma mão, depois com a outra, e
ali ficou suspenso.
O mar abaixo dele tinha uma profundidade vertiginosa. O abalo de sua
queda imprimira ao cabo um violento movimento de vaivém. O homem
ficou balançando na ponta daquela corda como a pedra de uma funda.
Ir em seu socorro era correr um risco terrível. Nenhum dos
marinheiros, todos pescadores da costa, recentemente recrutados para o
serviço, ousava aventurar-se. Enquanto isso, o infeliz marinheiro ia se
cansando; não se podia ver a angústia em seu rosto, mas distinguia-se o
cansaço em todos os seus membros. Seus braços se torciam em contrações
horríveis. Cada esforço que fazia para conseguir subir só servia para
aumentar as oscilações do cabo. Ele nem sequer gritava, com medo de
perder as forças. Esperava-se apenas o momento em que largaria a corda,
e, por instantes, todas as cabeças se viraram para não vê-lo despencar. Há
momentos em que a ponta de uma corda, uma vara, um galho de árvore,
são a própria vida; e é uma coisa medonha ver um ser humano desprender-
se e cair como um fruto maduro.
De repente, avistaram um homem subindo pelo cordame com a
agilidade de um gato. Esse homem estava vestido de vermelho, era um
forçado; usava um boné verde, era um condenado perpétuo. Chegando à
altura do cesto da gávea, uma rajada de vento arrancou-lhe o boné,
deixando a descoberto uma cabeça toda branca; não era um jovem.
De fato, um forçado trabalhando a bordo em cumprimento da pena
havia, desde o primeiro momento, corrido ao oficial, e em meio à
perturbação e hesitação da tripulação, enquanto todos os marinheiros
tremiam e recuavam, pediu permissão para arriscar sua vida e salvar o
gajeiro. A um sinal afirmativo do oficial, quebrou com uma martelada a
corrente da argola que lhe prendia o pé, pegou uma corda e lançou-se aos
mastros. Naquela hora ninguém percebeu com que facilidade aquela
corrente fora partida. Só mais tarde isso foi lembrado. Num piscar de
olhos chegou à verga. Parou alguns segundos, parecendo medi-la com o
olhar. Esses segundos, durante os quais o vento balançava o gajeiro na
extremidade de uma corda, pareceram séculos aos que olhavam. Por fim, o
forçado elevou os olhos ao céu e deu um passo adiante. A multidão
respirou. Viram que percorria a verga correndo. Chegando à extremidade,
atou uma ponta da corda que trouxera e deixou pender a outra, depois
começou a descer com as mãos ao longo da corda que deixara pendente.
Então, houve uma angústia inexprimível; em vez de um homem suspenso
sobre o abismo, viam-se dois.
Parecia uma aranha vindo agarrar uma mosca, só que, neste caso, a
aranha levava a vida e não a morte. Dez mil olhares estavam fixos naquela
dupla. Nem um grito, nem uma palavra, o mesmo tremor enrugava a fronte
de todos. Todas as bocas retinham a respiração, como se temessem
acrescentar o mais leve sopro ao vento que sacudia os dois miseráveis.
Nesse meio tempo, o forçado conseguira aproximar-se do marinheiro.
Era tempo; um minuto mais e o homem, esgotado e desesperado, iria
deixar-se cair no abismo. O forçado o havia solidamente amarrado com a
corda, à qual se segurava com uma mão enquanto trabalhava com a outra.
Enfim, viram quando tornou a subir na verga e içou o marinheiro, que
sustentou ali por um instante, deixando que recuperasse suas forças;
depois segurou-o nos braços e o carregou, caminhando pela verga, até um
ponto de apoio e daí ao cesto da gávea, onde o deixou nas mãos dos
companheiros.
Nesse instante, a multidão aplaudiu; alguns velhos guardas das galés
até choraram; no cais, as mulheres se abraçaram e ouviam-se todas
aquelas vozes gritarem com uma espécie de enternecido furor: “O perdão
para este homem!”
Ele, no entanto, começou a descer imediatamente para voltar a seu
lugar entre os outros forçados. Para chegar mais depressa, deixou-se
escorregar pelo cordame abaixo e começou a correr sobre uma verga mais
baixa. Todos os olhares o seguiam. Em dado momento, sentiu-se medo; ou
porque estivesse cansado, ou porque tivesse tonturas, pareceu hesitar e
cambaleava. De repente, a multidão soltou um forte grito; o forçado
acabava de cair no mar.
A queda era perigosa. A fragata Algésiras estava encorada perto do
Orion, e o pobre forçado havia caído entre os dois navios. Temia-se que ele
ficasse debaixo de um ou do outro.
Quatro homens se jogaram apressadamente em uma embarcação,
encorajados pela multidão; a ansiedade enchia novamente todas as almas.
O homem não voltou mais à superfície. Desapareceu no mar sem agitá-lo,
como se tivesse caído em um tambor de óleo. Sondaram, mergulharam,
mas foi em vão. Procuraram até a noite; não foi encontrado sequer o
cadáver.
No dia seguinte, o jornal de Toulon imprimia as seguintes linhas:

“18 de novembro de 1813. — Ontem, um condenado a trabalhos forçados no Orion,


após prestar socorro a um marinheiro, caiu no mar e afogou-se. Não foi possível encontrar
seu cadáver. Presume-se que tenha ficado preso nas estacas da ponta do Arsenal. Esse
homem estava inscrito com o número 9.430 e se chamava Jean Valjean”.

__________________________
1 Citação exata do poema de Voltaire Le Pauvre Diable (O Pobre-Diabo).
2 O rei, pura e simplesmente: palavra de ordem dos absolutistas espanhóis.
LIVRO III
CUMPRIMENTO DA PROMESSA FEITA
À MORTA

I. A QUESTÃO DA ÁGUA EM MONTFERMEIL


MONTFERMEIL está situada entre Livry e Chelles, na orla meridional do
elevado planalto que separa o Ourcq do Marne. É hoje uma aldeia
importante, enfeitada o ano inteiro, com casas de campo caiadas e, aos
domingos, com prazenteiros burgueses. Em 1823, não havia em
Montfermeil nem tantas casas brancas, nem tantos burgueses satisfeitos;
era apenas um vilarejo no meio dos bosques. Encontravam-se, bem
esparsamente, algumas casas de recreio do século passado, reconhecíveis
por seu ar de grandeza, por suas varandas de ferro torneado e por largas
janelas, cujos pequenos vidros refletiam, sobre o branco das venezianas
fechadas, as diferentes nuances do verde. Nem por isso Montfermeil
deixava de ser um vilarejo. Os comerciantes de tecido afastados do
negócio e os advogados em férias ainda não a haviam descoberto. Era um
lugar pacato e agradável que não ficava à beira de nenhuma estrada; ali se
vivia com pouco aquela vida abundante e tranquila do campo. Só a água
era muito rara, devido à elevação do planalto.
Era preciso buscá-la bem longe. A extremidade do vilarejo que fica
para os lados de Gagny tirava sua água dos magníficos lagos que havia
naqueles bosques; a outra extremidade, em volta da igreja, para os lados
de Chelles, não tinha água potável a não ser em uma pequena nascente, a
meia encosta, perto da estrada de Chelles, a aproximadamente um quarto
de hora de Montfermeil.
Era então um trabalho bem duro para todos esse abastecimento de
água. As casas grandes, a aristocracia e a taverna Thénardier faziam parte
dessa extremidade; pagava-se um liard1 por cada balde de água a um pobre
homem que vivia disso, ganhando uns oito soldos por dia; mas esse
homem só trabalhava até as sete horas da noite no verão, e até as cinco no
inverno; chegada a noite, fechadas as portas da rua, quem não tinha em
casa água para beber, ou ia buscá-la ou ficava sem.
Era esse o terror daquela pobre criatura que o leitor decerto não
esqueceu, a pequena Cosette. Como se lembram, Cosette era útil aos
Thénardier de dois modos: obrigavam a mãe a pagar-lhes e obrigavam a
filha a servi-los. Assim, quando a mãe cessou completamente de pagar,
acabamos de ler por que nos capítulos precedentes, os Thénardier ficaram
com Cosette. Ela lhes fazia as vezes de uma criada, e, como tal, era ela
quem ia buscar a água quando necessário. A criança, muito assustada com
a ideia de ir à fonte à noite, tomava todos os cuidados para que nunca
faltasse água na casa.
O Natal de 1823 foi particularmente brilhante em Montfermeil. O
começo do inverno tinha sido ameno; ainda não havia geado nem nevado.
Saltimbancos vindos de Paris obtiveram licença do prefeito para armar
suas barracas na rua principal da aldeia, e um bando de vendedores
ambulantes, com igual tolerância, construiu suas tendas da praça da igreja
até a viela Boulanger, onde, como devem se lembrar, fica a taverna dos
Thénardier. Isso fazia com que as tavernas e as estalagens estivessem
cheias, e dava ao pequeno lugar tranquilo uma vida ruidosa e alegre. É
preciso dizer, inclusive, como historiador fiel, que, entre as curiosidades
expostas na praça, havia uma coleção de animais, da qual horríveis e
maltrapilhos palhaços, vindos não se sabia de onde, mostravam, em 1823,
aos aldeões de Montfermeil um desses medonhos abutres do Brasil, que
nosso Museu Real passou a possuir de 1845 para cá, cujos olhos se
parecem com uma faixa tricolor. Os naturalistas chamam essa ave, creio
eu, Caracara Polyborus, da família dos abutres. Alguns velhos soldados
bonapartistas da aldeia, já afastados, iam devotadamente ver o animal. Os
saltimbancos apresentavam a faixa tricolor como um fenômeno único,
operado de propósito pelo bom Deus para fazer parte de sua coleção de
animais exóticos.
Na própria noite de Natal, vários homens, carroceiros e mascates,
estavam sentados e bebiam em volta de uma mesa iluminada por quatro ou
cinco velas na sala de baixo da taverna Thénardier. Essa sala se
assemelhava a todas as outras salas de taverna; mesas, jarros de estanho,
garrafas, beberrões, fumantes, pouca luz e muito barulho. Todavia, a data
do ano de 1823 era indicada por dois objetos, então na moda entre a classe
burguesa, que estavam sobre uma das mesas, a saber: um caleidoscópio e
um candeeiro de folha ondulada. A mulher de Thénardier cuidava do
preparo da ceia, que cozinhava em um belo fogo; o marido bebia com os
fregueses e falava de política.
Além das conversas políticas, que tinham como principais temas a
guerra da Espanha e o duque de Angoulême, ouviam-se, em meio àquele
alarido, parênteses sobre assuntos locais como os seguintes:
— Para as bandas de Nanterre e Suresnes foi feito muito vinho. Quem
contava com dez pipas, teve doze. Os lagares se encheram de sumo.
— Mas a uva não deveria amadurecer?
— Nessas regiões não dá para fazer a colheita quando elas estão
maduras; já se faz bom vinho na primavera.
— Então são todos vinhos ruins?
— Piores que os daqui. É preciso fazer a colheita com a uva ainda
verde.
Etc…
Ou então um moleiro exclamava:
— Por acaso somos responsáveis pelo que vem dentro dos sacos? A
gente encontra uma grande quantidade de grãos pequenos que não dá para
descascar e acaba deixando passar pela mó. É o joio, a alforra, a ervilhaca
ou a linhaça, o azevém ou a lerica, uma porção de porcarias, sem contar as
pedrinhas que costumam vir no trigo, principalmente no trigo da Bretanha.
Não me agrada moer o trigo bretão, tanto quanto os serradores não gostam
de serrar vigas com pregos. Imaginem que pó ruim que dá. Depois se
queixam da farinha! Sem razão. A farinha ruim não é nossa culpa.
Sentado a uma mesa entre duas janelas, um ceifador dizia a uma
proprietária que tratava o preço de um trabalho a ser feito na primavera:
— Não faz mal que o mato esteja molhado, é mais fácil de cortar. O
orvalho é bom. Tanto faz, aquele mato, o da sua pradaria, está novo e bem
difícil ainda. Tem os que são tenros, os que se dobram diante da lâmina de
ferro.
Etc…
Cosette estava no seu canto do costume, sentada na travessa da mesa
da cozinha, perto da lareira. Maltrapilha, pés nus dentro de tamancos,
tricotava, sob a luz do fogo, meias de lã para as pequenas Thénardier.
Debaixo das cadeiras, brincava um gatinho. Na sala ao lado, ouviam-se as
frescas vozes de duas crianças tagarelando e rindo: eram Éponine e
Azelma.
No canto da lareira, uma palmatória estava pendurada em um prego.
De vez em quando, em meio ao barulho do cabaré, ouviam-se os gritos
de uma criança bem novinha em alguma parte da casa. Era um menininho,
que a senhora Thénardier havia dado à luz em um dos invernos anteriores,
“sem saber como”, dizia ela, “efeitos do frio”, e já tinha um pouco mais de
três anos. A mãe o amamentara, mas não o amava. Quando o choro do
pequeno se tornava importuno demais: “Seu filho está berrando, vá logo
ver o que ele quer”, dizia o marido Thénardier. “Droga!”, respondia a mãe,
“ele me aborrece”.
E o pequeno abandonado continuava a gritar no escuro.

II. DOIS RETRATOS COMPLETADOS


Neste livro, até agora só foi traçado um perfil dos Thénardier; é
chegado o momento de passarmos em torno desse casal e de examiná-lo
por todos os lados.
Thénardier tinha acabado de completar cinquenta anos; sua mulher
estava nos quarenta, o que corresponde aos cinquenta do homem, de modo
que havia um equilíbrio de idades entre a mulher e o marido.
Os leitores talvez tenham conservado, desde sua primeira aparição,
alguma recordação dessa mulher alta, loura, corada, encorpada, carnuda,
quadrada, enorme e ágil, que vinha, como já dissemos, da raça das
selvagens colossais que se curvam pelas feiras, com pedras penduradas
nos cabelos. Era ela quem fazia tudo em casa, arrumava os quartos, as
camas, lavava roupa, fazia comida, fizesse chuva, tempo bom, o diabo.
Sua única criada era Cosette, um rato a serviço de um elefante. Tudo
tremia ao som de sua voz, as vidraças, os móveis e as pessoas. Seu largo
rosto, crivado de sardas, tinha o aspecto de uma escumadeira. E ela tinha
barba. Era o ideal do forte carregador de mercado vestido de mulher.
Praguejava esplendidamente, gabava-se de quebrar uma noz com uma
pancada. Não fossem os romances que lera e que, às vezes, faziam
bizarramente reaparecer a mulher pretensiosa por baixo do bicho-papão,
ninguém jamais teria a ideia de dizer a seu respeito: é uma mulher. Ela era
como que o produto do enxerto de uma donzela em uma peixeira. Quando
a ouviam falar, diziam: “É um soldado”; quando a viam beber, diziam: “É
um carroceiro”; quando viam como tratava Cosette, diziam: “É um
carrasco”. Quando repousava, um dente lhe saía da boca.
O marido era um homem baixo, magro, pálido, anguloso, ossudo,
franzino, com aspecto de doente, mas gozando de boa saúde; sua
velhacaria começava daí. Ele sorria habitualmente por precaução e tratava
com polidez quase todo o mundo, mesmo o mendigo a quem recusava uma
moedinha. Tinha um olhar de fuinha e a aparência de um literato.
Assemelhava-se muito aos retratos do abade Dellile. Seu maior gosto
consistia em beber com os carroceiros, e nunca ninguém fora capaz de
embebedá-lo. Fumava um grande cachimbo; usava uma blusa sobre uma
velha roupa preta. Tinha pretensões à literatura e ao materialismo,
pronunciando com frequência certos nomes para apoiar o que quer que
fosse dizer, como Voltaire, Raynal, Parny e, coisa estranha, Santo
Agostinho. Afirmava ter um “sistema”. De resto, era bastante velhaco. Um
filousophe.2 Essas combinações existem. Lembram-se de que ele dizia ter
servido o exército; contava com certa ostentação que, em Waterloo, sendo
sargento de um desses regimentos, 6º ou 9º, da infantaria ligeira, sozinho,
contra um esquadrão de hussardos da morte, dera cobertura com o próprio
corpo, e salvara, por entre as balas, “um general perigosamente ferido”.
Daí provinha, para a brilhante tabuleta em sua parede, e para sua taverna, o
nome de “cabaré do sargento de Waterloo”. Thénardier era liberal, clássico
e bonapartista. Contribuía para o Champ d’Asile.3 Dizia-se na aldeia que
ele havia estudado para ser padre.
Acreditamos que ele simplesmente estudou na Holanda para ser
estalajadeiro. Esse patife, formado de elementos tão diversos, era, segundo
as probabilidades, algum flamengo de Lille em Flandres, francês em Paris,
belga em Bruxelas, comodamente a cavalo sobre as duas fronteiras. Sua
proeza em Waterloo já foi conhecida, e, como se pôde ver, ele exagerava
um pouco. O fluxo e o refluxo, os rodeios, a aventura, eram esses os
elementos de sua existência; uma consciência em pedaços leva a uma vida
desordenada, e como parece verdadeiro, na tempestuosa época do 18 de
junho de 1814, Thénardier fazia parte daquela variedade de taverneiros
gatunos de que já falamos, percorrendo as estradas, vendendo a alguns,
roubando de outros, viajando em família, homem, mulher e filhos, em
cima de alguma carroça velha, seguindo as tropas em marcha, com o
instinto de sempre se juntar ao exército vitorioso. Acabada aquela
campanha, tendo, como ele dizia, “algum quibus”,4 viera para
Montfermeil abrir sua taverna.
Esse quibus, composto de bolsas e relógios, de anéis de ouro e cruzes
de prata recolhidos no tempo da ceifa, nos sulcos semeados de cadáveres,
não formava uma grande soma, nem levara muito adiante esse vivandeiro
que passou a taverneiro.
Thénardier tinha nos gestos algo de retilíneo que, com uma blasfêmia,
fazia lembrar a caserna, e com um sinal da cruz, o seminário. Era bom
falador e fazia-se passar por sábio. No entanto, o mestre-escola havia
notado que Thénardier cometia erros ao falar. Fazia as listas de despesas
dos viajantes com superioridade, mas olhos treinados às vezes
encontravam nelas erros de ortografia. Thénardier era sonso, glutão,
preguiçoso e hábil. Não desprezava as criadas, o que fazia sua mulher não
querer mais nenhuma. A gigante era ciumenta. Parecia-lhe que aquele
homem magro e amarelo devia ser o objeto da cobiça universal.
Thénardier, além de tudo, homem de astúcia e de equilíbrio, era um
maroto de gênero temperado. Essa espécie é a pior; a hipocrisia se mistura
a ela. Não é que Thénardier não fosse, em algumas ocasiões, capaz de
sentir raiva, pelo menos tanto quanto sua mulher, mas isso era raro, e
nesses momentos, como ficava possesso com a espécie humana inteira,
como tinha em si uma profunda fornalha de ódio, como era dessas pessoas
que se vingam perpetuamente, que acusam todos que passam pela sua
frente de tudo que lhes cai por cima, e estão sempre prontas a atirar no
primeiro que aparece, como legítima censura, o total das decepções, das
bancarrotas e calamidades de sua vida; como todo esse fermento se
agitava dentro dele e lhe fervia na boca e nos olhos, ele era assustador.
Infeliz de quem passasse então sob seu furor!
Além de todas as outras qualidades, Thénardier era atento e penetrante,
silencioso ou tagararela quando convinha, mas sempre com elevada
inteligência. Tinha algo do olhar dos marinheiros acostumados a piscar
para olhar pelas lunetas de longo alcance. Thénardier era um homem de
Estado.
Qualquer recém-chegado que entrava na taverna, ao ver a senhora
Thénardier dizia: “Eis o dono da casa”. Engano. Ela não era nem mesmo a
dona. O dono e a dona era o marido. Ela fazia, ele criava. Ele dirigia tudo
por meio de uma espécie de ação magnética, invisível e contínua. Bastava-
lhe uma palavra, às vezes apenas um sinal, e a mastodonte obedecia.
Thénardier era para a mulher, sem que ela tivesse muita consciência disso,
um ser particular e soberano.
Ela tinha as virtudes de seu modo de ser; ainda que discordasse, sobre
algum detalhe, do “senhor Thénardier”, hipótese de resto inadmissível,
jamais deixaria de dar razão a seu marido em público, fosse a respeito do
que fosse. Ela jamais cometeria “diante de gente de fora” essa falta que
tão frequentemente cometem as mulheres, chamada em linguagem
parlamentar de “descobrir a coroa”. Embora só resultasse o mal do acordo
que tinham, havia certa contemplação na submissão da senhora Thénardier
a seu marido. Aquela montanha de ruído e carne movia-se ao sinal do dedo
mínimo daquele frágil déspota. Vista por seu lado mesquinho e grotesco,
era esta grande coisa universal: a adoração da matéria pelo espírito, pois
certas fealdades têm sua razão de ser nas mesmas profundezas da eterna
beleza. Havia em Thénardier algo de incógnito; daí o império absoluto
daquele homem sobre aquela mulher. Em certos momentos, ela o via como
uma vela acesa; em outros, o sentia como uma garra.
Aquela mulher era uma criatura formidável que só amava suas
crianças e só temia seu marido. Era mãe porque era mamífera. De resto,
sua maternidade limitava-se às filhas, e, como veremos, não se estendia
aos meninos. Quanto ao marido, só tinha um pensamento: enriquecer.
Mas não o conseguia. Faltava um teatro digno a esse grande talento.
Thénardier arruinava-se em Montfermeil, se é que ruína a zero é possível;
na Suíça ou nos Pireneus, este sem-vintém se teria tornado milionário.
Mas ali onde a sorte colocara o estalajadeiro, teria de pastar.
Deve-se compreender que a palavra estalajadeiro é empregada aqui
em sentido restrito, não se estende a uma classe inteira.
No ano de 1823, Thénardier estava endividado em aproximadamente
mil e quinhentos francos junto aos fornecedores, o que o tornava
preocupado.
Fosse qual fosse a obstinada injustiça do destino em relação a ele,
Thénardier era dos homens que melhor compreendiam, com a maior
profundidade, e do modo mais moderno, essa coisa que entre os povos
bárbaros é uma virtude e entre os civilizados uma mercadoria, a
hospitalidade. Era também admirável caçador, citado por sua pontaria
certeira. Tinha um riso frio e calmo que era particularmente perigoso.
Suas teorias de estalajadeiro vinham-lhe às vezes como relâmpagos. Tinha
certos aforismos profissionais que enxertava no espírito de sua mulher. “O
dever do estalajadeiro”, dizia-lhe ele certo dia em voz baixa, mas com
violência, “é vender ao primeiro que aparece comida, repouso, luz,
aquecimento, lençóis sujos, a criada, pulgas, sorrisos; fazer parar quem
passa, esvaziar as bolsas pequenas e aliviar honestamente as grandes,
abrigar com respeito as famílias que viajam, esfolar o homem, depenar a
mulher, tirar informações das crianças; cobrar pela janela aberta, pela
janela fechada, pelo canto da lareira, pela poltrona, pela cadeira, pela
banqueta, pelo banco, pela cama de plumas, pelo colchão e pelo feixe de
palha; saber quanto a sombra desgasta o espelho, e cobrar por isso, e, com
quinhentos mil diabos, fazer o viajante pagar tudo, até as moscas que o seu
cachorro comer!”
Aquele homem e aquela mulher eram raiva e astúcia casadas, uma
parelha medonha e terrível.
Enquanto o marido ruminava e combinava, a mulher não pensava nos
credores ausentes, não se preocupava com o ontem nem com o amanhã, e
vivia com êxtase cada minuto presente.
Assim eram aquelas duas criaturas. Cosette ficava entre eles, sofrendo
sua dupla pressão, como um ser que poderia ser, de uma só vez, esmagado
por uma mó e despedaçado por uma tenaz. O marido e a mulher tinham
cada um seu modo diferente: a mulher a moía de pancadas, o homem a
obrigava a andar de pés descalços no inverno.
Cosette subia, descia, lavava, escovava, esfregava, varria, corria, se
apressava, ofegava, carregava coisas pesadas e, apesar de fraca, fazia os
trabalhos pesados. Nenhuma piedade; uma patroa feroz, um patrão
venenoso. A taverna Thénardier era como uma teia em que Cosette ficara
presa e amedrontada. O ideal de opressão se realizava naquela
domesticação sinistra. Era uma coisa parecida com a mosca que serve as
aranhas.
A pobre criança, passiva, se calava.
Quando se encontram assim, desde que vieram ao mundo, pequeninas e
despidas, entre os homens, o que acontece nessas almas que acabaram de
sair de perto de Deus?

III. É PRECISO VINHO PARA OS HOMENS E ÁGUA


PARA OS CAVALOS
Haviam chegado quatro novos viajantes.
Cosette meditava tristemente, pois, embora tivesse apenas oito anos, já
sofrera tanto que sonhava tendo a lúgubre aparência de uma velha.
Estava com uma das pálpebras escura, de um soco que lhe dera dona
Thénardier, o que levava esta mesma a dizer de vez em quando: “Está
horrível com esse borrão no olho!”
Cosette pensava então que era noite, noite fechada, que devia ter
enchido por antecipação as garrafas e os jarros dos quartos dos viajantes
que chegaram, e que já não havia água na tina.
O que a tranquilizava um pouco era que não se bebia muita água na
casa dos Thénardier. Ali não faltava gente com sede, mas tratava-se da
sede voltada com muito mais gosto à pipa do que à moringa. Quem
pedisse um copo de água entre aqueles copos de vinho pareceria selvagem
a todos aqueles homens. Mas houve um momento em que a menina
estremeceu; dona Thénardier tirou a tampa de uma panela que fervia sobre
o fogão, depois pegou um copo, aproximou-se da tina e abriu a torneira; a
criança levantou a cabeça e seguiu todos os seus movimentos. Um
fiozinho de água escorreu e encheu o copo até o meio.
— Oh! Não tem mais água! — disse ela, e ficou em silêncio.
A criança não respirava.
— Bah — exclamou a mulher examinando o copo meio cheio —, isso
já é suficiente.
Cosette continuou seu trabalho, mas durante mais de um quarto de
hora sentiu seu coração saltar no peito. Contava os minutos que passavam,
desejando já estar no dia seguinte.
De tempos em tempos, um dos fregueses exclamava, olhando para a
rua: “Está escuro como breu!” ou: “É preciso ser um gato para andar a esta
hora pela rua, sem lanterna!” E Cosette estremecia.
De repente, um dos vendedores ambulantes hospedados na estalagem
entrou, e disse em tom rude:
— Ainda não deram de beber a meu cavalo.
— Deram sim — disse dona Thénardier.
— Estou dizendo que não, dona! — replicou o mascate.
Cosette saiu então de sob a mesa e disse:
— Oh, senhor! Seu cavalo bebeu sim, bebeu no balde, um balde cheio;
fui eu mesma quem lhe deu de beber, até falei com ele.
Isso não era verdade. Cosette mentia.
— Aí está uma pequena dessas que mente do tamanho de uma casa —
exclamou o homem. — Estou dizendo que ele não bebeu, engraçadinha!
Ele respira de uma maneira que eu conheço muito bem quando não bebeu.
Cosette insistiu, acrescentando com uma voz abafada pela angústia e
que mal se ouvia:
— E até bebeu bastante!
— Vamos — replicou o mascate com raiva —, não é nada disso, deem
de beber ao cavalo e ponto final!
Cosette voltou para debaixo da mesa.
— De fato, é justo — disse dona Thénardier —; se o cavalo não bebeu,
é preciso dar-lhe de beber.
Depois acrescentou, olhando em volta:
— Então? Onde está essa outra?
Abaixou-se e descobriu Cosette acocorada na outra extremidade da
mesa, quase embaixo dos pés dos fregueses.
— Vai sair daí? — gritou a mulher.
Cosette saiu da espécie de buraco onde se escondera, e dona
Thénardier retomou:
— Senhorita cão-sem-nome, vá dar de beber ao cavalo.
— Mas, senhora — disse Cosette com voz fraca —, é que não tem
água.
A mulher escancarou a porta da rua.
— Pois vá buscá-la!
Cosette baixou a cabeça e foi pegar um balde vazio que estava perto da
lareira. O balde era maior que ela. A criança podia até sentar e ficar à
vontade dentro dele.
A mulher voltou para o fogão e provou com uma colher de pau o que
estava na panela, enquanto resmungava:
— Ainda tem água na fonte. Achou que fosse muito esperta. Melhor eu
fritar minhas cebolas.
Depois, remexeu em uma gaveta que tinha dinheiro, pimenta e salsa, e
acrescentou:
— Tome, sua cara de sapo, na volta pegue um pão grande com o
padeiro. Aí está uma moeda de quinze soldos.
Cosette pegou a moeda sem dizer uma palavra e a colocou em um
bolsinho de seu avental.
Depois, ficou imóvel, com o balde na mão diante da porta aberta.
Parecia esperar que viesse alguém em seu socorro.
— Ande! — gritou dona Thénardier.
Cosette saiu e a porta foi fechada.

IV. ENTRADA EM CENA DE UMA BONECA


Como devem estar lembrados, a fileira de barracas ao ar livre, que
partia da igreja, estendia-se até a estalagem Thénardier. Essas barracas,
por causa da passagem dos moradores que iam à missa da meia-noite,
estavam todas iluminadas com velas que ardiam em cartuchos de papel, o
que, como dizia o mestre-escola de Montfermeil, sentado, naquele
momento, em uma das mesas da taverna Thénardier, produzia “um efeito
mágico”. Em compensação, não se via uma estrela no céu.
A última dessas barracas, montada exatamente em frente à porta da
taverna, era uma loja de quinquilharias, toda reluzente de lantejoulas,
vidrilhos e magníficas coisas em latão. Na primeira estante da frente, o
dono da loja colocou, sobre um fundo de toalhas brancas, uma imensa
boneca de quase sessenta centímetros de altura, com um vestido de crepe
cor-de-rosa, enfeites dourados na cabeça, cabelos verdadeiros e olhos
esmaltados. O dia inteiro aquela maravilha ficara exposta ao
deslumbramento dos passantes com menos de dez anos, sem que se tivesse
encontrado em Montfermeil uma mãe suficientemente rica ou pródiga
para presenteá-la a uma filha.
Éponine e Azelma haviam passado horas a contemplá-la, e até a
própria Cosette, furtivamente, é verdade, ousara observá-la.
Quando Cosette saiu com seu balde na mão, por mais triste e
acabrunhada que estivesse, não pôde impedir-se de levantar os olhos para
aquela maravilhosa boneca, para a dama, como ela a chamou. A pobre
criança parou petrificada, ainda não tinha visto a boneca de perto. Aquela
barraca parecia-lhe um palácio; aquela boneca não era uma boneca, era
uma visão. Era a alegria, o esplendor, a riqueza, a felicidade que
apareciam, em uma espécie de irradiação quimérica, àquela infeliz
criaturinha, tão profundamente mergulhada em uma fúnebre e fria miséria.
Cosette media com a ingênua e triste sagacidade da infância o abismo que
a separava daquela boneca, pensando que era preciso ser rainha, ou pelo
menos princesa, para possuir uma “coisa” como aquela. Contemplava
aquele belo vestido cor-de-rosa, aqueles belos cabelos brilhantes, e
pensava: “Como deve ser feliz essa boneca!”. Seus olhos não podiam
desgrudar-se da fantástica barraca. Quanto mais olhava, mais se
deslumbrava. Julgava ver o paraíso. Por trás da boneca grande, havia
outras que lhe pareciam fadas e gênios. O negociante, que passeava de um
lado para o outro da barraca, causava-lhe certa impressão de ser o Pai
Eterno.
Em meio a essa adoração, ela esquecia tudo, até da tarefa de que fora
encarregada. De repente, a voz rude da estalajadeira chamou-a de volta à
realidade:
— Mas como, sua sirigaita, você ainda não foi! Espere que eu vou até
aí! Quero só ver o que você está fazendo. Ande, seu monstrinho!
Dona Thénardier dera uma olhada na rua e vira Cosette em êxtase.
Cosette fugiu com o balde, dando os maiores passos que conseguia.

V. A PEQUENA SOZINHA
Como a estalagem Thénardier ficava na parte da aldeia próxima à
igreja, era na fonte do bosque, que ficava para os lados de Chelles, que
Cosette tinha de ir buscar a água.
Ela não olhou para mais nenhuma barraca. Enquanto estava na viela
Boulanger e nos arredores da igreja, as barracas iluminadas clareavam o
caminho, mas logo desapareceu o último clarão da última barraca, e
Cosette viu-se na escuridão. Embrenhou-se nela. Mas, como uma certa
emoção ia tomando conta dela, ao caminhar, ela agitava o mais que podia
a alça do balde. O ruído que se produzia servia-lhe de companhia.
Quanto mais caminhava, mais espessas se tornavam as trevas. Pelas
ruas já não se via ninguém. Todavia, Cosette encontrou uma mulher, que
se voltou ao vê-la passar e que ficou imóvel, murmurando por entre
dentes:
— Mas onde é que essa criança está indo? Será algum pequeno
fantasma? — Depois a mulher reconheceu Cosette. — Ora — disse —, é a
Cotovia.
Cosette atravessou assim o labirinto de ruas tortuosas e desertas onde
termina, pelos lados de Chelles, a aldeia de Montfermeil. Enquanto viu
casas e mesmo paredes dos dois lados de seu caminho, andou com bastante
ousadia. De vez em quando, via o brilho de uma vela pelas fendas de
alguma janela, era luz e vida, ali havia gente, e isso a tranquilizava. No
entanto, à medida que avançava, seu passo diminuía de forma maquinal.
Ao passar pela esquina da última casa, parou. Passar adiante da última
barraca fora difícil; passar além da última casa tornava-se impossível.
Colocou o balde no chão, meteu a mão por entre os cabelos e pôs-se a
coçar a cabeça lentamente, gesto próprio das crianças atemorizadas e
indecisas. Já não era Montfermeil, eram os campos. Diante dela havia um
espaço negro e deserto. Cosette olhou com desespero para aquela
escuridão onde não havia mais ninguém, onde havia animais, onde talvez
houvesse almas do outro mundo. Abriu bem os olhos e ouviu animais
andando no mato, e viu distintamente almas do outro mundo agitando-se
nas árvores. Então, pegou o balde de volta; o medo lhe dava audácia:
“Ah!”, pensou, “vou dizer que não havia mais água!”.
E voltou resolutamente para Montfermeil.
Tinha dado uns cem passos, parou de novo e voltou a coçar a cabeça.
Agora era dona Thénardier que lhe aparecia, a mulher medonha, com sua
boca de hiena e uma raiva flamejante nos olhos. A criança lançou um olhar
de lamento para frente e para trás. Que fazer? Que resolver? Para onde ir?
Diante dela, o espectro da senhora Thénardier; atrás dela, todos os
fantasmas da noite e dos bosques. Mas foi diante da senhora Thénardier
que ela recuou. Voltou ao caminho da fonte, e se pôs a correr. Saiu da
aldeia correndo, entrou no bosque correndo, sem olhar para mais nada,
sem escutar mais nada. Só parou de correr quando faltou-lhe fôlego, mas
não interrompeu sua caminhada. Ia em frente, perdida.
Enquanto corria, tinha vontade de chorar. O estremecimento noturno da
floresta a envolvia completamente. Não pensava mais, não enxergava
mais. A imensa noite afrontava aquele pequeno ser. De um lado, toda a
sombra, do outro, um átomo.
Dos limites do bosque à fonte havia apenas sete ou oito minutos.
Cosette conhecia o caminho por tê-lo feito muitas vezes durante o dia.
Coisa estranha, ela não se perdeu. Um resto de instinto a conduzia
vagamente. Não olhava nem para a direita nem para a esquerda, com
receio de ver alguma coisa nos galhos e nos arbustos. Assim chegou à
fonte.
Era uma estreita bacia natural, cavada pela água em um terreno
argiloso, com uma profundidade de mais ou menos dois pés, cercada de
musgo e dessas ervas chamadas de golinhas de Henrique IV, e calçada com
algumas grandes pedras. Da fonte saía um pequeno riacho, sussurrando
mansamente.
Cosette nem sequer parou para tomar fôlego. Estava muito escuro, mas
ela tinha o costume de vir a essa fonte; procurou com a mão esquerda um
carvalho novo que se debruçava sobre a nascente, e que normalmente lhe
servia de ponto de apoio; encontrou um ramo, agarrou-se nele, abaixou-se
e mergulhou o balde na água. Era um momento de emoção tão violenta
que suas forças triplicaram. Enquanto estava curvada, não reparou que o
bolso de seu avental se esvaziava dentro da fonte. A moeda de quinze
soldos caíra na água. Cosette não a viu nem a ouviu cair. Retirou o balde
quase cheio e o colocou sobre a relva.
Feito isso, percebeu que estava extenuada de cansaço. Bem quisera
voltar imediatamente, mas fora tamanho o esforço para encher o balde que
lhe foi impossível dar um passo. Viu-se obrigada a sentar-se. Deixou-se
cair sobre a relva e ali ficou agachada.
Fechou os olhos, depois tornou a abri-los, sem saber por que, mas não
podia fazer de outra forma. Ao lado dela, a água se agitando no balde
formava círculos que pareciam serpentes de fogo branco.
Acima de sua cabeça o céu estava coberto de vastas nuvens negras, que
eram como bandeiras de fumaça. A trágica máscara das sombras parecia
debruçar-se vagamente sobre aquela criança.
Júpiter brilhava nas profundezas. A criança olhava sem compreender
para aquela grande estrela que não conhecia e que lhe causava medo. O
planeta, de fato, achava-se naquele momento muito perto do horizonte, e
atravessava uma espessa camada de névoa que lhe emprestava uma
vermelhidão horrível. A névoa, lugubremente purpúrea, fazia o astro
parecer maior. Parecia uma chaga luminosa.
Um vento frio soprava da planície. O bosque estava tenebroso, onde
não se ouvia nenhum rumor de folhas, nem se viam esses vagos e frescos
brilhos de verão. Grandes galhos se levantavam assustadoramente no ar.
Moitas raquíticas e disformes zuniam nas clareiras. O mato crescido se
mexia sob o vento norte como se fossem enguias. Os espinheiros se
torciam como longos braços armados de garras, tentando cravar-se em
alguma presa. Algumas plantas secas, sopradas pelo vento, passavam
rapidamente e pareciam fugir, assustadas com algo que acontecia. Por
todos os lados havia espaços sinistros.
A escuridão é vertiginosa. O homem precisa de claridade. Quem quer
que se embrenhe no contrário do dia se sente com o coração apertado.
Onde os olhos veem o escuro, o espírito vê perturbação. No eclipse, na
noite, na opacidade fuliginosa há ansiedade, mesmo para os mais fortes.
Ninguém caminha sozinho, à noite, em uma floresta, sem medo. Sombras
e árvores, dois entes temíveis. Na escuridão indistinta, aparece uma
realidade quimérica. O inconcebível se esboça a alguns passos, com uma
nitidez espectral. Vê-se flutuar no espaço, ou no próprio cérebro, algo de
vago e impalpável como os sonhos das flores adormecidas. Há atitudes
ariscas no horizonte. Aspiram-se os eflúvios do grande e negro vazio.
Tem-se medo e vontade de olhar para trás. As cavidades da noite, as coisas
que se tornam medonhas, os perfis taciturnos que se dissipam ao
avançarmos, os vultos obscuros e desgrenhados, as moitas irritadas, os
charcos lívidos, o lúgubre refletido no fúnebre, a imensidão sepulcral do
silêncio, os possíveis seres desconhecidos, o misterioso pender dos ramos,
os medonhos troncos das árvores, os grandes punhados de ervas trêmulas,
fica-se sem defesa contra tudo isso.
Não há ousadia que não estremeça e que não sinta a aproximação da
angústia. Experimenta-se algo de pavoroso, como se a alma se
amalgamasse à sombra. Essa penetração das trevas é inexprimivelmente
sinistra para uma criança.
As florestas são apocalipses e o bater de asas de uma alma pequenina
produz um ruído de agonia sob sua cúpula monstruosa.
Sem ter consciência do que experimentava, Cosette se sentia tomada
por essa enormidade negra da natureza. Não era mais simplesmente terror
o que se apossava dela; era alguma coisa mais terrível ainda do que o
terror. Ela estremecia. Faltam expressões para dizer o que havia de
estranho nesse estremecimento que a gelava até o fundo do coração. Seu
olhar tornara-se arisco. Ela acreditava sentir que talvez não conseguisse
impedir-se de voltar ali no dia seguinte, à mesma hora.
Então, por uma espécie de instinto, para sair daquele singular estado
que não compreendia, mas que a aterrava, começou a contar em voz alta
um, dois, três, quatro, até dez, e ao terminar recomeçava. Isso lhe
devolveu a verdadeira percepção das coisas que a rodeavam. Sentiu frio
nas mãos, que havia molhado ao puxar a água, e levantou-se. Voltara-lhe o
medo, um medo natural e invencível. Não lhe ocorreu mais do que um
pensamento: fugir, fugir, e bem depressa, pelos bosques, pelos campos, até
as casas, até as janelas, até as velas acesas. Seu olhar fixou-se no balde que
tinha diante de si, e tamanho era o medo que dona Thénardier lhe
inspirava, que não se atreveu a fugir sem a água. Segurou a alça com as
duas mãos, custando-lhe grande esforço levantar o balde do chão.
Assim andou uns doze passos; mas o balde estava cheio, pesado, e ela
viu-se obrigada a colocá-lo no chão outra vez. Respirou um instante,
depois pegou novamente na alça e voltou a caminhar, desta vez por um
pouco mais de tempo. Mas foi preciso parar novamente. Após alguns
segundos de descanso, partiu de novo. Cosette caminhava vergada para
frente, cabeça baixa, como uma velha; o peso do balde distendia e retesava
seus braços magros; a alça de ferro fazia adormecer e gelar suas
mãozinhas molhadas; de vez em quando, era obrigada a parar, e, cada vez
que parava, a água fria que extravasava do balde caía-lhe nas pernas nuas.
Isso acontecia no fundo de um bosque, à noite, no inverno, longe de
qualquer olhar humano; era uma criança de oito anos. Naquele momento
só Deus podia ver essa cena triste.
Ai! E decerto sua mãe também.
Pois há coisas que fazem abrir os olhos dos mortos em seus túmulos!
Ela respirava com uma espécie de doloroso gemido; os soluços
apertavam-lhe a garganta, mas ela não ousava chorar, tal era o medo que
tinha da senhora Thénardier, mesmo estando longe. Era seu costume
sempre imaginar que a mulher estava por perto.
Daquele modo não podia andar muito, e, por isso, ia lentamente.
Tentava diminuir a duração das paradas, caminhando entre uma e outra o
maior espaço de tempo possível. Lembrava-se com angústia que, assim,
ainda levaria mais de uma hora para chegar a Montfermeil, e que
apanharia da senhora Thénardier. Essa angústia misturava-se ao medo de
estar sozinha à noite no meio do bosque. Estava morta de cansaço e ainda
não saíra da floresta.
Chegando perto de um velho castanheiro que conhecia, fez uma última
parada, mais demorada que as outras, para descansar bem, depois reuniu
todas as forças, tornou a pegar o balde e voltou a caminhar corajosamente.
No entanto, a pobre criaturinha desesperada não conseguia deixar de
exclamar: “Oh! Meu Deus! Meu Deus!”
Naquele instante, sentiu que o balde já não pesava nada. Uma mão, que
lhe pareceu enorme, acabava de segurar a alça, levantando-a
vigorosamente. A menina levantou a cabeça. Uma grande forma escura,
ereta e de pé caminhava junto dela na escuridão. Era um homem que viera
pelas costas, e que ela não ouviu chegar. Esse homem, sem dizer uma
palavra, havia segurado a alça do balde que ela carregava.
Há instintos para todos os encontros da vida. A menina não teve medo.

VI. EM QUE TALVEZ SE PROVE A INTELIGÊNCIA DE


BOULATRUELLE
Na tarde daquele mesmo dia de Natal de 1823, um homem passeou por
bastante tempo na parte mais deserta do bulevar de l’Hôpital, em Paris.
Esse homem parecia procurar um alojamento e tentava parar, de
preferência, nas casas mais modestas dos arredores deteriorados de Saint-
Marceau. Mais adiante veremos que ele havia, de fato, alugado um quarto
nesse bairro isolado.
O tal homem, tanto em seu vestuário como em toda a sua pessoa,
encarnava o tipo do que se pode chamar mendigo de boa aparência, a
extrema miséria combinada com a extrema limpeza. É uma mistura
bastante rara, que inspira nos corações inteligentes o duplo respeito por
quem é muito pobre e por quem é muito digno. Usava um chapéu redondo
muito velho e desgastado, um casacão muito surrado, de grosseiro tecido
ocre, cor que nada tinha de extravagante naquele tempo, um grande colete
com bolsos, calças pretas, já ruças nos joelhos, meias de lã pretas e
calçados reforçados, com fivelas de cobre. Parecia um antigo preceptor de
alguma casa nobre, voltando da emigração. Por seus cabelos
completamente brancos, sua fronte enrugada, seus lábios lívidos, por seu
semblante que denotava o desânimo e o cansaço da vida, podia-se supor
que tinha muito mais de sessenta anos. Por sua firmeza no andar, ainda
que vagaroso, pelo vigor singular que mostrava em todos os movimentos,
ninguém diria que tivesse mais de cinquenta. As rugas de sua fronte
estavam bem posicionadas e falavam em seu favor para quem o observasse
com atenção. Seus lábios se contraíam formando uma estranha dobra, que
parecia severa mas que era humilde. O fundo do seu olhar continha certa
serenidade lúgubre. Na mão esquerda, trazia um pequeno pacote
embrulhado em um lenço, e com a mão direita apoiava-se em uma espécie
de cajado cortado de uma sebe. Esse cajado fora trabalhado com algum
cuidado e não tinha aspecto muito ruim; tiraram partido dos nós e fizeram
um falso castão de coral com cera vermelha; era um cajado, mas parecia
uma bengala.
Há poucos transeuntes naquele bulevar, principalmente no inverno.
Esse homem parecia evitá-los em vez de procurá-los, mas sem demonstrar
afetação.
Naquela época, o rei Luís XVIII ia quase todos os dias a Choisy–le-
Roi. Era um de seus passeios favoritos. Por volta de duas horas, quase
invariavelmente, viam-se a carruagem e a cavalgada reais passando
rapidamente pelo bulevar de l’Hôpital.
Isso servia de relógio aos pobres do local, que diziam: “São duas
horas. Lá vai o rei outra vez para as Tulherias”.
E uns corriam, e outros se arrumavam, pois a passagem de um rei é
sempre um tumulto. De fato, o aparecimento e desaparecimento de Luís
XVIII causava certo efeito nas ruas de Paris. Era uma coisa rápida, mas
majestosa. Aquele rei impotente gostava de galopar; como não podia
andar, queria correr; esse estropiado se deixaria arrastar de bom grado
pelo relâmpago. Passava, severo e pacífico, por entre os sabres
desembainhados. Sua berlinda maciça, toda dourada e com grandes ramos
de lis pintados nas portinholas, transitava ruidosamente. Mal se tinha
tempo de olhar para ela. No canto do fundo, à direita, sobre almofadas
acolchoadas de cetim branco, via-se uma cara larga, firme e vermelha,
uma fronte viçosa empoada como ave real, uns olhos cheios de altivez,
dureza e finura, um sorriso de letrado, duas grandes dragonas com espirais
flutuantes por cima de uma roupa burguesa, o velo de ouro, a cruz de São
Luís, a cruz da Legião de Honra, a insígnia de prata do Espírito Santo, uma
grande barriga e um largo cordão azul; era o rei. Fora de Paris, conservava
seu chapéu de plumas sobre os joelhos cobertos com altas polainas
inglesas; ao voltar para a cidade, punha-o na cabeça, e poucas saudações
fazia. Luís XVIII olhava com frieza para o povo, que lhe pagava com a
mesma moeda. Quando apareceu pela primeira vez no bairro de Saint-
Marceau, todo o seu sucesso consistiu nesta frase dirigida por um morador
local a um colega: “Aquele gordo ali é o governo”.
Essa infalível passagem do rei à mesma hora era, então, o
acontecimento cotidiano do bulevar de l‘Hôpital.
O passante de casacão amarelo, evidentemente, não era do bairro, e
provavelmente nem de Paris, pois ignorava esse detalhe. Quando, às duas
horas, depois de ter dobrado a Salpêtrière, a carruagem real desembocou
no bulevar, cercada por um esquadrão de guardas de segurança com galões
de prata, o homem pareceu surpreso e quase assustado. Apenas ele se
encontrava na alameda lateral; arrumou-se prontamente atrás de um canto
do muro, o que não impediu o duque de Havré de avistá-lo; este, como
capitão das guardas em serviço naquele dia, estava sentado na carruagem
em frente ao rei, e disse a Sua Majestade: “Ali há um homem de aparência
bem ruim”. Alguns agentes de polícia, que abriam passagem para o rei,
também o notaram, e um deles recebeu ordem para segui-lo. Mas o
homem embrenhou-se pelas pequenas ruas solitárias do bairro, e, como
começava a declinar o dia, o agente perdeu seu rastro, como se constata
em um relatório enviado naquela mesma noite ao senhor conde de Anglès,
ministro de Estado e chefe de polícia.
Quando o homem do casacão amarelo despistou o agente, apertou o
passo, não sem voltar-se muitas vezes e assegurar-se de não estar sendo
seguido. Às quatro horas e um quarto, isto é, já noite fechada, passou em
frente ao teatro da porta Saint-Martin, onde representavam Os Dois
Forçados. O cartaz, iluminado pelas luzes do teatro, chamou sua atenção,
pois, ainda que caminhasse depressa, parou para lê-lo. Um instante depois
estava no beco La Planchette e entrava no Plat d’étain, onde então ficava o
escritório da diligência de Lagny, que partiria às quatro e meia. Os cavalos
estavam atrelados, e os viajantes, chamados pelo cocheiro, subiam
apressadamente a alta escada de ferro da carruagem.
— Tem um lugar? — perguntou o homem.
— Só um, ao meu lado, neste assento — disse o cocheiro.
— Fico com ele.
— Suba.
O cocheiro, porém, antes de partir, vendo o medíocre vestuário do
viajante e o tamanho de seu embrulho, pediu o dinheiro adiantado.
— Vai até Lagny? — perguntou ele.
— Vou — disse o homem.
O viajante pagou até Lagny e a diligência partiu.
Passada a barreira, o cocheiro tentou travar conversa, mas o viajante
respondia por monossílabos; o cocheiro achou melhor assobiar e praguejar
contra os cavalos. Depois, envolveu-se em seu capote; fazia frio. O
homem nem parecia perceber. Assim atravessaram Gournay e Neuilly-sur-
Marne.
Por volta das seis horas da tarde, estavam em Chelles. O cocheiro
parou, para deixar os cavalos tomarem fôlego, à porta da estalagem dos
carroceiros instalada nos antigos edifícios da abadia real.
— Eu desço aqui — disse o homem.
E pegou seu embrulho, sua bengala e saltou.
Daí a um instante, havia desaparecido.
Não entrou na estalagem.
Quando, após alguns minutos, a diligência saiu para Lagny, não o
encontrou na rua principal de Chelles. O cocheiro voltou-se então para os
viajantes no interior e disse:
— Aquele homem não é daqui, eu não o conheço. Parece não ter um
tostão, mas não se prende ao dinheiro; pagou para Lagny e ficou em
Chelles. É noite, as casas estão todas fechadas, ele não entrou na
estalagem e não foi mais visto. Deve ter-se enfiado na terra.
O homem não se tinha enfiado na terra, mas tinha percorrido
velozmente, na escuridão, a grande rua que atravessava Chelles; depois
pegara, à esquerda, antes de chegar à igreja, o caminho vicinal que leva a
Montfermeil, como quem já conhecesse o lugar e já tivesse estado ali.
Seguiu esse caminho rapidamente. No lugar onde é cortado pela antiga
estrada arborizada que vai de Gagny a Lagny, ouviu passos de gente se
aproximando. Escondeu-se precipitadamente em uma vala e esperou que
se afastassem. A precaução era aliás quase supérflua, pois, como já
dissemos, era uma noite de dezembro muito escura. Viam-se apenas duas
ou três estrelas no céu.
É nesse ponto que começa a encosta da colina. O homem não pegou o
caminho de Montfermeil; entrou à direita, pelo meio dos campos, e a
grandes passos chegou ao bosque.
Estando no bosque, diminuiu o passo e pôs-se a olhar com cuidado
para todas as árvores, avançando passo a passo como se procurasse e
seguisse um caminho misterioso, conhecido apenas por ele. Houve um
momento em que pareceu se perder, e parou indeciso. Por fim, tateando
aqui e ali, chegou a uma clareira, onde havia um amontoado de grandes
pedras esbranquiçadas. Foi com presteza em direção a elas, examinou-as
com atenção em meio à neblina da noite, como se as passasse em revista.
Uma grande árvore coberta dessas saliências que são as verrugas da
vegetação estava a alguns passos daquelas pedras. Ele foi até a árvore,
correu a mão pela casca do tronco, como quem procura reconhecer e
contar todas as verrugas.
Defronte a essa árvore, que era um freixo, havia um castanheiro
doente, descascado, no qual foi pregada, como curativo, uma faixa de
zinco. Ergueu-se na ponta dos pés e tocou nessa faixa.
Em seguida, pisoteou por algum tempo o espaço de solo compreendido
entre a árvore e as pedras, como quem se assegura de que a terra não fora
remexida havia pouco tempo.
Feito isso, orientou-se e retomou sua caminhada através do bosque.
Era esse homem que acabava de encontrar Cosette.
Ao caminhar pelo mato em direção a Montfermeil, avistara aquela
pequena sombra que se movia com um gemido, colocava um objeto
pesado no chão, depois o retomava e continuava seu caminho. O homem se
aproximou e percebeu que era uma criancinha carregando um enorme
recipiente de água. Então, foi até a criança e pegou silenciosamente na
alça do balde.

VII. COSETTE LADO A LADO, NA ESCURIDÃO,


COM O DESCONHECIDO
Como já dissemos, Cosette não sentiu medo.
O homem falou com ela, com uma voz grave e quase baixa:
— Minha pequena, isso que está carregando é muito pesado para você.
Cosette ergueu a cabeça e respondeu:
— É sim, senhor.
— Pode deixar — tornou o homem —, eu levo para você.
Cosette largou o balde, e o homem passou a caminhar perto dela.
— É muito pesado mesmo — disse ele entre os dentes.
Depois acrescentou:
— Pequena, quantos anos você tem?
— Oito anos, senhor.
— E está vindo de muito longe?
— Da fonte que fica no bosque.
— E para onde você vai, é longe?
— Dá um bom quarto de hora daqui.
O homem ficou um momento sem falar, depois disse
precipitadamente:
— Você não tem mãe?
— Não sei — respondeu a menina.
Antes que o homem tivesse tempo de retomar a palavra, ela disse:
— Acho que eu não tenho. As outras têm, mas eu não.
E, após uma pausa, continuou:
— Acho que nunca tive.
O homem parou, colocou o balde no chão, abaixou-se e pôs as duas
mãos nos ombros da menina, esforçando-se para olhar e enxergar seu rosto
naquela escuridão.
A figura magra e doente de Cosette desenhava-se vagamente no pálido
clarão da noite.
— Como você se chama? — disse o homem.
— Cosette.
O homem sentiu como que um choque elétrico. Olhou para ela outra
vez, tirou as mãos de seus ombros, pegou o balde e continuou a caminhar.
Após um instante, perguntou:
— Onde você mora, pequena?
— Em Montfermeil, se é que o senhor conhece.
— E é para lá que nós vamos?
— É sim, senhor.
O homem fez ainda outra pausa e depois continuou:
— Quem foi que mandou você buscar água no bosque a essa hora?
— Foi a senhora Thénardier.
O homem replicou em um tom de voz que forçava para manter
indiferente, mas no qual havia um tremor singular:
— Quem é essa senhora Thénardier?
— É a minha patroa — disse a menina —; ela cuida da estalagem.
— Da estalagem? — disse o homem. — Certo, vou me hospedar lá
esta noite. Leve-me até lá.
— Estamos indo — disse a criança.
O homem caminhava bem depressa, e Cosette o seguia sem
dificuldade. Não sentia mais cansaço. Por vezes, levantava os olhos para
esse homem com uma espécie de tranquilidade e abandono inexprimíveis.
Nunca ninguém a ensinara a voltar-se para a Providência e a orar, no
entanto, ela sentia em si algo que se assemelhava à esperança e à alegria, e
que se dirigia para o céu.
Alguns minutos se passaram e o homem retomou:
— Então não há criadas na casa da senhora Thénardier?
— Não, senhor.
— Você é sozinha?
— Sim, senhor.
Houve ainda outra interrupção, e Cosette disse:
— Quer dizer, tem duas meninas.
— Que meninas?
— Ponine e Azelma.
A criança simplificava dessa forma os nomes romanescos tão caros à
estalajadeira.
— O que é isso, Ponine e Azelma?
— São as filhas da senhora Thénardier.
— E o que elas fazem?
— Oh! — disse a menina. — Elas têm lindas bonecas, coisas com
ouro, um monte de coisas. Elas brincam, elas se divertem.
— O dia todo?
— Sim, senhor.
— E você?
— Eu trabalho.
— O dia todo?
A criança levantou seus grandes olhos, onde havia uma lágrima que
não se via por causa do escuro, e respondeu com doçura:
— Sim, senhor.
Ela prosseguiu, após um intervalo em silêncio:
— Às vezes, quando acabo o serviço e permitem, também brinco.
— E como você brinca?
— Como eu posso. Ninguém se importa. Mas eu não tenho muitos
brinquedos. Ponine e Azelma não querem que eu brinque com as bonecas
delas. Só tenho uma espadinha de chumbo, que não é maior que isto.
E ela mostrava o dedo mínimo.
— E que não corta?
— Corta sim, senhor; corta salada e as cabeças das moscas.
Chegaram à aldeia; Cosette guiou o viajante pelas ruas. Passaram pela
padaria, mas Cosette não se lembrou do pão que ela tinha de comprar. O
homem cessara de fazer-lhe perguntas e guardava um silêncio triste.
Depois que passaram pela igreja, o homem, vendo todas aquelas barracas
ao ar livre, perguntou a Cosette:
— Então tem uma feira aqui?
— Não, senhor, é o Natal.
Ao se aproximarem da estalagem, Cosette tocou-lhe timidamente o
braço:
— Senhor?
— Sim, minha pequena?
— Estamos pertinho de casa.
— E então?
— Deixe eu pegar o balde agora.
— Por quê?
— É porque, se a patroa perceber que não fui eu que o trouxe, vai me
bater.
O homem devolveu-lhe o balde. Um instante depois, estavam à porta
da taverna.

VIII. DESPRAZER DE RECEBER UM POBRE QUE


TALVEZ SEJA UM RICO
Cosette não pôde impedir-se de olhar de relance para a grande boneca,
ainda exposta na barraca do quinquilheiro; depois bateu à porta. A porta
foi aberta e dona Thénardier apareceu com uma vela na mão.
— Ah! É você, rameirinha! Graças a Deus, como você demorou! Ficou
se divertindo, a engraçadinha!
— Senhora — disse Cosette tremendo toda —, este senhor quer se
hospedar.
Dona Thénardier substituiu bem depressa seu ar de enfado por sua
careta amável, mudança visível, própria aos estalajadeiros, e procurou
avidamente com os olhos o recém-chegado.
— É o senhor? — perguntou ela.
— Sim, senhora — respondeu o homem, levando a mão ao chapéu.
Não são tão polidos os viajantes ricos. Esse gesto, e a inspeção ao
vestuário e à bagagem do estranho, que ela fez em um piscar de olhos,
levaram-na a desfazer a careta amável e retomar o ar carrancudo. A
estalajadeira disse secamente:
— Entre, moço.
O “moço” entrou. Ela deu mais uma olhada para ele, examinou
particularmente o casaco, que estava absolutamente surrado, e o chapéu,
que estava um pouco amassado, e consultou, com um balançar de cabeça,
com um franzir de nariz e um piscar de olhos, o marido, que continuava
bebendo com os carroceiros. O marido respondeu por uma imperceptível
agitação do indicador que, apoiada pelo inchaço dos lábios, significava em
casos semelhantes: miséria completa. Em virtude disso, ela exclamou:
— Ai! É verdade, honrado homem, sinto muito, mas já não tenho lugar.
— Pode me colocar em qualquer lugar — disse o homem —, no sótão,
na estrebaria. Pagarei como se dormisse em um quarto.
— Quarenta soldos.
— Que seja, quarenta soldos.
— Está bem.
— Quarenta soldos! — disse um carroceiro em voz baixa à mulher. —
Mas são só vinte…
— Mas para ele são quarenta — replicou ela no mesmo tom. — Não
hospedo pobres por menos.
— É verdade — acrescentou o marido também em voz baixa —; dá má
reputação a uma casa receber esse tipo de gente.
Nesse meio tempo, após ter deixado em cima de um banco seu
embrulho e seu cajado, sentou a uma mesa na qual Cosette pusera, com
presteza, uma garrafa de vinho e um copo. O mascate que pedira o balde
de água fora, ele mesmo, levá-lo ao cavalo. Cosette voltou a seu lugar
debaixo da mesa e a seu tricô.
O homem, que apenas molhara os lábios no copo de vinho, que ele
próprio se servira, olhava para a criança com estranha atenção.
Cosette era feia. Feliz, talvez fosse bonita. Já esboçamos essa pequena
figura triste. Cosette estava magra e pálida; tinha perto de oito anos, mas
poderia passar por seis. De tanto chorar, seus grandes olhos, envoltos em
uma espécie de sombra, tinham quase ficado sem brilho. Os cantos de sua
boca tinham essa curva de angústia habitual que se observa nos
condenados e nos doentes sem esperança. Suas mãos estavam, como o
adivinhara sua mãe, “comidas de frieiras”. A luz do fogo que a iluminava
naquele momento sobressaltava os ângulos de seus ossos, tornando
terrivelmente visível sua magreza. Como sempre tiritava de frio, ficara
com o hábito de apertar os joelhos um contra o outro. Seu vestuário era um
farrapo só, causava dó no verão e horror no inverno. Sobre o corpo, não
tinha mais que um pano esburacado; e nem sequer um trapo de lã.
Viam-se algumas partes de sua pele, onde se distinguiam por toda parte
manchas azuis ou escuras que indicavam onde dona Thénardier a havia
espancado. Suas pernas sempre expostas estavam vermelhas e franzinas. A
cavidade que se formava em suas clavículas fazia chorar. Toda a pessoa
dessa criança, sua aparência, suas atitudes, o som de sua voz, seus
intervalos entre uma palavra e outra, seu olhar, seu silêncio, seu menor
gesto, exprimiam e traduziam uma única ideia: o medo.
O medo estava espalhado por ela; ela estava, por assim dizer, coberta
dele; o medo ligava-lhe os cotovelos aos quadris, escondia-lhe os
calcanhares sob as saias, fazia com que ocupasse o menor espaço possível,
deixava que tomasse apenas a respiração necessária, e se tornara o que
podia ser chamado de hábito do seu corpo, sem variação possível, senão no
sentido de aumentar. No fundo de suas pupilas, havia um espaço assustado
onde ficava o terror.
Esse medo era tamanho que, ao chegar, toda molhada como estava,
Cosette não ousara ir secar-se diante do fogo, tendo voltado
silenciosamente ao trabalho.
A expressão do olhar dessa criança de oito anos era habitualmente tão
triste, e às vezes tão trágica, que em certos momentos parecia que ela
poderia se tornar uma idiota ou um demônio.
Jamais, como dissemos, ela soube o que era rezar; jamais havia
colocado os pés em uma igreja.
— Eu lá tenho tempo para essas coisas? — dizia dona Thénardier.
O homem do casaco amarelo não tirava os olhos de Cosette.
De súbito, a mulher exclamou:
— A propósito, e o pão?
Cosette, como de costume, todas as vezes que dona Thénardier
levantava a voz, saiu bem depressa de sob a mesa.
Havia esquecido completamente do pão. Recorreu então ao expediente
das crianças que estão sempre com medo: mentiu.
— Senhora, o padeiro estava fechado.
— Você tinha que bater.
— Eu bati, senhora.
— E então?
— Ninguém veio abrir.
— Amanhã vou saber se isso é verdade — disse a mulher — e, se você
mentiu, vou fazer você dançar! Enquanto espera, me devolva a moeda de
quinze soldos.
Cosette pôs a mão no bolso de seu avental e ficou pálida. A moeda de
quinze soldos não estava mais lá.
— Vamos — tornou a mulher —, ouviu o que eu disse?
Cosette revirou o bolso, não tinha nada ali. O que tinha acontecido com
aquele dinheiro? A infeliz criança não achou uma palavra para dizer.
Estava petrificada.
— Quer ver que você perdeu? — grunhiu a mulher. — Ou será que
você está querendo me roubar?
E, ao mesmo tempo, estendeu o braço para a palmatória pendurada no
canto da lareira.
Esse gesto temível deu a Cosette força para gritar:
— Perdão, senhora! Senhora, eu não faço mais isso.
Dona Thénardier pegou a palmatória.
Enquanto isso, o homem do casaco amarelo remexeu no bolso de seu
colete, sem que ninguém reparasse nesse movimento; aliás, os outros
viajantes bebiam ou jogavam cartas sem prestar atenção a mais nada.
Cosette se encolhia angustiada no canto da lareira, procurando juntar e
esconder seus pobres membros seminus. A mulher levantou o braço.
— Perdão, senhora — disse o homem —, há pouco vi cair alguma
coisa que rolou do bolso do avental dessa pequena. Talvez seja isso.
Ao mesmo tempo, abaixou-se e pareceu procurar no chão por um
instante.
— Justamente, está aqui — tornou ele, erguendo-se.
E estendeu uma moeda de prata à senhora Thénardier.
— Sim, é isso — disse ela.
Não era aquilo, pois era uma moeda de vinte soldos, mas dona
Thénardier viu que teria lucro. Colocou a moeda no bolso e limitou-se a
lançar um olhar feroz à menina, dizendo:
— Que isso não aconteça nunca mais!
Cosette voltou ao que a senhora Thénardier chamava de “seu ninho”, e
seus grandes olhos, fixos no viajante desconhecido, começaram a tomar
uma expressão que nunca haviam tido. Não era mais um espanto ingênuo,
mas uma espécie de confiança estupefata se misturava a ele.
— A propósito, o senhor deseja cear? — perguntou a mulher ao
viajante.
Ele não respondeu. Parecia meditar profundamente.
— Que diabo de homem será esse? — murmurou ela por entre dentes.
— É algum pobretão; não deve ter um tostão para comer. Será que vai me
pagar só pela hospedagem? Ainda bem que ele não pensou em roubar o
dinheiro que estava no chão.
Nesse momento, abriu-se uma porta e Éponine e Azelma entraram.
Eram, realmente, duas lindas meninas, com mais jeito de meninas da
cidade que do campo, encantadoras, uma com tranças castanhas muito
brilhantes, a outra com longas tranças negras caindo pelas costas, ambas
vivas, asseadas, robustas, frescas e saudáveis, dava gosto de vê-las.
Vestiam roupas quentes, porém, com tal arte maternal, que a espessura dos
tecidos nada tirava da elegância dos ajustes. O inverno fora previsto sem
que a primavera ficasse esquecida. As duas meninas irradiavam luz. Além
disso, pareciam rainhas. Em seu vestuário, em sua alegria, no barulho que
faziam, havia algo de soberania. Quando elas entraram, a senhora
Thénardier disse, em tom de quem ralha, mas cheio de adoração: “Ah! Aí
estão, vocês duas!”
Depois, puxando uma após a outra para seu colo, alisando seus cabelos,
arrumando seus laçarotes, e, em seguida, soltando-as com uma doce
maneira de sacudir própria das mães, disse: “Como estão mal-arrumadas!”
Elas foram sentar-se perto do fogo. Traziam uma boneca que viravam
e reviravam no colo, fazendo todo tipo de alegre algazarra. De vez em
quando, Cosette levantava os olhos do tricô que fazia e olhava suas
brincadeiras com ar tristonho. Éponine e Azelma não olhavam para
Cosette, que, para elas, era como se fosse um cão. As três crianças juntas
não tinham vinte e quatro anos, mas já representavam toda a sociedade
humana: de um lado, inveja, do outro, desdém.
A boneca das meninas Thénardier estava bem descorada, bem velha e
toda quebrada, mas nem por isso parecia menos admirável a Cosette, que
nunca tivera uma boneca na vida, uma verdadeira boneca, para nos
servirmos de uma expressão que todas as crianças compreenderão.
De repente, dona Thénardier, que continuava a passear de um lado para
o outro da casa, percebeu que Cosette estava distraída, e que, em vez de
trabalhar, se ocupava em olhar as meninas que brincavam.
— Ah! Eu vou pegar você! — gritou ela. — É assim que você trabalha!
Vou fazer você trabalhar a toque de palmatória.
O hóspede, sem se levantar da cadeira, voltou-se para a mulher e disse-
lhe, sorrindo meio receosamente:
— Senhora, deixe-a brincar também!
Da parte de qualquer viajante que tivesse comido um naco de carne de
carneiro e bebido duas garrafas de vinho no jantar, e que não tivesse um
aspecto de horrível pobretão, a manifestação de semelhante desejo teria
sido uma ordem. Mas, que um homem com um chapéu daqueles se
permitisse ter um desejo, que um homem com um casaco daqueles se
permitisse ter uma vontade, foi o que dona Thénardier acreditou não dever
tolerar. Replicou com azedume:
— Ela tem que trabalhar, já que ela come. Não lhe dou de comer para
não fazer nada.
— Mas o que é que ela faz? — tornou o homem com uma voz doce,
que contrastava tão estranhamente com seus trajes de mendigo e com seus
ombros de carregador.
Ela dignou-se a responder:
— Faz meias, ora. Meias para minhas filhas, que estão sem, e que, a
bem dizer, logo vão acabar com os pés descalços.
O homem olhou para os pobres pés vermelhos de Cosette e continuou:
— Quando ela vai terminar de fazer esse par de meias?
— Ainda uns três ou quatro bons dias, essa preguiçosa.
— E quanto deve valer depois de pronto?
A mulher lançou-lhe um olhar de desprezo.
— Trinta soldos pelo menos.
— A senhora o venderia por cinco francos? — tornou o homem.
— Caramba! — exclamou com uma forte risada um carroceiro que
escutava. — Cinco francos? É isso mesmo! Cinco francos!
O marido achou ser seu dever tomar a palavra.
— Pois não, se este é seu desejo, daremos ao senhor esse par de meias
pelos cinco francos. Não sabemos recusar nada aos viajantes.
— Mas é para pagar já — disse dona Thénardier com seu jeito seco e
incisivo.
— Fico com as meias — respondeu o homem, e acrescentou, tirando
do bolso uma moeda de cinco francos que pôs em cima da mesa — e estou
pagando.
Depois voltou-se para Cosette.
— Agora seu trabalho é para mim. Pode brincar, minha criança.
Aquela moeda de cinco francos impressionou tanto o carroceiro que
ele largou o copo e foi olhar.
— É de verdade! — exclamou, examinando-a. — Uma verdadeira roda
traseira!5 Não é das falsas!
O marido aproximou-se e colocou silenciosamente a moeda no bolso.
A mulher não tinha do que reclamar. Mas mordeu os lábios com uma
expressão de ódio.
Cosette, porém, tremia, e aventurou-se a perguntar:
— Senhora, é verdade? Eu posso brincar?
— Vá brincar! — disse-lhe dona Thénardier com uma voz terrível.
— Muito obrigada — disse Cosette.
E, enquanto sua boca agradecia à senhora Thénardier, toda a sua
pequena alma agradecia ao viajante.
O senhor Thénardier se pôs novamente a beber; sua mulher disse-lhe
ao ouvido:
— Quem será esse homem de amarelo?
— Tenho visto milionários com casacos assim — respondeu ele com ar
soberano.
Cosette deixou seu tricô de lado, mas não saiu do lugar. Ela sempre se
mexia o mínimo possível. Tirou de uma caixa, que estava atrás dela,
alguns trapos velhos e sua pequena espada de chumbo.
Éponine e Azelma não prestavam atenção alguma ao que se passava.
Acabavam de executar uma operação importante; tinham agarrado o gato.
Deixaram a boneca no chão, e Éponine, a mais velha, enfaixava o pobre
gato, apesar de suas contorções e miados, com uma infinidade de panos e
farrapos vermelhos e azuis. Ao mesmo tempo que se ocupava desse grave
e difícil trabalho, dizia a sua irmã com a doce e adorável linguagem
infantil cuja graça, semelhante ao esplendor das asas das borboletas,
desaparece quando se quer fixá-la:
— Veja, Azelma, esta boneca é mais divertida do que a outra. Esta se
mexe, grita, é quente. Está vendo, vamos brincar com ela? Ela vai ser
minha filhinha e eu uma senhora. Eu venho visitar você e você olha para
ela. Aí você começa a ver os bigodes e vai ficar muito admirada; depois
vai ver as orelhas e o rabo, e cada vez vai ficar mais espantada. Aí você
vai dizer: “Ai! Meu Deus!”; e eu digo: “É, minha senhora, minha filhinha
é assim. Agora as meninas são desse jeito”.
Azelma escutava Éponine com admiração.
Enquanto isso, os fregueses puseram-se a cantar uma cantiga obscena
da qual riam tanto, que o teto chegava a tremer. O estalajadeiro os animava
e acompanhava.
Do mesmo modo que as aves fazem um ninho com tudo, as crianças
fazem uma boneca com qualquer coisa. Enquanto Éponine e Azelma
embrulhavam o gato, Cosette, por seu lado, embrulhava a espada. Feito
isso, deitou-a nos braços e cantava docemente para fazê-la adormecer.
A boneca é uma das mais imperiosas necessidades e, ao mesmo tempo,
um dos mais encantadores instintos da infância feminina. Cuidar, enfeitar,
vestir, despir, tornar a vestir, ensinar, ralhar, embalar, afagar, ninar,
imaginar que alguma coisa é alguém, todo o futuro da mulher está aí.
Enquanto sonha e tagarela, enquanto prepara enxovaizinhos, enquanto
costura vestidinhos, blusinhas e sainhas, a menina torna-se moça, a moça
torna-se mulher. Seu primeiro filho é a continuidade de sua última boneca.
Uma menina sem boneca é quase tão infeliz e tão completamente
impossível quanto uma mulher sem filhos.
Cosette fizera-se, então, uma boneca com a espada.
A senhora Thénardier aproximara-se do homem de amarelo e pensava:
“Meu marido tem razão, talvez seja o senhor Laffitte. Tem gente rica tão
disfarçada!”
Foi encostar-se na mesa que ele ocupava.
— Senhor… — disse ela.
Ao ouvir senhor, o homem voltou-se. Até então, ela não o havia tratado
de forma tão respeitosa.
— Olhe, senhor — prosseguiu ela, tomando seu ar adocicado, que
ainda era mais desagradável à vista do que seu ar feroz —, eu quero que a
pequena brinque, não me oponho a isso, mas é só por esta vez, porque o
senhor é generoso. Sabe, ela não tem nada, precisa trabalhar.
— Então não é sua filha, essa menina? — perguntou o homem.
— Oh! Meu Deus! Não, senhor. É uma pobrezinha que nós recolhemos
assim por caridade. Um tipo de criança bobinha; aquilo tem água na
cabeça; como o senhor já viu, é uma cabeça dura. Fazemos por ela o que
podemos, pois não somos ricos. Por mais que escrevamos para a terra dela,
já são seis meses que não nos respondem. Chego a pensar que a mãe dela
morreu.
— Ah! — disse o homem, e recaiu em sua meditação.
— Também não era grande coisa de mãe — acrescentou a senhora
Thénardier. — Ela abandonou a filha.
Durante toda essa conversa, Cosette, como se um instinto a avisasse de
que falavam dela, não tirava os olhos da mulher; escutava vagamente,
ouvindo apenas, aqui e ali, algumas palavras.
Os fregueses, completamente bêbados, repetiam o refrão imundo de
sua cantiga com redobrada alegria. Era um amontoado de palavras
licenciosas, onde misturavam a Virgem e o menino Jesus. Dona Thénardier
foi tomar parte nas gargalhadas. Cosette, embaixo da mesa, olhava para o
fogo, que se espelhava em seus olhos fixos; voltara a embalar o bebê que
fizera, cantando em voz baixa: “Minha mãe morreu, minha mãe morreu,
minha mãe morreu!”
Em virtude de novas insistências da estalajadeira, o homem de
amarelo, “o milionário”, aceitou cear.
— O que o senhor vai querer?
— Pão e queijo — respondeu o homem.
“Decididamente é um pobretão”, pensou ela.
Os bêbados continuavam a cantar sua canção, e Cosette, embaixo da
mesa, continuava cantando a dela.
De repente, Cosette parou. Acabara de se virar e de avistar a boneca,
que as filhas Thénardier haviam deixado pelo gato, largada no chão a
alguns passos da mesa da cozinha.
Então, deixou de lado a espada enrolada, que não lhe satisfazia tanto, e
olhou lentamente em torno da sala. Dona Thénardier falava baixo com o
marido e contava dinheiro; Éponine e Azelma brincavam com o gato; os
viajantes comiam, bebiam ou cantavam, ninguém olhava para ela. Não
tinha um minuto a perder. Saiu dali, arrastando-se nos joelhos e nas mãos,
certificou-se outra vez de que a não observavam, escorregou rapidamente
até a boneca e a pegou. Um instante depois, estava novamente em seu
lugar, sentada, imóvel, apenas virada de modo a esconder a boneca que
segurava nos braços. Era tão rara para ela aquela felicidade de brincar com
uma boneca que nisso havia toda a violência de uma voluptuosidade.
Ninguém a vira, exceto o viajante, que comia lentamente sua frugal
ceia.
Aquela alegria durou perto de um quarto de hora.
Porém, por maiores que fossem as precauções que Cosette houvesse
tomado, não percebeu que um dos pés da boneca estava à mostra, e que o
clarão do fogo o iluminava. Aquele pé cor-de-rosa e luminoso, que se
destacava na sombra, atraiu subitamente o olhar de Azelma, que disse para
Éponine: “Veja só!”
As duas meninas pararam, estupefatas. Cosette tivera a ousadia de
pegar a boneca!
Éponine levantou-se e, sem largar o gato, foi até sua mãe e começou a
puxar sua saia.
— Deixe-me! — disse a mãe. — O que é que você quer?
— Mãe — disse a criança —, olhe!
E apontava para Cosette.
Cosette, totalmente embevecida com a boneca, não via nem ouvia mais
nada.
O rosto da mulher tomou aquela expressão particular que se compõe
do que é terrível mesclado às ninharias da vida, e que faz certos tipos de
mulheres serem chamadas de megeras.
Desta vez, o orgulho ferido exasperava ainda mais sua cólera. Cosette
ultrapassara todos os limites. Cosette atentara contra a boneca “das
meninas”. Uma czarina, que visse um simples camponês experimentar a
grande condecoração de seu imperial filho, teria a mesma expressão.
Ela gritou com uma voz enrouquecida pela indignação:
— Cosette!
Cosette estremeceu como se o chão se lhe abrisse sob os pés e virou-
se.
— Cosette! — repetiu a mulher.
Cosette pegou a boneca e a colocou delicadamente no chão, com uma
espécie de veneração misturada ao desespero. Então, sem tirar os olhos
dela, juntou as mãos e, coisa terrível de dizer em relação a uma criança
daquela idade, torceu-as; depois, o que nenhuma das emoções daquele dia,
nem a ida ao bosque, nem o peso do balde, nem a perda do dinheiro, nem a
visão da palmatória, nem mesmo as sombrias palavras que ouvira a
senhora Thénardier dizer, conseguiu arrancar-lhe, acontecia — Cosette
chorou. Ela rompeu em soluços.
Aí o viajante levantou-se.
— Então, o que é isso? — disse ele à senhora Thénardier.
— Não está vendo? — respondeu ela, apontando para o corpo de delito
que jazia aos pés de Cosette.
— Mas o quê? — tornou o homem.
— Essa miserável — respondeu a mulher — se atreveu a tocar na
boneca das meninas!
— Tanto barulho por causa disso! — disse o homem. — O que tem ela
brincar com a boneca?
— Pegou nela com as mãos sujas! — prosseguiu a mulher. — Com
essas mãos horríveis!
Nessa hora, Cosette redobrou os soluços.
— Vai ficar quieta? — gritou dona Thénardier.
O homem foi direto à porta da rua, abriu-a e saiu.
Assim que saiu, a mulher aproveitou sua ausência para dar em Cosette,
por baixo da mesa, um grande pontapé, que a fez soltar fortes gritos.
A porta tornou a se abrir e o homem reapareceu trazendo nas mãos a
fabulosa boneca de que falamos, e que todas as crianças da aldeia
contemplavam desde a manhã. Colocou-a diante de Cosette e disse:
— Pegue, é para você.
Deve-se acreditar que, estando ali por mais de uma hora, em meio a
seus pensamentos, ele havia notado confusamente aquela barraca de
quinquilharias tão esplendidamente iluminada por velas e lampiões, que se
avistava pelas vidraças da taverna como se fosse uma iluminação.
Cosette levantou os olhos, via o homem ir até ela com aquela boneca,
como se visse o sol; ouviu aquelas palavras incríveis: é para você, olhou
para ele, para a boneca, depois recuou lentamente e foi se esconder
embaixo da mesa, no canto do fundo junto à parede.
Ela não chorava mais, não gritava mais, parecia nem mais ousar
respirar.
A mãe Thénardier, Éponine e Azelma eram outras tantas estátuas. Até
os beberrões haviam parado. Fez-se um silêncio solene na taverna inteira.
A mulher, petrificada e muda, retomou suas conjecturas: “Que diabo
será este velho? Será algum pobre ou algum milionário? Talvez seja as
duas coisas, isto é, um ladrão”.
O semblante do marido mostrava aquela ruga que acentua a expressão
humana todas as vezes que o instinto dominante aparece com todo o seu
bestial poder. O taverneiro olhava alternadamente para a boneca e para o
viajante; parecia farejar aquele homem, como farejaria um saco de
dinheiro. Porém isso durou apenas o tempo de um relâmpago. Aproximou-
se de sua mulher e disse-lhe em voz baixa:
— Esse brinquedo custa pelo menos trinta francos. Nada de asneiras.
Cabeça baixa diante do homem!
As naturezas grosseiras têm em comum com as naturezas ingênuas o
fato de não passarem por transições.
— Então, Cosette — disse dona Thénardier, com uma voz que queria
soar doce, mas que se compunha desse acre mel das mulheres más —,
você não vai pegar sua boneca?
Cosette aventurou-se a sair de seu esconderijo.
— Venha cá, querida — tornou a mulher com ar carinhoso —, este
senhor está lhe dando uma boneca. Venha pegar, é sua.
Cosette olhava para a maravilhosa boneca com uma espécie de terror.
Seu rosto ainda estava inundado de lágrimas, mas seus olhos começavam a
encher-se, como o céu ao amanhecer, com o brilho de uma estranha
alegria. O que ela experimentava naquele momento era algo semelhante ao
que sentiria se repentinamente lhe dissessem: “Menina, você é a rainha da
França”. Parecia-lhe que se tocasse naquela boneca um trovão soaria.
O que, até certo ponto, era verdade, pois pensava que a senhora
Thénardier ralharia com ela, bateria nela.
Mas a atração a venceu. Acabou aproximando-se e murmurou
timidamente, voltando-se para a senhora Thénardier:
— Eu posso, senhora?
Nenhuma expressão conseguiria traduzir aquele ar ao mesmo tempo
desesperado, assustado e deslumbrado.
— Pois então! — disse a senhora Thénardier. — É sua. O senhor está
lhe dando.
— É verdade, senhor? — tornou Cosette. — É verdade que aquela
dama é para mim?
O homem parecia ter os olhos cheios de lágrimas; parecia estar a tal
ponto emocionado que não falava para não chorar. Fez um aceno
afirmativo com a cabeça, colocando a mão da “dama” sobre sua mãozinha.
Cosette retirou a mão rapidamente, como se a mão da dama queimasse
a sua, e pôs-se a olhar para o chão. Somos obrigados a acrescentar que,
naquele momento, ela mostrou a língua de uma forma desmedida. De
repente, voltou-se e pegou a boneca com arrebatamento.
— Vou chamá-la de Catherine — disse ela.
Foi um momento estranho aquele em que os andrajos de Cosette
encontraram e abraçaram as fitas e musselines cor-de-rosa da boneca.
— Senhora, será que eu posso colocá-la em cima de uma cadeira?
— Pode, minha filha — respondeu a senhora Thénardier.
Agora eram Éponine e Azelma que olhavam com inveja para Cosette.
Cosette pôs Catherine sobre uma cadeira, depois sentou-se no chão
diante dela, e ficou imóvel, sem dizer uma palavra, em atitude
contemplativa.
— Brinque, Cosette — disse-lhe o viajante.
— Ah! Eu estou brincando — respondeu a criança.
Aquele hóspede, aquele desconhecido que parecia uma visita que a
Providência fazia a Cosette, era naquele momento a coisa que a senhora
Thénardier mais odiava no mundo. No entanto, precisava conter-se. Eram
mais emoções do que ela podia suportar, por mais habituada que estivesse
à dissimulação, pela cópia que procurava fazer de seu marido em todas as
suas ações. Apressou-se em mandar as filhas para a cama, pedindo depois
ao homem de amarelo permissão para também mandar Cosette, que tinha
se cansado muito hoje, acrescentou ela com ar maternal. Cosette foi
deitar-se levando Catherine nos braços.
De vez em quando, a senhora Thénardier ia até o outro lado da sala,
onde estava seu marido, para aliviar a alma, dizia. Trocava com ele
algumas palavras, ainda mais furiosas, por não ousar dizê-las em voz alta:
— Que velho besta! O que ele tem na cabeça! Vir nos incomodar aqui!
Querer que aquele monstrinho brinque! Dar-lhe bonecas! Dar bonecas de
quarenta francos a uma cadela que eu daria por quarenta soldos! Mais um
pouco e ele a chamaria de Vossa Majestade como se fosse a duquesa de
Berry! Não tem um pingo de bom senso? Será que está doido, esse velho
misterioso?
— Por quê? É muito simples — replicava o marido. — Se isso agrada
a ele! Para você, o que agrada é que a pequena trabalhe; para ele, é que ela
brinque. Está no seu direito. Um viajante pode fazer o que quiser quando
paga. Se o velho é algum filantropo, o que você tem com isso? Se é um
imbecil, não é da sua conta. Para que se intrometer, já que ele tem
dinheiro?
Linguagem de mestre e raciocínio de estalajadeiro, duas coisas que não
admitiam réplica.
O homem encostara-se à mesa e retomara sua atitude pensativa. Os
outros viajantes, mascates e carroceiros, afastaram-se um pouco e não
cantavam mais. Olhavam-no à distância com uma espécie de temor
respeitoso. Aquele sujeito tão pobremente vestido, que tirava do bolso
“rodas traseiras” com tanta facilidade, e presenteava com bonecas
gigantescas meninas sujas de tamancos, era decerto um homem magnífico
ou temível.
Várias horas se passaram. A missa da meia-noite acabara, a ceia
terminara, os fregueses tinham ido embora, a estalagem estava fechada, a
sala inferior estava deserta, a fogo estava apagado, e o hóspede
permanecia no mesmo lugar e na mesma postura. De tempos em tempos,
mudava o cotovelo sobre o qual se apoiava; eis tudo. Mas não disse mais
uma palavra desde que Cosette saiu.
Apenas os Thénardier, por conveniência ou por curiosidade, tinham
ficado na sala.
— Será que ele vai passar a noite assim? — resmungava a senhora
Thénardier. Ao soarem duas horas da manhã, declarou-se vencida e disse
ao marido: — Vou me deitar. Faça como quiser.
O marido sentou-se em uma mesa no canto, acendeu uma vela e
começou a ler o Courrier Français.
Passou-se assim uma boa hora. O digno estalajadeiro tinha já lido o
Courrier Français pelo menos três vezes, da data do exemplar ao nome do
editor, e o viajante não se mexia.
Thénardier moveu-se, tossiu, escarrou, assoou-se, fez barulho com a
cadeira, e nenhum movimento do homem.
— Será que está dormindo? — pensou.
O homem não dormia, mas nada podia despertá-lo.
Por fim, Thénardier tirou o boné, aproximou-se cautelosamente e
aventurou-se a dizer:
— O senhor não vai repousar?
Não vai deitar-se pareceu-lhe excessivo e familiar. Repousar cheirava
a luxo e era respeitoso. Essas palavras têm a misteriosa e admirável
propriedade de aumentar, na manhã seguinte, a cifra da conta a pagar. Um
quarto onde se deita custa vinte soldos; um quarto onde se repousa custa
vinte francos.
— Ah! Tem razão — disse o estrangeiro. — Onde é a estrebaria?
— Senhor — disse Thénardier com um sorriso —, vou guiá-lo.
O estalajadeiro pegou a vela, e o homem seu embrulho e seu cajado;
foi levado a um quarto do primeiro andar, de raro esplendor, com mobília
de acaju, uma bela cama e cortinas de tecido vermelho.
— O que é isso? — disse o viajante.
— É o nosso próprio quarto de núpcias — disse o estalajadeiro. —
Minha esposa e eu ocupamos um outro. Só entramos aqui três ou quatro
vezes no ano.
— Mas eu ficaria muito bem na estrebaria — disse o homem
secamente.
Thénardier, porém, fez que não ouviu essa frase pouco obsequiosa;
acendeu duas velas novas que estavam sobre a lareira, onde ardia um bom
fogo.
Ali também estava, em uma redoma, um enfeite feminino de fios de
prata e flores de laranjeira.
— E isso aí, o que é? — perguntou o hóspede.
— Senhor — respondeu Thénardier —, é a grinalda de casamento de
minha mulher.
O viajante olhou para aquele objeto de um jeito que parecia dizer:
então houve um momento em que aquele monstro foi uma virgem?
Mas Thénardier mentia. Quando arrendou aquele lugar para montar
uma taverna, encontrou o quarto daquele jeito, comprou os móveis e
negociou as flores de laranjeira, acreditando que aquilo projetaria uma
sombra graciosa sobre “sua esposa”, resultando para o estabelecimento o
que os ingleses chamam de respeitabilidade.
Quando o viajante se voltou, o estalajadeiro tinha desaparecido.
Thénardier sumira discretamente, sem se atrever a dar boa-noite ao
hóspede, porque não queria tratar com uma cordialidade pouco respeitosa
um homem a quem se propunha esfolar soberbamente no dia seguinte.
Foi então para seu quarto. Sua mulher estava deitada, mas não dormia.
Quando ouviu os passos do marido, virou-se e disse-lhe:
— Sabe, amanhã vou colocar Cosette no olho da rua.
O marido respondeu friamente:
— Que exagero!
Não trocaram outras palavras e pouco tempo depois sua vela estava
apagada.
Quanto ao viajante, colocou em um canto o cajado e o pacote. Sentou-
se em uma poltrona e permaneceu algum tempo pensativo. Depois tirou os
sapatos, pegou uma das velas, apagou a outra, abriu a porta e saiu do
quarto, olhando para todos os lados como quem procura algo. Atravessou
um corredor e chegou à escada, onde ouviu um ruído suave que se
assemelhava à respiração de uma criança. Guiado por esse ruído, chegou a
uma espécie de vão triangular feito sob a escada, ou, melhor dizendo,
formado pela própria escada. Esse vão não era mais do que o desnível dos
degraus, onde, entre todo tipo de cestos e trastes velhos, no meio do pó e
de teias de aranha, havia uma cama, se é que se pode chamar de cama a um
colchão de palha todo esburacado, e um cobertor igualmente esburacado,
que deixava ver o colchão. Não havia lençóis. Aquilo ficava no chão. Ali
dormia Cosette.
O homem aproximou-se e a observou.
Cosette dormia profundamente e estava toda vestida. No inverno não
se despia para não sentir muito frio.
Apertava contra o corpo a boneca, cujos grandes olhos abertos
brilhavam no escuro. De vez em quando, soltava um profundo suspiro,
como se fosse acordar, então apertava a boneca nos braços quase
convulsivamente. Junto de sua cama, só havia um tamanco.
Uma porta aberta perto do lugar em que Cosette dormia deixava ver
um grande quarto escuro. O desconhecido entrou ali. No fundo, avistavam-
se, através de uma porta envidraçada, duas pequenas camas iguais, muito
brancas. Eram de Éponine e de Azelma. Atrás dessas camas, ficava meio
oculto um berço de vime sem cortinado, onde dormia o menino que havia
gritado a noite inteira.
O viajante imaginou que esse quarto se comunicava com o do casal
Thénardier. Já ia saindo quando seu olhar bateu na lareira; uma dessas
vastas lareiras de estalagem, onde sempre há pouco fogo, quando há, e que
são tão frias ao olhar. Nessa de que falamos, não havia fogo e nem mesmo
cinzas; no entanto, o que havia ali chamou a atenção do viajante. Eram
dois sapatinhos de criança, graciosos e de tamanho desigual; ele lembrou-
se do antigo costume das crianças de colocarem seus sapatos na lareira, no
dia de Natal, e esperarem no escuro por algum resplandecente presente de
sua boa fada. Éponine e Azelma não tinham esquecido disso, e cada uma
colocou um de seus sapatos na lareira.
O viajante abaixou-se.
A fada, isto é, a mãe, já tinha feito sua visita, e em cada um dos
sapatos via-se reluzir uma bela moeda de dez soldos novinha em folha.
Ele se levantava para sair quando, ao fundo, e no canto mais escuro e
afastado da lareira, avistou outro objeto. Olhou e reconheceu um tamanco,
um horrível tamanco da mais grosseira madeira, meio partido e todo
coberto de cinza e de lama seca. Era o tamanco de Cosette. Cosette, com
essa tocante confiança infantil que sempre pode ser enganada sem nunca
desistir, pusera também seu tamanco na lareira.
É sublime e doce a esperança em uma criança que só conheceu o
desespero.
Não havia nada em seu tamanco.
O desconhecido remexeu no bolso do colete, abaixou-se e colocou
dentro do tamanco de Cosette uma moeda de ouro.
Depois voltou a seu quarto na ponta dos pés.

IX. THÉNARDIER MANOBRANDO


No dia seguinte, pelo menos duas horas antes de amanhecer,
Thénardier, sentado a uma mesa da sala de baixo da estalagem, com uma
pena na mão, confeccionava, à luz de uma vela, a conta do viajante do
casaco amarelo.
A mulher de pé, meio curvada sobre ele, o seguia com os olhos. Não
trocavam uma só palavra. De um lado, era uma meditação profunda, de
outro, aquela admiração religiosa com que se vê nascer e desabrochar uma
maravilha do espírito humano. Ouvia-se um ruído na casa; era a “Cotovia”
que varria a escada.
Após um bom quarto de hora e algumas rasuras, Thénardier produziu a
seguinte obra-prima:

Conta do senhor do nº1


Ceia………………3 francos
Quarto……………10 francos
Vela……………5 francos
Fogo……………4 francos
Serviço……………1 franco
Total……………23 francos

Serviço estava escrito servisso.


— Vinte e três francos! — exclamou a mulher com um entusiasmo
misturado a um pouco de hesitação.
Thénardier, porém, como todos os grandes artistas, não estava
satisfeito com sua obra.
— Ora! — disse ele.
Era o mesmo acento de Castlereagh no Congresso de Viena redigindo a
conta da França.
— Senhor Thénardier, você tem razão. É isso mesmo o que ele deve —
murmurou a mulher, que se lembrava da boneca dada a Cosette na
presença de suas filhas. — É justo, mas é demais. Ele não vai querer pagar.
Thénardier deu seu sorriso frio e disse:
— Ele vai pagar.
Aquele riso era a suprema significação da confiança e da autoridade. O
que assim era dito, assim devia ser; a mulher não insistiu. Pôs-se a
arrumar as mesas enquanto o marido passeava na sala de um lado para o
outro. Após um instante, ele acrescentou:
— Estou devendo uns mil e quinhentos francos!
E foi sentar-se perto da lareira, meditando, os pés sobre as cinzas
quentes.
— Ah, é mesmo! — exclamou a mulher. — Não está esquecendo que
hoje eu ponho Cosette no olho da rua? Aquele monstro! Devora meu
coração com aquela boneca! Preferia casar com Luís XVIII do que ficar
um dia a mais com ela em casa!
Thénardier acendeu o cachimbo e respondeu entre duas baforadas:
— Mande a conta ao homem.
Em seguida saiu.
Mal saiu da sala, o viajante entrou.
Thénardier reapareceu bem depressa por atrás dele e ficou imóvel na
porta entreaberta, visível apenas por sua mulher.
O homem do casaco amarelo trazia na mão seu cajado e seu pacote.
— De pé tão cedo! — disse a senhora Thénardier. — O senhor já vai
nos deixar?
E, ao dizer isso, revirava a conta nas mãos com ar de embaraço,
fazendo-lhe dobras com as unhas. Aquele rosto duro oferecia uma
expressão que não lhe era habitual, de timidez e escrúpulo.
Apresentar uma conta daquelas a um homem que parecia realmente
“um pobre” era para ela uma coisa penosa.
O viajante parecia preocupado e distraído; respondeu:
— É verdade, senhora, vou-me embora.
— Então o senhor não veio a Montfermeil para tratar de algum
negócio?
— Não, estou só de passagem. Quanto lhe devo, senhora? —
acrescentou ele.
Sem responder, ela estendeu-lhe a conta dobrada.
O homem desdobrou o papel, olhou, mas sua atenção estava
visivelmente em outra coisa.
— A senhora faz bons negócios aqui em Montfermeil? — perguntou
ele.
— Mais ou menos, senhor! — respondeu ela, estupefata de não ver
outra explosão.
Depois prosseguiu, em tom lamentoso e triste:
— Oh! Senhor, os tempos estão bem difíceis! E, depois, há tão pouca
gente da cidade por aqui! São todos fregueses de poucas posses, sabe. Se
não tivéssemos uma vez ou outra viajantes generosos e ricos como o
senhor…! Temos tantas despesas. Só a pequena nos custa os olhos da
cara…
— Que pequena?
— Ora! A pequena, o senhor sabe, Cosette! A Cotovia, como a
chamam por aqui.
— Ah! — disse o homem.
Ela continuou:
— São bobos esses camponeses, com esses apelidos. Ela parece mais
com um morcego do que com uma cotovia. Sabe, senhor, não pedimos
caridade, mas também não podemos fazê-la. Não ganhamos quase nada
mas temos muito para pagar. A licença, os impostos, portas e janelas, os
centavos! O senhor bem sabe que o governo fica com um dinheiro danado.
E tenho minhas filhas. Não tenho a menor necessidade de alimentar o filho
dos outros.
O homem replicou com aquela voz que se esforçava para ser
indiferente, mas na qual havia um certo tremor:
— E se alguém livrasse vocês dela?
— De quem? Da Cosette?
— Sim.
O rosto vermelho e violento da taverneira iluminou-se com um fulgor
medonho.
— Ah! Senhor, meu bom senhor! Pode pegá-la, pode ficar com ela,
levá-la, adoçá-la, recheá-la, bebê-la, comê-la, e seja bendito pela boa
Santa Virgem e por todos os santos do paraíso!
— Está dito.
— Verdade? Vai levá-la?
— Levo.
— Agora?
— Agora. Chame a menina.
— Cosette! — gritou a mulher.
— Enquanto espero, prosseguiu o homem, vou pagar-lhe minha conta.
Quanto é?
Ele deu uma olhada para o papel e não pôde reprimir um movimento
de surpresa:
— Vinte e três francos!
Olhou para a taverneira e repetiu:
— Vinte e três francos?
Na pronúncia dessas duas palavras assim repetidas, havia a entonação
que separa o ponto de exclamação do ponto de interrogação.
Ela teve tempo de se preparar para o choque e respondeu com
segurança:
— Isso mesmo, senhor! Vinte e três francos.
O hóspede pôs cinco moedas de cinco francos sobre a mesa e disse:
— Então vá buscar a pequena.
Nesse momento, o marido avançou para o meio da sala e disse:
— O senhor deve vinte e seis soldos.
— Vinte e seis soldos! — exclamou a mulher.
— Vinte soldos pela cama — continuou o taverneiro friamente — e
seis pela ceia. Quanto à pequena, preciso conversar um pouco com o
senhor. Deixe-nos a sós, mulher.
Ela sentiu um daqueles deslumbramentos causados pelos imprevistos
clarões do talento. Percebeu que entrava em cena o grande ator, e saiu sem
replicar uma palavra.
Ficando sós, Thénardier ofereceu uma cadeira ao viajante. O viajante
sentou-se e Thénardier ficou de pé, com uma singular expressão de
bondade e de simplicidade no rosto.
— Olhe, senhor, vou lhe dizer, é que eu adoro essa criança.
O hóspede olhou fixamente para ele.
— Que criança?
Thénardier continuou:
— É engraçado como a gente se apega! O que é todo esse dinheiro aí?
Pegue de volta todas as suas moedas. Adoro aquela criança.
— Que criança? — perguntou o viajante.
— Ora, nossa pequena Cosette! O senhor não quer levá-la daqui? Pois
eu falo francamente, de verdade, assim como o senhor é um homem
honesto; eu não posso consentir. Ela me faria falta, essa menina. Está aqui
desde bem pequena. É verdade que nos custa dinheiro, é verdade que tem
seus defeitos, é verdade que não somos ricos, é verdade que gastei mais de
quatrocentos francos em remédios só de uma vez que ficou doente! Mas
também é preciso que a gente faça alguma coisa, pelo amor de Deus. Ela
não tem pai nem mãe, eu que a criei. Ela come do nosso pão. O fato é que
gosto dessa menina. O senhor compreende, a gente cria afeição; sou um
bobo, não penso como devia, mas é que gosto mesmo da pequena; minha
mulher é brava, mas também gosta dela. Sabe, é como se fosse nossa filha.
Preciso ouvir o barulho dela pela casa.
O hóspede continuava a encará-lo fixamente. Ele continuou.
— Perdão, me desculpe, senhor, mas a gente não dá um filho assim ao
primeiro que passa. Não acha que eu tenho razão? Não é por nada, o
senhor é rico, parece mesmo ser um homem bom; e se for para a felicidade
dela? Mas é preciso saber. O senhor entende? Vamos supor que eu a deixe
ir, que eu me sacrifique, quero saber para onde ela vai, não quero perdê-la
de vista, quero saber na casa de quem está, para ir vê-la de tempos em
tempos, e para que ela saiba que seu pai adotivo ainda existe e se preocupa
com ela. Enfim, há coisas que não são possíveis. Eu não sei nem mesmo
seu nome. O senhor a levaria, e eu perguntaria: e a Cotovia? Para onde
será que ela foi? Seria preciso pelo menos que o senhor me mostrasse
qualquer pedaço de papel, um pedacinho de passaporte que seja!
O hóspede respondeu-lhe com acento grave e firme, e sem tirar dele
um olhar que, por assim dizer, penetrava até o fundo da consciência:
— Senhor Thénardier, ninguém leva passaporte para percorrer cinco
léguas de Paris até aqui. Se é para levar Cosette, vou levar e pronto. O
senhor não vai saber meu nome, não vai saber onde moro, não vai saber
onde ela vai estar; e minha intenção é que ela não torne mais a vê-los na
vida. Vou partir o fio que a amarra pelo pé e ela vai sumir. Isso lhe
convém? Sim ou não?
Do mesmo modo que os demônios e os gênios reconhecem por certos
sinais a presença de um deus superior, Thénardier viu que tratava com
alguém muito forte.
Foi como uma intuição; ele compreendeu isso com clara e sagaz
prontidão. Na véspera, enquanto bebia com os carroceiros, enquanto
fumava e cantava, passara a noite observando o estranho, espreitando-o
como um gato e estudando-o como um matemático. Espionara-o ao
mesmo tempo por sua conta, por seu gosto e instinto, e como se tivesse
sido pago para tal. Não lhe escapara nem um gesto, nem um movimento do
homem do capote amarelo. Antes mesmo de o desconhecido manifestar
seu interesse por Cosette, Thénardier o adivinhara, ao surpreender os
profundos olhares desse velho que se voltavam sempre para a criança. Por
que esse interesse? Quem seria esse homem? Por que, com tanto dinheiro
no bolso, aquela roupa tão miserável? Perguntas que fazia a si mesmo sem
poder responder e que o irritavam. Passara a noite pensando. Não podia ser
o pai de Cosette. Seria um avô? Mas então por que não se fazer conhecer
imediatamente? Quem tem direitos os mostra. Era evidente que aquele
homem não tinha direitos sobre Cosette. Então, quem era? Thénardier se
perdia em suposições. Entrevia tudo, mas não via nada. Fosse como fosse,
entabulando conversa com o homem, certo de que havia algum segredo em
tudo aquilo, certo de que o homem tinha interesse em manter-se na
sombra, sentia-se forte; ao ouvir a clara e firme resposta do desconhecido,
ao ver que aquele personagem misterioso era assim, simplesmente
misterioso, sentiu-se fraco. Não esperava nada parecido. Foi a derrota de
suas conjecturas. Reuniu suas ideias, pesou tudo aquilo em um segundo.
Thénardier era desses homens que julgam uma situação em um piscar de
olhos. Viu que era o momento de andar depressa e ser direto. Fez como os
grandes capitães nos instantes decisivos que só eles sabem reconhecer;
deixou repentinamente a descoberto sua bateria.
— Senhor — disse ele —, preciso de mil e quinhentos francos.
O desconhecido tirou de um dos bolsos uma velha carteira de couro
preto, abriu-a e tirou três notas que pôs em cima da mesa. Depois, apoiou
sobre elas o largo polegar e disse ao taverneiro:
— Mande vir Cosette.
Enquanto isso ocorria, que fazia ela?
Ao acordar, Cosette correu até seu tamanco e ali encontrou a moeda de
ouro. Não era um napoleão, era uma dessas moedas de vinte francos,
novinha, da Restauração, em cuja efígie a coroa de louro fora substituída
pelo símbolo prussiano. Cosette ficou deslumbrada. Seu destino começava
a encantá-la. Ela não sabia o que era uma moeda de ouro, nunca vira
nenhuma, e escondeu-a bem depressa no bolso, como se a tivesse roubado.
No entanto, sentia que aquilo realmente lhe pertencia e adivinhava de onde
lhe vinha aquele presente, mas experimentava uma espécie de alegria
cheia de medo. Estava contente, e, mais que tudo, estupefata. Essas coisas
tão magníficas e tão bonitas não lhe pareciam reais. A boneca lhe dava
medo, a moeda de ouro lhe dava medo. Ela tremia vagamente diante
daquelas magnificências. Só o desconhecido não lhe dava medo. Ao
contrário, a tranquilizava. Desde a véspera, em meio a tantas surpresas,
através de seu sono, pensava, com seu espírito infantil, naquele homem
que parecia velho, pobre e tão triste, mas que era tão rico e tão bom.
Cosette, menos feliz que a menor andorinha do céu, nunca soubera o que é
o refugiar-se à sombra de sua mãe ou sob as asas de alguém. Havia cinco
anos, isto é, até onde podiam remontar suas lembranças, a pobre criança
tremia de medo e tiritava de frio. Sempre estivera nua sob o rude vento da
desgraça; parecia-lhe agora estar vestida. Antes, sua alma sentia frio,
agora se sentia aquecida. Cosette já não temia tanto a senhora Thénardier,
não se achava mais só; havia alguém a seu lado.
Ela já se pusera, bem depressa, a fazer suas tarefas de todas as manhãs.
Porém, aquela moeda que trazia consigo, naquele mesmo bolso do avental
de onde caíra, na noite anterior, a moeda de quinze soldos, a distraía. Ela
não se atrevia a tocá-la, mas passava às vezes cinco minutos a contemplá-
la, e, devemos dizer, mostrava a língua. Ao varrer a escada, parava e assim
ficava, imóvel, esquecendo sua vassoura e o universo inteiro, ocupada em
olhar aquela estrela brilhar no fundo de seu bolso.
Foi em uma dessas contemplações que a senhora Thénardier a
encontrou.
Por ordem do marido, tinha ido buscá-la e, coisa incrível, não lhe deu
nenhum tapa nem lhe disse nenhuma injúria.
— Cosette — disse a mulher quase ternamente —, venha depressa.
Um instante depois, Cosette entrava na sala de baixo.
O desconhecido pegou o pacote que havia trazido e o desatou. O pacote
continha um vestido de lã, um avental, uma blusa de fustão, uma saia, um
lenço para o pescoço, meias de lã, sapatos, um vestuário completo para
uma menina de sete anos. Tudo de cor preta.
— Minha filha, pegue tudo isso e vá vestir-se bem depressa.
O dia despontava quando os habitantes de Montfermeil, que
começavam a abrir as portas de suas casas, viram passar pela rua de Paris
um senhor pobremente vestido, dando a mão a uma menina
completamente de luto, que levava nos braços uma boneca cor-de-rosa.
Dirigiam-se para os lados de Livry.
Eram Cosette e o nosso homem.
Ninguém o conhecia, e, como Cosette já não vestia trapos, muitos não
a reconheceram.
Cosette partia. Mas com quem? Ela ignorava. Para onde? Não sabia.
Tudo o que compreendia era que deixava para trás a estalagem Thénardier.
Ninguém se lembrara de lhe dizer adeus, nem ela despediu-se de ninguém.
Saía daquela casa odiada e odiando.
Pobre e meiga criatura, cujo coração, até aquele instante, só havia sido
oprimido!
Cosette caminhava séria, abrindo seus grandes olhos e contemplando o
céu. Tinha colocado sua moeda no bolso de seu avental novo. De vez em
quando, curvava a cabeça e olhava para dentro do bolso, depois olhava
para o homem. Ela se sentia um pouco como se estivesse na presença de
Deus.

X. QUEM PROCURA O MELHOR PODE ENCONTRAR


O PIOR
Dona Thénardier, como era seu costume, deixara o marido agir. Ela
esperava por grandes acontecimentos. Quando Cosette e o homem
partiram, Thénardier deixou passar um bom quarto de hora, depois
chamou-a de lado e mostrou-lhe os mil e quinhentos francos.
— Só isso! — ela disse.
Era a primeira vez, desde que viviam juntos, que ela ousava criticar
um ato de seu senhor.
O tiro acertou o alvo.
— De fato, você tem razão — disse ele —, sou um imbecil. Dê meu
chapéu.
Dobrou as três notas, colocou-as no bolso e saiu com muita pressa;
mas enganou-se e entrou primeiro à direita. Alguns vizinhos, a quem pediu
informação, o colocaram novamente na pista; a Cotovia e o homem foram
vistos indo em direção a Livry. Thénardier seguiu essa indicação,
caminhando a passos largos e falando sozinho.
— Esse homem é um milhão vestido de amarelo e eu sou um grande
animal. Primeiro ele deu vinte soldos, depois cinco francos, depois
cinquenta francos, depois mil e quinhentos, e sempre com muita
facilidade. Teria dado quinze mil. Mas vou alcançá-lo. E, depois, aquele
embrulho de roupas já preparado para a pequena, tudo foi muito estranho;
bem que havia um mistério atrás disso. Não se deixa escapar um mistério
que está seguro. Os segredos dos ricos são esponjas cheias de ouro que se
deve saber espremer.
Todos esses pensamentos fervilhavam em seu cérebro. “Sou um
animal”, dizia ele.
Quando se sai de Montfermeil, e se atinge o cotovelo da estrada que
vai a Livry, vê-se que ela se estende até muito longe no planalto. Chegando
ali, Thénardier calculou que deveria avistar o homem e a pequena. Olhou o
mais longe que podia, mas não viu nada. Perguntou outra vez; enquanto
isso, perdia tempo. Algumas pessoas que passavam disseram-lhe que o
homem e a criança que procurava haviam se encaminhado para o bosque,
para os lados de Gagny. Ele se apressou nessa direção.
Os dois estavam na dianteira em relação a ele, mas uma criança anda
devagar, e ele caminhava depressa; além disso, conhecia muito bem a
região.
De repente, Thénardier parou e bateu na cabeça como quem esqueceu o
essencial e está disposto a voltar atrás.
— Devia ter trazido minha espingarda! — pensou.
Thénardier era dessas naturezas duplas que às vezes passam por nós
sem nos darmos conta, e desaparecem sem ser conhecidas, porque o
destino mostrou apenas um dos lados. A sorte de muitos homens é viver
assim, meio submersos. Em uma situação calma e normal, Thénardier
tinha tudo o que era preciso para fazer — não dizemos para ser — o que
está convencionado chamar-se um negociante honesto, um bom cidadão.
Ao mesmo tempo, dadas certas circunstâncias, certos abalos vindo
remexer sua segunda natureza, ele tinha tudo o que era preciso para ser um
vigarista. Era um estalajadeiro com algo de monstro. Satanás às vezes
devia acocorar-se no canto da espelunca em que ele vivia e delirar diante
daquela obra-prima medonha.
Após uma hesitação de alguns instantes, pensou:
— Ora, mas eles teriam tempo de escapar!
E continuou seu caminho apressadamente, com certo ar de certeza,
com a sagacidade da raposa que fareja um bando de perdizes.
Com efeito, depois de transpor os lagos e atravessar obliquamente a
grande clareira que fica à direita da avenida Bellevue, ao chegar à alameda
gramada que praticamente circunda a colina e recobre a cúpula do antigo
aqueduto da abadia de Chelles, avistou, por cima de um arbusto, um
chapéu sobre o qual já havia levantado várias conjecturas. Era o chapéu do
homem. Como o arbusto era baixo, Thénardier reconheceu o homem e
Cosette ali sentados. Não se via a menina porque era pequena, mas
entrevia-se a cabeça da boneca.
Thénardier não estava enganado. O homem sentara-se ali para deixar
Cosette descansar um pouco. O taverneiro contornou o arbusto e apareceu
subitamente aos olhos dos dois.
— Perdão, me desculpe, senhor — disse ele todo esbaforido —, mas
aqui estão seus mil e quinhentos francos.
Ao dizer isso, estendia ao desconhecido as três notas.
O homem levantou os olhos:
— O que significa isso?
Thénardier respondeu respeitosamente:
— Senhor, isso significa que vou levar Cosette de volta.
Cosette estremeceu e encostou-se no homem.
Este respondeu encarando Thénardier no fundo dos olhos e espaçando
todas as sílabas:
— Le-var Co-set-te de vol-ta?
— Sim, senhor, quero levá-la. Vou lhe dizer, eu refleti. Na verdade eu
não tenho direito de entregá-la ao senhor. Sou um homem honesto, sabe. A
pequena não é minha, é da mãe dela. Foi a mãe dela que a confiou a mim e
só posso devolvê-la à mãe. O senhor vai me dizer: “Mas a mãe morreu”.
Bem, nesse caso não posso entregar a criança senão a uma pessoa que me
trouxesse um escrito assinado por ela, dizendo que eu devo entregar a
criança a tal pessoa. Isso é muito claro.
Sem responder, o homem remexeu em seu bolso, e Thénardier viu
reaparecer a carteira de dinheiro. Chegou a estremecer de alegria.
— Muito bem! — pensou ele. — Vamos ficar firmes. Ele vai querer
corromper-me!
Antes de abrir a carteira, o viajante deu uma olhada em volta. O local
estava completamente deserto. Não havia viva alma nem no bosque, nem
no vale. O homem, então, abriu a carteira e tirou dela não o punhado de
notas que Thénardier esperava, mas um simples pedaço de papel que
desdobrou e apresentou aberto ao estalajadeiro, acrescentando:
— O senhor tem razão. Leia.
Thénardier pegou o papel e leu:

Montreuil-sur-Mer, 25 de março de 1823.


“Senhor Thénardier,
Entregue Cosette ao portador desta. Todas as pequenas despesas lhe serão pagas.
Tenho a honra de saudá-lo com toda a consideração.

Fantine”.

— Conhece essa assinatura? — tornou o homem.


A assinatura era efetivamente de Fantine. Thénardier a reconheceu.
Não havia nada a replicar. O estalajadeiro sentiu-se duplamente
despeitado, por renunciar à corrupção que esperava e por ver-se vencido. O
homem acrescentou:
— Pode guardar esse papel para seu desencargo.
Thénardier teve de curvar-se sem reclamar.
— A assinatura está muito bem imitada — resmungou entre os dentes.
— Mas, enfim, vá lá.
Depois tentou um esforço desesperado.
— Está bem, senhor — disse ele —, uma vez que o senhor é o
portador. Mas tem que me pagar “todas as pequenas despesas”, que não
são poucas.
O homem levantou-se e disse, sacudindo o pó das mangas do casaco:
— Senhor Thénardier, em janeiro a mãe acreditava dever-lhe cento e
vinte francos, e, em fevereiro, o senhor mandou-lhe uma conta de
quinhentos; o senhor recebeu trezentos francos em fins de fevereiro e
outros trezentos no começo de março. Passaram-se nove meses desde
então; a quinze francos por mês, como combinado, são cento e trinta e
cinco francos. Ora, o senhor já havia recebido cem francos a mais. Restam
trinta e cinco francos, que lhe devemos; e eu acabo de lhe dar mil e
quinhentos.
Thénardier experimentou o que experimentam os lobos quando se
sentem mordidos e agarrados pelos dentes de ferro da armadilha.
— Que diabo de homem é esse? — pensou ele.
Fez então o que faz o lobo, mais um esforço. A audácia uma vez já lhe
tinha dado bom resultado.
— Senhor-de-quem-não-sei-o-nome — disse ele resolutamente, e
desta vez pondo os modos respeitosos de lado —, ou me dá mil francos ou
levo Cosette de volta.
O desconhecido disse tranquilamente:
— Venha, Cosette.
Segurou Cosette com a mão esquerda e, com a direita, apanhou o
cajado do chão.
Thénardier reparou no tamanho do cajado e no isolamento do lugar.
O homem entrou pelo bosque com a menina, deixando o taverneiro
imóvel e aturdido. Enquanto se afastavam, Thénardier observava seus
largos ombros um tanto arqueados, e seus fortes punhos.
Depois, voltando os olhos para si mesmo, via seus braços fracos e suas
mãos magras. “Eu tinha mesmo que ser um animal”, pensava, “para não
ter trazido a espingarda, já que eu vinha à caça”.
No entanto, o estalajadeiro, não desistiu.
— Quero saber para onde ele vai — pensou. E pôs-se a segui-los à
distância. Restavam-lhe nas mãos duas coisas, uma ironia, o papel
amassado, assinado Fantine, e uma consolação, os mil e quinhentos
francos.
O homem conduzia Cosette na direção de Livry e Bondy. Caminhava
lentamente, a cabeça baixa em atitude de reflexão e tristeza. O inverno
deixara o bosque com certa claridade que permitia a Thénardier não perdê-
los de vista, mesmo ficando a boa distância. De vez em quando, o homem
se voltava para ver se não o seguiam. De repente, avistou Thénardier.
Embrenhou-se bruscamente com Cosette em uma moita cerrada, onde os
dois pareciam sumir.
— Diacho! — disse Thénardier, e apertou mais o passo.
A espessura da moita o obrigara a aproximar-se mais deles. Quando o
homem chegou na parte mais fechada, voltou-se para trás. Por mais que
Thénardier tentasse esconder-se entre os ramos, não pôde impedir que o
homem o visse. Este o encarou com um olhar perturbador, abanou a
cabeça e continuou seu caminho. O estalajadeiro tornou a segui-los; deram
mais duzentos ou trezentos passos. Dessa vez o homem o olhou de forma
tão sombria que Thénardier julgou “inútil” ir mais adiante. Deu meia-
volta.

XI. REAPARECE O NÚMERO 9.430, E COSETTE O


GANHA NA LOTERIA
Jean Valjean não morrera.
Ao cair no mar, ou melhor, ao jogar-se nele, estava, como já vimos,
sem as correntes. Nadou por baixo d’água até o ancoradouro em que estava
amarrada uma embarcação, onde achou meio de se esconder até a noite. À
noite, lançou-se outra vez a nado e atingiu a costa a pouca distância do
cabo Brun. Ali, como não era dinheiro o que lhe faltava, pôde arranjar
algumas roupas. Uma espelunca nos arredores de Balaguier servia então de
vestiário dos forçados evadidos, especialidade lucrativa. Depois, Jean
Valjean, como todos esses tristes fugitivos que procuram despistar a
vigilância da lei e a fatalidade social, seguiu um itinerário obscuro e
tortuoso. O primeiro asilo que encontrou foi em Pradeaux, nas imediações
de Beausset. Em seguida, dirigiu-se a Grand-Villard, perto de Briançon,
nos Altos Alpes. Fuga receosa e titubeante, caminho de toupeiras, cujas
ramificações são desconhecidas. Conseguiu-se mais tarde achar alguns
vestígios de sua passagem por Ain, no território de Civrieux, pelos
Pirineus, em Accons, no local chamado Grange-de–Doumecq, pelas
imediações do vilarejo de Chavailles e pelos arredores de Périgueux, em
Brunies, cantão de Chapelle-Gonaguet. Depois, foi a Paris. Acabamos de
vê-lo em Montfermeil.
Seu primeiro cuidado, chegando a Paris, foi comprar roupas de luto
para uma pequena de sete a oito anos, e depois arranjar um alojamento.
Feito isso, dirigiu-se a Montfermeil.
Devem lembrar-se que, por ocasião de sua evasão anterior ou por volta
dessa época, ele havia feito uma viagem misteriosa sobre a qual a justiça
tivera alguma luz.
De resto, julgavam-no morto, e isso aumentava a obscuridade que se
formara em torno dele. Em Paris, caiu-lhe nas mãos um dos jornais que
registravam o fato. Ele sentiu-se tranquilizado, quase em paz, como se
realmente estivesse morto.
Na mesma noite em que Jean Valjean tirara Cosette das garras dos
Thénardier, estava de volta a Paris. Chegava ao cair da noite, com a
criança, pela barreira de Monceaux. Ali subiram em um cabriolé que os
conduziu à esplanada de l’Observatoire. Desceram, Jean Valjean pagou o
cocheiro, pegou Cosette pela mão e foram, no meio da noite escura, pelas
ruas desertas que ligam Ourcine a Glacière, em direção ao bulevar de
l’Hôpital.
O dia fora estranho e cheio de emoções para Cosette; haviam comido,
atrás das sebes, pão e queijo comprados em tavernas isoladas, tinham,
várias vezes, mudado de carruagem, tinham andado vários trechos a pé;
ela não se queixava, mas estava cansada; Jean Valjean o percebeu por sua
mão, que ela puxava cada vez mais ao andar. Ele a pegou no colo; Cosette,
sem largar Catherine, colocou a cabeça no ombro dele, e adormeceu.

__________________________
1 Antiga moeda que valia um quarto de soldo.
2 Trocadilho com as palavras filou [trapaceiro] e philosophe [filósofo].
3 Colônia fundada no Texas, em 1815, por um grupo de refugiados bonapartistas e
republicanos.
4 “Dinheiro.”
5 Designação popular da moeda de cinco francos, por analogia com as rodas traseiras das
carruagens, que são bem grandes.
LIVRO IV
O CASEBRE GORBEAU

I. MESTRE GORBEAU
HÁ QUARENTA ANOS, um caminhante solitário que se aventurava pelas
remotas regiões da Salpêtrière, e que subia pelo bulevar até os lados da
entrada d’Italie, chegava a lugares em que se podia dizer que Paris
acabava. Não era um isolamento, pois ali passava gente; não era campo,
pois havia casas e ruas; não era uma cidade, pois as ruas tinham barrancos,
como as grandes estradas, onde o mato crescia; não era uma aldeia, pois as
casas eram bem altas. O que era, então? Era um lugar habitado onde não
havia ninguém; era um lugar deserto onde havia alguém, era um arrabalde
da cidade grande, uma rua de Paris, mais arisca à noite do que uma
floresta, mais triste de dia do que um cemitério.
Era o antigo bairro Marché-aux-Chevaux.
O mesmo caminhante, caso se arriscasse a transpor os quatro velhos
muros do Marché-aux-Chevaux, se resolvesse passar além da rua Petit-
Banquier, depois de haver deixado, à direita, uma horta cercada por
elevados muros, e em seguida um prado, onde se erguiam montes de casca
de carvalho semelhantes a casinhas de castores gigantescos, e depois um
cerrado atulhado de madeira e de tocos de árvores, serragem e lascas, em
cima das quais latia um cão enorme, e depois um muro baixo, todo em
ruínas, com uma portinha preta e suja, cheia de musgos que, na primavera,
se enchiam de flores, e depois, no local mais deserto, um decrépito
casebre, no qual se lia em grandes letras: PROIBIDO COLOCAR
CARTAZES, o ousado caminhante chegaria à esquina da rua Vignes-Saint-
Marcel, local pouco conhecido. Ali, perto de uma fábrica e entre dois
muros de jardim, via-se, naquele tempo, um casebre que, à primeira vista,
parecia pequeno como uma cabana, mas que, na realidade, era grande
como uma catedral. Sua aparente pequenez devia-se a ficar de lado para a
via pública, de modo que só era visto em parte. A casa ficava quase toda
escondida, apenas uma porta e uma janela sendo visíveis. O casebre só
tinha um andar.
Ao examiná-lo, o detalhe que primeiro impressionava era que a porta
nunca poderia ter sido senão a porta de uma espelunca, ao passo que a
janela, se tivesse sido feita em pedra de cantaria, em vez de alvenaria,
poderia ter sido a janela de um palacete.
A porta não era mais que um conjunto de tábuas carcomidas,
grosseiramente unidas por travessas semelhantes a pedaços de lenha mal
aparados. Ela se abria diretamente para uma escada de degraus altos,
enlameados, barrentos, empoeirados, da mesma largura da porta, e, da rua,
via-se que subia direto e desaparecia na sombra entre duas paredes. Na
parte superior, o vão que se formava era tapado por uma estreita tábua, no
meio da qual uma fresta triangular fora cortada para servir, ao mesmo
tempo, de respiro e bandeira quando a porta estava fechada. Pelo lado de
dentro, um pincel molhado em tinta havia traçado em duas pinceladas o
número 52, e acima da tábua o mesmo pincel rabiscara o número 50, de
forma que se hesitava. Onde estamos? A parte de cima da porta diz:
número 50; a parte de dentro replica: não, número 52. Da fresta triangular,
pendiam não se sabe que trapos cor de poeira como se fossem cortinados.
A janela era larga, suficientemente elevada, guarnecida de persianas e
de vidraças de grandes caixilhos, com variadas rachaduras, ao mesmo
tempo ocultas e denunciadas por uma engenhosa faixa de papel; e as
persianas, fora do lugar e soltas, mais ameaçavam os transeuntes do que
resguardavam os moradores. Nas persianas, aqui e ali faltavam algumas
das tabuinhas horizontais que eram singelamente substituídas por pranchas
pregadas perpendicularmente, de modo que a coisa começava como
persiana e acabava como veneziana.
Essa porta, que tinha um aspecto imundo, e essa janela, que tinha um
ar decente, ainda que deteriorada, assim vistas na mesma casa, produziam
o efeito de dois mendigos desemparelhados, indo juntos e caminhando
lado a lado, com aparências diferentes sob os mesmos andrajos, um tendo
sempre sido um miserável e o outro um fidalgo.
A escada conduzia a um edifício muito vasto, que se assemelhava a um
galpão transformado em casa. Esse edifício tinha como tubo intestinal um
longo corredor para o qual se abriam, à direita e à esquerda, espécies de
compartimentos com dimensões variadas, a rigor habitáveis, e mais
parecidos com tendas do que com celas. Esses quartos recebiam claridade
dos terrenos vagos em volta. Tudo isso era obscuro, desagradável,
descorado, melancólico, sepulcral, atravessado, segundo as fendas no
telhado ou na porta, por raios frios ou rajadas geladas. Uma
particularidade interessante e pitoresca desse tipo de habitação é o
tamanho das aranhas.
À esquerda da porta de entrada, no bulevar, à altura de um homem,
uma pequena janela que taparam formava um nicho quadrado, cheio de
pedras que os moleques jogavam ao passar por ali.
Uma parte dessa construção foi demolida mais recentemente. O que
restou ainda dá uma ideia daquilo que tinha sido. O conjunto do edifício
não tem mais que uma centena de anos. Cem anos é a juventude de uma
igreja e a velhice de uma casa. Parece que a morada do homem faz parte
de sua brevidade e a morada de Deus, de sua eternidade.
Os carteiros chamavam àquele casebre de “número 50-52”; mas ele era
conhecido no bairro com o nome de casa Gorbeau.
Vamos contar de onde lhe vinha essa denominação.
Os colecionadores de pequenos casos, que se fazem de verdadeiros
catálogos de histórias e penduram na memória as datas fugazes com um
alfinete, sabem que no século passado, por volta de 1770, existiam em
Paris dois procuradores de Châtelet chamados, um Corbeau — corvo —, e
o outro Renard — raposa —, dois nomes previstos por La Fontaine. A
oportunidade era boa demais para que isso não fosse motivo de chacota.
Logo correu uma paródia, em versos meio capengas, nas galerias do
tribunal:

Maître Corbeau, sur un dossier perché,


Tenait dans son bec une saisie exécutoire;
Maître Renard, par l’odeur alléché,
Lui fit à peu près cette histoire:
Hé bonjour! etc.

Mestre Corvo, sobre um processo empoleirado,


Segurava no bico uma sentença executória;
Mestre Raposa, pelo odor alertado,
Contou-lhe mais ou menos esta história:
Hei, bom dia! etc.

Os dois honestos patrícios, constrangidos pelos gracejos e contrariados


em seu orgulho pelas gargalhadas que os perseguiam, decidiram desfazer-
se de seus nomes, e resolveram dirigir-se ao rei. O requerimento foi
apresentado a Luís XV no mesmo dia em que o núncio papal, de um lado,
e o cardeal de la Roche-Aymon, de outro, ambos devotamente ajoelhados,
calçaram, em presença de Sua Majestade, cada um uma pantufa nos pés
nus de madame Du Barry, quando ela saía da cama. O rei, que ria,
continuou rindo, e passou alegremente dos dois bispos aos dois
procuradores, e concedeu a esses togados a graça pedida, ou quase. Foi
permitido pelo rei, a mestre Corbeau, acrescentar uma cauda à sua inicial e
chamar-se Gorbeau; mestre Renard foi menos feliz; apenas conseguiu
obter um P antes do R e chamar-se Prenard, de modo que o segundo nome
pouco diferia do primeiro.
Ora, segundo a tradição local, o tal mestre Gorbeau tinha sido
proprietário do casebre numerado 50-52, no bulevar de l’Hôpital. Fora ele
mesmo o criador da janela monumental. Vinha daí ao tal casebre o nome
de casa Gorbeau.
Defronte ao número 50-52 eleva-se, entre as plantações do bulevar, um
grande olmo meio seco; quase em frente, abre-se a rua da entrada dos
Gobelins, então sem casas e sem calçamento, plantada com árvores
maltratadas, rua verde ou lamacenta, de acordo com a estação, terminando
de cara para o muro de proteção de Paris. Dos telhados de uma fábrica
próxima saem baforadas com odor de enxofre.
A entrada dos Gobelins ficava bem próxima, e em 1823 ainda existia o
muro.
Essa entrada, por si só, lançava no espírito imagens funestas. Era o
caminho de Bicêtre. Era por ela que, no tempo do Império e da
Restauração, tornavam a entrar em Paris os condenados à morte no dia de
sua execução. Foi ali que se cometeu, por volta de 1829, o misterioso
assassinato chamado “da entrada de Fontainebleau”, cujos autores a justiça
nunca descobriu, problema fúnebre que não foi esclarecido, enigma
horroroso que não foi decifrado.
Mais alguns passos e se encontra a fatal rua Croulebarbe, onde Ulbach
apunhalou a pastora de cabras de Yvry, sob o ruído de um trovão, como em
um melodrama. Outros passos ainda, e chega-se aos abomináveis olmos
decapitados da entrada Saint-Jacques, expediente dos filantropos para
esconder o cadafalso, essa mesquinha e vergonhosa praça de Grève, de
uma sociedade de mercadores e burgueses que recuou diante da pena de
morte, sem ousar aboli-la com grandeza, nem conservá-la com autoridade.
Há trinta e sete anos, deixando de lado essa praça Saint-Jacques que
estava predestinada e que sempre foi horrível, o ponto mais tristonho,
talvez, de todo aquele tristonho bulevar, era o local, ainda hoje tão pouco
aprazível, onde ficava o casebre 50-52.
As casas burguesas só começaram a despontar ali vinte e cinco anos
mais tarde. O lugar era lúgubre. Além das ideias fúnebres que tomavam as
pessoas, sentia-se estar entre Salpêtrière, da qual se avistava a cúpula, e
Bicêtre, cuja entrada era muito próxima, ou seja, era como estar entre a
loucura da mulher e a loucura do homem. Por mais longe que a vista
alcançasse, só se avistavam os matadouros, o muro de proteção e algumas
raras fachadas de fábricas, que pareciam quartéis ou mosteiros; por toda
parte, barracas e entulho, velhos muros negros como mortalhas, muros
novos brancos como sudários; por toda parte, fileiras de árvores paralelas,
casebres alinhados, construções sem graça, longas linhas frias e a tristeza
lúgubre dos ângulos retos. Nem um acidente de terreno, nem um capricho
de arquitetura, nem uma dobra. Era um conjunto glacial, regular,
medonho. Nada aperta o coração como a simetria. É que a simetria é o
enfado e o enfado é a essência do luto. O desespero boceja. Se é possível
imaginar coisa mais terrível do que um inferno onde se sofre, é um inferno
que nos entedia. Se tal inferno existisse, aquele pedaço do bulevar de
l’Hôpital poderia ser sua avenida.
Todavia, ao cair da noite, no momento em que a claridade se vai,
principalmente no inverno, à hora em que o vento crepuscular arranca aos
olmos suas últimas folhas amareladas, quando a noite é profunda e sem
estrelas, quando a lua e o vento rasgam as nuvens, aquele bulevar de
repente tornava-se medonho. As linhas negras entranhavam-se e perdiam-
se nas trevas, como traços de infinito. Quem passava não podia deixar de
pensar nas inumeráveis tradições patibulares do lugar. A solidão daquele
local em que tantos crimes foram cometidos tinha algo de terrível.
Julgava-se pressentir uma armadilha naquela escuridão, todas as formas
confusas da sombra tornavam-se suspeitas, e os amplos espaços quadrados
entre as árvores pareciam covas. De dia era feio, ao anoitecer era lúgubre,
à noite era sinistro.
Durante o verão, no crepúsculo, viam-se aqui e ali algumas velhas
sentadas ao pé dos olmos, em bancos embolorados pelas chuvas. As boas
velhinhas esmolavam de bom grado.
De resto, esse bairro, que tinha aspecto mais de velho que de antigo,
tendia desde então a transformar-se. Naquela época, quem quisesse vê-lo
devia apressar-se. Cada dia desaparecia algum pormenor daquele conjunto.
Hoje, e há vinte anos, a estação da estrada de ferro de Orléans existe ao
lado do antigo arrabalde, e o modifica. Onde quer que se coloque, nos
extremos de uma capital, uma estação ferroviária, é a morte de um
arrabalde e o nascimento de uma cidade. Parece que em volta desses
centros de movimento de pessoas, ao rodar dessas poderosas máquinas, ao
resfolegar desses monstruosos cavalos da civilização, que comem carvão e
vomitam fogo, a terra cheia de germes treme e se abre para tragar as
antigas moradias dos homens, deixando sair as novas. Desabam as casas
velhas e as novas se elevam. Desde que a estação da via férrea de Orléans
invadiu os terrenos da Salpêtrière, as antigas ruas estreitas que ligam
Saint-Victor ao Jardim Botânico são abaladas, violentamente atravessadas,
três ou quatro vezes ao dia, por essa torrente de diligências, carruagens e
ônibus que, em pouco tempo, empurram as casas à esquerda e à direita;
pois há coisas extravagantes a anunciar, mas que são rigorosamente
exatas; e assim como é verdadeiro dizer que, nas grandes cidades, o sol faz
vegetar e crescer as fachadas das casas ao meio-dia, é certo que a
passagem frequente das carruagens alarga as ruas. São evidentes os
sintomas de uma vida nova. Naquele velho bairro provincial, nos
recônditos mais selvagens, o calçamento aparece, as calçadas começam a
surgir e a estender-se, mesmo onde não passa gente ainda. Uma manhã,
memorável manhã de julho de 1845, viram-se de repente fumegar ali os
caldeirões negros do betume; naquele dia, podia-se dizer que a civilização
havia chegado à rua Ourcine, e que Paris chegara ao arrabalde de Saint-
Marceau.
II. NINHO PARA CORUJA E PASSARINHO
Foi em frente ao casebre Gorbeau que Jean Valjean parou. Como os
pássaros selvagens, ele escolheu aquele local deserto para fazer seu ninho.
Remexeu no bolso do colete, tirou uma espécie de chave-mestra, abriu
a porta, entrou, depois fechou-a com cuidado e subiu a escada ainda com
Cosette no colo.
No alto da escada tirou do bolso outra chave e abriu outra porta, que
tornou imediatamente a fechar. O quarto onde entrou era uma espécie de
sótão, bastante espaçoso, com um colchão no chão, uma mesa e algumas
cadeiras. Em um canto, um fogareiro aceso, onde se via brasa. A claridade
do bulevar iluminava vagamente aquele pobre interior. No fundo, havia
uma parte fechada, com uma cama de lona, para a qual Jean Valjean levou
a criança, deitando-a sem que acordasse; depois acendeu uma vela.
Tudo isso estava preparado de antemão sobre a mesa; e, como fizera na
véspera, pôs-se a observar Cosette com um olhar extasiado, em que a
expressão da bondade e do enternecimento chegava quase ao desvario. A
pequenina, com a confiança tranquila que só provém da força extrema e da
extrema fraqueza, adormecera sem saber com quem estava e continuava
dormindo sem saber aonde estava.
Jean Valjean curvou-se e beijou a mão da criança.
Nove meses antes, ele beijara a mão da mãe, também no momento em
que ela adormecera.
O mesmo sentimento doloroso, religioso e pungente enchia-lhe o
coração.
Ajoelhou-se junto ao leito de Cosette.
Era dia claro e Cosette ainda dormia. Um pálido raio do sol de
dezembro penetrava pela janela do sótão, arrastando pelo teto longos
filamentos de sombra e de luz. De repente, uma carroça de pedreira,
pesadamente carregada, que passava pelo calçamento do bulevar, sacudiu
o casebre como um estrondo de tempestade, fazendo-o estremecer de cima
a baixo.
— Sim, senhora! — gritou Cosette acordando sobressaltada. — Já vou,
já vou!
E jogou-se embaixo da cama, as pálpebras ainda meio fechadas pelo
peso do sono, estendendo o braço em direção ao canto da parede.
— Ai! Meu Deus! Minha vassoura! — disse ela.
Abriu completamente os olhos e viu o rosto risonho de Jean Valjean.
— Ah! É verdade! — disse. — Bom dia, senhor.
As crianças aceitam logo, e com familiaridade, a alegria e a felicidade,
sendo elas mesmas naturalmente alegria e felicidade.
Mal Cosette avistou a boneca aos pés da cama, a pegou, e ao mesmo
tempo que brincava fazia mil perguntas a Jean Valjean: Onde ela estava?
Se Paris era grande? Se estava bem longe de dona Thénardier? Se ela não
voltaria? etc., etc. De repente, exclamou: “Como aqui é bonito!”
Era um pardieiro medonho, mas ela se sentia livre.
— Preciso varrer? — tornou ela enfim.
— Brinque — disse Jean Valjean.
Assim decorreu o dia. Cosette, sem se preocupar em compreender
nada, estava inexprimivelmente feliz entre aquela boneca e aquele homem.

III. DUAS INFELICIDADES JUNTAS FAZEM UMA


FELICIDADE
Quando o dia seguinte clareava, Jean Valjean ainda estava junto à cama
de Cosette. Esperava, imóvel, vê-la despertar.
Algo de novo entrava em sua alma.
Ele nunca amara coisa alguma. Havia vinte e cinco anos era só no
mundo. Nunca fora pai, amante, marido, amigo. Nas galés era mau,
sombrio, casto, ignorante e arisco.
O coração daquele velho forçado estava cheio de virgindades. Sua irmã
e seus sobrinhos lhe haviam deixado apenas uma vaga e longínqua
recordação, que acabara por desvanecer-se quase completamente. Fizera
todos os esforços para reencontrá-los, mas, não conseguindo, os esqueceu.
A natureza humana é assim. As outras ternas emoções de sua mocidade, se
é que as tivera, haviam caído em um abismo.
Quando viu Cosette, quando a tomou, levou e libertou, sentiu suas
entranhas revolvendo-se. Tudo o que havia de paixão e afeto dentro dele
despertou e se precipitou sobre aquela criança. Aproximava-se da cama
em que ela dormia e tremia de alegria; experimentava espasmos dolorosos
como uma mãe, mas não sabia o que era; pois é uma coisa bem obscura e
bem terna esse grande e estranho movimento de um coração que se põe a
amar.
Pobre velho coração tão novo!
Como ele tinha cinquenta e cinco anos e Cosette oito, todo o amor que
poderia ter em toda a sua vida fundiu-se em uma espécie de clarão
inefável.
Era a segunda aparição branca que ele encontrava. O bispo fizera
levantar em seu horizonte a aurora da virtude; Cosette fazia levantar-se a
aurora do amor.
Os primeiros dias se passaram nesse deslumbramento.
De seu lado, Cosette também tornava-se outra, sem perceber, pobre
criaturinha! Quando sua mãe a deixou era tão pequena que já não se
lembrava dela. Como todas as crianças, semelhantes aos brotos da vinha
que se agarram a tudo, Cosette tentara amar, mas não conseguira. Todos a
haviam repelido, os Thénardier, seus filhos, outras crianças. Ela gostava
do cão, mas ele morreu. Depois disso, nada, nem ninguém se importou
com ela. Coisa triste de dizer, mas já apontada aqui, aos oito anos ela tinha
o coração frio. Não era sua culpa, não lhe faltava a faculdade de amar, mas
infelizmente a possibilidade. Assim, desde o primeiro dia, tudo o que nela
sentia e sonhava começou a amar aquele homem. Ela sentia o que nunca
havia sentido, uma sensação de desabrochar.
Aquele homem não lhe parecia mais ser velho ou ser pobre. Achava-o
belo, do mesmo modo que achava o casebre bonito.
Esses são os efeitos da aurora, da infância, da juventude, da alegria. O
novo da terra e da vida tem sua responsabilidade nas coisas. Nada é mais
encantador do que o colorido reflexo da felicidade batendo em um sótão.
Todos temos em nosso passado uma mansarda azul.
A natureza, e cinquenta anos de intervalo, haviam colocado uma
separação profunda entre Jean Valjean e Cosette, separação que o destino
preencheu. O destino uniu repentinamente e ligou com seu irresistível
poder aquelas duas existências sem raízes, diferentes pela idade,
semelhantes pelo luto. Efetivamente, uma completava a outra. O instinto
de Cosette procurava um pai assim como o instinto de Jean Valjean
procurava um filho. Encontrarem-se foi encontrar isso. No momento
misterioso em que suas mãos se tocaram, uniram-se. Quando essas duas
almas se avistaram, reconheceram-se como necessárias uma à outra e
abraçaram-se estreitamente.
Tomando as palavras em seu sentido mais compreensível e absoluto,
era possível dizer que, separados de todos pelas paredes de um túmulo,
Jean Valjean era o Viúvo e Cosette era a Órfã. Essa situação fez com que
Jean Valjean se tornasse, de um modo celeste, o pai de Cosette.
E, na verdade, a misteriosa impressão produzida em Cosette, no meio
do bosque de Chelles, pela mão de Jean Valjean segurando sua mão na
escuridão, não era uma ilusão, mas uma realidade. A entrada daquele
homem no destino daquela criança tinha sido a chegada de Deus.
Por fim, Jean Valjean escolhera bem seu refúgio. Estava ali em uma
segurança que parecia completa.
O quarto com reservado que ocupava com Cosette era o que tinha a
janela para o bulevar. Sendo a única janela da casa, não precisava recear
nenhum olhar dos vizinhos, nem pela lateral, nem pela frente.
O térreo do número 50-52, espécie de alpendre deteriorado, servia de
cocheira aos sitiantes, e não tinha comunicação com o primeiro andar.
Ficava separado deste pelo forro, sem alçapão e sem escada, sendo como o
diafragma do edifício. O primeiro andar, como já foi dito, tinha vários
quartos e alguns sótãos, e só um deles era ocupado por uma velha senhora
que fazia a arrumação para Jean Valjean. Todo o resto era inabitado.
Foi essa senhora, ornada com o título de principal locatária, e na
realidade encarregada das funções de porteira, quem lhe havia alugado
esse alojamento no dia de Natal. Ele apresentou-se a ela como alguém que
vivia de rendas, arruinado pelos títulos da Espanha, que pretendia vir
morar ali com a filha pequena. Jean Valjean pagara seis meses adiantado, e
encarregara a velha de mobiliar o quarto e o reservado do modo que se viu.
Foi ela também quem acendeu o fogareiro e preparou tudo na noite em que
chegaram.
Sucederam-se as semanas. Essas duas criaturas levavam uma
existência feliz naquele miserável casebre.
Desde cedo, Cosette ria, brincava, cantava. As crianças têm o seu canto
da manhã, como os pássaros.
Às vezes, Jean Valjean pegava sua mãozinha maltratada e engelhada e
a beijava. A pobre criança, acostumada a ser espancada, não sabia o que
isso queria dizer, e saía toda envergonhada.
Em alguns momentos, ficava séria e observava seu vestido preto.
Cosette já não andava esfarrapada, andava de luto. Saía da miséria e
entrava na vida.
Jean Valjean começou a ensiná-la a ler. Às vezes, enquanto pedia que
soletrasse, lembrava-se de ter sido com a ideia de praticar o mal que
aprendera a ler nas galés. Essa ideia voltava para fazê-lo ensinar uma
criança a ler, e então o velho forçado sorria com o sorriso pensativo dos
anjos.
Sentia nisso uma premeditação superior, uma vontade de alguém não
humano, e perdia-se em devaneios. Os bons pensamentos têm seus
abismos, assim como os maus.
Ensinar Cosette a ler, deixá-la brincar, era nisso que praticamente se
resumia a vida de Jean Valjean. Além disso, ele lhe falava da mãe e a fazia
rezar.
Ela o chamava de pai, e não o conhecia por outro nome.
Ele passava horas a vê-la vestir e despir sua boneca, a ouvi-la
murmurar. A vida lhe parecia, desde então, cheia de interesse, os homens
lhe pareciam justos e bons, ele já não reprovava nada a ninguém em seu
pensamento, não via nenhuma razão para não ficar bem velho, agora que
aquela criança o amava. Imaginava todo o seu futuro iluminado por
Cosette, como se fosse uma luz encantadora. Nem os melhores homens são
isentos de pensamentos egoístas. Jean Valjean pensava, às vezes, com uma
espécie de alegria, que talvez ela viesse a ser feia.
É apenas uma opinião pessoal, mas, para dizer tudo que pensamos, no
ponto em que Jean Valjean se encontrava quando começou a gostar de
Cosette, nada prova que ele não precisasse desta revivificação para
perseverar no bem. Ele acabava de ver sob novos aspectos a maldade dos
homens e a miséria da sociedade, aspectos incompletos, que mostravam
fatalmente apenas um lado da verdade, o destino da mulher resumido em
Fantine, a autoridade pública personificada em Javert; voltara às galés,
dessa vez por haver praticado o bem; novas amarguras o atormentavam; o
desgosto e o cansaço tornavam a assaltá-lo; até mesmo a recordação do
bispo atravessava, talvez, um momento de eclipse, para depois reaparecer
mais luminosa e triunfante; mas, enfim, essa recordação sagrada ia
enfraquecendo. Quem sabe Jean Valjean não estivesse em via de perder a
coragem e de tornar a cair? Ao amar, voltou a ser forte. Ah! Porém não
estava menos vacilante do que Cosette. Ele a protegeu e ela o fortaleceu.
Graças a ele, ela pôde caminhar pela vida; graças a ela, ele pôde continuar
no caminho da virtude. Ele foi o sustentáculo daquela criança e aquela
criança foi seu ponto de apoio. Ó insondável e divino mistério dos
equilíbrios do destino!
IV. AS OBSERVAÇÕES DA PRINCIPAL LOCATÁRIA
Jean Valjean tinha a prudência de nunca sair de dia. Todas as tardes, ao
crepúsculo, passeava uma ou duas horas, às vezes só, muitas vezes com
Cosette, procurando as calçadas das alamedas mais solitárias, e entrando
nas igrejas ao cair da noite. Ele gostava de ir a Saint-Médard, que é a
igreja mais próxima. Quando não levava Cosette, ela ficava com a velha
senhora, mas o maior prazer da criança era sair com ele. Ela preferia estar
uma hora com ele aos deliciosos diálogos com Catherine. Ele caminhava
segurando-a pela mão, dizendo-lhe coisas agradáveis.
Cosette mostrou ser muito alegre.
A velha cuidava da limpeza, cozinhava e fazia compras.
Viviam sobriamente, tendo sempre o fogão aceso, mas como pessoas
pouco abastadas. Jean Valjean em nada alterara a mobília do primeiro dia;
só mandara substituir por uma porta a vidraça do reservado em que
Cosette dormia.
Continuava usando seu casaco amarelo, suas calças pretas e seu velho
chapéu. Na rua, passava por um pobre, acontecendo às vezes de algumas
boas senhoras lhe darem um soldo. Jean Valjean recebia o soldo e saudava
profundamente. Acontecia também outras vezes de encontrar algum
miserável pedindo caridade; então olhava para trás para verificar se
alguém o via, aproximava-se furtivamente do infeliz e punha-lhe na mão
uma moeda, muitas vezes de prata, e afastava-se rapidamente. Isso tinha
seus inconvenientes. Começava a ser conhecido no bairro por ser o pobre
que dá esmolas.
A velha, principal locatária, criatura rabugenta e invejosamente
curiosa das vidas alheias, examinava muito Jean Valjean, sem que ele
percebesse. Era um pouco surda, o que a tornava tagarela. De seu passado,
restavam-lhe dois dentes, um embaixo, outro em cima, e ela sempre batia
um contra o outro. Fizera várias perguntas a Cosette, que, não sabendo
nada, nada pôde lhe dizer, a não ser que vinha de Montfermeil. Uma
manhã, essa bisbilhoteira viu Jean Valjean entrando em um dos
compartimentos desabitados do casebre, com um ar que lhe pareceu
singular. Seguiu-o com passos de gata matreira, e pôde observá-lo, sem ser
vista, pela fenda da porta. Jean Valjean, sem dúvida, para maior precaução,
dava as costas para essa porta. A velha o viu remexer no bolso e tirar um
estojo, uma tesoura e linhas; depois passou a descosturar uma das abas do
casaco, tirando da abertura um bocado de papel amarelado, que desdobrou.
Ela reconheceu espantada que era uma nota de mil francos, a segunda ou
terceira que via desde que estava no mundo. Fugiu dali muito assustada.
Um momento depois, Jean Valjean a abordou pedindo-lhe que lhe fosse
trocar a nota de mil francos, acrescentando que era sua renda do semestre,
que tinha recebido na véspera.
— Mas onde? — pensou a velha. — Se ele só saiu às seis da tarde, e a
essa hora a caixa do governo certamente não está aberta.
A velha foi trocar a nota, fazendo suas conjecturas. Essa nota de mil
francos, comentada e multiplicada, produziu muitas e animadas conversas
entre as comadres da rua Vignes-Saint-Marcel.
Em um dos dias seguintes, ocorreu que Jean Valjean, usando camisa
com mangas, serrava madeiras no corredor. A velha estava no quarto e
fazia a arrumação. Estava sozinha; Cosette se entretinha admirando a
madeira que ele serrava. Ela viu o casaco pendurado em um prego, e o
revistou. A costura fora refeita. Apalpou com atenção e julgou sentir, na
barra e nas dobras, certa quantidade de papel. Mais notas de mil francos,
sem dúvida!
Além disso, ela percebeu que tinha todo tipo de coisa nos bolsos. Não
só as agulhas, a tesoura e as linhas que ela vira, mas uma grande carteira,
uma enorme navalha e, detalhe suspeito, várias perucas de cores variadas.
Cada bolso daquele casaco parecia estar preparado para acontecimentos
imprevistos.
Assim chegaram aos últimos dias do inverno os moradores do casebre.

V. UMA MOEDA DE CINCO FRANCOS QUE CAI NO


CHÃO FAZ BARULHO
Havia, perto de Saint-Médard, um pobre que vivia no bocal de um
poço abandonado, a quem Jean Valjean gostava de ajudar. Nunca passava
diante desse homem sem lhe dar alguma moeda. Às vezes conversava com
ele. Os que invejavam o mendigo, diziam que ele era da polícia. Era um
velho bedel de setenta e cinco anos, que vivia resmungando umas orações.
Uma noite em que Jean Valjean passava por lá sem Cosette, avistou o
mendigo no local de costume, à luz de um lampião que acabavam de
acender. O homem, como de costume, parecia rezar e estava curvado. Jean
Valjean foi até ele e colocou em sua mão a esmola habitual. O mendigo
elevou repentinamente o olhar, fixou bem Jean Valjean e baixou
rapidamente a cabeça. Esse movimento foi como um relâmpago, provocou
um estremecimento em Jean Valjean. Pareceu-lhe acabar de entrever, na
claridade do lampião, não o plácido e devotado rosto do velho, mas uma
figura assustadora e conhecida. Teve a impressão que experimentaria
quem se achasse, de repente, frente a frente com um tigre na escuridão.
Recuou aterrorizado e petrificado, sem ousar respirar, nem falar, nem
ficar, nem fugir, contemplando o mendigo que abaixara a cabeça coberta
com um farrapo e que parecia não saber que ele ainda estava ali. Nesse
momento estranho, um instinto, talvez o misterioso instinto de
conservação, fez com que Jean Valjean não pronunciasse uma só palavra.
O mendigo tinha o mesmo jeito, os mesmos andrajos, a mesma aparência
de todos os dias.
— Ora! — disse Jean Valjean. — Estou louco! Estou sonhando!
Impossível! — E voltou para casa profundamente perturbado.
Nem a si mesmo ousava confessar que o rosto que julgava ter visto era
o rosto de Javert.
À noite, pensando nisso, arrependeu-se de não ter feito perguntas ao
homem, para obrigá-lo a levantar a cabeça outra vez.
Na noite seguinte, ao escurecer, foi novamente até lá. O mendigo
estava em seu lugar.
— Boa tarde, senhor — disse-lhe resolutamente Jean Valjean, dando–
lhe um soldo.
O mendigo levantou a cabeça e respondeu com voz lastimosa:
— Obrigado, meu bom senhor.
Era efetivamente o velho bedel.
Jean Valjean sentiu-se plenamente tranquilizado; pôs-se a rir. “Como,
diabos, fui ver Javert ali?”, pensou; “será que vou ter alucinações, agora?”
Mas não pensou mais nisso.
Alguns dias depois, por volta de oito horas da noite, ele estava em seu
quarto fazendo Cosette soletrar em voz alta; ouviu abrir, e depois fechar, a
porta do casebre. Aquilo lhe pareceu estranho.
A velha, que era a única pessoa que habitava a casa, além dele, sempre
deitava cedo, para não gastar a vela. Jean Valjean fez sinal a Cosette para
que se calasse, e ouviu que subiam a escada. Podia muito bem ser a velha,
que, não estando bem, tivesse ido atrás do farmacêutico. Jean Valjean
apurou os ouviu. Os passos eram pesados e soavam como os de um
homem, mas a velha andava com sapatos grosseiros, e não há nada mais
parecido com os passos de um homem do que os passos de uma velha.
Todavia Jean Valjean apagou a vela.
Mandou Cosette deitar, dizendo-lhe em voz baixa:
— Deite bem devagarinho.
Enquanto a beijava na testa, os passos pararam. Jean Valjean ficou em
silêncio, imóvel, com as costas voltadas para a porta, sentado na cadeira
sem se mexer, retendo a respiração no meio da escuridão. Ao final de um
bom tempo, como não ouviu mais nada, voltou-se sem fazer barulho e, ao
olhar para a porta do quarto, viu uma luz pelo buraco da fechadura. Essa
luz desenhava uma espécie de estrela sinistra no escuro da porta e da
parede. Evidentemente, ali havia alguém com uma vela na mão, escutando.
Decorridos alguns minutos, a luz desapareceu. Ele não ouvia mais
nenhum barulho de passos, o que parecia indicar que quem tinha vindo
escutar à porta havia tirado os sapatos.
Jean Valjean jogou-se na cama completamente vestido, mas não pôde
pregar o olho a noite inteira.
Ao romper do dia, adormecido pelo cansaço, despertou com o ranger
de uma porta que se abria em algum aposento no fundo do corredor, e
ouviu os mesmos passos de homem que haviam subido a escada na
véspera. Os passos aproximavam-se. Deitou-se embaixo da cama e olhou
com atenção pelo buraco da fechadura, que era bastante grande, esperando
ver, ao passar, a pessoa que entrara de noite no casebre e fora escutar à sua
porta. De fato, era um homem, que desta vez passava sem parar diante do
quarto de Jean Valjean. O corredor ainda estava demasiado escuro para que
se pudesse distinguir aquele rosto; porém, ao chegar ao corredor, um raio
de luz que vinha de fora salientou aquele perfil e Jean Valjean o viu
completamente pelas costas.
O homem tinha estatura elevada, vestia um casaco comprido e trazia
uma bengala debaixo do braço. Era a silhueta temível de Javert.
Jean Valjean poderia tentar vê-lo pela janela que dava para o bulevar,
mas seria preciso abri-la, e ele não se atreveu.
Era evidente que aquele homem tinha entrado com uma chave, e como
se fosse sua casa. Quem lhe teria dado a chave? O que isso queria dizer?
Às sete horas da manhã, quando a velha veio arrumar o quarto, Jean
Valjean lançou-lhe um olhar penetrante, mas não a interrogou. A boa
mulher agia como de costume.
Enquanto varria, disse a ele:
— O senhor talvez tenha ouvido, essa noite, alguém entrar.
Naquela época e naquele bulevar, oito horas da noite era noite fechada.
— É verdade — respondeu ele com o acento mais natural. — Quem
era?
— Um novo inquilino — disse a velha — que está na casa.
— E como se chama?
— Não sei muito bem. Dumont ou Daumont, uma coisa assim.
— E o que ele faz, esse senhor Dumont?
A velha encarou-o com seu olhinhos de fuinha e respondeu:
— Vive de rendas, como o senhor.
A velha talvez não tivesse nenhuma intenção dando essa resposta;
porém Jean Valjean julgou entrever-lhe uma.
Assim que ela saiu, Jean Valjean fez um pacote de uma centena de
francos que guardava em um armário, colocando-o no bolso. Por mais
precauções que ele tomasse nessa operação para que não o ouvissem
mexer em dinheiro, escapou-lhe das mãos uma moeda de cem soldos que
rolou ruidosamente pelo assoalho.
Ao escurecer, desceu e olhou com atenção para todos os lados do
bulevar. Não viu ninguém. O bulevar parecia absolutamente deserto.
Verdade que era possível alguém esconder-se atrás das árvores.
Tornou a subir.
— Venha — ele disse a Cosette.
Pegou em sua mão e ambos saíram.
LIVRO V
PARA CAÇA NEGRA, MATILHA MUDA

I. OS ZIGUEZAGUES DA ESTRATÉGIA
NESTE PONTO, para as páginas que começarão a ser lidas, e por outras
ainda que serão lidas mais tarde, uma observação se faz necessária.
Há vários anos que o autor deste livro, obrigado a contra-gosto a falar
de si mesmo, vive fora de Paris. Depois que saiu de lá, Paris transformou-
se; surgiu uma nova cidade, que de certo modo lhe é desconhecida. Nem é
preciso dizer que ama Paris; Paris é a cidade natal de seu espírito.1 Após
demolições e reconstruções, a Paris de sua juventude, a Paris que
religiosamente vem trazendo em sua memória, a esta altura é uma Paris de
antigamente. Que lhe permitam falar dessa Paris como se ela ainda
existisse. É possível que por onde o autor vai conduzir os leitores,
dizendo-lhes: “Em tal rua há tal casa”, hoje já não exista nem casa nem
rua. Os leitores irão verificar, se quiserem dar-se a esse trabalho. Quanto a
ele, ignora a Paris nova e escreve com a Paris antiga diante dos olhos,
numa ilusão para ele preciosa. É, para ele, uma doce lembrança imaginar
que ainda resta alguma coisa do que via quando estava em sua terra, e que
nem tudo teria desaparecido. Enquanto podemos ir e vir em nossa terra
natal, imaginamos que as ruas nos são indiferentes; que as janelas, os
telhados e as portas não nos dizem nada; que as paredes nos são estranhas;
que as árvores são como todas as outras, que as casas onde não entramos
são inúteis, que as calçadas por onde caminhamos são simples pedras.
Mais tarde, quando estamos longe, percebemos que aquelas ruas nos são
caras; que aqueles telhados, aquelas janelas e aquelas portas nos fazem
falta; que aquelas muralhas nos são necessárias; que aquelas árvores nos
são queridas; que naquelas casas onde não entrávamos, todos os dias
entrávamos; e que deixamos entranhas, sangue e coração naquelas
calçadas. Todos esses lugares que já não vemos, que talvez não tornemos a
ver, e dos quais gravamos a imagem, enchem-se de um doloroso encanto,
nos voltam à lembrança com a melancolia de uma aparição, nos fazem
visível a terra santa, e são, por assim dizer, a própria forma da França;
gostamos deles e os evocamos tais como são, tais como eram, e nos
obstinamos, não queremos que nada se altere, porque gostamos da figura
da Pátria como do rosto de uma mãe.
Que nos seja, então, permitido falar do passado no presente. Dito isso,
pedimos ao leitor que não esqueça, e continuamos.
Jean Valjean deixou o bulevar logo em seguida, entrando pelas ruas,
fazendo o maior número de linhas quebradas que podia, às vezes voltando
atrás para ter certeza de que não o seguiam.
Essa manobra é própria do cervo encurralado. Nos terrenos em que o
rastro pode ficar impresso, essa manobra tem, entre outras, a vantagem de
enganar os caçadores e os cães, deixando pegadas em sentidos contrários.
É o que se chama, na arte de caçar, de falsa retirada.
Era uma noite de lua cheia. Jean Valjean não se aborreceu com isso. A
lua, ainda muito próxima do horizonte, projetava nas ruas grandes planos
de sombra e de luz. Ele podia deslizar ao longo das casas e das paredes
pelo lado escuro, e observar a parte clara. Talvez não se desse conta de que
o lado escuro fugia à sua observação; assim, em todas as ruelas desertas
próximas à rua de Poliveau, pensou estar certo de que ninguém ia atrás
dele.
Cosette caminhava sem fazer perguntas. Os sofrimentos dos seis
primeiros anos de sua vida haviam introduzido algo de passivo em sua
natureza. Além disso, e essa é uma observação à qual teremos mais de
uma oportunidade de voltar, ela estava acostumada, sem bem ter
consciência disso, com as singularidades do homem e as esquisitices do
destino. E também sentia-se em segurança, estando com ele.
Jean Valjean não sabia mais do que Cosette para onde ia. Confiava-se a
Deus, como ela se confiava a ele. Parecia-lhe que ele também segurava
alguém maior do que ele pela mão; acreditava sentir um ser que o
conduzia, invisível. De resto, não tinha nenhum propósito deliberado,
nenhum plano, nenhum projeto. Nem mesmo tinha a certeza de que aquele
homem fosse Javert, e, depois, podia ser Javert sem que Javert soubesse
que ele era Jean Valjean. Não andava disfarçado? Não o supunham morto?
Contudo, havia alguns dias, ocorriam coisas estranhas. Não precisava de
mais nada. Estava determinado a não retornar à casa Gorbeau. Como um
animal expulso da toca, procurava um buraco para se esconder, até achar
outra onde se alojar.
Jean Valjean descreveu grande número de variados labirintos pelo
bairro Mouffetard já adormecido, como se ainda houvesse a disciplina da
Idade Média e o jugo do toque de recolher; combinou de diversos modos,
em sábias estratégias, a rua Censier com a rua Copeau, a rua Battoir-Saint-
Victor com a rua Puits-l’Ermite. Não falta por ali quem alugue quartos,
mas ele nem entrava nesses lugares, não achando nada que lhe conviesse.
Uma coisa da qual não duvidava era que, se por acaso tivessem procurado
seu rastro, não o teriam perdido.
Ao soarem onze horas em Saint-Étienne du Mont, ele atravessava a rua
de Pontoise, em frente à delegacia de polícia, que fica no número 14.
Alguns instantes depois, o instinto do qual falamos há pouco fez com que
se voltasse. Nesse momento, viu distintamente, graças ao lampião da
delegacia que os punha a descoberto, três homens, que o seguiam de muito
perto, passarem sucessivamente sob essa claridade, do lado escuro da rua.
Um dos três homens entrou no corredor da delegacia. O que caminhava na
frente pareceu-lhe realmente suspeito.
— Venha, querida — disse ele a Cosette, e apressou-se em sair da rua
de Pontoise.
Fez um circuito entrando pela passagem des Patriarches, que estava
fechada pelo adiantado da hora, percorreu com ligeireza a rua de l’Épée-
de-Bois e a rua de l’Arbalète e embrenhou-se pela rua des Postes.
Aí há um cruzamento, onde hoje fica o colégio Rollin, e ao qual vem
se entroncar a rua Neuve-Sainte-Geneviève.
(Nem é preciso dizer que a rua Neuve-Sainte-Geneviève é uma rua
muito antiga, e que pela rua des Postes [Correios]nem de dez em dez anos
passa uma mala-posta. A rua des Postes, no século XIII, era habitada por
oleiros [potiers] e o seu verdadeiro nome é rua des Pots [jarros.]
A lua lançava uma viva claridade sobre esse cruzamento. Jean Valjean
escondeu-se sob uma porta, calculando que, se os homens ainda o
seguissem, não poderia perder a chance de vê-los com nitidez ao passarem
por aquela claridade.
De fato, não haviam decorrido três minutos quando os homens
apareceram. Agora, porém, eram quatro, todos de estatura elevada, usando
longos sobretudos escuros, chapéus redondos, e levando grandes cajados
nas mãos. Não eram menos inquietantes por sua marcha sinistra nas trevas
do que por sua grande estatura e enormes punhos. Podia-se dizer que eram
quatro espectros disfarçados de cidadãos.
Pararam no meio da encruzilhada e formaram um grupo, como se se
consultassem. Pareciam indecisos. O que demonstrava guiá-los voltou–se
e apontou firmemente com a mão direita a direção que Jean Valjean
tomara; outro parecia indicar com certa obstinação a direção contrária. No
instante em que o primeiro se virou, a lua clareou em cheio seu rosto, e
Jean Valjean reconheceu perfeitamente Javert.

II. FELIZMENTE A PONTE DE AUSTERLITZ


COMPORTA VEÍCULOS
A incerteza terminava para Jean Valjean; felizmente, durava ainda para
aqueles homens. Ele se aproveitou da hesitação deles; tempo perdido para
os homens, ganho para ele. Saiu da porta onde estivera escondido e seguiu
pela rua des Postes em direção ao Jardim Botânico. Cosette começava a
cansar-se; ele a levou no colo. Não havia nenhum passante, nem haviam
acendido os lampiões por causa do clarão da lua.
Apertou o passo.
Em pouco tempo, chegou à olaria Goblet, em cuja fachada o luar
tornava perfeitamente legível a antiga inscrição:

De Goblet fils c’est ici la fabrique;


Venez choisir des cruches et des brocs,
Des pots à fleurs, des tuyaux, de la brique.
À tout venant le Coeur vend des Carreaux.2
Aqui é a fábrica de Goblet filho;
Venham escolher bilhas e cântaros,
Vasos de flores, tubos, tijolos.

Passou pela rua de la Clef, depois pela fonte Saint-Victor, caminhou ao


longo do Jardim Botânico pelas ruas baixas e chegou ao cais. Só então
virou-se. O cais estava deserto. As ruas estavam desertas. Ninguém atrás
dele. Respirou.
Chegou à ponte de Austerlitz, onde naquela época ainda existia
pedágio.
Ele se apresentou no guichê e deu um soldo.
— São dois soldos — disse o inválido da ponte. — O senhor está
carregando uma criança que pode andar; pague por dois.
Pagou, contrariado por sua passagem poder dar ensejo a uma
observação. Toda fuga deve ser um rápido deslizar.
Uma grande charrete atravessava o Sena ao mesmo tempo que ele, e,
como ele, ia para a margem direita, o que foi muito útil, pois pôde
atravessar a ponte encoberto por ela.
Quase no meio da ponte, Cosette, que tinha os pés dormentes, quis
andar; ele a colocou no chão e tornou a segurá-la pela mão.
Transposta a ponte, avistou à direita uns depósitos e encaminhou-se
para lá. Para chegar, era preciso aventurar-se por um espaço bastante
largo, descoberto e iluminado. Não hesitou. Os que o perseguiam tinham
certamente perdido seu rastro, e Jean Valjean julgava-se livre de perigo.
Procurado, sim; seguido, não.
Uma ruazinha, a rua du Chemin-Vert-Saint-Antoine, abria-se entre dois
depósitos fechados por muros. A rua era estreita, escura e como que feita
intencionalmente para ele. Antes de entrar ali, olhou para trás.
Do lugar onde estava via a ponte de Austerlitz em toda a sua extensão.
Quatro sombras acabavam de entrar na ponte. Essa sombras davam as
costas ao Jardim Botânico e dirigiam-se para a margem direita.
Essas quatro sombras eram os quatro homens.
Jean Valjean sentiu o estremecimento do animal que é novamente
apanhado.
Restava-lhe uma esperança: que talvez aqueles homens não tivessem
ainda entrado na ponte, nem o tivessem avistado enquanto atravessava, de
mãos dadas com Cosette, a grande praça iluminada.
Nesse caso, entrando pela ruazinha que tinha à sua frente, se
conseguisse chegar aos depósitos, aos charcos, aos campos, às hortas, aos
terrenos sem casas, poderia escapar.
Pareceu-lhe digna de confiança a pequena rua silenciosa. Entrou ali.

III. VER O MAPA DE PARIS DE 1727


Ao final de uns trezentos passos, chegou a um ponto em que a rua se
bifurcava, dividindo-se em duas, uma seguindo à esquerda, outra à direita.
Jean Valjean tinha diante de si como que as duas hastes de um Y. Qual
delas escolher?
Sem hesitar, tomou a direita.
Por quê?
Porque a ramificação esquerda conduzia para o arrabalde, isto é, para
os lugares habitados, e a direita para o campo, isto é, para os lugares
desertos.
No entanto, já não caminhavam com tanta rapidez. O andar de Cosette
tornava lento o andar de Jean Valjean.
Ele a carregou no colo outra vez. Cosette apoiava a cabeça no ombro
dele, e não dizia uma palavra.
De tempos em tempos, ele virava-se e olhava. Tinha o cuidado de se
conservar do lado escuro da rua. A rua era uma reta atrás dele. Nas duas ou
três primeiras vezes em que ele se virou, não viu nada, o silêncio era
profundo, e ele continuou seu caminho um tanto tranquilizado. De repente,
em certo instante, ao virar-se pareceu-lhe ver, na parte da rua por onde
acabara de passar, longe e no escuro, algo que se movia.
Precipitou-se adiante, mais do que caminhou, esperando encontrar
alguma travessa por onde se evadir, quebrando ainda outra vez sua pista.
Chegou a um muro.
Esse muro, no entanto, não significava uma impossibilidade de ir mais
longe; era uma parede que ladeava uma ruazinha transversal àquela em
que terminava a rua por onde Jean Valjean viera.
Aqui, ainda uma vez, era preciso que ele decidisse: tomar a direita ou a
esquerda.
Olhou para a direita. A travessa se prolongava por entre edifícios, que
eram galpões ou celeiros, terminando em um beco sem saída; via-se
distintamente o fundo do beco, um grande muro branco.
Olhou para a esquerda. A travessa desse lado era aberta e, uns duzentos
passos depois, dava em uma rua da qual era afluente. Era por esse lado que
estava a salvação.
No momento em que Jean Valjean pensava em virar à esquerda para
tentar chegar à rua que entrevia na extremidade da travessa, avistou, na
esquina desta e da rua para onde ia dirigir-se, uma espécie de estátua
negra, imóvel.
Era alguém, um homem, que evidentemente acabava de se colocar ali,
e que, barrando a passagem, esperava.
Jean Valjean recuou.
O ponto de Paris em que Jean Valjean se encontrava, situado entre o
arrabalde de Saint-Antoine e a Rapée, é um dos que foram transformados
completamente pelas recentes obras, tornando-se feio, segundo uns,
transfigurando-se, segundo outros.
As hortas, os depósitos e as velhas construções desapareceram. Hoje,
há grandes ruas novas, arenas, circos e hipódromos, a estação ferroviária, e
uma prisão, Mazas; o progresso, como se vê, com seu corretivo.
Há meio século, na linguagem popular, toda feita de tradições que
teima em chamar o Instituto de Quatre-Nations e a Ópera Cômica de
Feydeau, o local exato a que Jean Valjean chegara chamava-se Petit–
Picpus. A porta Saint-Jacques, a porta Paris, a entrada des Sargents,
Porcherons, Galiote, Célestins, Capucins, Mail, Bourbe, Arbre-de–
Cracovie, Petite-Pologne, Petit-Picpus são os nomes da velha Paris
sobrepairando a nova. A memória do povo flutua sobre esses fragmentos
do passado.
Petit-Picpus, que mal existiu, que nunca passou do esboço de um
bairro, tinha quase o aspecto monacal de uma cidade espanhola. Os
caminhos eram mal nivelados, as ruas mal calçadas. A não ser duas ou três
ruas das quais vamos falar, tudo ali era muralhas e solidão. Nem uma loja,
nem uma carruagem; aqui e ali, apenas uma vela acesa na janela, toda luz
apagada após as dez horas. Jardins, conventos, depósitos, charcos; raras
casas baixas, e grandes muros tão altos quanto as casas.
Assim era esse bairro no século passado. A Revolução já o havia
maltratado bastante. A edilidade republicana já o havia demolido,
esburacarado, perfurado. Depósitos de entulhos foram ali erguidos. Há
trinta anos esse bairro desaparecia sob os borrões das novas construções.
Hoje está completamente riscado do mapa.
Petit-Picpus, que não tem vestígio em nenhum mapa atual, está
claramente indicado no mapa de 1727, impresso em Paris na oficina de
Denis Thierry, rua Saint-Jacques, defronte à rua du Plâtre e, em Lyon, na
oficina de Jean Girin, rua Mercière, em Prudence. Petit-Picpus tinha o que
acima chamamos um Y de ruas, formado pela rua Chemin–Vert-Saint-
Antoine, que se dividia em duas ramificações, a esquerda tomando o nome
de viela Picpus, e a direita rua de Polonceau. As duas hastes do Y se
reuniam no topo como que por uma barra. Essa barra se chamava rua
Droit-Mur, onde vinha terminar a rua de Polonceau. Quanto à viela Picpus,
ia além, subindo em direção ao mercado Lenoir. Quem, vindo do Sena,
chegasse à extremidade da rua Polonceau, encontrava à sua esquerda a rua
Droit-Mur, formando um brusco ângulo reto, à sua frente, a muralha desta
rua, e à direita um prolongamento truncado da rua Droit-Mur, sem saída,
chamado beco Genrot.
Era onde estava Jean Valjean.
Como acabamos de dizer, avistando a silhueta escura de um sentinela
na esquina da rua Droit-Mur com a viela Picpus, recuou. Nenhuma dúvida.
Era espiado por aquele fantasma.
Que fazer?
Não dava mais tempo de retroceder. O que ele vira se mover no escuro,
por trás dele, um momento antes, sem dúvida era Javert e seu grupo.
Provavelmente Javert já estava no começo da rua em cuja extremidade se
achava Jean Valjean. Javert, segundo todas as aparências, conhecia aquele
pequeno labirinto, e tomara suas precauções mandando um de seus
homens guardar a saída.
Essas conjecturas, tão semelhantes a evidências, turbilhonaram
imediatamente, como um punhado de pó espalhado por uma súbita rajada
de vento, no doloroso cérebro de Jean Valjean. Examinou o beco Genrot;
ali, uma barreira. Examinou a viela Picpus; ali, uma sentinela. Ele via
aquela figura escura destacar-se sobre o pavimento claro, inundado pelo
luar. Avançar era cair nas mãos daquele homem; recuar era lançar-se nas
de Javert. Jean Valjean se sentia apanhado em uma rede, que lentamente se
fechava. Olhou para o céu com desespero.
IV. AS APALPADELAS DA EVASÃO
Para que se compreenda o que irá se seguir é preciso imaginar, de
forma exata, a rua Droit-Mur, e em especial a esquina que se deixava à
esquerda ao se sair da rua Polonceau para entrar naquela travessa. A
travessa Droit-Mur era quase toda orlada, à direita, até a viela Picpus, por
casas de pobre aparência; à esquerda, por um só edifício de linhas severas,
composto de várias habitações que iam gradualmente se elevando até a
altura de um andar ou dois, à medida que se aproximavam da viela Picpus,
de modo que esse edifício, muito elevado do lado dessa viela, era bastante
baixo do lado da rua Polonceau. Nesse ponto, a esquina da qual falamos,
era tão baixo que não passava de um muro. Esse muro não ia terminar em
esquadro com a rua, formava uma reentrância que as duas esquinas
escondiam de dois observadores que se colocassem, um na rua Polonceau,
outro na rua Droit-Mur.
A partir das esquinas formadas pela reentrância, o muro se prolongava
pela rua Polonceau até a casa de número 49, e pela rua Droit-Mur, onde o
trecho era bem mais curto, até o edifício escuro que acima descrevemos, e
do qual cortava a fachada, formando assim um novo ângulo. Essa fachada
tinha um aspecto triste; só se via uma janela, ou, melhor dizendo, duas
venezianas revestidas com uma folha de zinco, constantemente fechadas.
A descrição que fazemos aqui é de rigorosa exatidão e decerto
despertará uma lembrança bem precisa no espírito dos antigos moradores
daquele bairro.
A reentrância era completamente preenchida por uma coisa semelhante
a uma porta colossal e miserável. Era um enorme conjunto informe de
tábuas perpendiculares, as do alto mais largas que as de baixo, presas por
longas barras de ferro transversais. Ao lado, havia um portão de dimensões
comuns, cuja abertura não remontava evidentemente a mais de cinquenta
anos.
Uma tília mostrava seus ramos por cima da reentrância, e o muro
estava coberto de hera pelo lado da rua Polonceau.
No perigo iminente em que Jean Valjean se encontrava, aquela
construção sombria tinha qualquer coisa de desabitada e de solitária que o
tentava. Percorreu-a rapidamente com os olhos, dizendo a si mesmo que se
conseguisse entrar ali talvez estivesse a salvo. Primeiro teve uma ideia,
depois uma esperança.
Na parte média frontal do edifício, que dava para a rua Droit-Mur,
havia em todas as janelas dos diversos andares velhos funis de chumbo. As
variadas ramificações dos canos, que iam, de uma calha central, terminar
em todos esses funis, desenhavam uma espécie de árvore. Essas
ramificações, com seus cem cotovelos, imitavam velhas cepas de vinhas
retorcidas e despojadas de folhas, sobre a entrada das antigas fazendas.

Essa estranha cerca de ramos de lata e ferro foi a primeira coisa que
impressionou Jean Valjean. Colocou Cosette recostada em uma coluna de
pedra, recomendando-lhe silêncio, e correu para o local onde o cano vinha
tocar o chão. Talvez por ali houvesse meio de subir e entrar na casa. O
cano, porém, estava deteriorado, fora de uso e mal se mantinha chumbado.
Além disso, todas as janelas daquela silenciosa morada estavam gradeadas
com espessas barras de ferro, até mesmo as do sótão. E, também, a lua
clareava completamente a fachada, e o homem que observava Jean Valjean
da extremidade da rua poderia vê-lo subir. Finalmente, que fazer com
Cosette? Como içá-la ao alto de uma casa de três andares?
Renunciou a subir pelo cano e arrastou-se ao longo do muro para voltar
à rua Polonceau.
Ao chegar à reentrância onde deixara Cosette, notou que ali ninguém
poderia vê-lo. Escapava, como há pouco explicamos, a todos os olhares, de
onde quer que viessem. Além disso, estava no escuro. Por fim, havia duas
portas; talvez fosse possível forçá-las. O muro, por cima do qual Jean
Valjean via a tília e a hera, decerto dava para um jardim onde ao menos
poderia se esconder, embora as árvores não tivessem folhas, e passar o
resto da noite. O tempo passava, era preciso ser rápido.

Apalpou o portão e logo percebeu que estava condenado tanto por fora
como por dentro.
Aproximou-se da outra grande porta com mais esperança. Estava
terrivelmente decrépita, e seu próprio tamanho a tornava menos sólida, as
tábuas estavam podres, e as tiras de ferro, as três que restavam, estavam
enferrujadas. Parecia possível atravessar aquela barreira carcomida.
Ao examiná-la melhor, viu que não era uma porta; não tinha
dobradiças, nem fechadura, nem fenda no meio. As tiras de ferro
atravessavam-na de lado a lado, sem nenhuma divisão. Pelas fendas das
tábuas, entreviu alguns tijolos e pedras grosseiramente cimentados, que os
passantes já podiam ver ali havia dez anos. Foi obrigado a admitir, com
consternação, que esse arremedo de porta era um simples tapume de
madeira revestindo exteriormente uma construção de pedra. Era fácil
arrancar uma tábua, mas então deparava-se com uma parede.

V. COISAS QUE SERIAM IMPOSSÍVEIS COM A


ILUMINAÇÃO A GÁS
Nesse momento, um ruído surdo e cadenciado começou a ser ouvido a
pouca distância. Jean Valjean arriscou olhar para a esquina. Sete ou oito
soldados acabavam de desembocar na rua Polonceau; ele via as baionetas
brilharem. Aquilo vinha em sua direção.
Os soldados, à frente dos quais ele distinguia a elevada silhueta de
Javert, avançavam lentamente e com precaução, parando frequentemente.
Era evidente que exploravam todos os ângulos dos muros e todos os vãos
das portas e corredores.
Era, e nisto não se podiam enganar suas conjecturas, alguma patrulha
que Javert encontrara e requisitara.
Os dois parceiros de Javert andavam junto a ela.
No passo em que vinham e com as paradas que faziam, iam levar mais
ou menos um quarto de hora para chegar ao local em que Jean Valjean se
encontrava. Foi um momento pavoroso. Alguns minutos o separavam
daquele medonho precipício que, pela terceira vez, se abria diante dele. E
a prisão, agora, já não era só a prisão, era Cosette que se perderia para
sempre; isto é, uma vida que se assemelhava ao interior de um túmulo.
Só havia uma coisa possível.
Jean Valjean tinha uma particularidade, podia-se dizer que carregava
duas sacolas; em uma, levava os pensamentos de um santo, na outra, os
temíveis traquejos de um forçado; recorria a uma ou à outra de acordo
com a ocasião.
Entre outros recursos, graças a suas numerosas evasões das galés de
Toulon, era, como se devem lembrar, mestre na incrível arte de subir, sem
escadas, sem ganchos, só com o auxílio da força muscular, apoiando-se
com a nuca, com os ombros, com os quadris e com os joelhos, ajudado
apenas pelas saliências na pedra, pelas arestas de um muro, até a altura de
um sexto andar, se necessário; arte que tornou tão medonho e célebre o
canto do pátio da Conciergerie de Paris,3 por onde escapou, há uns vinte
anos, o condenado Battemolle.
Jean Valjean mediu com os olhos o muro por cima do qual via a tília;
tinha aproximadamente cinco metros e meio de altura. O ângulo que ele
formava com a fachada do grande edifício estava preenchido, em sua parte
inferior, por um maciço de alvenaria em forma triangular, provavelmente
destinado a preservar esse conveniente canto das paradas dos grandes
estercorários chamados transeuntes. Esse preenchimento preventivo dos
cantos de muros é muito usado em Paris.
Esse maciço tinha cerca de um metro e meio de altura; de sua parte
mais alta até chegar ao muro não havia mais que um espaço de quatro
metros a transpor. No topo do muro havia uma pedra plana.
A dificuldade era Cosette. Ela não sabia escalar um muro. Abandoná-
la? Ele nem cogitava. Carregá-la era impossível. Todas as forças de um
homem lhe são necessárias para ser bem-sucedido nessas estranhas
ascensões. O menor peso deslocaria seu centro de gravidade e o levaria a
precipitar-se.
Precisaria de uma corda, mas Jean Valjean não a tinha; onde achar uma
corda à meia-noite, na rua Polonceau? Certamente, naquele instante, se
Jean Valjean tivesse um reino, o daria por uma corda.4
Todas as situações críticas têm seus lampejos, que ora nos cegam, ora
nos iluminam.
O olhar desesperado de Jean Valjean se deparou com um poste de
iluminação do beco Genrot.
Naquele tempo, as ruas de Paris ainda não tinham iluminação a gás. Ao
cair da noite, acendiam-se lampiões, colocados a certa distância um do
outro, que subiam e desciam por meio de uma corda que atravessava a rua
de lado a lado, ficando presa na ranhura de um dos postes. A carretilha em
que ela se enrolava era chumbada por baixo do lampião, em um
compartimento de ferro cuja chave era guardada pelo encarregado de
acendê-lo; a corda era ainda protegida por um tubo de metal.
Jean Valjean, com a energia de uma luta suprema, transpôs a rua de um
salto, entrou no beco, soltou a lingueta do compartimento de ferro com a
ponta de seu canivete, e daí a um instante estava outra vez ao lado de
Cosette. Já tinha uma corda. Andam rápido, quando precisam, esses
sombrios inventores de expedientes em luta com a fatalidade.
Já dissemos que naquela noite os lampiões não tinham sido acesos.
Assim, o lampião do beco Genrot achava-se naturalmente apagado, como
os demais; podia-se passar por ele sem se notar que não estava mais em
seu lugar.
No entanto, a hora, o lugar, o escuro, a preocupação de Jean Valjean,
seus gestos singulares, suas idas e vindas, tudo isso começava a inquietar
Cosette. Qualquer outra criança já teria gritado havia muito tempo. Ela
limitou-se a puxar Jean Valjean pelo casaco. Ouvia-se cada vez mais
distintamente o ruído da patrulha se aproximando.
— Pai — ela falou bem baixinho —, estou com medo! Quem está
vindo aí?
— Psiu! — fez o infeliz. — É dona Thénardier.
Cosette estremeceu e ele acrescentou:
— Fique quietinha. Deixe comigo. Se você gritar ou chorar, ela
encontra você. Ela está vindo para levar você de volta.
Então, sem se apressar, mas sem fazer movimentos desnecessários,
com uma precisão firme e breve, ainda mais admirável por ser um
momento em que a patrulha e Javert podiam aparecer a qualquer instante,
Jean Valjean soltou sua gravata, passou-a em volta do corpo de Cosette por
baixo dos braços, com todo o cuidado para que não ferisse a criança, atou a
gravata à ponta da corda com um nó que os homens do mar chamam de
nó-andorinha, segurou nos dentes a outra ponta, tirou os sapatos e as
meias, que atirou por cima do muro, subiu no maciço de alvenaria e
começou a elevar-se pelo canto do muro e pela fachada, com tanta solidez
e firmeza como se tivesse degraus onde apoiar os calcanhares e os
cotovelos. Não passou meio minuto e ele já estava de joelhos sobre o
muro.
Cosette o observava atônita, sem dizer uma palavra. A recomendação
de Jean Valjean e o nome Thénardier a petrificaram.
De repente, ela ouviu a voz de Jean Valjean, que lhe gritava bem baixo:
— Encoste no muro.
Ela obedeceu.
— Não fale nada e não tenha medo — tornou Jean Valjean.
Cosette sentiu-se então levantada do chão. Antes que se desse conta,
estava em cima do muro.
Jean Valjean a segurou, colocou-a em suas costas, tomou em sua mão
esquerda as mãozinhas dela, ficou de bruços e foi-se arrastando por cima
do muro até a superfície que ali se formava. Como ele imaginara, havia ali
um barracão, cujo telhado partia do alto do tapume de madeira e vinha até
bem perto do chão com uma suave inclinação, encostando na tília.
Feliz circunstância, pois o muro deste lado era muito mais alto do que
pelo lado da rua. Jean Valjean via o chão a grande profundidade.
Ele acabava de chegar ao plano inclinado do telhado, e ainda nem
havia largado a aresta do muro, quando um violento rumor anunciou a
chegada da patrulha; ouvia-se a voz assustadora de Javert:
— Revistem o beco. A rua Droit-Mur está vigiada, a viela Picpus
também. Garanto que ele está no beco!
Os soldados precipitaram-se para o beco Genrot.
Jean Valjean deixou-se escorregar pelo telhado, sempre segurando
Cosette, atingiu a tília, e saltou no chão. Fosse terror, fosse coragem,
Cosette nem respirava. Tinha as mãos um pouco esfoladas.

VI. PRINCÍPIO DE UM ENIGMA


Jean Valjean se encontrava em uma espécie de jardim muito vasto, de
aspecto estranho; um desses jardins melancólicos que parecem feitos para
serem vistos no inverno ou à noite. Tinha forma oblonga, com uma
alameda de grandes álamos no fundo, árvores bem altas nos cantos, e um
espaço sem sombra no meio, onde se distinguia uma grande árvore
isolada, e também algumas árvores frutíferas, torcidas e eriçadas como
grossos espinheiros, canteiros de legumes, um meloal cujas campânulas de
vidro brilhavam ao clarão da lua, e uma pia velha. Aqui e ali, viam-se
alguns bancos de pedra que pareciam escuros de musgo. Os caminhos,
muito retos, eram orlados por pequenos arbustos escuros. Metade do
jardim estava coberta de mato, e o resto, de uma camada verde de musgo.
Jean Valjean tinha a seu lado o barracão cujo telhado servira para que
descesse, um monte de lenha, e, por trás deles, encostada ao muro, uma
estátua de pedra, cujo rosto mutilado era apenas uma informe máscara que
vagamente aparecia na escuridão.
O barracão era uma espécie de ruína onde se distinguiam quartos
desmantelados, um dos quais, todo destruído, parecia servir de galpão.
A grande construção da rua Droit-Mur, que continuava pela viela
Picpus, erguia para esse jardim duas fachadas em esquadro, que eram
ainda mais tétricas que as de fora. Todas as janelas, em que se não entrevia
luz alguma, tinham grades. Nos andares superiores havia cestos como nas
prisões. Uma das fachadas projetava sobre a outra sua sombra, que recaía
no jardim como um imenso lençol negro.
Não se via outra casa. O fundo do jardim perdia-se na bruma e na
noite. No entanto, distinguiam-se confusamente muros que se
entrecortavam, como se além deles houvesse outros quintais, e os telhados
baixos da rua Polonceau.
Não era possível imaginar coisa mais erma e solitária do que aquele
jardim. Não havia ninguém, o que era normal em razão da hora, mas não
parecia que aquele lugar fosse feito para alguém andar por ele, mesmo em
plena luz do dia.
O primeiro cuidado de Jean Valjean foi encontrar seus sapatos e calçá-
los, depois entrar com Cosette no galpão. Quem se evade nunca se julga
suficientemente escondido. A menina, pensando sempre na senhora
Thénardier, partilhava com ele o instinto de se ocultar o mais possível.
Cosette tremia e encostava-se nele. Ouvia-se o rumor tumultuoso da
patrulha que vasculhava o beco e a rua, as coronhadas nas pedras, os
chamados de Javert aos vigias de sentinela e suas imprecações, misturadas
com palavras que não se distinguiam.
Ao final de um quarto de hora, pareceu que todo aquele burburinho
tempestuoso começava a afastar-se. Jean Valjean não respirava. Colocara
suavemente sua mão na boca de Cosette.
A solidão em que se encontrava era tão estranhamente calma, que todo
aquele assustador barulho, tão furioso e tão próximo, não lançava a menor
sombra de perturbação. Parecia que aqueles muros haviam sido levantados
com as pedras surdas de que falam as Escrituras.
De repente, em meio àquela calma profunda, um novo rumor irrompeu,
um rumor celeste, divino, inefável, tão encantador quanto o outro era
horrível. Era um hino saindo das trevas, um deslumbramento de preces e
harmonia na silenciosa e medonha escuridão da noite; vozes de mulheres,
mas vozes simultaneamente compostas do puro tom das virgens e do tom
ingênuo das crianças, dessas vozes que não são da terra, dessas parecidas
com as que os recém-nascidos ainda ouvem e os moribundos já ouvem.
Esse canto vinha do sombrio edifício que dominava o jardim. No momento
em que a algazarra dos demônios se afastava, podia-se dizer que um coro
de anjos se aproximava no escuro da noite.
Jean Valjean e Cosette caíram de joelhos.
Eles não sabiam o que era aquilo, não sabiam onde estavam, mas
sentiam, os dois, o homem e a criança, o penitente e a inocente, que
deviam colocar-se de joelhos.
Aquelas vozes tinham de estranho não impedir que o edifício parecesse
deserto. Era como um cântico sobrenatural em uma morada desabitada.
Enquanto durou o cântico, Jean Valjean não pensava em mais nada. Ele
já não via a noite, via um céu azul. Parecia sentir que lhe abriam as asas
que todos temos dentro de nós.
O canto cessou. Talvez tivesse durado muito tempo; Jean Valjean não
saberia dizer. As horas do êxtase não são mais que um minuto.
Tudo voltara ao silêncio. Mais nenhum rumor na rua, mais nenhum
rumor no jardim. O que ameaçava e o que tranquilizava, tudo se
desvanecera. O vento agitava, no alto do muro, algumas ervas secas, que
produziam um leve ruído manso e lúgubre.

VII. CONTINUAÇÃO DO ENIGMA


O vento da noite começara a soprar, o que indicava ser entre uma e
duas horas da manhã. A pobre Cosette não dizia nada, e, como estivesse
sentada a seu lado e com a cabeça encostada nele, Jean Valjean pensou que
ela dormisse. Abaixou-se e olhou para ela. Cosette tinha os olhos
arregalados e um ar pensativo, o que preocupou Jean Valjean.
Continuava tremendo.
— Quer dormir? — disse Jean Valjean.
— Estou com muito frio — respondeu ela.
E daí a um instante tornou:
— Ela ainda está lá?
— Quem? — disse Jean Valjean.
— A senhora Thénardier.
Jean Valjean já tinha esquecido o meio que usara para fazer com que
Cosette ficasse em silêncio.
— Ah! — disse ele. — Ela já foi. Não precisa ter medo.
A criança suspirou como se um peso fosse tirado de suas costas.
O chão estava úmido, o galpão era aberto de todos os lados, e o vento
se tornava mais frio a cada instante. O homem tirou seu casaco e envolveu
Cosette nele.
— Está com menos frio assim? — disse ele.
— Estou, pai.
— Então me espere só um instante, eu já volto.
Ele saiu do barracão e começou a caminhar ao longo do grande
edifício, em busca de algum abrigo melhor. Encontrou algumas portas,
mas estavam fechadas. Em todas as janelas do andar térreo havia grades.
Ao passar pelo ângulo interior do edifício, notou que havia umas
janelas em arco, através das quais se percebia alguma claridade. Pôs-se
então na ponta dos pés e espreitou por uma das janelas. Davam todas para
uma sala bastante vasta, com piso de grandes lajotas, cortada por arcadas e
pilares, onde só se distinguia uma pequena claridade e muita sombra. A
claridade vinha de uma lamparina acesa em um canto. A sala estava
deserta e nada dentro dela se mexia. De tanto espreitar, pareceu-lhe ver no
chão algo que parecia coberto com um lençol, semelhante a uma forma
humana. Aquilo estava estendido de bruços, o rosto contra a lajota, os
braços em cruz, na imobilidade da morte. Podia-se dizer, diante de uma
espécie de serpente que se arrastava pelo chão, que aquela forma sinistra
tinha a corda no pescoço.
A sala estava mergulhada nessa bruma dos lugares mal iluminados que
lhes aumenta o horror.
Jean Valjean disse várias vezes depois que, ainda que muitas cenas
fúnebres tivessem atravessado sua vida, nunca vira coisa mais assustadora
e mais terrível do que aquela figura enigmática, assim entrevista na noite,
representando algum desconhecido mistério em um lugar tão sombrio. Era
medonho supor que aquilo talvez estivesse morto e mais medonho ainda
pensar que estivesse vivo.
Ele teve coragem de colar o rosto à vidraça e observar se aquilo se
mexeria. Apesar de ter permanecido ali por um espaço de tempo que lhe
pareceu bem longo, a forma estendida não fez nenhum movimento. De
repente, sentiu-se tomado por um medo inexprimível e então fugiu. Correu
em direção ao galpão sem ousar olhar para trás. Imaginava que se virasse a
cabeça veria a figura caminhar atrás dele, a grandes passos, agitando os
braços.
Chegou esbaforido ao barracão; seus joelhos vergavam-se e o suor
escorria-lhe pelas costas.
Onde estava ele? Quem poderia imaginar coisa semelhante a essa
espécie de sepulcro no meio de Paris? Que estranha casa era aquela?
Edifício cheio de mistérios noturnos, chamando as almas na escuridão
com a voz dos anjos; e, quando elas vinham, bruscamente lhes oferecia
aquela visão medonha, prometendo abrir as portas radiantes do céu, mas
abrindo as horríveis portas de um túmulo! E aquilo era, de fato, um
edifício, uma casa que tinha um número na rua! Não era sonho! Ele
precisava apalpar as pedras para acreditar.
O frio, a ansiedade, a preocupação, as emoções da noite causaram-lhe
uma verdadeira febre e todas essas ideias entrechocavam-se em seu
cérebro. Aproximou-se de Cosette; ela dormia.

VIII. O ENIGMA REDOBRA


A menina colocara a cabeça sobre uma pedra e adormecera.
Ele sentou-se perto dela e pôs-se a observá-la. Pouco a pouco, à
medida que a contemplava, ia se acalmando e retomava posse de sua
liberdade de espírito.
Jean Valjean divisava claramente esta verdade, essência da sua vida de
agora: enquanto ela existisse, enquanto ele a tivesse a seu lado, não
precisaria de nada senão para ela, não temeria nada, senão por causa dela.
Nem sequer sentia frio, tendo tirado o casaco para cobri-la.
Mas, entre os devaneios em que caíra, havia algum tempo ouvia um
barulho singular. Era como se agitassem em guizo. Esse barulho vinha do
jardim. Podia-se ouvi-lo distintamente, embora fraco. Parecia com a vaga
música produzida à noite pelo chocalho dos animais nas pastagens.
Esse barulho fez Jean Valjean se voltar.
Ele olhou e viu que havia alguém no jardim. Parecia um homem,
andando entre as campânulas do meloal, abaixando-se, erguendo-se e
parando, com movimentos regulares, como se arrastasse ou estendesse
alguma coisa no chão. Dava a impressão de mancar.
Jean Valjean estremeceu com esse tremor contínuo dos infelizes, para
quem tudo é hostil e suspeito. Desconfiam do dia, porque ele ajuda a
iluminá-los e desconfiam da noite porque ela ajuda a surpreendê-los.
Havia pouco tremia porque o jardim estava deserto, agora tremia porque
tinha alguém ali.
Passou então dos terrores quiméricos aos terrores reais, dizendo a si
mesmo que Javert e os espiões talvez não tivessem ido embora; que
decerto tinham deixado na rua alguém à espreita; que, se aquele homem o
descobrisse no jardim, gritaria que era ladrão e o entregaria à polícia.
Tomou suavemente Cosette nos braços, e levou-a para trás de uma pilha de
móveis que já não serviam, no canto mais retirado do galpão. Cosette não
se mexeu.
Dali, ele observava os modos da pessoa que estava no meloal. O que
era estranho é que o barulho do guizo seguia todos os movimentos dessa
pessoa. Quando o homem se aproximava, o barulho se aproximava;
quando ele se afastava, o barulho também se afastava; se ele fazia algum
gesto precipitado, um tremor acompanhava esse gesto; se parava, cessava
o ruído. Parecia que o guizo estava preso ao homem; mas, então, o que
isso poderia significar? Quem era aquele homem que trazia um chocalho,
como um carneiro ou um boi?
Ao mesmo tempo que se fazia essas perguntas, tocou as mãos de
Cosette. Estavam geladas.
— Ah, meu Deus! — disse ele.
Chamou-a baixinho:
— Cosette!
Mas ela não abriu os olhos.
Sacudiu-a firmemente.
Mas ela não acordou.
— Será que está morta? — disse ele, e levantou-se, tremendo dos pés à
cabeça.
As ideias mais terríveis passaram-lhe pela cabeça. Há momentos em
que suposições medonhas nos assaltam como uma confusão de fúrias,
forçando com violência as portas de nosso cérebro. Quando se trata
daqueles que amamos, nossa prudência inventa qualquer loucura. Ele
lembrou-se de que dormir ao relento frio da noite pode ser mortal.
Cosette, pálida, estava estendida no chão, aos pés dele, sem fazer um
só movimento.
Ele escutou sua respiração; Cosette respirava, mas sua respiração
pareceu-lhe muito fraca e prestes a se extinguir.
Como aquecê-la? Como despertá-la? Todos os outros pensamentos se
apagaram de sua mente. Ele precipitou-se desorientado para fora do
galpão.
Era imprescindível que antes de um quarto de hora Cosette estivesse
em uma cama, diante do fogo.

IX. O HOMEM DO GUIZO


Ele foi direito até o homem que via no jardim. Levava na mão o rolo
de dinheiro que estava no bolso de seu colete.
O homem tinha a cabeça baixa e não viu que se aproximava. Em
alguns saltos Jean Valjean chegou até ele.
— Cem francos!
O homem sobressaltou-se e ergueu a cabeça.
— Ganhará cem francos — continuou Jean Valjean — se me der
guarida por esta noite!
A lua clareava em cheio o rosto espantado de Jean Valjean.
— Veja só! É o senhor, Pai Madeleine! — disse o homem.
Esse nome, assim pronunciado, àquela hora sombria, naquele lugar
desconhecido, por aquele homem desconhecido, fez Jean Valjean recuar.
Ele esperava tudo, menos isso. O homem que lhe falava era um velho
coxo e alquebrado, vestido praticamente como um homem do campo, com
uma joelheira de couro no joelho esquerdo, de onde pendia uma grande
sineta. Não era possível distinguir seu rosto, encoberto pela sombra.
O velho tirou o boné e exclamou com voz trêmula:
— Meu Deus, como veio parar aqui, Pai Madeleine? Por onde entrou,
Jesus? O senhor caiu do céu! Não é pretensão; se alguma vez o senhor cair,
só pode ser de lá. E olhe como está! Sem gravata, sem chapéu, sem
casaco! Sabe que o senhor daria medo em alguém que não o conhecesse?
Sem casaco! Senhor Deus, será que os santos ficaram loucos agora? Mas
como o senhor entrou aqui?
Uma palavra não esperava a outra. O velho falava com um jeito de
camponês que não tinha nada de preocupante. Tudo aquilo era dito com
uma mescla de pasmo e de bondade ingênua.
— Quem é o senhor? E que casa é esta aqui? — perguntou Jean
Valjean.
— Ora, essa é muito boa! — exclamou o velho. — Eu sou aquele que o
senhor colocou aqui, e esta é a casa onde o senhor me colocou. Mas como!
O senhor não me reconhece?
— Não — disse Jean Valjean —, e como se explica que o senhor me
conhece?
— O senhor salvou-me a vida — disse o homem.
Ao virar-se, um raio de lua iluminou seu perfil, e Jean Valjean
reconheceu o velho Fauchelevent.
— Ah! É o senhor? — disse Jean Valjean. — Estou reconhecendo.
— Ainda bem! — disse o velho em tom de repreensão.
— E o que o senhor está fazendo aqui? — perguntou Jean Valjean.
— Olhe! Estou cobrindo meus melões.
De fato, o velho Fauchelevent, no momento em que Jean Valjean se
aproximara, segurava na mão a ponta de uma esteira, que estendia sobre o
meloal. Desde que entrara no jardim, havia uma hora, já tinha estendido
algumas. Era essa operação que o obrigava a fazer os movimentos
observados do galpão por Jean Valjean.
O velho continuou:
— Eu pensei: a lua está límpida, vai gear. E se eu colocasse agasalho
nos meus melões? — E acrescentou, olhando para Jean Valjean com uma
gargalhada: — O senhor bem que devia fazer o mesmo. Mas como é
mesmo que o senhor veio parar aqui?
Jean Valjean, sentindo-se conhecido por aquele homem, ao menos pelo
nome de Madeleine, já não avançava com precaução; multiplicava as
perguntas. Coisa estranha, os papéis pareciam invertidos. Era ele, o
intruso, quem interrogava.
— O que é esse chocalho em seu joelho?
— Isso? — respondeu Fauchelevent. — É para que me evitem.
— Como assim, para que o evitem?
O velho Fauchelevent piscou o olho de um modo inexprimível.
— Ora, só há mulheres nesta casa, muitas delas são jovens. Parece que
seria perigoso encontrarem comigo; o chocalho as avisa. Quando eu
venho, elas se vão.
— Então que casa é esta?
— Mas o senhor bem sabe!
— Não, não sei.
— Mas foi o senhor que arranjou tudo para eu ficar aqui como
jardineiro!
— Faça de conta que não sei de nada.
— Está bem, é o Convento do Petit-Picpus.
As lembranças voltavam a Jean Valjean. O acaso, isto é, a Providência,
o jogara exatamente no convento do bairro Saint-Antoine, onde o velho
Fauchelevent, estropiado com a queda de sua carroça, fora admitido por
sua recomendação; dois anos já haviam decorrido desde então. Ele repetia
como que falando a si mesmo:
— O Convento do Petit-Picpus!
— Isso; mas, e então — tornou Fauchelevent —, como conseguiu
entrar aqui, Pai Madeleine? Ainda que seja um santo, o senhor é um
homem, e aqui não entram homens.
— Mas bem que o senhor está aqui.
— Mas sou só eu.
— Mas é preciso que eu fique — replicou Jean Valjean.
— Ah! Meu Deus! — exclamou Fauchelevent.
Jean Valjean aproximou-se do velho e disse-lhe com voz grave:
— Pai Fauchelevent, eu salvei sua vida.
— Quem se lembrou disso primeiro fui eu.
— Pois bem, o senhor pode fazer hoje por mim o que eu aquela vez fiz
pelo senhor.
Fauchelevent tomou em suas enrugadas e trêmulas mãos as robustas
mãos de Jean Valjean, e ficou alguns segundos como se não pudesse falar.
Por fim exclamou:
— Oh! Seria uma bênção de Deus se eu pudesse fazer alguma coisa em
troca do que o senhor fez por mim. Eu! Salvar sua vida! Senhor prefeito,
disponha deste velho homem.
Uma alegria admirável havia transfigurado o velho. Um raio de luz
parecia sair de seu rosto.
— Que quer o senhor que eu faça? — tornou ele.
— Vou lhe explicar. O senhor tem um quarto?
— Tenho uma casinha isolada, ali, atrás das ruínas do velho convento,
em um canto que ninguém enxerga. Tem três quartos.
De fato, a casinha ficava tão escondida pelas ruínas e tão bem disposta
para que ninguém a visse, que Jean Valjean não a havia mesmo notado.
— Ótimo — disse Jean Valjean. — Agora vou lhe pedir duas coisas.
— Quais, senhor prefeito?
— Primeiro, não diga a ninguém o que sabe a meu respeito; segundo,
não procure saber mais do que já sabe.
— Como o senhor quiser. Eu sei que o senhor só pode fazer coisas
honestas e que o senhor sempre foi uma criatura de Deus. Além disso, foi
o senhor quem me pôs aqui. É uma coisa que lhe diz respeito. Estou a sua
disposição.
— Certo. Agora venha comigo, vamos buscar a criança.
— Ah! — disse Fauchelevent. — Tem uma criança?
E, sem acrescentar uma só palavra, seguiu Jean Valjean como um cão
segue o dono.
Menos de meia hora depois, recuperando o rosado diante das chamas
de um bom fogo, Cosette dormia na cama do velho jardineiro. Jean
Valjean tornara a colocar sua gravata e seu casaco; o chapéu, lançado por
sobre o muro, fora encontrado. Enquanto Jean Valjean vestia o casaco,
Fauchelevent tirava sua joelheira com o guizo, que agora, pendurada perto
de um cesto, enfeitava a parede. Os dois se aqueciam sentados a uma mesa
onde Fauchelevent colocara um pedaço de queijo, pão, uma garrafa de
vinho e dois copos; o velho dizia a Jean Valjean, colocando a mão em seu
joelho:
— Ah! Pai Madeleine! O senhor não me reconheceu logo! Salva a vida
das pessoas e depois esquece delas! Oh! Isso é ruim! Mas elas se lembram
do senhor! O senhor é um ingrato!

X. ONDE É EXPLICADO COMO JAVERT NÃO ACHOU


O QUE PROCURAVA
Os acontecimentos dos quais acabamos de ver, por assim dizer, o
reverso, ocorreram nas mais simples condições.
Quando Jean Valjean, na mesma noite em que Javert o prendeu ao lado
do leito de morte de Fantine, fugiu da prisão municipal de Montreuil-sur-
Mer, a polícia supôs que ele tivesse ido em direção a Paris. Paris é um
lugar onde tudo se perde, e tudo desaparece nesse umbigo do mundo como
desapareceria no umbigo do mar. Nenhuma floresta esconde um homem
como aquela multidão. Os fugitivos de todo tipo sabem disso. Vão a Paris
como a um sorvedouro; há sorvedouros que salvam. A polícia também
sabe disso, e é em Paris que ela procura o que perdeu em outro lugar. Ela
procurava ali o ex-prefeito de Montreuil–sur-Mer. Javert foi chamado a
Paris para conduzir as investigações. Javert, com efeito, ajudou muito na
recaptura de Jean Valjean. O zelo e a inteligência de Javert foram notados,
naquela ocasião, pelo senhor Chabouillet, secretário do departamento de
polícia, sob comando do conde Anglès. O senhor Chabouillet, que de resto
já havia protegido Javert, conseguiu colocar o inspetor de Montreuil-sur-
Mer na polícia de Paris. Ali, Javert tornou-se diversamente e, devemos
dizer, ainda que o termo pareça inesperado para esse tipo de serviço,
honrosamente útil.
Ele não se lembrava mais de Jean Valjean — aos cães que continuam
caçando, o lobo de hoje faz esquecer o lobo de ontem — quando, em
dezembro de 1823, lia um jornal, ele, que nunca lia os jornais, mas, sendo
monarquista, fez questão de saber os detalhes da entrada triunfal do
“generalíssimo príncipe” em Bayonne, e, acabando de ler um artigo que o
interessava, um nome, o nome de Jean Valjean, na parte inferior de uma
página, chamou sua atenção. O jornal anunciava que o condenado Jean
Valjean estava morto, e publicava o fato em termos tão formais que Javert
não colocou em dúvida. Limitou-se a dizer: esse é um bom registro de
prisão5. Depois, descartou o jornal e não pensou mais no que havia lido.
Daí a algum tempo, aconteceu de uma nota ser transmitida pelo
departamento de polícia de Seine-et-Oise ao de Paris, a respeito do rapto
de uma criança, ocorrido, segundo diziam, em circunstâncias particulares,
no vilarejo de Montfermeil. Uma garotinha de sete a oito anos, dizia a
nota, que fora confiada por sua mãe a um estalajadeiro do local, teria sido
levada por um desconhecido; a menina se chamava Cosette e era filha de
uma moça chamada Fantine, morta em um hospital, não se sabia quando
nem onde. Essa nota passou sob os olhos de Javert, deixando-o pensativo.
Aquele nome, Fantine, era-lhe bem conhecido. Lembrava-se de que
Jean Valjean o havia feito gargalhar, ele, Javert, ao lhe pedir três dias para
ir buscar a filha da tal moça. Lembrou-se que Jean Valjean fora preso em
Paris no momento em que subia na diligência de Montfermeil. Alguns
indícios haviam dado a imaginar, na época, que era a segunda vez que ele
tomava aquela diligência, que já havia feito, na véspera, uma excursão aos
arredores da aldeia, pois ninguém o vira propriamente no vilarejo. O que
ele ia fazer na região de Montfermeil? Ninguém pôde saber; mas Javert
agora entendia. A filha de Fantine estava lá. Jean Valjean tinha ido buscá-
la. Ora, a tal criança acabava de ser roubada por um desconhecido. Quem
poderia ser esse desconhecido? Seria Jean Valjean? Mas ele estava morto.
Javert, sem avisar ninguém, tomou a carruagem Plat d’étain no beco de la
Planchette, e foi até Montfermeil.
Ele esperava encontrar ali grandes esclarecimentos, mas encontrou
uma grande obscuridade.
Nos primeiros dias, os Thénardier, despeitados, falaram sem parar. O
desaparecimento da Cotovia deu o que falar na aldeia, havendo logo
muitas versões da história, mas terminou como sendo um roubo de
criança. Daí a nota do departamento de polícia. Passado, porém, o
primeiro desabafo, Thénardier, com seu admirável instinto, deu-se conta
de que não é muito bom mexer com os ânimos do senhor procurador do
rei, e que suas queixas a respeito do rapto de Cosette teriam como
primeiro resultado fixar sobre ele, Thénardier, e sobre muitos de seus
negócios obscuros, o coruscante olhar da justiça.
A primeira coisa que os mochos querem é que não os exponham à luz.
Além disso, como se explicaria sobre os mil e quinhentos francos que
recebera? Thénardier acabou depressa com aquilo, pôs uma mordaça em
sua mulher e fazia-se de desentendido quando lhe falavam da criança
roubada. Não compreendia nada daquilo; sem dúvida, deu queixa no
momento em que “tiravam” dele, assim tão rápido, a pequena a quem
tanto queria; gostaria, por ternura, de ficar ainda dois ou três dias com ela,
porém fora seu “avô” quem viera buscá-la, coisa mais natural do mundo.
Acrescentou esse avô para se sair bem. Foi com essa história que Javert se
deparou ao chegar em Montfermeil. O avô fazia Jean Valjean dissipar-se.
Javert, todavia, arriscou algumas perguntas para sondar a história de
Thénardier. Quem era esse tal avô e como se chamava? Thénardier
respondeu com simplicidade:
— É um lavrador abastado. Vi seu passaporte; acho que se chama
Guillaume Lambert.
Lambert é um bom nome e bastante tranquilizador. Javert voltou a
Paris.
— Aquele Jean Valjean morreu mesmo — pensou —, e eu sou um
tonto.
Já estava esquecendo toda essa história quando, durante o mês de
março de 1824, ouviu falar de um personagem estranho que morava em
Saint-Médard, a quem apelidavam de “o mendigo que dá esmolas”.
Segundo se dizia, esse personagem vivia de rendas, seu nome ninguém
conhecia ao certo, e vivia sozinho com uma menina de uns oito anos, que
nada sabia, senão que tinha vindo de Montfermeil. Montfermeil! Esse
nome sempre reaparecia, e fez Javert apurar os ouvidos. Um velho
mendigo espião, antigo bedel, a quem o tal personagem dava esmola,
acrescentou outros detalhes. O homem era uma criatura muito arisca; só
saía de casa à noite; não falava com ninguém, a não ser, às vezes, com os
pobres; não deixava ninguém se aproximar; usava um velho casaco
amarelo, horrível, que valia muitos milhões, por ser todo forrado de
dinheiro. Isso realmente excitou a curiosidade de Javert. Para ver o
fantástico homem de perto, sem o espantar, um dia emprestou do bedel
seus trapos e o lugar onde todas as noites se agachava, murmurando
orações em voz fanhosa e espionando durante suas rezas.
“O indivíduo suspeito” de fato foi até Javert, este disfarçado, e deu-lhe
uma esmola. Nesse momento, Javert ergueu a cabeça, e o abalo que Jean
Valjean experimentou, julgando reconhecer Javert, Javert também
experimentou, julgando reconhecer Jean Valjean.
No entanto, a escuridão poderia enganá-lo; a morte de Jean Valjean era
oficial; ele ficava com grandes dúvidas; e, na dúvida, Javert, homem de
escrúpulos, não colocaria a mão em ninguém.
Seguiu o homem até o casebre Gorbeau e fez a “velha” falar, o que não
era problema. Ela confirmou-lhe a existência do casaco forrado com
milhões e contou-lhe o episódio da nota de mil francos. Ela vira! Ela
tocara! Javert alugou um quarto, e nessa mesma noite instalou-se nele.
Depois, foi escutar à porta do misterioso inquilino, esperando ouvir o som
de sua voz, mas Jean Valjean divisou a luz de sua vela pelo buraco da
fechadura e logrou o espião, ficando em silêncio.
No dia seguinte, Jean Valjean levantava acampamento. Mas o barulho
da moeda de cinco francos que ele deixou cair foi notado pela velha, que,
ouvindo-o mexer em dinheiro, imaginou que ele ia sair, e apressou-se em
prevenir Javert. À noite, quando Jean Valjean saiu, Javert o esperava atrás
das árvores do bulevar com mais dois homens.
Javert pediu ajuda na delegacia de polícia, mas não disse o nome do
indivíduo que esperava agarrar. Era seu segredo, que guardava por três
razões: primeira, porque a menor indiscrição podia dar alarme a Jean
Valjean; depois, porque pôr as mãos em um antigo forçado evadido e
reputado morto, em um sentenciado que as informações da justiça já
haviam para sempre classificado entre os malfeitores da espécie mais
perigosa, era um sucesso magnífico que os antigos agentes da polícia
parisiense não deixariam creditar a um recém-chegado como Javert, que
receava, então, que tirassem dele seu condenado; finalmente, porque
Javert, sendo um artista, gostava do imprevisto. Detestava esses sucessos
anunciados que perdem a graça por se falar deles muito tempo antes.
Gostava de elaborar suas obras-primas na sombra e mostrá-las depois
repentinamente.
Javert seguira Jean Valjean de árvore em árvore, de esquina em
esquina, não o perdendo de vista um só instante. Mesmo nos momentos
em que Jean Valjean se julgava em maior segurança, os olhos de Javert
estavam sobre ele. Por que, então, Javert não o prendia? Porque ainda
tinha dúvidas.
É preciso lembrar que, naquele tempo, a polícia não estava bem à
vontade; a imprensa livre a incomodava. Algumas prisões arbitrárias,
denunciadas pelos jornais, tinham repercutido até nas câmaras,
intimidando sua ação. Atentar contra a liberdade individual era coisa
grave. Os agentes receavam enganar-se; os delegados os
responsabilizavam; um erro era a destruição. Imaginem o efeito que
causaria em Paris este pequeno artigo reproduzido em vinte jornais:
“Ontem, um idoso avô de cabelos brancos, respeitável senhor que vive de
rendas, e que passeava com sua netinha de oito anos, foi preso e conduzido
à delegacia de polícia como sendo um forçado evadido!”
Repetimos que Javert tinha seus escrúpulos, e, além disso, as
recomendações de sua consciência uniam-se às recomendações do
delegado. Ele realmente duvidava.
Jean Valjean dava as costas e caminhava na escuridão.
A tristeza, a preocupação, a ansiedade, o abatimento, este novo
infortúnio de se ver obrigado a fugir durante a noite e a procurar abrigo ao
acaso em Paris, para ele e Cosette, a necessidade de regular seu passo pelo
de uma criança, tudo isso, sem que percebesse, tinha mudado as atitudes
de Jean Valjean e impresso em seu modos uma tal senilidade que até a
própria polícia, encarnada em Javert, poderia enganar-se, e enganou-se. A
impossibilidade de se chegar muito a ele, seu traje de velho preceptor
emigrado, a declaração de Thénardier que o fazia avô de Cosette e,
finalmente, a crença de que morrera nas galés se acrescentavam às
incertezas que só aumentavam na consciência de Javert.
Por um momento, pensou em pedir-lhe repentinamente os documentos.
Mas, e se aquele homem não fosse Jean Valjean, e se aquele homem não
fosse uma velha e boa pessoa, seria provavelmente algum gatuno profunda
e gravemente envolvido na obscura trama dos delitos parisienses, algum
perigoso chefe de quadrilha que dava esmolas para ocultar suas outras
habilidades, golpe bem conhecido. Ele teria sócios, cúmplices,
esconderijos para o caso de precisar refugiar-se. Todos os rodeios que ele
fazia pelas ruas pareciam indicar que não se tratava de um simples velho.
Prendê-lo depressa demais seria “matar a galinha dos ovos de ouro”. Que
inconveniente havia em esperar? Javert estava bem seguro de que ele não
escaparia.
Então, andava bem perplexo, fazendo a si mesmo centenas de
perguntas sobre aquele personagem enigmático.
Só mais tarde, na rua de Pontoise, foi que, graças à viva claridade que
vinha de uma taverna, decididamente reconheceu Jean Valjean.
Nesse mundo, há dois seres que estremecem profundamente: a mãe
que reencontra seu filho, e o tigre que reencontra sua presa. Javert sentiu
esse estremecimento profundo.
Desde que reconheceu positivamente Jean Valjean, o temível forçado,
reparou que estavam só em três e mandou pedir reforços ao comissário de
polícia da rua de Pontoise. Antes de empunhar um bastão espinhoso,
melhor colocar luvas.
Esse atraso, e a parada no cruzamento Rollin para entrar em acordo
com seus agentes, quase fizeram com que perdesse a pista. Mas logo ele
adivinhou que Jean Vaijean pretendia colocar o rio entre ele e seus
caçadores. Inclinou a cabeça e refletiu, como um cão de caça põe o
focinho no chão para ter certeza do caminho. Javert, guiado pela poderosa
certeza de seu instinto, foi direto para a ponte de Austerlitz. Bastou-lhe
uma palavra ao cobrador de pedágio para recolocá-lo na pista.
— Viu um homem com uma menininha?
— Cobrei-lhe dois soldos — respondeu o cobrador.
Javert chegou à ponte a tempo de ver, do outro lado do rio, Jean
Valjean com Cosette pela mão, atravessando o espaço iluminado pela lua.
Viu quando entrou pela rua Chemin-Vert-Saint-Antoine, e pensou no beco
Genrot, disposto ali como uma ratoeira, e na única saída da rua Droit-Mur
para a viela Picpus. Assegurou as posições avançadas, como dizem os
caçadores, e mandou às pressas, por um atalho, que um de seus agentes
vigiasse essa saída. Uma patrulha que retornava ao posto de l’Arsenal foi
requisitada ao passar por ali e o acompanhou. Nesse tipo de jogo, os
soldados são trunfos. Além disso, leve-se em conta o seguinte princípio:
para agarrar um javali é preciso ser bom caçador e levar boa matilha.
Combinadas essas disposições, sentindo Jean Valjean encurralado entre o
beco Genrot pela direita, seu agente pela esquerda, e ele mesmo pela
retaguarda, tomou uma pitada de rapé.
Depois começou a brincar. Foi um momento maravilhoso e infernal;
deixou seu homem ir na sua dianteira, sabendo que o tinha seguro, e
desejando retardar o máximo possível o momento de prendê-lo, feliz de
sabê-lo preso, mas vendo-o livre, chocando-o com o olhar voluptuoso da
aranha que deixa esvoaçar a mosca, e do gato que deixa correr o rato. As
garras e as unhas têm uma sensualidade monstruosa, o movimento obscuro
do animal preso entre suas tenazes. Que delícia fazer sufocar!
Javert se regozijava. As malhas de sua rede estavam firmemente
amarradas. Ele estava certo do sucesso; agora era só fechar a mão.
Acompanhado como estava, a simples ideia de resistência era
impossível, por mais enérgico, vigoroso e desesperado que Jean Valjean
estivesse.
Javert avançava lentamente, sondando e revistando, ao passar, todos os
cantos da rua, como faria nos bolsos de um ladrão.
Ao chegar ao centro da teia, não encontrou mais a mosca.
Pode-se imaginar sua exasperação!
Interrogou seu vigia das ruas Droit-Mur e Picpus; o agente, que
permanecera imperturbável em seu posto, não vira o homem passar.
Acontece, às vezes, de um cervo escapar, mesmo tendo a matilha no
encalço, e então os caçadores mais antigos não sabem o que dizer.
Duvivier, Ligniville e Desprez até engasgam. Em uma situação
inconveniente como essa, Artonge exclamou: Não era um cervo, era um
feiticeiro.
Javert bem gostaria de soltar o mesmo grito.
Seu desapontamento tinha lapsos de desespero e de fúria.
É certo que Napoleão errou na guerra da Rússia, que Alexandre errou
na guerra da Índia, que César errou na guerra da África, que Ciro errou na
guerra de Cítia e que Javert errou nessa campanha contra Jean Valjean.
Talvez tenha errado quando hesitou em reconhecer o antigo forçado, o
primeiro olhar já devia ter sido suficiente. Errou em não prendê-lo pura e
simplesmente dentro do casebre. Errou em não prendê-lo quando
positivamente o reconheceu na rua de Pontoise. Errou em conferenciar
com seus auxiliares em pleno clarão da lua no beco Rollin. É certo que
outros pontos de vista são úteis, e que é bom conhecer e interrogar os cães
que merecem crédito; mas o caçador nunca toma precauções demais
quando anda à caça de animais espertos como o lobo e o forçado. Javert,
ocupando-se demais em orientar sobre o caminho os sabujos da matilha,
alarmou a fera, advertiu-a do tiro e a fez fugir. Ele errou, sobretudo
quando, ao retomar sua pista na ponte de Austerlitz, brincou, de forma
pueril, de manter um homem daqueles na ponta de um fio. Julgou-se mais
forte do que era e acreditou poder brincar de ratinho com um leão. Ao
mesmo tempo, julgou-se muito fraco quando achou necessário pedir
reforço. Precaução fatal, perda de um tempo precioso. Javert cometeu
todas essas faltas, e nem por isso deixava de ser um dos espiões mais
hábeis e corretos que já existiram. Ele era, em toda a força da expressão, o
que na arte da caça chamam de cão inteligente. Mas quem é perfeito?
Os grandes estrategistas também têm seus eclipses.
Grandes bobagens são frequentemente, como as grossas cordas,
formadas por uma multidão de fios. Peguem a corda fio por fio, tomem
separadamente todos os pequenos motivos determinantes, rompam um
após o outro e dirão: “É só isso!” Mas, ao serem entrelaçados e torcidos
juntos, tornam-se uma enormidade; é Átila hesitando entre Marciano no
Oriente e Valentiniano no Ocidente; é Aníbal demorando-se em Cápua, é
Danton adormecendo em Arcis-sur-Aube.
Seja como for, no momento em que percebeu que Jean Valjean lhe
escapara, Javert não perdeu a cabeça. Certo de que o forçado evadido da
prisão não poderia estar muito longe, colocou espiões, organizou ratoeiras
e emboscadas, e rondou o bairro durante a noite toda. A primeira coisa que
viu foi a desordem do lampião, que tinha a corda cortada. Indício precioso,
que no entanto o enganou, fazendo-o desviar todas as buscas para o beco
Genrot. Há nesse beco muros bem baixos que dão para jardins cujos
limites são imensos terrenos baldios. Jean Valjean, com toda a certeza,
devia ter fugido por ali. O fato é que, se ele tivesse penetrado mais adiante
no beco Genrot, o que provavelmente fizera, estava perdido. Javert
explorou aqueles jardins e terrenos como quem procura uma agulha. Ao
romper do dia, deixou dois homens inteligentes observando, e dirigiu-se à
delegacia de polícia, envergonhado como um espião que se deixou apanhar
por um ladrão.
__________________________
1 Victor Hugo ficou afastado de Paris durante doze anos por razões políticas; sua cidade natal,
na verdade, era Besançon.
2 Uma possível tradução para este verso seria: “A todos que vêm de Coração, vendemos
Ladrilhos”. As palavras Coeur e Carreaux podem ser entendidas respectivamente como coração
ou copas, e, ladrilhos, azulejos ou ouros, o que dá ao verso a possibilidade de um trocadilho com
os naipes das cartas de baralho.
3 Prisão anexa ao Palácio de Justiça, em Paris.
4 Alusão à célebre frase de Ricardo III, de Shakespeare: “Meu reino por um cavalo!”
5 Javert ironiza, como se fosse uma prisão com justa condenação à morte.
LIVRO VI
O PETIT-PICPUS

I. VIELA PICPUS, NÚMERO 62


HÁ MEIO SÉCULO, nada parecia mais com o primeiro portão que já
existiu do que o portão do número 62 da viela Picpus. Esse portão,
normalmente entreaberto da maneira mais atrativa, deixava ver duas
coisas que nada têm de fúnebre, um quintal rodeado de muros cobertos de
videiras e o rosto de um porteiro matando o tempo. Acima do muro do
fundo avistavam-se grandes árvores. Quando um raio de sol alegrava o
quintal e um copo de vinho alegrava o porteiro, era difícil passar pelo
número 62 da viela Picpus sem trazer dali uma ideia engraçada.
Entretanto, era um lugar sombrio o que se entrevia.
A entrada sorria, a casa rezava e chorava.
Se alguém chegasse, o que não era fácil, a passar pelo porteiro — o
que para quase todos era mesmo impossível, pois havia um Abre-te–
Sésamo! que era necessário saber —, quem então passasse pelo porteiro
entrava em um pequeno vestíbulo à direita, onde havia uma escada
espremida entre duas paredes, tão estreita que só passava uma pessoa por
vez; quem não se deixasse assustar com a pintura amarelo-canário das
paredes e com os rodapés cor de chocolate que revestiam a escada, quem
se aventurasse a subir, passava um primeiro patamar, depois um outro, e
chegava ao primeiro andar por um corredor onde a pintura amarela e a
faixa chocolate o seguiam com pacífica insistência. Tanto a escada como o
corredor recebiam luz de duas belas janelas. O corredor fazia uma curva e
se tornava escuro. Feita essa curva, chegava-se, após alguns passos, diante
de uma porta, ainda mais misteriosa por não estar fechada. Empurrando-a,
entrava-se em um pequeno quarto, de uns dois metros quadrados,
ladrilhado, lavado, limpo, frio, forrado com papel nanquim com florzinhas
verdes, de quinze soldos o rolo. Uma luz branca e opaca entrava por uma
grande janela de pequenos caixilhos, que ficava à esquerda, tomando toda
a largura do quarto. Olhava-se, mas não se via ninguém; escutava-se, mas
não se ouvia nem um passo, nem um murmúrio humano. As paredes eram
nuas, não havia mobília, nem mesmo uma cadeira.
Olhando outra vez, via-se, na parede em frente à porta, uma abertura
quadrangular de aproximadamente trinta centímetros quadrados, com uma
grade de ferro cujas barras se entrecruzavam, negras, nodosas, sólidas,
formando quadrados, que eu quase chamaria de malhas, com menos de
polegada e meia de diagonal. As pequenas flores verdes do papel nanquim
chegavam com calma e ordem até essas barras de ferro, sem que esse
contato fúnebre as assustasse ou as arrastasse. Supondo que alguém tão
admiravelmente magro tentasse entrar ou sair pela abertura quadrada,
aquela grade o impediria. Não deixava passar um corpo, mas deixava
passar os olhos, isto é, o espírito. Parecia que haviam pensado nisso, pois a
forraram com uma folha de latão encaixada na parede um pouco para
dentro, e crivada de mil furos, mais microscópicos que os furos de uma
escumadeira. Na parte inferior dessa chapa havia uma abertura muito
semelhante à boca de uma caixa de correio. Do lado direito da grade
pendia um cordão, com o qual se puxava uma campainha.
Agitando-se esse cordão, uma sineta soava e ouvia-se uma voz muito
próxima, o que causava um estremecimento.
— Quem está aí? — perguntava a voz.
Era uma voz de mulher, uma voz doce, tão doce quanto lúgubre.
Aqui havia também uma palavra mágica que era necessário saber. Se
quem tocava não a conhecesse, a voz se calava, e a parede continuava
silenciosa, como se do outro lado ficasse a escuridão aterradora do
sepulcro.
Se conhecessem a palavra, a voz dizia:
— Entre à direita.
Via-se então à direita, em frente à janela, uma porta envidraçada,
encimada por um caixilho também envidraçado e pintado de cinza.
Levantava-se o trinco, transpunha-se a porta e experimentava-se
exatamente a mesma impressão de quando se entra no teatro, em um
camarote gradeado, antes que a grade seja abaixada e as luzes acesas. Era
efetivamente uma espécie de camarote de teatro, iluminado pela vaga
claridade que vinha da estreita porta envidraçada, mobiliado com duas
velhas cadeiras e uma esteira toda desfiada, seu parapeito apoiando uma
mesinha de madeira escura. Esse camarote era gradeado, com a diferença
que a grade não era de madeira dourada como na Ópera, mas uma
monstruosa treliça de ferro, horrorosamente chumbada na parede com
enormes rebites que pareciam punhos fechados.
Passados os primeiros minutos, a visão começava a acomodar-se
àquela meia-luz de porão, tentando alcançar além da grade, mas não
chegando a mais do que seis polegadas. Aí encontrava uma barreira de
ripas escuras, reforçadas e seguras por travessas de madeira pintadas de
amarelo. As ripas tinham juntas e eram formadas por longas lâminas
delgadas, tapando toda a grade; estavam sempre fechadas.
Depois de alguns instantes, ouvia-se uma voz chamando por detrás das
ripas, dizendo:
— Estou aqui. O que quer?
Era uma voz agradável, por vezes adorável. No entanto, não se via
ninguém; ouvia-se apenas o sussurro de uma respiração. Parecia uma
evocação falando através da tampa de um túmulo.
Para quem atendesse às condições desejadas, o que era raro, uma das
estreitas lâminas era aberta, bem à sua frente, e a evocação tornava-se uma
aparição. Por trás da grade, por trás das ripas, avistava-se, tanto quanto a
grade permitia, uma cabeça, da qual apenas se viam a boca e o queixo; o
resto ficava coberto por um véu preto. Entrevia-se um escapulário preto e
uma forma, que mal se distinguia, coberta com uma mortalha negra. Essa
cabeça falava, mas nunca olhava nem sorria a quem se dirigia.
A luz que vinha por trás de quem entrava estava disposta de tal forma
que este enxergava a cabeça no claro, enquanto ela o enxergava no escuro.
Essa luz era como um símbolo.
No entanto, os olhos mergulhavam avidamente por aquela abertura,
feita em um lugar vedado a todos os olhares. Uma profunda indefinição
envolvia aquela forma vestida de luto. Os olhos vasculhavam essa
indefinição procurando desvendar o que havia em torno da aparição. Logo
se percebia que nada se via. O que se via era o escuro, o vazio, as trevas,
uma bruma invernal misturada a um vapor de túmulo, uma espécie de paz
assustadora, um silêncio do qual nada se recolhia, nem mesmo suspiros,
uma sombra na qual nada se distinguia, nem mesmo fantasmas.
O que se via era o interior de um claustro.
Era o interior da melancólica e austera casa chamada de Convento das
Bernardinas da Adoração Perpétua. O camarote que foi descrito era o
locutório. A primeira voz a falar era a voz da irmã rodeira, que estava
sempre sentada, imóvel e silenciosa, do outro lado da parede, perto da
abertura quadrada, protegida, como por uma dupla viseira, pela grade de
ferro e pela chapa de mil furos.
A escuridão em que se achava mergulhado o camarote gradeado
provinha do fato de que o locutório, que tinha uma janela do lado do
mundo, não tinha nenhuma do lado do convento. Os olhos profanos não
deviam enxergar nada daquele lugar sagrado.
No entanto, havia alguma coisa para além daquela sombra, havia uma
luz; havia uma vida naquela morte. Embora esse convento seja o mais
vedado de todos, vamos tentar penetrar nele, juntamente com o leitor, e
dizer, na medida do possível, coisas que nunca foram vistas e, por
consequência, nunca foram relatadas.

II. A OBEDIÊNCIA DE MARTIN VERGA


Esse convento, que, em 1824, já existia havia muitos anos na viela
Picpus, era uma comunidade de bernardinas da obediência de Martin
Verga.
Por consequência, essas bernardinas ligavam-se não a Clairvaux
(Claraval), como os bernardinos, mas a Cîtaux (Cister), como os
beneditinos. Em outras palavras, estavam sujeitas não a São Bernardo mas
a São Bento.
Todos os que tenham lido um pouco os in-fólios sabem que Martin
Verga fundou, em 1425, uma congregação de bernardinas-beneditinas,
tendo como sede da ordem Salamanca e como sucursal Alcalá.
Essa congregação ramificou-se por todos os países católicos da
Europa.
Esses enxertos de uma ordem em outra não têm nada de insólito na
Igreja latina. Para falarmos só da ordem de São Bento, que é o que vem ao
caso, a ela estão ligadas, sem contar a obediência de Martin Verga, quatro
congregações: duas na Itália, Monte Cassino e Santa Justina de Pádua,
duas na França, Cluny e São Mauro; e nove ordens, Valombrosa,
Grammont, os celestinos, os camaldulenses, os cartuxos, os humilhados,
os olivetanos, os silvestrinos, e finalmente os cistercienses; pois a Ordem
de Cister, ela mesma tronco de outras ordens, é um broto da ordem de São
Bento. Cister data de São Roberto, abade de Molesme, na diocese de
Langres, em 1098. Ora, foi em 529 que o Diabo, retirado ao deserto de
Subiaco (estava velho; será que se tornou eremita?), foi expulso do antigo
templo de Apolo, onde residia, por São Bento, que então tinha dezessete
anos.
Depois da regra das carmelitas, que andam descalças, trazem um rolo
de vime no pescoço e nunca se sentam, a regra mais dura é a das
bernardinas-beneditinas de Martin Verga. Elas se vestem de preto com um
escapulário que, segundo prescrição expressa de São Bento, sobe até o
queixo. Um hábito de sarja com mangas largas, um grande véu de lã, o
escapulário até o queixo, cortado reto sobre o peito, e o véu, indo até os
olhos, assim é sua vestimenta. Tudo é preto, exceto o véu, que é branco.
As noviças usam o mesmo hábito, porém todo branco. As professas, além
disso, usam um rosário à cintura.
As bernardinas-beneditinas de Martin Verga praticam a Adoração
Perpétua, como as beneditinas do Santíssimo Sacramento, que no princípio
deste século tinham duas casas em Paris, uma no Temple, outra na rua
Neuve-Sainte-Geneviève. De resto, as religiosas do Petit–Picpus, de quem
falamos, formavam uma ordem inteiramente diferente da formada pelas
freiras do Santíssimo Sacramento, enclausuradas na rua Neuve-Sainte-
Geneviève e no Temple. Havia numerosas diferenças em suas regras e
hábitos. As bernardinas-beneditinas do Petit-Picpus usavam escapulário
preto e as beneditinas do Santíssimo Sacramento, branco, e sobre o peito
tinham um ostensório de aproximadamente três polegadas, vermelho ou de
cobre dourado. As religiosas do Petit-Picpus não usavam esse ostensório; a
Adoração Perpétua, comum à casa do Petit-Picpus e à casa do Temple,
tornava as duas ordens perfeitamente distintas. Somente nessa prática
havia semelhanças entre as freiras do Santíssimo Sacramento e as
bernardinas de Martin Verga; do mesmo modo, só no estudo e glorificação
de todos os mistérios relativos à infância, à vida e à morte de Jesus Cristo,
e à Virgem, é que existia semelhanças entre as duas ordens, de resto
fortemente separadas e por vezes inimigas, sendo o Oratório da Itália
estabelecido em Florença por Filipe de Néri, e o Oratório da França
estabelecido em Paris por Pierre de Bérulle. O Oratório de Paris pretendia
a primazia, visto que Filipe de Néri era apenas santo e Bérulle, cardeal.
Voltemos, porém, às duras regras espanholas de Martin Verga.
As bernardinas-beneditinas dessa obediência guardam abstinência de
carne o ano todo, jejuam na Quaresma e em muitos outros dias que têm
como especiais, levantam-se no primeiro sono, da uma até as três da
manhã, para lerem o breviário e cantarem matinas, deitam-se em lençóis
de sarja e sobre a palha em qualquer estação, não tomam banho, nunca
acendem o fogo, submetem-se à disciplina todas as sextas-feiras,
observam a regra do silêncio, não falam umas com as outras senão nas
horas de recreio, que são muito curtas, usam burel — vestimentas de lã
grosseira — durante seis meses, de 14 de setembro, dia da Exaltação da
Santa Cruz, até a Páscoa. Esses seis meses são de moderação, a regra vale
o ano inteiro, mas esse burel, insuportável nos calores do verão, produzia
febres e espasmos nervosos; foi preciso restringir seu uso. Apesar dessa
modificação, quando as religiosas, em 14 de setembro, colocam essa
vestimenta, passam três ou quatro dias com febre. Obediência, pobreza,
castidade e estabilidade na clausura, são esses seus votos, agravados pelos
rigores da regra.
A prioresa é eleita por três anos pelas madres vocais, assim chamadas
por terem voz nos capítulos. Uma prioresa não pode ser reeleita mais que
duas vezes, o que fixa em nove anos seu mais longo possível reinado.
Elas nunca veem o padre oficiante, que sempre lhes é ocultado por
uma sarja estendida a quase três metros de altura. Durante o sermão,
quando o pregador está na capela, abaixam o véu sobre o rosto; devem
falar baixo sempre, andar com os olhos voltados para o chão e a cabeça
inclinada. Um único homem pode entrar no convento, o arcebispo da
diocese.
E ainda um outro, o jardineiro; mas já é um velho, e, para que ele ande
constantemente só no jardim e as religiosas sejam advertidas de sua
presença, traz um guizo no joelho.
Elas são submissas à prioresa, com uma submissão absoluta e passiva.
É a sujeição canônica em toda a sua abnegação. Como à voz do Cristo, ut
voci Christi, a um gesto, ao primeiro sinal, ad nutum, ad primum signum,
imediatamente, com prazer, com perseverança, com uma certa obediência
cega, prompte, hilariter, perseveranter, et coeca quadam obedientia, como
a lima na mão do artífice, quasi limam in manibus fabri, não podendo ler
nem escrever o que quer que seja sem permissão expressa, legere vel
scribere non addiscerit sine expressa superioris licentia.
Revezando-se, cada uma delas faz o que chamam de reparação. A
reparação é a prece por todos os pecados, por todos os erros, por todas as
desordens, por todas as violações, por todas as iniquidades, por todos os
crimes que se cometem sobre a terra. Durante doze horas consecutivas, das
quatro da tarde até as quatro da manhã, ou das quatro da manhã até as
quatro da tarde, a irmã que faz a reparação permanece de joelhos no chão,
diante do Santíssimo Sacramento, as mãos juntas, uma corda ao pescoço.
Quando o cansaço se torna insuportável, ela se prostra, de bruços, o rosto
no chão e os braços em cruz; nisso consiste todo o seu alívio. Nessa
atitude, ora por todos os culpados do universo. Isso é de uma grandeza que
chega ao sublime.
Como esse ato é cumprido diante de um poste, no alto do qual queima
uma vela, indistintamente se diz fazer a reparação ou ficar no poste. As
religiosas até preferem, por humildade, a última expressão, que encerra
uma ideia de suplício e aviltamento.
Fazer a reparação é uma função em que a alma toda se absorve. A
irmã, em oração diante do poste, não se voltaria nem que um raio caísse a
suas costas.
Além disso, há sempre uma religiosa de joelhos diante do Santíssimo
Sacramento, assim permanecendo por uma hora. Elas se revezam, como os
soldados de sentinela. Assim é a Adoração Perpétua.
As prioresas e as madres adotam quase sempre nomes marcados por
uma gravidade particular, que lembram, não os santos ou os mártires, mas
momentos da vida de Jesus Cristo, como, por exemplo, madre Natividade,
madre Conceição, madre Apresentação, madre Paixão. No entanto, não são
proibidos os nomes de santas.
Quem as vê, nunca vê mais que suas bocas.
Todas têm os dentes amarelos. Nunca entrou uma escova de dentes no
convento. Escovar os dentes é como estar no alto de uma escada embaixo
da qual o que existe é: perder a alma. Elas não dizem de coisa alguma meu
ou minha. Não têm nada propriamente seu, nem devem afeiçoar-se a nada.
De todas as coisas dizem nosso: nosso véu, nosso rosário; se falassem de
sua roupa diriam nossa roupa. Às vezes, ligam-se a algum pequeno objeto,
a um livro de orações, a uma relíquia, a uma medalha benta. Assim que
percebem que começaram a se afeiçoar a esse objeto, devem doá-lo.
Lembram-se do dito de Santa Teresa, a quem uma grande dama, na ocasião
em que entrava para sua Ordem, disse: “Permita-me, madre, que eu mande
buscar uma Bíblia da qual gosto muito”. Ah! Gostas muito de alguma
coisa! Nesse caso, não entres nesta casa!
A quem quer que seja, é proibido fechar-se, ter um quarto, um lugar
seu. Vivem em celas abertas. Quando se encontram, uma delas diz:
Louvado e adorado seja o Santíssimo Sacramento do altar! E a outra
responde: Para sempre. Mesma cerimônia quando uma bate à porta da
outra. Assim que a porta foi tocada, ouve-se do outro lado uma voz suave
dizer precipitadamente: Para sempre! Como todas as práticas, isso se
torna maquinal com o uso, e às vezes uma diz para sempre antes que a
outra tenha tempo de dizer: Louvado e adorado seja o Santíssimo
Sacramento do altar! — o que, aliás, é bastante longo.
Entre as visitandinas, a que entra diz: Ave Maria, e a outra responde:
Gratia plena. É seu bom-dia, efetivamente “cheio de graça”.
A cada hora do dia, três badaladas suplementares soam no campanário
da igreja do convento. A esse sinal, prioresa, madres vocais, professas,
noviças, postulantes, todas interrompem o que estão dizendo, fazendo ou
pensando e dizem todas ao mesmo tempo, se são cinco horas, por
exemplo: Às cinco horas e a qualquer hora louvado e adorado seja o
Santíssimo Sacramento do altar! Se são oito horas: Às oito horas e a
qualquer hora, etc., e assim sucessivamente, de acordo com a hora que for.
Esse costume, que tem por finalidade romper o pensamento, voltando-
o sempre para Deus, existe em muitas comunidades, com diferenças
somente na fórmula.
Assim, na comunidade do Menino Jesus dizem: Na presente hora e a
qualquer hora, que o amor de Jesus encha meu coração!
As bernardinas-beneditinas de Martin Verga, enclausuradas há
cinquenta anos no Petit-Picpus, cantam os ofícios em uma salmodia grave,
cantochão puro, e sempre a plenos pulmões, durante todo o ofício. Toda
vez que há um asterisco no missal, fazem uma pausa e dizem em voz
baixa: Jesus, Maria, José. No ofício dos mortos, cantam em tom tão baixo
que é com dificuldade que uma voz feminina consegue descer até ali. O
efeito resultante é impressionante e trágico.
As freiras do Petit-Picpus mandaram fazer um jazigo sob seu altar-mor
como sepultura para sua comunidade. O governo, como elas dizem, não
permitiu que esse jazigo recebesse os féretros. Elas então saíam do
convento quando morriam, o que as afligia e consternava como se fosse
uma infração.
Haviam conseguido, medíocre consolação, ser enterradas em uma hora
especial e em um lugar reservado, no antigo cemitério Vaugirard, que fora
construído em terreno outrora pertencente à comunidade.
Às quintas-feiras, essas religiosas ouvem a missa solene, as vésperas e
todos os ofícios, como nos domingos. Além disso, observam
escrupulosamente todas as pequenas festas, desconhecidas das pessoas em
geral, que antes a Igreja prodigalizava na França, e ainda prodigaliza na
Espanha e na Itália. Seu tempo de permanência na capela é imenso.
Quanto ao número e duração de suas preces, não podemos dar melhor ideia
do que citando as palavras ingênuas de uma delas: As preces das
postulantes são assustadoras, as preces das noviças ainda piores e as
preces das professas muito piores ainda.
Uma vez por semana, reúne-se o capítulo; a prioresa preside, as
madres vocais assistem. Cada irmã vem, por sua vez, ajoelhar-se no chão e
confessar em voz alta, diante de todas, as faltas e pecados que cometeu
naquela semana. Após cada confissão, as madres vocais se consultam, e
infligem, bem alto, as penitências.
Além da confissão em voz alta, para a qual reservam as faltas de pouca
gravidade, têm para as faltas veniais o que elas chamam de culpa. Fazer
sua culpa consiste em ficar, durante o ofício, de bruços no chão, diante da
prioresa, até que esta, que sempre deve ser chamada de nossa madre,
advirta a paciente, por meio de uma batidinha em seu banco de madeira,
de que pode levantar-se. Fazem a culpa por muito pouca coisa, um copo
quebrado, um véu rasgado, o atraso involuntário de alguns segundos para
um ofício, uma nota desafinada na igreja, etc., já é o bastante. A culpa é
inteiramente espontânea; é a própria culpada — palavra aqui
etimologicamente empregada — que se julga e se impõe o castigo. Nos
domingos e dias santos, os ofícios são salmodiados por quatro madres
cantoras diante de uma grande estante de quatro faces. Certo dia, uma das
madres cantoras entoou um salmo que começava por Ecce; porém, em vez
de Ecce, disse em voz alta estas três notas: dó, si, sol; sofreu por essa
distração uma culpa que durou todo o tempo do ofício. A falta tornara-se
enorme porque o capítulo todo riu.
Quando uma das religiosas é chamada ao locutório, mesmo que seja a
prioresa, abaixa o véu de modo a não deixar ver mais do que sua boca,
como já mencionamos.
Só a prioresa pode comunicar-se com estranhos. As outras só podem
ver, e bem raramente, os parentes mais próximos. Se por acaso uma pessoa
de fora se apresentar para ver alguma religiosa que tenha conhecido ou
amado anteriormente, precisa fazer uma verdadeira negociação. Se for
uma mulher, algumas vezes a autorização é concedida; a religiosa se
aproxima e lhe falam através das janelas fechadas, que só se abrem para
uma mãe ou uma irmã. Nem é necessário dizer que a permissão é sempre
negada aos homens.
Assim é a regra de São Bento, agravada por Martin Verga.
Essas religiosas não são alegres, coradas e joviais como muitas vezes o
são as filhas de outras Ordens. São pálidas e sérias. De 1825 a 1830, três
delas enlouqueceram.

III. SEVERIDADES
Passam pelo menos dois anos como postulantes, muitas vezes quatro; e
quatro como noviças. É raro que os votos definitivos possam ser
pronunciados antes dos vinte e três ou vinte e quatro anos. As bernardinas-
beneditinas de Martin Verga não admitem viúvas em sua Ordem.
Em suas celas, entregam-se a muitas macerações desconhecidas, das
quais nunca devem falar.
No dia em que uma noviça torna-se professa, vestem-na com seus mais
belos enfeites, penteiam e enrolam seus cabelos e põem neles uma tiara de
rosas brancas; em seguida ela se prosterna, estendem sobre ela um grande
véu preto e cantam o ofício dos mortos. Então as religiosas se dividem em
duas fileiras, uma passa perto dela e diz, em tom lastimoso: nossa irmã
morreu, a outra fileira responde em tom alegre: está viva em Jesus Cristo!
Na época em que se passa esta história, havia um pensionato junto ao
convento. Pensionato de jovens nobres, a maioria rica, entre as quais se
distinguiam as senhoritas de Sainte-Aulaire e de Bélissen, e uma inglesa
que tinha o ilustre sobrenome católico de Talbot. Essas jovens, educadas
por aquelas religiosas entre quatro paredes, cresceram com horror ao
mundo e ao século. Um dia, uma delas nos disse: Ver o calçamento da rua
fazia-me estremecer da cabeça aos pés. Andavam vestidas de azul com
uma touca branca e um Espírito Santo de cobre ou prata dourada no peito.
Em certos dias de grande festa, particularmente no dia de Santa Marta,
permitiam, como extremo favor e suprema felicidade, que se vestissem
como religiosas e fizessem os ofícios e as práticas de São Bento durante o
dia inteiro. Nos primeiros tempos, as religiosas emprestavam-lhes suas
vestes pretas; mas isso pareceu profano, e a prioresa proibiu. Tal
empréstimo só era permitido às noviças. Deve-se notar que essas
representações, decerto toleradas e estimuladas no convento por um
secreto espírito de proselitismo, e para dar àquelas crianças um gosto
antecipado pelo santo hábito, eram uma felicidade real e uma verdadeira
recreação para as pensionistas. Divertiam-se simplesmente com aquilo.
Era novidade, aquilo as transformava. Cândidas razões infantis, que não
chegam, todavia, a fazer-nos compreender, a nós, mundanos, a felicidade
de segurar um aspersório e de ficar de pé horas seguidas, cantando em
quarteto diante de uma estante.
As alunas, excetuando-se as austeridades, se conformavam com todas
as práticas do convento. Houve uma jovem que, mesmo voltando ao
mundo, e após vários anos de casada, ainda não perdera o costume de dizer
apressadamente: para sempre! todas as vezes que batiam à sua porta. Do
mesmo modo que as religiosas, as pensionistas só viam os parentes no
locutório; nem suas mães obtinham permissão para abraçá-las. Um
exemplo que mostra até onde chegava a severidade a esse respeito: um dia,
uma jovem foi visitada por sua mãe, que estava acompanhada por uma
outra filhinha de três anos. A pequena chorava, pois queria abraçar a irmã.
Impossível. A mãe suplicou que fosse ao menos permitido à criança passar
a mãozinha pela grade para a irmã beijar. Também isso foi recusado, quase
escandalosamente.

IV. ALEGRIAS
Nem por isso aquelas jovens deixavam de encher a severa casa de
recordações agradáveis.
Em certos momentos, a infância resplandecia naquele claustro. Hora
do recreio. Uma porta girava em seu eixo; os passarinhos exclamavam:
“Bom! Aí vêm as crianças!” Uma irrupção de juventude inundava aquele
jardim, disposto em forma de cruz como uma mortalha. Rostos radiantes,
frontes alvas, olhos ingênuos cheios de alegre brilho, todo tipo de aurora
se espalhava naquelas trevas. Após os salmos, os sinos, os repiques, os
dobres, os ofícios, de repente explodia aquele rumor de meninas, mais
suave que o das abelhas. Abria-se a colmeia da alegria e cada uma trazia
seu mel. Brincavam, chamavam umas pelas outras, reuniam-se em grupos,
corriam; belos dentinhos brancos tagarelavam em todo canto; os véus, de
longe, vigiavam os risos, as sombras espiavam os brilhos, mas que
importava? Elas brilhavam e riam. Aqueles quatro muros lúgubres tinham
seu minuto de encanto. Assistiam, vagamente branqueados pelo reflexo de
tamanha alegria, àquele doce turbilhão de enxames. Era como uma chuva
de rosas atravessando aquele luto.
As jovens se divertiam sob a vigilância das religiosas; o olhar da
impecabilidade não constrange a inocência. Graças àquelas crianças, em
meio a tantas horas austeras, havia também a hora inocente. As pequenas
saltavam, as maiores dançavam. Naquele claustro, as brincadeiras eram
entremeadas de céu. Não havia nada mais encantador e sagrado que todas
aquelas almas desabrochando. Homero viria ali sorrir em companhia de
Perrault. Naquele escuro jardim havia juventude, saúde, barulho, gritos,
deslumbramento, prazer, felicidade, suficientes para desenrugar a fronte
de todas as avós, tanto as da epopeia como as do conto, tanto as do trono
como as da choupana, desde Hécuba até Mère-Grand.
Diziam-se naquela casa, mais talvez do que em qualquer outra, esses
ditos de criança tão graciosos, e que fazem rir, com um riso cheio de
devaneio. Foi entre aquelas quatro fúnebres paredes que uma criança de
cinco anos um dia exclamou: Madre! Uma grande me disse que só me
faltam nove anos e dez meses para ficar aqui. Que felicidade!
Foi também ali que se deu este diálogo memorável:
UMA MADRE VOCAL — Por que está chorando, filhinha?
A CRIANÇA (de seis anos) soluçando — Eu disse a Alix que eu sabia
a história da França. Ela disse que eu não sabia, mas eu sei.
ALIX (a grande, de nove anos) — Mas ela não sabe.
A MADRE — Como assim, minha filha?
ALIX — Ela falou para eu abrir um livro ao acaso e lhe fazer qualquer
pergunta do livro, e ela responderia.
— E então?
— Ela não respondeu.
— Vamos ver. O que você lhe perguntou?
— Eu abri o livro ao acaso, como ela disse, e fiz a primeira pergunta
que encontrei.
— E que pergunta foi?
— Foi esta: Que aconteceu depois?
Foi ali que a seguinte observação foi feita a respeito de um periquito
meio guloso, que pertencia a uma das pensionistas:
— Que engraçadinho! Ele come só o que está sobre o pão, parece
gente!
Foi em uma das lajes desse claustro que a seguinte confissão, de uma
pecadora de sete anos, foi encontrada, escrita de antemão para que não se
esquecesse:

“— Pai, acuso-me de ter sido avarenta.


— Pai, acuso-me de ter cometido adultério.
— Pai, acuso-me de ter levantado meus olhares para os homens”.

Foi sobre a relva desse jardim que o seguinte conto foi improvisado
por uma boca rosada de seis anos, e ouvido por olhos azuis de quatro a
cinco anos:
“Era uma vez três galinhos que viviam num lugar onde havia muitas
flores. Eles colheram as flores e as colocaram em seus bolsos. Depois
colheram as folhas e as colocaram em seus brinquedos. Mas nesse lugar
havia um lobo e muitos bosques; e o lobo ficava no bosque, e ele comeu os
galinhos”.
E mais este outro poema:

“Ouviu-se uma pancada.


Foi Polichinelo que bateu no gato.
Aquilo não lhe fez bem, aquilo o machucou.
Então, uma senhora colocou Polichinelo na prisão”.

Foi ali que uma pequena abandonada, educada por caridade no


convento, disse estas palavras doces e dolorosas. Ela ouvia as outras
falarem de suas mães, e murmurou em seu canto:

— Minha mãe não estava lá quando eu nasci!

Havia no convento uma irmã rodeira gorda, que estava sempre


correndo pelos corredores com seu molho de chaves; chamava-se Agathe.
As grandes grandes — com mais de dez anos — chamavam-na de
Agathocles.1
O refeitório, grande sala oblonga e quadrada, que só recebia claridade
por uma pequena abertura em arco ao nível do jardim, era um lugar escuro
e úmido e, como as crianças diziam, cheio de bichos. Todos os lugares
circunvizinhos lhe forneciam seu contingente de insetos. Cada um dos
quatro cantos havia recebido, na linguagem das pensionistas, um nome
particular e expressivo. Havia o canto das Aranhas, o canto das Lagartas, o
canto dos Bichos-da-Seda e o canto dos Grilos. O dos Grilos ficava
próximo à cozinha e era muito estimado; ali sentia-se menos frio que em
outros lugares. Do refeitório, os nomes passaram ao pensionato, servindo
para distinguir, nele, como no antigo Colégio Mazarin, quatro nações.
Cada aluna era de uma dessas quatro nações, conforme o canto do
refeitório em que se sentava na hora das refeições. Um dia, fazendo a
visita pastoral, o arcebispo viu entrar na sala de aula por onde passava uma
bela garota, muito corada, com admiráveis cabelos louros, e perguntou a
outra pensionista, encantadora moreninha de rosto viçoso, que estava perto
dele:
— Quem é aquela ali?
— É uma aranha, Monsenhor.
— Oh! E a outra?
— É um grilo.
— E aquela outra?
— É uma lagarta.
— Verdade? E você, o que é?
— Eu sou um bicho-da-seda, Monsenhor.
Cada casa desse gênero tem suas particularidades. No começo deste
século, Écouen era um desses lugares graciosos e severos onde crescia, sob
uma sombra quase sagrada, a infância das meninas. Em Écouen, para
tomar lugar na procissão do Santíssimo Sacramento, fazia-se distinção
entre virgens e floristas. Havia também “os pálios” e “os incensórios”,
umas levando os cordões do pálio, e as outras incensando o Santíssimo
Sacramento. As flores, de direito, retornavam às floristas. Na frente, iam
quatro “virgens”. Na manhã desse grandioso dia, não era raro ouvir-se
perguntar nos dormitórios:
— Quem é virgem?
A senhora Campan contava o que uma “pequena” de sete anos disse a
uma “grande”, de dezesseis, que ia à frente da procissão, enquanto ela, a
pequena, ia bem atrás:
— Você é virgem, mas eu não sou.

V. DISTRAÇÕES
Por cima da porta do refeitório estava escrita em grandes letras pretas
esta oração que chamavam Pai-nosso branco, e que tinha como virtude
levar as pessoas diretamente ao paraíso:

“Pequeno pai-nosso branco, que Deus fez, que Deus designou e que Deus colocou no
paraíso. À noite, indo deitar, encontrei em minha cama três anjos deitados: um aos pés, dois
à cabeceira, a boa Virgem Maria no meio, dizendo-me para deitar e nada temer. O bom
Deus é meu pai, a boa Virgem é minha mãe, os três apóstolos são meus irmãos e as três
virgens minhas irmãs. Na camisa em que Deus nasceu, meu corpo está envolto; a cruz de
Santa Margarida em meu peito está gravada; a senhora Virgem anda pelos campos,
chorando, à procura de Deus, e encontra São João. São João, de onde vem o senhor? Venho
de Ave Salus. Não viu por lá o bom Deus? Ele está na árvore da cruz, os pés pendentes, as
mãos pregadas, um chapeuzinho de espinhos brancos na cabeça. Quem isso rezar três vezes
à noite, três vezes de manhã, no final, o paraíso ganhará”.

Em 1827, essa oração característica havia desaparecido da parede sob


uma tripla camada de cal. Nestas alturas, ela acaba de se apagar da
memória de algumas jovens de então, hoje velhas senhoras.
Um grande crucifixo pregado na parede completava a decoração desse
refeitório, cuja única porta, como julgamos já ter dito, dava para o jardim.
Duas mesas estreitas, ladeadas cada uma por dois bancos de madeira,
formavam duas longas linhas paralelas de um lado ao outro do refeitório.
As paredes eram brancas, as mesas pretas; essas duas cores de luto são o
único matiz dos conventos. As refeições eram toscas, a comida das
próprias meninas, severa. Um só prato, carne com legumes, ou peixe
salgado, tal era o luxo. Essa coisa comum, reservada apenas às
pensionistas, era, no entanto, uma exceção. As meninas comiam caladas,
sob a vigilância da madre de serviço, que, de quando em quando, se
alguma mosca se atrevia a voar ou zunir, contra as regras, abria e fechava
ruidosamente um livro de madeira. Esse silêncio era temperado com a
vida dos santos, lida em voz alta em um pequeno púlpito situado aos pés
do crucifixo. A leitora era uma educanda “grande”, que mudava a cada
semana. Sobre a mesa sem toalha, em intervalos, havia algumas terrinas
onde as próprias educandas lavavam seu prato e seus talheres, e às vezes
jogavam algum resto, pedaço de carne dura ou de peixe estragado; mas
isso era punido. Chamavam essas terrinas de rodas de água.
A menina que quebrasse o silêncio tinha de fazer uma “cruz de
língua”. Onde? No chão. Lambendo o piso. O pó, fim de todas as alegrias,
era o encarregado de castigar aquelas pobres pétalas de rosa, culpadas de
murmurar.
Havia no convento um livro do qual nunca foi impresso senão um
único exemplar, e que era proibido ler. Trata-se da regra de São Bento.
Arcano em que nenhum olhar profano deve penetrar. Nemo regulas, seu
constitutiones nostras, externis communicabit.2
Um dia, as internas conseguiram pegar esse livro e puseram-se a lê-lo
avidamente, leitura muitas vezes interrompida pelo terror de serem
surpreendidas, o que as fazia fechar o volume precipitadamente. Desse
grande perigo que correram, não tiraram mais que um prazer medíocre.
Algumas páginas ininteligíveis sobre os pecados dos rapazes, eis o que
acharam de “mais interessante”.
Brincavam em uma alameda do jardim guarnecida com umas magras
árvores frutíferas. Apesar da extrema vigilância e da severidade dos
castigos, quando o vento havia agitado as árvores, às vezes conseguiam
apanhar furtivamente alguma maçã verde, ou um damasco estragado ou
uma pera bichada.
Agora, deixarei falar uma carta que tenho sob os olhos, carta escrita há
vinte e cinco anos por uma antiga pensionista, hoje duquesa de…, uma das
senhoras mais elegantes de Paris. Cito-a textualmente:
“Cada uma esconde sua pera ou sua maçã como pode. Quando subimos
para colocar o véu na cama, aguardando a hora da refeição, a deixamos
debaixo do travesseiro e, à noite, comemos depois de deitadas; e, quando
não é possível, comemos dentro do banheiro”.
Essa era uma de suas mais vivas alegrias.
Uma vez, ainda por ocasião de uma visita do senhor arcebispo ao
convento, uma das jovens, a senhorita Bouchard, parente dos
Montmorency, apostou que lhe pediria um dia de folga, enormidade em
uma comunidade tão austera. A aposta foi aceita, mas nenhuma das que
apostaram acreditava que fosse possível. Chegado o momento, quando o
arcebispo passava diante das internas, a senhorita Bouchard, para
indescritível espanto de suas companheiras, saiu da fila e disse:
— Monsenhor, um dia de folga.
A senhorita Bouchard era alta e faceira, com o mais belo rostinho
rosado do mundo. Monsenhor de Quélen sorriu e disse: Como assim,
minha cara menina, um dia de folga! Três dias, se quiser. Concedo três
dias.
A prioresa não podia fazer nada, era a palavra do arcebispo. Escândalo
para o convento, mas alegria para as internas. Pode-se imaginar o efeito
produzido.
No entanto, esse melancólico claustro não era assim tão bem cercado
de muros que a vida das paixões de fora, que o drama, que até mesmo o
romance não penetrassem nele. Para prová-lo, vamos nos limitar a
constatar aqui, e a indicar brevemente, um fato real e incontestável, que
aliás não tem em si relação alguma, nem se prende por nenhum fio, à
história que contamos. Vamos mencioná-lo apenas para completar no
espírito do leitor a fisionomia do convento.
Por volta daquela época, então, havia no convento uma pessoa
misteriosa que não era religiosa, a quem tratavam com grande respeito e
chamavam de senhora Albertine. Nada sabia-se dela, a não ser que era
louca, e que passava por morta. Por trás dessa história, dizia-se, havia
arranjos de fortuna necessários para um grande casamento.
Essa senhora, de apenas trinta anos, morena, bastante bela, olhava
vagamente com seus grandes olhos negros. Será que enxergava?
Duvidava-se disso. Deslizava, mais que andava; nunca falava; nem bem
podia-se ter certeza de que respirasse. Suas narinas eram afiladas e lívidas
como o seriam após o último suspiro. Tocar sua mão era como tocar a
neve. Ela tinha uma estranha graça espectral. Onde ela entrava, sentia-se
frio. Um dia, uma irmã, vendo-a passar, disse a uma outra: “Ela passa por
morta”. “Talvez esteja mesmo”, respondeu a outra. Sobre a senhora
Albertine contavam centenas de histórias. Era a eterna curiosidade das
internas. Na capela, havia uma tribuna que chamavam de Olho de Boi. Era
dessa tribuna, que tinha apenas uma abertura circular, um olho de boi, que
a senhora Albertine assistia aos ofícios. E estava sempre sozinha ali
porque, da tribuna, que ficava no primeiro andar, podia-se ver o pregador
ou o celebrante, o que era proibido às religiosas. Um dia, o púlpito estava
ocupado por um jovem sacerdote da alta hierarquia, o senhor duque de
Rohan, par de França, oficial dos mosqueteiros vermelhos em 1815,
quando era príncipe de Léon, e que morreu, após 1830, como cardeal e
arcebispo de Besançon. Era a primeira vez que monsenhor de Rohan
pregava no convento do Petit-Picpus. A senhora Albertine normalmente
assistia aos sermões e ofícios em perfeita calma e em completa
imobilidade. Naquele dia, assim que avistou monsenhor de Rohan,
levantou o corpo e disse em voz alta no silêncio da capela: Olhe! Auguste!
Toda a comunidade, surpresa, voltou a cabeça, o pregador ergueu os olhos,
mas a senhora Albertine havia recaído em sua imobilidade. Um sopro do
mundo exterior, um clarão de vida haviam passado, por um instante, sobre
aquela figura glacial e sem brilho; depois tudo se esvaneceu, e a louca
voltou a ser cadáver.
Contudo, essas duas palavras causaram o falatório de tudo o que, no
convento, era capaz de falar. Quanta coisa havia naquele Olhe! Auguste!
Quantas revelações! Efetivamente, monsenhor de Rohan chamava-se
Auguste. Era evidente que Albertine saíra da classe mais elevada da
sociedade, pois conhecia monsenhor de Rohan; que ela própria ali ocupava
destacado lugar, já que falava de tão importante senhor com tanta
familiaridade; e que tinha com ele alguma relação, de parentesco talvez,
mas com certeza muito estreita, pois conhecia seu nome de batismo.
Duas duquesas muitíssimo severas, as senhoras de Choiseul e de
Sérent, visitavam a comunidade com frequência, decerto ali entrando em
virtude do privilégio Magnates mulieres, e causavam um grande medo no
pensionato. Quando elas passavam, todas as pobres jovens tremiam e
baixavam os olhos.
Monsenhor de Rohan era, sem se dar conta, objeto da atenção das
internas. Naquela época, enquanto esperava pelo episcopado, acabara de
ser nomeado vigário-geral do arcebispo de Paris. Um de seus costumes era
ir cantar nos ofícios da capela das religiosas do Petit-Picpus. Nenhuma das
jovens reclusas podia enxergá-lo, devido à cortina de sarja, mas ele tinha
uma voz agradável e um tanto fina, que elas conseguiam reconhecer e
distinguir. Havia sido mosqueteiro, e também diziam que era muito
elegante, muito bem penteado, os belos cabelos castanhos enrolados em
torno da cabeça, que usava uma larga e magnífica faixa de chamalote, e
que sua batina tinha o corte mais elegante do mundo. Ele ocupava bastante
todas aquelas imaginações de dezesseis anos.
Nenhum ruído exterior penetrava no convento.
No entanto, houve um ano em que o som de uma flauta chegou até lá.
Foi um acontecimento, do qual as internas de então ainda hoje se
lembram.
Era uma flauta que alguém tocava na vizinhança. Aquela flauta tocava
sempre a mesma cantiga, hoje quase esquecida: Ma Zétulbé, viens régner
sur mon âme [Minha Zétulbé, vem reinar em minha alma], que se ouvia
duas ou três vezes durante o dia. As jovens passavam horas inteiras a
escutá-la, as madres ficavam transtornadas, os cérebros trabalhavam,
choviam os castigos. Isso durou muitos meses. Todas as internas estavam
mais ou menos enamoradas do músico desconhecido. Cada qual
imaginava-se Zétulbé. O som da flauta vinha dos lados da rua Droit-Mur;
elas teriam dado tudo, arriscado tudo, tentado tudo para ver, nem que por
um só segundo, entrever, avistar o “jovem” que tão deliciosamente tocava
aquela flauta, e que ao mesmo tempo, sem o saber, tocava todas aquelas
almas. Houve algumas que escaparam por uma porta de serviço e subiram
ao terceiro andar, que dava para a rua Droit-Mur, tentando olhar pelas
frestas das grades. Impossível. Uma chegou a passar o braço pela grade
acima da cabeça e a agitar seu lenço branco. Duas outras foram ainda mais
ousadas. Arranjaram meio de subir em um telhado, arriscando-se, e
conseguiram, finalmente, ver o “jovem”. Era um homem emigrado, velho,
cego e doente, que tocava flauta em seu sótão para matar o tédio.

VI. O PEQUENO CONVENTO


Havia no recinto do Petit-Picpus três edifícios inteiramente distintos, o
grande convento, habitado pelas religiosas, o internato, onde ficavam as
alunas, e finalmente o chamado pequeno convento. Era uma parte da
habitação com jardim, onde viviam em comum todo tipo de velhas
religiosas pertencentes a diversas Ordens, restos dos claustros destruídos
pela Revolução; uma reunião de hábitos pretos, pardos e brancos, de todas
as comunidades e de todas as variedades possíveis; o que podia ser
chamado, se tal agrupamento de palavras fosse permitido, uma espécie de
convento-arlequim.
Desde o Império, fora concedido a todas aquelas pobres mulheres
dispersas e desterradas ali se abrigarem sob as asas das beneditinas–
bernardinas. O governo pagava-lhes uma pequena pensão; as freiras do
Petit-Picpus receberam-nas com desvelo. Era uma mistura extravagante.
Cada qual seguia sua regra. Às vezes, era permitido às internas, como
grande recreação, ir visitá-las, o que fez com que aquelas tenras memórias
tenham guardado, entre outras, a lembrança de madre Sainte-Basile, de
madre Sainte-Scolastique e de madre Jacob.
Uma dessas refugiadas praticamente tornava a encontrar-se em casa.
Era uma religiosa de Sainte-Aure, a única sobrevivente de sua Ordem. O
antigo convento das freiras de Sainte-Aure ocupava, desde o começo do
século XVIII, exatamente a mesma casa do Petit-Picpus que depois veio a
pertencer às beneditinas de Martin Verga. Essa santa mulher, demasiado
pobre para vestir o magnífico hábito de sua Ordem, que consistia em um
vestido branco com escapulário escarlate, revestira piedosamente com ele
um pequeno manequim que gostava de mostrar, legando-o, ao morrer, ao
convento. Em 1824, daquela Ordem não restava mais do que uma
religiosa; hoje não resta mais do que uma boneca.
Além dessas dignas madres, algumas senhoras da sociedade obtiveram
da prioresa, como a senhora Albertine, permissão para se recolherem no
pequeno convento. Entre elas estavam as senhoras de Beaufort d’Hautpoul
e a marquesa Dufresne. Havia ainda outra, que nunca foi conhecida no
convento a não ser pelo incrível barulho que fazia ao assoar-se. As alunas
a chamavam de senhora Vacarmini.3
Por volta de 1820 ou 1821, a senhora de Genlis, que nessa época
redigia um pequeno periódico intitulado l’Intrépide [o Intrépido], pediu
para entrar para o convento do Petit-Picpus. O senhor duque de Orléans a
recomendava. Rumor na colmeia; as madres estremeciam. A senhora de
Genlis havia escrito romances. Mas ela declarou que era a primeira a
detestá-los, e também tinha chegado à sua fase de devoção feroz. Com a
ajuda de Deus, e também do príncipe, entrou. Foi embora depois de seis ou
oito meses, dando como motivo não haver sombra no jardim. As religiosas
ficaram encantadas com ela. Embora bastante idosa, ainda tocava harpa, e
muito bem.
Quando saiu, deixou sua marca em seu quarto. A senhora de Genlis era
supersticiosa e latinista. Essas duas palavras traçam-lhe um bom perfil.
Viam-se ainda, há alguns anos, colados na parte interna de um pequeno
armário do quarto onde guardava seu dinheiro e suas joias, estes cinco
versos latinos escritos por suas mãos com tinta vermelha em papel
amarelo, que, em sua opinião, tinham a virtude de afugentar os ladrões:

Imparibus meritis pendent tria corpora ramis:


Dismas et Gesmas, media est divina potestas;
Alta petit Dismas, infelix, infima, Gesmas.
Nos et res nostras conservet summa potestas.
Hos versus dicas, ne tu furto tua perdas.

Dos ramos pendem três corpos de diferentes méritos:


Dismas e Gesmas e, entre eles, o poder divino;
Dismas aspira ao céu; o infeliz Gesmas sonha com coisas sem

[importância.
Que o poder supremo nos proteja, a nós e a nossos bens.
Se disseres estes versos, não serás furtado.

Esses versos, escritos em latim do século XVI, levantam a questão de


saber se os dois ladrões do Calvário se chamavam, como comumente se
acredita, Dimas e Gestas, ou Dismas e Gesmas. Essa ortografia pode ter
contrariado as pretensões que tinha, no século passado, o visconde de
Gestas, de descender do mau ladrão.
De resto, a virtude útil atrelada a esses versos era artigo de fé na
Ordem das Hospitaleiras.
A igreja do convento, construída de modo a separar, como um
verdadeiro fosso, o grande convento do internato, era, bem entendido,
comum ao internato, ao grande convento e ao pequeno convento. Ali,
admitia-se até o público, por uma espécie de entrada isolada que dava para
a rua. Mas tudo era disposto de maneira que nenhuma das habitantes do
claustro pudesse ver um rosto de fora. Suponham uma igreja cujo coro
tivesse sido agarrado por uma mão gigantesca e dobrado, de modo a
formar, não como nas igrejas comuns, um prolongamento por trás do altar,
mas uma espécie de sala ou caverna escura à direita do celebrante;
suponham esta sala fechada pela cortina de mais de dois metros de altura,
da qual já falamos; juntem à sombra dessa cortina, em assentos de
madeira, as religiosas à esquerda, as internas à direita, as leigas e as
noviças ao fundo, e terão uma ideia das religiosas do Petit–Picpus
assistindo aos ofícios divinos. Essa caverna, que chamavam de coro,
comunicava-se com o claustro por meio de um corredor. A igreja recebia
luz pelo jardim.
Quando as religiosas assistiam a ofícios aos quais suas regras
impunham o silêncio, o público só percebia sua presença pelo som dos
assentos das cadeiras levantando-se ou abaixando-se com ruído.

VII. ALGUMAS SILHUETAS DAQUELA SOMBRA


Durante os seis anos que separam 1819 de 1825, a prioresa do Petit–
Picpus era a senhorita de Blemeur, que, na religião, chamava-se madre
Innocente. Descendia da família de Marguerite de Blemeur, autora de A
Vida dos Santos da Ordem de São Bento. Havia sido reeleita. Era uma
senhora de uns sessenta anos, baixa, gorda, “com voz de taquara rachada”,
diz a carta que já citamos; de resto, excelente pessoa, a única alegre em
todo o convento, e, por isso, adorada.
Madre Innocente tinha algo de sua ascendente Marguerite, que fora a
representante da família Dacier na Ordem. Era instruída, erudita, sábia,
competente, historiadora curiosa, repleta de latim, farta de grego, plena de
hebraico e mais beneditino que beneditina.
A subprioresa era uma velha religiosa espanhola, quase cega, Madre
Cineres.
As mais notáveis entre as vogais eram madre Sainte-Honorine,
tesoureira, madre Sainte-Gertrude, primeira mestra das noviças, madre
Saint-Ange, segunda mestra, madre Annonciation, sacristã, madre Saint-
Augustin, enfermeira, a única em todo o convento que era má; também
Madre Sainte-Mechtilde (senhorita Gauvain), muito nova e dotada de uma
voz admirável; madre des Anges (senhorita Drouet), que estivera no
convento Fillles-Dieu e no convento du Trésor, entre Gisors e Magny;
madre Saint-Joseph (senhorita de Cogolludo); madre Sainte-Adélaïde
(senhorita d’Auverney); madre Miséricorde (senhorita de Cifuentes, que
não conseguiu resistir às austeridades); madre Compassion (senhorita de
la Miltière, recebida aos sessenta anos, contra as regras, muito rica);
madre Providence (senhorita de Laudinière); madre Présentation
(senhorita de Siguenza), que foi prioresa em 1847; finalmente, madre
Sainte-Céligne (irmã do escultor Ceracchi), que enloqueceu, e madre
Sainte-Chantal (senhorita de Suzon), que enlouqueceu.
Havia também, entre as mais bonitas, uma encantadora moça de vinte
e três anos, natural da ilha Bourbon e descendente do cavaleiro Roze; em
sociedade fora chamada de senhorita Roze e no convento se chamava
madre Assomption.
Madre Sainte-Mechtilde, encarregada do canto e do coro, de bom
grado neles colocava as internas. Normalmente, tomava uma gama
completa delas, isto é, sete, de dez a dezesseis anos inclusive, vozes e
tamanhos combinados, a quem fazia cantar de pé, alinhadas lado a lado,
por fileiras de idade, desde a menor até a maior. Isso oferecia aos olhares
algo como uma gaita pastoril de moças, uma espécie de flauta viva de Pã
feita de anjos.
As irmãs serviçais, de quem as internas mais gostavam, eram a Irmã
Sainte-Euphrasie, a irmã Sainte-Marguerite, a irmã Sainte-Marthe, que
estava caducando, e a irmã Saint-Michel, cujo nariz grande as fazia rir.
Todas aquelas mulheres eram ternas para com as crianças. As
religiosas eram severas apenas com elas mesmas. Só acendiam o fogo no
internato, e a comida deste, comparada à do convento, era sofisticada. Ao
lado disso, muitos cuidados. Contudo, quando alguma menina passava
perto de uma religiosa e dirigia-lhe a palavra, a religiosa nunca respondia.
Essa regra do silêncio fizera com que, em todo o convento, a fala fosse
retirada das criaturas humanas e dada aos objetos inanimados. Ora era o
sino da igreja que falava, ora o chocalho do jardineiro. Uma sineta bem
ruidosa, colocada ao lado da irmã rodeira, e que se ouvia do convento
inteiro, indicava por toques variados, que eram uma espécie de telégrafo
acústico, todas as ações da vida material a cumprir, e chamava ao
locutório, quando necessário, essa ou aquela habitante do convento. Cada
pessoa e cada coisa tinha seu toque. Para a prioresa era um e um; para a
subprioresa um e dois. Seis-cinco anunciava a aula, de modo que as alunas
nunca diziam entrar em aula, mas ir a seis-cinco. Quatro–quatro era o
toque da senhora de Genlis, que se ouvia com frequência. É o diabo a
quatro, diziam as que não eram nada caridosas. Dezenove badaladas
anunciavam um grande acontecimento. Era a abertura da porta da
clausura, horrível chapa de ferro, eriçada de ferrolhos, que não girava nas
dobradiças senão perante o arcebispo.
Exceto ele e o jardineiro, como já dissemos, nenhum outro homem
entrava no convento. As internas ainda viam dois outros: um, o capelão,
abade Banès, velho e feio, que lhes era concedido contemplar no coro
através de uma grade; o outro, o professor de desenho, senhor Ansiaux,
que a carta da qual já foram lidas algumas linhas chama de senhor Anciot e
qualifica de horrível velhote corcunda.
Vê-se que todos os homens eram escolhidos.
Assim era aquela curiosa casa.

VIII. POST CORDA LAPIDES4


Após havermos esboçado a figura moral do convento, não será inútil
indicar, em poucas palavras, sua configuração material, da qual o leitor já
tem alguma ideia.
O convento Petit-Picpus-Saint-Antoine ocupava quase todo o trapézio
que resultava das intersecções da rua Polonceau, da rua Droit–Mur, da
viela Picpus e da ruazinha condenada, chamada nos antigos mapas de rua
Aumarais. Essas quatro ruas cercavam, à maneira de um fosso, aquele
trapézio. O convento compunha-se de vários edifícios e de um jardim. O
edifício principal, considerado em sua totalidade, era uma justaposição de
construções híbridas que, vistas do alto, desenhavam com bastante
exatidão uma forca pregada no chão. A haste mais comprida ocupava toda
a parte da rua Droit-Mur compreendida entre a viela Picpus e a rua
Polonceau; a haste pequena era uma alta, escura e severa fachada
gradeada, que dava para a viela Picpus; o portão com o número 62
marcava sua extremidade. Mais ou menos no meio da fachada, a poeira e
as cinzas deixavam esbranquiçada uma velha porta baixa, em arco, onde as
aranhas faziam suas teias, e que só se abria por uma ou duas horas aos
domingos, ou nas raras ocasiões em que o enterro de alguma religiosa saía
do convento. Era a entrada pública da igreja. O ângulo da forca era uma
sala quadrada que servia de copa, e que as religiosas chamavam de
despensa. Na haste mais longa ficavam os quartos das madres e das irmãs,
e o noviciato. Na haste mais curta, as cozinhas, o refeitório, paralelo ao
claustro, e a igreja.
Entre o portão número 62 e a esquina da ruazinha sem saída Aumarais,
ficava o internato, que não era visto de fora. O resto do trapézio formava o
jardim abaixo do nível da rua Polonceau, o que fazia os muros, pela parte
interior, serem ainda bem mais altos do que pela parte exterior. O jardim,
ligeiramente arredondado, tinha em seu centro, no alto de um monte, um
belo pinheiro pontiagudo e cônico, de onde partiam, como do centro de um
escudo, quatro grandes alamedas, e, dispostas duas a duas nas
ramificações das quatro grandes, oito pequenas, de maneira que, se o
jardim fosse circular, o plano geométrico das alamedas seria semelhante a
uma cruz colocada sobre uma roda. As alamedas, terminando todas nos
muros irregulares do jardim, tinham comprimentos desiguais. Eram
rodeadas de groselheiras. Ao fundo, uma alameda de grandes álamos ia
das ruínas do velho convento, que ficava na esquina da rua Droit-Mur, ao
edifício do pequeno convento, que ficava na esquina da ruazinha
Aumarais. Em frente ao pequeno convento existia o que se chamava de
pequeno jardim. Junte-se a esse conjunto um pátio, com todo tipo de
ângulos variados que formavam as construções inferiores, muralhas de
prisão, como única perspectiva e vizinhança a comprida linha negra de
telhados que orlava o outro lado da rua Polonceau, e será possível criar-se
uma imagem completa do que, há quarenta e cinco anos, era o convento
das bernardinas do Petit-Picpus. Essa santa moradia fora edificada
exatamente no local de um jogo de péla, famoso do século XIV ao século
XVI, chamado espelunca dos onze mil diabos.
Todas essas ruas eram das mais antigas de Paris. Esses nomes, Droit–
Mur e Aumarais, são bastante velhos; porém as ruas que designam são
ainda mais velhas. A ruazinha Aumarais já fora chamada de viela
Maugout, e a rua Droit-Mur de rua des Églantiers [roseiras bravas], porque
Deus desabrochava as flores antes que os homens talhassem as pedras.

IX. UM SÉCULO SOB UM ESCAPULÁRIO


Já que estamos tratando em detalhes o que antigamente fora o
convento do Petit-Picpus, e que ousamos abrir uma janela para dentro
desse discreto asilo, que o leitor nos permita ainda uma pequena digressão,
estranha à essência deste livro, mas característica e útil, por nos fazer
compreender que o próprio convento tem suas figuras originais.
Havia, no pequeno convento, uma centenária vinda da abadia de
Fontevrault. Antes da Revolução, havia pertencido à sociedade. Falava
muito do senhor de Miromesnil, chanceler na época de Luís XVI, e de uma
certa presidenta Duplat, que conhecera muito bem. Era seu prazer e sua
vaidade trazer sempre esses dois nomes às conversas. Falava maravilhas
da abadia de Fontevrault, dizia que parecia uma cidade, e que havia ruas
dentro do monastério.
Usava uma linguagem da região da Picardia que divertia as internas.
Todos os anos renovava solenemente seus votos, e, na ocasião em que
prestava juramento, dizia ao sacerdote: monsenhor São Francisco deu-o a
monsenhor São Julião, monsenhor São Julião deu-o a monsenhor São
Eusébio, monsenhor São Eusébio deu-o a monsenhor São Procópio, etc.,
etc.; assim como lhe dou, padre. E as internas riam, não às escondidas,
mas sob o véu, graciosos risinhos abafados que faziam as madres vocais
franzirem as sobrancelhas.
Outras vezes, a centenária contava histórias. Dizia que na juventude os
bernardinos não ficavam atrás dos mosqueteiros. Era um século que
falava, mas era o século XVIII. Contava o costume dos quatro vinhos das
regiões de Champanhe e Borgonha antes da Revolução. Quando um
importante personagem, um marechal da França, um príncipe, um duque,
um par, atravessava uma cidade da Borgonha ou de Champanhe, a câmara
municipal vinha fazer-lhe um discurso e lhe apresentava quatro taças de
prata contendo quatro vinhos diferentes. Na primeira taça, lia-se esta
inscrição: vinho de macaco; na segunda, vinho de leão; na terceira, vinho
de carneiro; na quarta, vinho de porco. Essas quatro inscrições exprimiam
os quatro graus de um beberrão: a primeira embriaguez, a que alegra; a
segunda, a que irrita; a terceira, a que entontece; a última, enfim, a que
embrutece.
Ela tinha em um armário, fechado a chave, um objeto misterioso que
muito estimava. As regras de Fontevrault não o proibiam. Não queria
mostrá-lo a ninguém. Fechava-se, o que a regra lhe permitia, e escondia-se
todas as vezes que queria contemplá-lo. Se ouvia alguém andando pelo
corredor, tornava a fechar o armário tão precipitadamente quanto lhe
permitiam suas velhas mãos. Quando lhe falavam a esse respeito, calava-
se, ela que gostava tanto de falar. As mais curiosas malograram diante de
seu silêncio e as mais tenazes diante de sua obstinação. Esse também era
um objeto de comentários para todas as ociosas ou entediadas do
convento. O que então poderia ser aquela coisa tão preciosa e secreta que
era o tesouro da centenária? Provavelmente algum livro santo? Algum
rosário raro? Alguma relíquia autêntica? Perdiam-se em conjecturas.
Quando a pobre velha morreu, correram ao armário, mais depressa talvez
do que convinha, e abriram-no. Encontraram o misterioso objeto
embrulhado em três panos, como uma patena benzida. Era um prato de
Faença representando cupidos esvoaçantes perseguidos por meninos
boticários armados com enormes seringas. A perseguição é repleta de
caretas e posturas cômicas. Um dos lindos cupidozinhos já estava
espetado. Debate-se, agita as asinhas, tentando ainda voar, mas o bufão ri
com um riso satânico. Moral: o amor vencido pela cólica. Esse prato, aliás
muito curioso, e que teve talvez a honra de sugerir uma ideia a Molière,
existia ainda em setembro de 1845; estava à venda na loja de um
comerciante de ferro-velho do bulevar Beaumarchais.
Essa boa senhora não queria receber nenhuma visita de fora porque,
dizia ela, o locutório era muito triste.

X. ORIGEM DA ADORAÇÃO PERPÉTUA


De resto, esse locutório quase sepulcral do qual temos tentado dar uma
ideia é um fato inteiramente local, que não se reproduz com a mesma
severidade em outros conventos. Em particular no convento da rua du
Temple, que, na verdade, era de outra ordem, as persianas negras eram
substituídas por cortinas escuras, e o locutório era uma sala assoalhada,
cujas janelas estavam emolduradas com musseline branca e as paredes
recebiam todo tipo de quadros, o retrato de uma beneditina com o rosto
descoberto, ramalhetes pintados e até uma cabeça de turco.
Era no jardim do convento da rua du Temple que se encontrava o
castanheiro-da-índia que passava pelo maior e mais belo da França, e que,
entre o bom povo do século XVIII, tinha a fama de ser o pai de todos os
castanheiros do reino.
Como já dissemos, o convento du Temple era ocupado pelas
beneditinas da Adoração Perpétua, beneditinas muito diferentes das que
estavam na obediência de Cister. A ordem da Adoração Perpétua não é
muito antiga, não remonta a mais de duzentos anos. Em 1649, o
Santíssimo Sacramento foi profanado duas vezes, com poucos dias de
intervalo, em duas igrejas de Paris, em Saint-Sulpice e em Saint-Jean en
Grève, sacrilégio horroroso e raro que encheu de comoção toda a cidade. O
senhor vigário-geral, prior de Saint-Germain-des- Près, ordenou uma
solene procissão, em que todo o seu clero tomou parte, e oficiou o núncio
do papa. Mas a expiação não foi suficiente para duas dignas pessoas, a
senhora de Courtin, marquesa de Boucs, e a condessa de Châteauvieux.
Aquele ultraje, embora passageiro, feito ao “augustíssimo sacramento do
altar”, não saía daquelas duas santas almas, parecendo-lhes que não podia
ser reparado senão por uma “adoração perpétua” em algum mosteiro de
freiras. Ambas, uma em 1652, a outra em 1653, doaram notáveis quantias
à madre Catherine de Bar, dita do Santo-Sacramento, religiosa beneditina,
para que fundasse, com aquele piedoso fim, um mosteiro da ordem de São
Bento; a primeira licença para esta fundação foi dada à madre Catherine
de Bar por monsenhor De Metz, abade de Saint-Germain, “com a condição
de que nenhuma moça pudesse ser admitida sem trazer trezentas libras de
pensão, que perfazem seis mil libras de capital”. Depois do abade de
Saint-Germain, o rei concedeu cartas-patentes, e tudo isso, a licença
abacial e as cartas régias, foi homologado em 1654 no Tribunal de Contas
e no Parlamento.
Essa é a origem e a consagração legal do estabelecimento das
Beneditinas da Adoração Perpétua do Santíssimo Sacramento em Paris.
Seu primeiro convento foi “construído todo novo” na rua Cassete, com
dinheiro das senhoras de Boucs e de Châteauvieux.
Essa ordem, como se vê, não se confundia com as beneditinas ditas de
Cister. O seu superior era o abade de Saint-Germain-des-Près, do mesmo
modo que o superior das freiras do Sacre-Coeur era o geral dos jesuítas, e
o das irmãs de caridade, o geral dos lazaristas.
Também era completamente diferente das bernardinas do Petit–Picpus,
cujo interior acabamos de mostrar. Em 1657, o papa Alexandre VII havia
autorizado, por uma licença especial, as bernardinas do Petit–Picpus a
praticarem a adoração perpétua à semelhança das beneditinas do
Santíssimo Sacramento. As duas ordens nem por isso deixaram de ser
inteiramente distintas.

XI. FIM DO PETIT-PICPUS


Desde o princípio da Restauração o convento do Petit-Picpus estava
em decadência; o que faz parte da morte geral da ordem, a qual, depois do
século XVIII, foi desaparecendo como todas as outras ordens religiosas. A
contemplação, assim como a oração, é uma necessidade da humanidade;
mas, como tudo o que a Revolução tocou, há de transformar-se, e, de
hostil, tornar-se favorável ao progresso social. A casa do Petit-Picpus
despovoava-se rapidamente. Em 1840, o pequeno convento havia
desaparecido e o internato também. Ali já não existiam nem as velhas
senhoras, nem as moças; umas estavam mortas, as outras tinham ido
embora. Volaverunt.5
A regra da Adoração Perpétua é de tal rigidez que assusta; as vocações
recuam e a ordem não recruta. Em 1845, ainda se fazia uma ou outra irmã
serviçal, mas religiosas professas não mais. Há quarenta anos, as
religiosas eram quase cem; há 15 anos, não eram mais que vinte e oito.
Quantas são hoje? Em 1847, a prioreza era nova, sinal de que o círculo da
escolha foi-se restringindo. Ela não tinha quarenta anos. À medida que o
número diminui, aumenta o cansaço; o serviço de cada uma se torna mais
penoso; via-se, desde então, aproximar-se o momento em que elas não
seriam mais que uma dúzia de ombros doloridos e alquebrados para
sustentar a pesada regra de São Bento. O fardo é implacável e continua o
mesmo, tanto para poucas como para muitas. Antes pesava, agora esmaga.
E elas também morrem. No tempo em que o autor deste livro ainda
morava em Paris, morreram duas. Uma tinha vinte e cinco anos, a outra
vinte e três. Esta pode dizer como Julia Alpinula: Hic jaceo, vixi annos
viginti et tres.6 Foi por causa dessa decadência que o convento renunciou à
educação das meninas.
Não podemos passar por esta extraordinária, desconhecida e escura
casa sem nela entrarmos e fazermos entrar conosco os espíritos que nos
acompanham e que nos ouvem contar, talvez com utilidade para alguns, a
melancólica história de Jean Valjean. Penetramos naquela comunidade
cheia de velhas práticas que hoje parecem tão novas. É o jardim fechado.
Hortus conclusus. Falamos deste lugar singular em detalhe, mas com
respeito, ao menos tanto quanto respeito e detalhe sejam conciliáveis.
Nem tudo compreendemos, mas não insultamos nada. Estamos a igual
distância do hosana de Joseph de Maistre, que termina por sagrar o algoz,
e do riso escarnecedor de Voltaire, que chega a zombar do crucifixo.
Ilogismo de Voltaire, seja dito de passagem, pois Voltaire defenderia
Jesus como defendia Calas; e exatamente, para aqueles que negam as
encarnações sobre-humanas, o que representa o crucifixo? O sábio
assassinado.
No século XIX, a ideia religiosa sofre uma crise. Desaprendem-se
certas coisas, o que é bom, contanto que, desaprendendo isso, se aprenda
aquilo. Nada de vazio no coração humano. Fazem-se certas demolições, e
é bom que sejam feitas, mas com a condição de serem seguidas de
reconstruções.
Enquanto esperamos, estudemos as coisas que já não existem. É
necessário conhecê-las, ainda que só para evitá-las. As contrafações do
passado tomam falsos nomes e gostam de ser chamadas de futuro. Este
fantasma, o passado, está sujeito a falsificar seu passaporte. Coloquemo-
nos a par da armadilha. Desconfiemos. O passado tem um rosto, a
superstição, e uma máscara, a hipocrisia. Denunciemos o rosto e
arranquemos a máscara.
Quanto aos conventos, estes oferecem uma questão complexa. Questão
de civilização, que os condena; questão de liberdade, que os protege.

__________________________
1 Em francês, clés significa “chave”.
2 “Ninguém comunicará nossas regras ou regulamentos a estranhos”.
3 Trocadilho com a palavra vacarme, que significa barulheira, estrépito.
4 “Depois dos corações, as pedras.”
5 “Elas levantaram voo.”
6 “Esta é minha tumba; morri aos vinte e três anos.”
LIVRO VII
PARÊNTESE

I. O CONVENTO, IDEIA ABSTRATA


ESTE LIVRO é um drama cujo primeiro personagem é o infinito.
O homem é o segundo.
Sendo assim, como um convento foi encontrado em nosso caminho,
tivemos que entrar nele. Por quê? Porque o convento, que é próprio ao
Oriente bem como ao Ocidente, à antiguidade como aos tempos modernos,
ao paganismo, ao budismo, ao maometismo bem como ao cristianismo, é
um dos aparelhos de ótica aplicados pelo homem ao infinito.
Aqui não é o lugar para que se desenvolvam, além da conta, certas
ideias; todavia, devemos dizê-lo, mantendo absolutamente nossas
reservas, nossas restrições e até mesmo nossas indignações, todas as vezes
que no homem encontramos o infinito, bem ou mal compreendido,
sentimo-nos tomados de respeito. Há na sinagoga, na mesquita, no pagode,
no wigwam, um aspecto medonho que execramos e um aspecto sublime
que adoramos. Que fonte de contemplação para o espírito e que sonhos
sem fim! O reflexo de Deus nas paredes humanas.

II. O CONVENTO, FATO HISTÓRICO


Do ponto de vista da história, da razão e da verdade, o monaquismo é
condenado.
Os mosteiros, quando são abundantes em uma nação, são nós para a
circulação, estabelecimentos que estorvam, centros de preguiça onde há
necessidade de centros de trabalho. As comunidades monásticas são para a
grande comunidade social o que o parasita é para o carvalho, o que a
verruga é para o corpo humano. Sua prosperidade e sua boa disposição são
o empobrecimento do país. O regime monacal, bom no começo das
civilizações, útil para produzir a redução da brutalidade por meio do
espiritual, é nocivo à virilidade dos povos. Além disso, quando se afrouxa
e entra em seu período de desregramento, como continua a dar o exemplo,
torna-se prejudicial por todas as razões que o faziam salutar no período de
sua pureza.
As clausuras já tiveram seu tempo. Os claustros, úteis na primeira
educação da civilização moderna, tornaram-se importunos para seu
crescimento e são nocivos a seu desenvolvimento. Como instituição e
modo de formação para o homem, os mosteiros, bons no século X,
discutíveis no século XV, são detestáveis no século XIX. A lepra monacal
quase roeu até o esqueleto duas nações admiráveis, a Itália e a Espanha,
uma, a luz, a outra, o esplendor da Europa por séculos, e, na época atual,
esses dois ilustres povos começam a sarar, graças à salutar e vigorosa
higiene de 1789.
O convento, particularmente o antigo convento de freiras, tal como
ainda aparece no início deste século na Itália, na Áustria e na Espanha, é
uma das mais sombrias concreções da Idade Média. O claustro de que
falamos é o ponto de intersecção dos terrores. O claustro católico
propriamente dito é todo cheio da negra irradiação da morte.
O convento espanhol, principalmente, é funesto. Ali erguem-se pela
escuridão, sob abóbadas repletas de trevas, sob cúpulas vagas à força de
tantas sombras, maciços altares babélicos, da altura de catedrais; pendem
de correntes em meio às trevas imensos crucifixos brancos; ali ostentam-
se, nus sobre o ébano, grandes Cristos de marfim, mais do que
ensanguentados, sangrando, medonhos e magníficos, com os ossos dos
cotovelos à vista, as rótulas expondo os tegumentos, as chagas expondo a
carne, coroados de espinhos de prata, pregados com pregos de ouro, com
gotas de sangue de rubis na fronte e lágrimas de diamantes nos olhos. Os
diamantes e os rubis parecem molhados e fazem chorar embaixo, nas
sombras, criaturas cobertas com véus, que trazem as costas machucadas
pelo cilício e pelo chicote com ponta de ferro, os seios esmagados por
corseletes de vime, os joelhos esfolados de tanto rezar; mulheres que se
julgam esposas; espectros que se julgam serafins. Acaso pensam, essas
mulheres? Não. Acaso têm vontade? Não. Acaso amam? Não. Acaso
vivem? Não. Seus nervos viraram ossos; seus ossos viraram pedras. Seu
véu é tecido pela escuridão. Seu fôlego, por baixo do véu, assemelha-se a
não sei que trágica respiração da morte. A abadessa, uma larva, as
santifica e as apavora. O imaculado está ali, arisco. Assim são os antigos
mosteiros da Espanha. Covis da terrível devoção, antros de virgens,
lugares ferozes.
A Espanha católica era ainda mais romana do que a própria Roma. O
convento espanhol era o convento católico por excelência. Nele sentia-se o
oriente. O arcebispo, kislar-aga1 do céu, aferrolhava e espiava aquele
serralho de almas reservado a Deus. A freira era a odalisca, o padre era o
eunuco. As fervorosas eram escolhidas em sonhos e possuíam Cristo. À
noite, o belo homem nu descia da cruz e tornava-se o êxtase da cela.
Muros elevados guardavam de qualquer distração viva a sultana mística
que tomava o crucificado como sultão. Um olhar de lado era uma
infidelidade. O in-pace substituía o saco de couro. O que no Oriente se
lançava ao mar, no Ocidente lançava-se à terra. Em ambas as partes, havia
mulheres debatendo-se; as ondas para umas, a cova para as outras; de um
lado, as afogadas, do outro, as enterradas. Monstruoso paralelo.
Hoje, os defensores do passado, não podendo negar essas coisas, riem
delas. Está na moda uma estranha mas cômoda maneira de suprimir as
revelações da história, invalidar os comentários da filosofia e eliminar
todos os fatos constrangedores e todas as questões obscuras. Assunto para
declamações, dizem os espertos. Jean-Jacques, declamador; Diderot,
declamador; Voltaire, a respeito de Calas, Labarre e Sirven, declamador.
Não sei quem ultimamente achou que Tácito era um declamador, que Nero
era uma vítima, e que decididamente era preciso apiedar-se “daquele
pobre Holofernes”.
Os fatos, no entanto, não se desfazem facilmente, e se obstinam. O
autor deste livro viu, com os próprios olhos, a oito léguas de Bruxelas,
coisas da Idade Média que estão à mão, na abadia de Villiers, no meio do
prado que servia de pátio ao claustro, o fosso das masmorras, e, na
margem do Dyle, quatro calabouços de pedra, metade sobre a terra,
metade sob a água. Eram os in-pace. Cada calabouço desses tem restos de
uma porta de ferro, de uma latrina e uma claraboia gradeada que, de fora,
está sessenta centímetros acima da água, e, de dentro, dois metros abaixo
do solo. Um metro e meio de rio corre exteriormente ao longo da parede.
O chão está sempre molhado. O habitante do in-pace tinha como cama
essa terra molhada. Em um dos calabouços, há um pedaço de corrente
chumbada na parede; em outro, vê-se uma espécie de caixa quadrada,
formada por quatro lâminas de granito, demasiado curta para que alguém
se deite, demasiado baixa para que se fique de pé. Colocavam ali dentro
uma criatura, com uma tampa de pedra por cima. Isso existe. Pode ser
visto. Pode ser tocado. Esses in-pace, esses calabouços, essas dobradiças
de ferro, essas argolas, essa claraboia alta, ao nível da qual corre a água do
rio, esse caixão de pedra fechado com uma tampa de granito, como um
túmulo, com a diferença de que o morto ali era um vivo, esse solo que é
lama, esse buraco de latrinas, essas paredes que escorrem, que
declamadores!

III. EM QUE CONDIÇÃO PODE-SE RESPEITAR O


PASSADO
O monaquismo, tal como existia na Espanha e tal como existe no
Tibete, é uma espécie de tísica para a civilização. Paralisa de uma vez a
vida. Despovoa, simplesmente. Clausura, castração. Foi um flagelo para a
Europa. Acrescentem a isso a violência, tão frequentemente feita à
consciência; as vocações forçadas; a feudalidade apoiando-se no claustro;
a primogenitura vertendo no monaquismo o excesso da família; as
ferocidades de que acabamos de falar; os in-pace; as bocas fechadas; os
cérebros murados; tantas inteligências desafortunadas metidas no
calabouço dos votos eternos; fazer-se frade ou freira, sepultamento das
almas vivas. Acrescentem os suplícios individuais às degradações
nacionais, e, sejam vocês quem forem, sentirão um tremor em presença do
hábito e do véu, duas mortalhas de invenção humana.
Todavia, em certos pontos e em certos lugares, a despeito da filosofia,
a despeito do progresso, o espírito claustral persiste em pleno século XIX,
e uma estranha recrudescência ascética espanta neste momento o mundo
civilizado. A obstinação de instituições envelhecidas em perpetuar-se
assemelha-se à obstinação de um perfume rançoso que reivindicasse
nossos cabelos; à pretensão do peixe podre que quisesse ser comido; à
perseguição de uma roupa de criança que quisesse vestir o homem; à
ternura dos cadáveres que voltassem a abraçar os vivos.
Ingratos, diz a roupa. Eu os protegi no mau tempo, por que não querem
mais saber de mim! Venho do alto-mar, diz o peixe. Fui a rosa, diz o
perfume. Eu os amei, diz o cadáver. Eu os civilizei, diz o convento.
A isso uma única resposta: outrora.
Pensar no prolongamento indefinido das coisas defuntas e no governo
dos homens por embalsamamento, restaurar os dogmas em mau estado,
tornar a dourar a caixa de relíquias, renovar os claustros, tornar a benzer
os relicários, reviver as superstições, reabastecer o fanatismo, colocar
novos cabos nos sabres e nos aspersórios, reconstituir o monaquismo e o
militarismo, crer na salvação da sociedade pela multiplicação dos
parasitas, impor o passado ao presente, tudo isso parece estranho. No
entanto, há teóricos para essas teorias. Esses teóricos, aliás pessoas de
espírito, têm um procedimento bem simples, aplicam ao passado um
reboco a que dão o nome de ordem social, direito divino, moral, família,
respeito pelos antepassados, autoridade antiga, tradição santa,
legitimidade, religião; e vão gritando: “Vejam! Tomem isso, homens de
bem!” Essa lógica também era conhecida dos antigos. Cobriam de cal uma
novilha preta, e diziam: “É branca”. Bos cretatus.2
Quanto a nós, respeitamos uma ou outra coisa, e poupamos em tudo o
passado, contanto que consinta em ficar morto. Se quiser permanecer vivo,
o atacaremos e trataremos de matá-lo.
Superstições, beatice, carolice, preconceitos, todas essas larvas, por
mais larvas que sejam, têm apego à vida; têm dentes e unhas em sua
fumaça, e é necessário constrangê-las corpo a corpo, e fazer-lhes a guerra,
mas sem tréguas, pois uma das fatalidades da humanidade é ser condenada
ao eterno combate dos fantasmas. É difícil agarrar a sombra pelo pescoço
e destruí-la.
Um convento na França, em plena luz do século XIX, é uma reunião de
corujas fazendo frente ao dia. Um claustro, em flagrante delito de
ascetismo no meio da cidade em 1789, em 1830 e em 1848, Roma
expandindo-se em Paris, é um anacronismo. Em tempos normais, para
dissolver um anacronismo e fazê-lo desaparecer de todo, basta fazer com
que soletre o milésimo. Mas não estamos em tempos normais.
Combatamos.
Combatamos, mas distingamos. É próprio da verdade nunca ser
excessiva. Que necessidade tem ela de exagerar? Há o que se deve
destruir, e há o que se deve simplesmente esclarecer e olhar. Que força tem
o exame benévolo e grave! Não levemos o fogo aonde a luz é suficiente.
Assim, considerado o século XIX, somos contrários, em tese geral,
para todos os povos, na Ásia como na Europa, na Índia como na Turquia,
às clausuras ascéticas. Quem diz convento diz pântano. Sua propensão à
putrefação é evidente, sua estagnação insalubre, sua fermentação causa
febre nos povos e os enfraquece; sua multiplicação torna-se uma praga do
Egito. Não podemos pensar sem horror nesses países em que os faquires,
os monges budistas, os monges maometanos, os monges gregos, os
muçulmanos, os talapões e os dervixes pululam como vermes.
Dito isso, a questão religiosa subsiste. Essa questão tem certos
aspectos misteriosos, quase temíveis; que nos seja permitido encará-la.

IV. O CONVENTO DO PONTO DE VISTA DOS


PRINCÍPIOS
Homens se reúnem e habitam em comum. Em virtude de que direito?
Em virtude do direito de associação.
Encerram-se em suas casas. Em virtude de que direito? Em virtude do
direito que todo homem tem de abrir ou de fechar sua porta.
Não saem. Em virtude de que direito? Em virtude do direito de ir e vir,
que implica no direito de ficar em casa.
Lá, em suas casas, o que fazem?
Falam baixo; baixam os olhos; trabalham. Renunciam ao mundo, às
cidades, às sensualidades, aos prazeres, às vaidades, aos orgulhos, aos
interesses. Andam vestidos com lã grosseira ou com grosseiros tecidos.
Nem um só entre eles possui como propriedade o que quer que seja.
Entrando ali, o que era rico faz-se pobre. O que tem dá a todos. Aquele que
era o que se chama de nobre, fidalgo e senhor é um igual daquele que era
camponês. A cela é idêntica para todos. Todos sofrem a mesma tonsura,
vestem o mesmo hábito, comem o mesmo pão negro, dormem sobre as
mesmas palhas, morrem sobre a mesma cinza. O mesmo saco nas costas, a
mesma corda em volta dos rins. Se resolvem andar descalços, andam todos
descalços. Ali pode haver um príncipe, esse príncipe é a mesma sombra
que as outros. Nada de títulos. Até os sobrenomes desaparecem. Usam
apenas seus nomes. Todos se curvam sob a igualdade dos nomes de
batismo. Dissolveram a família carnal e constituíram em sua comunidade
a família espiritual. Não têm outros parentes que não todos os homens.
Socorrem os pobres, tratam dos doentes. Elegem aqueles a quem
obedecem. Dizem uns aos outros: meu irmão.
Vocês me fazem parar e exclamam: “Mas este é o convento ideal!”
Basta que seja o convento possível para que eu deva levá-lo em conta.
Vem daí que, no livro precedente, falei de um convento em tom
respeitoso. Afastada a Idade Média, afastada a Ásia, reservada a questão
histórica e política, do puro ponto de vista filosófico, fora das
necessidades da política militante, com a condição de que o mosteiro seja
absolutamente voluntário e encerre apenas os que consintam, sempre
considerarei a comunidade claustral com certa gravidade atenta e, sob
alguns aspectos, condescendente. Onde houver uma comunidade, há uma
comuna; e onde houver uma comuna, há direito. O mosteiro é o produto da
fórmula: Igualdade, Fraternidade. Oh! Como é grande a liberdade! E que
esplêndida transfiguração! Basta a liberdade para transformar o mosteiro
em república!
Continuemos.
Mas esses homens, ou essas mulheres, que estão atrás dessas quatro
paredes, vestem-se com lã grosseira, são iguais, chamam-se de irmãos;
está bem; mas fazem mais alguma coisa?
Sim.
O quê?
Olham para a sombra, põem-se de joelhos e erguem as mãos.
O que significa isso?

V. A ORAÇÃO
Eles oram.
A quem?
A Deus.
Orar a Deus, o que isso quer dizer?
Há um infinito fora de nós? Esse infinito é único, imanente,
permanente, necessariamente substancial posto que é infinito e que, se lhe
faltasse a matéria, ficaria limitado? Necessariamente inteligente, posto
que é infinito e que, se lhe faltasse a inteligência, acabaria ali? Esse
infinito desperta em nós a ideia de essência, enquanto que não podemos
atribuir a nós mesmos senão a ideia de existência? Em outras palavras, não
é ele o absoluto daquilo de que somos o relativo?
Ao mesmo tempo que há um infinito fora de nós, não há um outro
infinito dentro de nós? Esses dois infinitos (que horroroso plural!) não se
sobrepõem um ao outro? O segundo infinito não é, por assim dizer,
subjacente ao primeiro? Não é o seu espelho, seu reflexo, seu eco, abismo
concêntrico a um outro abismo? Este segundo infinito também é
inteligente? Pensa? Ama? Tem vontade? Se os dois infinitos são
inteligentes, cada um deles tem um princípio de vontade, e há um eu no
infinito de cima, do mesmo modo que há um eu no infinito de baixo. O eu
de baixo é a alma; o eu de cima é Deus.
Colocar o infinito de baixo em contato com o infinito de cima, por
meio do pensamento, é o que se chama orar.
Não retiremos nada ao espírito humano; é ruim suprimir. É preciso
reformar e transformar. Certas faculdades do homem dirigem-se para o
Incógnito, o pensamento, a meditação, a oração. O Incógnito é um oceano.
O que é a consciência? É a bússola do Incógnito. Pensamento, meditação,
oração, essas são grandes irradiações misteriosas. Respeitemo-las. Para
onde vão essas majestosas irradiações da alma? Para a sombra, quer dizer,
para a luz.
A grandeza da democracia consiste em nada negar, nem nada renegar
da humanidade. Próximo ao direito do Homem, pelo menos ao lado, há o
direito da Alma.
Esmagar os fanatismos e venerar o infinito, tal é a lei. Não nos
limitemos a prostrar-nos sob a árvore Criação e a contemplar seus imensos
ramos cheios de astros. Temos um dever: trabalhar para a alma humana,
defender o mistério contra o milagre, adorar o incompreensível e rejeitar o
absurdo, não admitir, a respeito do inexplicável, senão o necessário, sanear
a crença, tirar as superstições de cima da religião, livrar Deus das lagartas.

VI. BONDADE ABSOLUTA DA ORAÇÃO


Quanto ao modo de orar, todos são bons, contanto que sejam sinceros.
Virem seu livro ao contrário e estejam no infinito.
Sabemos que há uma filosofia que nega o infinito. Também há uma
filosofia, patologicamente classificada, que nega o sol; tal filosofia
chama-se cegueira.
Erigir um sentido que nos falta como fonte de verdade é um belo
arrojo de cego.
Curioso são os ares altivos, superiores, condoídos que toma essa
filosofia que tateia em face da filosofia que vê Deus. Parece ouvir-se uma
toupeira dizendo: “Eles me causam pena com o seu sol!”
Sabemos que há ilustres e poderosos ateus. Estes, no fundo, levados à
verdade por seu próprio poder, não estão bem certos de serem ateus; para
eles é apenas uma questão de definição, e, em todo caso, se não creem em
Deus, sendo grandes espíritos, provam Sua existência.
Saudamos neles os filósofos, enquanto inexoravelmente qualificamos
sua filosofia.
Continuemos.
Admirável também é a facilidade para se contentar com palavras. Uma
escola metafísica do norte, um tanto impregnada de brumas, julgou fazer
uma revolução no entendimento humano substituindo a palavra Força pela
palavra Vontade.
Dizer: a planta quer, em vez de: a planta cresce, seria, com efeito, uma
coisa fecunda, se se acrescentasse: o universo quer. Por quê? Porque daí
sairia este resultado: a planta quer, logo tem um eu; o universo quer, logo
tem um Deus.
Quanto a nós, que, no entanto, ao avesso dessa escola, não rejeitamos
nada a priori, uma vontade na planta, aceita por essa escola, parece-nos
mais difícil de admitir do que uma vontade no universo, negada por ela.
Negar a vontade do infinito, isto é, negar Deus, só é possível com a
condição de negar o infinito. Já o demonstramos.
A negação do infinito leva diretamente ao niilismo. Tudo se torna
“uma concepção do espírito”.
Com o niilismo não há discussão possível. Porque o niilista lógico
duvida que seu interlocutor exista, e nem está muito certo da própria
existência.
De seu ponto de vista, é possível que ele próprio não seja para si
mesmo mais que “uma concepção de seu espírito”.
Apenas não percebe que tudo o que negou admite em bloco, só ao
pronunciar esta palavra: espírito.
Em suma: nem uma via está aberta ao pensamento por uma filosofia
que faz tudo terminar no monossílabo Não.
A: Não, só há uma resposta: Sim.
O niilismo é algo sem alcance.
O nada não existe. Zero não existe. Tudo é alguma coisa. Nada é nada.
O homem ainda vive mais de afirmação do que de pão.
Ver e mostrar, mesmo isso não basta. A filosofia deve ser uma energia;
deve ter por esforço e efeito melhorar o homem. Sócrates deve penetrar
em Adão e produzir Marco Aurélio; em outras palavras, fazer sair, do
homem da felicidade, o homem da sabedoria. Transformar o Éden em
Liceu. A ciência deve ser um cordial. Gozar, que triste objetivo, que
mesquinha ambição! O irracional goza! Pensar, este é o verdadeiro triunfo
da alma. Estender o pensamento à sede dos homens, dar-lhes, a todos,
como elixir, a noção de Deus, fazer neles fraternizar a consciência e a
ciência, torná-los justos por meio desse misterioso confronto, essa é a
função da filosofia real. A moral é um desabrochar de verdades.
Contemplar leva a agir. O absoluto deve ser prático. É preciso que o ideal
seja respirável, potável e comestível pelo espírito humano. O ideal é que
tem o direito de dizer: Tomai, essa é a minha carne, esse é o meu sangue.
A sabedoria é uma comunhão sagrada. É com essa condição que ela cessa
de ser um estéril amor da ciência para se tornar o modo único e soberano
da união humana, e que, de filosofia, é promovida a religião.
A filosofia não deve ser uma sacada aberta para o mistério com a
finalidade de contemplá-lo à vontade, sem outro resultado que não seja
cômodo para a curiosidade.
Quanto a nós, adiando para outra ocasião o desenvolvimento de nosso
pensamento, limitamo-nos a dizer que não compreendemos nem o homem
como ponto de partida, nem o progresso como finalidade sem estas duas
forças que são os dois motores: crer e amar.
O progresso é o objetivo, o ideal é o tipo.
O que é o ideal? É Deus.
Ideal, absoluto, perfeição, infinito, palavras idênticas.

VII. PRECAUÇÕES A TOMAR NA CENSURA


A história e a filosofia têm deveres eternos que são ao mesmo tempo
deveres simples; combater Caifás bispo, Draco juiz, Trimalquião
legislador, Tibério imperador, isso é claro, direto e límpido, não oferece
nenhuma dificuldade. Mas o direito de viver à parte, mesmo com seus
inconvenientes e abusos, quer ser provado e tratado com atenção. O
cenobitismo, vida de monges em comunidade, em oposição aos que vivem
isolados, é um problema humano.
Quando se trata dos conventos, desses lugares de erro, mas de
inocência, de desvario, mas de boa vontade, de ignorância, mas de
dedicação, de suplício, mas de martírio, é preciso quase sempre dizer sim
e não.
Um convento é uma contradição. Por finalidade, a salvação; como
meio, o sacrifício. O convento é o supremo egoísmo tendo como resultado
a suprema abnegação.
Abdicar para reinar, parece ser a divisa do monaquismo.
No claustro, sofre-se para se obter algum prazer. Saca-se uma letra de
câmbio sobre a morte, desconta-se em escuridão terrestre a luz celeste. No
claustro, o inferno é aceito como adiantamento de herança sobre o paraíso.
Tornar-se frade ou freira é um suicídio pago com a eternidade.
Não nos parece que em tal assunto a zombaria seja apropriada. Tudo
nele é grave, tanto o bem como o mal.
O homem justo franze a sobrancelha, mas nunca dá um sorriso de
maldade. Compreendemos a cólera, mas não a malignidade.

VIII. FÉ, LEI


Mais algumas palavras.
Censuramos a Igreja quando está saturada de intrigas, desprezamos o
espiritual áspero para com o temporal; mas em qualquer condição
respeitamos o homem que pensa.
Saudamos quem se ajoelha.
Ter uma fé, isso é necessário para o homem. Infeliz de quem não crê
em nada!
Não se está sem ocupação quando se está absorvido. Há o labor visível
e o labor invisível.
Contemplar é labutar; pensar é agir. Os braços cruzados trabalham, as
mãos postas fazem. Olhar para o céu é uma obra.
Tales esteve quatro anos imóvel. Fundou a filosofia.
Para nós, os cenobitas não são ociosos, nem os solitários preguiçosos.
Pensar na Escuridão é uma coisa séria.
Sem anular nada do que acabamos de dizer, julgamos que uma
perpétua lembrança do túmulo convém aos vivos. A respeito deste ponto, o
padre e o filósofo estão de acordo. É necessário morrer. O abade de La
Trappe dá a réplica a Horácio.
Entremear a sua vida com certa presença do sepulcro é a lei do sábio; e
é a lei do asceta. A esse respeito, sábio e asceta convergem.
Há o crescimento material; nós o desejamos. Há também a grandeza
moral; dela fazemos questão.
Os espíritos irrefletidos e rápidos dizem:
— Para que servem estas figuras imóveis do plano misterioso? O que
elas fazem?
Ah! Em presença da escuridão que nos cerca e nos espera, sem
sabermos o que a dispersão imensa fará de nós, respondemos:
— Não há, talvez, obra mais sublime do que aquela que fazem essas
almas. — E acrescentamos: — Talvez não haja trabalho mais útil.
Os que oram sempre são bastante necessários aos que nunca oram.
Para nós, toda a questão está na quantidade de pensamento que se
mistura à oração.
Leibniz orando, isso é grande; Voltaire adorando, isso é belo. Deo
erexit Voltaire.3
Somos pela religião contra as religiões.
Somos dos que acreditam na miséria dos discursos e na sublimidade da
prece.
De resto, este minuto que atravessamos, minuto que felizmente não
deixará ao século XIX sua figura, a esta hora em que tantos homens têm a
fronte baixa e a alma tão pouco elevada, entre tantos vivos, cuja moral é
gozar, ocupados com as coisas breves e disformes da matéria, parece-nos
venerável todo aquele que se exila. O mosteiro é uma renúncia. O
sacrifício sem embasamento ainda assim é sacrifício. Tomar como dever
um erro severo, isso tem sua grandeza.
Tomado em si, e idealmente, e para girarmos em torno da verdade até o
esgotamento imparcial de todos os aspectos, o mosteiro, principalmente o
convento de freiras, pois em nossa sociedade é a mulher quem mais sofre,
e nesse exílio do claustro há protesto, o convento de freiras tem
incontestavelmente uma certa majestade.
Essa existência claustral tão austera e melancólica, da qual acabamos
de indicar alguns aspectos, não é a vida, porque não é a liberdade; não é o
túmulo, porque não é a plenitude; é o estranho lugar de onde, como do alto
de uma elevada montanha, se descobre, de um lado, o abismo em que
estamos, do outro, o abismo em que estaremos; é uma fronteira estreita e
enevoada que separa dois mundos, iluminada e escurecida ao mesmo
tempo pelos dois, onde o raio enfraquecido da vida se mistura ao vago raio
da morte; é a penumbra do túmulo.
Quanto a nós, que não cremos no que creem essas mulheres, mas que
vivemos como elas pela fé, nunca pudemos considerar essas criaturas sem
uma espécie de terror religioso e terno, sem uma espécie de piedade cheia
de inveja; criaturas dedicadas, trêmulas e confiantes, almas humildes e
augustas que ousam viver no limite mesmo do mistério, esperando entre o
mundo que está fechado e o céu que não está aberto, voltadas para a
claridade que não se vê, tendo somente a ventura de pensar que sabem
onde ela está, aspirando ao abismo e ao incógnito, olhos fixos na escuridão
imóvel, ajoelhadas, desvairadas, estupefatas, assustadas, um tanto
elevadas, em certas horas, pelos sopros profundos da eternidade.

__________________________
1 Chefe dos eunucos negros em Constantinopla, um dos grandes homens do Império
Otomano.
2 “…boi embranquecido pela cal…” (Juvenal, Sátiras).
3 “Elevado a Deus por Voltaire.”
LIVRO VIII
OS CEMITÉRIOS RECEBEM O QUE
LHES DÃO

I. EM QUE É TRATADO O MODO DE ENTRAR NO


CONVENTO
FOI NAQUELA casa que Jean Valjean tinha, como dissera Fauchelevent,
“caído do céu”.
Ele saltara pelo muro que fazia esquina com a rua Polonceau. O hino
dos anjos que ele ouvira no meio da noite eram as religiosas cantando as
matinas; a sala que entrevira na escuridão era a capela; o fantasma que
vira estendido no chão era uma irmã fazendo a reparação; o chocalho, cujo
ruído o havia tão estranhamente surpreendido, era o guizo do jardineiro
preso ao joelho de Pai Fauchelevent.
Cosette já deitada, Jean Valjean e Fauchelevent, como se viu, cearam
um copo de vinho e um pouco de queijo diante de um bom fogo; depois,
como a única cama que havia ali era a que Cosette ocupava, cada qual
deitou-se sobre um feixe de palha. Antes de fechar os olhos, Jean Valjean
disse a Fauchelevent:
— De agora em diante, preciso ficar aqui. — Esta frase martelou a
noite inteira na cabeça de Fauchelevent.
Para falar a verdade, nem um nem outro dormiu.
Jean Valjean, sentindo-se descoberto e perseguido por Javert, entendia
que ele e Cosette estariam perdidos se voltassem a Paris. Já que o novo
tufão que acabava de soprar o levara àquele claustro, o único pensamento
que tinha era ficar por ali. Ora, para um infeliz na sua posição, aquele
convento era, ao mesmo tempo, o lugar mais perigoso e o mais seguro;
mais perigoso porque, como ali não podia entrar homem nenhum, se o
descobrissem, seria um flagrante delito, e, do convento à prisão, Jean
Valjean não daria mais que um passo; mais seguro porque, se conseguisse
ser aceito e fixar seu domicílio, quem o procuraria ali? Morar em um lugar
impossível era sua salvação.
Por seu lado, Fauchelevent não dava descanso ao cérebro. Começava
por dizer a si mesmo que não compreendia nada daquilo. Como o senhor
Madeleine encontrava-se ali, com todos aqueles muros? Muros de claustro
não são dos que se saltam. Como é que estava com uma criança? Que
criança era aquela? De onde vinham os dois? Desde que Fauchelevent
estava no convento, não ouvira mais falar de Montreuil–sur-Mer, e não
sabia nada do que ali ocorrera. O senhor Madeleine tinha um jeito que
desencorajava questionamentos; e, além disso, Fauchelevent pensava:
“Não se questiona um santo”. Para ele, o senhor Madeleine havia
conservado todo o seu prestígio. Apenas por algumas palavras que Jean
Valjean deixara escapar, o jardineiro pensou poder concluir que o senhor
Madeleine provavelmente falira e que se via perseguido por seus credores;
ou então estava comprometido em algum negócio político e se escondia; o
que não desagradou Fauchelevent, que, como muitos de nossos
camponeses do norte, tinha seu tanto de bonapartista. Escondendo-se, o
senhor Madeleine tomava o convento como asilo, e não tinha nada de
extraordinário em querer ficar ali. Mas o inexplicável, aquilo a que
Fauchelevent retornava sempre e lhe quebrava a cabeça, era que o senhor
Madeleine ali estivesse, e ainda com aquela menina. Fauchelevent via-os,
apalpava-os, falava com eles, mas não acreditava no que via. O
incompreensível acabava de entrar em sua choupana. Fauchelevent tateava
conjecturas e nada mais via de claro a não ser isto: “O senhor Madeleine
salvou-me a vida”. Essa única certeza lhe bastava, e o levou a determinar-
se. Disse a si mesmo: “É minha vez”. E acrescentou em sua consciência:
“O senhor Madeleine não pensou por tanto tempo quando foi o caso de
meter-se embaixo do carro para tirar-me dali”. Decidiu que salvaria o
senhor Madeleine.
No entanto, fez-se várias perguntas, e deu-se várias respostas: “Depois
do que ele fez por mim, se fosse um ladrão, eu o salvaria? Do mesmo
modo. Se fosse um assassino, eu o salvaria? Do mesmo modo. Já que é um
santo, eu o salvarei? Do mesmo modo”.
Mas que problema, fazer com que permanecesse no convento! Diante
dessa tentativa quase quimérica, Fauchelevent não recuou; o pobre
camponês picardo, sem outra escada além de sua dedicação, de sua boa
vontade e de um pouco da velha finura camponesa colocada, desta vez, a
serviço de uma intenção generosa, empreendeu uma escalada sobre as
impossibilidades do claustro e as rudes escarpas da regra de São Bento.
Pai Fauchelevent, que em toda a sua vida fora um egoísta, no fim dos seus
dias, coxo, doente, não tendo mais interesse algum no mundo, achou
agradável mostrar-se reconhecido, e, vendo uma virtuosa ação a fazer,
atirou-se a ela como um homem que, no momento de morrer, encontrasse
à mão um copo de bom vinho que jamais houvesse provado e o bebesse
avidamente. Podemos acrescentar que o ar que ele respirava já havia
tantos anos naquele convento tinha destruído a personalidade que havia
nele, acabando por tornar-lhe necessária uma boa ação qualquer.
Tomou, então, sua resolução: dedicar-se ao senhor Madeleine.
Acabamos de qualificá-lo como pobre camponês picardo. A
qualificação é justa mas incompleta. No ponto em que estamos desta
história, um pouco da fisiologia do Pai Fauchelevent pode ser útil. Ele era
camponês, mas havia sido tabelião, o que acrescentava argúcia à sua
finura, e penetração à sua simplicidade. Tendo, por diversas causas, sido
malsucedido em seus negócios, de tabelião passou a carroceiro e operário.
Mas, apesar das pragas e das chicotadas, ao que parece, necessárias aos
cavalos, restava nele algo do tabelião. Tinha certo espírito natural; ele não
falava eu tem nem nós tem; e conversava, coisa rara na aldeia; e os outros
camponeses diziam dele: “Ele fala meio igual a um homem ‘de chapéu’”.
Fauchelevent, efetivamente, era de uma espécie que o vocabulário
impertinente e leviano do século passado denominava: meio burguês, meio
aldeão, e que as metáforas, caindo dos castelos sobre as choupanas,
etiquetavam como: um pouco rústico, um pouco cidadão, pimenta e sal.
Fauchelevent, apesar de muito provado e muito desgastado pela sorte,
espécie de pobre velha alma gasta, era, todavia, um homem de primeiro
ímpeto, e muito espontâneo, qualidade preciosa que impede o homem de
ser mau. Seus defeitos e vícios, pois alguns tivera, estavam à superfície;
em suma, sua fisionomia era das que se saem bem junto ao observador.
Aquele velho rosto não tinha nenhuma das desagradáveis rugas do alto da
fronte que significam maldade ou estupidez.
Ao romper do dia, tendo pensado exaustivamente, Pai Fauchelevent
abriu os olhos e viu o senhor Madeleine sentado em seu feixe de palha,
olhando Cosette dormir. Sentou-se na cama e disse:
— Agora que o senhor está aqui, como vai fazer para entrar?
Essa frase resumia a situação, e despertou Jean Valjean de seu
devaneio.
Os dois homens puseram-se a deliberar.
— Antes de tudo — disse Fauchelevent —, vão começar por não
colocar os pés fora deste quarto, nem a pequena nem o senhor. Um passo
no jardim e estamos fritos.
— Está certo.
— Senhor Madeleine — tornou Fauchelevent —, o senhor chegou em
um momento muito bom, quero dizer, muito ruim; uma das freiras está
muito doente. Isso fará com que não olhem muito para o nosso lado.
Parece que ela está para morrer. Fazem as orações das quarenta horas.
Toda a comunidade está dispersiva. Isso as entretem. A que está partindo
era uma santa. Na verdade, aqui todos somos santos. A grande diferença
entre mim e elas é que elas dizem: nossa cela, e eu digo: meu quartinho.
Haverá a oração pelos agonizantes e depois a oração pelos mortos. Por
hoje, estaremos tranquilos aqui, mas não respondo por amanhã.
— Mas — observou Jean Valjean — esta choupana fica aqui na
reentrância do muro, escondida por uma espécie de ruína, e tem as
árvores; ela não é vista do convento.
— E digo mais, as religiosas nunca se aproximam daqui.
— Então? — disse Jean Valjean.
O ponto de interrogação que acentuava este então significava: “Parece-
me que podemos ficar escondidos aqui”. Foi a esse ponto de interrogação
que Fauchelevent respondeu:
— Mas existem as pequenas.
— Que pequenas? — perguntou Jean Valjean.
Quando Fauchelevent ia abrir a boca para explicar a frase que acabara
de dizer, um sino deu uma badalada.
— A religiosa morreu — disse ele. — É o dobre.
Fez sinal a Jean Valjean que escutasse.
O sino deu uma segunda badalada.
— É o dobre, senhor Madeleine. O sino vai continuar de minuto em
minuto durante vinte e quatro horas, até a saída do corpo da igreja. Sabe,
elas brincam. No recreio, basta que uma bola corra para que elas venham
para cá, apesar das proibições, procurar e bisbilhotar em tudo. São uns
diabos aqueles querubins.
— Quem? — perguntou Jean Valjean.
— As pequenas. O senhor seria descoberto bem depressa. Logo
gritariam: “Olhem! Um homem!” Mas hoje não há perigo. Não haverá
recreio. O dia será inteiramente de preces. Está ouvindo o sino? Como eu
lhe disse, uma badalada por minuto. É o dobre.
— Entendi, Pai Fauchelevent. Também há internas.
E depois pensou:
— Estaria resolvida a educação de Cosette.
Fauchelevent exclamou:
— Ora! Se há meninas! E como gritariam em volta do senhor! E como
fugiriam! Aqui, ser homem é como estar empestado. Bem vê que me
prendem um chocalho à perna, como fariam a um animal feroz.
Jean Valjean devaneava cada vez mais profundamente.
— Este convento seria nossa salvação — murmurou ele.
Depois disse, elevando a voz:
— Sim, o difícil é ficar.
— Não — disse Fauchelevent. — É sair.
Jean Valjean sentiu o sangue refluir-lhe ao coração.
— Sair!
— Sim, senhor; para entrar é preciso sair.
E, depois de deixar passar uma badalada do dobre, Fauchelevent
prosseguiu:
— Não podem encontrá-lo aqui dessa forma. De onde teria vindo? Para
mim o senhor caiu do céu, porque o conheço, mas, para as religiosas, é
preciso que se entre pela porta.
De repente, ouviu-se um toque bastante complicado, de um outro sino.
— Ah! — disse Fauchelevent. — É o sinal para as madres vocais. Elas
vão para o capítulo. Quando alguém morre, sempre se reúnem em capítulo.
Ela morreu ao levantar do dia. Em geral morre-se ao levantar do dia. Mas
será que o senhor não poderia sair por onde entrou? Veja, não é para
causar-lhe um problema, mas, por onde o senhor entrou?
Jean Valjean ficou pálido. A simples ideia de voltar àquela rua terrível
o fazia estremecer. Saiam de uma floresta cheia de tigres, e, uma vez fora
dali, imaginem um conselho de amigo que lhes diz para ali retornar. Jean
Valjean imaginava a polícia inteira ainda fervilhante pelas ruas, agentes
em observação, sentinelas por toda parte, punhos horríveis estendidos para
o seu colarinho, talvez Javert em um canto do cruzamento.
— Impossível! — disse ele. — Pai Fauchelevent, pense que caí das
nuvens.
— Mas acredito nisso, acredito — replicou Fauchelevent. — O senhor
nem precisa me dizer isso. O bom Deus o pegou em suas mãos para olhá-
lo de perto, depois deve tê-lo soltado. Só que queria colocá-lo em um
convento de homens, mas enganou-se. Ouça, mais uma badalada. Essa é
para avisar o porteiro que deve prevenir a Câmara, para que esta previna o
médico dos mortos, para que ele venha ver que há uma morta. Tudo isso é
a cerimônia da morte. Elas não gostam muito dessa visita, as boas freiras.
Um médico não acredita em nada. Ele levanta o véu. Às vezes levanta
também outra coisa. Como desta vez mandaram avisar o médico depressa!
Que será que está havendo? Sua pequena continua dormindo. Como se
chama?
— Cosette.
— É sua filha? — como quem diria: “O senhor seria seu avô?”
— Sim.
— Para ela, sair daqui será fácil. A minha porta de serviço dá para o
pátio. Bato, o porteiro abre. Levo meu cesto nas costas, a pequena está lá
dentro. Eu saio. Pai Fauchelevent sai com seu cesto, é simples. O senhor
diz para a menina ficar bem quieta. Ela estará bem coberta. Posso deixá-la
o tempo necessário na casa de uma boa amiga, vendedora de frutas surda
que mora na rua Chemin-Vert, onde tem uma caminha. Gritarei em seus
ouvidos que é uma sobrinha minha, e que fique com ela até amanhã.
Depois a pequena voltará com o senhor. Vou fazer com que entre. Será
necessário. Mas, e o senhor, como vai fazer para sair?
Jean Valjean balançou a cabeça.
— Pai Fauchelevent, ninguém pode me ver, essa é a questão. Dê um
jeito de fazer-me sair como Cosette, dentro de um cesto e coberto.
Fauchelevent coçava a ponta da orelha com o dedo médio da mão
esquerda, sinal de sério embaraço.
Uma terceira badalada desviou o assunto.
— É o médico dos mortos indo embora — disse Fauchelevent. — Ele
olha e diz: está bem, ela está morta. Depois que o médico visa o
passaporte para o paraíso, o serviço funerário manda um caixão. Se for
uma madre, as madres a colocam dentro; se for uma irmã, as irmãs a
colocam dentro. Depois disso, eu fecho. Isso faz parte da minha
jardinagem. Um jardineiro também é um pouco coveiro. O caixão é levado
a uma sala inferior da igreja que se comunica com a rua, e onde não pode
entrar mais homem algum além do médico dos mortos. Eu não conto como
homens nem a mim nem aos que levam o caixão. É naquela sala que eu
fecho o caixão. Depois eles vêm pegá-lo, e toca cocheiro! É assim que se
vai para o céu. Trazem uma caixa em que não há nada e a levam de volta
com alguma coisa dentro. Assim é um enterro. De profundis.1
Um raio de sol horizontal iluminava o rosto de Cosette ainda
adormecida, a boca vagamente entreaberta, parecendo um anjo bebendo
luz. Jean Valjean se pôs a contemplá-la. Já não ouvia Fauchelevent.
Não ser ouvido não é motivo para alguém se calar. O bom e velho
jardineiro continuava sossegadamente a falar da mesma coisa.
— O lugar onde as enterram é o cemitério Vaugirard. Dizem que vão
extinguir esse tal cemitério Vaugirard. É um cemitério antigo, fora dos
regulamentos, que não tem uniforme, que vai ser aposentado. É pena,
porque era cômodo. O coveiro de lá, Pai Mestienne, é meu amigo. As
religiosas daqui têm o privilégio de serem levadas a esse cemitério ao cair
da noite. Há uma ordem expressa da prefeitura que lhes concede isso. Mas
quantos acontecimentos desde ontem! madre Crucifixion morreu, e Pai
Madeleine…
— Está enterrado! — disse Jean Valjean sorrindo tristemente.
Fauchelevent fez a frase ter outro sentido.
— Caramba! Se o senhor estivesse de fato aqui, seria um verdadeiro
enterro.
Uma quarta badalada soou. Fauchelevent tirou rapidamente a joelheira
com chocalho do prego e atou-a ao joelho.
— Desta vez é para mim. A madre prioresa me chama. Senhor
Madeleine, não se mexa, e espere por mim. Há algo de novo. Se estiver
com fome, ali tem vinho, pão e queijo.
E saiu da choupana dizendo:
— Estou indo! Estou indo!
Jean Valjean o viu apressar-se pelo jardim, tão rápido quanto sua perna
coxa permitia, olhando de passagem para o seu meloal.
Menos de dez minutos depois, Pai Fauchelevent, cujo chocalho
afugentava as religiosas por onde passava, batia de leve em uma porta, e
uma voz agradável respondia: Para sempre, para sempre; quer dizer:
Entre.
Essa porta era a do locutório, reservado ao jardineiro para as
necessidades do serviço. Esse locutório ficava contíguo à sala do capítulo.
A prioresa, sentada na única cadeira que havia no locutório, esperava
Fauchelevent.

II. FAUCHELEVENT EM PRESENÇA DE


DIFICULDADES
Parecer agitado e preocupado é particular, em ocasiões críticas, a
certos caracteres e a certas profissões, principalmente aos padres e aos
religiosos. No momento em que Fauchelevent entrou, essa dupla forma da
preocupação estava impressa na fisionomia da prioresa, que era a
encantadora e sábia senhorita de Blemeur, madre Innocente, geralmente
alegre.
O jardineiro fez uma saudação tímida e permaneceu na entrada da cela.
A prioresa, que rezava as contas de seu rosário, levantou os olhos e disse:
— Ah, é o senhor, Pai Fauvent.
Essa abreviatura fora adotada no convento.
Fauchelevent refez sua saudação.
— Pai Fauvent, eu mandei chamá-lo.
— Aqui estou, reverenda madre.
— Tenho algo a lhe dizer.
— E eu, de minha parte — disse Fauchelevent com uma audácia da
qual interiormente tinha medo —, também tenho algo a dizer à
reverendíssima madre.
A prioresa o olhou.
— Ah! O senhor tem alguma comunicação a fazer-me?
— Uma súplica.
— Bem, então fale.
O bom Fauchelevent, ex-tabelião, pertencia à categoria dos
camponeses desembaraçados. Uma certa dose de ignorância hábil é uma
força; não se desconfia dela, e ela traz vantagem. Havia pouco mais de
dois anos habitando o convento, Fauchelevent dera-se bem na comunidade.
Sempre solitário, mesmo enquanto não se ocupava com sua jardinagem,
não tinha outra coisa a fazer senão ser curioso. À distância como estava de
todas aquelas mulheres de véu que iam e voltavam, não via diante de si
mais do que uma agitação de sombras. À força de atenção e perspicácia,
conseguira revestir de carne todos aqueles fantasmas, e aquelas mortas
para ele tinham vida. Ele era como um surdo, cuja visão se alonga, e como
um cego, cuja audição se apura. Aplicara-se em diferenciar o sentido dos
diversos toques, com êxito, de modo que o enigmático e taciturno claustro
não tinha nada de secreto para ele; aquela esfinge contava em seus ouvidos
todos os seus segredos. Fauchelevent sabendo de tudo, tudo ocultava.
Nisso consistia sua arte. Todo o convento o julgava estúpido. Grande
mérito em termos de religião. As madres vocais o estimavam. Era um
curioso mudo. Inspirava confiança. Além disso, era regular, só saía por
causa das necessidades evidentes do pomar e da horta. Essa discrição de
comportamento era apreciada. Nem por isso deixara de tagarelar com dois
homens; no convento, o porteiro, que sabia as particularidades do
locutório; no cemitério, o coveiro, que sabia as singularidades das
sepulturas; de modo que tinha, acerca daquelas religiosas, uma dupla
clareza, uma a respeito da vida, outra a respeito da morte. Mas ele não
abusava de nada. A congregação gostava dele. Velho, coxo, não vendo
coisa alguma do que se passava no convento, provavelmente um pouco
surdo, quantas qualidades! Dificilmente seria substituído.
O bom homem, com a segurança de quem se sente estimado, iniciou,
diante da prioresa, uma conversa típica de camponês, bastante prolixa e
muito profunda. Falou longamente de sua idade, de suas enfermidades, da
sobrecarga dos anos que agora contavam em dobro para ele, das crescentes
exigências do trabalho, do tamanho enorme do jardim, das noites em claro,
como aquela última, por exemplo, em que precisara cobrir os meloeiros
por causa da lua, e acabou chegando no seguinte: que tinha um irmão (a
prioresa fez um movimento), que já não era novo (segundo movimento da
prioresa, mas um movimento tranquilo), que, se estivessem de acordo,
esse irmão poderia vir morar com ele e o ajudar, era excelente jardineiro, a
comunidade tiraria bom proveito de seus serviços, melhores que os dele
próprio; que, por outro lado, se não admitissem seu irmão, como ele, mais
velho, se sentia cansado e insuficiente para o trabalho, seria obrigado, com
muito pesar, a ir embora; e que seu irmão tinha uma neta que ele traria
consigo, e seria educada na graça de Deus ali no convento, e que talvez,
quem sabe, um dia viria a ser uma religiosa.
Quando ele terminou de falar, a prioresa interrompeu a passagem do
rosário por entre seus dedos e lhe disse:
— O senhor poderia, de agora até a noite, arranjar uma barra de ferro?
— Para quê?
— Para servir de alavanca.
— Sim, reverenda madre — respondeu Fauchelevent.
A prioresa, sem acrescentar uma palavra, levantou-se e entrou na sala
vizinha, que era a sala do capítulo, onde provavelmente estavam reunidas
as madres vocais.
Fauchelevent ficou só.

III. MADRE INNOCENTE


Um quarto de hora, aproximadamente, se passou. A prioresa retornou e
voltou a sentar-se na cadeira.
Os dois interlocutores pareciam preocupados. Vamos resumir o melhor
que pudermos o diálogo que se seguiu.
— Pai Fauvent?
— Reverenda madre!
— Conhece a capela?
— Ali eu tenho um lugarzinho de onde ouço a missa e os ofícios.
— Já entrou alguma vez no coro para fazer algum trabalho?
— Duas ou três vezes.
— É preciso que erga uma pedra.
— Pesada?
— A laje do pavimento que fica ao lado do altar.
— A pedra que fecha a galeria?
— Sim.
— Eis uma ocasião em que seria bom haver dois homens.
— A madre Ascension, que é forte como um homem, o ajudará.
— Uma mulher nunca é um homem!
— Mas só temos uma mulher para ajudá-lo. Cada um faz aquilo que
pode. Não é porque dom Mabillon dá quatrocentas e dezessete epístolas de
São Bernardo, e Merlonus Horstius dá apenas trezentas e sessenta e sete,
que vou desprezar Merlonus Horstius.
— Nem eu tampouco.
— O mérito está em trabalhar de acordo com suas forças. Um claustro
não é um canteiro de obras.
— E uma mulher não é um homem. Meu irmão é que é forte!
— Além disso o senhor terá uma alavanca.
— É o único tipo de chave que serve nesse tipo de porta.
— A pedra tem uma argola.
— Passo a alavanca por ela.
— E a pedra está colocada de modo a girar como um pivô.
— Está bem, reverenda madre. Abrirei a galeria.
— E as quatro madres cantoras estarão presentes.
— E quando a galeria estiver aberta?
— Terá de fechá-la novamente.
— Só isso?
— Não.
— Dê-me suas ordens, reverendíssima madre.
— Fauvent, confiamos no senhor.
— Eu estou aqui para fazer de tudo.
— E para calar sobre tudo.
— Sim, reverenda madre.
— Quando a galeria estiver aberta…
— Torno a fechá-la.
— Mas antes…
— O que, reverenda madre?
— É preciso descer por ali uma outra coisa.
Fez-se silêncio. A prioresa, após um movimento do lábio inferior que
parecia exprimir hesitação, quebrou o silêncio.
— Pai Fauvent?
— Reverenda madre?
— O senhor sabe que morreu uma madre esta manhã?
— Não.
— Então não ouviu o sino?
— Não se ouve nada no fundo do jardim.
— Verdade?
— Mal distingo minha campainha.
— Ela morreu bem no começo da manhã.
— E, além disso, esta manhã o vento não soprava para os meus lados.
— Foi madre Crucifixion. Uma bem-aventurada.
A prioresa calou-se, mexeu os lábios por um momento como se fizesse
uma oração mental, e retomou:
— Há três anos, apenas por ter visto madre Crucifixion rezar, uma
jansenista, senhora de Béthune, tornou-se ortodoxa.
— Ah! Sim, agora eu ouço o dobre, reverenda madre.
— As madres levaram-na para a câmara das mortas, que dá para a
igreja.
— Sei.
— Homem nenhum além do senhor pode, nem deve, entrar naquela
câmara. Cuide bem disso. Seria o cúmulo que um homem entrasse na
câmara das mortas!
— Certamente!
— Hein?
— Certamente!
— O que está dizendo?
— Digo certamente.
— Certamente o quê?
— Reverenda madre, não estou dizendo certamente que, estou só
dizendo certamente.
— Não o entendo. Por que diz certamente?
— Para falar como a senhora, reverenda madre.
— Mas eu não disse certamente.
— A senhora não disse, mas eu digo para falar como a senhora.
Nesse momento soaram nove horas.
— Às nove horas da manhã, e a qualquer hora, bendito e louvado seja o
Santíssimo Sacramento do altar! — disse a prioresa.
— Amém! — respondeu Fauchelevent.
As horas soaram a calhar, pondo fim àqueles Certamente. É provável
que, sem isso, a prioresa e Fauchelevent não saíssem jamais daquele
labirinto.
Fauchelevent enxugou a testa.
A prioresa fez um novo murmúrio interior, provavelmente sagrado,
depois ergueu a voz.
— Em vida, madre Crucifixion fazia conversões; depois de morta, fará
milagres.
— Ela os fará! — respondeu Fauchelevent, acertando o passo e se
esforçando para não tornar a vacilar.
— Pai Fauvent, a comunidade foi abençoada na pessoa da madre
Crucifixion. É certo que não é dado a todo o mundo morrer como o cardeal
de Bérulle, rezando a santa missa, e exalar a alma a Deus pronunciando
estas palavras: Hanc igitur oblationem.2 Mas, mesmo não alcançando
tamanha ventura, madre Crucifixion teve uma morte muito preciosa.
Esteve consciente até o derradeiro instante. Falava conosco e depois falava
com os anjos. Fez-nos suas últimas recomendações. Se o senhor tivesse
um pouco mais de fé, e pudesse ter estado em sua cela, ela teria curado sua
perna apenas tocando-a. Ela sorria. Sentia-se que ela ressuscitava em
Deus. Houve um pouco de paraíso nessa morte.
Fauchelevent julgou que aquilo era uma oração que terminava.
— Amém — disse ele.
— Pai Fauvent, devemos fazer a vontade dos mortos.
A prioresa passou entre os dedos algumas contas de seu rosário.
Fauchelevent estava calado. Ela continuou.
— Consultei, sobre essa questão, vários eclesiásticos que, trabalhando
em Notre-Seigneur, se ocupam do exercício da vida clerical e tiram daí um
fruto admirável.
— Reverenda madre, ouve-se bem melhor o dobre daqui do que lá no
jardim.
— Além disso, é mais que uma morta, é uma santa.
— Como a senhora, reverenda madre.
— Ela dormia em seu caixão havia vinte anos, com expressa permissão
do nosso santo padre Pio VII.
— O que coroou o imp… Buonaparte.
Para um homem hábil como Fauchelevent, a recordação era
inoportuna. Felizmente, a prioresa, completamente voltada a seus
pensamentos, não o ouviu, e continuou:
— Pai Fauvent?
— Reverenda madre!
— São Deodoro, arcebispo da Capadócia, quis que fosse escrito em sua
sepultura só esta palavra: Acarus, que significa verme da terra, e fizeram-
lhe a vontade. Não é verdade?
— Sim, reverenda madre.
— O bem-aventurado Mezzocane, abade de Áquila, quis ser enterrado
sob a forca, o que foi feito.
— É verdade.
— São Terêncio, bispo do Porto, na embocadura do Tibre, pediu que
gravassem na pedra da sepultura o sinal que se colocava na cova dos
parricidas, na esperança de que os passantes cuspissem em seu túmulo.
Isso foi feito. É preciso obedecer aos mortos.
— Assim seja.
— O corpo de Bernard Guidonis, nascido na França, perto de Roche–
Abeille, foi, como ele ordenara, e contra a vontade do rei de Castela,
conduzido à igreja dos Dominicanos de Limoges, embora Bernard
Guidonis tivesse sido bispo de Tuy, na Espanha. Alguém pode dizer o
contrário?
— Não a isso, reverenda madre.
— O fato é atestado por Plantavit de la Fosse.
Outras contas do rosário ainda foram rezadas silenciosamente. A
prioresa retomou:
— Pai Fauvent, madre Crucifixion será sepultada no caixão em que
dormia havia vinte anos.
— É justo.
— É uma continuação do sono.
— Então deverei fechá-la naquele caixão?
— Sim.
— E deixaremos de lado o caixão das pompas?
— Exatamente.
— Estou às ordens da reverendíssima comunidade.
— As quatro madres cantoras irão ajudá-lo.
— A pregar o caixão? Para isso não preciso delas.
— Não. A descer o caixão.
— Descer aonde?
— À galeria.
— Que galeria?
— Sob o altar.
Fauchelevent sobressaltou-se.
— A galeria por baixo do altar!
— Por baixo do altar.
— Mas…
— O senhor vai estar com uma barra de ferro.
— Sim, mas…
— Levantará a pedra com a barra por meio da argola.
— Mas…
— É preciso obedecer aos mortos. Ser enterrada na galeria sob o altar
da capela, não ir para solo profano, permanecer morta no mesmo lugar
onde em vida costumava orar; foi esse o voto supremo de madre
Crucifixion. Ela nos pediu isso, quer dizer, ordenou.
— Mas é proibido.
— Proibido pelos homens, ordenado por Deus.
— E se vierem a saber?
— Temos confiança no senhor.
— Oh! Eu… eu sou como uma pedra do seu muro.
— O capítulo está reunido. As madres vocais, que acabo de consultar,
e que estão deliberando, decidiram que madre Crucifixion seria enterrada,
conforme seu desejo, em seu caixão, sob nosso altar. Imagine, pai Fauvent,
se acontecessem milagres por aqui! Que glória em Deus para a
comunidade! Os milagres saindo dos túmulos.
— Mas, reverenda madre, se o agente da comissão de salubridade…
— São Bento II, em matéria de sepultura, resistiu a Constantino
Pogonato.
— No entanto, o comissário de polícia…
— Chonodemaire, um dos sete reis alemães que entraram na Gália
durante o império de Constâncio, reconheceu expressamente o direito dos
religiosos de serem enterrados em religião, isto é, debaixo do altar.
— Mas o inspetor da prefeitura…
— O mundo não é nada perante a cruz. Martinho, décimo primeiro
general dos Cartuxos, deu esta divisa à sua Ordem: Stat crux dum volvitur
orbis.3
— Amém — disse Fauchelevent, imperturbável neste modo de sair de
embaraços todas as vezes que ouvia latim.
Qualquer auditório serve para quem ficou calado por tanto tempo. No
dia em que o retórico Gimnástoras saiu da prisão, tendo na cabeça grande
número de dilemas e silogismos, parou diante da primeira árvore que
encontrou, fez-lhe um longo discurso, fez grandes esforços para convencê-
la. A prioresa, habitualmente sujeita à barreira do silêncio, e com seu
reservatório a transbordar, levantou-se e exclamou com uma loquacidade
de represa aberta:
— À minha direita, tenho Bento, à minha esquerda, Bernardo. Que
Bernardo é esse? É o primeiro abade de Clairvaux. Fontaines, na
Borgonha, é uma terra abençoada por tê-lo visto nascer. Seu pai chamava-
se Técelin e sua mãe Alèthe. Bernardo começou por Cîteaux para terminar
em Clairvaux; foi ordenado abade pelo bispo de Châlon-sur-Saône,
Guillaume de Champeaux; teve setecentos noviços e fundou cento e
sessenta mosteiros; no concílio de Sens, em 1140, derrotou Abelardo,
Pierre de Bruys e Henry, seu discípulo, e uma outra espécie de devotos que
chamavam de Apostólicos; confundiu Arnauld de Bresce, fulminou o
monge Raoul, o matador de judeus, dominou, em 1148, o concílio de
Reims, fez condenar Gilbert de la Porée, bispo de Poitiers; fez condenar
Éon de l’Étoile, sanou desavenças entre príncipes, esclareceu o rei Luís, o
Jovem, aconselhou o papa Eugênio III, regulamentou o Templo, pregou a
Cruzada, fez duzentos e cinquenta milagres em sua vida, trinta e nove em
um único dia. Que Bento é este? É o patriarca de Monte Cassino, o
segundo fundador da Santidade Claustral, é o Basílio do Ocidente. Sua
Ordem produziu quarenta papas, duzentos cardeais, cinquenta patriarcas,
mil e seiscentos arcebispos, quatro mil e seiscentos bispos, quatro
imperadores, doze imperatrizes, quarenta e seis reis, quarenta e uma
rainhas, três mil e seiscentos santos canonizados; e dura há mil e
quatrocentos anos. De um lado São Bernardo, do outro, o agente da
salubridade! De um lado São Bento, do outro o inspetor de higiene
pública! O Estado, a higiene pública, as pompas fúnebres, os
regulamentos, a administração, será que conhecemos isso? Alguns
passantes ficariam indignados de ver como nos tratam. Não temos nem
mesmo o direito de dar nosso pó a Jesus Cristo! Sua salubridade é uma
invenção revolucionária. Deus subordinado ao comissário de polícia;
assim é este século. Silêncio, Fauvent!
Fauchelevent, sob tal torrente, não estava muito à vontade. A prioresa
continuou.
— O direito do mosteiro à sepultura não deixa dúvidas em ninguém.
Só os fanáticos e os aventureiros para negá-lo. Vivemos em tempos de
terrível confusão. Ignora-se o que se deve saber e sabe-se o que se deve
ignorar. Somos sórdidos e ímpios. É uma época em que as pessoas não
distinguem entre o grandíssimo São Bernardo e o chamado Bernardo dos
Pobres Católicos, eclesiástico cheio de bondade que viveu no século XIII.
Outros blasfemam a ponto de comparar o cadafalso de Luís XVI com a
cruz de Jesus Cristo. Luís XVI era apenas um rei. Tomemos, então,
cuidado com Deus! Já não há justo nem injusto. Sabe-se o nome de
Voltaire e não se sabe o nome de César de Bus. E, contudo, César de Bus é
um bem-aventurado e Voltaire um desgraçado. O último arcebispo, o
cardeal de Périgord, nem sequer sabia que Charles de Gondren sucedeu a
Bérulle, e François de Bourgoin a Gondren, e Jean François Senault a
Bourgoin, e o pai de Sainte-Marthe a Jean François Senault. Conhece-se o
nome do padre Coton, não porque foi um dos três que cooperaram para a
fundação do Oratório, mas por ter sido objeto das imprecações do rei
huguenote Henrique IV. O que faz São Francisco de Sales ser simpático à
gente da sociedade é o fato de trapacear no jogo. E, depois, ataca-se a
religião. Por quê? Porque tem havido maus padres, porque Saggitaire,
bispo de Gap, era irmão de Salone, bispo de Embrun, e porque ambos
seguiram Mommol. O que acarreta isso? Acaso isso impede Martinho de
Tours de ser um santo e de ter dado metade de sua capa a um pobre?
Perseguem-se os santos. Fecham-se os olhos às verdades. As trevas é que
são o habitual. Os animais mais ferozes são os animais cegos. Ninguém
pensa verdadeiramente no inferno. Oh! Gente maldosa! Por parte do rei
significa, hoje em dia, por parte da Revolução. Não se sabe mais o que se
deve, nem aos vivos, nem aos mortos. É proibido morrer santamente. O
sepulcro é um negócio civil. É de causar horror. São Leão II escreveu
expressamente duas cartas, uma a Pierre Notaire, outra ao rei dos
visigodos, para que combatessem e rejeitassem, nas questões referentes
aos mortos, a autoridade do exarca e a supremacia do imperador. Gauthier,
bispo de Châlons, opunha-se, neste ponto, a Othon, duque de Borgonha. A
antiga magistratura estava de acordo. Outrora, tínhamos voz no capítulo,
mesmo sobre as coisas do século. O abade de Cîteaux, geral da Ordem, era
conselheiro nato do Parlamento de Borgonha. Fazemos de nossos mortos o
que bem entendemos. O corpo do próprio São Bento não está na França, na
abadia de Fleury, chamada de Saint-Benoît-sur-Loire, embora ele tenha
morrido na Itália, em Monte Cassino, um sábado, 21 de março do ano de
543? Tudo isso é incontestável. Eu abomino os coristas, odeio os priores,
execro os hereges, mas detestaria ainda mais quem me sustentasse o
contrário. Basta ler Arnould Wion, Gabriel Bucelin, Trithème, Maurolicus
e Dom Luc d’Achery.
A prioresa respirou, depois voltou-se para Fauchelevent:
— Pai Fauvent, está certo?
— Está certo, reverenda madre.
— Podemos contar com o senhor?
— Vou obedecer.
— Está bem.
— Sou inteiramente dedicado ao convento.
— Ficamos entendidos. O senhor fecha o caixão. As irmãs o levam
para a capela. Canta-se o ofício dos mortos. Depois voltamos para o
claustro. Entre onze horas e meia-noite, o senhor vem com sua barra de
ferro. Tudo vai transcorrer no maior segredo. Na capela estarão apenas as
quatro madres cantoras, madre Ascension e o senhor.
— E a irmã que estiver em penitência?
— Ela não olhará.
— Mas ouvirá.
— Ela não ouvirá. Além disso, o que o claustro sabe o mundo ignora.
Houve outra pausa. E a prioresa continuou:
— Mas tire o chocalho. É melhor que a irmã em penitência não
perceba que o senhor está ali.
— Reverenda madre?
— Que é, Pai Fauvent?
— O médico dos mortos já fez a visita de costume?
— Virá fazê-la hoje às quatro horas. Já fizemos soar o toque que o
chama. Mas então o senhor realmente não ouve toque nenhum?
— Só presto atenção ao que chama por mim.
— Assim está bem, Pai Fauvent.
— Reverenda madre, será preciso uma alavanca que tenha pelo menos
um metro e oitenta.
— Onde irá arranjá-la?
— Onde não faltam grades não faltam barras de ferro. No fundo do
jardim tenho um monte de ferro velho.
— Não se esqueça, mais ou menos três quartos de hora antes da meia-
noite.
— Reverenda madre?
— Que é?
— Se a senhora tiver mais algum trabalho como este, meu irmão é que
é forte. Um turco!
— Faça tudo o mais rápido possível.
— Não posso ir rápido assim. Estou enfermo; é por isso que preciso de
ajuda. Sou coxo.
— Ser coxo não é defeito, e pode ser uma bênção. O imperador
Henrique II, que combateu o antipapa Gregório e restabeleceu Bento VIII,
tem dois apelidos: o Santo, e o Coxo.
— Ter dois é bom — murmurou Fauchelevent, que, na realidade, não
era muito fino de ouvido.
— Pai Fauvent, estou pensando, melhor uma hora inteira. Não é
demais. Esteja perto do altar-mor com sua barra de ferro às onze horas. O
ofício começa à meia-noite. Tudo deve estar concluído um bom quarto de
hora antes.
— Farei tudo para provar meu zelo à comunidade. Está combinado.
Fecharei o caixão. Às onze horas em ponto devo estar na capela. Lá
estarão as madres cantoras e a madre Ascension. Dois homens, é o que
seria melhor. Enfim, não importa! Levarei minha alavanca. Abriremos a
galeria, desceremos o caixão e tornaremos a fechar a galeria. Depois disso,
nenhum rastro. O governo não suspeitará de nada. Reverenda madre, está
tudo arranjado assim?
— Não.
— O que há ainda?
— Resta o caixão vazio.
Isso causou uma pausa. Fauchelevent pensava. A prioresa pensava.
— Pai Fauvent, que faremos do caixão vazio?
— Vamos enterrá-lo.
— Vazio?
Outro silêncio. Fauchelevent fez com a mão esquerda essa espécie de
gesto com que se despede uma pergunta inquietante.
— Reverenda madre, sou eu que vou fechar o caixão na sala inferior da
igreja, e lá não pode entrar mais ninguém além de mim; eu cobrirei o
caixão com um pano mortuário.
— Sim, mas os que o conduzirem, ao colocá-lo no carro e descê-lo à
cova, perceberão que não leva nada dentro.
— Ah, di…! — exclamou Fauchelevent.
A prioresa começou um sinal da cruz, olhando fixamente o jardineiro.
Abo ficou-lhe preso na garganta.
Apressou-se em improvisar um expediente para fazer esquecer a praga.
— Reverenda madre, coloco terra no caixão. Vai parecer que há
alguém dentro.
—Tem razão. A terra é a mesma coisa que o homem. Então o senhor
dará um jeito no caixão vazio?
— Deixe por minha conta.
O rosto da prioresa, até então preocupado e obscuro, serenou-se. Ela
fez-lhe o sinal do superior que despede o inferior. Fauchelevent dirigiu-se
à porta. Quando ia sair, a prioresa elevou docemente a voz.
— Pai Fauvent, estou satisfeita com o senhor; amanhã, depois do
enterro, traga-me seu irmão e diga-lhe que traga consigo a filha.

IV. EM QUE JEAN VALJEAN PARECE REALMENTE


TER LIDO AUSTIN CASTILLEJO
Passos de coxo são como olhares de estrábico; nunca chegam com
presteza ao alvo. Além disso, Fauchelevent estava perplexo. Levou um
quarto de hora para chegar à choupana do jardim. Cosette já estava
acordada. Jean Valjean a sentara perto do fogo. No momento em que
Fauchelevent entrou, mostrava-lhe o cesto do jardineiro pendurado na
parede e dizia-lhe:
— Ouça bem, minha querida Cosette, teremos de sair desta casa, mas
retornaremos e aqui ficaremos muito bem. O senhor que mora aqui vai
levá-la nas costas, ali dentro. Você vai esperar por mim na casa de uma
senhora. Irei encontrar-me com você. Acima de tudo, se não quiser que a
Thénardier a leve outra vez, obedeça e não diga nada!
Cosette, séria, fez um aceno de cabeça.
Ao rumor de Fauchelevent abrindo a porta, Jean Valjean voltou-se.
— E então?
— Tudo está arranjado e nada está arranjado — disse Fauchelevent. —
Tenho permissão para deixá-lo entrar, mas antes de fazê-lo entrar é
necessário fazê-lo sair. Aí é que está o problema. Quanto à pequena, é
fácil.
— Vai levá-la?
— Vai ficar calada?
— Tem minha palavra.
— Mas, e o senhor, Pai Madeleine?
E, após um silêncio cheio de ansiedade, Fauchelevent exclamou:
— Mas saia então por onde entrou!
Jean Valjean, como da primeira vez, limitou-se a dizer:
— Impossível.
Fauchelevent, falando mais a si próprio do que a Jean Valjean,
murmurou:
— Há uma outra coisa que me atormenta. Eu disse que colocaria terra.
Mas eu acho que terra, lá dentro, em vez de um corpo, não ficará parecido,
não pode ser, vai se deslocar, se mexer. Os homens vão perceber.
Compreende, Pai Madeleine, o governo irá perceber.
Jean Valjean olhou bem para ele e achou que estivesse delirando.
Fauchelevent continuou:
— Como di… acho o senhor vai sair? É que tudo isso deve estar
concluído amanhã. É amanhã que eu devo trazê-lo. A prioresa estará a sua
espera.
Então ele explicou a Jean Valjean que era uma recompensa por um
serviço que prestava à comunidade. Que estava entre suas atribuições
participar dos sepultamentos, que fecharia os caixões e ajudaria o coveiro
no cemitério. Que a religiosa morta pela manhã pedira para ser sepultada
no caixão que lhe servia de leito, e enterrada na galeria sob o altar da
capela. Que isso era proibido pelos regulamentos policiais, mas que era
uma dessas mortas a quem não se recusa nada. Que a prioresa e as madres
vocais tencionavam executar o desejo da defunta. Que era tanto pior para o
governo. Que fecharia o caixão ainda na cela, ergueria a pedra na capela e
desceria a morta para a galeria. E que, para agradecê-lo, a prioresa admitia
no convento seu irmão como jardineiro e sua sobrinha como interna. Que
seu irmão era o senhor Madeleine e que sua sobrinha era Cosette. Que a
prioresa lhe dissera para trazer o irmão na noite seguinte, após o enterro
postiço no cemitério. Mas que não podia trazer de fora o senhor Madeleine
se ele não estivesse fora. Que esse era o primeiro problema. E depois tinha
ainda outro problema, o caixão vazio.
— Que história é essa de caixão vazio? — perguntou Jean Valjean.
Fauchelevent respondeu:
— O caixão da administração.
— Que caixão, e que administração?
— Morre uma religiosa. Vem o médico da municipalidade e diz: há
uma religiosa morta. O governo manda um caixão. No dia seguinte, manda
um carro fúnebre e os carregadores para pegarem e levarem o caixão ao
cemitério. Os carregadores virão, levantarão o caixão; não haverá nada
dentro.
— Coloque então alguma coisa.
— Um defunto? Não tenho nenhum.
— Não.
— Então o quê?
— Um vivo.
— Que vivo?
— Eu — disse Jean Valjean.
Fauchelevent, que estava sentado, ergueu-se, como se debaixo da
cadeira uma bomba tivesse estourado.
— O senhor?
— Por que não?
Jean Valjean deu um desses raros sorrisos que aconteciam como um
raio de sol em um céu de inverno.
— O senhor disse, Pai Fauchelevent, que a madre Crucifixion estava
morta, e eu acrescentei: e o Pai Madeleine está enterrado. Assim será.
— Ah, bom, o senhor está rindo, não fala seriamente.
— Muito seriamente. Não é preciso sair daqui?
— Sem dúvida.
— Eu lhe disse que arranjasse, também para mim, um cesto e uma
tampa.
— E daí?
— O cesto será de pinho, e a tampa, um pano preto.
— Preto não; branco. As religiosas são enterradas de branco.
— Que seja, um pano branco.
— O senhor não é um homem como os outros, Pai Madeleine.
Ver imaginações como essas, que não são mais do que as selvagens e
temerárias invenções das galés, sair das coisas pacíficas que o rodeavam
para entremear-se no que chamava de “ramerrão do convento”, era, para
Fauchelevent, uma admiração comparável à de um transeunte que visse
uma gaivota pescando no córrego da rua Saint-Denis.
Jean Valjean prosseguiu:
— Trata-se de sair daqui sem ser visto. Esse é um jeito. Mas, primeiro,
dê-me outras informações. Como isso vai ser feito? Onde está esse caixão?
— Qual, o vazio?
— Sim.
— Embaixo, no que se chama de sala das mortas. Está sobre dois
cavaletes, coberto com o pano mortuário.
— Que comprimento tem o caixão?
— Dois metros.
— O que é essa sala das mortas?
— É uma sala ao rés do chão, com uma janela gradeada que dá para o
jardim e se fecha por fora com uma veneziana, e duas portas: uma que vai
para o convento, outra que vai para a igreja.
— Que igreja?
— A igreja da rua, a igreja de todo o mundo.
— O senhor tem as chaves dessas duas portas?
— Não. Tenho a chave da porta que comunica com o convento; o
porteiro tem a chave da porta que comunica com a igreja.
— Quando é que o porteiro abre essa porta?
— Unicamente para deixar passar os carregadores que vêm buscar o
caixão. Tirado o caixão, a porta é novamente fechada.
— Quem é que fecha o caixão?
— Sou eu.
— Quem coloca o pano por cima?
— Sou eu.
— O senhor fica só?
— Nenhum outro homem, exceto o médico da polícia, pode entrar na
sala das mortas. Está até escrito na parede.
— Esta noite, quando todos estiverem dormindo no convento, o senhor
não poderia esconder-me nessa sala?
— Não, mas posso escondê-lo em um quartinho escuro que dá para a
sala das mortas, onde eu deixo minhas ferramentas de enterro; tenho a
guarda e a chave desse quarto.
— A que horas o carro fúnebre virá buscar o caixão amanhã?
— Por volta das três horas. O enterro será feito no cemitério
Vaugirard, pouco antes da noite cair. Não é muito perto.
— Ficarei escondido no quartinho das ferramentas a noite toda e a
manhã toda. E para comer? Vou ter fome.
— Levo-lhe alguma coisa.
— O senhor poderia fechar-me no caixão às duas horas.
Fauchelevent recuou, fazendo estalar os nós dos dedos.
— Mas isso é impossível!
— Ora! Pegar um martelo e pregar alguns pregos em uma tábua!
O que parecia espantoso a Fauchelevent era, repetimos, simples para
Jean Valjean. Jean Valjean havia atravessado piores apuros. Quem quer
que tenha sido prisioneiro conhece a arte de se encolher segundo o
diâmetro das evasões. O preso está sujeito à fuga, como o doente à crise,
que o salva ou o perde. Uma evasão é uma cura. O que não se aceita para
obter-se a cura? Fazer-se fechar e conduzir dentro de um caixão, como um
pacote, viver por bastante tempo em uma caixa, encontrar ar onde nem
existe, economizar a respiração horas seguidas, saber sufocar sem morrer,
aí estavam algumas das sombrias habilidades de Jean Valjean. De resto,
um caixão dentro do qual há um ser vivo, esse expediente de prisioneiro é
também um expediente de imperador. Se formos dar crédito ao monge
Austin Castillejo, este foi o meio que Carlos V, desejando, após sua
abdicação, rever Plombes uma última vez, empregou para fazê-la entrar no
Mosteiro de Saint-Juste e para, depois, fazê-la sair.
Fauchelevent, refletindo um pouco, exclamou:
— Mas como vai fazer para respirar?
— Eu respirarei.
— Dentro daquele caixão! Eu, só de pensar, sinto-me sufocado.
— O senhor deve ter uma verruma, faça alguns pequenos furos, aqui e
ali, em torno da boca, e pregue a tábua de cima sem apertar.
— Sim, mas e se lhe acontecer de tossir ou espirrar?
— Quem se evade não tosse nem espirra.
E acrescentou:
— Pai Fauchelevent, é preciso decidir: ou ser pego aqui, ou aceitar a
saída no carro fúnebre.
Todo o mundo já notou o gosto que os gatos têm em parar e passear
entre os dois batentes de uma porta entreaberta. Quem já não disse a um
gato: “Vamos! Entre!” Também há homens que, em um incidente
entreaberto à sua frente, têm certa tendência a ficar indecisos entre duas
resoluções, correndo o risco de serem esmagados pelo destino, que corta
repentinamente a aventura. Os prudentes em demasia, por mais gatos que
sejam, e por serem gatos, algumas vezes correm maior perigo do que os
audaciosos. Fauchelevent era desta natureza hesitante. Todavia, o sangue-
frio de Jean Valjean o dominava, mesmo contra sua vontade. Ele
murmurou:
— O caso é que não há outro meio.
Jean Valjean retomou:
— A única coisa que me preocupa é o que acontecerá no cemitério.
— Isso é justamente o que não me preocupa — exclamou
Fauchelevent. — Se o senhor tem certeza de sair bem do caixão, eu tenho
certeza de tirá-lo da cova. O coveiro é um beberrão amigo meu. Pai
Mestienne, um velho da antiga vinha. O coveiro coloca os defuntos na
cova e eu coloco o coveiro no bolso. O que vai acontecer, vou lhe dizer.
Chegaremos lá pouco antes de escurecer, três quartos de hora antes de
fecharem as grades do cemitério. O carro irá até a cova. Eu o seguirei, é
minha obrigação. Levarei no bolso um martelo, um cinzel e umas tenazes.
O carro para, os carregadores atam uma corda em volta de seu caixão e
descem-no. O padre faz as orações, faz o sinal da cruz, joga água benta e
se vai. Fico sozinho com Pai Mestienne. É meu amigo, estou lhe dizendo.
De duas, uma: ou ele estará bêbado, ou não estará bêbado. Se não estiver,
proporei: “Venha tomar um trago enquanto o Bon Coing ainda está
aberto”. Eu o levo, faço com que beba, Pai Mestienne não demora a se
embebedar, está sempre meio tocado, faço com que deite embaixo da
mesa, pego seu cartão para poder entrar no cemitério e volto sem ele.
Depois, o resto é por minha conta. Se já estiver bêbado, então direi: “Vá
embora”; em seguida o retiro da cova.
Jean Valjean estendeu-lhe a mão, sobre a qual Fauchelevent se
precipitou com uma tocante efusão camponesa.
— Ficamos entendidos, Pai Fauchelevent. Tudo vai dar certo.
— Desde que nada atrapalhe — pensou Fauchelevent. — Senão, isso
iria tornar-se terrível!
V. NÃO BASTA SER BEBERRÃO PARA SER IMORTAL
No dia seguinte, ao declinar da tarde, os esparsos transeuntes do
bulevar du Maine tiravam o chapéu à passagem de um carro fúnebre de
modelo antigo, ornado de caveiras, tíbias e lágrimas. Dentro dele, havia
um caixão coberto com um pano branco sobre o qual estendia-se uma
vasta cruz preta, semelhante a um grande morto com braços pendentes.
Uma carruagem enlutada, na qual viam-se um padre de sobrepeliz e um
coroinha de barrete vermelho, o seguia. Dois carregadores de uniforme
pardo com enfeites pretos caminhavam à direita e à esquerda do carro
fúnebre. Atrás, vinha um homem idoso, com roupas de trabalhador, que
mancava. O cortejo dirigia-se ao cemitério Vaugirard.
Viam-se, saindo do bolso desse homem, o cabo de um martelo, a
lâmina de um cinzel e as pontas duplas de um par de tenazes.
O cemitério Vaugirard era uma exceção entre os cemitérios de Paris.
Tinha seus usos particulares, do mesmo modo que tinha seu portão
principal e sua porta normal, que os mais antigos, apegados às velhas
expressões, chamavam de porta dos cavaleiros e porta dos pedestres.
Como já dissemos, as bernardinas-beneditinas do Petit-Picpus haviam
obtido permissão de ser enterradas aí, em um terreno à parte e à noite, já
que tal terreno pertencera outrora à comunidade. Nesse cemitério, os
coveiros faziam, então, um serviço vespertino durante o verão e noturno
durante o inverno, ficando sujeitos a uma disciplina particular. Naquele
tempo, as portas dos cemitérios de Paris fechavam-se ao pôr do sol, e,
como essa era uma medida de ordem municipal, o cemitério Vaugirard
devia segui-la, assim como os outros. A porta dos cavaleiros e a dos
pedestres eram duas grades contíguas, próximas a um pavilhão construído
pelo arquiteto Perronet e habitado pelo guarda do cemitério. Essas grades,
então, giravam em suas dobradiças inexoravelmente no instante em que o
sol desaparecia por trás da cúpula de Invalides. Se algum coveiro, naquele
momento, se retardasse no interior do cemitério, teria como único recurso
para sair seu cartão de coveiro, expedido pela administração do serviço
funerário. Havia uma espécie de caixa de correio na veneziana da janela do
guarda. O coveiro jogava seu cartão nessa caixa, o guarda o ouvia cair,
puxava o cordão e a porta dos pedestres se abria. Se o coveiro não trazia
seu cartão, dizia quem era, e o guarda, às vezes já deitado e adormecido,
levantava-se, ia reconhecer o coveiro, e abria a porta com a chave; o
coveiro saía, mas pagava quinze francos de multa.
Esse cemitério, com suas originalidades fora da regra, atrapalhava a
simetria administrativa. Pouco depois de 1830, foi desativado. O cemitério
de Mont-Parnasse o sucedeu, e herdou a famosa taverna pegada ao
cemitério Vaugirard, encimada por um marmelo pintado sobre uma
prancha, e formando ângulo, de um lado com as mesas dos fregueses, e do
outro, com as sepulturas; exibia a seguinte tabuleta: Au Bon Coing [Ao
Bom Marmelo].
O cemitério Vaugirard era o que podia ser chamado de um cemitério
murcho. Vinha caindo em desuso. O mofo o invadia, as flores
desapareciam. Os burgueses pouco se interessavam em ser enterrados em
Vaugirard; cheirava a pobre. O Père-Lachaise, este sim! Ser enterrado no
Père–Lachaise era como ter mobília de acaju. A elegância é reconhecida
assim. O cemitério Vaugirard era um recinto venerável, disposto como
antigo jardim francês. Alamedas retas, buxos, tuias, arbustos, velhos
túmulos debaixo de antigos teixos, mato crescido. A noite ali era trágica.
Tinha um aspecto muito lúgubre.
O sol ainda não havia se posto quando o carro fúnebre com o pano
branco e a cruz preta entrou na avenida do cemitério Vaugirard. O homem
que o seguia mancando não era outro senão Fauchelevent.
O enterro de madre Crucifixition na galeria sob o altar, a saída de
Cosette, a introdução de Jean Valjean na sala das mortas, tudo fora
executado sem embaraços, nada havia estorvado.
Digamos de passagem, a inumação de madre Crucifixion sob o altar do
convento é para nós uma coisa verdadeiramente venial. É uma dessas
faltas que parecem um dever. As religiosas a cumpriram não apenas sem
conflitos, mas com o aplauso de suas consciências. No claustro, o que
chamam de “governo” é uma intervenção na autoridade, intervenção
sempre discutível. Primeiro a regra; quanto ao código, veremos. Homens,
façam quantas leis quiserem, mas guardem-nas para vocês. O tributo a
César nunca é mais que o resto do tributo a Deus. Um príncipe não é nada
ao lado de um princípio.
Fauchelevent mancava atrás do carro fúnebre, muito contente. Suas
duas conspirações gêmeas, uma com as religiosas, a outra com o senhor
Madeleine, uma pelo convento, outra contra, tinham sido bem-sucedidas.
A calma de Jean Valjean era dessas tranquilidades poderosas, que
contagiam. Fauchelevent já não duvidava do sucesso. O que restava a fazer
não era nada. No espaço de dois anos, embebedara dez vezes o coveiro, o
bravo Pai Mestienne, um homem bochechudo. Divertia-se com o Pai
Mestienne. Fazia dele o que queria. Punha na cabeça dele o que era de sua
vontade e imaginação. A cabeça de Mestienne ajustava-se ao boné de
Fauchelevent. A segurança de Fauchelevent era completa.
No momento em que o cortejo entrou na avenida que levava ao
cemitério, Fauchelevent, feliz, olhou para o carro e esfregou as grosseiras
mãos, dizendo a meia voz:
— Aí está uma farsa!
De repente, o carro fúnebre parou; estavam diante da grade. Era
preciso mostrar a licença para enterrar. O homem do serviço funerário
reuniu-se com o porteiro do cemitério. Durante esse diálogo, que sempre
produz uma demora de um ou dois minutos, alguém, um desconhecido
veio colocar-se atrás do carro, ao lado de Fauchelevent. Era uma espécie
de operário, que vestia uma jaqueta com grandes bolsos e trazia um
enxada debaixo do braço.
Fauchelevent olhou para esse desconhecido.
— Quem é o senhor? — perguntou ele.
O homem respondeu:
— O coveiro.
Se alguém sobrevivesse a uma bala de canhão recebida em cheio no
peito, faria a expressão que fez Fauchelevent.
— O coveiro?
— Sim.
— O senhor?
— Eu.
— O coveiro é o Pai Mestienne.
— Era.
— Como! Era?
— Ele morreu.
Fauchelevent estava preparado para tudo, menos para isso, que um
coveiro pudesse morrer. No entanto é verdade; os próprios coveiros
morrem. À força de abrir a cova dos outros, abrem a deles também.
Fauchelevent ficou boquiaberto. Mal teve forças para resmungar:
— Mas não é possível!
— Pois foi assim.
— Mas — replicou fracamente — o coveiro é o Pai Mestienne.
— Depois de Napoleão, Luís XVIII. Depois de Mestienne, Gribier.
Camponês, eu me chamo Gribier.
Fauchelevent, muito pálido, olhou bem para o tal Gribier.
Era um homem alto, magro, lívido, completamente fúnebre. Tinha ar
de um médico frustrado que virou coveiro.
Fauchelevent desatou a rir.
— Ah! Como acontecem coisas estranhas! Morreu o Pai Mestienne. O
pequeno Mestienne morreu, mas ficou o tiozinho Lenoir! Sabe quem é o
tiozinho Lenoir? É o jarro de vinho tinto, com preço no selo de chumbo. É
o jarro de Suresne, do verdadeiro Suresne de Paris! Ah! Então o velho
Mestienne morreu! Fico chateado; era uma boa pessoa. O senhor também
é boa pessoa, não é verdade? Vamos juntos tomar um trago, logo mais.
O homem respondeu:
— Eu estudei. Fiz até o quarto ano. Eu nunca bebo.
O carro fúnebre recomeçou a andar e avançava pela alameda principal
do cemitério.
Fauchelevent afrouxara o passo. Mancava ainda mais por causa da
ansiedade do que pela enfermidade.
O coveiro caminhava adiante dele.
Fauchelevent outra vez passou em revista o inesperado Gribier.
Era um desses homens que, novos, têm aparência de velhos, e que,
magros, são muito fortes.
— Camarada! — gritou Fauchelevent.
O homem voltou-se.
— Eu sou o coveiro do convento.
— Meu colega — disse o homem.
Fauchelevent, iletrado, mas muito esperto, percebeu que tratava com
uma espécie temível, com um bem-falante.
Resmungou:
— Então Pai Mestienne morreu?
— Completamente — respondeu o homem. — O bom Deus consultou
seu livro de prazos. Era a vez do Pai Mestienne. Pai Mestienne está morto.
Fauchelevent repetiu maquinalmente:
— O bom Deus…
— O bom Deus — repetiu o homem com autoridade. — Para os
filósofos, o Padre Eterno; para os jacobinos, o Ser Supremo.
— Então, nós não nos conheceremos melhor? — balbuciou
Fauchelevent.
— Já nos conhecemos. O senhor é camponês e eu sou parisiense.
— Não ficamos bem conhecidos enquanto não bebemos juntos. Quem
esvazia seu copo esvazia seu coração. Venha beber comigo. Isso não se
recusa.
— Primeiro, a obrigação.
Fauchelevent pensou: estou perdido.
Restavam apenas alguns passos para chegar à pequena alameda que
levava ao terreno das religiosas.
O coveiro retomou:
— Camponês, eu tenho sete pequenos para sustentar. Assim como eles
devem comer, eu não devo beber.
E acrescentou, com a satisfação de um homem sério que faz uma bela
frase:
— A fome deles é inimiga da minha sede.
O carro contornou uma moita de ciprestes, deixou a alameda principal,
pegou uma outra menor, entrou pelas terras e embrenhou-se no mato. Isso
indicava a proximidade imediata da sepultura. Fauchelevent afrouxava o
passo, mas não podia diminuir o andar do carro. Felizmente, a terra mole,
e molhada com as chuvas de inverno, prendia as rodas e retardava a
marcha.
Ele se reaproximou do coveiro.
— Há um vinho muito bom de Argenteuil—murmurou Fauchelevent.
— Aldeão — replicou o homem —, não era para eu ser coveiro. Meu
pai era porteiro no Prytanée.4 Destinava-me à literatura. Mas ele teve
problemas. Perdeu na Bolsa. Tive de renunciar a ser autor. Contudo, ainda
sou escrevente público.
— Mas então o senhor não é coveiro? — replicou Fauchelevent,
agarrando-se a esse ramo muito frágil.
— Uma coisa não impede a outra. Eu acumulo.
Fauchelevent não compreendeu essa última palavra.
— Vamos beber — disse ele.
Aqui, torna-se necessária uma observação. Fauchelevent, qualquer que
fosse sua angústia, convidava para beber, mas não se explicava sobre um
ponto: quem pagaria. Normalmente, Fauchelevent convidava, e Pai
Mestienne pagava. O convite para beber resultava, evidentemente, da nova
situação criada pelo novo coveiro, e era preciso fazê-lo, mas o velho
jardineiro deixava, não sem intenção, o proverbial quarto de hora,
chamado de Rabelais, na sombra. Quanto a ele, Fauchelevent, por mais
alarmado que estivesse, não se preocupava em pagar.
O coveiro prosseguiu, com um sorriso superior:
— É preciso comer. Aceitei suceder Pai Mestienne. Quando alguém
quase chegou a concluir seus estudos, é meio filósofo. Ao trabalho das
mãos, acrescentei o trabalho dos braços. Tenho minha barraca de
escrevente público na feira da rua de Sèvres. Sabe? A feira dos Guarda-
chuvas. Todas as cozinheiras da Cruz Vermelha se dirigem a mim. Eu
escrevo suas declarações de amor aos soldados. Pela manhã, escrevo
bilhetes adocicados; à tarde, cavo sepulturas. A vida é assim,
companheiro.
O carro fúnebre avançava. Fauchelevent, no cúmulo da inquietação,
olhava para todos os lados à sua volta. Grandes gotas de suor caíam-lhe da
testa.
— Contudo — continuou o coveiro —, não se pode servir a duas amas.
Preciso escolher, ou a pena ou a enxada. A enxada estraga minhas mãos.
O carro fúnebre parou.
O coroinha desceu da carruagem, e em seguida o padre.
Uma das rodas da frente do carro fúnebre subiu um pouco em um
monte de terra, além do qual via-se uma cova aberta.
— Isto é uma farsa! — repetiu Fauchelevent consternado.

VI. ENTRE QUATRO TÁBUAS


Quem estava no caixão? Como sabemos, Jean Valjean.
Jean Valjean deu um jeito de viver ali dentro, e mal respirava.
É algo estranho até que ponto a segurança da consciência dá segurança
a todo o resto. Toda a combinação premeditada por Jean Valjican
funcionava, e funcionava bem, desde a véspera. Ele contava, assim como
Fauchelevent, com Pai Mestienne. Não duvidava do final. Jamais situação
tão crítica, jamais tranquilidade mais completa.
As quatro tábuas do caixão produzem uma espécie de paz incrível.
Parecia que algo do descanso dos mortos penetrava na tranquilidade de
Jean Valjean.
Do fundo daquele esquife pudera seguir, e seguia, todas as fases do
terrível drama que representava com a morte.
Pouco depois de Fauchelevent acabar de pregar a tábua de cima, Jean
Valjean sentiu que era levado, e depois que andava em um carro. Pela
diminuição dos solavancos, sentiu que passavam do calçamento à terra
batida, isto é, que saíam das ruas e pegavam os bulevares. Por um ruído
surdo, adivinhou que atravessavam a ponte de Austerlitz. Na primeira
parada, percebeu que entravam no cemitério; na segunda parada pensou: é
a sepultura.
De repente, sentiu mãos segurando o caixão; depois, um ruído rouco
em torno das tábuas; deu-se conta de que era uma corda que atavam em
volta do caixão para descê-lo à escavação.
Depois, sentiu uma espécie de atordoamento.
Provavelmente os carregadores e o coveiro haviam balançado o caixão,
abaixando a cabeça antes dos pés. Voltou plenamente a si sentindo-se na
horizontal e imóvel. Acabava de tocar o fundo.
Sentiu um pouco de frio.
Uma voz elevou-se acima dele, glacial e solene. Ouviu pronunciar, tão
lentamente que podia segui-las, uma após a outra, palavras latinas que não
compreendia:
— Qui dormiunt in terrae pulvere, evigilabunt; alii in vitam aeternam,
et alii in opprobrium, ut videant semper.
Uma voz de criança disse:
— De profundis.
A voz grave recomeçou:
— Requiem aeternam dona di Domine.
A voz da criança respondeu:
— Et lux perpetua luceat ei.5
Ouviu, sobre a tábua que o cobria, algo como suaves batidas de
algumas gotas de chuva. Era, provavelmente, água benta.
Pensou: “Isso já vai acabar. Mais um pouco de paciência. O padre irá
embora. Fauchelevent levará Mestienne para beber. Todos irão embora.
Depois Fauchelevent voltará sozinho e eu sairei daqui. É coisa de mais
uma hora”.
A voz grave retomou:
— Requiescat in pace.
— Amém — disse a voz da criança.
Jean Valjean, ouvido apurado, ouviu algo como passos afastando-se.
— Estão indo embora — pensou. — Estou sozinho.
De repente, ouviu sobre a cabeça um barulho que lhe pareceu o
estrondo de um trovão.
Era uma pá de terra caindo sobre o caixão.
Uma segunda pá de terra tornou a cair.
Um dos buracos por onde ele respirava acabava de fechar-se.
Uma terceira pá de terra caiu.
E depois uma quarta.
Há coisas mais fortes do que o homem mais forte.
Jean Valjean desmaiou.

VII. ONDE SE ENCONTRA A ORIGEM DA


EXPRESSÃO: NE PAS PERDRE LA CARTE6
Eis o que acontecia acima do caixão em que Jean Valjean se
encontrava.
Quando o carro mortuário se afastou, e o padre e o coroinha entraram
novamente na carruagem e partiram, Fauchelevent, que não despregava os
olhos do coveiro, viu que este se abaixava e pegava a pá, cravada a prumo
no monte de terra.
Então Fauchelevent tomou uma resolução suprema.
Colocou-se entre o coveiro e a cova, cruzou os braços e disse:
— Quem paga sou eu!
O coveiro olhou para ele com espanto e respondeu:
— O que é, camponês?
Fauchelevent repetiu:
— Quem paga sou eu!
— O quê?
— O vinho.
— Que vinho?
— O Argenteuil.
— O Argenteuil onde?
— No Bon Coing.
— Ora! Vá para o diabo! — disse o coveiro.
E atirou mais uma pá de terra sobre o caixão.
O caixão produziu um som oco. Fauchelevent sentiu-se balançar e
prestes a cair na cova. Gritou, com uma voz à qual começava a misturar-se
um sufocar de agonia.
— Camarada, antes que o Bon Coing feche!
O coveiro colocou mais terra na pá. Fauchelevent continuou:
— Eu pago!
Segurou o braço do coveiro.
— Ouça-me, camarada. Eu sou o coveiro do convento e vim aqui para
ajudá-lo. É um serviço que pode ser feito à noite. Vamos começar bebendo
um trago.
E, ao mesmo tempo que falava, e que se agarrava a essa insistência
desesperada, fazia esta lúgubre reflexão: “E mesmo que beba, será que
ficará embriagado?”
— Camponês — disse o coveiro —, se faz questão, consinto. Vamos
beber. Mas depois do serviço, e não antes.
E deu impulso à sua pá. Fauchelevent o reteve.
— É do Argenteuil, de seis!
— Ai! — disse o coveiro. — O senhor é um tocador de sinos. Din don,
din don; só sabe dizer isso. Vá passear.
E atirou a segunda pá.
Fauchelevent chegava ao momento em que já não se sabe mais o que
dizer.
— Mas venha beber — gritou —; sou eu que pago!
— Só depois de colocarmos a criança na cama — disse o coveiro.
E atirou a terceira pá.
Depois, cravou a pá na terra e acrescentou:
— Não vê, vai fazer frio esta noite, e a morta vai gritar atrás de nós se
a deitarmos aí sem coberta.
Naquele momento, ao encher sua pá, o coveiro curvou-se, e o bolso de
sua jaqueta abriu-se.
O olhar perdido de Fauchelevent caiu maquinalmente naquele bolso, e
ali se fixou.
O sol ainda não se escondera no horizonte; havia claridade suficiente
para que se pudesse distinguir alguma coisa branca no fundo daquele bolso
boquiaberto.
Todo o brilho que pode ter o olhar de um camponês da Picardia
atravessou as pupilas de Fauchelevent. Acabava de ocorrer-lhe uma ideia.
Sem que o coveiro, completamente entretido com sua pá de terra,
percebesse, meteu-lhe a mão no bolso, pelo lado de trás, e tirou dali a
coisa branca que estava no fundo.
O coveiro atirou na cova a quarta pá de terra.
No momento em que ele se voltava para pegar a quinta, Fauchelevent
olhou para ele com profunda serenidade e disse:
— A propósito, novo coveiro, o senhor está com seu cartão?
— Que cartão? — atalhou o coveiro interrompendo sua tarefa.
— O sol logo vai se pôr.
— É bom. Que coloque sua touca de dormir.
— E a grade do cemitério vai se fechar.
— E daí?
— Está com seu cartão?
— Ah! Meu cartão! — disse o coveiro.
E remexeu seu bolso.
Um bolso remexido, remexeu o outro. Passou aos bolsos da jaqueta,
explorou o primeiro, revirou o segundo.
— Mas não — disse —, estou sem meu cartão. Devo tê-lo esquecido.
— Quinze francos de multa! — disse Fauchelevent.
O coveiro ficou verde. O verde é a palidez das pessoas lívidas.
— Ai! Jesus-Meu Deus! — exclamou ele. — Quinze francos de multa!
— Três moedas de cem soldos — disse Fauchelevent.
O coveiro deixou cair a pá.
Tinha chegado a vez de Fauchelevent.
— Mas o que é isso, novato — disse Fauchelevent —, nada de
desespero. Não é o caso de se suicidar, e aproveitar a cova. Quinze francos
são quinze francos, e além disso o senhor pode não os pagar. Eu sou velho,
o senhor é novo. Conheço os truques, os triques e os troques. Vou dar-lhe
um conselho de amigo. Uma coisa é clara, que o sol vai se pôr, está quase
tocando a cúpula, e que dentro de cinco minutos o cemitério vai fechar.
— É verdade — respondeu o coveiro.
— Em cinco minutos, o senhor não terá tempo de encher a cova,
porque ela é funda como os diabos, essa cova, e de chegar a tempo de sair
antes que a grade seja fechada.
— Está certo.
— Nesse caso, quinze francos de multa.
— Quinze francos.
— Mas o senhor tem tempo… Onde mora?
— A dois passos da barreira, a um quarto de hora daqui. Na rua
Vaugirard, número 87.
— Terá tempo, se andar depressa, de sair imediatamente.
— Está certo.
— Uma vez para lá da grade, corra até sua casa, pegue seu cartão, volte
e o porteiro do cemitério vai abrir-lhe. Estando com seu cartão, não pagará
nada. E então enterre seu morto. Eu, enquanto espero, tomo conta dele
para o senhor, para que não fuja.
— Devo-lhe a vida, camponês!
— Corra — disse Fauchelevent.
O coveiro, cheio de reconhecimento, apertou-lhe a mão e saiu
correndo.
Quando o coveiro desapareceu dentro do matagal, Fauchelevent
aplicou o ouvido até perceber seus passos se perderem; depois, debruçou-
se na cova e disse a meia voz:
— Pai Madeleine!
Ninguém respondeu.
Fauchelevent estremeceu. Mais rolou para dentro da cova do que
desceu, jogou-se na cabeceira do caixão e gritou:
— O senhor está aí?
Silêncio no caixão.
Fauchelevent, mal respirando de tanto que tremia, pegou seu cinzel e
seu martelo e fez saltar a tábua que cobria o caixão.
O rosto de Jean Valjean apareceu no crepúsculo, olhos fechados,
pálido.
Os cabelos de Fauchelevent se eriçaram, ele se pôs de pé, depois caiu
encostado à cova, a ponto de dobrar-se sobre o caixão. Olhou para Jean
Valjean.
Jean Valjean jazia pálido e imóvel.
Fauchelevent murmurou em voz baixa, como um sopro:
— Está morto!
E, endireitando-se, cruzando os braços tão violentamente que seus dois
punhos fechados bateram em seus ombros, gritou:
— Aí está como eu o salvei!
Então, o pobre homem começou a soluçar. Monologando, pois é um
erro supor que o monólogo não faz parte da natureza. As fortes agitações
falam muitas vezes em voz alta.
— A culpa é do Pai Mestienne! Por que foi morrer, aquele imbecil?
Que necessidade tinha de morrer no momento em que ninguém esperava?
Foi ele quem fez o senhor Madeleine morrer. Pai Madeleine! Já está no
caixão. Já foi trazido. Acabou. Mas também, uma coisa dessas, tem algum
bom senso? Ah! Meu Deus! Está morto! É mesmo, e a pequena dele, o que
vou fazer com ela? O que vai dizer a vendedora de frutas? É possível, meu
Deus, que um homem como este morra assim! Quando me lembro que se
meteu embaixo da minha charrete! Pai Madeleine! Pai Madeleine!
Caramba, ele sufocou, bem que eu falei. Ele não quis acreditar em mim.
Pois bem, aí está feita uma bela travessura! Está morto, esse homem
corajoso, o melhor homem que existiu entre as boas criaturas do bom
Deus! E a menina! Ah! Antes de tudo, não volto para lá! Vou ficar aqui.
Ter feito uma coisa dessas! Nada vale sermos dois velhos se somos dois
velhos malucos. E, antes de mais nada, como ele fez para entrar no
convento? Esse já foi o começo. Não se deve fazer coisas assim. Pai
Madeleine! Pai Madeleine! Pai Madeleine! Madeleine! Senhor Madeleine!
Senhor prefeito! Não me ouve. Agora, saia dessa!
E começou a arrancar os cabelos.
Ouviu-se ao longe, por entre as árvores, um rangido agudo. Era a grade
do cemitério que se fechava.
Fauchelevent inclinou-se sobre Jean Valjean e, de repente, deu um tipo
de salto e recuou tanto quanto possível em uma cova. Jean Valjean tinha os
olhos abertos e olhava para ele.
Ver um morto é medonho, ver uma ressurreição é quase tão medonho
quanto. Fauchelevent tornou-se como que de pedra, pálido, desvairado,
abalado por todos esses excessos de emoção, não sabendo se estava em
presença de um vivo ou de um morto, e olhava para Jean Valjean, que
olhava para ele.
— Eu adormeci — disse Jean Valjean.
E sentou-se no caixão.
Fauchelevent caiu de joelhos.
— Virgem Santíssima! O senhor me assustou!
Depois levantou-se e gritou:
— Obrigado, Pai Madeleine!
Jean Valjean estivera apenas desmaiado. O ar de fora o despertou.
A alegria é o refluxo do terror. Fauchelevent custara quase tanto quanto
Jean Valjean para voltar a si.
— Então o senhor não está morto! Oh! Que fôlego o senhor tem! Tanto
o chamei, que o senhor voltou a si. Quando o vi de olhos fechados, pensei:
puxa, ele está sufocado! Eu ficaria louco furioso, daqueles com camisa de
força. Teriam de colocar-me no Bicêtre. O que queria que eu fizesse se o
senhor tivesse morrido? E sua menina? A vendedora de frutas é que não
iria entender nada. Colocam a criança em seus braços e o avô morre! Que
história! Meus santos do paraíso, que história! Mas o senhor está vivo,
isso é que interessa.
— Estou com frio — disse Jean Valjean.
Essas palavras chamaram Fauchelevent completamente de volta à
realidade, que era urgente. Esses dois homens, mesmo voltando a si,
tinham, sem se dar conta, a alma perturbada, e dentro deles algo de
estranho, que vinha do sinistro desvairamento do lugar.
— Vamos sair depressa daqui — exclamou Fauchelevent.
Remexeu em seu bolso e tirou uma garrafa com a qual estava munido.
— Mas primeiro um gole! — disse ele.
A garrafa terminou o que o ar livre tinha começado. Jean Valjean
tomou um gole de aguardente e voltou plenamente a si.
Saiu do caixão e ajudou Fauchelevent a repregar a tampa.
Três minutos depois estavam fora da cova.
De resto, Fauchelevent estava tranquilo. Não tinha pressa. O cemitério
estava fechado. Não precisavam temer a volta do coveiro. Aquele “novato”
estava em sua casa, ocupado em procurar seu cartão, e muito longe de o
encontrar, já que estava no bolso de Fauchelevent. Sem cartão ele não
podia entrar no cemitério.
Fauchelevent pegou a pá e Jean Valjean a enxada, e os dois enterraram
o caixão vazio.
Quando a cova ficou cheia, Fauchelevent disse a Jean Valjean:
— Vamos embora. Eu levo a pá; leve a enxada.
A noite caía.
Jean Valjean teve alguma dificuldade para se mover e para andar.
Dentro do caixão, se retesara e se tornara um pouco cadáver. Entre aquelas
quatro pranchas, a paralisia da morte tomara suas articulações. Precisou,
de certa maneira, desenregelar-se do sepulcro.
— Tem as pernas adormecidas — disse Fauchelevent. — É pena que eu
seja manco, senão, sebo nas nossas canelas.
— Ora! — respondeu Jean Valjean. — Quatro passos já me colocam no
ritmo.
Foram embora pelos caminhos por onde o carro fúnebre havia passado.
Chegando à grade já fechada e ao posto do guarda, Fauchelevent, que
trazia na mão o cartão do coveiro, jogou-o na caixa, o guarda puxou o
cordão, a porta se abriu, eles saíram.
— Como tudo está indo bem! — disse Fauchelevent. — Que boa ideia
o senhor teve, Pai Madeleine!
Transpuseram a barreira Vaugirard da maneira mais simples do
mundo. Nas proximidades de um cemitério, uma pá e uma enxada são
como um passaporte.
A rua Vaugirard estava deserta.
— Pai Madeleine — disse Fauchelevent caminhando e olhando em
direção às casas —, o senhor tem olhos melhores que os meus. Diga-me
onde é o número 87.
— Justamente aqui — disse Jean Valjean.
— Não há ninguém na rua — tornou Fauchelevent. — Passe-me a
enxada, e espere dois minutos por mim.
Fauchelevent entrou no número 87, subiu até o alto, guiado pelo
instinto que sempre conduz o pobre aos sótãos, e, no escuro, bateu à porta
de uma casinha.
Uma voz respondeu:
— Pode entrar.
Era a voz de Gribier.
Fauchelevent empurrou a porta. A casinha do coveiro era, como todas
aquelas desafortunadas habitações, uma água-furtada sem mobília, mas
abarrotada. Um caixote de embalagem — um esquife, talvez — fazia as
vezes de cômoda; uma lata de manteiga servia de tina; uma esteira servia
de cama; o próprio chão servia de mesa e cadeiras. Em um canto, sobre um
trapo que era um velho pedaço de tapete, uma mulher magra e muitas
crianças formavam um amontoado. Todo aquele pobre interior tinha traços
de um abalo. Parecia ter ocorrido um terremoto ali. Tampas fora de lugar,
farrapos espalhados, jarro quebrado; a mulher havia chorado, as crianças
provavelmente haviam apanhado; vestígios de uma busca encarniçada e
ríspida. Era evidente que o coveiro procurara loucamente seu cartão, e
responsabilizara tudo dentro do casebre, do jarro à sua mulher, por aquela
perda. Parecia desesperado.
Mas Fauchelevent tinha demasiada pressa de chegar ao desenlace da
aventura para reparar neste lado triste de seu êxito.
Entrou e disse:
— Trago de volta sua pá e sua enxada.
Gribier olhou para ele estupetafo.
— É o senhor, camponês?
— E amanhã de manhã encontrará seu cartão com o guarda do
cemitério.
E colocou no chão a pá e a enxada.
— Que quer dizer isso? — perguntou Gribier.
— Quer dizer que o senhor deixou cair seu cartão do bolso, que o achei
no chão depois que o senhor se foi, que enterrei o defunto, que enchi a
cova, que fiz seu serviço, que o guarda devolverá seu cartão, e que o
senhor não terá de pagar quinze francos. É isso, novato.
— Obrigado, camponês! — exclamou Gribier maravilhado. — Da
próxima vez, sou eu que pago a bebida.

VIII. INTERROGATÓRIO BEM-SUCEDIDO


Uma hora depois, noite fechada, dois homens e uma criança chegavam
ao número 62 da viela Picpus. O mais velho deles levantou a argola e
bateu.
Eram Fauchelevent, Jean Valjean e Cosette.
Os dois homens tinham ido buscar Cosette na casa da vendedora de
frutas, rua du Chemin-Vert, para onde Fauchelevent a levara na véspera.
Cosette passara aquelas vinte e quatro horas sem entender nada e tremendo
em silêncio. Tremia tanto que nem conseguira chorar. Também não
comera, nem dormira. A digna vendedora fizera-lhe mil perguntas, sem
obter resposta que não fosse um olhar melancólico, sempre o mesmo.
Cosette nada deixara transpirar de tudo o que ouvira e vira naqueles dois
dias. Adivinhava que atravessavam uma crise. Sentia profundamente que
era preciso “ter juízo”. Quem não experimentou o poder soberano destas
três palavras, pronunciadas de forma acentuada, no ouvido de uma criança
amedrontada: Não diga nada! O medo é um mudo. Além disso, ninguém
guarda melhor um segredo do que uma criança.
A única coisa que fez, quando, após aquelas lúgubres vinte e quatro
horas, tornou a ver Jean Valjean, foi dar tal grito de alegria que qualquer
pessoa capaz de refletir, ouvindo-o, adivinharia nele a saída de um abismo.
Fauchelevent era do convento e conhecia a senha. Todas as portas se
abriram.
Assim foi resolvido o duplo e assustador problema: sair e entrar.
O porteiro, que tinha suas instruções, abriu a pequena porta de
serventia que comunicava o pátio com o jardim, e que há vinte anos era
vista da rua no muro do fundo do pátio, defronte ao portão. Introduziu os
três por essa porta, de onde subiram ao reservado locutório interior onde
Fauchelevent, na véspera, recebera as ordens da prioresa.
A prioresa, de rosário na mão, os esperava. De pé, perto dela, estava
uma madre vogal, com o véu abaixado. Uma discreta vela iluminava, ou
poderíamos quase dizer que fingia iluminar, o locutório.
A prioresa passou Jean Valjean em revista. Nada examina melhor do
que olhos baixos.
Em seguida o questionou:
— O senhor é o irmão?
— Sim, reverenda madre — respondeu Fauchelevent.
— Como se chama?
Fauchelevent respondeu:
— Ultime Fauchelevent.
Efetivamente, ele tivera um irmão chamado Ultime, que havia
morrido.
— De onde é?
Fauchelevent respondeu:
— De Picquigny, perto de Amiens.
— Que idade tem?
— Cinquenta anos.
— Que profissão exerce?
Fauchelevent respondeu:
— Jardineiro.
— É bom cristão?
Fauchelevent respondeu:
— Como todos na família.
— Esta menina é sua?
Fauchelevent respondeu:
— É, reverenda madre.
— É o pai dela?
Fauchelevent respondeu:
— Avô.
A madre vocal disse à prioresa a meia voz:
— Ele responde bem.
Jean Valjean não havia pronunciado uma só palavra.
A prioresa olhou com atenção para Cosette e disse também a meia voz
à madre vocal:
— Ela será feia.
As duas madres conversaram durante alguns minutos em voz muito
baixa no canto do locutório; em seguida, a prioresa voltou-se e disse:
— Pai Fauvent, arranje outra joelheira com guizo. São necessárias
duas agora.
No dia seguinte, efetivamente, ouviam-se dois guizos no jardim, e as
religiosas não podiam resistir a erguer uma ponta do véu. Ao fundo, por
entre as árvores, viam-se dois homens, lado a lado, cavando com pás,
Fauvent e um outro. Incrível acontecimento. O silêncio foi rompido a
ponto de dizerem umas às outras: “É um ajudante de jardineiro”.
As madres vocais acrescentavam: “É um irmão do Pai Fauvent”.
Jean Valjean, de fato, estava legalmente instalado; trazia a joelheira de
couro e o guizo; a partir de então, sua presença era oficial. Chamava-se
Ultime Fauchelevent.
A mais forte causa determinante para a admissão fora a observação da
prioresa sobre Cosette: Ela será feia.
Pronunciado esse prognóstico, a prioresa imediatamente fez amizade
com Cosette, dando-lhe lugar no internato como educanda de caridade.
Isso tudo era bastante lógico. Por mais que não houvesse espelhos no
convento, as mulheres têm consciência de sua fisionomia; ora, as moças
que se sentem bonitas dificilmente tornam-se religiosas; sendo a vocação
bastante comum na razão inversa da beleza, espera-se mais das feias do
que das belas. Daí a inclinação pelas feiosas.
Toda essa aventura engrandeceu o bom Fauchelevent; ele teve um
tríplice sucesso: com Jean Valjean, a quem salvou e deu abrigo; com o
coveiro Gribier, que dizia a si mesmo: ele poupou-me de pagar a multa; e
com o convento, que, graças a ele, conservando o caixão de madre
Crucifixion sob o altar, iludiu César e satisfez a Deus.7 Havia um caixão
com cadáver no Petit-Picpus e um caixão sem cadáver no cemitério
Vaugirard; a ordem pública decerto foi profundamente perturbada com
isso, mas não se deu conta. Quanto ao convento, foi grande seu
reconhecimento para com Fauchelevent. Fauchelevent tornou-se o melhor
dos servidores e o mais precioso dos jardineiros. Na primeira visita do
arcebispo, a prioresa contou o caso a Sua Grandeza, em parte confessando-
se, em parte também gabando-se. Ao sair do convento, o arcebispo contou
isso, em voz baixa mas aplaudindo, a Latil, seu confessor, mais tarde
arcebispo de Reims e cardeal. A admiração por Fauchelevent foi longe,
pois chegou a Roma. Tivemos sob nossos olhos um bilhete escrito pelo
então papa Leão XII a um de seus parentes, monsenhor da nunciatura de
Paris, e, como ele, chamado Della Genga, onde se leem as seguintes
linhas: “Parece que há, em um convento de Paris, um excelente jardineiro,
um santo homem chamado Fauvan”. Nem um rumor de todo esse triunfo
chegou a Fauchelevent em sua choupana; ele continuou fazendo enxertos,
cavando, cobrindo os meloais sem ficar a par de sua excelência e de sua
santidade. Teve tanta ciência de sua glória quanto qualquer boi de Durhan
ou de Surrey cujo retrato é publicado no Illustrated London News com a
seguinte inscrição: Boi premiado no concurso de animais com chifres.

IX. CLAUSURA
No convento, Cosette continuou calada.
Cosette, muito naturalmente, julgava-se filha de Jean Valjean. De
resto, não sabendo de nada, nada podia dizer, e além disso, em todo caso,
nada teria dito. Acabamos de fazer esta observação: nada prepara uma
criança tão bem para o silêncio quanto o infortúnio. Cosette sofrera tanto
que temia tudo, até falar, até respirar. É que muitas vezes uma só palavra
fizera desabar sobre ela uma avalanche! Só começara a tranquilizar-se
depois de estar com Jean Valjean. Habituou-se rapidamente ao convento.
Apenas sentia falta de Catherine, mas não ousava confessar. Uma vez,
porém, disse a Jean Valjean: “Pai, se eu soubesse, eu a teria trazido”.
Cosette, tornando-se interna do convento, teve de usar o hábito das
alunas da casa. Jean Valjean conseguiu que lhe restituíssem as roupas que
ela não vestiria mais. Eram as mesmas vestimentas de luto que ele a fizera
usar quando deixou a taverna dos Thénardier. Ainda não estavam muito
gastas. Jean Valjean colocou tudo, inclusive as meias de lã e os sapatos,
com bastante cânfora e todos os aromas que abundam nos conventos, em
uma pequena mala que conseguiu arranjar. Colocou essa mala em cima de
uma cadeira perto de sua cama, e sempre trazia a chave consigo.
— Pai — perguntou-lhe um dia Cosette —, que caixa é aquela que
cheira tão bem?
Além da ignorada glória que acabamos de mencionar, Fauchelevent foi
recompensado por sua boa ação; primeiro com o prazer que sentia; depois
porque tinha bem menos serviço, já que o dividia. Finalmente, como
gostava muito de tabaco, em presença do senhor Madeleine encontrava a
vantagem de tê-lo três vezes mais do que antes, e de um modo
infinitamente mais prazeroso, visto que era o senhor Madeleine quem
pagava.
As religiosas não adotaram o nome Ultime; elas chamavam Jean
Valjean de o outro Fauvent.
Se aquelas santas mulheres possuíssem algo do olhar de Javert,
poderiam acabar notando que, quando alguma coisa precisava ser
comprada para a manutenção do jardim, era sempre o Fauchelevent mais
velho, o enfermo, o manco, que saía, e nunca o outro; mas, seja porque os
olhos sempre fixos em Deus não sabem espionar, seja porque, de
preferência, estivessem ocupados em espreitar-se mutuamente, eles nunca
prestaram atenção naquilo.
De resto, Jean Valjean fez bem em ficar quieto e não se mostrar. Javert
observou os arredores por mais de um mês.
O convento era para Jean Valjean como uma ilha cercada de abismos.
Aquelas quatro paredes eram agora o mundo para ele. Dali, via o céu o
suficiente para manter-se sereno, e via Cosette o suficiente para sentir-se
feliz.
Uma vida bem tranquila recomeçou para ele.
Morava com Fauchelevent na choupana, ao fundo do jardim. O
casebre, construído com restos de materiais, que existia ainda em 1845,
compunha-se, como se sabe, de três quartos completamente vazios, que só
tinham as paredes. O principal deles foi cedido por Fauchelevent, com
muita insistência, a Jean Valjean, que, em vão, tentou resistir. A parede
deste quarto, além dos dois pregos destinados a dependurar a joelheira e o
cesto, tinha como ornamento uma cédula de papel-moeda realista de 93,
pregada acima da lareira, com o seguinte e exato fac-símile:

Exército Católico
Por Ordem do Rei
Cédula comerciável de dez libras
para objetos fornecidos ao exército
reembolsável na paz
Série 3 N° 10.390
Stofflet
e Real

Esse papel-moeda fora pregado na parede pelo jardineiro anterior,


antigo revoltoso que morrera no convento, e a quem Fauchelevent
sucedera.
Jean Valjean trabalhava todos os dias no jardim, e ali era muito útil.
Antigamente havia sido podador e gostava de estar agora como jardineiro.
Devem-se lembrar, ele tinha todo tipo de receitas e segredos de cultura. E
tirou partido disso. Quase todas as árvores do pomar eram novas árvores
silvestres; enxertou-as e fez com que dessem excelentes frutos.
Cosette tinha permissão para passar uma hora com ele todos os dias.
Como as irmãs eram tristes e ele cheio de bondade, a menina os
comparava, e o adorava. À hora marcada, corria para a choupana. Ao
entrar no casebre, o enchia com uma sensação de paraíso. Jean Valjean
alegrava-se e sentia sua felicidade aumentar com a felicidade que
proporcionava a Cosette. A alegria que inspiramos tem de encantador o
fato de, longe de enfraquecer como qualquer reflexo, voltar para nós mais
radiante. Nas horas de recreio, Jean Valjean olhava Cosette de longe,
brincando e correndo, e distinguia seu riso do riso das outras.
Pois agora Cosette ria.
A fisionomia de Cosette, em certo ponto, havia até mesmo mudado.
Seu ar tristonho desaparecera. O riso é como o sol; espanta o inverno do
semblante humano.
Terminado o recreio, quando Cosette se retirava, Jean Valjean olhava
para as janelas de sua sala de aula, e à noite levantava-se para olhar para as
janelas de seu dormitório.
Deus tem seus caminhos; o convento contribuiu, assim como Cosette,
para conservar e completar em Jean Valjean a obra do bispo. É certo que
um dos lados da virtude termina no orgulho. Essa é uma ponte construída
pelo diabo. Jean Valjean, talvez sem saber, estava muito próximo desse
lado e dessa ponte quando a Providência o impeliu para o convento do
Petit-Picpus; enquanto havia se comparado apenas com o bispo, achara-se
indigno e era humilde; mas, havia algum tempo, começava a comparar-se
aos homens e então nascia o orgulho. Quem sabe ele não tivesse, talvez,
voltado lentamente ao ódio.
O convento o deteve nesse declive.
Era o segundo lugar de cativeiro que ele via. Primeiro, em sua
mocidade, no que fora para ele o começo da vida, e mais tarde, bem
recentemente ainda, vira outro, lugar medonho, lugar terrível, cujas
severidades sempre lhe pareceram a iniquidade da justiça e o crime da lei.
Hoje, após a prisão, via o claustro; e, lembrando que fizera parte da
prisão e que era agora, por assim dizer, espectador do claustro,
confrontava-os com ansiedade em seu pensamento.
Às vezes, apoiava o braço em sua enxada e descia lentamente pelas
espirais sem fim da divagação.
Lembrava-se de seus antigos companheiros; de como eram miseráveis;
levantavam-se ao romper do dia e trabalhavam até a noite; apenas o sono
lhes era permitido; dormiam em camas de lona, em que não eram
tolerados colchões com mais de duas polegadas de espessura, dispostas em
salas que aqueciam apenas nos meses mais frios do ano; usavam horríveis
vestimentas vermelhas e, por muito favor, permitiam-lhes uma calça de
tecido grosseiro, no calor forte, e uma blusa de lã, nos dias de grande frio;
só bebiam vinho e comiam carne quando “trabalhavam duro”. Viviam, não
tendo mais nomes, designados apenas por números, e, de algum modo,
transformados em algarismos, baixando os olhos, baixando a voz, os
cabelos cortados, ameaçados pelo porrete, imersos na vergonha.
Depois, sua mente se voltava para os entes que via à sua frente.
Esses entes viviam também com os cabelos cortados, os olhos baixos,
a voz baixa, não na vergonha, mas em meio às zombarias do mundo, não
com as costas feridas pelo porrete, mas com os ombros lacerados pela
disciplina. Seus nomes haviam também desaparecido entre os homens; não
existiam mais senão com austeros apelidos. Nunca comiam carne, nunca
bebiam vinho; muitas vezes ficavam até a noite sem alimento; andavam
vestidos, não com uma roupa vermelha, mas com uma mortalha preta, de
lã, pesada no verão, leve no inverno, sem a ela poder retirar ou acrescentar
nada, sem ter, sequer, de acordo com a estação, o recurso da roupa de linho
ou da blusa de lã; usavam durante seis meses do ano camisas de sarja que
lhes davam febre.
Habitavam, não salas aquecidas somente no frio rigoroso, mas celas
onde nunca se acendia o fogo; dormiam, não em colchões com duas
polegadas de espessura, mas sobre palha. Finalmente, não lhes permitiam
sequer o sono; todas as noites, depois de um dia de trabalho, era preciso,
no cansaço do primeiro sono, no momento em que adormeciam e
começavam a se aquecer, levantar-se e ir orar em uma capela escura e
gelada, com os joelhos sobre a pedra.
Em certos dias, cada uma dessas criaturas, por sua vez, devia
permanecer doze horas seguidas ajoelhada na pedra, ou prostrada com o
rosto voltado para o chão e os braços em cruz. Aqueles, eram homens;
estas, eram mulheres.
Que haviam feito esses homens? Tinham roubado, violado, assaltado,
matado, assassinado. Eram bandidos, falsários, envenenadores,
incendiários, assassinos, parricidas. O que tinham feito essas mulheres?
Elas não tinham feito nada.
De um lado, o crime, a fraude, o dolo, a violência, a lubricidade, o
homicídio, todas as espécies de sacrilégio, todas as variedades de
atentado; do outro, uma única coisa, a inocência.
A inocência perfeita, quase enlevada em uma misteriosa assunção,
ligando-se ainda à terra pela virtude, e já ligando-se ao céu pela santidade.
De um lado, confidências de crimes que são feitas em voz baixa. De
outro, a confissão das faltas, feita em voz alta. E que crimes! E que faltas!
De um lado, miasmas, do outro, um perfume inefável. De um lado,
uma peste moral, vigiada, rodeada de canhões, devorando lentamente seus
empesteados; do outro, um casto abrasamento de todas as almas no mesmo
fogo. Lá, as trevas; aqui, a sombra; mas uma sombra cheia de clarões, e
clarões cheios de fulgor.
Dois lugares de escravidão, mas, no primeiro, a possibilidade de
liberdade, um limite legal sempre entrevisto, ou então a evasão. No
segundo, a perpetuidade, e como única esperança, na longínqua
extremidade do futuro, esse clarão de liberdade que os homens chamam de
morte.
No primeiro, a pessoa está presa apenas pelas correntes; no outro, está
acorrentada pela fé.
O que se desprendia do primeiro? Uma maldição imensa, o ranger de
dentes, o ódio, a maldade desesperada, um grito de raiva contra a
sociedade humana, um sarcasmo contra o céu.
E do segundo? As bênçãos e o amor.
E, nesses dois lugares tão semelhantes e tão diversos, essas duas
espécies de criaturas tão diferentes realizavam a mesma obra, a expiação.
Jean Valjean compreendia bem a expiação dos primeiros; a expiação
pessoal, a expiação das faltas próprias. Mas não compreendia a expiação
dos outros, a dessas criaturas irrepreensíveis e sem mácula, e se
perguntava com um tremor: “Expiação de quê? Que expiação?”
Uma voz respondia em sua consciência: a mais divina das
generosidades humanas, a expiação pelos outros.
Neste ponto, qualquer teoria pessoal é posta à parte, não somos mais
que um narrador; é do ponto de vista de Jean Valjean que nos colocamos, e
traduzimos suas impressões.
Diante de seus olhos, ele tinha o topo sublime da abnegação, o ponto
mais alto a que pode chegar a virtude; a inocência que perdoa aos homens
suas faltas e as expia por eles; a servidão suportada, a tortura aceita, o
suplício reclamado pelas almas que não pecaram, para que não o
sofressem as almas que falharam; o amor da humanidade precipitando-se
no amor de Deus, mas ainda distinto, e suplicante; doces criaturas frágeis,
recebendo miséria dos que são punidos e sorriso dos que são
recompensados.
E ele se lembrava de ter ousado queixar-se!
Muitas vezes, no meio da noite, levantava-se para escutar os cânticos
de graças dessas criaturas inocentes, abatidas pelas severidades, e sentia
frio nas veias ao pensar que aqueles que eram justamente castigados não
elevavam a voz ao céu senão para blasfemar, e que ele, miserável,
mostrara os punhos a Deus.
Coisa impressionante, essa que o fazia refletir profundamente como
um aviso em voz baixa da própria Providência, a escalada, as barreiras
ultrapassadas, a aventura aceita até a morte, a difícil e dura ascenção,
todos os mesmos esforços que fizera para sair do outro lugar de expiação,
fizera-os também para entrar neste de agora. Seria este um símbolo de seu
destino?
Esta casa era também uma prisão, e assemelhava-se lugubremente à
outra de onde fugira, e, no entanto, nunca ocorrera-lhe a ideia de nada
parecido.
Tornava a ver grades, trincos, barras de ferro, para guardar quem?
Anjos.
Os muros altos que vira em volta de tigres, tornava a vê-los em volta
de ovelhas.
Era um lugar de expiação, e não de castigo, e no entanto era ainda mais
austero, mais melancólico e mais impiedoso que o outro. Aquelas virgens
eram mais duramente humilhadas do que os forçados. Um vento frio e
ríspido, o vento que gelara sua mocidade, atravessava a cova gradeada e
trancada dos abutres; um vento mais rude e mais cortante ainda soprava na
gaiola dos passarinhos.
Por quê?
Quando pensava nessas coisas, todo o seu interior se precipitava diante
desse mistério de sublimidade.
Em meio a essas meditações, o orgulho dissipou-se. Fez todo tipo de
reflexões sobre ele mesmo; sentiu-se miserável e chorou muitas vezes.
Tudo o que havia entrado em sua vida nos últimos seis meses o levava de
volta às santas ordens do bispo; Cosette pelo amor, o convento pela
humildade.
Às vezes, ao anoitecer, no crepúsculo, no momento em que o jardim
estava deserto, era possível vê-lo de joelhos no meio da alameda que
ladeava a capela, diante da janela por onde olhara na noite de sua chegada,
voltado para o lugar onde sabia que a irmã em penitência estava prostrada
em oração. E ele orava assim, ajoelhado, diante daquela irmã.
Parecia não ousar ajoelhar-se diretamente diante de Deus.
Tudo o que o rodeava, aquele jardim pacífico, aquelas flores
perfumadas, aquelas crianças gritando alegremente, aquelas mulheres
sérias e simples, aquele claustro silencioso, penetravam lentamente seu
ser, e pouco a pouco sua alma se compunha de silêncio, como o claustro,
de perfume, como as flores, de paz, como o jardim, de simplicidade, como
as mulheres, de alegria, como as crianças. E então pensava que haviam
sido duas as casas de Deus que sucessivamente o recolheram nos dois
instantes críticos de sua vida: a primeira, quando todas as portas se lhe
fechavam e a sociedade humana o repelia; a segunda, na ocasião em que a
sociedade humana retomava sua perseguição e a prisão se reabria; e
pensava que, se não fosse a primeira, reincidiria no crime, e, se não fosse a
segunda, voltaria ao suplício.
Todo o seu coração fundia-se em gratidão, e ele amava cada vez mais.
Muitos anos se passaram dessa forma; Cosette crescia.

__________________________
1 Palavra que inicia o salmo no ofício dos mortos.
2 “Esta oferenda [que vos entregamos…]”: palavras ditas pelo sacerdote no início da
Consagração, no ritual da missa.
3 “A cruz se mantém imóvel enquanto o mundo percorre o espaço.”
4 Nome de uma instituição de ensino para filhos de oficiais.
5 “Os que dormem no pó da terra despertarão; uns na vida eterna, outros no opróbrio, com os
olhos abertos para todo o sempre.” “Das profundezas [grito a ti, Senhor…].” “Dai-lhe, Senhor, o
descanso eterno.” “Que a luz brilhe sem fim para ele.”
6 “Não perder a carta” [geográfica, o mapa]: expressão usada no sentido de não se desviar,
não se perturbar, não deixar embaralhar os pensamentos. E, aqui, no sentido material, fazendo
alusão ao cartão de identificação.
7 Alusão à fórmula evangélica: “A César o que é de César, a Deus o que é de Deus”.
TERCEIRA PARTE
Marius
LIVRO I
PARIS ESTUDAVA EM SEUS ÁTOMOS

I. PARVULUS1
PARIS TEM UM menino e a floresta tem um pássaro. O pássaro chama-se
pardal; o menino chama-se moleque.
Juntem essas duas ideias que contêm, uma, todo o fogo, a outra, toda a
aurora; façam estas duas faíscas se chocarem, Paris, a infância; daí brotará
um pequeno ser. Homuncio, como diria Plauto.
Esse pequeno ser é alegre. Não come todo dia, mas, se bom lhe
parecer, vai ao espetáculo todas as noites. Não tem uma camisa no corpo,
não tem calçado nos pés, nem um teto sobre a cabeça; ele é como as
moscas do céu que não têm nada de tudo aquilo. Tem entre sete e treze
anos, vive em bandos; vagueia pelas ruas; dorme ao relento; usa umas
calças velhas que eram de seu pai, tão compridas que passam dos
calcanhares, usa um velho chapéu, de algum outro pai, que vai abaixo das
orelhas, um único suspensório de tiras amarelas; corre, espia, mendiga,
mata o tempo, fuma cachimbo, xinga como um condenado, frequenta as
tavernas, conhece ladrões, conversa com as meretrizes, fala gíria, canta
canções obscenas, mas não tem nada de mal em seu coração. É que, na
alma, tem uma pérola, a inocência, e as pérolas não se desfazem na lama.
Enquanto o homem é criança, Deus quer que ele seja inocente.
Se perguntássemos à grande cidade: “Mas quem é ele?”, ela
responderia: “É meu filho”.

II. ALGUNS DE SEUS SINAIS CARACTERÍSTICOS


O moleque de Paris é o anão da gigante.
Nada de exageros. Esse querubim meio perdido às vezes tem uma
camisa, mas não mais que uma; às vezes tem um calçado, mas sem as
solas; às vezes tem um abrigo, e gosta dele, pois ali encontra sua mãe, mas
prefere a rua, porque nela encontra a liberdade. Tem seus jogos
particulares, suas malícias particulares, fundamentados no ódio aos
burgueses, suas metáforas particulares: morrer é comer o mato pela raiz;
suas ocupações particulares, como chamar carruagens, baixar seus
estribos, estabelecer pedágios para ir de um lado ao outro da rua quando a
chuva é forte, o que ele chama de fazer pontes, criar discursos
pronunciados pela autoridade em favor do povo francês, esgravatar os
entremeios das calçadas; tem também suas moedas particulares, que são
todos os pedacinhos de cobre lavrado que encontra pela rua. Essa curiosa
moeda, que toma o nome de loques [farrapos], tem um curso invariável e
muito bem regulado entre essa pequena boêmia de meninos.
Finalmente, tem sua fauna particular, que ele observa estudiosamente
pelos cantos; a bête à bon Dieu [lagarta], o puceron tête-de-mort [pulgão
cara de caveira], o faucheux [aranha caranguejeira], o “diable” [diabo],
inseto negro que ameaça, dobrando a cauda armada com dois ferrões. Tem
seu monstro fabuloso com escamas na barriga, que não é o lagarto, com
pústulas nas costas, que não é o sapo, que vive nos buracos de velhos
fornos de cal e de escoadouros ressecados, é preto, peludo, viscoso,
rastejante, às vezes lento, às vezes ligeiro, que não grita, mas observa, e é
tão terrível que ninguém jamais viu; ele chama esse monstro de “o
secreto”. Procurar secretos pelas pedras é um divertimento do tipo
arriscado. Outro divertimento é levantar bruscamente uma pedra e ver os
cloportes [bichos-de-conta]. Cada região de Paris é célebre pelos
interessantes achados que nela podem ser feitos. Existem tesourinhas nos
canteiros das Ursulines, existem centopeias no Panthéon, existem girinos
nos fossos do Champ-de-Mars.
Quanto às palavras, esse menino tem um repertório como o de
Talleyrand. Não é menos cínico, mas é mais honesto. É dotado de uma
imprevisível jovialidade; faz pasmar os comerciantes, com suas loucas
risadas. O tom varia da alta comédia à farsa.
Passa um cortejo fúnebre. Entre os que acompanham o morto há um
médico. “Olhe”, exclama um moleque, “desde quando os médicos
transportam suas obras?”
Um outro está na multidão. Um homem sério, com óculos e berloques,
e se volta indignado:
— Seu patife, você pegou a cintura de minha mulher.
— Eu, moço! Então me reviste.

III. ELE É AGRADÁVEL


À noite, graças a alguns trocados que sempre consegue arranjar, o
homuncio entra em um teatro. Ao transpor esse limiar mágico, ele se
transfigura; era um moleque, torna-se titi.2 Os teatros são uma espécie de
navios virados com o porão para cima. É nesse porão que o titi toma lugar.
O titi é para o moleque o que a mariposa é para a larva: o mesmo ser que
voa e plana. Basta que se encontre ali, com seu brilho de felicidade, com
seu poderio de entusiasmo e alegria, com seu bater de mãos que mais
parece um bater de asas, para que esse porão estreito, fétido, obscuro,
sórdido, insalubre, repugnante, abominável, se chame Paraíso.
Deem a uma criatura o inútil e tirem-lhe o necessário, aí terão o
moleque.
O moleque não é destituído de certa intuição literária. Sua tendência,
dizemos isso com a quantidade de pesar que convém, não seria o gosto
clássico. Ele é, por natureza, pouco acadêmico. Para darmos um exemplo,
a popularidade da senhorita Mars,3 entre esse público de crianças
turbulentas, era temperada com uma ponta de ironia. O moleque a
chamava de senhorita Muche.4
Esse ser grita, zomba, caçoa, batalha, anda roto como uma criança,
esfarrapado como um filósofo, pesca nas enxurradas, caça nas latrinas,
extrai a alegria da imundície, anima os becos com seu entusiasmo, é
sarcástico e mordaz, assobia e canta, aplaude e vaia, tempera o Aleluia
com Matanturlurette, salmodia todos os ritmos, do De Profundis ao
Chienlit,5 encontra sem procurar, sabe o que ignora, é espartano até o
limite da gatunice, é louco até o limite do bom senso, lírico até o limite da
imundície; fica de cócoras no Olimpo, chafurda no esterco e sai dali
coberto de estrelas. O moleque de Paris é Rabelais em miniatura.
Não gosta de suas calças se não tiverem um bolsinho para o relógio.
Espanta-se muito pouco, amedronta-se ainda menos, faz cantigas às
superstições, diminui os exageros, caçoa dos mistérios, mostra a língua
aos fantasmas, despoetiza o estilo rebuscado, introduz a caricatura nos
engrandecimentos épicos. Não porque ele seja prosaico, longe disso; mas
porque substitui a visão solene pela fantasmagoria bufona. Se Adamastor6
aparecesse em sua frente, o moleque diria: “Veja! Bicho-papão!”

IV. ELE PODE SER ÚTIL


Paris começa no basbaque e termina no moleque, duas criaturas que
nenhuma outra cidade é capaz de ter; a aceitação passiva que se contenta
em olhar, e a iniciativa inesgotável; Prudhomme e Fouillou. Só Paris tem
algo assim em sua história natural. Toda a monarquia está no basbaque.
Toda a anarquia está no moleque.
Essa pálida criança dos arredores de Paris vive e se desenvolve, se
enrola e “se desenrola” no sofrimento, em presença das realidades sociais
e das coisas humanas, testemunha pensativa. Julga-se indiferente, mas não
o é. Olha, prestes a rir, mas prestes também a outras coisas. Quem quer
que sejam, vocês que se chamam Preconceito, Abuso, Ignomínia,
Opressão, Iniquidade, Despotismo, Injustiça, Fanatismo, Tirania, tomem
cuidado com o moleque admirado.
Esse pequeno crescerá.
De que argila é formado? Do primeiro barro que apareceu. Um
punhado de lama, um sopro, e eis Adão. Basta que um deus passe. Um
deus sempre terá passado por esse moleque. A fortuna coopera com essa
pequena criatura. Por fortuna, entendemos algo como aventura. Esse
pigmeu amassado com a grossa terra comum, ignorante, iletrado, aturdido,
vulgar, da plebe, será um jônio ou um beócio? Esperem, currit rota,7 o
espírito de Paris, esse demônio que cria os meninos do acaso e os homens
do destino, ao avesso do oleiro romano, fará do cântaro uma ânfora.
V. SUAS FRONTEIRAS
O moleque gosta da cidade, e gosta também da solidão, tendo em si
algo de sábio. Urbis amator, como Fuscus; ruris amator, como Flaccus.8
Perambular pensando, ou seja, flanar, é um bom emprego de tempo
para o filósofo; particularmente nessa espécie de campo um tanto espúrio,
bastante feio, mas curioso e composto de duas naturezas, que se estende
em torno de algumas grandes cidades, especialmente de Paris. Observar os
arrabaldes é observar um anfíbio. Fim das árvores, começo dos telhados,
fim da relva, começo do calçamento, fim dos sulcos do arado, começo das
lojas, fim da rotina, começo das paixões, fim do murmúrio divino, começo
do rumor humano; daí um interesse extraordinário.
Vêm daí, desses lugares pouco atraentes, e marcados para sempre
pelos passantes com o epíteto de tristes, os passeios aparentemente sem
objetivo do pensador.
Quem escreve estas linhas vagou por muito tempo pelos arredores de
Paris, o que é para ele uma fonte de profundas recordações. A relva
rasteira, os caminhos pedregosos, a argila, a terra arenosa, o reboque, as
ásperas monotonias dos terrenos baldios e dos terrenos lavrados, os
viveiros de legumes temporões que de repente surgem em um quintal, a
mescla do selvagem e do burguês, os vastos recantos desertos onde os
tambores da guarnição fazem seu ruidoso exercício, com uma espécie de
balbuciar da batalha; os lugares desertos de dia, paragens perigosas à
noite; o moinho em ruínas que gira ao vento, as rodas de extração nas
pedreiras, as tavernas pegadas aos cemitérios, o misterioso encanto dos
grandes muros sombrios enquadrando imensos terrenos vazios inundados
de sol e borboletas, tudo isso o atraía.
Quase ninguém sobre a terra conhece estes locais singulares, a
Glacière, a Cunette, o horrível muro de Grenelle crivado de balas, Mont-
Parnasse, Fosse-aux-Loups, Aubiers na encosta do Marne, Mont-Souris,
Tombe-Issoire, Pierre-Plate de Châtillon, onde há uma pedreira totalmente
explorada, tapada por cima com um alçapão de tábuas podres, que hoje só
serve de viveiro de cogumelos. Os campos de Roma nos dão uma ideia, a
periferia de Paris nos dá outra; ver somente campos, casas e árvores
naquilo que nos oferece um horizonte é ficar na superfície; todos os
aspectos das coisas são pensamentos de Deus. O local em que uma
planície encontra uma cidade está sempre marcado por alguma melancolia
penetrante. A natureza e a humanidade nos falam dali ao mesmo tempo.
Manifestam-se ali as originalidades locais.
Quem, como nós, já vagou por esses locais ermos, contíguos aos
nossos bairros afastados, aos quais poderíamos chamar de limbos de Paris,
entreviu neles, aqui e ali, no lugar mais abandonado, no momento mais
inesperado, por trás de alguma sebe seca ou no canto de um muro lúgubre,
um bando de crianças reunidas em tumulto, fétidas, enlameadas, cobertas
de pó, esfarrapadas, despenteadas, brincando coroadas de flores. São todos
pequenos fugitivos de famílias pobres. A rua é seu meio respirável, a
periferia pertence a eles. Fazem ali uma eterna gazeta. Ali cantam
ingenuamente seu repertório de cantigas indecentes. Estão ali, ou, melhor
dizendo, vivem ali, longe de qualquer olhar, na doce claridade de maio ou
junho, ajoelhados em volta de um buraco na terra, jogando bolinha de
gude, disputando moedas, irresponsáveis, soltos, largados, felizes; e, ao
verem alguém, lembram-se que têm um ofício, que precisam ganhar sua
vida, e lhe oferecem uma meia velha de lã, cheia de besouros, ou um feixe
de lilases. Esses encontros de estranhas crianças são um dos atrativos
encantadores, e ao mesmo tempo pungentes, dos subúrbios de Paris.
Às vezes, no meio desses grupos de meninos, veem-se algumas
meninas — seriam suas irmãs? — quase mocinhas, magras, inquietas, com
as mãos queimadas de sol, cheias de sardas, com espigas de centeio e de
dormideiras enfeitando a cabeça, alegres, ariscas, descalças. Algumas são
vistas comendo cerejas em meio aos trigais. À noite, ouvem-se seus risos.
Esses grupos, iluminados pela quente claridade do meio-dia, ou
entrevistos à luz do crepúsculo, ocupam por muito tempo a mente do
pensador, e essas visões misturam-se a seu devaneio.
Paris, centro; sua periferia, circunferência; eis, para essas crianças, a
terra inteira. Jamais irão aventurar-se mais além. Não podem sair da
atmosfera parisiense mais do que os peixes podem ficar fora da água. Para
eles, a duas léguas das entradas, não há mais nada. Ivry, Gentilly, Arcueil,
Belleville, Aubervilliers, Ménilmontant, Choisy-le-Roi, Billancourt,
Meudon, Issy, Vanvre, Sèvres, Puteaux, Neuilly, Gennevilliers, Colombes,
Romainville, Chatou, Asnières, Bougival, Nanterre, Enghien, Noisy-le-
Sec, Nogent, Gournay, Drancy, Gonesse, é aí que termina o universo.

VI. UM POUCO DE HISTÓRIA


Na época, aliás, quase contemporânea, em que se passa a ação deste
livro, não havia, como hoje, um agente de polícia a cada esquina
(melhoramento que não cabe agora discutir); crianças errantes abundavam
em Paris. As estatísticas apresentavam uma média de duzentas e sessenta
crianças sem abrigo recolhidas então anualmente pelas rondas policiais em
terrenos baldios, em casas em construção, ou sob os arcos das pontes. Um
destes ninhos, que ficou famoso, deu origem às “andorinhas da Ponte
d’Arcole”. É este, de resto, o mais desastroso dos sintomas sociais. Todos
os crimes do homem começam na vagabundagem da criança.
Contudo, excetue-se Paris. De forma relativa, e apesar da lembrança
que acabamos de mencionar, a exceção é justa. Enquanto, em qualquer
outra grande cidade, uma criança vagabunda é um homem perdido,
enquanto, em quase todo lugar, uma criança entregue a si mesma está, de
alguma forma, destinada e abandonada a uma espécie de imersão nos
vícios públicos que lhe devoram a honestidade e a consciência, o moleque
de Paris, insistimos, tão grosseiro e tão arranhado na superfície,
interiormente se conserva quase intacto. Coisa magnífica de se constatar e
que brilha na esplêndida probidade das nossas revoluções populares, uma
certa incorruptibilidade resulta da ideia que está no ar de Paris como o sal
na água do oceano. Respirar Paris é conservar a alma.
O que estamos dizendo não diminui em nada o aperto no coração que
nos toma cada vez que encontramos uma dessas crianças em torno das
quais nos parece ver flutuarem os laços da família destruída. Na
civilização atual, tão incompleta ainda, não são coisas muito anormais
essas fraturas familiares esvaziando-se na sombra, não sabendo mais ao
certo o que será de seus filhos, e deixando cair suas entranhas pela via
pública. Vêm daí destinos obscuros. Isto se chama, pois coisa tão triste
formou uma expressão, “ser jogado nas ruas de Paris”.
Diga-se de passagem, esses abandonos de crianças não eram de forma
alguma desencorajados pela antiga monarquia. Um pouco de Egito e de
Boêmia nas classes inferiores acomodava as altas esferas, e era
conveniente aos poderosos. O ódio ao ensino dos filhos do povo era um
dogma. Para que serviria o “meio-saber”? Essa era a palavra de ordem.
Ora, a criança vagabunda é o corolário da criança ignorante.
Além disso, a monarquia às vezes precisava de crianças, e então rapava
as ruas.
No reinado de Luís XIV, para não irmos mais longe, o rei queria, com
razão, criar uma frota. A ideia era boa, mas vejamos os meios. Não há
frota se, ao lado do navio a vela, brinquedo do vento, e para o rebocar,
quando necessário, não houver um navio que vá para onde se quer, seja por
meio de remos, seja por meio do vapor; as galés eram então para a
marinha o que hoje são os vapores. Era preciso, portanto, haver galés; mas
a galé só se move com grilhetas, era preciso, então, haver grilhetas.
Colbert mandava, pois, que os intendentes de província e os parlamentos
fizessem o máximo possível de condenados. A magistratura colocava
nisso bastante complacência. Um homem mantinha o chapéu na cabeça
diante de uma procissão, atitude huguenote; enviavam-no às galés.
Encontravam um menino na rua; uma vez que tivesse quinze anos e não
tivesse onde dormir, enviavam-no às galés. Grande reinado, grande século.
No tempo de Luís XV, as crianças desapareciam em Paris; a polícia
levava-as, não se sabe para que misterioso uso. Cochichavam-se com
espanto monstruosas conjecturas sobre os banhos de púrpura do rei.
Barbier fala disso com ingenuidade. Acontecia, às vezes, de os oficiais, na
falta de outras crianças, pegarem as que tinham pais. Os pais,
desesperados, iam para cima dos oficiais. Nesse caso, o parlamento
intervinha, e mandava prender, quem? Os oficiais? Não, os pais.

VII. O MOLEQUE9 TERIA UM LUGAR NAS


CLASSIFICAÇÕES DA ÍNDIA
Os moleques parisienses formam quase uma casta. Não basta querer
para fazer parte dela.
Esta palavra, gamin, foi impressa pela primeira vez, e saiu da
linguagem popular para entrar na linguagem literária, em 1834. Foi em
uma pequena obra intitulada Claude Gueux que ela fez sua aparição. O
escândalo foi grande. Mas a palavra passou.
Os elementos que constituem a consideração que os moleques têm
entre si são bastante variados. Conhecemos um deles, que era muito
respeitado e admirado por ter visto um homem cair das torres de Notre–
Dame; um outro, por ter conseguido entrar nos fundos do pátio onde
estavam provisoriamente guardadas as estátuas da cúpula de Invalides e
ter-lhes surrupiado um pouco de chumbo; um terceiro, por ter visto tombar
uma diligência; e outro, ainda, porque “conhecia” um soldado que quase
furara o olho de um burguês.
É isso que explica a seguinte exclamação de um moleque parisiense,
epifonema profundo do qual o vulgo ri sem compreender: Deus do Céu,
que algo de mal me aconteça se eu disser que nunca vi alguém cair do
quinto andar!
Por certo, esta é uma bela frase de camponês:
— Seu Fulano, sua mulher morreu da doença que ela tinha; por que o
senhor não mandou chamar um médico?
— O que o senhor quer? Nós, os pobres, nós morremos com nós
mesmos.
Mas, se toda a passividade do camponês está nessa frase, toda a
anarquia do livre pensar do moleque de periferia está, com certeza,
naquela outra. Um condenado à morte, que segue em uma charrete, ouve
seu confessor. O moleque de Paris exclama: O maricas está falando com o
padreco. Ah! Que velhaco! Uma certa audácia em matéria de religião
eleva o prestígio do moleque. Ser um espírito forte é importante.
Assistir às execuções constitui um dever. Apontam para a guilhotina e
riem. Dão-lhe todo tipo de nomes: Fim da sopa, Rabugenta, A mãe no azul
(no céu), A última garfada, etc., etc. Para não perderem nada, escalam os
muros, trepam nos balcões, sobem nas árvores, erguem-se pelas grades,
agarram-se nas chaminés. O moleque nasce couvreur [pessoa que faz ou
conserta telhados] tanto quanto nasce marinheiro. Um telhado não lhe
causa mais medo que um mastro. Não há festa que valha mais que a
Grève.10 Samson e padre Montès são os verdadeiros nomes populares.
Apupam o paciente para encorajá-lo. Às vezes o admiram. Lacenaire,
quando garoto, vendo o terrível Dautun morrer bravamente, disse esta
frase que encerra um futuro: Tive inveja dele. Voltaire é desconhecido
entre os garotos, mas todos conhecem Papavoine. Na mesma lenda
misturam os “políticos” aos assassinos. Conservam a tradição das últimas
vestimentas de todos. Sabem que Tolleron usava um boné de chofer, Avril
um barrete de pele de lontra, Louvel um chapéu redondo, que o velho
Delaporte era calvo e andava sem nada na cabeça, que Castaing era corado
e muito bonito, que Bories tinha uma romântica barbicha, que Jean Martin
conservara os suspensórios, que Lecouffé e sua mãe viviam discutindo.
Um outro, muito pequeno no meio da multidão, querendo ver Debacker
passar, lembra do farol do cais e sobe por ele. Um guarda que ali estava de
sentinela franze o semblante. “Deixe-me subir, seu guarda”, diz o
moleque. E para comover a autoridade acrescenta: “Eu não vou cair”.
“Pouco me importa que você caia”, responde o guarda.
Entre os moleques, um acidente memorável é tido em alta conta.
Chega-se ao topo da consideração se acontecer de alguém cortar-se
profundamente, “até o osso”.
O punho não é um medíocre elemento de respeito. Uma das coisas que
o moleque diz com mais gosto é: Sou forte pra caramba! Ser canhoto o
torna muito invejável. Ser vesgo é algo apreciável.

VIII. ONDE SERÁ LIDA UMA FRASE


ENCANTADORA DO ÚLTIMO REI
No verão, ele se transforma em rã, e, ao anoitecer, diante das pontes de
Austerlitz e de Iéna, do alto dos trens a carvão e dos barcos das lavadeiras,
precipita-se de cabeça no Sena e em todas as infrações possíveis às leis do
pudor e da polícia. Contudo, os agentes de polícia vigiam, do que resulta
uma situação altamente dramática, que certa vez deu lugar a um grito
fraternal memorável; esse grito, que se tornou célebre em 1830, é um
aviso estratégico de um moleque a outro; escande-se como um verso de
Homero, com uma entonação quase tão inexprimível como a melopeia
eleusíaca das Panateneias, no qual se reencontra o antigo Evoé. Ei-lo: Ohé,
Titi, ohéée! Y a de la grippe, y a de la cogne, prends tes zardes et va-t’en,
passe par l’égout! [Ohi, Titi, ohii! Pintou sujeira, pintou polícia, pega tuas
coisas e te manda pelo esgoto!].
Às vezes, esse pivete — é assim que ele mesmo se qualifica — sabe
ler; às vezes sabe escrever, mas sempre sabe rabiscar. Não hesita em
aprender, não se sabe por qual misterioso ensinamento mútuo, todas as
habilidades que podem ser úteis à coisa pública; de 1815 a 1830, imitava o
peru; de 1830 a 1848, desenhava peras pelos muros. Em uma tarde de
verão, Luís Filipe, retornando a pé, viu um deles, bem pequeno, dessa
altura, que suava e se erguia na ponta dos pés para rabiscar com carvão
uma gigantesca pera em um dos pilares da grade de Neuilly; o rei, com
aquela bondade que herdara de Henrique IV, ajudou o menino, terminou a
pera e deu-lhe uma moeda, dizendo: A pera também está aqui em cima!
O moleque gosta de algazarra. Um certo estado violento o agrada.
Execra “os curas”. Um dia, na rua de l’Université, um desses meninos
fazia gestos e zombava diante do portão número 69. “Por que está fazendo
isso em frente a esta porta?”, perguntou-lhe alguém que passava. O
menino respondeu: “Porque aqui mora um padre”.
Aquela era, efetivamente, a casa em que morava o núncio do papa.
Entretanto, por mais intenso que seja o voltairianismo do moleque, se
aparecer uma oportunidade de tornar-se coroinha, pode ser que ele aceite,
e, nesse caso, ele auxilia educadamente durante a missa. Existem duas
coisas das quais ele é o Tântalo, e que sempre deseja sem jamais
conseguir: derrubar o governo e mandar consertar as calças.
O moleque, em seu estado perfeito, conhece todos os policiais de Paris,
e sempre sabe, quando encontra um deles, dar o nome certo à figura.
Enumera-os com a ponta dos dedos. Estuda seus modos e, sobre cada um,
faz suas anotações especiais. Lê como um livro aberto as almas da polícia.
E poderá dizer correntemente e sem vacilar: “esse é traidor; aquele é
muito mau; aquele outro é grande; outro, ainda, é ridículo”; (todas essas
palavras, traidor, mau, grande, ridículo, têm em sua boca uma acepção
particular); “aquele ali pensa que a ponte Neuf é dele e proíbe todo o
mundo de passear por fora das guardas do parapeito; aquele lá tem mania
de puxar as orelhas das pessoas; etc., etc.”

IX. A VELHA ALMA DA GÁLIA


Havia algo desse menino em Poquelin (verdadeiro sobrenome de
Molière), filho da plebe; havia algo dele em Beaumarchais. Ser moleque é
uma nuance do espírito gaulês. Misturada ao bom senso, às vezes
aumenta-lhe a força, como o álcool faz ao vinho. Algumas vezes, é um
defeito. Homero se repete, que seja; poderíamos dizer que Voltaire faz
molecagens. Camille Desmoulins era da periferia. Championnet, que
brutalizava os milagres, saiu das ruas de Paris; bem pequeno, já havia
inundado os pórticos de Saint-Jean de Beauvais e Saint-Étienne du Mont;
muitas vezes chamara de você o relicário de Sainte-Geneviève para dar
ordens na cara de Saint-Janvier.
O moleque de Paris é respeitoso, irônico e insolente. Seus dentes são
feios porque é mal alimentado e seu estômago sofre, mas em compensação
tem olhos bonitos, por causa de seu espírito. Na presença de Jeová, saltaria
com um pé só os degraus do paraíso. É bom de chutes e pontapés. Todo
tipo de desenvolvimento lhe é possível. Brinca na enxurrada e se endireita
pela rebelião; sua afronta persiste mesmo diante da metralha; era um
descarado, vira um herói; e, como o jovem tebano, sacode a pele do leão; o
tambor Bara era um moleque de Paris; grita: “Avante!” como o cavalo da
Escritura diz: Vah! e em um minuto passa de garoto a gigante. Esse filho
da lama é também filho do ideal. Meçam a envergadura que vai de
Molière a Bara.11
Em suma, para dizermos tudo em uma só palavra, o moleque é um ser
que se diverte, porque é infeliz.

X. ECCE PARIS, ECCE HOMO12


Ainda para tudo resumir, o moleque de Paris é hoje como outrora foi o
graeculus de Roma, é o povo criança tendo na fronte as rugas do mundo
senil.
O moleque é uma graça para a nação e, ao mesmo tempo, uma doença.
Doença que é preciso curar. Como? Pela luz, o conhecimento.
A luz saneia.
A luz ilumina.
Todas as generosas irradiações sociais provêm da ciência, das letras,
das artes, do ensino. Fazei homens, fazei homens. Dai-lhes luz para que
eles vos aqueçam. Cedo ou tarde, a fulgurante questão da instrução
universal há de estabelecer-se com a irresistível autoridade da verdade
absoluta; e então aqueles que governarem sob a vigilância da ideia
francesa terão de fazer esta escolha: as crianças da França ou os moleques
de Paris; as chamas em meio à luz, ou os fogos-fátuos nas trevas.
O moleque exprime Paris, e Paris exprime o mundo.
Paris é um total. É o teto do gênero humano. Toda essa cidade
prodigiosa é um resumo dos costumes mortos e dos costumes vivos. Quem
vê Paris acredita ver o avesso de toda a história, com céu e constelações
nos intervalos.
Paris tem um Capitólio, a Câmara; um Parthénon, Notre-Dame; um
monte Aventin, o bairro Saint-Antoine; um Asinarium, a Sorbonne; um
Panteão, o Panthéon; uma via Sacrée, o bulevar des Italians; uma torre des
Vents, a opinião; e substitui as desonras públicas pelo ridículo. Seu majo
chama-se arrogante, seu trasteverino é alguém da periferia, seu hamal, o
valente dos mercados, seu lazzarone, o populacho, seu cockney, o
efeminado. Tudo o que há fora de Paris, há também em Paris. A vendedora
de peixe de Dumarsais pode fazer a réplica à vendedora de hortaliças de
Eurípides; o lançador de discos Vejanus revive no equilibrista Forioso; o
granadeiro Vandeboncoeur andaria de braço dado com Therapontigonus
Miles; Damasippe, o antiquário, estaria feliz entre os negociantes de ferro-
velho; Vincennes agarraria Sócrates tanto quanto Ágora prenderia Diderot;
Grimod de la Reynière descobriu o rosbife com sebo assim como Curtillus
inventou o ouriço assado; sob o balão do arco de l’Étoile vemos reaparecer
o trapézio que está em Plauto; o engolidor de espadas de Pécilo,
encontrado por Apulée, é engolidor de sabres na Ponte Neuf; o sobrinho de
Rameau e o parasita Curculion formam um par; Ergasile pediria para ser
apresentado a Cambacérès por Aigrefeuille; os quatro peraltas de Roma,
Alcesimarco, Fédromo, Diabolus e Argíripo descem de la Courtille na
diligência de Labatut; Aulu-Gelle não parava por mais tempo diante de
Côngrio do que Charles Nodier diante de Polichinelo; Marton não é uma
pantera, mas também Pardalisca não era um dragão; Pantolabus, o farsista,
caçoa do gozador no café inglês Nomentanus; Hermógenes é tenor nos
Champs–Élysées, e, em volta dele, Trasius, o mendigo, vestido de
Bobèche, pede esmola; o importuno que nos faz parar nas Tulherias,
segurando o botão de nosso casaco, nos faz repetir, após dois mil anos, a
apóstrofe de Thesprion: quis properantem me prehendit pallio?13 O vinho
de Suresnes parodia o vinho d’Alba; o copo cheio de Désaugiers se
equilibra à grande taça de Balatron; o Père-Lachaise espalha, sob as
chuvas noturnas, os mesmos clarões que as Esquilies; e a cova do pobre,
comprada para cinco anos, vale como o caixão de aluguel do escravo.
Procurem alguma coisa que Paris não tenha. A bacia de Trophonius
não contém nada que não esteja na tina de Mesmer; Ergaphilas ressussita
em Caliostro; o brâmane Vâsaphantâ encarna-se no conde de Saint-
Germain; o cemitério de Saint-Médard faz tão grandes milagres quanto a
mesquita de Oumoumié, em Damasco.
Paris tem um Esopo, que é Mayeux, e uma Canídia, que é a senhorita
Lenormand. Assusta-se como Delfos com as fulgurantes realidades da
visão; faz girar as mesas, assim como Dodona as trípodes. Coloca no trono
a leviana, assim como Roma coloca nele a cortesã; e, afinal de contas, se
Luís XV é pior do que Cláudio, madame Dubarry vale mais que Messalina.
Paris combina em um tipo extraordinário que viveu, e com quem nos
acotovelamos, a nudez grega, a úlcera hebraica e a brincadeira grosseira
do gascão. Mistura Diógenes, Jó e Paillasse, veste um espectro com velhos
números do Constitutionnel e produz Chodruc Duclos.
Embora Plutarco diga: le tyran n’envieillit guère [os tiranos não
envelhecem], Roma, tanto no tempo de Silas como no tempo de
Domiciano, resignava-se e moderava seu ânimo com gosto. O Tibre era
um Letes, se dermos crédito à apologia um tanto doutrinária que dele fazia
Varus Vibiscus: Contra Gracchos Tiberim habemus. Bibere Tiberim, id est
seditionem oblivisci [Contra os Gracos, temos o Tibre; Beber o Tibre é
esquecer a insurreição]. Paris bebe um milhão de litros de água por dia,
mas isso não a impede de, oportunamente, soar o toque de reunir e o toque
de chamada.
Com poucas exceções, Paris é um bom menino. Aceita tudo
majestosamente; e não é difícil no que diz respeito a Vênus; sua calipígia
é hotentote; contanto que ria, concede anistias; a feiura o alegra, a
disformidade o diverte, o vício o distrai; seja engraçado, e poderá ser
alguém incrível; até a hipocrisia, esse supremo cinismo, não o revolta; é
tão literário que não tapa o nariz diante de Basílio, e não se escandaliza
com a oração de Tartufo mais do que Horácio com o “soluço” de Príapo.
Nenhum traço da fisionomia universal falta ao perfil de Paris. O baile
Mabile não é a dança polimniana do Janículo, mas nele se vê a
revendedora de objetos de toucador com os olhos fixos na cortesã,
exatamente como a alcoviteira Staphyla espreitava a virgem Planesium. A
barreira du Combat não é um Coliseu, mas ali se é feroz como se César
estivesse observando. A hospedeira síria tem mais graça que dona Saguet,
mas, se Virgílio frequentava as tavernas romanas, David d’Angers, Balzac
e Charlet sentavam-se às mesas das tavernas parisienses. Paris reina. Aí
fulguram os gênios, aí prosperam os caudas vermelhas.14 Adonai passa por
aí em seu carro de doze rodas de trovões e de relâmpagos; Sileno faz aí
sua entrada, montado em seu burrico. Sileno, leia-se Ramponneau.
Paris é sinônimo de Cosmos. Paris é Atenas, Roma, Síbaris, Jerusalém,
Pantin. Todas as civilizações, e também todas as barbáries, encontram-se
aí. Paris ficaria bastante aborrecida por não ter uma guilhotina.
Um pouco de praça de Grève é bom. Que seria de toda essa eterna festa
sem tal condimento? Nossas leis sabiamente o forneceram, e, graças a
elas, aquele cutelo goteja sobre esta terça-feira gorda.

XI. ESCARNECER, REINAR


Paris ter limites, não. Nenhuma outra cidade teve essa dominação que
escarnece, às vezes, aqueles que subjuga. Agradar-vos, ó atenienses! —
exclamava Alexandre. Paris faz mais do que leis, faz a moda; Paris faz
mais do que a moda, faz a rotina. Paris pode ser estúpida, se lhe aprouver,
e, às vezes, se dá a esse luxo; então o universo torna-se estúpido como ela;
depois, Paris acorda, esfrega os olhos, diz: “Como sou estúpida!” e desata
a rir na cara do gênero humano. Que maravilha uma cidade assim! Coisa
estranha que essa grandiosidade e esse burlesco façam boa vizinhança, que
toda essa majestade não seja atrapalhada por toda essa paródia, e que a
mesma boca possa hoje soprar a trombeta do juízo final e amanhã a flauta
de bambu! Paris possui uma jovialidade soberana. Sua alegria é relâmpago
e sua farsa empunha um cetro. Seu furacão irrompe às vezes de uma
careta. Suas explosões, suas jornadas, suas obras-primas, suas maravilhas,
suas epopeias chegam aos extremos do universo, bem como seus
disparates. Seu riso é uma boca de vulcão que respinga por toda a terra.
Seus gracejos são faíscas. Impõe aos povos suas caricaturas, bem como
seu ideal; os mais altos monumentos da civilização humana aceitam suas
ironias e emprestam sua eternidade às suas fanfarrices. Paris é sublime;
tem um maravilhoso 14 de julho que liberta o globo; faz todas as nações
prestarem o juramento do Jogo de Péla; sua noite de 4 de agosto dissolve
em três horas mil anos de feudalismo; faz de sua lógica o músculo da
vontade unânime; multiplica-se sob todas as formas do sublime; inunda
com seu clarão Washington, Kosciusko, Bolívar, Botzaris, Riego, Bem,
Manin, Lopez, John Brown, Garibaldi; está em todos os lugares onde arde
o futuro; em Boston em 1779, na ilha de Léon em 1820, em Pesth em
1848, em Palermo em 1860; cochicha a poderosa palavra de ordem
Liberdade nos ouvidos dos abolicionistas americanos reunidos na barca de
Harper’s Ferry, e nos ouvidos dos patriotas de Ancona reunidos na
escuridão dos Archi, diante da estalagem Gozzi, à beira-mar; cria Canaris;
cria Quiroga; cria Pisacane; dá brilho ao que é grande sobre a terra;
impelidos até onde seu sopro os empurra, Byron morre em Missolonghi e
Mazet em Barcelona; é tribuna aos pés de Mirabeau e cratera aos pés de
Robespierre; seus livros, seu teatro, sua arte, sua ciência, sua literatura,
sua filosofia são os manuais do gênero humano; tem Pascal, Régnier,
Corneille, Jean-Jacques, Voltaire para todos os minutos, Molière para
todos os séculos; faz falar sua língua na boca universal, e essa língua
torna-se verbo; constrói em todos os espíritos a ideia de progresso; os
dogmas libertadores que forja são cavalos de batalha para todas as
gerações, e é com a alma de seus pensadores e de seus poetas que, desde
1789, são feitos todos os heróis de todos os povos; o que não a impede de
ser moleque; e esse gênio enorme que se chama Paris, ao mesmo tempo
que transfigura o mundo com sua luz, pinta com carvão o nariz de
Bouginier no muro do templo de Teseu e escreve Crédeville ladrão nas
pirâmides.
Paris sempre mostra os dentes; quando não está ralhando, está rindo.
Assim é Paris. As fumaças de seus telhados são as ideias do universo.
Amontoado de barro e de pedras, se assim quisermos, mas, acima de tudo,
ente moral. É mais do que grande, é imensa. Por quê? Porque ousa.
Ousar; é o preço do progresso.
Todas as conquistas sublimes são mais ou menos o prêmio da ousadia.
Para que a Revolução acontecesse, não bastaria que Montesquieu a
pressentisse, que Diderot a pregasse, que Beaumarchais a anunciasse, que
Condorcet a calculasse, que Arouet a preparasse, que Rousseau a
premeditasse, foi necessário que Danton a ousasse.
O grito Audácia! é um Fiat lux. É preciso, para o caminhar em frente
do gênero humano, que haja no topo, permanentemente, orgulhosas lições
de coragem. As temeridades arrebatam a história e são uma das grandes
luzes do homem. A aurora ousa quando desponta. Tentar, desafiar,
persistir, perseverar, ser fiel a si próprio, arcar com o destino, surpreender
a catástrofe com o pouco susto que ela nos causa, ora afrontar o poder
injusto, ora insultar a vitória inebriada, resistir, enfrentar, eis o exemplo
de que necessitam os povos, e a luz que os eletriza. O mesmo clarão
formidável vai da tocha de Prometeu ao cachimbo de Cambronne.15

XII. O FUTURO LATENTE NO POVO


Quanto ao povo parisiense, mesmo homem feito, continua moleque;
fazer o retrato da criança é fazer o retrato da cidade, e é por isso que
estudamos a águia neste pardal livre.
É sobretudo nos subúrbios, insistimos nisso, que aparece a raça
parisiense, ali está o puro-sangue, ali está a verdadeira fisionomia; ali esse
povo trabalha e sofre, e o sofrimento e o trabalho são as duas figuras do
homem. Ali há quantidades imensas de seres desconhecidos onde
formigam os mais estranhos tipos, desde o carregador da Râpée até o
esfolador de animais de Montfaucon. Fex urbis, exclama Cícero; mob,16
acrescenta Burke indignado; turba, multidão, gentalha. Essas palavras logo
são ditas. Que seja. Que importa? O que me importa que andem descalços?
Não sabem ler; azar deles. Por isso irão abandoná-los? Fazendo-lhes de
sua miséria uma maldição? A luz não pode penetrar nessas massas?
Voltemos a este grito: “Luz!” e insistamos nele. Luz! Luz! Quem sabe se
essas opacidades não irão tornar-se transparentes? As revoluções, não são
elas transfigurações? Vamos, filósofos, ensinem, esclareçam, iluminem,
pensem alto, falem alto, corram alegres para o grande sol, confraternizem-
se com as praças públicas, anunciem as boas novas, distribuam os
alfabetos, proclamem os direitos, cantem as Marselhesas, semeiem os
entusiasmos, arranquem os ramos verdes dos carvalhos. Façam da ideia
um turbilhão. Essa multidão pode ser aperfeiçoada. Saibamos nos servir
desta vasta efervescência dos princípios e das virtudes que borbulha,
brilha e estremece em certas horas. Esses pés descalços, esses braços nus,
esses andrajos, essas ignorâncias, essas abjeções, essas trevas podem ser
empregadas na conquista do ideal. Olhem através do povo e avistarão a
verdade. Essa vil areia sobre a qual pisamos, que a lancemos à fornalha,
que ali ela se funda e ferva; será transformada em esplêndido cristal, e é
graças a ele que Galileu e Newton descobrirão os astros.

XIII. O PEQUENO GAVROCHE


Oito ou nove anos, aproximadamente, após os acontecimentos que
narramos na segunda parte desta história, notava-se, no bulevar du Temple
e nas redondezas do Château-d’Eau, um menino de onze a doze anos que
seria a perfeita realização desse ideal de moleque acima esboçado, se, com
o riso de sua idade nos lábios, não tivesse o coração completamente escuro
e vazio. Esse menino estava mesmo metido em umas calças de homem,
mas que não tinham sido de seu pai, e em uma camisa de mulher, que não
tinha sido de sua mãe. Alguém, por caridade, o vestira com farrapos. No
entanto, ele tinha pai e mãe. Mas o pai não queria saber dele e a mãe não o
amava. Era uma dessas crianças dignas de piedade entre todas as que têm
pai e mãe e que são órfãs.
Esse menino nunca se sentia tão bem como na rua. A calçada lhe
parecia menos dura do que o coração de sua mãe.
Os pais o jogaram na vida com um pontapé. Ele, de boa vontade, alçou
voo.
Era um menino barulhento, pálido, ágil, esperto, cheio de malícia, de
aspecto vivaz e doentio. Ia, vinha, cantava, jogava, raspava os canais,
roubava um pouco, mas, alegremente, como os gatos e os passarinhos, ria
quando o chamavam de maroto, aborrecia-se quando o chamavam de
vadio. Não tinha moradia, não tinha pão, não tinha como se aquecer, não
tinha amor; mas era feliz porque era livre.
Quando essas pobres criaturas tornam-se homens, quase sempre a mó
da ordem social as encontra e as esmaga; mas enquanto são crianças, por
serem pequenas, escapam. O menor buraco as salva.
No entanto, por mais abandonado que fosse esse menino, acontecia às
vezes, a cada dois ou três meses, de ele dizer: “Sabe, vou visitar minha
mãe!” Então, deixava o bulevar, o circo, a entrada Saint-Martin, descia
para os cais, atravessava as pontes, chegava aos arrabaldes, alcançava a
Salpêtrière e onde parava? Exatamente no duplo número 50-52 que o leitor
conhece, no casebre Gorbeau.
Nessa época, o casebre 50-52, habitualmente deserto e eternamente
decorado com o letreiro: “Quartos para alugar”, achava-se, coisa rara,
habitado por vários indivíduos que, de resto, como sempre acontece em
Paris, não tinham nenhuma ligação, nenhuma relação uns com os outros.
Todos pertenciam à classe indigente que começa no último pequeno
burguês sem dinheiro e se prolonga, de miséria em miséria, pelas baixas
camadas da sociedade até os dois seres nos quais todas as coisas materiais
da civilização vão parar, o limpador de esgotos, que varre a lama, e o
catador de trapos, que recolhe os farrapos.
A “principal locatária” do tempo de Jean Valjean havia morrido e fora
substituída por outra totalmente semelhante a ela. Não sei qual filósofo
disse: “Nunca há falta de velhas mulheres”.
Essa nova velha chamava-se senhora Burgon, e não tinha nada de
notável em sua vida, a não ser uma dinastia de três papagaios que haviam
sucessivamente reinado em sua alma.
Os mais miseráveis entre os que habitavam o casebre formavam uma
família de quatro pessoas, o pai, a mãe e duas filhas, já bastante crescidas,
todos os quatro alojados no mesmo espaço, uma das celas de que já
falamos.
À primeira vista, essa família não oferecia nada de muito particular
além de sua extrema privação. Ao alugar o quarto, o pai dissera chamar-se
Jondrette. Logo depois de sua mudança, que havia singularmente parecido,
para nos servirmos da memorável expressão da “principal locatária”, com
a entrada de coisa nenhuma, o tal Jondrette dissera a essa mulher, que
como sua antecessora varria a escada e acumulava as funções de porteira:
“Dona fulana, se alguém, por acaso, vier procurar um polaco, ou um
italiano, ou mesmo um espanhol, sou eu”.
Essa era a família do feliz moleque de rua. Ele ali chegava e
encontrava a pobreza, a infelicidade e, o que é mais triste, nenhum sorriso;
o frio na casa e o frio nos corações. Quando ele entrava, lhe perguntavam:
“De onde está vindo?” Ele respondia: “Da rua”. Quando ia embora, lhe
perguntavam: “Para onde está indo?” Ele respondia: “Para a rua”. Sua mãe
lhe dizia: “O que você vem fazer aqui?”
Essa criança vivia nessa ausência de afeto, como certas ervas pálidas
que nascem nos porões. Ele não sofria por tudo ser dessa forma e nem
queria mal ninguém. Não sabia direito como deveriam ser um pai e uma
mãe.
A mãe, porém, amava suas irmãs.
Esquecemos de dizer que, no bulevar du Temple, chamavam esse
menino de pequeno Gavroche. Por que ele se chamava Gavroche?
Provavelmente porque seu pai se chamava Jondrette.
Cortar os laços parece ser o instinto de certas famílias miseráveis.
O quarto em que a família Jondrette morava no casebre Gorbeau era o
último no final do corredor. A cela ao lado era ocupada por um jovem
muito pobre a quem tratavam de senhor Marius.
Vamos dizer quem vinha a ser este senhor Marius.

__________________________
1 Do latim, o pequenino, o pequeno homem.
2 Titi — Jovem operário dos arredores de Paris.
3 Atriz do teatro francês que viveu de 1766 a 1817.
4 Muche: gíria que tem sentido pejorativo.
5 Termo francês que faz referência ao carnaval.
6 Gigante Adamastor, herói de Os lusíadas, de Camões.
7 Citação indireta de versos de Horácio: “A ânfora foi iniciada, o torno do oleiro gira; por que
daí sai apenas uma cânfora?”
8 Referência aos versos do capítulo seguinte, do mesmo autor: “A Fuscus, que gosta da
cidade, eu, que gosto do campo, faço minha saudação” (Epístolas).
9 No texto original francês, Gamin.
10 Praça onde se executavam os condenados.
11 Referência a Joseph Bara, garoto que durante a revolução na França foi capturado pelo
exército e ao ser exigido que falasse Vive le Roi (“Viva o Rei!”), gritou: Vive la République (“Viva
a república!”) antes de ser morto. O artista David d’Angers imortalizou-o com sua obra “Barra”
de 1838.
12 “Tal Paris, tal homem.”
13 “Quem me para, agora que estou apressado, segurando-me por meu casaco?” (Plauto).
14 Caudas vermelhas (queues rouges): personagens grotescos do teatro popular que prendiam
suas perucas com fitas vermelhas.
15 Pierre Jacques Étienne Cambronne (1779 – 1842) foi um general do império francês. Lutou
nas guerras revolucionárias e na Era Napoleônica.
16 Fex urbis — “lama da cidade”; mob — “populacho”.
LIVRO II
O GRANDE BURGUÊS

I. NOVENTA ANOS E TRINTA E DOIS DENTES


NAS RUAS Boucherat, Normandie e de Saintonge, existem ainda alguns
antigos moradores que se lembram de um bom homem chamado senhor
Gillenormand, de quem falam com estima. Esse senhor já era idoso
quando eles ainda eram jovens. Aquela silhueta, para os que
melancolicament e contemplam esse vago cruzar de sombras denominado
passado, ainda não desapareceu inteiramente do labirinto de ruas vizinhas
ao bulevar du Temple, às quais, no reinado de Luís XIV, deram os nomes
de todas as províncias da França, exatamente como, no nosso tempo,
deram às ruas do novo bairro Tivoli os nomes de todas as capitais da
Europa; progressão, diga-se de passagem, em que é visível o progresso.
O senhor Gillenormand, que ainda em 1831 tinha uma saúde de ferro,
era um desses homens que se tornam curiosos de se conhecer unicamente
em razão da sua longevidade, e que são estranhos porque antigamente
eram parecidos com todo o mundo e agora não se parecem com mais
ninguém. Era um velho singular, um verdadeiro homem de uma outra
época, um perfeito e um tanto altivo burguês do século XVIII, ostentando
sua boa e velha condição de burguês do mesmo modo que os marqueses
ostentavam seu marquesado. Tinha mais de noventa anos, mas andava
ereto, falava alto, enxergava bem, bebia sem problema, comia, dormia e
roncava. Tinha ainda seus trinta e dois dentes. Colocava seus óculos
apenas para ler. Tinha temperamento amoroso, mas dizia que, havia uma
dezena de anos, renunciara decidida e completamente às mulheres. Não
podia mais agradar, dizia ele, mas não acrescentava: “Porque sou muito
velho”, mas sim: “Porque sou muito pobre”. Dizia: “Se eu não estivesse
arruinado…!”
Efetivamente, restava-lhe apenas um rendimento de mais ou menos
quinze mil libras. Seu sonho era formar uma herança e ter uma renda de
cem mil francos, que lhe permitisse ter amantes. Como se vê, ele não
pertencia à variedade sem energia dos octogenários que, como o senhor de
Voltaire, viveram a vida toda moribundos; não era uma longevidade
precária, esse senhor alegre sempre estivera muito bem. Era superficial,
rápido e facilmente irritável. Fazia uma tempestade por qualquer motivo, e
muito frequentemente na contra-mão da razão.
Quando o contradiziam, levantava a bengala; batia nas pessoas como
se fazia no grande século. Tinha uma filha de mais de cinquenta anos,
solteira, a quem surrava muito quando se encolerizava, e em quem usaria o
chicote com gosto. Para ele, era como se ela fosse uma criança de oito
anos. Esbofeteava energicamente os criados exclamando: “Ah!
Vagabundos!” Uma de suas pragas era: Par la pantoufloche de la
pantouflochade!1 Tinha, porém, singulares momentos de tranquilidade;
fazia-se barbear todos os dias por um barbeiro que já estivera louco, e que
o detestava, pois tinha ciúmes de Gillenormand por causa da esposa, bela e
vaidosa mulher. Gillenormand admirava seu próprio discernimento para
todas as coisas e declarava-se muito sagaz; eis uma de suas frases: “Na
verdade, eu tenho alguma perspicácia; sou capaz de dizer, quando fui
picado por uma pulga, de qual mulher ela me veio”. As palavras que ele
pronunciava com mais frequência eram o homem sensível e natureza. Não
dava a esta última a grande acepção que nosso tempo lhe conferiu. Mas
colocava-a a seu modo nas histórias que contava: “A natureza”, dizia,
“para que a civilização tenha um pouco de tudo, lhe dá até alguns
espécimes de selvageria divertida. A Europa possui amostras da Ásia e da
África em formato pequeno. O gato é um tigre de salão; o lagarto, um
crocodilo de bolso. As dançarinas do Ópera são selvagens cor-de–rosa.
Não comem os homens, devoram-nos. Ou então, são feiticeiras!
Transformam-nos em ostras e as engolem. Os caraíbas deixam-lhes apenas
os ossos, elas deixam-lhes apenas a concha. Estes são nossos costumes.
Não devoramos, roemos; não exterminamos, dilaceramos”.

II. TAL DONO, TAL CASA


Ele morava no Marais, rua Filles-du-Calvaire, número 6. A casa
pertencia a ele. Essa casa foi demolida e depois reconstruída, e o número
provavelmente foi alterado nessas revoluções de numeração que as ruas de
Paris vêm sofrendo.
Ocupava um antigo e amplo aposento no primeiro andar, entre a rua e
os jardins, forrado até o teto com grandes tapeçarias de Gobelins e de
Beauvais representando cenas pastoris; os temas que apareciam no teto e
nos painéis repetiam-se em ponto pequeno no estofado das poltronas.
Envolvia sua cama com um biombo de nove folhas em laca de
Coromandel. Longas cortinas pendiam das janelas formando um
magnífico pregueado. O jardim, situado logo abaixo de suas janelas,
ligava-se a uma delas, de canto, por meio de uma escada de dez ou quinze
degraus, pela qual o bom Gillenormand subia e descia com toda a alegria.
Além de uma biblioteca contígua a seu quarto, tinha um toucador do qual
gostava muito, local elegante, forrado com uma lindíssima tapeçaria de
palha, com flores-de-lis e outras estampas, feita nas galés da época de Luís
XIV, por ordem do senhor Vivonne a seus forçados, para sua amante. O
senhor Gillenormand herdou-a de uma intratável tia-avó materna, que
morrera já centenária. Foi casado duas vezes. Suas maneiras ficavam a
meio termo entre o magistrado que nunca havia sido, e o magistrado que
poderia ter sido. Era alegre e carinhoso quando queria. Na juventude, fora
desses homens que sempre são enganados pela mulher mas jamais por
suas amantes, pois são, ao mesmo tempo, os mais desagradáveis maridos e
os mais encantadores amantes. Era conhecedor de pintura. Tinha em seu
quarto um maravilhoso retrato, não se sabe de quem, pintado por Jordaens,
com milhões de detalhes, feito a grandes pinceladas confusamente
espalhadas como que ao acaso.
Os trajes do senhor Gillenormand não eram como os de Luís XV, nem
mesmo como os de Luís XVI, mas como os dos incríveis do Diretório.2
Julgava-se jovem até aquela época e por isso seguira os modismos. Sua
casaca era de tecido leve, com amplas laterais, uma longa cauda com
abertura e botões de aço. Além disso, calças tipo culote, curtas, e sapatos
de fivela. Trazia sempre as mãos nos bolsos do colete. Costumava dizer
com autoridade: “A Revolução Francesa não passa de uma corja de
velhacos”.

III. LUC-ESPRIT
Aos dezesseis anos, uma noite no Ópera, teve a honra de ser flertado ao
mesmo tempo por duas beldades, então maduras, célebres e cantadas por
Voltaire, a Camargo e a Sallé. Apanhado entre dois fogos, fizera uma
retirada heroica em direção a uma pequena dançarina chamada Nahenry,
que tinha dezesseis anos, e, como ele, era obscura como um gato, e pela
qual estava apaixonado. Conservava muitas recordações desse tempo.
Exclamava: “Como estava linda, aquela Guimard-Guimardini-
Guimardinette, a última vez que a vi em Longchamps, tocada por
sentimentos elevados, com seus adereços de turquesa, seu vestido cor de
quem chegou há pouco, e seu manchon3 de agitação!”
Na adolescência, usara uma jaqueta de Nain-Londrin4 da qual falava
com gosto e efusão.
“Eu andava vestido como um turco do Levante levantino”, dizia ele. A
senhora de Boufflers, quando por acaso o viu, à época em que ele tinha
seus vinte anos, o qualificara de “um louco encantador”. Ele
escandalizava-se com todos os nomes que via figurar na política ou no
poder, achando-os baixos e burgueses. Lia os jornais, os papéis-notícias,
as gazetas, como ele dizia, rindo às gargalhadas. “Oh!”, dizia ele, “que
gente é essa? Corbière, Humann! Casimir Périer! Esses, são ministros. Eu
imagino o seguinte em um jornal: ‘Senhor Gillenormand, ministro!’, o que
seria uma farsa. Pois bem! São tão bobos que passaria!”
Chamava alegremente todas as coisas pelo nome apropriado ou pelo
nome indecente, sem ficar constrangido diante das mulheres. Dizia
grosserias, obscenidades e coisas sujas com certo ar tranquilo e pouco
admirado que chegava a ser elegante. Era o próprio sem–cerimônias de seu
século. Deve-se notar que o tempo das perífrases em verso foi o tempo das
cruezas em prosa. Seu padrinho predissera que ele seria um homem de
gênio, e dera-lhe estes dois significativos prenomes: Luc-Esprit.
IV. ASPIRANTE CENTENÁRIO
Na infância, Gillenormand recebeu prêmios no Colégio de Moulins,
cidade onde nascera, e foi coroado pela mão do duque de Nivernais, a
quem chamava de duque de Nevers. Nem a Convenção, nem a morte de
Luís XVI, nem Napoleão, nem o retorno dos Bourbons, nada conseguiu
apagar a lembrança dessa coroação. O duque de Nevers era para ele a
grande figura do século. “Que encantador grande senhor”, dizia ele, “e
como ficava bem com seu cordon bleu!”5 Aos olhos do senhor
Gillenormand, Catarina II havia reparado o crime da divisão da Polônia
comprando, por três mil rublos, o segredo do elixir de ouro em Bestuchef.
A esse respeito, animava-se. “O elixir de ouro”, exclamava, “a tinta
amarela de Bestuchef, as gotas do general Lamotte, no século XVIII, ao
preço de um luís o frasco de meia onça, eram o grande remédio para as
catástrofes do amor, a panaceia contra Vênus. Luís XV mandava duzentos
frascos dele ao papa”. Se alguém lhe dissesse que o elixir de ouro não
passava de percloreto de ferro, faria com que ficasse muito exasperado e
perdesse as estribeiras.
O senhor Gillenormand adorava os Bourbons e tinha horror a 1789;
contava sem cessar de que modo se salvara na época do Terror, e como
precisara de bastante vivacidade e esperteza para não ter a cabeça cortada.
Se algum jovem se atrevesse a elogiar a República em sua presença, ficava
azul de raiva e se irritava a ponto de perder os sentidos. Às vezes, fazia
alusão aos seus noventa anos e dizia: Espero não ver duas vezes o noventa
e três. Outras vezes dava a entender às pessoas que ainda pretendia viver
cem anos.

V. BASQUE E NICOLETTE
Gillenormand tinha suas teorias. Eis uma delas: “Quando um homem
ama apaixonadamente as mulheres, e já tem sua própria mulher, com
quem se preocupa pouco, e é feia, rabugenta, legítima, cheia de direitos,
apegada ao código e ciumenta quando é preciso, só lhe resta um meio de
se livrar dela e viver em paz: entregar-lhe ‘a senha do cofre’. Essa
abdicação o torna livre. A mulher tem então com o que se ocupar, toma
gosto pelo manuseio do ‘metal’, que enche seus dedos de zinabre, investe
nas criações dos meeiros e na instrução dos fazendeiros, convoca
procuradores, preside escrivães, arenga tabeliães, visita magistrados,
acompanha processos, redige arrendamentos, dita contratos, sente-se
soberana, vende, compra, regulamenta, ordena, promete e compromete, faz
e desfaz, cede, concede e retrocede, arranja, desarranja, enriquece,
esbanja; faz besteiras, felicidade magistral e pessoal, e isso a consola.
Enquanto o marido a desdenha, tem ela a satisfação de arruinar o marido”.
Essa teoria, o senhor Gillenormand aplicou-a em sua vida, e ela
tornou-se sua história. Sua segunda mulher havia administrado sua fortuna
de tal modo que, quando um belo dia ele se viu viúvo, restava-lhe o
estritamente necessário para viver, convertendo quase tudo em títulos de
renda vitalícia, uns quinze mil francos, dos quais três quartos se
extinguiriam com sua morte. Não hesitara, pouco preocupado com o
cuidado de deixar uma herança. Além disso, tinha visto que os patrimônios
corriam riscos tornando-se às vezes bens nacionais, assistira às
metamorfoses do povo consolidadas, e acreditava pouco na razão. É tudo
Rua Quincampoix!6 — dizia ele.
Como já dissemos, a casa em que morava, na rua Filles-du-Calvaire,
era dele. Tinha dois criados, “um macho e uma fêmea”. Quando um criado
começava a trabalhar em sua casa, o senhor Gillenormand o rebatizava.
Dava aos homens o nome da província de onde eram naturais: Nîmois,
Comtois, Poitevin, Picard. Seu último criado era um homem gordo, de
cinquenta e cinco anos, cansado e com dificuldades para respirar, incapaz
de correr vinte passos; como tinha nascido em Bayonne7, o senhor
Gillenormand o chamava de Basque. Quanto às criadas, na casa dele todas
se chamavam Nicolette (inclusive Magnon, de quem mais adiante
falaremos). Um dia, apresentou-se ali uma orgulhosa cozinheira, cordon
bleu, de alta linhagem de zeladores.
— Quanto quer ganhar por mês? — perguntou-lhe o senhor
Gillenormand.
— Trinta francos.
— Como se chama?
— Olympie.
— Você receberá cinquenta francos, e vai se chamar Nicolette.
VI. ONDE SE ENTREVEEM MAGNON E SEUS DOIS
FILHOS
A dor do senhor Gillenormand traduzia-se em cólera; ficava furioso
quando estava desesperado. Tinha todos os preconceitos e tomava todas as
liberdades. Uma das coisas com que compunha seu relevo exterior e sua
satisfação íntima era, como acabamos de indicar, ter permanecido
namorador, e se passar energicamente por tal. Chamava a isso “ter fama
régia”. A tal fama régia produzia-lhe às vezes singulares surpresas. Um
dia, trouxeram-lhe, em cima de um burrico, como quem traz uma cesta de
ostras, um gorducho recém-nascido, berrando os diabos e devidamente
embrulhado em cueiros, que uma criada, despedida seis meses antes,
atribuía a ele. O senhor Gillenormand tinha então seus bons oitenta anos.
Indignação e clamor na vizinhança. E a quem essa atrevida esperava
enganar com isso? Que audácia! Que abominável calúnia! O senhor
Gillenormand, porém, não teve raiva nenhuma. Olhou para o pequeno com
o amável sorriso de quem sentiu-se lisonjeado pela calúnia, e disse como
se estivesse dirigindo-se a alguém: “Então? O que tem? O que é que há?
Vocês se admiram tanto, mas, na verdade, como gente ignorante. O senhor
duque de Angoulême, filho bastardo de Sua Majestade Carlos IX, casou
aos oitenta e cinco anos com uma moçoila de quinze; o senhor Virginal,
marquês d’Alluye, e irmão do cardeal de Sourdis, arcebispo de Bordeaux,
de oitenta e três anos, teve um filho de uma criada da senhora presidenta
Jacquin, um verdadeiro filho de amor, que veio a ser cavaleiro de Malta e
conselheiro militar de Estado; um dos grandes homens deste século, o
abade Tabaraud é filho de um homem de oitenta e sete anos. Essas coisas
não têm nada de incomum. E a Bíblia, então? Dito isso, declaro que esse
homenzinho não é meu. Mas tomemos conta dele. Não é sua culpa”.
O procedimento de Gillenormand foi bondoso demais. A criatura, a tal
que se chamava Magnon, fez-lhe uma segunda remessa no ano seguinte.
Era outro menino. Dessa vez, o senhor Gillenormand capitulou. Devolveu
à mãe os dois pequenos, propondo-se a dar oitenta francos por mês para
sustentá-los, com a condição de que ela não recomeçasse. E acrescentou:
“Quero que a mãe os trate bem. De tempos em tempos, irei vê-los”. E foi o
que fez. Teve um irmão padre que, por trinta e dois anos, fora reitor da
Academia de Poitiers, e morrera aos setenta e nove. Eu o perdi moço, dizia
ele. Esse irmão, de quem restaram poucas lembranças, era um sossegado
avarento que, por ser padre, julgava-se obrigado a dar esmola aos pobres
que encontrasse, mas só lhes dava moedinhas de pouquíssimo valor, ou já
sem valor algum, encontrando assim meio de ir para o inferno pelo
caminho do paraíso. Quanto ao senhor Gillenormand, irmão mais velho,
não regateava esmolas e as dava com gosto, e com nobreza. Era benévolo,
desabrido, caritativo, e, se tivesse sido rico, sua propensão, teria sido
grandioso. Queria que tudo o que lhe dissesse respeito fosse feito com
grandeza, mesmo as patifarias. Certa vez, tendo sido visível e
grosseiramente roubado em uma questão de herança, por um intendente,
soltou esta solene exclamação: “Ai! Está porcamente feito! Realmente
tenho vergonha dessas fraudes! Tudo se degenerou neste século, até os
tratantes! Caramba! Não é assim que se deve roubar um homem da minha
categoria! Fui roubado como se fosse em um bosque, mas mal roubado.
Silvae sint consule dignae!”8
Como já dissemos, tivera duas mulheres; com a primeira teve uma
filha, que ficou solteira; e com a segunda teve outra, que morreu mais ou
menos aos trinta anos, e que tinha casado, por amor ou por acaso ou por
qualquer outro motivo, com um soldado improvisado que servira nos
exércitos da República e do Império, sendo condecorado em Austerlitz e
promovido a coronel em Waterloo. É a vergonha da minha família, dizia o
velho burguês.
Usava muito rapé e tinha uma graça bem particular ao remexer na gola
de rendas com as costas da mão.
Acreditava muito pouco em Deus.

VII. REGRA: NÃO RECEBER NINGUÉM SENÃO À


NOITE
Assim era o senhor Luc-Esprit Gillenormand, que não perdera os
cabelos, mais grisalhos do que brancos, que os trazia sempre penteados
como “orelhas de cão”. Em suma, e apesar de tudo isso, venerável.
Era um homem do século XVIII; frívolo e grande.
Nos primeiros anos da Restauração, o senhor Gillenormand, que ainda
era moço — não tinha mais que setenta e quatro anos em 1814 —, morava
no Bairro Saint-Germain, na rua Servandoni, perto de Saint–Sulpice. Só se
retirou para o Marais ao sair da vida social, bem depois de soarem seus
oitenta anos.
E, ao sair da vida em sociedade, fechou-se em seus hábitos. O
principal, aquele em que era invariável, era manter sua porta
absolutamente fechada durante o dia, e não receber quem quer que fosse,
para qualquer negócio que fosse, a não ser à noite. Jantava às cinco horas,
e então sua porta era aberta. Era a moda de seu século e não queria alterá-
la. “O dia é canalha”, dizia ele, “merece apenas portas fechadas. Gente
decente ilumina seu espírito quando o zênite acende suas estrelas”. E ele
se entrincheirava para todo o mundo, mesmo que fosse o rei.
Era a antiga elegância de seu tempo.

VIII. AS DUAS NÃO FAZEM UM PAR


Quanto às duas filhas do senhor Gillenormand, de quem há pouco
falamos, tinham nascido com dez anos de intervalo. Na juventude eram
muito pouco parecidas, e, tanto no caráter como na fisionomia, haviam
sido tão pouco irmãs quanto possível. A mais nova era uma alma
encantadora, voltada a tudo o que era luz, ocupada com flores, versos e
música, voando por espaços gloriosos, entusiasta, etérea, noiva, desde a
infância, de uma ideal, vaga figura heroica. A mais velha tinha também
sua quimera; via pelos céus um fornecedor, algum importante comerciante
bem rico, um marido esplendidamente estúpido, um milhão feito homem,
ou então algum prefeito; as recepções da prefeitura, um oficial de
antecâmara de corrente no pescoço, os bailes oficiais, os discursos
oficiais, ser “a senhora prefeita”, tudo isso turbilhonava em sua
imaginação. As duas irmãs se dispersavam, dessa forma, cada qual em
seus sonhos, enquanto eram jovens. Ambas tinham asas; uma, de anjo, a
outra, de ganso.
Nenhuma ambição se realiza completamente, pelo menos neste mundo.
Nenhum paraíso se torna terrestre na época em que estamos. A mais nova
casou-se com o homem dos seus sonhos, mas morreu. A mais velha não se
casou.
No momento em que esta faz sua entrada na história que contamos, era
uma velha virtude, uma casta incombustível, um dos narizes mais afilados
e um dos espíritos mais obtusos que podia haver. Detalhe característico:
fora do estreito círculo familiar, ninguém jamais soube seu nome de
batismo. Tratavam-na por senhorita Gillenormand, filha mais velha.
Em termos de severidade moral, a senhorita Gillenormand filha mais
velha superaria uma miss. Era o pudor elevado ao máximo. Tinha uma
lembrança medonha em sua vida; um dia, um homem viu suas ligas.
A idade só fez aumentar esse pudor impiedoso. Sua gola nunca era
suficientemente opaca, nem cobria suficientemente seu pescoço.
Multiplicava os colchetes e os alfinetes onde ninguém pensaria em olhar.
É característico da castidade colocar ainda mais sentinelas quando a
fortaleza está menos ameaçada.
Todavia, explique quem puder esses velhos mistérios da inocência, ela
se deixava abraçar sem desagrado por um oficial de lanceiros, seu
segundo-sobrinho, que se chamava Théodule.
Apesar desse lanceiro favorecido, a etiqueta Casta, com a qual a
classificamos, convinha-lhe perfeitamente. A senhorita Gillenormand era
uma espécie de alma crepuscular. A castidade é uma meia-virtude e um
meio-vício.
À castidade ela acrescentava a beatice, par bem combinado. Pertencia
à Confraria da Virgem, andava de véu branco em certos dias festivos,
rezava em voz baixa orações especiais, reverenciava o “santo sangue”,
venerava “o sagrado coração”, permanecia em contemplação durante horas
seguidas, diante de um altar rococó-jesuíta em uma capela fechada aos
fiéis comuns, e ali deixava sua alma voar por entre pequenas nuvens de
mármore e grandes raios de madeira dourada.
Tinha uma amiga de capela, virgem velha como ela, chamada
senhorita Vaubois, inteiramente estúpida, e perto da qual a senhorita
Gillenormand tinha o prazer de sentir-se uma águia. Fora os Agnus Dei e
as Ave-Marias, a senhorita Vaubois não tinha outros conhecimentos a não
ser sobre as diferentes maneiras de se fazer geleias. Perfeita em seu
gênero, a senhorita Vaubois era o arminho da estupidez sem uma única
pinta de inteligência.
Digamos a verdade, ao envelhecer, a senhorita Gillenormand havia
mais ganhado que perdido. É o que acontece com as naturezas passivas.
Nunca fora maldosa, o que é uma bondade relativa; além disso, os anos
desgastam as asperezas, e a docilidade do tempo a alcançara. Era triste, de
uma tristeza obscura e da qual nem ela mesma conhecia o segredo.
Em toda a sua pessoa, havia o estupor de uma vida finda que nunca
começou.
Ela cuidava da casa de seu pai. O senhor Gillenormand vivia com a
filha em sua companhia, do mesmo modo que Monsenhor Bienvenu vivia
com sua irmã. Esses casais de um velho pai e de uma velha filha não são
raros e têm sempre o tocante aspecto de duas fraquezas que se apoiam uma
na outra.
Além disso, havia na casa, entre o velho e a velha filha, uma criança,
um pequeno menino sempre trêmulo e mudo na presença do senhor
Gillenormand. O senhor Gillenormand só falava com esse menino em tom
severo, sempre, e, às vezes, ameaçando com a bengala: Já aqui, mocinho!
Patife, tratante, venha cá! Responda, seu malandro! Se eu o pego, seu
sem-vergonha! Etc, etc. Idolatrava-o.
Era seu neto. Voltaremos a encontrar esse menino.

__________________________
1 Expressão sem correspondente em português. Pelo contexto, pode-se pensar que as palavras
pantoufloche e pantouflochade derivem de Pantoufler, verbo que significa conversar, papear, e
Pantoufle, chinelo, formando: “Para quem só conversa, chineladas!”
2 Como eram chamados os afetados elegantes da época.
3 Peça de forma cilíndrica usada para proteger as mãos do frio.
4 Tecido fino fabricado em Londres com lãs da Espanha.
5 Cordon bleu (cordão azul) — fita usada pelos dignitários de certas ordens de cavalaria ou
de certas sociedades.
6 Centro da especulação financeira por volta de 1716.
7 Comuna francesa, pertence ao Departamento dos Pirinéus Atlânticos, está integrada ao País
Basco francês.
8 Referência a um verso de Virgílio, das Bucólicas: “[Se cantamos nos bosques] que os
bosques sejam dignos de um cônsul”.
LIVRO III
O AVÔ E O NETO

I. UM ANTIGO SALÃO
QUANDO O senhor Gillenormand morava na rua Servandoni, frequentava
vários salões muito bons e muito nobres. Embora burguês, o senhor
Gillenormand era ali recebido. Como era duplamente um homem de
espírito, primeiro pelo que possuía, e depois pelo que lhe atribuíam, sua
presença era desejada e até festejada. Não ia a parte alguma senão para
dominar. Há gente que quer ter influência a qualquer preço, e quer que os
outros se ocupem deles; e quando não podem ser oráculos, fazem-se de
farsantes. O senhor Gillenormand não era dessa natureza; seu domínio nos
salões realistas que frequentava não custava nada ao respeito por si
mesmo. Em toda parte era oráculo. Chegava às vezes a fazer frente ao
senhor Bonald e até mesmo ao senhor Bengy-Puy-Vallée.
Por volta de 1817, ele passava, invariavelmente, duas tardes por
semana em uma casa da vizinhança, na rua Férou, pertencente à baronesa
de T., digna e respeitável pessoa, cujo marido, no reinado de Luís XVI,
tinha sido embaixador da França em Berlim. O barão de T., que, enquanto
vivo, caía apaixonadamente em êxtases e visões magnéticas, morreu
arruinado, deixando como toda fortuna, em dez volumes manuscritos,
encadernados em marroquim vermelho e dourado, memórias muito
curiosas sobre Mesmer e seu balde. A senhora de T. não publicara as
memórias por dignidade, e se sustentava com uma pequena renda que
havia subsistido não se sabe como. A baronesa vivia retirada da Corte,
mundo muito misturado, dizia ela, em isolamento nobre, altivo e pobre.
Alguns amigos se reuniam duas vezes por semana em volta de sua lareira
de viúva, o que constituía um salão realista puro. Ali tomava-se chá e
soltavam-se, conforme soprava o vento, para a elegia ou para os louvores
entusiastas, gemidos ou gritos de horror contra o século, contra a Carta,
contra os bonapartistas, contra a prostituição das condecorações
concedidas a burgueses, contra o jacobinismo de Luís XVIII; e ali se
falava, em tom muito baixo, das esperanças que dava o irmão do rei,
depois Carlos X.
Ali eram acolhidas, com manifestações de alegria, cantigas chulas em
que Napoleão era chamado de Nicolas. Duquesas, as mais delicadas e mais
encantadoras mulheres do mundo, se extasiavam com quadras como esta,
dirigida aos “federados”:

Renfoncez dans vos culottes


Le bout d’chemis’ qui vous pend.
Qu’on n’dis’pas qu’les patriotes
Ont arboré l’drapeau blanc!

Voltem a enfiar dentro das calças


A ponta da camisa que pende.
Para que não digam que os patriotas
Hastearam a bandeira branca!

Ali se divertiam com trocadilhos que julgavam terríveis; com


inocentes jogos de palavras, que supunham venenosos; com quadras e até
dísticos; assim, a respeito do Ministério Dessolles, gabinete moderado de
qual faziam parte os senhores Decazes e Desserre:

Pour raffermir le trône ébranlé sur sa base,


Il faut changer de sol, et de serre et de case.1

Para reforçar o trono abalado em sua base,


É preciso mudar de solo, de garra e de casa.

Ou então faziam a lista da Câmara dos Pares, “câmara


abominavelmente jacobina”, combinando os nomes de modo a formar, por
exemplo, frases como esta: Damas, Sabran, Gouvion Saint-Cyr. Tudo isso
alegremente.
Nesse meio social, parodiavam a revolução. Tinham não sei que
veleidade em afiar as mesmas cóleras em sentido inverso. Cantavam
também o seu: Ça ira!

Ah! ça ira! ça ira! ça ira!


Les buonapartist’ à la lanterne!

Ah! Eles irão! Eles irão! Eles irão!


Os bonapartistas para a forca!

As cantigas são como a guilhotina; cortam indiferentemente hoje esta


cabeça, amanhã aquela outra. São só variantes.
No caso Fualdès, que foi dessa época, 1816, tomavam partido de
Bastide e Jausion porque Fualdès era “bonapartista”. Qualificavam os
liberais de irmãos e amigos; era o último grau da injúria.
Como certos campanários de igreja, o salão da baronesa de T. tinha
dois galos. Um era o senhor Gillenormand, o outro era o conde de
Lamothe-Valois, de quem se dizia ao ouvido, com uma espécie de
consideração: Sabe? É o Lamothe da história do colar. Os partidos têm
dessas singulares anistias.
Acrescentemos uma coisa: na burguesia, as situações honradas vão-se
reduzindo em função de relações fáceis demais; é preciso prestar atenção a
quem se pretende admitir; assim como há perda calórica ao redor dos que
sentem frio, há também diminuição de consideração na abordagem de
pessoas desprezadas. A antiga aristocracia mantinha-se acima dessa regra,
bem como de todas as outras. Marigny, irmão da Pompadour, entrava nos
salões do senhor príncipe de Soubise. Apesar disso? Não, por causa disso.
Du Barry, padrinho da Vaubernier, era muito bem-vindo na casa do senhor
marechal de Richelieu. Esse mundo é o Olimpo. Mercúrio e o príncipe de
Guéménée, ali, estão em casa. Um ladrão poderá ser admitido, desde que
seja um deus.
O conde de Lamothe, que em 1815 era um velho de setenta e cinco
anos, de notável só tinha seu ar silencioso e sentencioso, seu rosto
anguloso e frio, suas maneiras perfeitamente polidas, sua casaca abotoada
até a gravata e suas longas pernas, sempre cruzadas, enfiadas em calças
frouxas cor de terra de Siena queimada. Seu rosto era da mesma cor das
calças.
O tal senhor de Lamothe era “apreciado” naquele salão em virtude de
sua “celebridade”, e, coisa estranha, mas exata, em virtude do nome de
Valois.
Quanto ao senhor Gillenormand, sua consideração era absolutamente
muito boa. Ele tinha autoridade. Por mais frívolo que fosse, e sem que isso
custasse nada à sua alegria, tinha uma maneira de ser imponente, digna,
honesta e burguesamente altiva; ao que sua idade avançada só
acrescentava. Não se tem impunemente um século. Os anos acabam por
formar, em torno de uma cabeça, uma aura respeitável.
Além disso, tinha dessas frases que são verdadeiras faíscas de velha
rocha. Assim, quando o rei da Prússia, após haver restaurado Luís XVIII,
veio visitá-lo sob o nome de conde de Ruppin, foi recebido pelo
descendente de Luís XIV um pouco como marquês de Brandeburgo e com
a mais delicada impertinência. O senhor Gillenormand aprovou. Todos os
reis, exceto o rei da França, disse ele, não passam de reis provincianos.
Certo dia, na presença dele, fizeram esta pergunta e deram esta
resposta: “Então, a que foi condenado o redator do Courrier Français?”
“A ser suspenso.”
— O sus2 está demais — observou o senhor Gillenormand.
Palavras desse tipo estabelecem uma situação.
Por ocasião de um Te Deum comemorativo do retorno dos Bourbons,
vendo o senhor Talleyrand passar, disse: Eis Sua Excelência, o Mal.
O senhor Gillenormand estava habitualmente acompanhado de sua
filha, a esguia senhorita que havia então passado dos quarenta anos, mas
parecia ter cinquenta, e de um belo garoto de sete anos, claro, rosado,
saudável, de olhar feliz e confiante, que nunca aparecia naquele salão sem
ouvir as vozes murmurando em volta dele: “Como é bonito! Que pena!
Pobre menino!” Esse menino era aquele de quem falamos algumas
palavras há pouco. Chamavam-no de pobre menino porque seu pai era “um
bandido do Loire”.
Esse bandido do Loire era o genro do senhor Gillenormand, de quem já
se fez menção, e a quem ele qualificava de a vergonha da família.
II. UM DOS ESPECTROS VERMELHOS DAQUELE
TEMPO
Quem naquela época tivesse passado pela pequena cidade de Vernon e
ali tivesse passeado pela bela ponte monumental, que, muito em breve,
esperamos, será sucedida por alguma medonha ponte pênsil, teria notado,
se esticasse os olhos por cima do parapeito, um homem de uns cinquenta
anos usando um boné de couro, uma calça e uma jaqueta de grosseiro
tecido escuro, onde estava costurado algo amarelado, que já fora uma fita
vermelha, calçando tamancos, queimado de sol, o rosto quase negro e os
cabelos quase brancos, uma larga cicatriz na testa, descendo até a face,
curvado, alquebrado, envelhecido antes do tempo, andando quase todos os
dias com uma enxada e uma foice na mão, por um desses compartimentos
cercados de muros, nas proximidades da ponte, que formam uma cadeia de
terraços à margem esquerda do Sena, como graciosos cercados cheios de
flores, dos quais seria possível dizer, se fossem bem maiores: são jardins,
e, se fossem um pouco menores: são buquês. Cada um desses cercados
chegam, tanto de um lado do rio como do outro, a uma casa. O homem de
jaqueta e tamancos, de quem acabamos de falar, habitava, por volta de
1817, o mais estreito deles, e a mais humilde dessas casas. Ali vivia só e
solitário, silensiosa e pobremente, com uma mulher, nem nova nem velha,
nem bonita nem feia, nem camponesa nem da cidade, que o servia. O
quadrado de terra que ele chamava de seu jardim era célebre na cidade
pela beleza das flores que ele cultivava. As flores eram sua ocupação.
À poder de trabalho, de perseverança, de atenção e de baldes de água,
ele havia conseguido criar depois do Criador, e inventara certas tulipas e
certas dálias que pareciam ter sido esquecidas pela natureza. Ele era
engenhoso; levara a dianteira sobre Soulange Bodin na formação de
pequenos maciços de terra pantanosa para a cultura de raros e preciosos
arbustos da América e da China. No verão, desde o nascer do dia, já estava
nas alamedas, semeando, cavando, podando, regando, caminhando por
entre suas flores com ar de bondade, de tristeza e doçura, às vezes
pensativo e imóvel durante horas seguidas, escutando o canto de algum
pássaro em uma árvore ou o ruído de alguma criança em uma das casas, ou
ainda olhando para a ponta de um ramo de erva, para uma gota de orvalho
que o sol transformava em pedra preciosa. Sua mesa era bastante frugal, e
bebia mais leite do que vinho. Uma criança o fazia ceder, sua criada o
repreendia. Era tímido a ponto de parecer intratável; raramente saía, e não
via ninguém, a não ser os pobres que batiam à sua porta, e seu abade, o
padre Mabeuf, bom e velho homem. No entanto, se algum habitante da
cidade ou pessoas de fora, curiosos por ver suas tulipas e suas rosas,
viessem até sua casa, abria-lhes a porta sorrindo. Era este o bandido do
Loire.
Quem, durante a mesma época, tivesse lido as memórias militares, as
biografias, o Moniteur e os boletins do grande exército, teria ficado
impressionado com um nome repetido muitas vezes em tudo isso, o nome
de Georges Pontmercy. Ainda bem jovem, este Georges Pontmercy fora
soldado no regimento de Saintonge. Rebentou a Revolução. O regimento
de Saintonge fez parte do exército do Reno. Pois os antigos regimentos da
monarquia conservavam os nomes de suas províncias, mesmo após a
queda da monarquia, vindo a ser organizados em brigadas somente em
1794. Pontmercy combateu em Spire, em Worms, em Neustadt, em
Turkheim, em Alzey e em Mayence, onde fazia parte dos duzentos que
formavam a retaguarda de Houchard. Resistiu, com um grupo de doze
companheiros, às tropas do príncipe de Hesse, por trás da antiga trincheira
de Andernach, juntando-se ao grosso do exército somente quando o canhão
inimigo abriu uma brecha que ia da borda ao talude do parapeito. Estava
sob o comando de Kléber em Marchiennes e na ação de Mont-Palissel,
onde teve um braço quebrado por uma bala de fuzil. Em seguida, passou à
fronteira da Itália, e foi um dos trinta granadeiros que defenderam o
desfiladeiro de Tende com Joubert. Joubert, em virtude disso, foi nomeado
ajudante-general e Pontmercy sub-tenente. Pontmercy estava ao lado de
Berthier, em meio à metralha, na batalha de Lodi, fato que fez Bonaparte
dizer: Berthier foi artilheiro, cavaleiro, e granadeiro. Viu seu antigo
general Joubert cair em Novi, no momento em que, de espada em punho,
gritava: “Avançar!” Tendo embarcado com sua companhia, em vista das
necessidades da campanha, em um barco que ia de Gênova a não se sabe
mais qual pequeno porto da costa, caiu num vespeiro de sete ou oito
navios ingleses. O comandante genovês queria atirar os canhões ao mar,
esconder os soldados no porão e passar por navio mercante. Pontmercy
mandou içar a bandeira tricolor no mastro e passou altivamente pelos
canhões das fragatas britânicas. Daí a vinte léguas, com audácia crescente,
atacou e capturou com sua embarcação um grande transporte inglês que
conduzia tropas para a Sicília, tão cheio de homens e cavalos que estava
abarrotado até as escotilhas. Em 1805, fazia parte da divisão Malher que
tomou Gunzbourg do arquiduque Ferdinand. Em Weltingen, amparou em
seus braços, sob uma saraivada de balas, o coronel Maupetit, mortalmente
ferido à frente do 9º regimento de dragões. Em Austerlitz, distinguiu-se na
admirável avançada por escalões feita sob fogo inimigo. Quando a
cavalaria da guarda imperial russa derrotou um batalhão do 4º grupamento
de linha, Pontmercy foi um dos que se puseram em revanche desbaratando
aquela guarda. O imperador condecorou-o com a cruz. Pontmercy viu
sucessivamente serem feitos prisioneiros Wurmser em Mântua, Melas em
Alexandria, Mack em Ulm. Fez parte do oitavo corpo do grande exército
que Mortier comandava e que tomou Hamburgo. Depois passou para o 55º
de linha, que era o antigo regimento de Flandres. Em Eylau, estava no
cemitério onde o heroico capitão Louis Hugo, tio do autor deste livro,
susteve, durante duas horas, só com sua companhia de oitenta e três
homens, todo o ímpeto do exército inimigo. Pontmercy foi um dos três que
saíram vivos daquele cemitério. Esteve em Friedland, depois viu Moscou,
depois Beresina, Lutzen, Bautzen, Dresden, Wachau, Leipsick e os
desfiladeiros de Gelenhausen; depois Montmirail, Château-Thierry, Craon,
as margens do Marne, as margens do Aisne e a temível posição de Laon.
Em Arnay-le-Duc, então como capitão, atacou dez cossacos e salvou, não
o seu general, mas um cabo. Nessa ocasião, foi gravemente golpeado, e só
do braço esquerdo tiraram-lhe vinte e sete lascas de osso. Oito dias antes
da capitulação de Paris, acabara de fazer uma permuta com um camarada e
de entrar para a cavalaria. Ele tinha o que, no Antigo Regime, se chamava
a dupla-mão, isto é, igual aptidão para manejar, como soldado, a espada ou
o fuzil, como oficial, um esquadrão ou um batalhão. Foi dessa aptidão,
aperfeiçoada pela educação militar, que nasceram algumas armas
especiais, como por exemplo os dragões, que são ao mesmo tempo
soldados de infantaria e de cavalaria. Pontmercy acompanhou Napoleão à
ilha de Elba. Em Waterloo, era chefe de esquadrão de encouraçados na
brigada de Dubois. Foi ele quem tomou a bandeira do batalhão de
Lunebourg. E foi jogar a bandeira aos pés do imperador. Estava coberto de
sangue. Ao arrancar a bandeira, recebeu um golpe de sabre que atravessou
seu rosto. O imperador, contente, gritou-lhe: És coronel, és barão, és
oficial da Legião de Honra! Pontmercy respondeu: Senhor, agradeço-lhe
em nome de minha viúva.
Uma hora depois caía no barranco de Ohain. Quem era agora esse
Georges Pontmercy? Era o mesmo bandido do Loire.
Já vimos alguma coisa de sua história. Após Waterloo, Pontmercy,
retirado, como se lembram, do barranco de Ohain, conseguiu alcançar o
exército, e arrastou-se, de ambulância em ambulância, até os
aquartelamentos do Loire.
A Restauração o havia colocado a meio-soldo, em seguida o mandou,
em regime de vigilância, para Vernon. O rei Luís XVIII, considerando
como não acontecido tudo o que fora feito durante os Cem Dias, não
reconheceu nem sua qualidade de oficial da Legião de Honra, nem sua
patente de coronel, nem seu título de barão. Ele, por seu lado, não perdia
nenhuma oportunidade de assinar: coronel barão de Pontmercy. Não tinha
mais do que uma casaca azul, já velha, e jamais saía sem nela prender a
roseta de oficial da Legião de Honra. O procurador do rei mandou preveni-
lo de que o ministério público o perseguiria por “porte ilegal desta
condecoração”. Quando esse aviso foi-lhe dado por um intermediário
oficioso, Pontmercy respondeu com um sorriso amargo: “Já não sei se sou
eu que não entendo o francês, ou se é o senhor que não mais o sabe falar,
mas o fato é que não estou compreendendo”. E, em seguida, saiu oito dias
com sua roseta. Ninguém ousou inquietá-lo. Duas ou três vezes o ministro
da Guerra e o general de divisão escreveram-lhe com a seguinte
subscrição: Ao senhor comandante Pontmercy. Ele mandou as cartas de
volta sem abri-las. Naquela mesma época, Napoleão, em Santa Helena,
tratava da mesma forma as missivas de Sir Hudson Lowe dirigidas ao
general Bonaparte. Pontmercy, permitam-nos a expressão, acabara por ter
na boca a mesma saliva que seu imperador.
Do mesmo modo, havia em Roma soldados cartagineses prisioneiros
que se recusavam a saudar Flamínio, e que tinham alguma coisa da alma
de Aníbal.
Uma manhã, ele encontrou o procurador do rei em uma rua de Vernon,
foi até ele e disse-lhe:
— Senhor procurador do rei, é permitido que eu ande com minha
cicatriz?
Ele não tinha nada, a não ser seu insignificante meio-soldo de chefe de
esquadrão. Havia alugado em Vernon a menor casa que conseguira
encontrar. Ali vivia só, acabamos de ver como. No tempo do Império,
entre duas guerras, encontrara tempo para casar com a senhorita
Gillenormand. O velho burguês, no fundo indignado, consentira, mas
suspirando e dizendo: As melhores famílias são forçadas a isso.
Em 1815, a senhora Pontmercy, senhora aliás admirável sob todos os
pontos de vista, educada, com raras qualidades e digna de seu marido,
morrera deixando um filho. Esse menino fora a alegria do coronel em sua
solidão; mas o avô havia imperiosamente reclamado seu neto, declarando
que, se não lhe fosse entregue, seria deserdado. O pai cedeu, no interesse
da criança, e, não podendo ficar com seu filho, pôs-se a amar as flores.
De resto, havia renunciado a tudo, não se movendo nem conspirando.
Dividia seu pensamento entre as coisas inocentes que fazia e as grandes
coisas que havia feito. Passava seu tempo esperando o desabrochar de um
cravo ou recordando-se de Austerlitz.
O senhor Gillenormand não mantinha relações de qualquer espécie
com seu genro. Para ele, o coronel era “um bandido”, e, para o coronel, ele
seria “um estúpido”. Nunca falava do coronel, a não ser raras vezes para
fazer alusões zombeteiras ao “seu baronato”. Haviam expressamente
acordado que Pontmercy nunca tentaria ver nem falar com seu filho, sob
pena de que o menino lhe fosse devolvido expulso e deserdado. Para os
Gillenormand, Pontmercy era um pestilento. Pretendiam educar o menino
a seu modo. O coronel talvez tenha errado ao aceitar tais condições, mas
submeteu-se a elas acreditando que fazia bem, e que sacrificaria apenas a
si mesmo. A herança do pai Gillenormand era pequena, mas a herança da
senhorita Gillenormand mais velha era considerável. Essa tia, que ficara
solteira, era muito rica pelo lado materno, e o filho de sua irmã era seu
herdeiro natural.
O menino, que se chamava Marius, sabia que tinha um pai, e nada
mais. Ninguém lhe abria a boca a esse respeito. No entanto, no mundo que
seu avô o levava a frequentar, os cochichos, as meias-palavras, as piscadas
de olho, começaram, com o tempo, a manifestar-se, tocando o espírito do
pequeno; ele acabou por compreender alguma coisa, e, de forma natural,
por uma espécie de infiltração e lenta penetração, ele recebia as ideias e
opiniões que, por assim dizer, constituíam seu meio respirável; pouco a
pouco só pensava em seu pai com vergonha e com o coração apertado.
Enquanto crescia assim, a cada dois ou três meses o coronel escapava e
vinha furtivamente a Paris, como um condenado que fugiu da prisão, e ia
postar-se em Saint-Sulpice à hora em que a tia Gillenormand levava
Marius à missa. Ali, tremendo com receio de que a tia se voltasse,
escondido por trás de um pilar, imóvel, não ousando respirar, olhava para
seu filho. Esse homem marcado tinha medo daquela solteirona.
Daí veio sua ligação com o abade de Vernon, o senhor padre Mabeuf.
Esse digno padre era irmão do tesoureiro de Saint-Sulpice, e muitas
vezes havia notado aquele homem contemplando seu filho, a cicatriz que
tinha no rosto e as lágrimas que tinha nos olhos. Esse homem, que
aparentava ser um verdadeiro homem e que chorava como uma mulher,
havia impressionado o tesoureiro. Aquela figura ficou marcada em seu
espírito. Um dia, estando em Vernon para visitar seu irmão, encontrou-se
na ponte com o coronel Pontmercy e reconheceu o homem de Saint-
Sulpice. Contou então a história ao abade e ambos foram visitar o coronel
sob um pretexto qualquer. Essa visita levou a outras. O coronel, em
princípio muito reservado, veio por fim a se abrir, e tanto o abade como o
tesoureiro chegaram a conhecer toda a história, e o modo como Pontmercy
sacrificava sua felicidade pelo futuro de seu filho. Isso fez com que o
abade o tivesse em consideração e afeição, e que o coronel, de sua parte,
também se afeiçoasse ao abade. Aliás, quando por acaso ambos são
sinceros e bons, nada se penetra e se amalgama mais facilmente do que um
velho padre e um velho soldado. No fundo, são um mesmo homem. Um
consagrou-se à pátria terrena, outro à pátria celeste; nenhuma outra
diferença.
Duas vezes por ano, no primeiro de janeiro e na festa de São Jorge,
Marius escrevia a seu pai, por obrigação, cartas ditadas por sua tia, mas
que pareciam copiadas de algum formulário; era tudo quanto tolerava o
senhor Gillenormand; e o pai respondia com cartas muito afetuosas que o
avô metia no bolso sem ler.

III. REQUIESCANT3
O salão da senhora de T. era tudo o que Marius Pontmercy conhecia do
mundo. Era a única abertura pela qual podia ver a vida. Essa abertura era
sombria e por ela chegava-lhe mais frio do que calor, mais escuridão do
que claridade.
Essa criança, que era só alegria e luz, ao entrar naquele mundo
estranho, em pouco tempo tornou-se triste, e, o que é ainda mais impróprio
a essa idade, tornou-se sério.
Rodeado de todas aquelas pessoas imponentes e singulares, olhava em
torno de si com um espanto sério. Tudo contribuía para aumentar-lhe tal
espanto. Frequentavam o salão da senhora de T. algumas nobres senhoras
idosas, muito respeitáveis, chamadas Mathan, Noé, Lévis, que se
pronunciava Levi, Cambis, que se pronunciava Cambyse. Aqueles rostos
antigos e esses nomes bíblicos misturavam-se, na mente do menino, ao
Antigo Testamento, que aprendia de cor; e quando todas elas achavam-se
sentadas em volta de um fogo quase apagado, mal iluminadas por uma
lamparina com quebra-luz verde, com seus perfis severos, seus cabelos
grisalhos ou brancos, seus longos vestidos de outro tempo, dos quais mal
se distinguiam as lúgubres cores, pronunciando a raros intervalos palavras
ao mesmo tempo majestosas e duras, o pequeno Marius as observava com
olhar admirado, julgando ver, não mulheres, mas patriarcas e magos, não
seres reais, mas fantasmas.
A esses fantasmas juntavam-se vários padres, que frequentavam aquele
velho salão, e alguns fidalgos; o marquês de Sassenaye, secretário de
ordens da senhora de Berry, o visconde de Valory, que publicava, sob o
pseudônimo de Charles-Antoine, odes de uma única rima; o príncipe de
Beauffremont, que, embora bem novo, tinha os cabelos grisalhos e uma
mulher bonita e espirituosa, cujos vestidos de veludo escarlate com
espirais douradas, muito decotados, espantavam aquelas trevas; o Marquês
de Coriolis d’Espinouse, o homem que, na França, melhor conhecia “a
delicadeza proporcionada”; o conde d’Amendre, bom homem, de
semblante benévolo; e o cavaleiro de Port-de-Guy, pilar da biblioteca do
Louvre, chamada de gabinete do rei. O senhor Port-de-Guy, calvo, e mais
envelhecido do que propriamente velho, contava que, em 1793, com a
idade de dezesseis anos, fora colocado na prisão como rebelde e
acorrentado a um octogenário, o bispo de Mirepoix, também rebelde, mas
na condição de padre, enquanto ele o era na condição de soldado. Estavam
em Toulon. Sua tarefa consistia em ir, à noite, recolher no cadafalso as
cabeças e os corpos dos que haviam sido guilhotinados pela manhã;
carregavam nas costas aqueles corpos ensanguentados, e as suas roupas
vermelhas de condenados tinham, na altura da nuca, uma crosta de sangue,
seca pela manhã, úmida à noite.
Essas histórias trágicas eram frequentes no salão da senhora de T.; e, à
força de maldizerem Marat, ali aplaudiam Trestaillon. Alguns deputados
do gênero “difícil de encontrar” jogavam ali seu whist,4 o senhor Thibord
du Chalard, o senhor Lemarchant de Gomicourt e o célebre crítico da
direita, senhor Cornet-Dincourt. O juiz de Ferrette, com suas calças curtas
e pernas finas, passava algumas vezes por esse salão quando ia à casa do
senhor Talleyrand. Tinha sido companheiro de prazeres do senhor conde
d’Artois, e, ao inverso de Aristóteles, que se acocorou sob Campaspe,
fizera Guimard andar de quatro, mostrando dessa forma aos séculos
vindouros um filósofo vingado por um juiz.
Quanto aos padres, eram o abade Halma, o mesmo a quem o senhor
Larose, seu colaborador no la Foudre, costumava dizer: Ora! Quem é que
não tem cinquenta anos? Talvez só alguns fedelhos!, o abade Letourner,
pregador régio, o abade Frayssinous, que ainda não era nem conde, nem
bispo, nem ministro, nem par, e que usava uma batina velha sem alguns
botões, e o padre Keravenant, abade de Saint-Germain des Prés; e mais o
núncio do papa, que então era o monsenhor Macchi, arcebispo de Nisibi,
mais tarde cardeal, notável por seu longo nariz de pensador, e ainda outro
monsenhor assim intitulado: abade Palmieri, prelado doméstico, um dos
sete protonotários participantes da Santa Sé, cônego da insigne Basílica
liberiana, advogado dos santos, postulatore di santi, o que diz respeito aos
negócios da canonização e significa, mais ou menos, referendário da seção
do paraíso; finalmente, dois cardeais, senhor de la Luzerne e senhor de
Clermont-Tonnerre. O cardeal de la Luzerne era escritor, e, anos mais
tarde, teria a honra de assinar no Conservateur [Conservador] alguns
artigos ao lado de Chateaubriand; o cardeal de Clermont-Tonnerre era
arcebispo de Toulouse, e vinha com frequência veranear em Paris na casa
de seu sobrinho, o marquês de Tonnerre, que foi ministro da Marinha e da
Guerra. O cardeal de Clermont-Tonnerre era um velhinho alegre que
mostrava as meias vermelhas sob a batina arregaçada; tinha como
especialidades odiar a “Enciclopédia” e jogar bilhar apaixonadamante; e
naquele tempo as pessoas que passavam, nas noites de verão, pela rua
Madame, onde era então o palácio de Clermont-Tonnerre, paravam para
ouvir o choque das bolas e a voz aguda do cardeal, que gritava a seu
conclavista, monsenhor Cottret, bispo in partibus de Caryste: Marque,
padre, carambolei.
O cardeal de Clermont-Tonnerre fora levado ao salão da senhora de T.
por seu amigo mais íntimo, senhor de Roquelaure, antigo bispo de Senlis e
um dos quarenta da Academia Francesa. O senhor de Roquelaure era
respeitável por sua elevada estatura e por sua assiduidade na Academia;
através da porta envidraçada da sala vizinha à biblioteca, onde a Academia
realizava então suas sessões, os curiosos podiam contemplar, toda quinta-
feira, o antigo bispo de Senlis, habitualmente de pé, empoado, de meias
roxas e com as costas voltadas para a porta, aparentemente para melhor
fazer-se notar.
Todos esses eclesiásticos, embora a maior parte deles fosse tanto de
homens da corte quanto de homens da Igreja, aumentavam a gravidade do
salão de T., cujo aspecto senhorial era acentuado por cinco pares da
França, o marquês de Vibraye, o marquês de Talaru, o marquês de
Herbouville, o visconde de Dambray e o duque de Valentinois. Este duque
de Valentinois, embora príncipe de Mônaco, isto é, príncipe soberano
estrangeiro, fazia tão elevada ideia da França e do pariato, que via tudo
através disso. Era ele quem dizia: Os cardeais são os pares da França de
Roma, os lordes são os pares da França da Inglaterra. No mais, pois neste
século é preciso que a Revolução esteja em toda parte, esse salão feudal
era, como já foi dito, dominado por um burguês. O senhor Gillenormand
ali reinava.
Ali estava a essência e a quintessência da sociedade branca de Paris.
Ali os renomados eram mantidos em quarentena, mesmo que fossem
realistas. Sempre há anarquia em meio à fama. Chateaubriand, entrando
ali, produziria o mesmo efeito que o padre Duchêne. Alguns ralliés,5 no
entanto, eram admitidos, por tolerância, naquele mundo ortodoxo. O conde
Beugnot era recebido ali a título de correção.
Os salões “nobres” de hoje em dia não se parecem mais com aqueles.
O atual bairro de Saint-Germain cheira a heresia. Os realistas de agora são
demagogos, que seja dito em seu louvor.
Na casa da senhora de T., onde a sociedade era superior, o gosto era
exótico e arrogante, sob uma grande nata de polidez. Seus costumes
comportavam todo tipo de refinamentos involuntários, que eram o próprio
Antigo Regime, enterrado, mas ainda vivo. Alguns desses costumes, na
linguagem principalmente, pareciam extravagantes. Conhecedores
superficiais tomariam por provincianismo o que não passava de vetustez.
Chamava-se uma dama de senhora generala. Senhora coronela não era
inteiramente inusitado. A encantadora senhora de Léon, decerto em
memória das duquesas de Longueville e de Chevreuse, preferia essa
denominação a seu título de princesa. Também a marquesa de Créquy era
chamada de senhora coronela.
Foi essa pequena alta sociedade que inventou nas Tulherias o requinte
de dizer, sempre que se falasse ao rei na intimidade, o rei, na terceira
pessoa, e nunca Vossa Majestade, pois o tratamento Vossa Majestade fora
“manchado pelo usurpador”.
Ali julgavam os fatos e os homens. Ridicularizavam o século, o que
dispensava compreendê-lo. Auxiliavam-se mutuamente em meio ao
espanto. Comunicavam-se com a quantidade de clareza que cada um
possuía. Era Matusalém informando Epimênides. O surdo pondo o cego a
par do que ocorria. Declarava-se nulo o tempo decorrido desde Coblentz.
Do mesmo modo que Luís XVIII, por graça de Deus, achava-se no
vigésimo quinto ano de seu reinado, os emigrados, por direito, estavam no
vigésimo quinto ano de sua adolescência.
Tudo era harmonioso; nada vivia demais; a palavra era apenas um
sopro; o jornal, de acordo com o salão, parecia um papiro. Ali, havia
jovens, mas estavam meio mortos. Na antecâmara, a criadagem estava em
plena velhice. Os personagens, completamente ultrapassados, eram
servidos por criados da mesma espécie. Tudo aquilo tinha o aspecto de ter
existido havia muito tempo e de obstinar-se contra o sepulcro. Conservar,
Conservação, Conservador, era esse, aproximadamente, todo o dicionário.
Être en bonne odeur,6 era a questão. Com efeito, havia aromas nas
opiniões daqueles veneráveis grupos, e suas ideias cheiravam a vetiver.
Era uma sociedade de múmias. Os amos estavam embalsamados, os
criados empalhados.
Uma velha marquesa emigrada e arruinada, não tendo mais que uma
criada, continuava a dizer: Meus criados.
O que se fazia no salão da senhora de T.? Era-se ultra.
Ser ultra; essa expressão, ainda que o que ela represente talvez ainda
não tenha desaparecido, não faz mais sentido. Expliquemos.
Ser ultra quer dizer ir além. É atacar o cetro em nome do trono e a
mitra em nome do altar; é maltratar aquilo que se conduz, é dar coices nos
cavalos, é contestar a fogueira quanto ao grau de cozimento dos hereges; é
censurar ao ídolo sua pouca idolatria; é insultar por excesso de respeito; é
achar no papa pouco papismo, no rei pouco realismo, e luz demais na
noite; é não se contentar com o alabastro, com a neve, com o cisne, com o
lírio, em nome da brancura; é ser partidário de uma causa a ponto de
tornar-se seu inimigo; é ser tanto a favor que se acaba sendo contra.
O espírito ultra é a principal característica da primeira fase da
Restauração. Não existe na história nada semelhante a esse quarto de hora
que começa em 1814 e termina por volta de 1820, com a aparição do
senhor de Villèle, o homem prático da direita.
Esses seis anos foram um momento extraordinário, ao mesmo tempo
brilhante e abatido, risonho e sombrio, iluminado como pelo clarão da
aurora e coberto pelas trevas das grandes catástrofes, que ainda enchiam o
horizonte e mergulhavam lentamente no passado. Existiu, em meio àquela
luz e àquela sombra, um pequeno mundo novo e velho, bufão e triste,
juvenil e senil, esfregando os olhos; nada é mais parecido com o despertar
do que o retornar; um grupo que olhava para a França com humor, e para o
qual a França olhava com ironia; ruas atulhadas de pobres mochos e
velhos marqueses; de desiludidos e de almas penadas; de “ci-devants”7
espantados com tudo; de bravos e nobres fidalgos sorrindo por estarem na
França, e também chorando, contentes por reverem sua pátria mas
desesperados por não mais encontrarem sua monarquia; a nobreza das
cruzadas desprezando a nobreza do império, quer dizer, a nobreza de
espada; as raças históricas perdendo o senso da história; os filhos dos
companheiros de Carlos Magno desdenhando os companheiros de
Napoleão. As espadas, como acabamos de dizer, insultavam-se
mutuamente; a espada de Fontenoy tornou-se risível e não passava de
enferrujada; a espada de Marengo tornou-se odiosa e não passava de um
sabre. O Outrora desconhecia o Ontem. Já não havia o sentimento do que
era grande, nem o sentimento do que era ridículo. Houve quem chamasse
Bonaparte de Scapin. Esse mundo já não existe. Nada, devemos repetir,
resta dele hoje. Quando, por acaso, revocamos alguma de suas figuras e
tentamos fazê-la reviver pelo pensamento, parece-nos estranho como um
mundo antediluviano. É que, efetivamente, ele também foi engolido por
um dilúvio. Desapareceu sob duas revoluções. Que torrente, a das ideias!
Como elas cobrem rapidamente o que têm por missão destruir e sepultar, e
como cavam depressa abismos terríveis!
Tal era a fisionomia dos salões daqueles tempos longínquos e cândidos
em que o senhor Martainville tinha mais espírito do que Voltaire.
Esses salões tinham uma literatura e uma política próprias. Ali
acreditava-se em Fievée, o senhor Agier ditava as leis, comentava-se
Colnet, o publicista alfarrabista do cais Malaquais, Napoleão era tido
unanimemente como Bicho-papão da Córsega. Mais tarde, a introdução na
história do senhor marquês de Buonaparté, tenente-general dos exércitos
reais, foi uma concessão ao espírito do século.
Esses salões não permaneceram puros por muito tempo. A partir de
1818, alguns doutrinários começaram a despontar neles, nuance
inquietante. Tinham como característica ser realistas e desculparem-se por
isso. Daquilo que os ultras tinham muito orgulho, os doutrinários tinham
um pouco de vergonha. Tinham talento; faziam silêncio; seu dogma
político era convenientemente engomado com arrogância; precisavam ser
bem-sucedidos. Abusavam utilmente, aliás, dos excessos de gravata
branca e de casaca abotoada. O erro, ou a desgraça, do partido doutrinário
foi criar a juventude velha. Posavam de sábios. Sonhavam em enxertar no
princípio absoluto e excessivo um poder temperado. Opunham, e algumas
vezes com rara inteligência, ao liberalismo demolidor, um liberalismo
conservador. Ouvia-se dizerem: “Graças ao realismo! Ele nos prestou mais
que um serviço. Trouxe de volta a tradição, o culto, a religião, o respeito.
Ele é fiel, bravo, cavalheiresco, dedicado, afetuoso. Vem juntar, ainda que
a contragosto, às novas grandezas da nação, as grandezas seculares da
monarquia. Comete o erro de não compreender a revolução, o império, a
glória, a liberdade, as ideias novas, as novas gerações, o século. Mas esse
erro que comete em relação a nós, não o cometemos também algumas
vezes em relação a ele? A Revolução, da qual somos herdeiros, deve ter
conhecimento de tudo. Atacar o realismo é o contra senso do liberalismo.
Que falta! E que cegueira! A França revolucionária faltando ao respeito
para com a França histórica, quer dizer, para com sua mãe, quer dizer, para
com ela mesma. Depois do 5 de setembro, trata-se a nobreza da monarquia
do mesmo modo que depois de 8 de julho se tratava a nobreza do império.8
Eles foram injustos para com a águia, nós somos injustos para com a flor-
de-lis. Sempre se deseja ter algo a proscrever! Desdourar a coroa de Luís
XIV, riscar o brasão de Henrique IV, que utilidade há nisso? Zombávamos
de Vaublanc, que apagava os N da ponte d’Iéna. E ele, o que fazia? O que
nós fazemos. Bouvines nos pertence, assim como Marengo. As flores-de-
lis são nossas, assim como os N. É nosso patrimônio. Para que diminuí-lo?
Não devemos renegar a pátria no passado mais do que a renegamos no
presente. Por que não querer toda a história? Por que não gostar da França
por inteiro?”
Era assim que os doutrinários criticavam e protegiam o realismo, que,
por sua vez, ficava descontente por ser criticado e furioso por ser
protegido.
Os ultras marcaram a primeira época do realismo; a congregação
caracterizou a segunda. O ímpeto foi sucedido pela habilidade.
Terminemos aqui esse esboço.
No curso desta narrativa, o autor deste livro encontrou em seu caminho
com esse curioso momento da história contemporânea; não pôde deixar de
lançar-lhe um olhar de passagem e de lembrar alguns dos lineamentos
singulares desta sociedade hoje desconhecida. Mas faz isso rapidamente e
sem nenhuma ideia amarga ou depreciativa. Lembranças, afetuosas e
respeitosas, pois dizem respeito a sua mãe, o ligam a esse passado. Além
do mais, temos de dizer, aquele mundinho tinha sua grandeza. Pode-se rir
dele, mas não se pode nem desprezá-lo nem odiá-lo. Era a França de
outrora.
Marius Pontmercy estudou o que estudam todas as crianças. Quando
saiu das mãos da tia Gillenormand, seu avô o confiou a um digno
professor da mais pura inocência clássica. Aquela alma jovem, que
desabrochava, passou das mãos de uma beata para as de um pedante.
Marius fez os anos de colégio, em seguida entrou para a escola de Direito.
Era realista, fanático e austero. Gostava pouco do avô, cuja alegria e
cinismo o incomodavam, e era triste no que tangia a seu pai.
No mais, era um rapaz ardente e frio, nobre, generoso, altivo, religioso,
exaltado; digno beirando a dureza, puro beirando a selvageria.

IV. FIM DO BANDIDO


O término dos estudos de Marius coincidiu com a retirada do senhor
Gillenormand da sociedade. O velho disse adeus ao bairro de Saint–
Germain e ao salão da senhora de T., e foi estabelecer-se no Marais, em
sua casa da rua Filles-du-Calvaire. Ali tinha, como criados, além do
porteiro, a camareira Nicolette, que ficara no lugar de Magnon, e o
esbaforido e atarefado Basque, de quem acima já falamos.
Em 1827, Marius acabava de completar seus dezessete anos. Uma
noite, ao voltar para casa, viu seu avô com uma carta na mão.
— Marius — disse-lhe o senhor Gillenormand —, amanhã você irá a
Vernon.
— Para quê? — perguntou Marius.
— Para ver seu pai.
Marius estremeceu. Já havia pensado em muita coisa, exceto nisso, no
fato de que um dia poderia ocorrer-lhe de ver seu pai. Nada podia ser mais
inesperado, mais surpreendente, e, digamos a verdade, mais desagradável
para ele. Era o afastamento vendo-se obrigado à reaproximação. Não era
um desgosto, não, era um trabalho penoso.
Além de seus motivos de antipatia política, Marius estava convencido
de que seu pai, aquele brutal, como o chamava o senhor Gillenormand em
seus dias de ternura, não o amava; isso era evidente, visto que ele o
abandonara daquela forma e o deixara aos cuidados alheios. Não se
sentindo amado, também não amava. Nada mais simples, pensava ele.
Ficou tão estupefato que nem questionou o senhor Gillenormand. O
avô continuou:
— Parece que está doente. Está chamando por você.
E, após uma pausa, acrescentou:
— Vá amanhã de manhã. Acho que, do largo des Fontaines, todos os
dias parte uma diligência que sai às seis horas e chega lá quase à noite.
Pegue um lugar nessa diligência. Ele diz que é urgente.
Depois, amassou a carta e colocou-a no bolso. Marius poderia ter
partido naquela mesma noite, para estar junto de seu pai na manhã
seguinte. Uma diligência da rua du Bouloi fazia, nessa época, uma viagem
noturna para Ruen, passando por Vernon. Porém, nem o senhor
Gillenormand nem Marius pensaram em obter informações.
No dia seguinte, ao escurecer, Marius chegava a Vernon. A iluminação
começava a ser acesa. Ele perguntou ao primeiro que passava onde era a
casa do senhor Pontmercy. Pois, em seu pensamento, partilhava as
opiniões da Restauração, e também não reconhecia seu pai nem como
barão nem como coronel.
Indicaram-lhe a casa. Ele bateu. Uma mulher veio abrir-lhe a porta,
uma pequena lamparina na mão.
— O senhor Pontmercy? — disse Marius.
A mulher permaneceu imóvel.
— É aqui? — perguntou Marius.
A mulher fez um sinal afirmativo com a cabeça.
— Poderia falar-lhe?
A mulher fez um sinal negativo.
— Mas sou o filho dele — tornou Marius. — Ele me espera.
— Não o espera mais! — disse a mulher.
Então ele percebeu que ela chorava.
Apontou-lhe a porta de uma sala inferior. Ele entrou.
Nessa sala, iluminada por uma vela de sebo colocada sobre a lareira,
havia três homens, um de pé, um de joelhos e outro no chão, de camisa,
deitado no assoalho. O que estava no chão era o coronel.
Os outros dois eram um médico e um padre que rezava.
Havia três dias o coronel era atacado por uma febre cerebral. No
começo da doença, como tivesse um mau pressentimento, escrevera ao
senhor Gillenormand chamando pelo filho. A doença agravou-se. Na
mesma noite da chegada de Marius a Vernon, o coronel tivera um acesso
de delírio; levantara-se da cama, apesar dos esforços da criada, gritando:
— Meu filho não chega! Vou ao encontro dele!
Em seguida, saiu do quarto e caiu no chão da antecâmara. Acabava de
expirar.
O médico e o padre foram chamados. O médico chegou tarde demais, o
padre chegou tarde demais. O filho também chegou tarde demais.
À claridade crepuscular daquela vela, distinguia-se na face do coronel,
estirado e pálido, uma grande lágrima que escorrera de seus olhos mortos.
Os olhos já não tinham vida, mas a lágrima não havia secado. Essa lágrima
era a demora de seu filho.
Marius contemplou aquele homem, que via pela primeira e última vez,
aquele rosto venerável e másculo, aqueles olhos abertos que já não viam,
aqueles cabelos brancos, aqueles membros robustos nos quais, aqui e ali,
distinguiam-se linhas escuras que eram golpes de espada, e algo como
estrelas vermelhas, que eram buracos de balas. Viu a enorme cicatriz que
imprimia heroísmo naquela fronte em que Deus imprimira a bondade.
Lembrou-se de que aquele homem era seu pai, e que aquele homem estava
morto, e permaneceu frio.
A tristeza que sentia era a tristeza que teria sentido diante de qualquer
outro homem que tivesse visto morto.
Dor, uma dor pungente, enchia aquele quarto. A criada se lamentava
em um canto, o padre orava e ouviam-se seus soluços, o médico enxugava
os olhos; até o próprio cadáver chorava.
O médico, o padre e a mulher olhavam para Marius através da aflição
que sentiam, sem dizerem uma palavra; ele é que era o estranho. Marius,
muito pouco emocionado, sentiu-se envergonhado e embaraçado com sua
atitude; deixou cair o chapéu que tinha na mão para fazer supor que a dor
lhe tirava a força de segurá-lo.
Ao mesmo tempo, sentia certo remorso, e julgava-se desprezível por
agir assim. Mas tinha alguma culpa? Não amava seu pai; o que fazer?
O coronel não deixava nada. A venda da mobília mal pagou o enterro.
A criada encontrara um pedaço de papel que entregou a Marius. Havia o
seguinte, escrito pela mão do coronel:

“Para meu filho. O imperador fez-me barão no campo de batalha de Waterloo. Visto que
a Restauração me contesta esse título, que paguei com meu sangue, meu filho o tomará e o
usará. Nem é preciso dizer que será digno dele”.
Atrás, o coronel havia acrescentado:

“Nessa mesma batalha de Waterloo, um sargento salvou-me a vida. Esse homem se


chama Thénardier. Nos últimos tempos, creio que tinha uma pequena hospedaria em uma
aldeia nos arredores de Paris, em Chelles ou Montfermeil. Se meu filho o encontrar, deve
fazer-lhe todo o bem que puder”.

Não por consideração a seu pai, mas pelo vago respeito à morte, que é
sempre tão imperioso no coração do homem, Marius pegou o papel e o
guardou.
Nada restou do coronel. O senhor Gillenormand mandou vender a um
adelo sua espada e seu uniforme. Os vizinhos pilharam o jardim e as flores
raras. As outras plantas transformaram-se em mato, e morreram.
Marius não demorou quarenta e oito horas em Vernon. Após o enterro,
voltou a Paris e retomou as aulas de Direito, sem nunca mais pensar em
seu pai, como se ele nunca tivesse existido. Em dois dias, o coronel foi
enterrado, e, em três dias, esquecido.
Marius trazia uma tarja de luto no chapéu. Era tudo.

V. A UTILIDADE DE IR À MISSA PARA TORNAR-SE


REVOLUCIONÁRIO
Marius havia conservado os hábitos religiosos de sua infância. Um
domingo em que fora assistir à missa em Saint-Sulpice, na mesma Capela
de la Vierge em que sua tia o levava quando era pequeno, e estando nesse
dia mais distraído e pensativo que de costume, colocara-se por trás de uma
coluna e, sem perceber, sentara-se em uma cadeira estofada com veludo de
Utrecht, em cujo encosto estava escrito este nome: Senhor Mabeuf,
tesoureiro. Mal a missa havia começado, um velhinho apresentou-se e
disse a Marius:
— Senhor, esse lugar é meu.
Marius afastou-se com presteza e o velhinho retomou sua cadeira.
No fim da missa, Marius continuava pensativo, a alguns passos; o
velhinho aproximou-se dele e disse-lhe:
— Senhor, peço-lhe desculpas por tê-lo incomodado há pouco e por
tornar a incomodá-lo agora, mas o senhor deve ter achado que fui
inoportuno, e eu tenho de lhe dar uma explicação.
— Senhor, não é preciso — disse Marius.
— Mas sim! — tornou o velhinho. — Não quero que o senhor faça má
ideia de mim. Sabe, faço questão desse lugar. Parece-me que a missa é
melhor ouvida daqui. Por quê? Vou lhe dizer. Durante dez anos, vi esse
lugar ocupado, regularmente, a cada dois ou três meses, por um pobre e
bravo pai que não tinha outra oportunidade nem outra maneira de ver seu
filho, porque, por arranjos de família, era impedido de fazê-lo. Ele vinha à
hora em que sabia que trariam seu filho à missa. O pequeno nem
suspeitava que seu pai estivesse ali. Talvez nem mesmo soubesse que tinha
um pai, o inocente. O pai escondia-se por trás de uma coluna para que não
o vissem. Olhava para o filho e chorava. O pobre homem adorava o
pequeno! Eu vi isso. Esse lugar tornou-se para mim como que santificado,
e habituei-me a acompanhar a missa daqui. Prefiro-o ao banco a que tenho
direito como tesoureiro. Inclusive, conheci um pouco esse senhor infeliz.
Havia um sogro, uma tia rica, alguns parentes, e não sei o que mais, que
ameaçavam deserdar o menino, se ele, o pai, tentasse vê-lo. Ele sacrificou-
se para que seu filho viesse um dia a ser rico e feliz. Parece que o
segregavam por causa de opiniões políticas. Sem dúvida aprovo as
opiniões políticas, mas há gente que não sabe a hora de parar. Meu Deus!
Não é porque um homem esteve em Waterloo que é um monstro; não é por
isso que se separa um pai de seu filho. Tinha sido um coronel de
Bonaparte. Já morreu, creio eu. Morava em Vernon, onde tenho um irmão
que é padre, e se chamava algo como Pontmarie ou Montpercy… Tinha,
minha nossa, uma bela cicatriz de um golpe de sabre.
— Pontmercy? — disse Marius empalidecendo.
— Isso mesmo. Pontmercy. Então o conheceu?
— Era meu pai, senhor! — respondeu Marius.
O velho tesoureiro juntou as mãos e exclamou:
— Ah! O senhor é o filho? Claro, é isso, agora já é um homem. Pois
bem, pobre rapaz, pode dizer que teve um pai que lhe queria muito!
Marius ofereceu o braço ao velhinho e o reconduziu até sua casa. No
dia seguinte, disse ao senhor Gillenormand:
— Combinamos uma caçada com alguns amigos. O senhor permitiria
que eu me ausentasse por três dias?
— Quatro! — respondeu o avô. — Vá e divirta-se.
E, piscando o olho, disse baixinho a sua filha:
— Algum namorico!

VI. O QUE SIGNIFICA TER ENCONTRADO UM


TESOUREIRO
Mais tarde saberemos para onde Marius foi.
Marius ficou ausente por três dias, depois voltou a Paris, foi
diretamente à biblioteca da escola de Direito e pediu a coleção do
Moniteur.
Leu o Moniteur, leu todas as histórias da República e do Império, o
Memorial de Sainte-Hélène, todas as memórias, jornais, boletins,
proclamações, devorou tudo. A primeira vez que encontrou o nome de seu
pai nos boletins do grande exército, teve febre uma semana inteira. Foi
visitar os generais sob cujas ordens servira Georges Pontmercy, entre os
quais, o conde H. O tesoureiro Mabeuf, a quem procurou novamente,
contou-lhe a vida de Vernon, o retiro do coronel, suas flores, sua solidão.
Marius conseguiu conhecer completamente o homem raro, sublime e
afável, espécie de leão-cordeiro, que fora seu pai.
No entanto, ocupado com esse estudo que tomava todos os seus
instantes e pensamentos, quase já não via os Gillenormand. Aparecia na
hora das refeições; depois, quando o procuravam, não estava mais ali. A
tia resmungava. Pai Gillenormand sorria. “Ora! Ora! É tempo das
garotas!” Algumas vezes o velho acrescentava: “Diabos! Eu pensava que
não fosse mais que um simples flerte, mas parece que é uma paixão”.
Era uma paixão, efetivamente. Marius estava cheio de adoração por
seu pai.
Ao mesmo tempo, uma extraordinária mudança ocorria em suas ideias.
As fases dessa mudança foram numerosas e sucessivas. Como esta é a
história de muitos espíritos de nosso tempo, julgamos útil seguir essas
fases passo a passo e indicar todas elas.
A história na qual acabava de pôr os olhos o espantava.
O primeiro efeito foi o deslumbramento.
A República, o Império, tinham sido para ele, até então, apenas
palavras monstruosas. A República, uma guilhotina na luz do crepúsculo;
o Império, uma espada na escuridão da noite. Acabava de olhar para isso, e
onde esperava encontrar nada mais que um caos de trevas vira, com uma
espécie de estranha surpresa, mesclada de temor e alegria, resplandecerem
astros — Mirabeau, Vergniaud, Saint-Just, Robespierre, Camille
Desmoulins, Danton — e despontar um sol, Napoleão. Não sabia mais
onde estava. Recuava, ofuscado por tanta claridade. Pouco a pouco,
passado o espanto, acostumou-se a esses clarões, considerou as ações sem
vertigem, examinou os personagens sem terror; a Revolução e o Império
colocaram-se luminosamente em perspectiva diante de seus olhos
visionários; viu cada um desses dois grupos de acontecimentos e de
homens resumirem-se em dois fatos enormes; a República, na soberania
do direito cívico restituída às massas, o Império, na soberania do ideal
francês imposto à Europa; viu sair da Revolução a grande figura do povo,
e do Império a grande figura da França. E declarou em sua consciência que
tudo aquilo fora bom.
O que seu assombro negligenciava nessa primeira apreciação bastante
sintética, não julgamos necessário indicar aqui. O que temos a constatar é
o estado de um espírito em marcha. Os progressos não se fazem todos em
uma única etapa. Dito isso, de uma vez por todas, tanto para o que precede
quanto para o que se segue, vamos então continuar.
Percebeu então que até aquele momento não havia compreendido seu
país, do mesmo modo que não havia compreendido seu pai. Não tinha
conhecido nem um nem o outro, e mantivera uma espécie de escuridão
voluntária sobre os olhos. Agora ele enxergava; de um lado, admirava, e,
de outro, adorava.
Sentia-se cheio de remorsos e de mágoa, e pensava com desespero que
tudo o que tinha na alma não podia mais dizer senão a um túmulo. Oh! Se
seu pai existisse, se ele ainda o tivesse, se Deus, em sua compaixão e em
sua bondade, permitisse que ele ainda estivesse vivo, como correria, como
se precipitaria, como gritaria a seu pai: “Pai! Estou aqui, sou eu! Tenho um
coração igual ao seu! Sou seu filho!” Como beijaria sua fronte
embranquecida, e inundaria seus cabelos de lágrimas, e contemplaria sua
cicatriz, e apertaria suas mãos, e adoraria suas vestes, e beijaria seus pés!
Oh! Por que esse pai havia morrido tão cedo, antes da hora, antes da
justiça, antes do amor de seu filho? Marius tinha um contínuo soluçar
dentro do coração que dizia a todo instante: que pena! Ao mesmo tempo,
ele realmente se tornava mais sério, mais grave, mais seguro de suas
crenças e de suas ideias. A cada instante, clarões de verdade vinham
completar sua razão. Operava-se nele como que um crescimento interior.
Sentia uma espécie de engrandecimento natural produzido por estas duas
coisas novas para ele, seu pai e sua pátria.
Como quando se tem uma chave, tudo então se abria; explicava a si
mesmo o que havia odiado; compreendia o que havia abominado; agora
via claramente o sentido providencial, divino e humano, grandes coisas
que o haviam ensinado a detestar e grandes homens que o haviam ensinado
a amaldiçoar. Quando pensava nas opiniões que já tivera, que eram apenas
as de ontem, e, no entanto, já lhe pareciam tão remotas, indignava-se e
sorria.
Da reabilitação de seu pai, naturalmente tinha passado à reabilitação
de Napoleão.
Digamos, porém, que esta não se realizara sem labor.
Desde sua infância o haviam imbuído dos julgamentos do partido de
1814 a respeito de Bonaparte. Ora, todos os preconceitos da Restauração,
todos os seus interesses, todos os seus instintos tendiam a desfigurar
Napoleão. Ela o execrava ainda mais do que a Robespierre. Ela havia
explorado com muita habilidade o cansaço da nação e o ódio das mães.
Napoleão tornara-se uma espécie de monstro quase fabuloso, e para pintá-
lo à imaginação do povo, que, como já dissemos, se assemelha à
imaginação das crianças, o partido de 1814 fazia aparecerem
sucessivamente todas as máscaras assustadoras, desde o que é terrível por
permanecer grandioso, até o que é terrível por tornar-se grotesco, desde
Tibério até o Bicho-Papão. De modo que, falando-se de Bonaparte, cada
qual era livre para soluçar ou chorar de rir, contanto que o ódio fosse o
bordão. Marius nunca tivera, a respeito desse homem — como o
chamavam — outras ideias na mente. E elas haviam se combinado com a
tenacidade própria de sua natureza. Havia dentro dele como que um
pequeno homem teimoso que odiava Napoleão.
Lendo a história, estudando especialmente nos documentos e nos
materiais, o véu que cobria Napoleão, aos olhos de Marius, pouco a pouco
foi se rasgando. Entreviu algo de imenso, e suspeitou que, até aquele
momento, enganara-se a respeito de Bonaparte, bem como de todo o resto;
cada dia enxergava melhor, e começou a subir lentamente, passo a passo,
no começo, quase de má vontade, em seguida, com transporte e como que
atraído por uma fascinação irresistível, primeiro os degraus escuros,
depois os degraus vagamente iluminados, finalmente os degraus
luminosos e esplêndidos do entusiasmo.
Uma noite, estava só em seu pequeno quarto situado no sótão. Uma
vela estava acesa; ele lia debruçado sobre sua mesa ao lado da janela
aberta. Todos os tipos de devaneios chegavam-lhe do espaço mesclando-se
a seus pensamentos. Que espetáculo é a noite! Ouvem-se ruídos surdos
sem que se saiba de onde vêm, vê-se Júpiter rutilar como uma brasa, mil e
duzentas vezes maior do que a Terra, o azul é negro, as estrelas brilham, é
formidável!
Ele lia os boletins do grande exército, as estrofes heroicas escritas no
campo da batalha; de quando em quando, via o nome de seu pai, e muitas
vezes o nome do imperador; o grande Império inteiro aparecia-lhe; sentia
como se uma maré enchesse dentro dele e subisse; por alguns momentos
parecia-lhe que seu pai passava por ele como um sopro e lhe falava ao
ouvido; pouco a pouco tornava-se estranho, pensava ouvir os tambores, os
canhões, as trombetas, o passo cadenciado dos batalhões, o galope surdo e
longínquo das cavalarias; por vezes, seus olhos levantavam-se para o céu e
viam luzir nas profundezas sem fim as constelações colossais, depois
tornavam a cair sobre o livro, e ali viam outras coisas colossais
remexerem-se confusamente. Tinha o coração apertado. Sentia-se
extasiado, trêmulo, arquejante; de repente, sem ele mesmo saber o que lhe
acontecia ou a que obedecia, levantou-se, estendeu os braços para fora da
janela, olhou fixamente o escuro, o silêncio, o infinito tenebroso, a eterna
imensidão e gritou: “Viva o imperador!”
A partir desse momento, tudo estava dito; o Papão da Córsega, o
usurpador, o tirano, o monstro que era amante de suas irmãs, o histrião que
tomava lições com Talma, o envenenador de Jaffa, o tigre, Buonaparté,
tudo isso se esvaneceu e deu lugar em seu espírito a um vago e radiante
brilho onde resplandecia, a uma altura inacessível, o pálido fantasma de
mármore de César. O imperador havia sido para seu pai apenas o benquisto
capitão a quem se rende admiração e dedicação; para Marius, ele foi algo
mais. Foi o construtor predestinado do grupo francês que sucedia o grupo
romano no domínio do Universo. Foi o prodigioso arquiteto de um
desabamento, o continuador de Carlos Magno, de Luís XI, de Henrique IV,
de Richilieu, de Luís XIV e do comitê de salvação pública, decerto com
suas máculas, com suas faltas e mesmo com seu crime, quer dizer, como
homem; porém, augusto em suas faltas, brilhante em suas máculas,
poderoso em seu crime. Foi o homem predestinado que forçara todas as
nações a dizerem: “A grande nação”. Foi mais ainda; foi a própria
encarnação da França, conquistando a Europa pela espada que empunhava,
e o mundo pelo clarão que espalhava. Marius viu em Bonaparte o espectro
deslumbrante que sempre se erguerá nas fronteiras, e que guardará o
futuro. Déspota, mas ditador; déspota resultante de uma república e
resumindo em si uma revolução. Napoleão tornou-se para ele o homem-
povo, assim como Jesus é o homem-Deus.
Pode-se ver, à maneira de todos os recém-convertidos de uma religião,
que sua conversão o embriagava, que ele se precipitava na adesão e ia
longe demais. Era essa sua natureza; uma vez em um declive, era-lhe
quase impossível parar. O fanatismo pela espada o dominava e complicava
em seu espírito o entusiasmo pela ideia. Não reparava que, ao lado do
gênio, e confusamente, ele admirava a força, ou seja, instalava nos dois
compartimentos de sua idolatria, de um lado, o que é divino, do outro, o
que é brutal. A respeito de várias coisas acabou por enganar-se de outro
modo. Admitia tudo. Há uma maneira de se achar o erro buscando-se a
verdade. Marius possuía uma espécie de boa-fé violenta que tomava tudo
em bloco. No novo caminho em que havia entrado, tanto julgando os erros
do Antigo Regime como medindo a glória de Napoleão, ele negligenciava
as circunstâncias atenuantes.
Fosse como fosse, um passo prodigioso fora dado. Onde outrora ele
vira a queda da monarquia, via agora a ascenção da França. Sua orientação
estava mudada. O que tinha sido o poente, era o nascente. Mudara de
posição.
Todas essas revoluções produziam-se nele sem que sua família
suspeitasse.
Quando, nessa misteriosa operação, perdeu completamente a antiga
pele de Bourbon e de ultra, quando despojou-se do aristocrata, do jacobita
e do realista, quando tornou-se plenamente revolucionário, profundamente
democrata e quase republicano, dirigiu-se a um gráfico do cais des
Orfèvres e encomendou-lhe cem cartões com este nome: Barão Marius
Pontmercy.
O que não era nada mais que uma consequência muito lógica da
mudança que nele se operara, mudança na qual tudo gravitava em torno de
seu pai. Como, porém, não conhecia ninguém, não podia distribuir seus
cartões; meteu-os no bolso.
Por uma outra consequência natural, à medida que se reaproximava de
seu pai, de sua memória e das coisas em favor das quais o coronel
combatera durante vinte e cinco anos, afastava-se de seu avô. Já dissemos,
havia muito tempo o humor do senhor Gillenormand não era de seu
agrado. Havia entre eles todas as dissonâncias normais entre um jovem
sério e um velho frívolo. A alegria de Geronte choca e exaspera a
melancolia de Werther. Enquanto as mesmas opiniões políticas e as
mesmas ideias foram comuns aos dois, Marius encontrava-se ali com o
senhor Gillenormand como sobre uma ponte. Quando caiu essa ponte,
abriu-se o abismo. E também, acima de tudo, Marius sentia movimentos
de revolta inexprimíveis ao pensar que fora o senhor Gillenormand quem,
por motivos estúpidos, o havia arrancado sem pena dos braços do coronel,
privando assim o pai do filho e o filho do pai.
À força de se compadecer de seu pai, Marius quase chegara a sentir
aversão ao avô. Nada disso, porém, como já dissemos, se revelava em seu
comportamento exterior. Apenas ia se tornando cada vez mais frio,
lacônico às refeições, e raro dentro de casa.
Quando sua tia o repreendia por isso, ele parecia dócil e dava como
pretexto seus estudos, suas aulas, os exames, as conferências, etc. O avô
não saía de seu infalível diagnóstico:
— Está apaixonado! Conheço muito bem essas coisas.
De tempos em tempos, Marius se ausentava.
— Onde é que ele vai, então? — perguntava a tia.
Em uma dessas viagens, sempre muito curtas, fora a Montfermeil para
cumprir a recomendação que seu pai lhe deixara, procurando o antigo
sargento de Waterloo, o estalajadeiro Thénardier. Thénardier havia falido,
a estalagem estava fechada e ninguém sabia que rumo tinha tomado. Para
essas averiguações, Marius ficou quatro dias fora de casa.
— Decididamente — disse o avô —, está deixando tudo de lado.
Pensavam ter notado que ele trazia no peito, por baixo da camisa,
alguma coisa pendurada no pescoço por uma fita preta.

VII. ALGUM RABO DE SAIA


Já mencionamos um lanceiro.
Tratava-se de um sobrinho-neto do senhor Gillenormand por parte de
pai, e que levava, fora da família e longe de qualquer lar, uma vida de
caserna.
O tenente Théodule Gillenormand preenchia todos os requisitos para
ser o que se chama um belo oficial. Tinha “o porte de uma moça”, um
modo vitorioso de carregar o sabre, e o bigode longo e retorcido. Vinha
muito raramente a Paris, tão raramente que Marius jamais o tinha visto.
Os dois primos conheciam-se apenas de nome. Théodule, acreditamos já
ter dito, era o favorito da tia Gillenormand, que o preferia porque nunca o
via. Não vermos as pessoas nos permite supor que tenham todas as
perfeições possíveis.
Uma manhã, a senhorita Gillenormand mais velha voltara para casa tão
emocionada quanto lhe permitia sua placidez. Marius acabava de pedir a
seu avô mais uma permissão para fazer uma pequena viagem,
acrescentando que desejava partir naquela mesma noite.
— Pode ir! — respondera o avô, acrescentando à parte, e levantando as
sobrancelhas até o alto da testa: — Vai dormir fora de casa mais uma vez.
A senhorita Gillenormand subira para seu quarto muito intrigada,
lançando pelas escadas este ponto de exclamação:
— É demais! — E este ponto de interrogação: — Mas onde é que ele
vai?
Ela entrevia alguma aventura amorosa mais ou menos ilícita, uma
mulher na penumbra, um encontro, um mistério, e não ficaria aborrecida
de meter o nariz ali. Saborear um mistério é semelhante à novidade de
algo escandaloso, que as boas almas não detestam de forma alguma. Nos
compartimentos secretos da beatice, existe certa curiosidade pelo
escândalo.
Ela estava dominada pelo vago apetite de saber uma história.
Para distrair-se dessa curiosidade, que a agitava um pouco além de
seus hábitos, buscara refúgio em seus talentos, pondo-se a trabalhar em
um desses bordados do tempo do Império e da Restauração em que
figuram muitas rodas de cabriolé. Obra maçante, operária entediada.
Havia já algumas horas que ela estava sentada na mesma cadeira
quando a porta se abriu. Levantou o nariz; o tenente Théodule estava
diante dela fazendo-lhe a continência militar. Ela não pôde conter um grito
de felicidade. Mesmo que uma mulher seja velha, austera, beata, tia, lhe é
sempre agradável ver entrar um lanceiro em seu quarto.
— Você por aqui, Théodule? — exclamou ela.
— De passagem, minha tia.
— Mas então me dê um abraço.
— Pois não — disse Théodule.
E ele a abraçou. Tia Gillenormand foi até a escrivaninha e a abriu.
— Mas pelo menos ficará conosco até o fim da semana?
— Não, minha tia, vou embora esta noite.
— Não é possível!
— Matematicamente.
— Fique, meu pequeno Théodule, estou pedindo.
— O coração diz que sim, mas a obrigação diz que não. O caso é
simples. Estão nos mudando de guarnição; estávamos em Melun, vão nos
mandar a Gaillon. Para ir da antiga para a nova guarnição, é preciso passar
por Paris. Aí pensei: vou visitar minha tia.
— Isso então é pelo seu trabalho. — E meteu-lhe dez luíses na mão.
— A senhora quer dizer pelo meu prazer, querida tia.
Théodule abraçou-a uma segunda vez, e ela teve a alegria de sentir o
pescoço um pouco arranhado pelos galões do uniforme.
—Você está viajando a cavalo com seu regimento?—perguntou-lhe
ela.
— Não, minha tia. Fiz questão de vê-la. Tenho uma permissão
especial. Meu ordenança leva meu cavalo. Vou embora com a diligência. A
propósito, tenho de lhe perguntar uma coisa.
— O quê?
— Meu primo Marius Pontmercy também vai viajar?
— Como você sabe disso? — disse a tia, subitamente com cócegas em
sua curiosidade.
— Quando cheguei, fui ao escritório da diligência reservar meu lugar
no cupê.
— E daí?
— Outro viajante já havia reservado um lugar na imperial. Vi o nome
dele na folha.
— Qual era o nome?
— Marius Pontmercy.
— Que mau sujeito! — exclamou a tia. — Ah! Seu primo não é um
rapaz bem comportado como você. Quer dizer que vai passar a noite na
diligência!
— Como eu.
— Mas você faz isso por dever; ele, por anarquia.
— Danado! — disse Théodule.
Neste ponto, um acontecimento ocorreu à senhorita Gillenormand; ela
teve uma ideia. Se ela fosse homem, teria batido na testa.
— Você sabe que seu primo não o conhece?
— Parece que não. Já o vi, mas ele nunca se dignou a reparar em mim.
— Então vão viajar juntos?
— Ele na imperial e eu no cupê.
— Para onde vai essa diligência?
— Para Andelys.
— Então é para lá que Marius vai?
— A não ser que, como eu, ele fique pelo caminho. Eu desço em
Vernon para pegar a correspondência de Gaillon. Não sei nada sobre o
itinerário de Marius.
— Marius! Que nome horrível! Que ideia tiveram, chamá-lo de
Marius! Você, ao menos, chama-se Théodule.
— Preferia chamar-me Alfred — disse o oficial.
— Escute, Théodule.
— Estou escutando, minha tia.
— Preste atenção.
— Estou prestando.
— Está ouvindo?
— Sim.
— Pois bem, Marius tem ficado ausente.
— Eh! Eh!
— Ele viaja.
— Ah! Ah!
— Dorme fora.
— Oh! Oh!
— Queríamos saber o que está acontecendo.
Théodule respondeu com a calma de um homem de bronze:
— Algum rabo de saia.
E com um sorriso interior que demonstra certeza acrescentou:
— Uma garota.
— É evidente — exclamou a tia, que parecia ouvir o senhor
Gillenormand falar, e que sentiu sua convicção sair irresistivelmente da
palavra garota, acentuada quase do mesmo modo pelo tio-avô e pelo
sobrinho-neto. Ela retomou:
— Faça-nos um favor. Siga Marius um pouco. Como ele não o
conhece, será fácil para você. Já que há uma garota, trate de vê-la. E
depois nos escreva contando. Isso irá divertir o vovô.
Théodule não gostava muito desse tipo de espionagem, mas estava
bastante afetado pelos dez luízes, e acreditava na possibilidade de
continuar a recebê-los. Aceitou a incumbência dizendo:
— Como lhe aprouver, minha tia. — E acrescentou para ele mesmo: —
Lá vou eu espionar.
A senhorita Gillenormand o abraçou.
— Você não faria essas travessuras, Théodule. Você obedece à
disciplina, é escravo da obrigação, é um homem de escrúpulos e deveres, e
não deixaria sua família para ir ver uma dessas criaturas.
O lanceiro fez a careta de satisfação de Cartouche louvado por sua
probidade.
Marius, na noite que se seguiu a esse diálogo, entrou na diligência sem
suspeitar que havia alguém a vigiá-lo. Quanto ao espião, a primeira coisa
que fez foi dormir. Foi um sono completo e consciencioso. Argus roncou a
noite toda.
Ao amanhecer, o condutor da diligência gritou:
— Vernon! Parada de Vernon! Passageiros para Vernon!
E o tenente Théodule acordou.
— Bem — resmungou ele, ainda meio adormecido —, eu desço aqui.
Depois, sua memória foi clareando aos poucos, efeito do despertar,
e ele pensou em sua tia, nos dez luízes, e no relato que se encarregara de
fazer dando conta dos fatos e gestos de Marius. Isso o fez rir.
“Talvez não esteja mais na carruagem”, pensou ele, enquanto abotoava
o uniforme. Pode ter parado em Poissy, pode ter ficado em Triel; se não
desceu em Melun, pode ter descido em Mantes, a não ser que tenha ficado
em Rolleboise, ou em Pacy, tendo a opção de entrar à esquerda para
Évreux, ou à direita para Laroche-Guyon. Corra atrás dele, minha tia. Que
diabo vou escrever à boa velha?”
Nesse momento, umas calças pretas desciam da imperial e apareciam
na janela do cupê.
— Será que é Marius? — disse o tenente.
Era Marius.
Uma pequena camponesa, perto da carruagem, metida entre os cavalos
e os condutores, oferecia flores aos viajantes. “Comprem flores para suas
damas”, dizia.
Marius aproximou-se dela e comprou as flores mais belas que tinha em
seu cesto.
— Desta vez — pensou Théodule saltando do cupê —, eu é que estou
curioso. A quem diachos ele vai levar essas flores? Precisa ser uma mulher
incrivelmente bela para um buquê tão lindo. Quero vê-la.
E agora, não mais por mandado, mas por curiosidade pessoal, como
esses cães que caçam por conta própria, pôs-se a seguir Marius.
Marius não prestava a menor atenção em Théodule. Algumas senhoras
elegantes desciam da diligência, mas ele não olhava para elas. Parecia não
ver nada a seu redor.
— Está apaixonado! — pensou Théodule.
Marius dirigiu-se à igreja.
— Muito bem — disse consigo Théodule. — A igreja! É isso. Os
encontros temperados com um pouco de missa são os melhores. Nada é
mais delicioso que uma olhadela que passa por cima do bom Deus.
Chegando à igreja, Marius não entrou, e contornou a capela-mor pelo
lado externo. Desapareceu no ângulo de um dos contrafortes da abside.
— O encontro é do lado de fora — disse Théodule. — Vamos ver a
garota. E avançou na ponta dos pés até o ângulo onde Marius desaparecera.
Ao chegar ali, parou estupefato.
Marius, com o rosto entre as mãos, estava ajoelhado diante de uma
sepultura, sobre a qual desfolhara seu buquê. Na extremidade da sepultura,
parte mais elevada que indicava ser a cabeceira, havia uma cruz de
madeira escura com este nome em letras brancas: Coronel Barão de
Pontmercy. Ouvia-se Marius soluçar.
A garota era uma sepultura.

VIII. MÁRMORE CONTRA GRANITO


Era para lá que Marius tinha ido a primeira vez em que se ausentara de
Paris. Era para lá que ia todas as vezes que o senhor Gillenormand dizia:
“Vai dormir fora”.
O tenente Théodule ficou absolutamente desapontado por esse
encontro inesperado com um sepulcro; experimentou uma sensação
desagradável e singular que não era capaz de analisar, e que se compunha
do respeito a um túmulo mesclado ao respeito por um coronel. Recuou,
deixando Marius sozinho no cemitério, e havia disciplina nesse recuar. A
morte apareceu-lhe com grandes dragonas, e ele quase lhe fez a
continência militar. Não sabendo o que escrever à tia, resolveu não
escrever nada; e nada efetivamente teria resultado de uma descoberta feita
por Théodule sobre os amores de Marius, se, por um desses arranjos
misteriosos, tão frequentes no acaso, a cena de Vernon não tivesse tido
quase imediatamente uma espécie de repercussão em Paris.
Marius voltou de Vernon na manhã do terceiro dia, chegou à casa de
seu avô, e, cansado das duas noites passadas em uma diligência, sentindo
necessidade de reparar sua falta de dormir com uma hora de aula de
natação, subiu rapidamente até seu quarto, não levou mais que o tempo de
tirar seu casaco de viagem e o cordão preto que tinha no pescoço, e saiu
para o banho.
O senhor Gillenormand, de pé bem cedo, como todos os velhos de boa
saúde, ouvira-o entrar e apressara-se em subir, o mais rápido que podia
com suas velhas pernas, a escada do sótão que Marius ocupava, a fim de
abraçá-lo e de fazer-lhe algumas perguntas durante o abraço, tentando
saber um pouco de onde ele vinha.
Mas o rapaz gastara menos tempo para descer do que o octogenário
para subir, e quando pai Gillenormand entrou no quarto, Marius não estava
mais ali.
A cama não fora desfeita, e sobre ela estavam estendidos sem receio o
casaco e o cordão preto.
— Prefiro assim — disse o senhor Gillenormand.
E um momento depois entrou no salão onde estava sentada a senhorita
Gillenormand mais velha bordando suas rodas de cabriolé.
A entrada foi triunfante.
O senhor Gillenormand segurava o casaco em uma mão, e na outra a
fita do pescoço, exclamando:
— Vitória! Vamos entender o mistério, vamos saber o fino do fino,
vamos apalpar as libertinagens desse sorrateiro! Estamos em pleno
romance! Aqui está o retrato!
De fato, da fita preta pendia uma caixinha de couro preto, bastante
parecida com um medalhão.
O velho pegou essa caixinha e, por algum tempo, a observou sem a
abrir, com aquele ar de voluptuosidade, de admiração e de cólera de um
pobre esfaimado que vê passar debaixo do nariz um magnífico jantar que
não é para ele.
— Pois é evidente que isso é um retrato. Entendo muito bem dessas
coisas. Isso é usado ternamente sobre o coração. Como são bobos! Deve
ser qualquer umazinha de fazer tremer! Os jovens têm tamanho mau gosto
hoje em dia!
— Vamos ver, meu pai — disse a velha filha.
A caixinha se abria ao pressionar-se uma mola. Dentro dela não
encontraram nada além de um papel cuidadosamente dobrado.
— Da mesma ao mesmo! — disse o senhor Gillenormand desatando a
rir. — Sei o que é. Um bilhetinho adocicado.
— Ah! Vamos ler! — disse a tia.
Ela colocou os óculos. Desdobraram o papel e leram o seguinte:
“Para meu filho. O imperador fez-me barão no campo de batalha de
Waterloo. Visto que a Restauração me contesta esse título, que paguei com
meu sangue, meu filho o tomará e o usará. Nem é preciso dizer que será
digno dele”.
O que pai e filha experimentaram não se sabe dizer. Sentiram-se
gelados como que pelo sopro da morte. Não trocaram uma única palavra.
O senhor Gillenormand só disse em voz baixa, como se falasse com ele
mesmo:
— É a letra daquele bandido.
A tia examinou o papel, virou-o em todos os sentidos e depois o
recolocou na caixinha.
No mesmo momento, um pequeno pacote retangular embrulhado em
papel azul caiu de um dos bolsos do casaco. A senhorita Gillenormand o
pegou e retirou o papel azul. Era o cento de cartões de Marius. Ela os
passou, um a um, ao senhor Gillenormand, que leu: barão Marius
Pontmercy.
O velho tocou uma sineta. Nicolette veio. O senhor Gillenormand
pegou o cordão, a caixinha e o casaco, jogou tudo no chão, no meio do
aposento, e disse:
— Leve esses trapos embora.
Uma longa hora passou-se no mais profundo silêncio. O velho homem
e a filha sentaram-se com as costas um para o outro, e provavelmente
pensavam, cada um de seu lado, as mesmas coisas. Ao final dessa uma
hora, tia Gillenormand disse:
— Muito bonito!
Alguns instantes depois, Marius apareceu. Acabava de voltar. Antes
mesmo de ter transposto a soleira da porta, avistou o avô com um de seus
cartões na mão; ao vê-lo, o avô exclamou com seu ar de superioridade
burguesa e de escárnio, que era algo de esmagador:
— Ora! Ora! Ora! Então você é barão. Dou-lhe meus cumprimentos. O
que quer dizer isso?
Marius corou um pouco e disse:
— Quer dizer que sou filho de meu pai.
O senhor Gillenormand interrompeu seu riso e disse com dureza:
— Seu pai sou eu!
— Meu pai — replicou Marius com olhos baixos e ar severo — era um
homem humilde e heroico, que serviu gloriosamente a República e a
França, que foi grande dentro da maior história que os homens já fizeram,
que viveu um quarto de século nos acampamentos, de dia exposto à
metralha e às balas, de noite debaixo de neve, de lama, de chuva, que
tomou duas bandeiras, que foi ferido vinte vezes, que morreu no
esquecimento e no abandono, e que só teve um defeito, amar demais dois
ingratos: a pátria e a mim.
Era mais do que o senhor Gillenormand podia ouvir. Àquela palavra,
república, levantou-se, ou, para melhor dizer, pôs-se de pé em um pulo.
Cada uma das palavras que Marius acabava de pronunciar produziram no
rosto do velho realista o efeito do sopro de um fole sobre um tição ardente.
De sombrio tornou-se vermelho, vermelho púrpura, e púrpura flamejante.
— Marius! — exclamou ele. — Rapaz abominável! Eu não sei o que
era seu pai, nem quero saber, não sei de nada e nem quero saber! Mas o
que eu sei é que nunca houve mais do que miseráveis entre aquela gente!
Que eram todos vagabundos, assassinos, bonés vermelhos,9 ladrões!
Todos! Estou dizendo, todos! Conheço todos muito bem! E digo todos!
Entende, Marius! Veja bem, você é barão tanto quanto meu chinelo! Eram
todos bandidos que serviram Robespierre! Todos salteadores que serviram
Bu-o-na-parté!10 Todos traidores que traíram, que traíram, traíram seu rei
legítimo! Todos covardes que fugiram diante dos prussianos e dos ingleses
em Waterloo! É isso o que eu sei! Se o senhor seu pai também era um
desses, não faço ideia, sinto muito, tanto pior, e estamos conversados!
Por sua vez, era Marius que parecia o tição, e o senhor Gillenormand o
fole. Marius sentia estremecerem todos os seus membros, não sabia o que
fazer, ardia-lhe a cabeça. Parecia o sacerdote vendo todas as suas hóstias
atiradas ao vento, o faquir vendo um passante cuspir em seu ídolo. Não era
possível que tais coisas fossem ditas impunemente diante dele. Mas que
fazer? Seu pai acabava de ser calcado com os pés e pisoteado em sua
presença, mas justamente por quem? Por seu avô. Como vingar um sem
ultrajar o outro? Era impossível que ele insultasse seu avô e igualmente
impossível que não vingasse seu pai. De um lado, um túmulo sagrado, de
outro, cabelos brancos. Por alguns instantes, ficou exaltado e vacilante,
com todo esse turbilhão na cabeça; depois levantou os olhos, fixando-os
em seu avô, e gritou com uma voz atroadora:
— Abaixo os Bourbons e esse infame porco Luís XVIII!
Luís XVIII tinha morrido havia quatro anos, mas ele não se importava
com isso.
O velho, de escarlate que estava, tornou-se subitamente mais branco
que seus cabelos. Voltou-se para um busto do senhor duque de Berry que
estava sobre a lareira e o saudou profundamente, com uma espécie de
majestade singular. Depois foi duas vezes, lentamente e em silêncio, da
lareira à janela e da janela à lareira, atravessando a sala inteira e fazendo
estalar o assoalho, como uma figura de pedra a andar. Na segunda vez,
curvou-se em direção a sua filha, que assistia a esse choque com o pasmo
estúpido de uma ovelha, e disse-lhe com um sorriso quase sereno:
— Um barão como esse senhor e um burguês como eu não podem ficar
debaixo do mesmo teto.
E, endireitando-se de repente, lívido, trêmulo, terrível, com a fronte
ampliada pelo clarão da cólera, estendeu o braço para Marius e gritou-lhe:
— Vá embora!
Marius deixou a casa.
No dia seguinte, o senhor Gillenormand disse a sua filha:
— De seis em seis meses a senhora vai mandar sessenta moedas de
ouro a esse bebedor de sangue e nunca mais fale-me dele.
E, como ainda tivesse um imenso resto de furor para despender e não
soubesse o que fazer com ele, continuou chamando sua filha de senhora
durante mais de três meses.
Marius, de sua parte, saíra indignado. Uma circunstância, que é preciso
contar, agravara ainda mais sua exasperação. Sempre ocorrem essas
pequenas fatalidades que complicam os dramas domésticos. Elas
aumentam as afrontas ainda que no fundo não façam crescer os danos. Ao
levar precipitadamente, por ordem do avô, “os trapos” de Marius de volta
a seu quarto, Nicolette deixara cair, sem se dar conta, provavelmente na
escada do sótão, que era escura, o medalhão de couro preto que guardava o
papel escrito pelo coronel. Nem esse medalhão nem esse papel puderam
ser encontrados. Marius convenceu-se de que o “senhor Gillenormand” —
a partir desse dia nunca mais o chamou de outro modo — havia jogado “o
testamento de seu pai” no fogo. Ele sabia de cor as poucas linhas escritas
pelo coronel, e, por consequência, nada fora perdido. Mas o papel, a letra,
essa relíquia sagrada, tudo isso era seu próprio coração. Que haviam feito
dele?
Marius saíra sem dizer para onde ia, e sem saber para onde ia, com
trinta francos, seu relógio e algumas roupas velhas em uma sacola de
viagem. Subiu em um cabriolé que alugara por hora e dirigiu-se ao acaso
para o bairro latino.
O que viria a ser de Marius?

__________________________
1 As palavras sol, serre e case formam trocadilho com os nomes citados anteriormente. Na
tradução, embora seja mantido o sentido do trocadilho, não é possível guardar inteiramente a
correspondência fonética.
2 O personagem faz um jogo com as palavras suspendu [suspenso] e pendu (sem o Sus)
[enforcado], que não é possível manter em português.
3 “Que eles descansem [em paz]”: fórmula litúrgica da missa de finados.
4 Espécie de jogo de cartas comum nos séculos XVIII e XIX.
5 Partidários do Antigo Regime que aderiram às novas instituições.
6 Literalmente, “estar com bom odor”, “estar cheirando bem”; a expressão significa ter boa
reputação, causar boa impressão.
7 Aristocrata, pessoa ligada, por sua posição, ao Antigo Regime.
8 5 de setembro de 1816: dissolução da Câmara; 8 de julho de 1815: segundo retorno de Luís
XVIII a Paris, após a guerra dos Cem Dias.
9 Les bonnets rouges — partidários da Revolução Francesa.
10 Pronúncia pejorativa usada para referir-se a Napoleão.
LIVRO IV
OS AMIGOS DO ABC

I. UM GRUPO QUE QUASE SE TORNOU HISTÓRICO


NESSA ÉPOCA, aparentemente indiferente, certa onda revolucionária
corria vagamente. Sopros, vindos das profundezas de 1789 e de 1792,
pairavam no ar. A juventude estava, permitam-nos a expressão, em plena
muda. Todos iam se transformando, quase sem perceber, pelo próprio
movimento do tempo. O ponteiro que avança no mostrador do relógio
avança também nas almas. Cada qual dava para a frente o passo que lhe
competia dar. Os realistas tornavam-se liberais, e os liberais tornavam-se
democratas.
Era como uma maré montante complicada por mil refluxos; é próprio
dos refluxos produzirem misturas, e daí combinações de ideias muito
singulares; adorava-se ao mesmo tempo Napoleão e a liberdade. Neste
ponto, vamos falar de história. Eram as miragens daqueles tempos. As
opiniões atravessam fases. O realismo voltaireano, variedade
extravagante, teve uma contrapartida não menos estranha, o liberalismo
bonapartista.
Outros grupos de ideias eram mais sérios. Sondavam os princípios,
prendiam-se ao direito. Apaixonavam-se pelo absoluto, entreviam as
realizações infinitas; o absoluto, pela própria rigidez, impulsiona os
espíritos pelo espaço e os faz flutuar no ilimitado. Nada como o dogma
para criar sonhos. E nada como o sonho para engendrar o futuro. Hoje
utopia, amanhã carne e osso.
As opiniões avançadas tinham duplos fundamentos. Um princípio de
mistério ameaçava “a ordem estabelecida”, a qual era suspeita e
dissimulada. Sinal do mais alto grau revolucionário. O pensamento oculto
do poder encontra nas valas o pensamento oculto do povo. A incubação
das insurreições dá a réplica à premeditação dos golpes de estado.
Ainda não havia na França de então estas vastas organizações
subjacentes, como o tugendbund1 alemão e o carbonarismo italiano; mas,
aqui e ali, escavações obscuras ramificando-se. A Cougourde esboçava-se
em Aix; havia em Paris, entre outras filiações desse gênero, a sociedade
dos Amigos do ABC.
O que era os Amigos do ABC? Uma sociedade que tinha como
finalidade, aparentemente, educar as crianças e, na realidade, reerguer os
homens.
Denominavam-se Amigos do ABC. O Abaissé2 era o povo. Queriam
levantá-lo. Trocadilho do qual não deveriam rir. Os trocadilhos são
algumas vezes sérios em política; sirva de exemplo o Castratus ad castra,
que fez de Narsés um general de exército; ou Barbari et Barberini; ou
Fueros y Fuegos; ou Tu es Petrus et super hanc petram, etc., etc.3
Os Amigos do ABC eram pouco numerosos. Era uma sociedade secreta
em estado de embrião; diríamos que era quase uma quadrilha, se as
quadrilhas produzissem heróis. Reuniam-se em Paris em dois locais, perto
dos mercados, em uma taverna chamada Corinthe, da qual mais adiante
falaremos, e nas proximidades do Panthéon, em um pequeno café da praça
Saint-Michel chamado Café Musain, hoje demolido; o primeiro desses
lugares de reunião era contíguo aos operários, o segundo aos estudantes.
Os conciliábulos habituais dos Amigos do ABC ocorriam em um sala
de fundo do Café Musain. Essa sala, bastante afastada do café, com o qual
se comunicava por um longo corredor, tinha duas janelas e uma saída, por
uma escada escondida, para a viela des Grès. Ali fumava-se, bebia-se,
jogava-se, ria-se; conversava-se de tudo em voz alta e de outra coisa em
voz baixa. Na parede via-se pregado, indício suficiente para despertar o
faro de um agente de polícia, um velho mapa da França dos tempos da
República.
A maior parte dos Amigos do ABC eram estudantes que se
relacionavam cordialmente com alguns operários. Eis os nomes dos
principais. Eles pertencem, em certa medida, à história: Enjolras,
Combeferre, Jean Prouvaire, Feuilly, Courfeyrac, Bahorel, Lesgle ou
Laigle, Joly, Grantaire.
Esses jovens formavam entre eles uma espécie de família, à força de
sua amizade. Todos, exceto Laigle, eram do sul.
Esse grupo era notável. Desapareceu nas profundezas invisíveis que
estão por trás de nós. No ponto deste drama a que chegamos, talvez não
seja inútil dirigir um raio de luz sobre essas jovens cabeças antes que o
leitor as veja embrenhando-se na sombra de uma aventura trágica.
Enjolras, que citamos em primeiro lugar, adiante veremos por que, era
filho único e rico.
Enjolras era um jovem encantador, capaz de ser terrível. Era
angelicamente belo. Um Antinous, símbolo de beleza masculina, feroz.
Parecia, ao ver-se o reflexo pensativo de seu olhar, que, em alguma
existência precedente, já havia atravessado o apocalipse revolucionário.
Conservava-lhe a tradição como uma testemunha. Sabia todos os
pormenores do grande feito. Natureza pontifical e guerreira, estranha em
um adolescente. Era oficiante e militante; do ponto de vista imediato,
soldado da democracia; acima do movimento contemporâneo, sacerdote
do ideal. Tinha as pupilas penetrantes, as pálpebras um pouco vermelhas, o
lábio inferior espesso e facilmente desdenhoso, a fronte alta. Grande
fronte em um rosto é como bastante céu em um horizonte. Do mesmo
modo que certos jovens do início deste século e do fim do século passado,
que ficaram ilustres muito cedo, Enjolras tinha uma juventude excessiva,
fresca como a das donzelas, ainda que com seus momentos de palidez.
Homem feito, parecia ainda criança. Seus vinte e dois anos tinham a
aparência de dezessete. Era grave, parecia não saber que existia na terra
um ser chamado mulher. Só tinha uma paixão, o direito; só tinha um
pensamento, derrubar o obstáculo. No monte Aventin, teria sido um Graco;
na Convenção, teria sido um Saint-Just. Mal enxergava as rosas, ignorava
o que era primavera, não ouvia o canto dos pássaros; o colo nu de Evadne
não o comoveria mais do que Aristógiton; para ele, do mesmo modo que
para Harmodius, as flores só serviam para esconder a espada. Era severo
nas alegrias. Diante de tudo o que não fosse a república, abaixava
castamente os olhos. Era o marmóreo amante da Liberdade. Sua palavra
era asperamente inspirada e tinha uma vibração de hino. Eram inesperadas
suas aberturas de asas.
Azar daquela que se arriscasse a cruzar seu caminho! Se alguma
costureirinha da praça Cambrai ou da rua Saint-Jean de Beauvais, vendo
aquela figura de colegial fugido, aquela aparência de pajem, aqueles
longos cílios louros, aqueles olhos azuis, aquela cabeleira despenteada
pelo vento, aquelas faces rosadas, aqueles lábios frescos, aqueles dentes
lindos, cobiçasse toda aquela aurora e fosse tentar usar sua beleza sobre
Enjolras, um olhar surpreendente e temível iria bruscamente mostrar-lhe o
abismo, e iria ensiná-la a não confundir com o querubim galante de
Beaumarchais o terrível querubim de Ezequiel.
Ao lado de Enjolras, que representava a lógica da revolução,
Combeferre representava sua filosofia. Entre a lógica da revolução e sua
filosofia há esta diferença, de que a lógica pode ter como conclusão a
guerra, enquanto que a filosofia só pode levar à paz. Combeferre
completava e retificava Enjolras. Era menos alto e mais encorpado do que
ele. Queria que se derramassem nos espíritos os amplos princípios das
ideias gerais; ele dizia: “Revolução, mas civilização”. E em torno da
montanha mais alta abria o vasto horizonte azul. Daí que, em todas as
visões de Combeferre, havia algo de acessível e praticável. A revolução
com Combeferre era mais respirável do que com Enjolras. Enjolras
exprimia o direito divino da revolução, e Combeferre o direito natural. O
primeiro ligava-se a Robespierre, o segundo limitava-se a Condorcet.
Combeferre vivia a vida de todo o mundo mais do que Enjolras. Se fosse
dado a esses dois jovens chegar a fazer parte da história, um teria sido o
justo, o outro teria sido o sábio. Enjolras era mais viril, Combeferre mais
humano. Homo e Vir, estava justamente aí a diferença entre eles.
Combeferre era dócil como Enjolras era severo, por candura natural.
Gostava da palavra cidadão, mas preferia a palavra homem. De bom grado
diria Hombre, como os espanhóis. Ele lia tudo, ia ao teatro, frequentava
cursos públicos, aprendia com Arago a polarização da luz, apaixonava-se
por uma lição em que Geoffroy Saint-Hilaire explicava a dupla função da
artéria carótida externa e da artéria carótida interna, uma que irriga o
rosto, a outra que irriga o cérebro; estava a par, seguia a ciência passo a
passo, confrontava Saint-Simon com Fourier, decifrava os hieróglifos,
quebrava as pedras que encontrava e falava de geologia, desenhava de
memória uma borboleta bombix, apontava os erros de francês do
Dicionário da Academia, estudava Puységur e Deleuze, não afirmava nada,
nem mesmo os milagres; não negava nada, nem mesmo as almas do outro
mundo; folheava a coleção do Moniteur, sonhava. Declarava que o futuro
estava nas mãos dos mestres escolares, e preocupava-se com a educação.
Queria que a sociedade trabalhasse sem descanso para a elevação do nível
intelectual e moral, para o financiamento da ciência, para pôr em
circulação as ideias, para o crescimento espiritual da juventude, e temia
que a atual pobreza dos métodos, a miséria do ponto de vista literário
limitado a dois ou três séculos clássicos, o dogmatismo tirânico dos
pedantes oficiais, os preconceitos escolásticos e as rotinas acabassem por
converter nossos colégios em viveiros artificiais de ostras. Combeferre era
culto, purista, preciso, politécnico, incansável, e ao mesmo tempo
pensativo “até a quimera”, diziam os seus amigos. Acreditava em todos os
sonhos: nas estradas de ferro, na supressão da dor nas operações
cirúrgicas, na fixação da imagem da câmara escura, no telégrafo elétrico,
na dirigibilidade dos balões. Mas, de resto, pouco assustado com as
cidadelas construídas por todos os lados contra o gênero humano pelas
superstições, pelos despotismos e pelos preconceitos. Era daqueles que
pensam que a ciência chegará a inverter as posições. Enjolras era um
chefe, Combeferre um guia. A vontade era de se combater ao lado de um e
de se caminhar ao lado do outro. Não que Combeferre não fosse capaz de
combater, ele não se recusava a entrar em um corpo a corpo com os
obstáculos e atacá-los de viva força e por explosão; mas colocar pouco a
pouco, pelo ensino dos axiomas e pela promulgação das leis positivas, o
gênero humano de acordo com seus destinos agradava-lhe mais; e, entre
duas claridades, sua inclinação era maior para a iluminação do que para o
incêndio. Um incêndio, sem dúvida, pode fazer uma aurora, mas por que
não esperar o nascer do dia? Um vulcão ilumina, mas a luz do sol nascente
ilumina ainda mais. Combeferre talvez preferisse a alvura do belo ao
brilho do sublime. Uma claridade encoberta por nuvens de fumaça, um
progresso comprado pela violência não satisfaziam plenamente aquele
terno e sério espírito. A precipitação a pique de um povo na verdade, um
outro 1793, isso o assustava; contudo, a estagnação o repugnava mais
ainda, nela sentia a putrefação e a morte; para dizer tudo, gostava mais da
espuma que do miasma, preferia a torrente à cloaca e a catarata do Niágara
ao lago de Montfaucon. Em suma, não queria nem paradas nem pressa.
Enquanto seus tumultuosos amigos, cavalheirescamente enamorados do
absoluto, adoravam e fomentavam as esplêndidas aventuras
revolucionárias, Combeferre inclinava-se a deixar correr o progresso, o
bom progresso, frio talvez, mas puro, metódico, mas irrepreensível,
fleumático, mas imperturbável. Combeferre ajoelharia e ergueria as mãos
para que o futuro chegasse em toda a sua candura, e para que nada
perturbasse a imensa evolução virtuosa dos povos. O bem deve ser
inocente, repetia ele sem cessar. E, efetivamente, se a grandeza da
revolução consiste em encarar fixamente o deslumbrante ideal e voar para
ele por entre os raios, com sangue e fogo nas garras, a beleza do progresso
consiste em não ter manchas; e existe entre Washington, que representa
um, e Danton, que encarna o outro, a diferença que separa o anjo com asas
de cisne do anjo com asas de águia.
Jean Prouvaire era uma nuance ainda mais moderada do que
Combeferre. Chamava-se Jehan, por causa da pequena fantasia
momentânea que se mesclava ao poderoso e profundo movimento que
produziu o tão necessário estudo da Idade Média. Jean Prouvaire era
amoroso, cultivava um vaso de flores, tocava flauta, fazia versos, amava o
povo, compadecia-se das mulheres, chorava pelas crianças, confundia na
mesma confiança o futuro e Deus, e censurava a Revolução por ter feito
cair uma cabeça régia, a de André Chénier. Habitualmente tinha a voz
delicada, mas, de repente, viril. Era letrado até a erudição, e quase
orientalista. Era bom, acima de tudo; e, coisa muito simples para quem
sabe o quanto a bondade é próxima à grandeza, em matéria de poesia,
preferia o imenso. Sabia italiano, latim, grego e hebraico, o que lhe servia
para ler não mais que quatro poetas: Dante, Juvenal, Ésquilo e Isaías. Em
francês, preferia Corneille a Racine, e Agrippa d’Aubigné a Corneille.
Gostava de passear pelos campos de aveia e de flores, e ocupava-se das
nuvens quase tanto quanto dos acontecimentos. Seu espírito tinha duas
atitudes, uma pelo lado do homem, outra pelo lado de Deus: ele estudava,
ou então contemplava. O dia todo se aprofundava nas questões sociais,
salário, capital, crédito, casamento, religião, liberdade de pensar, liberdade
de amar, educação, penalidade, miséria, associação, propriedade, produção
e distribuição, no enigma do mundo que cobre de sombra o formigueiro
humano; e à noite contemplava os astros, esses seres enormes. Como
Enjolras, era rico e filho único. Falava devagar, inclinava a cabeça,
baixava os olhos, sorria com embaraço, vestia-se mal, parecia desajeitado,
corava por qualquer coisa, era muito tímido. De resto, era intrépido.
Feuilly era operário em uma fábrica de leques, órfão de pai e mãe, mal
ganhava três francos por dia, e só tinha um pensamento, libertar o mundo.
Tinha ainda outra preocupação: instruir-se; o que ele também chamava de
libertar-se. Ensinara a si mesmo a ler e escrever; tudo o que sabia
aprendera sozinho. Feuilly era um coração generoso. Seu abraço era
imenso. Esse órfão havia adotado os povos. Faltava-lhe sua mãe, pensava
na pátria. Não queria que houvesse sobre a Terra um só homem sem pátria.
Incubava dentro de si, com o profundo pressentimento de homem do povo,
o que hoje denominamos ideia das nacionalidades. Aprendera história
expressamente para indignar-se com conhecimento de causa. Naquele
jovem cenáculo de utopistas, especialmente ocupados com a França,
Feuilly representava o exterior. Sua especialidade era a Grécia, a Polônia,
a Hungria, a Romênia, a Itália. Pronunciava esses nomes sem cessar, a
propósito ou fora de propósito, com a tenacidade do direito. Exasperavam-
no as violações da Turquia sobre a Grécia e a Tessália, da Rússia sobre
Varsóvia, da Áustria sobre Veneza. Entre todas, a que mais o indignava era
a grande violência de 1772.4 Não há eloquência mais soberana do que a
verdadeira indignação; e ele era eloquente dessa eloquência. Não cansava
de falar sobre essa data infame, 1772, sobre esse nobre e valoroso povo
suprimido pela traição, sobre esse crime tríplice, sobre essa cilada
monstruosa, protótipo e modelo de todas as medonhas supressões de
estados que, desde então, feriram várias nobres nações, e, por assim dizer,
cancelaram suas certidões de nascimento. Todos os atentados sociais
contemporâneos derivam da divisão da Polônia. A partilha da Polônia é
um teorema cujo corolário são todas as perversidades políticas atuais. Não
há um só déspota, um só traidor, de um século para cá, que não tenha
visado, homologado, subscrito e rubricado, ne varietur, a divisão da
Polônia. Quando se examina o dossiê das traições modernas, é essa que
aparece em primeiro lugar. O Congresso de Viena consultou esse crime
antes de consumar o seu. 1772 é o grito do caçador, 1815 é a carniça. Tal
era o texto habitual de Feuilly. Esse pobre operário fizera-se tutor da
justiça e ela o recompensava fazendo-o grande. É que, efetivamente, existe
eternidade no direito. Varsóvia não pode ser mais tártara do que Veneza
pode ser tudesca. Os reis perdem aí seu esforço e sua honra. Cedo ou tarde,
a pátria submersa volta à superfície e reaparece. A Grécia volta a ser
Grécia, a Itália volta a ser Itália. O protesto do direito contra o fato
persiste para sempre. O roubo de um povo não prescreve. Essas grandes
trapaças não têm futuro. Não se tira a marca de uma nação como se faz
com um lenço.
Courfeyrac tinha um pai a quem chamavam de senhor de Courfeyrac.
Uma das falsas ideias da burguesia, a respeito de aristocracia e de nobreza,
era a de acreditar na partícula. A partícula, sabemos, não tem significação
alguma. Mas os burgueses do tempo de la Minerve tinham tamanho apreço
por esse pobre de, que se acreditavam obrigados a abdicar dele. O senhor
de Chauvelin fazia-se chamar senhor Chauvelin; senhor de Caumartin,
senhor Caumartin; senhor de Constant de Rebecque, Benjamim Constant;
senhor de Lafayette, senhor Lafayette. Courfeyrac não quis ficar atrás, e
chamava-se simplesmente Courfeyrac.
No que diz respeito a Courfeyrac, poderíamos ficar por aqui,
limitando-nos a dizer quanto ao resto: Courfeyrac, vide Tholomyès.
Courfeyrac de fato possuía esse entusiasmo juvenil que se pode
chamar de beleza diabólica do espírito. Com os anos, isso se extingue,
como a gentileza de um gatinho; e toda essa graça termina, sobre dois pés,
no burguês, e, sobre quatro patas, no gato.
Esse tipo de espírito é transmitido pelas gerações que frequentam as
escolas, pelas sucessivas levas da juventude, e é passado de mão em mão,
quasi cursores,5 praticamente sempre o mesmo, de modo que, como
acabamos de indicar, quem escutasse Courfeyrac em 1828 acreditaria estar
ouvindo Tholomyès em 1817. Só que Courfeyrac era um bravo rapaz. Sob
as aparentes semelhanças do espírito exterior, era grande a diferença entre
ele e Tholomyès. O homem latente que existia neles era, no primeiro,
muito diverso do que existia no segundo. Em Tholomyès havia um
procurador, em Courfeyrac um paladino.
Enjolras era o chefe, Combeferre era o guia, Courfeyrac era o centro.
Os outros davam mais luz, ele dava mais caloria; o fato é que possuía
todas as qualidades de um centro, a redondez e a irradiação.
Bahorel figurara no sanguinolento tumulto de junho de 1822, por
ocasião do enterro do jovem Lallemand.
Bahorel era uma criatura bem-humorada e uma má companhia,
destemido, mão aberta; pródigo, indo ao encontro da generosidade,
falador, indo ao encontro da eloquência, ousado, indo ao encontro da
petulância; o melhor temperamento possível; tinha coletes audaciosos e
opiniões escarlates; grande turbulento, quer dizer, não gostava de nada
tanto quanto de uma briga, na falta de um motim, e de nada tanto quanto
de um motim, na falta de uma revolução; sempre pronto a quebrar uma
vidraça, e a depredar uma rua, e a demolir um governo só para ver que
efeito teria; estudante do décimo primeiro ano. Bahorel farejava o Direito,
mas não o praticava. Tomara como divisa: advogado, jamais, e, como
armas, uma mesa de cabeceira dentro da qual se entrevia um bonnet
carré.6 Cada vez que passava diante da Escola de Direito, o que raras
vezes lhe acontecia, abotoava o casaco — ainda não haviam inventado o
paletó — e tomava precauções higiênicas. Costumava dizer a respeito do
portal da escola: que belo velhote! e a respeito do decano, senhor
Delvincourt: que monumento! Via em seus cursos temas para canções, e
em seus professores modelos para caricaturas. Recebia, sem fazer quase
nada, uma gorda pensão, algo como três mil francos. Seus pais eram
camponeses, a quem soubera inculcar respeito pelo filho.
Dizia deles: “São camponeses e não burgueses; é por isso que têm
inteligência”.
Bahorel, homem caprichoso, frequentava vários cafés; os outros
tinham seus hábitos, ele não. Ele flanava. Errar é humano, flanar é
parisiense. No fundo, um espírito penetrante, mais pensador do que
parecia.
Servia de ligação entre os Amigos do ABC e outros grupos ainda
informes, mas que viriam a desenhar-se mais tarde.
Nesse conclave de cabeças jovens, havia um membro calvo.
O marquês de Avaray, a quem Luís XVIII fez duque após ser ajudado a
subir em um cabriolé de aluguel no dia em que emigrou, contava que, em
1814, por ocasião de sua volta à França, quando o rei desembarcava em
Calais, um homem apresentou-lhe uma petição.
— O que pede? — disse o rei.
— Sire, uma agência de correio.
— Como se chama?
— L’Aigle.
O rei franziu a sobrancelha, olhou para a assinatura da petição e viu o
nome escrito assim: LESGLE. Essa ortografia pouco bonapartista
impressionou o rei, que começou a sorrir.
— Sire — continuou o homem da petição —, um de meus
antepassados, que era criador de cães, tinha o apelido de Lesgueules. Esse
apelido formou meu nome. Chamo-me Lesgueules, por contração Lesgle, e
por corrupção L’Aigle.
Isso fez com que o rei estancasse seu sorriso. Mais tarde, de propósito
ou por descuido, deu ao homem a agência de correios de Meaux.
O membro calvo do grupo era filho desse Lesgle ou Lègle, e assinava
Lègle (de Meaux). Seus camaradas, para facilitar, o chamavam de
Bossuet.7
Bossuet era um rapaz alegre, mas infeliz. Seu forte era não ter sucesso
em nada. Em compensação, ria de tudo. Com vinte e cinco anos já era
calvo. O pai acabara por possuir uma casa e umas terras; mas ele, o filho,
não teve nada mais urgente a fazer que perder, em uma falsa especulação,
essa casa e essas terras. Não lhe sobrou nada. Tinha instrução e espírito,
mas só perdia. Tudo lhe falhava, tudo o enganava; o que quer que
arquitetasse desabava sobre ele. Se rachasse lenha, cortava um dedo. Se
arranjasse uma amante, vinha logo a descobrir que também tinha um
amigo. A todo instante alguma desgraça lhe acontecia; disso provinha sua
jovialidade. Ele dizia: Moro debaixo de um telhado de telhas que caem.
Pouco assustadiço, porque para ele o desastre era o previsível, encarava a
má sorte com serenidade e sorria das travessuras do destino como alguém
que entende a zombaria. Era pobre, mas sua bolsa de bom humor era
inesgotável. Depressa chegava a sua última moeda, mas nunca a sua
última gargalhada. Quando a adversidade entrava em sua casa, saudava
cordialmente essa antiga conhecida; nas catástrofes, dava tapinhas em suas
costas; e tinha tanta familiaridade com a Fatalidade, que a tratava pelo
primeiro nome: “Bom dia, Azar”, dizia ele.
Essas perseguições do destino o tornaram inventivo. Era cheio de
recursos. Nunca tinha dinheiro, mas sempre achava um meio de fazer,
quando bem lhe aprouvesse, “despesas desenfreadas”. Uma noite, chegou a
esbanjar “cem francos” em um jantar com uma sirigaita, o que lhe
inspirou, no meio da orgia, esta memorável frase: Garota de cinco luíses,
tire minhas botas.8
Bossuet dirigia-se lentamente para a profissão de advogado; fazia seu
Direito à maneira de Bahorel. Seu domicílio era incerto e às vezes
nenhum. Ora ficava na casa de um, ora na casa de outro, e, com mais
frequência, na casa de Joly. Joly estudava Medicina e tinha dois anos
menos do que ele.
Joly era o doente imaginário jovem. O que tinha conseguido com a
Medicina era ser mais doente que médico. Com vinte e três anos, julgava-
se doentio, e passava a vida observando sua língua em um espelho.
Afirmava que o homem se magnetiza como uma agulha, e em seu quarto
colocava a cama com a cabeceira para o sul e os pés para o norte, a fim de
que, à noite, a circulação de seu sangue não fosse contrariada pela grande
corrente magnética do globo. Durante as tempestades, tomava sua
pulsação. De resto, o mais alegre de todos. Todas estas incoerências,
jovem, maníaco, fraco, alegre, formavam um bom conjunto, do qual
resultava uma criatura excêntrica e agradável, que seus camaradas,
pródigos em consoantes aladas, chamavam de Jolllly.
— Você pode voar com quatro L9 — dizia-lhe Jean Prouvaire.
Joly tinha o costume de coçar o nariz com a ponta de sua bengala, o
que é indício de um espírito sagaz.
Todos esses jovens, tão diversos, e de quem, afinal, só se deve falar
com seriedade, tinham uma mesma religião: o Progresso.
Todos eram filhos diretos da Revolução Francesa. Os menos sérios
tornavam-se solenes ao pronunciar esta data: 1789. Seus pais, segundo sua
natureza, eram ou tinham sido moderados, realistas, doutrinários; pouco
importava. Essa mistura anterior a eles, jovens, não lhes dizia respeito; o
puro sangue dos princípios corria em suas veias. Ligavam-se sem nuances
intermediárias ao direito incorruptível e ao dever absoluto.
Filiados e iniciados, eles esboçavam subterraneamente o ideal.
Entre todos estes corações apaixonados e todos esses espíritos
convictos, havia um cético. Como se encontrava ali? Por justaposição.
Esse cético chamava-se Grantaire e assinava habitualmente com este
enigma: R.10
Grantaire era um homem que se guardava bem de acreditar em alguma
coisa. De resto, era um dos estudantes que mais tinham aprendido durante
os cursos em Paris; sabia que o melhor café era o do Café Lemblin e o
melhor bilhar o do Café Voltaire; que se encontravam bons bolos folhados
e boas garotas no l’Ermitage, bulevar du Maine; frango grelhado na Mãe
Saguet; excelentes caldeiradas na entrada la Cunette; e um certo vinho
branco na entrada du Combat. Para tudo, sabia os bons endereços. Além da
savate e do chausson,11 sabia algumas danças, e era forte no jogo de
bastão. Mas, acima de tudo, era um grande bebedor. Era
desmesuradamente feio; Irma Boissy, a mais graciosa debruadeira de
botinas daquele tempo, indignada com sua feiura, proferiu esta sentença:
Grantaire é impossível; a presunção de Grantaire não se desconcertava.
Olhava ternamente e fixamente para todas as mulheres, com ar de quem
dizia de todas: Se eu quisesse! e tentava fazer os companheiros
acreditarem que geralmente era requisitado.
Todas estas palavras: direitos do povo, direitos do homem, contrato
social, revolução francesa, república, democracia, humanidade,
civilização, religião, progresso, estavam para Grantaire muito próximas de
não ter nenhum significado. Ria delas. O ceticismo, essa cárie da
inteligência, não lhe deixara uma ideia inteira no espírito. Vivia com
ironia. Seu axioma era este: “Só existe uma certeza, meu copo cheio”.
Escarnecia de toda devoção partidária, fosse do irmão ou do pai, fosse do
jovem Robespierre ou de Loizerolles. Adiantou muito morrerem,
exclamava ele. A respeito do crucifixo dizia: Eis um patíbulo que teve
êxito. Aventureiro, jogador, libertino, muitas vezes bêbado, dava àqueles
sonhadores o desprazer de cantarolar sem cessar: J’aimons les filles et
j’aimons le bon vin. Da ária: “Viva Henrique IV”.12
De resto, esse cético tinha um fanatismo; fanatismo que não era nem
uma ideia, nem um dogma, nem uma arte, nem uma ciência; era um
homem: Enjolras. Grantaire admirava, amava e venerava Enjolras.
A quem se ligava esse anarquista incrédulo em meio àquela falange de
espíritos absolutos? Ao mais absoluto. De que modo Enjolras o subjugava?
Pelas ideias? Não. Pelo caráter. Fenômeno muitas vezes observado. Um
cético que se liga a um crente é algo simples como a lei das cores
complementares. O que nos falta nos atrai.
Ninguém gosta tanto da claridade como o cego. O anão adora o
tambor-mor. O sapo olha sempre para o céu; por quê? Para ver o pássaro
voar. Grantaire, em quem a dúvida se esparramava, gostava de ver a fé que
planava sobre Enjolras. Tinha necessidade dele. Sem dar-se inteiramente
conta disso, e sem pensar em explicar-se a respeito disso, aquela natureza
casta, sã, firme, reta, dura, cândida, o encantava. Instintivamente,
admirava seu contrário. Suas ideias moles, frouxas, deslocadas, enfermas,
disformes, prendiam-se a Enjolras como a uma espinha dorsal. Seu eixo
moral apoiava-se naquela firmeza. Grantaire, perto de Enjolras, voltava a
ser alguém. Aliás, ele se compunha de dois elementos aparentemente
incompatíveis. Era irônico e cordial. Sua indiferença amava. Seu espírito
vivia sem crenças, mas seu coração não podia viver sem amizade.
Contradição profunda; pois uma afeição é uma convicção. Assim era sua
natureza. Há homens que parecem ter nascido para serem o verso, o
inverso, o reverso. São Pólux, Pátroclo, Nisus, Eudâmidas, Eféstion,
Pechméja. Não podem viver senão encostados em alguém; seu nome é
uma continuação e não se escreve sem ser precedido da conjunção e; sua
existência não lhes é própria; é o outro lado de um destino que não é o seu.
Grantaire era um desses homens. Era o inverso de Enjolras.
Quase poderíamos dizer que as afinidades começam pelas letras do
alfabeto. Na série delas, O e P são inseparáveis. Podemos, se nos aprouver,
pronunciar O e P, ou Orestes e Pílades.
Grantaire, verdadeiro satélite de Enjolras, frequentava aquele círculo
de jovens; vivia entre eles, só ali se sentia bem, seguia-os por toda parte.
Sua alegria era ver aquelas silhuetas indo e vindo através dos vapores do
vinho. Era tolerado por seu bom humor.
Enjolras, crente, desdenhava esse cético, e, sóbrio, desprezava esse
bêbado. Concedia-lhe um pouco de compaixão altiva. Grantaire era um
Pílades mal aceito. Sempre maltratado por Enjolras, duramente repelido,
rejeitado, mas sempre voltando, dizia de Enjolras: “Que belo mármore!”

II. ORAÇÃO FÚNEBRE DE BLONDEAU, POR


BOSSUET
Certa tarde, que tinha, como iremos ver, alguma coincidência com os
acontecimentos acima narrados, Laigle de Meaux estava sensualmente
encostado no batente da porta do Café Musain, com ar de uma cariátide
em descanso; não sustentava nada mais que seus devaneios, e olhava para
a praça Saint-Michel. Encostar-se é um modo de deitar-se em pé, que não
é, de forma alguma, odiado pelos pensadores. Laigle de Meaux pensava,
sem melancolia, em um pequeno contratempo que lhe ocorrera na
antevéspera, na escola de Direito, e que modificava seus planos pessoais
de futuro, planos, aliás, bastante indefinidos.
O devaneio não impede que um cabriolé passe, e nem que aquele que
devaneia note o cabriolé. Laigle de Meaux, cujos olhos erravam numa
espécie de divagação difusa, avistou, através desse sonambulismo, um
veículo de duas rodas movendo-se pela praça vagarosamente e como que
indeciso. Que cabriolé era aquele? Por que ia assim devagar? Laigle o
observou. Dentro, ao lado do cocheiro, havia um jovem, e na frente desse
jovem, um saco de viagem bastante volumoso. O saco mostrava aos
passantes um nome escrito em grandes letras pretas, marcadas sobre um
cartão preso ao tecido: MARIUS PONTMERCY. Esse nome fez Laigle
mudar de atitude. Endireitou-se e exclamou ao jovem do cabriolé:
— Senhor Marius Pontmercy!
O cabriolé parou.
O jovem, que também parecia devanear profundamente, levantou os
olhos.
— Hein? — disse ele.
— O senhor é Marius Pontmercy?
— Sim.
— Eu estava à sua procura — tornou Laigle de Meaux.
— Como assim? — perguntou Marius, já que era ele quem saíra da
casa do avô, achando-se em presença de uma figura que via pela primeira
vez. — Não o conheço — disse.
— Eu também não o conheço — respondeu Laigle.
Marius julgou tratar-se de um encontro de farsa, do começo de um
logro em plena rua. Naquele momento não estava em seu melhor humor.
Franziu a sobrancelha. Laigle de Meaux, imperturbável, prosseguiu:
— Anteontem o senhor não estava na escola.
— É possível.
— É certo.
— O senhor é estudante? — perguntou Marius.
— Sim. Como o senhor. Anteontem entrei na escola por acaso. O
senhor sabe que às vezes temos dessas ideias. O professor estava fazendo a
chamada. Sabe como eles são ridículos nesse momento; à terceira
chamada não respondida, cancelam nossa matrícula. Sessenta francos por
água abaixo.
Marius começava a escutar. Laigle continuou:
— Era Blondeau quem fazia a chamada. O senhor conhece Blondeau,
ele tem o nariz muito pontudo e cheio de malícia, fareja com gosto os
ausentes. Começou sorrateiramente pela letra P. Eu nem escutava, já que
não estava comprometido com essa letra. A chamada ia bem. Nenhum
nome riscado, o universo estava presente. Blondeau estava triste. Eu dizia
com meus botões: “Blondeau, meu amor, hoje não farás nenhuma
execução”. De repente, Blondeau chama Marius Pontmercy. Ninguém
responde. Blondeau, cheio de esperança, repete mais forte: Marius
Pontmercy. E pega sua pena. Meu senhor, eu tenho bom coração. Pensei
rapidamente: “Aí está um bravo jovem que será eliminado. Atenção. Esse
é um verdadeiro bon vivant, que não é pontual. Não é um bom aluno. Não
é um dedicado, um estudante que estuda, um fedelho pedante, bom em
ciências, letras, teologia e sapiência, um desses espíritos estúpidos
esticados por quatro alfinetes, um alfinete por faculdade. É um respeitável
preguiçoso que anda por aí, que pratica o repouso, que cultiva os
namoricos, que corteja as belas, que, neste momento, pode estar na casa da
minha amante. Salvemo-lo! Morte a Blondeau!” Naquele momento,
Blondeau molhou a pena na tinta com que faz seus rabiscos, passeou os
ferozes olhos pelo auditório e repetiu pela terceira vez: Marius
Pontmercy?
— Presente!, eu respondi. Isso fez com que não fosse riscado.
— Senhor!… — disse Marius.
— Mas que eu o tenha sido — acrescentou Laigle de Meaux.
— Eu não o entendo — disse Marius.
Laigle retomou:
— Nada mais simples. Eu estava perto da cadeira para responder e
perto da porta para escapar. O professor me olhava um tanto fixamente. De
repente, Blondeau, que deve ter o maligno nariz de que fala Boileau, salta
à letra L, que é a minha letra. Eu sou de Meaux e me chamo Lesgle.
— L’Aigle! — interrompeu Marius. — Que belo nome!
— O caso é que Blondeau chega a esse belo nome e grita: Laigle! Eu
respondo: Presente! Blondeau então olha para mim com a doçura de um
tigre, sorri e diz: “Se o senhor é Pontmercy, não é Laigle”. Frase que para
o senhor parece desatenciosa, mas que para mim era lúgubre. Dito isso,
riscou-me.
— Senhor, sinto muito…
— Antes de mais nada — atalhou Laigle —, peço que me deixe
embalsamar Blondeau em algumas frases de sentido elogioso. Eu o
suponho morto. Não haveria grande mudança em sua magreza, em sua
palidez, em sua frieza, em sua rigidez e em seu cheiro. Por isso digo:
Erudimini qui judicatis terram.13 Aqui jaz Blondeau, Blondeau Nariz,
Blondeau Nasica, o boi da disciplina, bos disciplinae, o cão de guarda da
ordem, o anjo da chamada, que foi reto, quadrado, pontual, rígido, honesto
e medonho. Deus o riscou como ele riscou a mim.
Marius continuou:
— Sinto muito…
— Meu jovem — disse Laigle de Meaux —, que isso lhe sirva de
lição. No futuro, seja pontual.
— Peço-lhe realmente mil desculpas…
— Não se exponha mais fazendo seu próximo ser eliminado.
— Estou desesperado…
Laigle desatou a rir.
— E eu, contente. Estava inclinando-me a ser advogado. Essa
eliminação salvou-me. Renuncio aos triunfos do foro. Não defenderei a
viúva, nem atacarei o órfão! Nada de toga, nada de estágios. Está obtida
minha eliminação. E é ao senhor que a devo, senhor Pontmercy. Espero
fazer-lhe uma visita de agradecimento. Onde é que mora?
— Neste cabriolé — disse Marius.
— Sinal de opulência — respondeu Laigle com serenidade. — Minhas
felicitações. Tem aí um aluguel de nove mil francos por ano.
Nesse momento, Courfeyrac saía do Café.
Marius sorriu tristemente.
— Estou nesse aluguel há duas horas e desejo sair dele; mas o caso é
que não sei para onde ir.
— Senhor — disse Courfeyrac —, venha para minha casa.
— Eu teria a prioridade — observou Laigle —, mas não tenho “minha
casa”.
— Cale-se, Bossuet — tornou Courfeyrac.
— Bossuet? — disse Marius. — Mas pensei que se chamasse Laigle.
— De Meaux — respondeu Laigle —; por metáfora, Bossuet.
Courfeyrac subiu no cabriolé.
— Cocheiro — disse ele —, para o hotel da Porte-Saint-Jacques.
E naquela mesma noite Marius estava instalado em um quarto do hotel
da Porte-Saint-Jacques, lado a lado com Courfeyrac.

III. AS SURPRESAS DE MARIUS


Em alguns dias, Marius ficou amigo de Courfeyrac. A juventude é a
estação das prontas soldaduras e das cicatrizações rápidas. Perto de
Courfeyrac, Marius respirava livremente, coisa bastante nova para ele.
Courfeyrac não lhe fez perguntas. Nem sequer pensou nisso. Naquela
idade, os semblantes logo dizem tudo. A palavra é inútil. Há jovens dos
quais poderíamos dizer que as fisionomias conversam. Olham-se, se
reconhecem.
Todavia, certa manhã, Courfeyrac fez-lhe bruscamente esta pergunta:
— A propósito, o senhor tem alguma opinião política?
— Ora! — disse Marius, quase ofendido com a pergunta.
— Então o que é?
— Democrata-bonapartista.
— Variante triste de rato tranquilo — disse Courfeyrac.
No dia seguinte, Courfeyrac introduziu Marius no Café Musain.
Depois, cochichou em seu ouvido com um sorriso: “É preciso que eu faça
suas entradas na revolução”. E conduziu-o à sala dos Amigos do ABC.
Apresentou-o aos outros camaradas dizendo a meia voz estas simples
palavras, que Marius não compreendeu: “Um discípulo”.
Marius caíra num vespeiro de espíritos. De resto, embora silencioso e
sério, ele não era nem o menos alado nem o menos armado.
Marius, até então solitário e propenso ao monólogo e ao aparte, por
costume e gosto, ficou um pouco assustado ao ver-se rodeado por aquele
bando de rapazes. Todas aquelas iniciativas diversas o solicitavam ao
mesmo tempo, e o sacudiam. O vaivém tumultuoso de todos aqueles
espíritos em liberdade e em labor fazia turbilhonar suas ideias. Algumas
vezes, em meio à perturbação, elas iam para tão longe dele que lhe custava
muito reencontrá-las. Ouvia falar de filosofia, de literatura, de arte, de
história, de religião, de uma maneira inesperada. Entrevia aspectos
estranhos; e, como não os colocava em perspectiva, não tinha certeza de
que não via o caos. Quando abandonara as opiniões de seu avô pelas
opiniões de seu pai, acreditou fixar-se nelas; agora, suspeitava com
inquietude, e sem ousar confessá-lo a si mesmo, que isso não ocorrera. O
ângulo sob o qual via todas as coisas começava outra vez a deslocar-se.
Certa oscilação abalava todos os horizontes de seu cérebro. Estranho
desarranjo interior. Quase sofria com isso.
Parecia que para aqueles jovens não havia “coisas consagradas”.
Marius ouvia, a respeito de tudo, linguagens singulares, constrangedoras,
para seu espírito ainda tímido.
Um cartaz de teatro aparecia, ornado com o título de alguma tragédia
do antigo repertório, dito clássico: “Abaixo a tragédia, tão cara aos
burgueses!”, gritava Bahorel. E Marius ouvia Combeferre replicar:
— Você está errado, Bahorel. A burguesia gosta da tragédia, e nesse
ponto é preciso deixar a burguesia tranquila. A tragédia antiga tem sua
razão de ser, e eu não sou daqueles que, em nome de Ésquilo, lhe
contestam o direito de existir. Há esboços na natureza, e há, na criação,
paródias completas: um bico que não é um bico, asas que não são asas,
nadadeiras que não são nadadeiras, patas que não são patas, um grito
doloroso que dá vontade de rir, aí está o pato. Ora, já que as aves
domésticas existem ao lado dos pássaros, não vejo por que a tragédia
clássica não existiria ao lado da tragédia antiga.
Ou então o acaso fazia com que Marius passasse pela rua Jean–
Jacques-Rousseau entre Enjolras e Courfeyrac. Courfeyrac tomava-lhe o
braço.
— Preste atenção. Esta é a rua Plâtrière, hoje chamada de Jean-
Jacques–Rousseau por causa de um singular casal que aqui morava há uns
sessenta anos. Eram Jean-Jacques e Thérèse. De tempos em tempos, ali
nasciam pequenas criaturas. Thérèse as paria, Jean-Jacques as enjeitava.
E Enjolras dizia rudemente a Courfeyrac:
— Silêncio diante de Jean-Jacques! Admiro esse homem. Renegou
seus filhos, que seja, mas adotou o povo.
Nenhum daqueles jovens articulava esta palavra: o imperador. Só Jean
Prouvaire dizia, às vezes, Napoleão; todos os outros diziam Bonaparte.
Enjolras pronunciava Buonaparte.
Marius se surpreendia vagamente. Initium Sapientiae.14

IV. A SALA DE TRÁS DO CAFÉ MUSAIN


Uma das conversas entre aqueles jovens, às quais Marius assistia e das
quais às vezes tomava parte, foi um verdadeiro abalo para seu espírito.
Isso acontecia na sala de trás do Café Musain. Quase todos os Amigos
do ABC estavam reunidos naquela noite. O candeeiro estava solenemente
aceso. Falava-se disso e daquilo sem exaltação, mas ruidosamente. Exceto
Enjolras e Marius, que estavam calados, cada um falava meio ao acaso. As
conversas entre camaradas têm às vezes desses tumultos pacíficos. Tanto
era um jogo e uma confusão como uma conversa. Jogavam-se no ar
palavras que eram apanhadas. Falava-se aos quatro cantos.
Nenhuma mulher era admitida nesta sala, exceto Louison, que lavava a
louça do Café, e a atravessava de vez em quando para ir da pia ao
“laboratório”.
Grantaire, completamente embriagado, atordoava o canto do qual se
apossara, arrazoando e desarrazoando em voz muito alta; ele gritava:
—Tenho sede. Mortais, tenho um sonho: que o tonel de Heidelberg
tenha um ataque de apoplexia, e que eu seja uma das doze sanguessugas
que irão aplicar-lhe. Eu queria beber. Quero esquecer a vida. A vida é uma
invenção medonha não sei de quem. Uma coisa que não dura nada e não
vale nada; a gente se mata para viver. A vida é um cenário onde há pouca
coisa real. A felicidade é uma velha moldura pintada só de um lado. O
Eclesiastes diz: tudo é vaidade; eu penso como esse pobre homem, que
talvez nunca tenha existido. Zero, não querendo andar nu, vestiu-se de
vaidade. Ó vaidade, renovação de tudo com grandes palavras! Uma
cozinha é um laboratório, um dançarino é um professor, um saltimbanco é
um ginasta, um boxeur é um pugilista, um boticário é um químico, um
cabeleireiro é um artista, um pedreiro é um arquiteto, um jóquei é um
desportista, um bicho-de-conta é um pterigibrânquio. A vaidade tem
avesso e direito; o direito é estúpido, é o preto coberto de vidrilhos; o
avesso é tolo, é o filósofo coberto de farrapos. Choro por um e rio do
outro. O que chamamos honras e dignidades, e mesmo honra e dignidade,
geralmente não tem valor real. Os reis fazem um joguete com o orgulho
humano. Calígula fez cônsul um cavalo; Carlos II fez cavaleiro um lombo
de vaca. Vistam-se de drapeado entre o cônsul Incitatus15 e o baronete
Roastbeef. Quanto ao valor intrínseco dos indivíduos, também não é mais
digno de respeito. Escutem o panegírico que o vizinho faz do vizinho.
Branco sobre branco é feroz; se a flor-de-lis falasse, o que não diria da
pomba! Uma beata falando de uma devota é mais venenosa que uma
víbora e uma serpente azul. É pena que eu seja um ignorante, senão citaria
muito mais coisas; mas eu não sei nada. Por exemplo, sempre fui
espirituoso. Quando era aluno de Gros, em vez de rabiscar quadrinhos,
passava meu tempo roubando maçãs; rapin é o masculino de rapine.16 Isso
é o que diz respeito a mim; quanto a vocês, valem o mesmo que eu. Não
quero nem saber de suas perfeições, excelências e qualidades. Toda
qualidade cai em um defeito; o econômico encosta no avarento, o generoso
se assemelha ao pródigo, o valente aproxima-se do fanfarrão; quem diz
muito piedoso diz um tanto hipócrita; há tantos vícios na virtude quanto
buracos no manto de Diógenes. Quem admiram, o assassinado ou o
assassino? César ou Brutus? Em geral, somos a favor do assassino. Viva
Brutus! Ele matou. Isso é que é virtude. Virtude, que seja, mas loucura
também. Há manchas estranhas nesses grandes homens. O Brutus que
matou César estava enamorado de uma estátua de menino. Essa estátua era
do escultor grego Estrongilion, que também havia esculpido a figura de
amazona chamada Belle-Jambe [Bela Perna], Eucnemos, que Nero levava
consigo em suas viagens. Esse Estrongilion deixou apenas duas estátuas
que puseram Brutus e Nero de acordo; Brutus apaixonou-se por uma, Nero
pela outra. A história não passa de uma longa e enfadonha repetição. Um
século faz plágio do outro. A batalha de Marengo é a cópia da batalha de
Pydna; o Tolbiac de Clovis e o Austerlitz de Napoleão assemelham-se
como duas gotas de sangue. Faço pouco-caso da vitória. Nada é tão
estúpido como vencer; a verdadeira glória é convencer. Mas tentem provar
alguma coisa! Vocês se contentam com o êxito, que mediocridade! E com
a conquista, que miséria! Que pena, vaidade e covardia por toda parte.
Tudo obedece ao sucesso, até a gramática. Si volet usus, diz Horácio.17
Portanto, desprezo o gênero humano. Desceremos do todo à parte? Querem
que eu me ponha a admirar os povos? Que povo, façam-me o favor? A
Grécia? Os atenienses, esses parisienses de outrora, matavam Fócion,
como se fosse Coligny, e adulavam os tiranos a ponto de Anacéforo dizer
de Pisístrato: “A urina dele atrai as abelhas”. O homem mais considerável
da Grécia, durante cinquenta anos, foi o gramático Filetas, que, de tão
baixo e tão franzino, era obrigado a usar sapatos chumbados para não ser
carregado pelo vento. Na praça principal de Corinto, havia uma estátua
esculpida por Silânion e catalogada por Plínio; ela representava Epístato.
Que fez Epístato? Inventou a rasteira. Isso resume a Grécia e a glória.
Passemos a outros. Admirarei a Inglaterra? Admirarei a França? A França,
por quê? Por causa de Paris? Acabo de lhes dizer minha opinião a respeito
de Atenas. A Inglaterra, por quê? Por causa de Londres? Odeio Cartago.
Além disso, Londres, metrópole do luxo, é o carro-chefe da miséria. Só na
paróquia de Charing-Cross morrem anualmente de fome cem pessoas.
Assim é Álbion. E acrescento, para não faltar nada, que vi uma inglesa
dançar com uma coroa de rosas e óculos azuis. Portanto, um groing para a
Inglaterra! Se não admiro John Bull, como vou admirar irmão Jonathan?
Pouco aprecio esse irmão com escravos. Tirando o time is money, que
sobra da Inglaterra? Tirando o cotton is king, que sobra da América? A
Alemanha é a linfa; a Itália é a bílis. Iremos nos extasiar diante da Rússia?
Voltaire a admirava. Também admirava a China. Concordo que a Rússia
tem suas belezas, entre outras um grande despotismo; mas lamento pelos
déspotas. Têm uma saúde delicada. Um Alexis decapitado, um Pedro
apunhalado, um Paulo estrangulado, outro Paulo pisoteado por saltos de
botas, diversos Ivans degolados, vários Nicolaus e Basílios envenenados,
tudo isso indica que o palácio dos imperadores da Rússia está em
flagrantes condições de insalubridade. Todos os povos civilizados
oferecem à admiração do pensador este detalhe: a guerra; ora a guerra, a
guerra civilizada, esgota e totaliza todas as formas do banditismo, dos
assaltos dos trabuqueiros nas gargantas do monte Jaxa à pilhagem dos
índios Comanches no cabo Duvidoso. “Ora!” vocês vão me dizer, “a
Europa vale então mais do que a Ásia?” Concordo que a Ásia é farsa, mas
não vejo razão para que riam do Lama, vocês, povos do Ocidente, que
entremearam a suas modas e elegâncias todas as imundícies enredadas de
majestade, desde a camisa suja da rainha Isabel até a cadeira furada do
delfim. Senhores humanos, digo-lhes isso, sim! É em Bruxelas que se
consome mais cerveja, em Estocolmo mais aguardente, em Madri mais
chocolate, em Amsterdã mais genebra, em Londres mais vinho, em
Constantinopla mais café, em Paris mais absinto; eis aí todas as noções
úteis. Em resumo, Paris leva vantagem. Em Paris, até os trapeiros são
sibaritas; Diógenes teria gostado tanto de ser trapeiro na praça Maubert
quanto de ser filósofo no Pireu. Fiquem sabendo mais isto: as tavernas dos
trapeiros chamam-se bibines [bebidas ruins]; as mais célebres são la
Casserole e l’Abbatoir. Portanto, ó tascas, baiucas, bodegas, tavernas,
botequins, espeluncas, bibines de trapeiros, caravançarais de califas, eu
vos declaro que sou um voluptuoso, que como no Richard a quarenta
soldos por cabeça, e que quero tapetes da Pérsia dignos de neles rolar
Cleópatra nua! Onde está Cleópatra? Ah! É você, Louison. Bom dia.
Assim, Grantaire, mais que bêbado, se derramava em palavras,
agarrando a moça que lavava a louça quando esta passava em seu canto da
sala traseira do Café Musain.
Bossuet, estendendo a mão em sua direção, tentava impor-lhe silêncio,
mas Grantaire recomeçava com mais vontade:
— Aigle de Meaux, abaixe as patas. Você não me impressiona com seu
gesto de Hipócrates recusando o bricabraque de Artaxerxes. Eu o dispenso
de acalmar-me. Além disso, estou triste. O que quer que lhe diga? O
homem é mau, o homem é disforme. A borboleta é um sucesso, o homem
um malogro. Deus errou nesse animal. Uma multidão é uma coleção de
coisas feias. O primeiro que aparece é um miserável. Femme18 rima com
infame. É, tenho algo visceral, complicado pela melancolia, além da
nostalgia e mais hipocondria, e fico irritado, enfurecido, e bocejo, e me
entedio, e me enfastio, e me aborreço! Que Deus vá pros diabos!
— Silêncio então, R maiúsculo! — tornou Bossuet, que discutia um
ponto de Direito com as paredes, meio enterrado em um discurso de gíria
judiciária, com o seguinte final:
— …E quanto a mim, embora eu seja apenas um legista, ou quando
muito um procurador amador, sustento o seguinte: que, nos termos dos
costumes da Normandia, todos os anos, na época de Saint-Michel, um
Equivalente devia ser pago em proveito do senhor, salvo outro direito, por
todos e cada um, tanto proprietários como devedores de herança, e isso
para todos os arrendamentos, contratos, bens hereditários, contratos
dominiais e dominais, hipotecários e hipotecais…
— Ecos, ninfas queixosas… — cantarolou Grantaire.
Bem perto de Grantaire, sobre uma mesa quase silenciosa, uma folha
de papel, um tinteiro e uma pena, entre dois copos, anunciavam que ali se
esboçava um vaudeville. Esse importante negócio era tratado em voz
baixa, e as duas cabeças que trabalhavam se encostavam.
— Comecemos pelos nomes. Se tivermos os nomes, achamos o enredo.
— Está certo. Pode ditar. Eu escrevo.
— Senhor Dorimon?
— Que vive de rendas?
— Sem dúvida.
— Sua filha, Célestine.
— …tine. Que mais?
— O coronel Sainval.
— Sainval é antiquado. Eu colocaria Valsin.
Ao lado dos aspirantes a autores, um outro grupo, que também se
aproveitava da algazarra para falar em voz baixa, discutia um duelo. Um
veterano de trinta anos aconselhava um novato de dezoito, explicando-lhe
com que adversário se metia.
— Diabos! Tome cuidado. Ele é uma boa espada. Joga limpo. Tem um
ataque sem dissimulação, firme, imaginativo, rápido, com paradas exatas,
respostas matemáticas e, ainda por cima, é canhoto!
No canto oposto a Grantaire, Joly e Bahorel jogavam dominó e
falavam de amor.
— Você é feliz — dizia Joly. — Tem uma amante que está sempre
rindo.
— É um defeito que ela tem — respondia Bahorel. — Uma amante
erra ao rir. Isso nos anima a enganá-la. Vê-la alegre afasta nossos
remorsos; mas vê-la triste nos faz ter consciência.
— Ingrato! É tão bom uma mulher que ri! E vocês nunca brigam!
— Isso vem do trato que fizemos. Ao fazer nossa pequena santa
aliança, assinalamos cada um nossa fronteira, que nunca ultrapassamos. O
que fica do lado norte pertence a Vaud, e do lado sul pertence a Gex. Daí
vem a paz.
— A paz é a felicidade digestiva.
— E você, Jolllly, a quantas anda sua desavença com a senhorita…?
Você sabe de quem eu quero falar.
— Ela irrita-me com uma paciência cruel.
— Você, no entanto, é um apaixonado, enternecido pela penúria.
— Infelizmente.
— Em seu lugar, eu a deixaria.
— É fácil de dizer.
— E de fazer. Ela não se chama Musichetta?
— Sim. Ah! Meu pobre Bahorel, é uma moça maravilhosa, literata, de
pés pequenos, mãos pequenas, que se veste bem, pele clara, corpo bem
feito e olhos de mulher que lê as cartas. Sou louco por ela.
— Meu caro, nesse caso é preciso agradá-la, ser elegante e ter uma
aparência que impressione. Compre no Staub19 uma boa calça de couro de
lã. Isso sim vai prestar.
— A que preço? — gritou Grantaire.
No terceiro canto, ocorria uma discussão poética. A mitologia pagã se
pegava com a mitologia cristã. Tratava-se do Olimpo, do qual Jean
Prouvaire, até mesmo por romantismo, tomara partido. Jean Prouvaire só
era tímido quando repousava. Uma vez excitado, revelava-se; uma espécie
de alegria acentuava seu entusiasmo, e ele ficava ao mesmo tempo risonho
e lírico.
— Não insultemos os deuses — dizia ele. — Os deuses talvez não se
tenham ido. Não me parece que Júpiter tenha morrido. Os deuses são
sonhos, vocês dizem. Pois bem, mesmo na natureza, tal qual ela é hoje em
dia, após a fuga desses sonhos, todos os antigos e grandes mitos pagãos
podem ser encontrados. Tal montanha com perfil de cidadela, como o
Vignemale, por exemplo, ainda representa para mim o que Cibele trazia
sobre a cabeça; não me foi provado que Pã não vem, durante a noite,
soprar no tronco oco dos salgueiros, tapando alternadamente os buracos
com seus dedos; e sempre acreditei que Io participava, de algum modo, da
cascata Pissevache.
No último canto, falava-se de política. Tratavam duramente da Carta
outorgada. Combeferre a defendia frouxamente, Courfeyrac a atacava
energicamente. Sobre a mesa havia um malfadado exemplar da célebre
Carta-Touquet. Courfeyrac a segurava e a agitava, misturando a seus
argumentos o ruído daquela folha de papel.
— Em primeiro lugar, não quero reis. Nem que seja apenas do ponto
de vista econômico, não os quero; um rei é um parasita. Não existe rei de
graça. Escutem isto: custam caro, os reis! Quando Francisco I morreu, a
dívida pública na França era de trinta mil libras de renda; quando morreu
Luís XIV, ela era de dois bilhões e seiscentos milhões, a vinte e oito libras
o marco, o que equivalia, em 1760, segundo diz Desmarets, a quatro
bilhões e quinhentos milhões, e o que hoje equivaleria a doze bilhões. Em
segundo lugar, ainda que desagrade a Combeferre, uma carta outorgada é
um mau expediente de civilização. Salvar a transição, moderar a
passagem, enfraquecer o abalo, fazer a nação passar insensivelmente da
monarquia à democracia pela prática das ficções constitucionais, são
detestáveis razões, todas elas! Não! Não! Não iluminemos o povo com
uma falsa luz. Os princípios desbotam e empalidecem nos porões
constitucionais. Nada de decadência. Nada de compromissos. Nada de
outorgas feitas ao povo pelo rei. Em todas essas outorgas há um artigo 14.
Ao lado da mão que dá, existe a garra que toma de volta. Recuso
francamente sua carta. Uma carta é uma máscara; por baixo está a mentira.
Um povo que aceita uma carta abdica. O direito só pode ser o direito
integralmente. Não! Nada de carta!
Era inverno; duas toras de lenha crepitavam na lareira. Isso era
tentador, e Courfeyrac não resistiu. Amassou a pobre Carta-Touquet e
atirou-a ao fogo. O papel queimou. Combeferre contemplou
filosoficamente a obra-prima de Luís XVIII queimando, e contentou-se em
dizer:
— A Carta metamorfoseada em chama.
E os sarcasmos, as tiradas, os gracejos, essa coisa francesa que
chamamos de entrain,20 essa coisa inglesa que chamamos de humour, o
bom e o mau gosto, as boas e as más razões, todas as loucas faíscas do
diálogo, subindo ao mesmo tempo e cruzando-se em todas as direções da
sala, produziam, acima das cabeças, uma espécie de alegre bombardeio.

V. AMPLIA-SE O HORIZONTE
Os choques entre espíritos jovens têm de admirável o fato de nunca se
poder prever a faísca, nem adivinhar o relâmpago que produzirão. O que
vai brotar daqui a pouco? Ignora-se. Uma gargalhada parte do
enternecimento. Em um momento de gracejo, a seriedade faz sua entrada.
Os impulsos dependem da primeira palavra pronunciada. A inspiração de
cada um é soberana. Basta uma graça para abrir campo ao inesperado. É
nas conversas com reviravoltas bruscas que a perspectiva repentinamente
muda. O acaso é seu maquinista.
Um pensamento severo, estranhamente saído de um tilintar de
palavras, atravessou de repente a mistura de frases entre as quais se
debatiam Grantaire, Bahorel, Prouvaire, Bossuet, Combeferre e
Courfeyrac.
Como uma frase sobrevém no diálogo? Como é que, de repente, ela se
sublinha por si mesma na atenção dos que a ouvem? Acabamos de dizer,
ninguém sabe. No meio da algazarra, Bossuet terminou de dizer a
Combeferre uma frase qualquer com esta data:
— 18 de junho de 1815, Waterloo.
Ao ouvir esse nome, Waterloo, Marius, apoiando o cotovelo sobre a
mesa, perto de um copo de água, tirou a mão de sob o queixo e começou a
olhar fixamente o auditório.
— Caramba — exclamou Courfeyrac —, esse número 18 é estranho,
me impressiona. É o número fatal de Bonaparte. Ponham Luís na frente e
Brumário atrás, e terão todo o destino do homem, com a expressiva
particularidade de que o começo foi perseguido de perto pelo final.
Enjolras, até então calado, rompeu o silêncio e dirigiu a Courfeyrac
estas palavras:
— Você quer dizer o crime pela expiação.
A palavra crime ultrapassava os limites do que Marius podia aceitar, já
que ficara bastante comovido pela súbita evocação de Waterloo.
Levantou-se, caminhou lentamente em direção ao mapa da França
pendurado na parede, em cuja parte inferior via-se uma ilha em um
compartimento separado, pôs o dedo sobre esse compartimento e disse:
— A Córsega. Uma pequena ilha que tornou a França muito grande.
Foi o sopro de um ar gélido. Todos se interromperam. Sentia-se que
alguma coisa ia começar.
Bahorel, respondendo a Bossuet, começava a fazer a pose de vantagem
que gostava de ostentar; renunciou a ela para escutar.
Enjolras, que não tinha os olhos azuis fixos em ninguém, e que parecia
contemplar o vazio, respondeu sem olhar para Marius:
— A França não precisa de Córsega nenhuma para ser grande. A
França é grande porque é a França. Quia nominor leo.21
Marius não sentiu sequer a vontade mais passageira de recuar; voltou-
se para Enjolras e sua voz soou com uma vibração que vinha da agitação
das entranhas:
— Tomara que eu não diminua a França! Mas não é diminuí-la o fato
de amalgamá-la a Napoleão. Então vamos conversar. Sou recém–chegado
entre vocês, mas confesso que me espantam. Em que ponto estamos?
Quem somos? Quem são vocês? Quem sou eu? Vamos nos explicar sobre o
imperador. Ouço dizerem Buonaparte, acentuando o u, como fazem os
realistas. Digo que meu avô faz melhor ainda, ele pronuncia Buonaparté.
Pensei que vocês fossem jovens. Onde colocam seu entusiasmo? O que
fazem dele? Quem admiram, se não admiram o imperador? E de que mais
precisam? Se não querem esse grande homem, quais grandes homens irão
querer? Ele tinha tudo. Era completo. Tinha em seu cérebro o cubo das
faculdades humanas. Fazia códigos como Justiniano, ditava como César,
sua conversa mesclava o raio de Pascal ao relâmpago de Tácito; ele fazia e
escrevia a história; seus boletins são como Ilíadas; combinava os
algarismos de Newton às metáforas de Maomé; deixou atrás de si, no
Oriente, palavras grandiosas como as pirâmides; em Tilsitt, ensinava o que
é majestade aos imperadores, na Academia de Ciências replicava a
Laplace, no Conselho de Estado fazia frente a Merlin, dava alma à
geometria de uns e à controvérsia de outros, era legista com os
procuradores e sideral com os astrônomos; como Cromwell, soprando uma
em cada duas lamparinas, ia ao Temple negociar um ornamento de cortina;
via tudo, sabia tudo, o que não o impedia de rir um riso franco junto ao
berço de seu filhinho; e, de repente, a Europa assustada escutava os
exércitos colocando-se em marcha, os parques de artilharia rodando,
pontes de barcos estendendo-se sobre os rios, enxames de cavalaria
galopando pela tempestade, gritos, trombetas, tronos estremecendo por
toda parte, fronteiras de reinos oscilando sobre o mapa; ouvia-se o ruído
de um gládio sobre-humano saindo da bainha, ele podia ser visto
elevando-se no horizonte com um brilho nas mãos e um resplendor nos
olhos, desdobrando no trovão suas duas asas, o grande exército e a antiga
guarda; era o arcanjo da guerra!
Todos se calaram, e Enjolras baixou a cabeça. O silêncio sempre
provoca um efeito de aquiescência ou de algo como encostar na parede.
Marius, quase sem retomar fôlego, continuou com mais entusiasmo ainda:
— Sejamos justos, meus amigos! Ser o império de um imperador
como esse, que esplêndido destino para um povo, ainda mais quando esse
povo é a França, e quando ele acrescenta seu gênio ao gênio daquele
homem! Aparecer e reinar, marchar e triunfar, ter como etapas todas as
capitais, tomar seus granadeiros e transformá-los em reis, decretar quedas
de dinastias, transfigurar a Europa rapidamente; que possamos sentir, ao
ameaçar, que colocamos a mão no punho da espada de Deus, que
seguimos, em um só homem, Aníbal, César e Carlos Magno; ser o povo de
alguém que mescla a todas as auroras o anúncio estrepitoso de uma
batalha ganha; ter como despertador o canhão de Invalides; lançar em
abismos de luz palavras prodigiosas que brilham para sempre, Marengo,
Arcole, Austerlitz, Iéna, Wagram; a cada instante fazer eclodir no zênite
dos séculos constelações de vitórias; dar o império francês, como seu
igual, ao império romano; ser a grande nação e gerar o grande exército,
fazer voar por toda a terra suas legiões, assim como uma montanha envia
suas águias para todos os lados; vencer, dominar, fulminar, ser na Europa
uma espécie de povo dourado à força de glórias, fazer ouvir através da
História uma fanfarra de titãs; conquistar o mundo duas vezes, pela
própria conquista e pelo deslumbramento, isso é sublime; e que pode
haver de maior?
— Ser livre — disse Combeferre.
Marius, por sua vez, baixou a cabeça. Essas palavras simples e frias
atravessaram como uma lâmina sua efusão épica, e ele a sentiu
esvanecendo-se em seu íntimo. Quando levantou os olhos, Combeferre não
estava mais ali. Provavelmente satisfeito com sua resposta à apoteose de
Marius, acabara de sair, e todos, exceto Enjolras, o seguiram. A sala se
esvaziara. Enjolras, que ficara só com Marius, olhava seriamente para ele.
Entretanto, tendo reatado o fio de suas ideias, Marius não se dava por
vencido; sentia um resto de efervescência que, sem dúvida, ia traduzir-se
em silogismos manifestados contra Enjolras, quando, de repente, ouviu-se
alguém que cantava na escada ao ir embora. Era Combeferre, cantando o
seguinte:

Si César m’avait donné


La gloire et la guerre,
Et qu’il me fallût quitter
L’amour de ma mère,
Je dirais au grand César:
Reprends ton sceptre et ton char,
J’aime mieux ma mère, ô gué!
J’aime mieux ma mère.

Se César me houvesse dado


A glória e a guerra,
Mas eu precisasse deixar
O amor de minha mãe,
Eu diria ao grande César:
Fica com teu cetro e tua carruagem,
Eu prefiro minha mãe, ô gué!
Eu prefiro minha mãe.

O tom terno e acre com que Combeferre os cantava dava a esses versos
uma espécie de estranha grandeza. Marius, pensativo e com os olhos
voltados para o teto, repetiu quase maquinalmente: “Minha mãe?…”
Nesse momento, sentiu em seu ombro a mão de Enjolras.
— Cidadão — disse-lhe Enjolras —, minha mãe é a República.

VI. RES ANGUSTA22


Aquela noite deixou em Marius um profundo abalo e uma triste
obscuridade na alma. Ele experimentou o que talvez experimente a terra
no momento em que é aberta pelo ferro para que ali se deposite o grão de
trigo; sente, então, apenas a ferida; o estremecimento da semente e a
alegria do fruto só chegarão mais tarde. Marius ficou sombrio. Mal
acabara de edificar-se uma fé, teria tão já de rejeitá-la? Afirmou a si
próprio que não. Declarou a si mesmo que não queria duvidar, mas contra
sua vontade começou a duvidar. Estar entre duas religiões, uma, da qual
ainda não se saiu, outra, na qual ainda não se entrou, é insuportável; e
esses crepúsculos só agradam às “almas morcego”. Marius era uma alma
franca e precisava da verdadeira luz. A meia-luz da dúvida fazia-lhe mal.
Por maior que fosse seu desejo de ficar onde estava e de ali manter-se,
sentia-se irresistivelmente levado a continuar, a avançar, a examinar, a
pensar e a ir mais longe. Aonde isso o conduziria? Receava que, depois de
ter dado tantos passos, que o haviam aproximado de seu pai, tivesse agora
de dar outros tantos que o afastariam dele. Seu mal-estar crescia com
todas as reflexões que lhe vinham à mente. Um escarpamento desenhava-
se à sua volta. Não estava de acordo nem com seu avô, nem com seus
amigos; temerário para um, atrasado para os outros; percebeu-se
duplamente isolado, pelo lado da velhice e pelo lado da mocidade. Deixou
de ir ao Café Musain.
Em meio à perturbação em que se encontrava sua consciência, não
pensava mais em certos aspectos sérios da existência. Mas as realidades da
vida não se deixam esquecer. E vieram repentinamente dar-lhe seus
cutucões.
Uma manhã, o dono do hotel entrou no quarto de Marius e disse-lhe:
— O senhor Courfeyrac responde pelo senhor.
— Sim.
— Mas preciso do dinheiro.
— Peça a Courfeyrac que venha falar comigo — disse Marius.
Quando Courfeyrac chegou, o hospedeiro retirou-se. Marius contou-lhe
o que não se lembrara ainda de dizer-lhe, que estava sozinho no mundo e
que não tinha parentes.
— O que vai ser de você? — perguntou Courfeyrac.
— Não sei — respondeu Marius.
— O que vai fazer?
— Não sei.
— Tem algum dinheiro?
— Quinze francos.
— Quer que lhe empreste mais algum?
— Nunca.
— Tem roupas?
— Estas.
— Tem joias?
— Um relógio.
— De prata?
— De ouro. É este.
— Conheço um negociante de roupas que pode ficar com sua casaca e
suas calças.
— Está bem.
— Você não vai ter mais do que uma calça, um colete, um chapéu e um
casaco.
— E as botas.
— O quê! Não vai andar descalço? Que opulência!
— É o suficiente.
— Conheço um relojoeiro que pode comprar seu relógio.
— Bom.
— Não, não está bom. Que tenciona fazer depois?
— Tudo o que for preciso. Pelo menos tudo o que for honesto.
— Sabe inglês?
— Não.
— E alemão?
— Não.
— Pior assim.
— Por quê?
— É que um de meus amigos, editor, vai publicar uma espécie de
enciclopédia, para a qual você poderia traduzir alguns artigos do alemão
ou do inglês. É mal pago, mas dá para viver.
— Vou aprender inglês e alemão.
— E enquanto isso?
— Enquanto isso, vou comer minhas roupas e meu relógio.
Chamaram o negociante. Ele comprou a roupa usada por vinte francos.
Foram ao relojoeiro. Ele comprou o relógio por quarenta e cinco francos.
— Nada mal — disse Marius a Courfeyrac enquanto voltavam ao hotel
—, com os quinze francos que tenho, dá oitenta francos.
— E a conta do hotel? — observou Courfeyrac.
— Puxa! Estava esquecendo — disse Marius.
O hospedeiro apresentou a conta, que devia ser paga imediatamente. Já
subia a setenta francos.
— Sobraram dez francos — disse Marius.
— Diabos! — disse Courfeyrac. — Você vai consumir cinco francos
enquanto aprende o inglês, e cinco francos enquanto aprende o alemão. É
engolir uma língua bem depressa ou uma moeda de cem soldos bem
devagar.
Enquanto isso, tia Gillenormand, no fundo muito boa pessoa nas
ocasiões tristes, conseguiu descobrir onde Marius se alojava. Uma manhã,
quando Marius voltava da escola, encontrou uma carta de sua tia e
sessenta pistolas, isto é, seiscentos francos em ouro, em uma caixa
lacrada.
Marius mandou o dinheiro de volta a sua tia juntamente com uma carta
respeitosa em que lhe dizia ter meios de subsistência e poder agora
satisfazer todas as suas necessidades. Naquele momento, restavam-lhe três
francos.
A tia não participou ao avô essa recusa, com medo de acabar de o
exasperar. Além do mais, ele não tinha dito: “Que não me falem nunca
mais desse sanguinário!”
Marius saiu do hotel da Porte Saint-Jacques, não querendo endividar-
se ali.

__________________________
1 Associação patriótica alemã, dissolvida em 1813, mas ramificada em sociedades secretas
semelhantes à Cougourde.
2 A sigla ABC aproveita-se da semelhança fonética com a palavra Abaissé — rebaixado,
diminuído, humilhado.
3 “O castrado na caserna”: Narsés, eunuco, foi general do Império Romano no séc. VI; “[O
que] os Bárbaros [não fizeram] os Barberini [fizeram]”: família romana que, no séc. XVII,
edificou seu palácio com materiais roubados de antigos monumentos; “Leis e Fogos”: divisa dos
liberais espanhóis; “Tu és Pedro e sobre essa pedra [construirei minha Igreja]”: promessa de
Cristo ao apóstolo.
4 Ano em que ocorreu a divisão da Polônia entre a Rússia, a Áustria e a Prússia.
5 “Como os corredores” (nas corridas de revezamento).
6 Boné de quatro pontas usado por doutores, eclesiásticos e juízes.
7 L’Aigle de Meaux (O Águia de Meaux) — assim era conhecido Jacques Benigne Bossuet,
prelado francês, um dos grandes nomes da literatura clássica.
8 A frase é “memorável”, pois, em francês, forma um trocadilho com as palavras cinq e saint,
que se pronunciam do mesmo modo, Fille de cinq louis (Moça de cinco luíses [ou cem francos])
— Fille de Saint-Louis (Filha de São Luís), mas com sentidos opostos.
9 Em francês, asas — ailes — e a letra L têm o mesmo som.
10 Mais um jogo de palavras, baseado na sonoridade do R maiúsculo ou “grande
R”—“grandR”— que se pronuncia da mesma forma que Grantaire, o que explica o enigma da
assinatura.
11 Nomes de duas formas de combate, que seguem certas regras, praticadas com pontapés.
12 Composta por Collé, dramaturgo do séc. XVIII — Gostamos de garotas e gostamos do
bom vinho (a grafia correta em francês seria: Nous aimons les filles et nous aimons le bon vin. O
personagem usa como sujeito a primeira pessoa do singular Je e o verbo na segunda do plural).
13 “Instruí-vos, vós que julgais a terra.”
14 “[O temor do Senhor é] o princípio da sabedoria” — Provérbios, Bíblia.
15 Nome do cavalo feito cônsul pelo imperador romano Calígula.
16 Rapin [aprendiz ou mau pintor]; rapine [roubo, pilhagem].
17 “Se o uso assim quiser.”
18 Em francês, significa “mulher” e soa como “fame”.
19 Renomado alfaiate de Paris, citado também por Balzac.
20 Animação, vivacidade.
21 “Porque me chamo leão” (Fedro, Fábulas).
22 “Pobreza” — referência ao verso de Juvenal, em Sátira: “Dificilmente têm êxito aqueles
cujas qualidades são estancadas pela estreiteza de sua fortuna”.
LIVRO V
EXCELÊNCIA DA DESGRAÇA

I. MARIUS INDIGENTE
A VIDA tornou-se austera para Marius. Comer suas roupas e seu relógio,
isso não era nada. Ele comeu esta coisa inexprimível a que chamam de o
pão que o diabo amassou. Coisa horrível que inclui os dias sem pão, as
noites sem luz e sem sono, a lareira sem fogo, as semanas sem trabalho, o
futuro sem esperança, o casaco roto nos cotovelos, o chapéu velho, que faz
as moças rirem, a porta, que à noite se encontra fechada porque não se
pagou o aluguel, a insolência do porteiro e do taverneiro, as zombarias dos
vizinhos, as humilhações, a dignidade pisoteada, a aceitação de trabalhos
de qualquer espécie, os desgostos, a amargura, o desalento. Marius
aprendeu a devorar todas essas coisas, e aprendeu que elas, muitas vezes,
são as únicas coisas que se tem para devorar. Naquele momento da
existência em que o homem necessita de orgulho, porque necessita de
amor, ele sentia-se escarnecido porque andava mal trajado, e ridículo
porque era pobre. Na idade em que a mocidade nos enche o coração de um
orgulho imperial, ele abaixou mais de uma vez os olhos para suas botas
furadas, e conheceu as vergonhas injustas e as pungentes humilhações da
miséria. Admirável e terrível provação da qual os fracos saem infames e
os fortes saem sublimes. Cadinho em que o destino lança um homem todas
as vezes que quer obter um miserável ou um semideus.
Pois produzem-se muitas grandes ações nas pequenas lutas. Há
bravuras perseverantes e ignoradas que se defendem palmo a palmo, nas
trevas, contra a fatal invasão das necessidades e das torpezas. Nobres e
misteriosos triunfos que nenhum olhar pode ver, que nenhuma fama pode
pagar, que nenhuma fanfarra saúda. A vida, a desgraça, o isolamento, o
abandono, a pobreza são campos de batalha que têm seus heróis, heróis
obscuros, às vezes maiores que os heróis ilustres.
Assim se criam naturezas firmes e raras; a miséria, quase sempre
madrasta, algumas vezes é mãe; a privação gera o poder de alma e de
espírito; a miséria alimenta a altivez; o infortúnio é um bom leite para os
magnânimos.
Houve um momento na vida de Marius em que ele varria o patamar de
sua escada, em que comprava um soldo de queijo Brie na quitanda, em que
esperava anoitecer para ir à padaria comprar um pão que furtivamente
levava para seu quarto, como se o tivesse roubado. Às vezes, via-se entrar
no açougue da esquina, no meio de cozinheiras zombando e acotovelando,
um jovem carregando dois livros debaixo do braço, desajeitado, de aspecto
tímido e furioso, que, ao entrar, tirava o chapéu da cabeça, que lhe escorria
em suor, e fazia uma profunda saudação à espantada dona do açougue, e
uma outra ao ajudante, pedia uma costela de carneiro, que lhe custava seis
ou sete soldos, embrulhava-a com papel, colocava-a debaixo do braço
entre os dois livros e ia-se embora. Era Marius. Com essa costeleta, que
ele próprio cozinhava, passava três dias.
No primeiro dia comia a carne, no segundo a gordura, no terceiro roía
os ossos.
Por muitas vezes a tia Gillenormand fez tentativas de mandar-lhe as
sessenta pistolas. Marius as devolvia constantemente dizendo que não
precisava de nada.
Ele ainda estava de luto por seu pai quando a revolução que
mencionamos ocorreu em seu íntimo. Desde então não deixara mais de
usar roupas pretas. No entanto, suas roupas é que o deixaram. Chegou o
dia em que não tinha mais casaco. As calças ainda resistiam. Que fazer?
Courfeyrac, a quem, por sua vez, tinha prestado alguns bons serviços, deu-
lhe um casaco velho. Por trinta soldos, Marius pediu a um alfaiate
qualquer que o virasse do avesso, e este ficou sendo o casaco novo. Esse
casaco era verde. Então, Marius só saía após o cair da noite, o que o fazia
parecer preto. Como continuava querendo andar de luto, vestia a noite.
Em meio a tudo isso, inscreveu-se como advogado. Consideravam-no
residente no quarto de Courfeyrac, que era decente, e onde um certo
número de livros de Direito, sustentados e completados com volumes de
romances avulsos, simulavam a biblioteca exigida pelo regulamento.
Pedia que endereçassem sua correspondência para a casa de Courfeyrac.
Quando Marius formou-se advogado, informou-o a seu avô por meio
de uma carta fria, mas cheia de submissão e respeito. O senhor
Gillenormand pegou a carta, e com um estremecimento leu-a e atirou-a,
rasgada em quatro, no cesto de lixo. Dois ou três dias depois, a senhorita
Gillenormand ouviu seu pai, que estava só no quarto, falando em voz alta.
Isso lhe acontecia todas as vezes que ficava muito agitado. Apurou os
ouvidos; o velho dizia: “Se não fosse um imbecil, saberia que não se pode
ser, ao mesmo tempo, barão e advogado”.

II. MARIUS POBRE


Existe miséria, como existe de tudo. Ela chega a tornar-se possível.
Acaba tomando uma forma e conciliando-se. Vegetamos, quer dizer, nos
desenvolvemos de uma certa maneira medíocre, mas suficiente para viver.
Eis de que modo a existência de Marius Pontmercy foi arranjada:
Ela saíra do maior estreitamento; o desfiladeiro alargava-se um pouco
à sua frente. À força de trabalho, de coragem, de perseverança e de
vontade, conseguira tirar aproximadamente setecentos francos por ano.
Aprendera o alemão e o inglês. Graças a Courfeyrac, que o colocara em
contato com seu amigo editor, Marius preenchia na literatura-livraria o
modesto papel de utilidade. Fazia prospectos, traduzia jornais, anotava
edições, compilava biografias, etc. Produto líquido, em média, setecentos
francos. Com eles vivia. Como? Vamos dizer.
Marius ocupava, no casebre Gorbeau, mediante o preço anual de trinta
francos, um cubículo sem lareira qualificado de gabinete, onde não havia,
em matéria de móveis, mais que o indispensável. Esses móveis eram dele.
Dava três francos por mês à velha locatária principal para que viesse
varrer o quarto e levar-lhe todas as manhãs um pouco de água quente, um
ovo fresco e um pão de um soldo. Almoçava esse pão e esse ovo. Seu
almoço variava de dois a quatro soldos conforme os ovos estivessem caros
ou baratos. Às seis horas da tarde, descia a rua Saint-Jacques para jantar
no Rousseau, defronte ao Basset, vendedor de estampas da esquina da rua
des Mathurins. Não tomava sopa. Pedia um prato de carne de seis soldos,
meio prato de legumes de três soldos, e uma sobremesa de três soldos. Por
três soldos, tinha pão à vontade. Quanto ao vinho, bebia água. Ao pagar no
caixa, onde se achava majestosamente sentada a senhora Rousseau,
naquela época ainda gorda e viçosa, dava um soldo ao garçom, e a senhora
Rousseau dava-lhe um sorriso. Depois ia embora. Por dezesseis soldos
tinha um sorriso e um jantar.
O restaurante Rousseau, onde se esvaziavam tão poucas garrafas de
vinho e tantas de água, era mais um calmante do que um restaurante. Já
não existe. O dono tinha um apelido interessante, chamavam-no de
Rousseau, o aquático.
Desse modo, almoço por quatro soldos, jantar por dezesseis, sua
alimentação custava-lhe vinte soldos por dia, o que dava trezentos e
sessenta e cinco francos por ano. Acrescentem-se os trinta francos de
aluguel e os trinta e seis francos que dava à velha, e mais algumas
despesas miúdas, por quatrocentos e cinquenta francos Marius estava
alimentado, alojado e servido. Seu vestuário lhe custava cem francos, as
outras roupas cinquenta francos, a lavadeira mais cinquenta, tudo não
passava de seiscentos e cinquenta francos. Sobravam-lhe cinquenta
francos. Era rico. Emprestava, se fosse necessário, dez francos a um
amigo; Courfeyrac pôde uma vez pedir-lhe emprestados sessenta francos.
Quanto ao aquecimento, como não tinha lareira, Marius o “simplificara”.
Marius tinha sempre dois costumes completos: um mais velho, “para
uso diário”, e outro novo, para as ocasiões especiais. Os dois eram pretos.
Tinha só três camisas: uma no corpo, outra na gaveta e a terceira na
lavadeira. Eram renovadas à medida que se estragavam. Habitualmente se
rasgavam, o que o obrigava a abotoar o casaco até o pescoço.
Para que Marius chegasse a essa situação florescente, foram
necessários anos. Anos rudes, uns difíceis de atravessar, outros de
transpor. Marius não cedeu um único dia. Suportou tudo em matéria de
privação; fez de tudo, menos contrair dívidas. Podia afirmar que jamais
ficara devendo um soldo a ninguém. Para ele, uma dívida era o começo de
uma escravidão. Dizia até que um credor é pior que um amo, porque um
amo apodera-se apenas de sua pessoa, mas um credor apodera-se de sua
dignidade e pode esbofeteá-la. Preferia não comer a pedir emprestado.
Passara muitos dias em jejum. Sentindo que todas as extremidades se
tocam e que, se não houver cautela, o rebaixamento das condições de vida
pode levar à baixeza de alma, velava ciosamente por seu orgulho. Tal
fórmula ou tal atitude, que em qualquer outra situação lhe teria parecido
uma deferência, via como algo indigno, e então se retraía. Não querendo
recuar, não se aventurava em nada. Tinha no rosto uma espécie de rubor
severo. Era tão tímido que chegava a ser grosseiro.
Em todas as suas provações, sentia-se encorajado, e às vezes até
mesmo impelido, por uma força secreta que tinha dentro de si. A alma
ajuda o corpo, e em certos momentos o eleva. É o único pássaro que
sustenta sua gaiola.
Ao lado do nome de seu pai, um outro nome estava gravado no coração
de Marius, o nome de Thénardier. Marius, com sua natureza entusiástica e
séria, cercava com uma espécie de auréola o homem a quem, em seu
pensamento, devia a vida de seu pai, o intrépido sargento que salvara o
coronel no meio das granadas e dos tiros em Waterloo. Não separava
nunca a recordação desse homem da recordação de seu pai, associando-as
em sua veneração. Era uma espécie de culto em dois altares, o mais alto
para o coronel, o mais baixo para Thénardier. O que redobrava a
intensidade de seu reconhecimento era a consciência do infortúnio em que
sabia ter caído Thénardier. Marius tomou conhecimento em Montfermeil
da ruína e da falência do infeliz estalajadeiro. Desde então fizera esforços
incríveis para seguir suas pegadas e tentar encontrá-lo no tenebroso
abismo em que Thénardier havia sumido. Marius percorreu toda a região;
foi a Chelles, a Bondy, a Gournay, a Nogent, a Lagny. Durante três anos,
agarrou-se a isso, gastando nessa procura o pouco dinheiro que
economizava. Ninguém sabia dar-lhe notícias de Thénardier; todos
acreditavam que tivesse ido para algum país estrangeiro. Seus credores
também o haviam procurado, com menos amor do que Marius, mas com a
mesma insistência, e não conseguiram colocar as mãos nele. Marius
acusava-se, e quase tinha rancor de si mesmo, de não ter êxito em suas
investigações. Era a única dívida que o coronel lhe deixara, e para Marius
era questão de honra pagá-la.
— Como — pensava —, quando meu pai jazia moribundo no campo de
batalha, Thénardier bem soube encontrá-lo em meio à fumaça e aos tiros e
carregá-lo nas costas, e nada lhe devia; e eu, que devo tanto a Thénardier,
será que não poderei encontrá-lo nessa escuridão em que agoniza e, por
minha vez, trazê-lo de volta da morte à vida? Oh! Hei de encontrá-lo.
Efetivamente, para encontrá-lo Marius daria um de seus braços, e para
tirá-lo da miséria daria todo o seu sangue. Ver Thénardier, prestar-lhe um
serviço qualquer, dizer-lhe: “O senhor não me conhece, mas eu o conheço!
Aqui estou, disponha de mim!” era o mais doce e magnífico sonho de
Marius.

III. MARIUS CRESCIDO


Nessa época, Marius tinha vinte anos. Havia três que saíra da casa de
seu avô. De ambas as partes, continuavam nos mesmos termos, sem tentar
uma reaproximação e sem procurar rever-se. Aliás, rever-se para quê?
Para se chocarem? Qual venceria a resistência do outro? Marius era o vaso
de bronze, mas Pai Gillenormand era o pote de ferro.
Devemos dizer que Marius enganara-se a respeito dos sentimentos de
seu avô. Imaginara que o senhor Gillenormand nunca o tivesse amado, e
que aquele homem seco, ríspido e risonho, que praguejava, gritava, se
enfurecia e ameaçava com a bengala, só nutria por ele, quando muito,
aquele tipo de afeição ao mesmo tempo superficial e severa dos Gerontes
de comédia. Marius se enganava. Há pais que não gostam de seus filhos;
não existe, no entanto, um só avô que não adore seu neto. No fundo, já
dissemos, o senhor Gillenormand idolatrava Marius. Idolatrava-o a seu
modo, com acompanhamento de invectivas e até de tapas; mas, com o
menino ausente, sentiu um vazio negro no coração. Exigiu que não lhe
falassem mais dele, lamentando no íntimo ser tão obedecido. Nos
primeiros tempos, esperou que o bonapartista, o jacobino, o terrorista, o
setembrista voltasse. Mas as semanas se passaram, os meses se passaram,
os anos se passaram, e para grande desespero do senhor Gillenormand o
bebedor de sangue não tornou a aparecer. “Mas eu não podia fazer outra
coisa senão expulsá-lo”, dizia-se o avô, e perguntava-se: “Se tivesse de
fazer tudo de novo, será que eu faria?” Seu orgulho imediato respondia
que sim, mas sua velha cabeça, que ele balançava em silêncio, respondia
tristemente que não. Sentia falta de Marius. Os velhos precisam de afeição
tanto quanto de sol. Afeição é calor. Por mais que tivesse uma forte
natureza, a ausência de Marius havia transformado alguma coisa dentro
dele. Por nada no mundo teria dado um passo em direção a “esse
moleque”; mas sofria. Nunca se informava sobre Marius, mas pensava
nele o tempo todo. Cada vez mais vivia retirado, no Marais. Ainda era,
como antigamente, alegre e violento, mas sua alegria tinha uma dureza
convulsiva, como se contivesse dor e cólera, e sua violência terminava
sempre por uma espécie de abatimento doce e sombrio. Às vezes dizia:
— Oh! Se ele voltasse, que belo tabefe eu lhe daria!
Quanto à tia, ela pensava muito pouco para poder amar muito; Marius
não era para ela mais que uma espécie de silhueta vaga e escura; e acabou
por ocupar-se dele muito menos do que do gato ou do papagaio que
provavelmente tinha.
O que aumentava o sofrimento secreto de Pai Gillenormand era o fato
de reprimi-lo completamente, não deixando nada transparecer. Sua mágoa
era como essas modernas fornalhas que queimam a própria fumaça. Às
vezes acontecia de lhe falarem desastrosamente de Marius e de lhe
perguntarem: “O que faz ou o que é feito de seu neto?”
O velho burguês respondia, suspirando, se estivesse muito triste, ou
sacudindo com um piparote o punho da casaca, se quisesse parecer alegre:
“O senhor barão Pontmercy advoga em algum canto por aí”.
Enquanto o velho lamentava, Marius aplaudia a si mesmo. A desgraça
tirara-lhe o ressentimento, como faz a todos os bons corações. Só pensava
no senhor Gillenormand com ternura, mas fazia questão de não receber
mais nada do homem que havia sido mau para seu pai. Agora, era essa a
tradução abrandada de suas primeiras indignações. Além disso, era feliz
por ter sofrido, e por ainda sofrer. Tudo por seu pai. A dureza de sua vida o
satisfazia e agradava. Dizia interiormente, com certa alegria, que aquilo
era de menos; que era uma expiação; que, sem aquilo, seria punido, de
outro modo e mais tarde, por sua ímpia indiferença para com seu pai, um
pai como aquele; que não seria justo que seu pai passasse por tanto
sofrimento e ele por nada; que, além disso, o que eram todos os seus
trabalhos e suas privações comparados à heroica vida do coronel? Que,
enfim, a única maneira de reaproximar–se e parecer-se com seu pai era ser
valente contra a indigência, assim como ele havia sido bravo contra o
inimigo, e que era sem dúvida isso que o coronel quisera dizer com as
palavras: será digno dele — palavras que Marius continuava a carregar,
não sobre o peito, já que o escrito do coronel desaparecera, mas dentro do
coração.
Além disso, no dia em que seu avô o expulsara de casa, ele era ainda
uma criança, ao passo que agora era um homem. Tinha consciência disso.
A miséria, repetimos, fora-lhe útil. A pobreza na juventude, quando
produz bons efeitos, tem de admirável fazer a vontade inteira voltar-se
para o esforço e a alma inteira para a aspiração. A pobreza põe logo a
descoberto a vida material, tornando-a medonha; daí os inexprimíveis
arroubos em direção a uma vida ideal. O jovem rico possui inúmeras
distrações brilhantes, mas grosseiras — as corridas de cavalo, a caça, os
cães, o tabaco, o jogo, a boa mesa e tudo o mais, ocupações dos baixos
instintos da alma, às custas dos elevados e delicados. O jovem pobre tem
dificuldade para conseguir seu pão. Depois que come, não tem nada além
de seus sonhos. Vai aos espetáculos gratuitos que Deus dá; contempla o
céu, o espaço, os astros, as flores, as crianças, a humanidade em meio à
qual sofre, a criação em meio à qual resplandece. Tanto contempla a
humanidade que vê a alma, tanto contempla a Criação que vê Deus. Sonha,
sente-se grande; torna a sonhar e sente-se terno. Do egoísmo do homem
que sofre passa à compaixão do homem que medita. Um admirável
sentimento brota nele, o esquecimento de si e a piedade para com todos.
Ao pensar nos inúmeros prazeres que a natureza oferece, dá e prodigaliza
às almas abertas e recusa às almas fechadas; o milionário de inteligência
chega a lastimar os milionários do dinheiro. Todo o ódio sai de seu
coração à medida que toda a clareza entra em seu espírito. Além disso, ele
seria infeliz? Não. A miséria de um jovem jamais é miserável. O primeiro
jovem que aparecer, por mais pobre que seja, com sua saúde, com sua
força, com seu caminhar ligeiro, seus olhos brilhantes, seu sangue quente
circulando, seus cabelos negros, seu rosto saudável, seus lábios róseos,
seus dentes brancos, seu hálito puro, sempre causará inveja a um velho
imperador. E então, cada manhã põe-se novamente a ganhar seu pão; e,
enquanto suas mãos ganham o pão, sua espinha dorsal ganha altivez, seu
cérebro ganha ideias. Terminado o trabalho, volta aos êxtases inefáveis, às
contemplações, às alegrias; vive com os pés nas aflições, nos obstáculos,
no chão, nos espinhos, às vezes na lama, mas com a cabeça na luz. É
firme, sereno, terno, pacífico, atento, sério, benévolo, fácil de contentar, e
bendiz a Deus por ter-lhe dado estas duas riquezas que faltam a muitos
ricos, o trabalho que o torna livre, e o pensamento que o torna digno.
Era isso o que se passara em Marius. Para dizer tudo, ele havia até
mesmo caído um pouco demais para o lado da contemplação. Desde o dia
em que chegara a ganhar sua vida mais ou menos em segurança, não
avançara mais, achando bom estar pobre, e reduzindo no trabalho para dar
mais ao pensamento. Quer dizer que, às vezes, passava dias inteiros
pensando, mergulhado e engolfado como um visionário nas mudas
voluptuosidades do êxtase e do esplendor interiores. Assim colocara o
problema de sua vida: trabalhar o menos possível o trabalho material para
trabalhar o mais possível o trabalho impalpável; em outras palavras, dar
algumas horas à vida real e lançar o resto ao infinito. Não percebia,
julgando não precisar de nada, que a contemplação assim compreendida
acabava por ser uma das formas da preguiça, que se contentava em
satisfazer as primeiras necessidades da vida e que descansava cedo
demais.
Era evidente que, para uma natureza enérgica e generosa como a dele,
este só poderia ser um estado transitório, e que, ao primeiro choque contra
as inevitáveis complicações do destino, Marius despertaria.
Enquanto isso, embora fosse advogado, e apesar do que pensava a esse
respeito Pai Gillenormand, não advogava, nem mesmo as causas de menor
importância. A meditação o afastara da advocacia. Lidar com
procuradores, ir ao tribunal, ler processos era aborrecido. A troco de quê?
Ele não via razão alguma para mudar de ganha-pão. Seu trabalho naquela
livraria interesseira e obscura era seguro e de pouco labor, o que, como
acabamos de explicar, lhe bastava.
Um dos livreiros para quem trabalhava, senhor Magimel, creio,
oferecera-lhe recebê-lo em sua casa e bem alojá-lo, fornecer-lhe um
trabalho regular e dar-lhe mil e quinhentos francos por ano. Ter boa casa!
Mil e quinhentos francos! Sem dúvida seria bom. Mas renunciar à sua
liberdade! Ser um assalariado! Uma espécie de homem de letras
escriturário! No pensamento de Marius, se aceitasse, sua posição ficaria
melhor e pior ao mesmo tempo; ganhava em bem-estar e perdia em
dignidade; seria uma desgraça completa e bela se transformando em um
constrangimento feio e ridículo; algo como um cego que se tornasse
vesgo. Recusou.
Marius vivia solitário. Pelo gosto que tinha de permanecer fora de
tudo, e também por ter ficado um tanto assustado, decididamente não
entrara para o grupo presidido por Enjolras. Eram bons camaradas;
estavam prontos a se ajudarem mutuamente, se fosse preciso, de todas as
formas possíveis, mas nada mais. Marius tinha dois amigos, um jovem,
Courfeyrac; outro velho, senhor Mabeuf. Pendia mais para o velho.
Primeiro porque lhe devia a revolução que nele se produzira, segundo
porque a ele devia ter conhecido e amado seu pai. Ele operou-me a
catarata, dizia.
Com efeito, o tesoureiro fora decisivo.
No entanto, não é que o senhor Mabeuf tivesse sido naquela ocasião
algo mais do que o sereno e impassível agente da Providência. Esclarecera
Marius por acaso e sem saber, como faz a vela que alguém segura; ele fora
a vela, não o alguém.
Quanto à revolução política interna de Marius, o senhor Mabeuf era
completamente incapaz de a compreender, de a desejar e de a dirigir.
Como mais tarde reencontraremos o senhor Mabeuf, algumas palavras
não serão inúteis.

IV. SENHOR MABEUF


Quando o senhor Mabeuf dizia a Marius: Certamente aprovo as
opiniões políticas, exprimia o verdadeiro estado de seu espírito. Todas as
opiniões políticas eram-lhe indiferentes, e ele aprovava todas sem
distinção para que elas o deixassem sossegado, fazendo isso como os
gregos, que chamavam as Fúrias de “as belas, as boas, as encantadoras”, as
Eumênides.
A opinião política do senhor Mabeuf consistia em amar
apaixonadamente as plantas e sobretudo os livros. Tinha, como todo o
mundo, sua terminação em ista, sem a qual ninguém podia viver naquele
tempo, mas não era nem realista, nem bonapartista, nem cartista, nem
orleanista, nem anarquista; era alfarrabista.
Não compreendia que os homens se ocupassem de odiar-se por causa
de sensaborias tais como a Carta, a democracia, a legitimidade, a
monarquia, a república, etc., quando neste mundo havia uma variedade
imensa de musgos, de ervas e arbustos que podiam contemplar, e tantos
in-fólios e livros em formato 32 que podiam folhear. Resguardava-se
muito de estar inútil; ter livros não o impedia de ler, ser botânico não o
impedia de ser jardineiro. Quando conheceu Pontmercy, deu-se entre ele e
o coronel esta simpatia: o que o coronel fazia pelas flores, ele o fazia pelos
frutos. O senhor Mabeuf chegara a produzir peras de sementeiras tão
saborosas como as de Saint-Germain; foi de uma de suas combinações que
nasceu, ao que parece, a mirabela de outubro, célebre hoje em dia, e não
menos perfumada que a mirabela de verão. Ia à missa mais por brandura
de caráter do que por devoção, e também porque, gostando dos semblantes
dos homens, mas detestando o barulho que fazem, só na igreja os
encontrava reunidos e silenciosos. Sentindo que era preciso ser alguma
coisa no Estado, escolhera a carreira de tesoureiro. De resto, nunca
conseguira amar mulher alguma tanto quanto um bulbo de tulipa, nem
homem algum tanto quanto a um elzevir. Havia muito que passara dos
sessenta anos, quando alguém um dia lhe perguntou: “O senhor nunca se
casou?”
— Esqueci-me — disse ele.
Quando lhe ocorria alguma vez — a quem isso não ocorre? — de
dizer: “Ah! Se eu fosse rico!”, não era ao olhar para alguma bela moça,
como fazia o senhor Gillenormand, mas ao contemplar algum livro.
Mabeuf vivia só, em companhia de uma velha governanta. Padecia um
pouco com a gota e, quando dormia, seus velhos dedos ancilosados pelo
reumatismo se retesavam nas dobras dos lençóis. Mabeuf compilara e
publicara uma Flora dos Arredores de Cauteretz, com estampas coloridas,
obra bastante estimada, cujas chapas conservava, e que ele próprio vendia.
Duas ou três vezes por dia batiam em sua casa, na rua Mézières, por esse
motivo. Tirava daí uns dois mil francos por ano; essa era quase toda a sua
fortuna. Embora pobre, tivera a habilidade de formar, à força de paciência,
de privações e de tempo, uma preciosa coleção de exemplares raros de
todos os gêneros. Não saía nunca sem um livro debaixo do braço, e com
muita frequência voltava com dois. A única decoração dos quatro
aposentos ao rés do chão que, com um pequeno jardim, compunham sua
morada, eram herbários emoldurados e gravuras de antigos mestres. A
visão de uma espada ou de um fuzil o congelava. Em toda a sua vida,
nunca se aproximara de um canhão, nem mesmo em Invalides. Tinha um
estômago razoável, um irmão abade, os cabelos totalmente brancos, nem
mais um dente, nem na boca nem no espírito, um tremor em todo o corpo,
o sotaque picardo, um riso infantil, um ar de carneiro velho, e facilmente
se atemorizava. Além disso, não tinha outra amizade ou outra relação
entre os vivos a não ser com um livreiro da porta Saint-Jacques, chamado
Royol. Seu sonho era naturalizar o anil na França.
Sua criada era, ela também, uma variedade da inocência. A pobre velha
era virgem. Sultan, seu gato, que podia miar o Miserere de Allegri na
Capela Sistina, enchera-lhe o coração e era suficiente para a quantidade de
paixão que havia dentro dela. Nenhum de seus sonhos tinha chegado até o
homem. Nunca conseguira ir além de seu gato. Tinha, como ele, bigodes.
Sua glória estava em suas toucas sempre brancas. Aos domingos, depois
da missa, passava o tempo contando sua roupa branca, que ficava em um
baú, e estendendo sobre a cama vestidos em peça que comprava e nunca
mandava fazer. Ela sabia ler. O senhor Mabeuf dera-lhe o apelido de Mãe
Plutarque.
O senhor Mabeuf tomara afeição por Marius, porque Marius, sendo
jovem e afável, reanimava-lhe a velhice sem alarmar sua timidez. A
mocidade acompanhada de ternura produz nos velhos o efeito do sol sem o
vento.
Quando Marius se saturava de glória militar, de pólvora, de marchas e
contra marchas, e de todas as prodigiosas batalhas em que seu pai dera e
recebera tão grandes golpes de sabre, ia visitar o senhor Mabeuf, e o
senhor Mabeuf falava-lhe do herói do ponto de vista das flores.
Por volta de 1830, seu irmão abade morreu, e quase imediatamente,
como quando a noite chega, todo o horizonte tornou-se sombrio para o
senhor Mabeuf. A falência de um tabelião tirou-lhe uma quantia de dez
mil francos, que era tudo que possuía sob responsabilidade sua e de seu
irmão. A revolução de julho levou a uma crise no comércio de livros. Em
tempos críticos, a primeira coisa que se deixa de vender é uma Flora. A
Flora dos Arredores de Cauteretz parou subitamente de vender. Passavam-
se semanas sem aparecer um comprador. Às vezes, o senhor Mabeuf
estremecia a um toque de campainha. Mãe Plutarque lhe dizia tristemente:
“Senhor, é o vendedor de água”. Em suma, um dia o senhor Mabeuf deixou
a rua Mézières, abdicou das funções de tesoureiro, renunciou a Saint-
Sulpice, vendeu uma parte, não de seus livros, mas de suas estampas, algo
de que fazia menos questão, e foi estabelecer-se em uma casinha do
bulevar Montparnasse, onde, todavia, morou apenas um trimestre, por
duas razões: primeira, porque o andar térreo e o jardim custavam trezentos
francos, e ele não ousava gastar mais do que duzentos de aluguel; segundo,
porque era vizinho do tiro Fatou, e ouvia disparos de pistola, o que lhe era
insuportável.
Levou sua Flora, suas chapas, seus herbários, seus fichários e seus
livros, e foi estabelecer-se perto da Salpêtrière, em uma espécie de
choupana da vila de Austerlitz, onde, por cinquenta escudos anuais, tinha
três salas e um jardim fechado por uma sebe e um poço. Aproveitou-se da
mudança para vender quase todos os seus móveis. No dia em que entrou
nessa nova casa, ficou muito alegre, e pregou, ele mesmo, os pregos para
pendurar as gravuras e os herbários, cuidou de seu jardim o resto do dia, e,
à noite, vendo Mãe Plutarque com ar triste e pensativo, bateu-lhe no
ombro e disse-lhe, sorrindo:
— Ah! Nós temos o anil!
Apenas dois visitantes, o livreiro da porta Saint-Jacques e Marius,
podiam vê-lo em sua choupana de Austerlitz, nome bombástico que, para
dizer a verdade, lhe era bastante desagradável.
De resto, como acabamos de indicar, os cérebros absorvidos em uma
sabedoria, ou em uma loucura, ou, o que é muito frequente, nas duas
coisas ao mesmo tempo, apenas lentamente se tornam permeáveis às
coisas da vida. Seu próprio destino lhes é distante. Resulta dessas
concentrações uma passividade que, se fosse razoável, pareceria com a
filosofia. O indivíduo declina, desce, exaure-se, abate-se, sem muito dar-
se conta. Isso acaba sempre, é verdade, por um despertar, porém tardio.
Enquanto isso, parece que se conserva neutro no jogo que é jogado entre
sua felicidade e sua infelicidade. É ele que está em jogo, mas olha a
partida com indiferença.
Foi assim que, através da escuridão que se espessava em seu redor,
com todas as suas esperanças minguando, uma após a outra, o senhor
Mabeuf permaneceu sereno, de forma um tanto pueril, mas muito
profunda.
Os hábitos do seu espírito tinham o movimento oscilatório de um
pêndulo. Uma vez elevado por uma ilusão, trabalhava por muito tempo,
mesmo quando a ilusão já tivesse desaparecido. Um relógio não para
repentinamente, no preciso momento em que perdemos sua chave.
O senhor Mabeuf tinha prazeres inocentes. Esses prazeres eram pouco
custosos e inesperados; o menor acaso os propiciava.
Um dia, Mãe Plutarque lia um romance a um canto do quarto. Fazia-o
em voz alta, parecendo-lhe que assim compreendia melhor. Ler em voz
alta é afirmar a si mesmo o que se lê. Há pessoas que leem em voz alta e
que parecem dar-se sua palavra de honra sobre o que estão lendo.
Mãe Plutarque lia com essa energia o romance que tinha nas mãos. O
senhor Mabeuf ouvia sem escutar. Enquanto lia, chegou à frase que segue.
Tratava-se de um oficial dos dragões e de uma jovem:
“…La belle bouda, e le dragon…”1
E parou nesse ponto para limpar os óculos.
— Buda e o Dragão, repetiu a meia voz o senhor Mabeuf. Isso é
verdade; havia um dragão que, do fundo de sua caverna, lançava chamas
pela boca e queimava o céu. Várias estrelas já haviam sido incendiadas por
esse monstro, que, além disso, tinha garras de tigre. Buda entrou na
caverna e conseguiu converter o dragão. É um bom livro, esse que está
lendo, Mãe Plutarque. Não há lenda mais bonita.
Então o senhor Mabeuf caiu em uma deliciosa divagação.

V. POBREZA, BOA VIZINHA DA MISÉRIA


Marius gostava desse velhinho inocente que lentamente via-se
alcançado pela indigência, e que chegava pouco a pouco a se admirar, mas
não ainda a se entristecer.
Marius encontrava-se com Courfeyrac e procurava o senhor Mabeuf.
Mas muito raramente, uma ou duas vezes por mês, quando muito.
O prazer de Marius era fazer longos passeios solitários pelas bulevares
exteriores, ou pelo Champ-de-Mars, ou pelas alamedas menos
frequentadas do Luxemburgo. Às vezes, passava uma tarde inteira olhando
para uma horta, para os canteiros de verdura, para as galinhas ciscando ou
para um cavalo girando a roda do engenho. Quem passava o considerava
com surpresa, e alguns julgavam sua postura suspeita e sua aparência
sinistra. Não era mais do que um jovem pobre divagando ao acaso.
Foi em um desses passeios que descobriu o casebre Gorbeau; o
isolamento e o baixo preço foram tentadores, então foi morar ali. Ali era
conhecido apenas pelo nome de senhor Marius.
Alguns dos antigos generais ou dos antigos camaradas de seu pai,
quando o conheceram, convidaram-no a visitá-los. Marius não recusara.
Eram oportunidades para falar de seu pai. Assim, de tempos em tempos ia
visitar o conde Pajol, o general Bellavesne, o general Fririon, em
Invalides. Havia música, dançava-se. Nessas noites, Marius vestia seu
costume novo. Mas nunca ia a tais saraus nem a tais bailes senão nos dias
muito gélidos, porque não podia pagar uma carruagem e queria chegar
com as botas parecendo espelhos.
Às vezes dizia, mas sem amargura:
— Os homens são desse jeito, em um salão pode-se estar todo
enlameado, exceto o calçado. Para sermos bem acolhidos ali, nos pedem
uma só coisa irrepreensível: a consciência? Não, as botas.
Todas as paixões, que não as do coração, se dissipam na divagação. Foi
assim que as febres políticas de Marius se desvaneceram. A revolução de
1830 contribuiu para isso, satisfazendo-o e acalmando-o. Ele era o mesmo
de antes, exceto por suas iras. Continuava com as mesmas opiniões,
apenas elas haviam-se abrandado. A rigor, não tinha mais opiniões, tinha
simpatias. De que partido era? Do partido da humanidade. Na humanidade,
escolhia a França; na nação, escolhia o povo; no povo, escolhia a mulher.
Era sobretudo em direção a ela que sua compaixão tendia. No momento,
preferia uma ideia a um fato, um poeta a um herói, e admirava mais ainda
um livro como o de Jó do que um acontecimento como Marengo. Além
disso, quando, após um dia de meditação, voltava à noite pelas alamedas, e
por entre os galhos das árvores divisava o espaço sem fim, os clarões sem
nome, o abismo, a escuridão, o mistério, tudo o que é simplesmente
humano parecia-lhe bem pequeno.
Ele supunha ter, e talvez tivesse efetivamente, atingido a realidade da
vida e da filosofia humana, chegando por fim a não contemplar senão o
céu, única coisa que a verdade pode ver do fundo de seu poço.
Isso não o impedia de multiplicar os planos, as combinações, os
encadeamentos de ideias, os projetos de futuro. Nesse estado de divagação,
um olhar que fosse lançado para o interior de Marius teria ficado
maravilhado com a pureza daquela alma. De fato, se fosse dado a nossos
olhos de carne enxergar a consciência alheia, julgaríamos bem mais
seguramente um homem por seus devaneios do que por seus pensamentos.
Existe vontade no pensamento, mas não existe no devaneio. O devaneio,
que é absolutamente espontâneo, toma e conserva, mesmo no gigantesco e
no ideal, a figura de nosso espírito. Nada sai mais diretamente e mais
profundamente lá do fundo de nossa alma do que nossas aspirações
irrefletidas e desmesuradas em relação aos esplendores do destino. Nessas
aspirações, muito mais do que nas ideias formadas, discutidas e
coordenadas, é que se pode descobrir o verdadeiro caráter de cada homem.
Nossas quimeras são o que mais se assemelha a nós. Cada um sonha com o
desconhecido e o impossível conforme sua natureza.
Em meados do ano de 1831, a senhora que servia Marius contou-lhe
que iam despejar seus vizinhos, o miserável casal Jondrette. Marius, que
passava quase todos os dias fora, mal sabia que tinha vizinhos.
— Por que os estão despejando? — disse ele.
— Porque não pagam o aluguel, devem dois meses.
— Quanto é?
— Vinte francos — disse a velha.
Marius tinha trinta francos de reserva em uma gaveta.
— Tome — disse à velha —, aí tem vinte e cinco francos. Pague por
essa pobre gente, dê-lhes os cinco francos e não diga que fui eu.

VI. O SUBSTITUTO
O acaso fez com que o regimento em que Théodule era tenente viesse
aquartelar-se em Paris. Isso deu oportunidade a uma segunda ideia de tia
Gillenormand. Ela havia, da primeira vez, imaginado fazer Marius ser
vigiado por Théodule; agora tramava fazer de Théodule sucessor de
Marius.
Em todo caso, e para o caso em que o avô tivesse uma vaga
necessidade de um rosto jovem em casa, pois esses raios de aurora são às
vezes benignos para as ruínas, era conveniente arranjar outro Marius. “Que
seja”, pensou ela, “é uma simples errata, como as que vejo nos livros;
Marius, leia-se Théodule”.
Um sobrinho é quase um neto; na falta de um advogado, serve um
lanceiro.
Uma manhã em que o senhor Gillenormand lia alguma coisa como la
Quotidienne, sua filha entrou e disse-lhe com sua voz mais meiga, pois
tratava-se de seu favorito:
— Meu pai, Théodule virá esta manhã apresentar-lhe seus respeitos.
— Que Théodule?
— Seu sobrinho.
— Ah! — exclamou o avô.
E voltou a ler, nem pensou mais no tal sobrinho, que era só um
Théodule qualquer, e não demorou a irritar-se bastante, o que lhe
acontecia toda vez que lia. A “folha” que tinha na mão, realista, nem é
preciso dizer, anunciava para o dia seguinte, sem delicadeza alguma, um
dos acontecimentos cotidianos da Paris de então: que os estudantes da
Escola de Direito e de Medicina deveriam reunir-se na praça do Panthéon
ao meio-dia, para deliberar. Tratava-se de uma das questões do momento,
da artilharia da Guarda Nacional, e de um conflito entre o Ministério da
Guerra e a “milícia cívica”, a respeito de canhões estacionados no pátio do
Louvre. Os estudantes deveriam deliberar sobre isso. Não era preciso
muito mais para exaltar o senhor Gillenormand.
Pensou em Marius, que era estudante, e que provavelmente iria, como
os outros, “deliberar, ao meio-dia, na praça do Panthéon”.
Quando estava nesse pensamento doloroso, o tenente Théodule entrou,
vestido à paisana, o que era inteligente, discretamente introduzido pela
senhorita Gillenormand. O lanceiro fizera o seguinte raciocínio: “O velho
druida não colocou tudo em renda vitalícia. Vale a pena disfarçar-me de
paisano de tempos em tempos”.
A senhorita Gillenormand disse a seu pai em voz alta:
— Théodule, seu sobrinho.
E disse em voz baixa para o tenente:
— Concorde com tudo.
E retirou-se.
O tenente, pouco acostumado com encontros tão veneráveis, balbuciou
com alguma timidez:
— Bom dia, meu tio — e fez uma saudação mista, composta do esboço
involuntário e maquinal da continência militar terminada como saudação
burguesa.
— Ah, é você! Está bem, sente-se — disse o avô. Dito isso, esqueceu-
se completamente do lanceiro.
Théodule sentou-se e o senhor Gillenormand levantou-se. Pôs-se a
andar de um lado para o outro, as mãos nos bolsos, falando alto e
apertando nos velhos dedos irritados os dois relógios que tinha em seus
dois bolsos.
— Esse bando de fedelhos! Que se convocam para a praça do
Panthéon! Ora essa! Pirralhos que ainda ontem mamavam! Mal saíram das
fraldas! E vão deliberar amanhã ao meio-dia! Onde vamos parar! Onde
vamos parar! Está claro que caminhamos para o abismo! Foi para onde nos
conduziram os descamisados! Artilharia cívica! Deliberar sobre a
artilharia cívica! Ir tagarelar ao ar livre sobre o barulho da Guarda
Nacional! E com quem eles vão se misturar! Vejam até onde pode levar o
jacobinismo! Aposto tudo que quiserem, um milhão contra qualquer coisa,
que ali só vai ter gente que já passou por condenações e forçados
liberados. Republicanos e forçados, são farinha do mesmo saco. Carnot
dizia: “Para onde queres que eu vá, traidor?” E Fouché respondia: “Para
onde quiseres, imbecil”. Assim são os republicanos.
— Exato — disse Théodule.
O senhor Gillenormand voltou um pouco a cabeça, viu Théodule e
continuou:
— Quando penso que aquele patife teve a pouca-vergonha de se tornar
carbonário! Por que saiu de minha casa? Para ir tornar-se republicano.
Pssst! Primeiro, o povo não quer saber da sua república, não quer, porque
tem bom senso, porque sabe que sempre houve reis e que sempre os
haverá, porque sabe que o povo, afinal de contas, é só o povo; ele zomba
da sua república, está ouvindo, cretino! É horrível o bastante, este
capricho? Tomar-se de paixão pelo Père Duchêne, olhar com ternura para a
guilhotina, cantar romanças e tocar violão sob as janelas de 1793, dá
vontade de cuspir em todos esses jovens, de tanto que são tolos! Todos eles
são. Nem um só escapa. Basta respirar o ar que circula na rua para que se
fique insensato. O século XIX é um veneno. Qualquer moleque deixa
crescer sua barba de bode, pensa que é realmente um esperto e deixa os
velhos para lá. É republicano, é romântico. Que vem a ser isso, romântico?
Façam o favor de me dizer o que é isso. Todas as loucuras possíveis. Há
um ano, tudo era Hernani. Pergunto a vocês, Hernani? Antíteses! Coisas
abomináveis que sequer são escritas em francês. E, ainda por cima, há
canhões no pátio do Louvre. Assim são as pilhagens dos tempos atuais.
— Tem razão, meu tio — disse Théodule.
O senhor Gillenormand continuou:
— Canhões no pátio do Museu! Para quê? Canhão, o que quer? Então
quer metralhar o Apolo de Belvedere? Que têm a ver os cartuchos com a
Vênus de Médici? Oh! Estes rapazes de agora são todos uns patifes! Que
grande coisa seu Benjamin Constant! E os que não são celerados são uns
patetas! Fazem tudo o que podem para ficarem feios; andam mal trajados,
têm medo das mulheres, em volta delas assumem tal ar de mendigar que
fazem gargalhar as moças; palavra de honra que parecem os pobres
envergonhados do amor. São disformes e estúpidos. Repetem os
trocadilhos de Tiercelin e de Potier; usam casacos-sacos, coletes de lacaio,
camisas de tecido grosseiro, calças de fazenda grosseira, botas de couro
grosseiro. Seria possível usar seu jargão como sola de seus chinelos. E
toda essa inepta criançada quer ter opiniões políticas. Devia ser duramente
proibido ter opiniões políticas. Eles fabricam sistemas, refazem a
sociedade, destroem a monarquia, jogam por terra todas as leis, colocam o
sótão no lugar do porão e meu porteiro no lugar do rei, reviram
completamente a Europa, reedificam o mundo, e julgam grande fortuna
ver sorrateiramente as pernas das lavadeiras quando sobem nas
carruagens! Ah! Marius! Ah! Vagabundo! Ir vociferar em praça pública!
Discutir, debater, tomar medidas! Eles chamam aquilo de medidas, meu
Deus! A desordem perde importância e se torna tola! Já vi o caos, agora
vejo o atoleiro. Estudantes deliberando sobre a Guarda Nacional, isso não
seria visto nem entre os ogibewas nem entre os cadodaches! Os selvagens
que andam completamente nus, com a cabeça enfeitada como uma peteca
e com uma clava na mão, são menos brutos do que esses bacharéis.
Fedelhos de meia pataca! Fazem-se de entendidos e de manda-chuvas!
Deliberam e raciocinam! É o fim do mundo! Evidentemente, é o fim deste
miserável globo terráqueo. Faltava um soluço final; a França o produz.
Deliberem, meus patifes! Essas coisas ocorrerão enquanto eles lerem os
jornais sob as arcadas do Odéon. Isso lhes custa um soldo, e seu bom
senso, e sua inteligência, e seu coração, e sua alma, e seu espírito. Saem de
lá e vão-se embora de suas famílias. Todos os jornais são uma peste; todos,
mesmo o Drapeau Blanc! No fundo, Martainville era um jacobino. Ah!
Justo céu! Você vai poder gabar-se de ter desesperado seu avô!
— Isso é evidente — disse Théodule.
E, aproveitando que o senhor Gillenormand tomava fôlego, o lanceiro
acrescentou magistralmente:
— Não deveria existir outro jornal além do Moniteur, nem outro livro
além do Anuário Militar.
O senhor Gillenormand prosseguiu:
— É como o tal Sieyès! Um regicida que acaba como senador! Pois é
sempre por aí que eles acabam. Injuriam-se tratando-se por você para
afinal fazerem-se tratar por “senhor conde”. Grande senhor conde,
assassinos de setembro! O filósofo Sieyès! Faço-me a justiça de nunca ter
dado mais importância às filosofias de todos esses filósofos do que aos
óculos do palhaço de Tivoli. Um dia vi passar os senadores pelo cais
Malaquais, com capas de veludo roxo, semeadas de abelhas, e com
chapéus à Henrique IV. Eram medonhos. Pareciam os macacos da corte do
tigre. Cidadãos, vos declaro que vosso progresso é uma loucura, que vossa
humanidade é um devaneio, que vossa revolução é um crime, que vossa
república é um monstro, que vossa jovem França donzela sai do lupanar, e
assevero a todos, quem quer que sejais, publicistas, economistas, legistas
ou mais conhecedores de liberdade, igualdade e fraternidade do que o
gume da guilhotina! É o que vos digo, meus camaradas!
— Muito bem — exclamou o tenente —, isso é admiravelmente
verdadeiro.
O senhor Gillenormand interrompeu um gesto que ia a fazer, voltou-se,
olhou fixamente para o lanceiro e lhe disse:
— Você é um imbecil.

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1 “…A bela enfezou-se, e o dragão…” — em francês, as palavras bouda e Bouddha (Buda)
têm a mesma pronúncia.
LIVRO VI
A CONJUNÇÃO DE DUAS ESTRELAS

I. O APELIDO: MODO DE FORMAÇÃO DOS NOMES


DE FAMÍLIA
NESSA ÉPOCA, Marius era um belo jovem de estatura mediana, espessos
cabelos negros, fronte alta e inteligente, narinas abertas e apaixonadas, ar
sincero e calmo, e todo o seu semblante tinha algo de altivo, pensativo e
inocente. Seu perfil, cujas linhas eram arredondadas sem que deixassem de
ser firmes, possuía a doçura germânica, que penetrou na fisionomia
francesa pela Alsácia e pela Lorena, e a completa ausência de ângulos, que
tornava os Sicambros tão reconhecíveis entre os romanos, e que distingue
a raça leonina da raça aquilina. Ele estava na estação da vida em que o
espírito dos homens pensativos se compõe, quase em proporções iguais, de
gravidade e singeleza. Ocorrendo uma situação grave, ele tinha tudo o que
era necessário para ser estúpido; uma volta a mais na chave, e ele podia
ser sublime. Suas maneiras eram reservadas, frias, polidas, pouco
expansivas. Como tinha uma linda boca, com os lábios mais vermelhos e
os dentes mais brancos do mundo, seu sorriso corrigia tudo o que sua
fisionomia tinha de severa. Em certos momentos, um singular contraste se
fazia entre aquela fronte casta e aquele sorriso voluptuoso. Marius tinha os
olhos pequenos, mas o olhar grande.
No tempo em que passara pela pior miséria, ele percebia que as moças
se voltavam quando ele passava, e então fugia ou se escondia,
profundamente envergonhado. Pensava que olhavam para ele por causa de
suas roupas velhas, que riam disso; mas a verdade era que se voltavam
porque o achavam gracioso e sonhavam com ele.
Esse mudo equívoco entre ele e as belas transeuntes o tornou arredio.
Não escolheu nenhuma delas pela excelente razão de fugir diante de todas.
Assim viveu por muito tempo, estupidamente, dizia Courfeyrac.
Courfeyrac dizia-lhe também:
— Não almeje ser venerável (os dois tratavam-se por você, tendência
normal entre as jovens amizades). Um conselho, meu caro. Não leia tanto
nos livros e olhe um pouco mais para as mulheres. Elas têm o que é bom, ô
Marius! À força de fugir e de enrubescer, você acabará se embrutecendo.
Outras vezes Courfeyrac o encontrava e lhe dizia:
— Bom dia, senhor padre.
Quando Courfeyrac lhe falava coisas desse gênero, Marius passava uns
oito dias evitando, mais do que nunca, as mulheres, jovens ou velhas, e
acima de tudo evitando Courfeyrac.
No entanto, havia entre toda a imensa criação duas mulheres de quem
Marius não fugia e às quais não prestava atenção. Na verdade, muito o
espantariam se lhe dissessem que tratavam-se de mulheres. Uma era a
velha barbuda que limpava seu quarto e que fazia Courfeyrac dizer:
“Vendo que sua criada usa barbas, Marius não usa as dele”.
A outra era uma menina que ele via com frequência, mas para quem
nunca olhava.
Havia mais de um ano que Marius notava, em uma alameda deserta do
Luxemburgo, a que corre paralela ao parapeito da Pépinière, um homem e
uma garotinha quase sempre sentados lado a lado no mesmo banco, na
extremidade mais solitária da alameda, para o lado da rua de l’Ouest. Toda
vez que o acaso, que se intromete nos passeios das pessoas voltadas para
seu interior, conduzia Marius àquela alameda, o que acontecia quase todos
os dias, ele encontrava aquele par. O homem poderia ter uns sessenta anos;
parecia triste e sério; sua figura oferecia o aspecto robusto mas cansado de
gente de guerra já fora de serviço. Se ele tivesse recebido alguma
condecoração, Marius diria: é um antigo oficial. Parecia bondoso, mas
inacessível, e nunca fixava seu olhar no olhar de ninguém. Vestia calças
azuis, uma casaca azul e um chapéu de abas largas, que ainda pareciam
novos, uma gravata preta e uma camisa de quacre, quer dizer, de
deslumbrante brancura, mas de tecido grosso. Um dia, uma costureirinha
que passava por ele disse: “Isso é que é um viúvo muito asseado”. Ele
também tinha os cabelos muito brancos.
A primeira vez que a garota que o acompanhava veio sentar-se com
ele, no banco que pareciam ter adotado, era uma jovem de treze ou catorze
anos, magra, a ponto de ser quase feia, desajeitada, insignificante, mas que
prometia talvez ter olhos bastante belos. Só que estavam sempre erguidos
com uma espécie de confiança desagradável. Vestia-se de um modo ao
mesmo tempo antiquado e infantil das internas de um convento, um
vestido mal cortado de grosseiro merino preto. Pareciam ser pai e filha.
Marius examinou por dois ou três dias esse homem idoso, que ainda
não era um velho, e essa jovenzinha, que ainda não era uma pessoa, e
depois não prestou mais nenhuma atenção a eles. De sua parte, pareciam
nem sequer tê-lo visto. Conversavam de forma tranquila e indiferente. A
jovem tagarelava sem parar, e alegremente. O homem falava pouco e, por
instantes, lançava sobre ela olhares cheios de inefável paternidade.
Marius habituara-se maquinalmente a passear naquela alameda;
invariavelmente encontrava-os ali.
Eis como a coisa se passava:
Marius chegava de preferência pela extremidade da alameda oposta ao
banco que ocupavam. Caminhava por toda a extensão da alameda, passava
diante deles, depois voltava até a extremidade por onde viera, e
recomeçava. Fazia esse vaivém cinco ou seis vezes em cada passeio, e
fazia esse passeio cinco ou seis vezes por semana, sem que chegassem,
essas pessoas e ele, a trocar uma única saudação. O homem e a jovem, o
que quer que parecessem, e talvez porque pareciam evitar os olhares,
tinham, naturalmente, despertado a atenção dos cinco ou seis estudantes
que, de tempos em tempos, passeavam ao longo da Pépinière, os
estudiosos, depois de suas aulas, e os outros, depois de sua partida de
bilhar. Courfeyrac, que era um desses últimos, os observara por algum
tempo, mas, achando a jovem feia, bem rápida e cuidadosamente afastara-
se. Fugira disparando-lhes um apelido. Impressionado somente pelo
vestido da jovem e pelos cabelos do velho, chamou a moça de senhorita
Lanoire e o pai de senhor Leblanc,1 de modo que, como ninguém os
conhecia, e na ausência do nome, o apelido pegou. Os estudantes diziam:
“Ah! O senhor Leblanc está no seu banco!” e Marius, como os outros,
achou cômodo chamar aquele homem desconhecido de senhor Leblanc.
Faremos como eles, e também diremos senhor Leblanc para facilidade
desta narrativa.
Marius os viu assim quase todos os dias, à mesma hora, durante o
primeiro ano. Achava o homem simpático, mas a jovem bastante
desagradável.

II. LUX FACTA EST2


No segundo ano, exatamente no ponto desta história a que chegou o
leitor, ocorreu que o hábito de ir ao Luxemburgo foi interrompido, sem
que o próprio Marius soubesse bem por que, e ele passou seis meses sem
colocar os pés em sua alameda. Um dia, enfim, ali retornou. Era uma
serena manhã de verão, e Marius estava alegre como acontece a todos
quando o tempo está belo. Parecia-lhe que tinha dentro do coração todos
os cantos dos pássaros que ouvia e todos os bocados do céu azul que via
por entre as folhas das árvores.
Foi diretamente à “sua alameda”, e, chegando à extremidade, avistou,
sempre no mesmo banco, o casal conhecido. Só que, ao aproximar-se,
achou que se tratava do mesmo homem, mas pareceu-lhe que não era mais
a mesma jovem. A pessoa que via agora era uma esbelta e linda criatura,
com as formas mais encantadoras da mulher naquela fase precisa em que
ainda se combinam com todas as mais ingênuas graças da criança;
momento fugitivo e puro que só pode ser traduzido por estas duas
palavras: quinze anos. Eram maravilhosos cabelos castanhos matizados de
veios dourados; um rosto que parecia feito de mármore; faces que
pareciam feitas com duas pétalas de rosa, de um encarnado pálido; uma
brancura impressionante; uma boca delicada de onde o sorriso saía como
um clarão e as palavras como uma música; uma cabeça que Rafael teria
dado a Maria, sobre um pescoço que Jean Goujon teria dado a Vênus. E,
para que nada faltasse a essa figura encantadora, o nariz não era bonito,
era lindo; nem reto nem adunco, nem italiano nem grego; era o nariz
parisiense, quer dizer, algo de espiritual, de fino, de irregular e de puro,
que desespera os pintores e encanta os poetas.
Quando Marius passou por ela, não pôde ver seus olhos, que estavam
constantemente baixos. Viu apenas seus longos cílios castanhos,
impregnados de sombra e pudor.
O que não impedia a bela moça de sorrir ao escutar o homem de
cabelos brancos que lhe falava; e nada era mais encantador que esse fresco
sorriso com olhos abaixados.
No primeiro momento, Marius pensou tratar-se de uma outra filha do
mesmo homem, provavelmente uma irmã da primeira. Porém, quando o
invariável costume de passear o levou pela segunda vez perto daquele
banco e ele pôde examinar com atenção, reconheceu que era a mesma. Em
seis meses, a menina tornara-se uma moça; eis a explicação. Nada é mais
frequente do que esse fenômeno. Há um momento em que as meninas
desabrocham num piscar de olhos, e de repente transformam-se em rosas.
Ontem as deixamos crianças, hoje as encontramos inquietadoras.
Esta não havia apenas crescido, havia-se idealizado. Assim como três
dias de abril bastam para que certas árvores se cubram de flores, seis
meses foram-lhe suficientes para que se cobrisse de beleza. Um abril só
dela havia chegado.
Veem-se às vezes pessoas que, pobres e mesquinhas, parecem
despertar, passando subitamente da indigência ao fausto, fazendo despesas
de todo tipo, tornando-se de repente luxuosas, pródigas e magníficas. Isso
é efeito de alguma quantia embolsada; o dia de algum pagamento que teria
sido ontem. Aquela jovem recebera todo o seu semestre.
E também não era mais aquela interna com seu chapéu de pelúcia, seu
vestido de merino, sapatos de escola e mãos vermelhas; o bom gosto
viera-lhe com a beleza; era uma jovem bem vestida, com uma espécie de
elegância simples e rica, e sem afetação. Usava um vestido de damasco
preto, uma capa do mesmo tecido e um chapéu de crepe branco. Suas luvas
brancas mostravam a delicadeza de sua mão, que brincava com o cabo de
uma sombrinha de marfim chinês, e seus sapatos de seda desenhavam o
pequeno tamanho de seus pés. Quem passasse por ela sentia um perfume
jovem e penetrante exalando de suas roupas.
Quanto ao homem, continuava o mesmo.
A segunda vez que Marius chegou perto dela, a jovem levantou as
pálpebras. Seus olhos eram de um azul celeste profundo, mas nesse azul
velado ainda havia apenas o olhar de uma criança. Ela olhou para Marius
com indiferença, como teria olhado para o menino que corria debaixo das
árvores, ou para o vaso de mármore que fazia sombra sobre o banco; e
Marius também continuou seu passeio pensando em outra coisa.
Passou ainda quatro ou cinco vezes perto do banco onde ela estava,
mas sem nem mesmo voltar os olhos em sua direção.
Nos dias que se seguiram, como de costume, ele voltou ao
Luxemburgo; como de costume, lá encontrou “o pai e a filha”, mas não
deu mais atenção a isso. Não pensava nessa jovem agora que estava bela
mais do que quando era feia. Passava tão perto do banco que ela ocupava
porque era esse seu costume.

III. EFEITO DE PRIMAVERA


Um dia, o ar estava tépido, o Luxemburgo estava inundado de sombra
e de sol, o céu estava puro como se os anjos o houvessem lavado naquela
manhã, os passarinhos gorjeavam na profundeza dos castanheiros. Marius
abrira toda a sua alma à natureza, não pensava em nada, vivia e respirava;
passou perto daquele banco, a jovem ergueu os olhos para ele, seus dois
olhares se encontraram.
Que havia dessa vez no olhar da jovem? Marius não pôde dizer. Não
havia nada e havia tudo. Foi um estranho brilho.
Ela baixou os olhos, e ele continuou seu caminho.
O que acabava de ver não era o olhar ingênuo e simples de uma
criança, era um abismo misterioso que se havia entreaberto e depois
bruscamente tornado a se fechar.
Há um dia em que toda jovem olha desse modo. Infeliz daquele que
estiver por perto!
Esse primeiro olhar de uma alma que ainda não conhecemos é como a
aurora no céu. É o despertar de algo brilhante e desconhecido. Nada
poderia exprimir o encanto perigoso desse inesperado clarão que de
repente ilumina vagamente adoráveis trevas, e que se compõe de toda a
inocência do presente e de toda a paixão do futuro. É uma espécie de
ternura indecisa, que se revela ao acaso e que espera. É uma armadilha que
a inocência, sem saber, arma, e na qual prende, sem querer e sem esperar,
os corações. É uma virgem com olhar de mulher.
É raro que uma profunda ilusão não nasça naqueles sobre quem recaiu
esse olhar. Toda a pureza e toda a candura se encontram nesse raio celeste
e fatal que, melhor do que os mais estudados olhares das beldades, possui
o mágico poder de fazer subitamente desabrochar, no recôndito de uma
alma, essa flor misteriosa, cheia de perfumes e de venenos, que chamamos
amor.
À noite, ao voltar para seu quarto, Marius olhou para suas roupas e
pela primeira vez reparou que tinha a indecência, a inconveniência, a
incrível estupidez de ir passear no Luxemburgo com seus trajes “de todo
dia”, quer dizer, com um chapéu amassado, umas botas de carroceiro,
umas calças pretas esbranquiçadas nos joelhos e um casaco preto
desbotado nos cotovelos.

IV. PRINCÍPIO DE UMA GRANDE DOENÇA


No dia seguinte, à hora habitual, Marius tirou do armário seu casaco
novo, sua calça nova, seu chapéu novo e suas botas novas; vestiu-se com
esse aparato completo, colocou luvas, luxo prodigioso, e foi-se para o
Luxemburgo.
No caminho encontrou Courfeyrac, mas fingiu não vê-lo. Ao voltar
para casa, Courfeyrac disse a seus amigos: “Acabo de encontrar o chapéu
novo e o casaco novo de Marius, com Marius dentro deles. Decerto ia
fazer algum exame. Parecia completamente idiota”.
Chegando ao Luxemburgo, Marius deu uma volta no lago, considerou
os cisnes, e depois ficou em demorada contemplação diante de uma
estátua que tinha a cabeça escurecida pelo musgo e um quadril decepado.
Perto do lago havia um burguês barrigudo, de uns quarenta anos, que
segurava pela mão um menino de cinco anos e lhe dizia: “Evite os
excessos. Meu filho, fique a igual distância do despotismo e da anarquia”.
Marius escutou o que o burguês falava. Depois, deu outra volta no lago
e por fim dirigiu-se à “sua alameda”, lentamente, e como se fosse para lá
de má vontade. Parecia que ao mesmo tempo era forçado e impedido de ir
até lá. Não se dava conta alguma de tudo isso e acreditava estar fazendo
como fazia em todos os outros dias.
Ao desembocar na alameda, avistou na outra extremidade, sentados em
“seu banco”, o senhor Leblanc e a moça. Abotoou o casaco até o alto,
estendeu-o no torso para que não fizesse dobras, examinou com certa
complacência os lustrosos reflexos de sua calça e caminhou em direção ao
banco. Tinha um quê de ataque naquele caminhar e certamente algum
desejo de conquista. Então eu digo: ele marchou sobre o banco, assim
como eu diria: Aníbal marchou sobre Roma.
De resto, não havia nada que não fosse maquinal em todos os seus
movimentos, e ele não havia de forma alguma interrompido as habituais
preocupações de seu espírito e de seus trabalhos. Naquele momento,
pensava que o Manual do Bacharelado era um livro estúpido, e que devia
ter sido redigido por raros cretinos para que fossem analisadas como
obras-primas do espírito humano três tragédias de Racine e apenas uma
comédia de Molière. Tinha um assobio agudo nos ouvidos. Enquanto se
aproximava do banco, repuxava as dobras do casaco e seus olhos se
fixavam na jovem. Parecia-lhe que ela enchia toda a extremidade da
alameda com um vago brilho azul.
À medida que se aproximava, cada vez mais seus passos ficavam
lentos. Chegando a uma certa distância do banco, bem antes do fim da
alameda, parou, e, sem que pudesse entender por que fez isso, deu meia-
volta. Nem mesmo pensou que não iria até o fim. A moça mal pôde avistá-
lo de longe e ver a bela figura que ele fazia com suas roupas novas. No
entanto, conservava-se bem ereto, para mostrar bom aspecto caso alguém
que estivesse atrás dele o observasse.
Atingiu a extremidade oposta, depois voltou, e dessa vez aproximou-se
um pouco mais do banco. Chegou mesmo a uma distância de três
intervalos de árvores, mas então sentiu não sei que impossibilidade de ir
mais adiante e hesitou. Pensou ter visto o rosto da jovem pender em sua
direção. Fez todavia um esforço viril e violento, venceu a hesitação e
continuou indo adiante. Alguns segundos depois, passava em frente ao
banco, direito e firme, vermelho até as orelhas, sem ousar olhar nem à
direita nem à esquerda, as mãos dentro do casaco como um homem de
estado. No momento em que passou — sob o canhão da praça — sentiu um
medonho batimento no coração. Ela usava, como na véspera, seu vestido
de damasco e seu chapéu de crepe. Ele ouviu uma voz inefável que devia
ser “a voz dela”. A jovem conversava tranquilamente. E estava muito
bonita. Ele sabia disso, embora nem tentasse olhar para ela.
— Ela não poderia — pensava ele — deixar de ter estima e
consideração por mim se soubesse que sou eu o verdadeiro autor da
dissertação sobre Marcos Obregon de la Ronda, que o senhor François de
Neufchâteau colocou, como sendo dele, no frontipício de sua edição de Gil
Blas!
Ultrapassou o banco, chegou até a extremidade da alameda, que estava
bem próxima, depois deu meia-volta e passou ainda uma vez diante da
bela moça. Dessa vez estava muito pálido. De resto, não experimentava
nada além de algo muito desagradável. Afastou-se do banco e da jovem e,
enquanto lhe voltava as costas, imaginava que ela o observava, e essa ideia
o fazia tropeçar.
Não tentou mais aproximar-se do banco; parou quase no meio da
alameda e, bem ali, coisa que nunca fazia, sentou-se, olhando de través e
pensando, nas mais indistintas profundezas de seu espírito, que, afinal,
seria difícil que as pessoas das quais ele admirava o chapéu branco e o
vestido preto fossem completamente insensíveis a sua calça lustrosa e a
seu casaco novo.
Ao final de um quarto de hora, levantou-se, como se fosse recomeçar a
caminhar em direção àquele banco que lhe parecia rodeado de uma
auréola. No entanto, permaneceu de pé e imóvel. Pela primeira vez em
quinze meses, pensou que aquele senhor, que todos os dias sentava-se ali
com sua filha, decerto também o havia notado, e provavelmente achava
estranha a sua assiduidade.
Também pela primeira vez sentiu alguma irreverência em designar
aquele desconhecido, mesmo que secretamente em seu pensamento, pelo
apelido de senhor Leblanc.
Assim permaneceu alguns minutos, cabeça baixa e fazendo desenhos
na areia com uma varinha que tinha na mão.
Depois, repentinamente deu as costas ao lado oposto do banco, ao
senhor Leblanc e à sua filha, e dali voltou para casa.
Nesse dia, esqueceu-se de ir jantar. Só se deu conta disso às oito horas
da noite, e, como era tarde demais para ir à rua Saint-Jacques, pensou:
“Puxa!” e comeu um pedaço de pão.
Só se deitou depois de ter escovado e dobrado seu casaco com todo o
cuidado.

V. VÁRIOS RAIOS CAEM SOBRE MAME BOUGON


No dia seguinte, mame Bougon — era assim que Courfeyrac chamava
a velha porteira, principal-locatária-faxineira do casebre Gorbeau, que se
chamava, na verdade, senhora Burgon, como foi constatado, mas esse
danado do Courfeyrac não respeitava nada —, mame Burgon, estupefata,
reparou que o senhor Marius tornava a sair de casaco novo.
Ele voltou ao Luxemburgo, mas não passou do banco que ficava no
meio da alameda. Sentou-se ali, como fizera na véspera, contemplando de
longe e vendo distintamente o chapéu branco, o vestido preto e
especialmente o brilho azul. Não se moveu daquele lugar, e só voltou para
casa quando as portas do Luxemburgo se fecharam. Não viu o senhor
Leblanc e sua filha irem embora, e daí concluiu que haviam saído do
jardim pela grade da rua de l’Ouest. Mais tarde, algumas semanas depois,
quando pensava em tudo isso, não conseguiu de forma alguma lembrar-se
onde fora jantar naquela noite.
No outro dia, que era o terceiro dia, mame Bougon foi novamente
fulminada. Marius saiu com o casaco novo.
— Três dias seguidos! — exclamou ela.
Tentou segui-lo, mas Marius andava depressa e a passos muito largos;
era um hipopótamo tentando perseguir um cabrito. Perdeu-o de vista em
dois minutos e voltou para casa esbaforida, quase sufocada por sua asma,
furiosa.
— Que falta de bom senso — resmungou ela — colocar as melhores
roupas todo dia e fazer as pessoas correrem desse jeito!
Marius havia ido ao Luxemburgo.
Lá estava a jovem em companhia do senhor Leblanc. Marius
aproximou-se o mais que pôde, fingindo ler um livro, mas ficou ainda bem
distante; depois, foi sentar-se em seu banco, onde passou quatro horas
vendo saltitar pela alameda os pardais, que lhe davam a impressão de
zombar dele.
Assim se passaram duas semanas. Marius ia ao Luxemburgo não mais
para passear, mas para se sentar sempre no mesmo lugar, e sem saber por
quê. Chegando lá, não se movia mais. Toda manhã colocava suas roupas
novas para não se mostrar, e repetia tudo no dia seguinte.
Ela, decididamente, era de uma beleza magnífica. A única observação
que se podia fazer, semelhante a uma crítica, era que a contradição entre
seu olhar triste e seu sorriso alegre dava a seu rosto uma expressão um
pouco dispersiva, e isso, em certos momentos, fazia com que esse doce
semblante se tornasse estranho, sem deixar, no entanto, de ser encantador.

VI. FEITO PRISIONEIRO


Em um dos últimos dias da segunda semana, Marius estava, como de
costume, sentado em seu banco, com um livro aberto na mão, sem ter,
havia mais de duas horas, virado uma só página. De repente, estremeceu.
Um acontecimento ocorria na extremidade da alameda. O senhor Leblanc
e sua filha acabavam de deixar o banco onde se sentavam, a filha tomara o
braço do pai, e ambos caminhavam lentamente em direção a Marius.
Marius fechou seu livro, tornou a abri-lo, e esforçou-se para ler. Tremia. A
auréola vinha diretamente em sua direção. “Ah! Meu Deus”, pensava, “não
vou ter tempo de tomar uma atitude”.
Enquanto isso, o homem de cabelos brancos e a jovem avançavam. “O
que vêm fazer desses lados?”, perguntava-se Marius. “Como! Ela vai
passar por aqui? Seus pés vão pisar esta areia, nesta alameda, a dois passos
de mim?” Estava agitado, desejava ser muito belo, desejava ter uma
condecoração. Ouvia o ruído doce e cadenciado de seus passos se
aproximando. Imaginava que o senhor Leblanc lançava-lhe olhares
irritados. “Será que esse senhor vai falar comigo?”, pensava. Baixou a
cabeça; quando a levantou, estavam muito perto dele. A jovem passou, e
ao passar olhou para ele. Olhou-o fixamente, com uma doçura pensativa
que fez Marius estremecer dos pés à cabeça. Pareceu-lhe que ela o
repreendia por ter ficado tanto tempo sem ir até ela, e que lhe dizia: “Sou
eu que venho até você!” Marius ficou deslumbrado diante daqueles olhos
cheios de brilho e de abismos.
Sentia um braseiro no cérebro. Ela viera até ele, que alegria! E ainda
mais, olhar para ele como ela olhara! Pareceu-lhe mais bela do que jamais
a vira! Bela de uma beleza a um só tempo feminina e angelical, de uma
beleza completa que faria Petrarca cantar e Dante se ajoelhar. Tinha a
impressão de nadar em pleno céu azul. E ao mesmo tempo sentia-se
terrivelmente contrariado, pois a poeira cobria seus sapatos.
Ele acreditava estar certo de que ela também havia olhado para suas
botas. Seguiu-a com os olhos até que tivesse desaparecido. Depois, pôs-se
a andar pelo Luxemburgo como um louco. É provável que, por vezes, risse
sozinho e falasse em voz alta. Parecia tão sonhador ao passar pelas babás
que estas o acreditavam apaixonado por cada uma delas.
Saiu do Luxemburgo na esperança de reencontrá-la em alguma rua.
Cruzou com Courfeyrac sob as arcadas do Odéon e disse-lhe: “Venha
jantar comigo”. Foram para o Rousseau, onde gastaram seis francos.
Marius comeu como um leão. Deu seis soldos ao garçom. Durante a
sobremesa disse a Courfeyrac: “Leu o jornal? Que belo discurso fez Audry
de Puyraveau!”
Estava perdidamente apaixonado.
Depois de jantar, disse a Courfeyrac: “Vou pagar-lhe o espetáculo”.
E foram à Porte-Saint-Martin ver o ator Frédérick em L’Auberge des
Adrets — O Albergue dos Adrets. Marius divertiu-se muitíssimo.
Ao mesmo tempo, sofreu um redobramento de selvageria. Saindo do
teatro, recusou-se a olhar para as pernas de uma modista que pulava uma
enxurrada, e quando Courfeyrac disse: Eu colocaria essa mulher de bom
grado em minha coleção, ficou quase horrorizado.
Courfeyrac o convidara para almoçar, no dia seguinte, no café Voltaire.
Marius foi e comeu ainda mais do que na véspera. Estava bem pensativo,
mas muito alegre. Poderíamos dizer que ele aproveitava todas as
oportunidades de rir às gargalhadas. Abraçou cordialmente um
provinciano qualquer que lhe foi apresentado. Um círculo de estudantes
havia se formado ao redor da mesa, e falavam das ninharias pagas pelo
Estado e debitadas como disciplinas à Sorbonne; depois a conversa recaiu
sobre as faltas e lacunas dos dicionários e prosódias de Quicherat. Marius
interrompeu a discussão para exclamar:
— No entanto, é bem agradável ter uma condecoração!
— Isso é uma pândega! — disse Courfeyrac em voz baixa a Jean
Prouvaire.
— Não — respondeu Jean Prouvaire —, isso é sério.
De fato, aquilo era sério. Marius estava naquela primeira hora violenta
e encantadora do início das grandes paixões.
Um olhar tinha feito tudo aquilo.
Quando a mina está carregada, quando o incêndio está preparado, não
há coisa mais simples. Um olhar é uma faísca.
Estava feito. Marius amava uma mulher. Seu destino entrava no
desconhecido.
O olhar das mulheres assemelha-se a certas engrenagens tranquilas na
aparência, e formidáveis. Todos os dias passamos por elas pacífica e
impunemente, sem suspeitarmos de nada. Em certo momento até
esquecemos que aquela coisa está ali. Vamos, voltamos, sonhamos,
falamos, rimos; de repente, sentimo-nos apanhados. Pronto! A
engrenagem nos segura, o olhar nos prendeu. Ele nos prendeu, pouco
importa por onde nem como, por uma parte qualquer de nosso pensamento
que voava, por alguma distração que tivemos. Estamos perdidos. Seremos
completamente consumidos Um encadeamento de forças misteriosas
apodera-se de nós. Nos debatemos em vão. Não há socorro humano
possível. Vamos cair de engrenagem em engrenagem, de angústia em
angústia, de tortura em tortura, nós, nosso espírito, nossa fortuna, nosso
futuro, nossa alma; e, conforme estejamos em poder de uma criatura
maldosa ou de um nobre coração, só conseguiremos sair dessa medonha
máquina ou desfigurados pela vergonha ou transfigurados pela paixão.

VII. AVENTURAS DA LETRA U ENTREGUE ÀS


CONJECTURAS
O isolamento, o desapego de tudo, o orgulho, a independência, o gosto
pela natureza, a falta de atividade cotidiana e material, o viver íntimo, as
secretas lutas da castidade, o êxtase benévolo diante de toda criação
haviam preparado Marius para este estado de possessão chamado paixão.
O culto a seu pai pouco a pouco convertera-se em religião, e, como toda
religião, retirara-se ao fundo da alma. Era preciso que alguma coisa
estivesse em primeiro plano. Veio o amor.
Passou-se um mês inteiro durante o qual Marius ia todos os dias ao
Luxemburgo. Chegada a hora, nada podia detê-lo. “Está de serviço”, dizia
Courfeyrac. Marius vivia em estado de êxtase. É certo que a moça olhava
para ele.
Acabara por tornar-se ousado, e aproximava-se do banco. No entanto,
não passava mais diante dele, obedecendo, ao mesmo tempo, ao instinto de
timidez e ao instinto de prudência dos enamorados. Achava útil não atrair
a “atenção do pai”. Combinava suas paradas atrás das árvores e dos
pedestais das estátuas com profundo maquiavelismo, de modo a fazer-se
visível o máximo possível à jovem e o menos possível ao velho senhor. Às
vezes, permanecia imóvel por mais de meia hora à sombra de um Leônidas
ou de um Espártaco quaisquer, segurando na mão um livro acima do qual
seus olhos, ternamente elevados, procuravam a bela jovem; ela, por sua
vez, voltava em direção a ele, com um vago sorriso, seu encantador perfil.
Enquanto conversava da forma mais natural e tranquila do mundo com o
homem de cabelos brancos, lançava sobre Marius todos os sonhos de um
olhar virginal e apaixonado. Antigo e imemorial ardil que Eva conhecia
desde o primeiro dia do mundo, e que qualquer mulher conhece desde o
primeiro dia de sua vida! Sua boca respondia a um, e seu olhar respondia
ao outro.
Devemos, porém, acreditar que o senhor Leblanc acabara por dar-se
conta de alguma coisa, pois muitas vezes, logo que Marius chegava,
levantava-se e punha-se a caminhar. Deixara seu lugar de costume e
adotara, na outra extremidade da alameda, o banco próximo ao Gladiador,
como que para ver se Marius os seguiria. Marius não entendeu, e cometeu
esse erro. O “pai” começou a ser inexato, e não trazia mais “a filha” todos
os dias. Algumas vezes vinha só. Então, Marius não ficava. Outro erro.
Marius não dava importância a esses sintomas. Da fase de timidez
passara, progresso natural e fatal, à fase de cegueira. Seu amor crescia.
Sonhava com ela todas as noites. Além disso, ocorrera-lhe uma felicidade
inesperada, como um óleo sobre o fogo, um espessamento das trevas sobre
seus olhos. Um fim de tarde, achou sobre o banco que “o senhor Leblanc e
sua filha” acabavam de deixar um lenço, um lenço bem simples e sem
bordados, mas branco, fino, que lhe pareceu exalar aromas inefáveis.
Apoderou-se dele com emoção. O lenço estava marcado com as letras U.
F.; Marius nada sabia sobre aquela graciosa jovem, nem sobre sua família,
nem sobre seu nome, nem sobre sua morada; essas duas letras eram a
primeira coisa a respeito dela em que punha as mãos, adoráveis iniciais
sobre as quais imediatamente começou a construir suas fantasias. U era,
evidentemente, o primeiro nome.
— Ursule! — pensou. — Que delicioso nome! — Beijou o lenço, o
aspirou, colocou-o sobre o peito e sobre a pele durante o dia, e, à noite,
sobre os lábios, para adormecer.
— Sinto neste lenço toda a sua alma! — exclamava ele.
O lenço era do velho senhor que distraidamente o deixara cair de seu
bolso.
Nos dias que se seguiram ao achado, só aparecia no Luxemburgo
beijando o lenço e apertando-o contra o coração. A graciosa jovem não
compreendia nada daquilo e o advertia por meio de sinais imperceptíveis.
— Ó pudor! — dizia Marius.

VIII. MESMO OS INVÁLIDOS PODEM SER FELIZES


Já que pronunciamos a palavra pudor, e já que nada escondemos,
devemos dizer que, uma vez, por meio de seus êxtases, “sua Ursule” deu-
lhe um motivo de queixa bastante sério. Foi um desses dias em que a
jovem convencera o senhor Leblanc a sair do banco e passear pela
alameda. Soprava uma brisa primaveril que agitava a copa dos plátanos. O
pai e a filha, de braços dados, acabavam de passar diante do banco de
Marius. Marius levantou-se após sua passagem e seguiu-os com o olhar,
como convém nessa situação de alma enamorada.
De repente, uma rajada de vento, mais alegre que as outras, e
provavelmente encarregada de fazer as obrigações da primavera, passa
pelo viveiro, abate-se sobre a alameda, envolve a jovem em admirável
estremecimento digno das ninfas de Virgílio e dos faunos de Teócrito, e
levanta-lhe o vestido, vestido mais sagrado que o de Ísis, acima da altura
dos joelhos. Uma perna de forma graciosa aparece. Marius a vê. Fica
exasperado e furioso.
A jovem rapidamente baixou o vestido com um movimento
divinamente assustado, mas nem por isso ele ficou menos indignado. Ele
estava sozinho na alameda, é verdade. Mas podia haver mais alguém. E se
houvesse! Dá para entender uma coisa dessas? O que ela acabava de fazer
era horrível! Ai, a pobre menina nada fizera; só havia um culpado, o
vento; mas Marius, em quem confusamente estremecia o Bartolo que
existe em Querubim, estava resolvido a ficar contrariado, e tinha ciúme de
sua sombra. É assim, com efeito, que desperta e se impõe no coração
humano, mesmo sem ter direito, o acre e estranho ciúme da carne. De
resto, à parte esse ciúme, a visão dessa graciosa perna não lhe trouxe nada
de agradável; as meias brancas da primeira mulher que aparecesse lhe
dariam mais satisfação.
Quando “sua Ursule”, depois de haver chegado à extremidade da
alameda, retornou pelo mesmo caminho com o senhor Leblanc e passou
em frente ao banco em que Marius tornara a sentar-se, esse lançou-lhe um
olhar rude e feroz. A jovem fez um pequeno recuo acompanhado de um
levantar de pálpebras que significa: “Ora essa, o que há então?”
Essa foi a “primeira desavença” entre eles.
Marius mal acabava de fazer-lhe essa cena com os olhos, quando
alguém atravessou a alameda. Era um inválido, todo curvado, todo
enrugado, cabelo todo branco, com uniforme Luís XV, levando no peito a
pequena placa oval de tecido vermelho com as espadas cruzadas, a cruz de
São Luís do soldado, e além disso enfeitado com uma manga de casaco
sem braço dentro, com uma perna de pau e um queixo de prata. Marius
julgou distinguir nessa criatura um ar de extrema satisfação. Pareceu-lhe
até que o velho cínico, mesmo mancando perto dele, havia-lhe dado uma
piscada de olho muito fraternal e muito contente, como se um acaso
qualquer tivesse feito com que pudessem combinar e saborear em comum
alguma boa sorte inesperada. Por que então havia de estar tão contente
esse restolho de Marte? O que então tinha se passado entre esta perna de
pau e aquela outra? Marius chegou ao paroxismo do ciúme.
— Talvez ele estivesse ali, pensou; talvez tenha visto! — E Marius
teve vontade de exterminar o inválido.
Com o tempo, toda ponta fica menos aguda. A cólera de Marius contra
“Ursule”, por mais justa e legítima que fosse, passou. Ele acabou por
perdoar, mas foi um grande esforço. Enfezou-se com ela por três dias.
No entanto, por meio de tudo isso e por causa de tudo isso, a paixão
aumentava e tornava-se louca.

IX. ECLIPSE
Acabamos de ver como Marius descobriu ou acreditou descobrir que
ela se chamava Ursule.
O apetite vem com o amor. Saber que ela se chamava Ursule já era
bastante, mas lhe parecia pouco. Em três ou quatro semanas Marius
devorara essa ventura. Agora queria outra. Queria saber onde ela morava.
Havia cometido uma primeira falta: cair na armadilha do banco do
Gladiador. Havia cometido uma segunda: não ficar no Luxemburgo quando
o senhor Leblanc ia para lá sozinho. E cometeu uma terceira. Imensa.
Seguiu “Ursule”.
Ela morava na rua de l’Ouest, na parte menos movimentada, em uma
casa nova de três andares, de modesta aparência.
A partir desse momento, Marius acrescentou à sua felicidade de vê-la
no Luxemburgo a felicidade de segui-la até sua casa.
Sua fome aumentava. Sabia como ela se chamava, pelo menos seu
primeiro nome, nome encantador, o verdadeiro nome de uma mulher;
sabia onde morava; quis saber quem era ela.
Uma tarde, após tê-los seguido até sua casa e tê-los visto desaparecer
atrás do portão, entrou logo depois e corajosamente disse ao porteiro:
— É o senhor do primeiro andar que acaba de entrar?
— Não — respondeu o porteiro. — É o do terceiro.
Mais um passo fora dado. Esse êxito fez Marius ser mais ousado.
— Mora de frente? — continuou ele.
— Ora! — exclamou o porteiro. — A casa foi construída só para a rua.
— E o que faz esse senhor? — retomou Marius.
— Vive de rendas. É um homem muito bom, que faz o bem aos
necessitados, embora não seja rico.
— Como ele se chama? — tornou Marius.
O porteiro levantou a cabeça e disse:
— O senhor é espião?
Marius foi embora bastante vexado, mas muito contente. Ele avançava.
— Bem — pensou —, sei que ela se chama Ursule, que é filha de
alguém que vive de rendas e que mora ali, no terceiro andar, rua de
l’Ouest.
No dia seguinte, o senhor Leblanc e sua filha passaram apenas
rapidamente pelo Luxemburgo. Foram embora enquanto ainda era dia
claro. Marius os seguiu à rua de l’Ouest, como já se acostumara a fazer.
Chegando ao portão, o senhor Leblanc fez sua filha passar primeiro, parou
antes de transpor a soleira, virou-se e olhou fixamente para Marius.
No dia seguinte, não foram ao Luxemburgo; Marius esperou em vão
durante o dia inteiro.
Ao escurecer, foi até a rua de l’Ouest, e viu luz nas janelas do terceiro
andar. Passeou sob essas janelas até que a luz se apagasse.
No dia seguinte, ninguém foi ao Luxemburgo. Marius esperou o dia
todo, depois foi fazer sua ronda noturna sob as janelas. Isso o ocupou até
as dez horas da noite. Seu jantar se tornava o que ele conseguia fazer. A
febre alimenta o enfermo, e o amor o enamorado.
Passaram-se oito dias dessa maneira. O senhor Leblanc e sua filha não
apareciam mais no Luxemburgo. Marius fazia tristes conjecturas, mas não
se atrevia a espiar o portão durante o dia. Contentava-se em ir, à noite,
contemplar a claridade avermelhada das vidraças. Em alguns momentos,
via umas sombras passando por ali, e então seu coração batia forte.
No oitavo dia, quando chegou sob as janelas, não havia luz.
— Oh! As luzes ainda não foram acesas — pensou —; mas já é noite.
Será que saíram?
Esperou até dez horas. Até meia-noite. Até uma da manhã. Nenhuma
luz se acendeu nas janelas do terceiro andar, e ninguém voltou para casa.
Foi embora muito entristecido.
No dia seguinte — pois vivia apenas de dia seguinte em dia seguinte;
não havia, por assim dizer, mais nenhum hoje para ele —, no dia seguinte,
não encontrou ninguém no Luxemburgo, como já esperava; ao anoitecer,
dirigiu-se à casa deles. Nem sinal de luz nas janelas; as persianas estavam
fechadas; o terceiro andar estava totalmente às escuras.
Marius bateu no portão, entrou e disse ao porteiro:
— E o senhor do terceiro andar?
— Mudou — respondeu o porteiro.
Marius abalou-se e disse com voz enfraquecida:
— Desde quando?
— De ontem.
— E onde mora agora?
— Não sei.
— Então não deixou seu novo endereço?
— Não.
E o porteiro levantando os olhos reconheceu Marius.
— Ah! É o senhor! — disse. — Mas então o senhor decididamente é
espião?

__________________________
1 “A Preta”, “O Branco”, referência às cores do vestido e dos cabelos.
2 “[Deus disse: que se faça a luz!] E a luz se fez” — terceiro versículo do Gênesis.
LIVRO VII
PATRON-MINETTE1

I. AS MINAS E OS MINEIROS
AS SOCIEDADES humanas têm todas aquilo a que, nos teatros, se dá o
nome de terceiro subsolo. O solo social é todo minado, ora para o bem, ora
para o mal. Essas minas estão sobrepostas. Há as minas superiores e as
minas inferiores. Há uma parte de cima e uma parte de baixo nesse
obscuro subsolo que às vezes desmorona sob a civilização, e que nossa
indiferença e nosso descuido deixam no esquecimento. No século passado,
a Enciclopédia era uma mina quase a céu aberto. As trevas, essas sombrias
chocadeiras do cristianismo primitivo, só esperavam uma oportunidade
para explodirem debaixo dos Césares e inundarem o gênero humano de
luz. Pois nas trevas sagradas existe a luz latente. Os vulcões estão plenos
de uma sombra capaz de flamejar. Toda a lava começa sendo escuridão. As
catacumbas, onde se rezou a primeira missa, não eram apenas os porões de
Roma, elas eram o subterrâneo do mundo.
Por baixo da construção social, essa maravilha que tem algo de
casebre, existem escavações de todo tipo. Existe a mina religiosa, a mina
filosófica, a mina política, a mina econômica, a mina revolucionária. Uma,
cavada com a ideia; outra, cavada com as cifras; e mais outra cavada com
a ira. Chamam-se e respondem-se de uma catacumba a outra. As utopias
caminham sob a terra por condutos. Aí se ramificam em todas as direções;
às vezes encontram-se e confraternizam. Jean Jacques empresta sua
picareta a Diógenes e este empresta-lhe sua lanterna. Outras vezes
combatem-se. Calvino agarra Socin pelos cabelos. Mas nada para ou
interrompe a tensão de todas essas energias em direção ao objetivo, nem a
vasta atividade simultânea que vai e que vem, sobe, desce e torna a subir
por essas obscuridades, e que transforma lentamente o de cima em de
baixo e o de fora em de dentro; imenso formigueiro desconhecido. A
sociedade mal suspeita dessas escavações que lhe deixam a superfície
intacta, mas que lhe alteram as entranhas. O mesmo tanto de andares
subterrâneos é o tanto de trabalhos diferentes, e o tanto de extrações
diversas. O que resulta de todas essas explorações profundas? O futuro.
Quanto mais se vai aprofundando, mais os operários são misteriosos.
Até certo ponto, que o filósofo social sabe reconhecer, o trabalho é bom;
além desse ponto, torna-se duvidoso e misto; e, mais abaixo, torna-se
terrível. A uma certa profundidade, as escavações não são mais
penetráveis ao espírito de civilização; o limite do respirável para o homem
é ultrapassado; um princípio de existência de monstros é possível.
A escala descendente é estranha; e cada um desses degraus
corresponde a um andar onde a filosofia pode firmar-se, e onde se
encontra um desses operários, às vezes divinos, às vezes disformes.
Abaixo de Jean Huss está Lutero; abaixo de Lutero está Descartes; abaixo
de Descartes está Voltaire; abaixo de Voltaire está Condorcet; abaixo de
Condorcet está Robespierre; abaixo de Robespierre está Marat; abaixo de
Marat está Babeuf. E assim por diante. Mais abaixo, confusamente, no
limite que separa o indistinto do invisível, enxergam-se outros homens
sombrios, que talvez ainda não existam. Os de ontem são espectros; os de
amanhã são larvas. Os olhos do espírito os distinguem obscuramente. O
trabalho embrionário do futuro é uma das visões do filósofo.
Um mundo no limbo em estado fetal, que silhueta extraordinária!
Saint-Simon, Owen, Fourier também estão ali, em fossas laterais.
Com efeito, ainda que uma divina cadeia invisível ligue uns aos outros
todos esses pioneiros subterrâneos que quase sempre se julgam isolados
mas, sem que o saibam, não estão, seus trabalhos são muito diversos, e a
luz de uns contrasta com o resplendor de outros. Uns são paradisíacos,
outros são trágicos. Contudo, qualquer que seja o contraste, todos esses
trabalhadores, desde o mais alto até o mais baixo, desde o mais sábio até o
mais louco, têm uma semelhança, a seguinte: o desinteresse. Marat
esquece de si mesmo, como Jesus. Põem-se de lado, omitem-se, não
pensam neles próprios. Veem outra coisa mas não eles mesmos. Têm um
olhar, e esse olhar procura o absoluto. O primeiro tem o céu todo nos
olhos; o último, por mais enigmático que seja, ainda tem sob o olhar a
pálida claridade do infinito. O que quer que faça, venerem aquele que tiver
este sinal, a pupila estrela.
A pupila escura é o outro sinal.
Nela começa o mal. Diante de quem não olha, reflitam e tremam. A
ordem social tem seus mineiros da escuridão.
Há um ponto em que o aprofundamento é um enterro, e a luz se apaga.
Abaixo de todas essas minas que acabamos de mencionar, abaixo de
todas essas galerias, abaixo de todo esse imenso sistema venoso
subterrâneo do progresso e da utopia, muito mais terra adentro, mais
abaixo que Marat, mais abaixo que Babeuf, mais abaixo, muito mais
abaixo, e sem relação alguma com os andares superiores, existe a última
fossa. Lugar formidável. É o que chamamos de terceiro subsolo. É a fossa
das trevas; o porão dos cegos. Inferi.2
Isso faz comunicação com os abismos.

II. O BAS-FOND3
Ali o desinteresse se dissipa. O demônio se esboça vagamente; cada
um por si. O eu sem olhos uiva, procura, apalpa e rói. O Ugolino social
está nesse abismo.
As silhuetas ferozes que vagueiam nessa cova, quase bestas, quase
fantasmas, não se ocupam do progresso universal, ignoram a ideia e a
palavra; só se preocupam com a saciedade individual. São quase
inconscientes, e, em seu íntimo, há uma espécie de supressão pavorosa.
Têm duas mães, ambas madrastas, a ignorância e a miséria. Têm um guia,
a necessidade; e, para todas as formas de satisfação, o apetite. São
brutalmente vorazes, quer dizer, ferozes; não à maneira do tirano, mas à
maneira do tigre. Do sofrimento, essas larvas passam ao crime; filiação
fatal, concepção vertiginosa, lógica de trevas. O que rasteja no terceiro
subsolo social não é mais a reclamação sufocada do absoluto; é o protesto
da matéria. Ali o homem torna-se dragão. Ter fome, ter sede, é o ponto de
partida; ser Satanás é o ponto de chegada. Desse porão sai Lacenaire.4
Há pouco, no livro IV, vimos um dos compartimentos da mina
superior, da grande fossa política, revolucionária e filosófica. Ali,
acabamos de dizer, tudo é nobre, puro, digno, honesto. Ali, é verdade, é
possível que nos enganemos, e nos enganamos; mas então o erro é
venerável, tal o heroísmo que implica. O conjunto do trabalho que ali se
faz tem um nome, Progresso.
É chegado o momento de entrever outras profundezas, as profundezas
medonhas.
Sob a sociedade, insistimos, existe e existirá, até o dia em que a
ignorância for dissipada, a grande caverna do mal.
Essa caverna fica abaixo de todas e é inimiga de todas. É o ódio sem
exceção. Essa caverna não conhece filósofos; seu punhal nunca talhou uma
pena. Seu negrume não tem nenhuma relação com o sublime negrume do
tinteiro. Jamais os dedos da escuridão, que se crispam debaixo desse teto
asfixiante, folhearam um livro ou abriram um jornal. Para Cartouche,
Babeuf é um explorador; para Schinderhannes, Marat é um aristocrata.
Essa caverna tem por objetivo o desmoronamento de tudo.
De tudo. Inclusive das cavernas superiores, por ela execradas. Com seu
horrível formigamento, ela mina, não somente a ordem social atual, mas
mina a filosofia, mina a ciência, mina o direito, mina o pensamento
humano, mina a civilização, mina a revolução, mina o progresso. Chama-
se simplesmente roubo, prostituição, homicídio e assassinato. Ela é as
trevas, ela quer o caos. Sua abóbada é feita de ignorância.
Todas as outras, as de cima, têm apenas uma finalidade, suprimi-la. É
para isso que tendem, a um só tempo, com todos os seus órgãos, e tanto
pelo melhoramento do real quanto pela contemplação do absoluto, a
filosofia e o progresso. Destruam a caverna Ignorância, e terão destruído a
toupeira Crime.
Condensemos em poucas palavras uma parte do que acabamos de
escrever. O único perigo social é a Treva.
Humanidade é identidade. Os homens são todos do mesmo barro.
Nenhuma diferença, ao menos no mundo aqui de baixo, quanto à
predestinação. Mesma escuridão antes, mesma carne durante, mesma
cinza depois. Mas a ignorância, misturada à massa humana, a enegrece.
Esse incurável negrume toma o interior do homem, e ali torna-se o Mal.
III. BABET, GUEULEMER, CLAQUESOUS E
MONTPARNASSE
Um quarteto de bandidos, Claquesous, Gueulemer, Babet e
Montparnasse, governava o terceiro subsolo de Paris, de 1830 a 1835.
Gueulemer era um Hércules desclassificado. Seu antro era o esgoto do
Arche-Marion. Tinha um metro e oitenta de altura, peitorais de mármore,
bíceps de bronze, uma respiração de caverna, o torso de um colosso, um
crânio de pássaro. Acreditava-se estar vendo o Hércules Farnese5 vestido
com calças de algodão e casaco da veludo. Construído desse modo
escultural, Gueulemer seria capaz de domar monstros; achara mais
simples ser um deles. Fronte baixa, têmporas amplas, menos de quarenta
anos e rugas, cabelo abundante e curto, faces barbudas, a barba de um
javali; por aí se vê o tipo de homem. Seus músculos solicitavam trabalho,
mas sua estupidez o rejeitava. Era uma grande força preguiçosa. Era
assassino por indolência. Achavam que era crioulo, originário das
colônias. Provavelmente havia impressionado um pouco o marechal Brune
quando, em 1815, foi carregador em Avignon. Após esse estágio, passara a
bandido.
A diafaneidade de Babet contrastava com a carne de Gueulemer. Babet
era magro e sábio. Era transparente, mas impenetrável. Via-se a luz através
de seus ossos, mas nada através de suas pupilas. Declarava-se químico.
Havia sido acrobata com Bobèche e palhaço com Bobino.6 Atuara no
teatro de “vaudeville” em Saint-Michel. Era um homem de intenções,
bem-falante, que sublinhava seus sorrisos e punha aspas em seus gestos.
Seu ofício era vender pelas ruas bustos de gesso e retratos do “chefe do
Estado”. Além disso, também arrancava dentes. Já havia mostrado
fenômenos pelas feiras, e possuído uma barraca, com trombetas e este
cartaz: “Babet, artista dentista, membro das academias, faz experiências
físicas sobre metais e metaloides, extrai dentes, tira fragmentos de dentes
deixados por seus colegas. Preço: um dente, um franco e cinquenta; dois
dentes, dois francos; três dentes, dois francos e cinquenta. Aproveitem a
ocasião”. (Este “aproveitem a ocasião” queria dizer: arranquem o máximo
possível de dentes.) Fora casado e tivera filhos, porém não sabia o que fora
feito nem da mulher nem das crianças. Perdera-os como quem perde um
lenço. Grande exceção no obscuro mundo do qual fazia parte, Babet lia
jornais. Uma ocasião, no tempo em que tinha junto de si a família em sua
barraca ambulante, lera no Messager que uma mulher acabara de dar à luz
uma criança suficientemente apta para viver, com um focinho de bezerro,
e exclamara: Isso é que é sorte! Não ia ser minha mulher quem teria a
ideia de me fazer um filho desses!
Depois, abandonara tudo para “tentar Paris”. Expressão dele.
Quem era Claquesous? Era a escuridão. Para se mostrar, esperava que
o céu se manchasse de negro. À noite, saía de um buraco para o qual
retornava antes de amanhecer. Onde ficava esse buraco? Ninguém sabia.
No meio da mais completa escuridão, só falava com seus cúmplices
estando de costas. Chamava-se Claquesous? Não. Ele dizia: Me chamo
Pas-du-tout.7
Se aparecia alguma vela, colocava uma máscara. Era ventríloquo.
Babet dizia: Claquesous é um notívago com duas vozes. Claquesous era
vago, errante, terrível. Não se tinha certeza de que tivesse um nome, já que
Claquesous era um apelido; não se tinha certeza de que tivesse uma voz, já
que seu ventre falava com mais frequência do que sua boca; não se tinha
certeza de que tivesse um rosto, já que ninguém nunca viu mais do que sua
máscara. Desaparecia como uma vertigem; suas aparições eram
verdadeiras saídas das entranhas da terra.
Uma criatura lúgubre era Montparnasse. Montparnasse era uma
criança; menos de vinte anos, rosto bonito, lábios que pareciam cerejas,
lindos cabelos pretos, a claridade da primavera nos olhos; tinha todos os
vícios e aspirava a todos os crimes. A digestão do mal dava-lhe apetite
para o pior. Era o moleque convertido em vadio, e o vadio convertido em
gatuno. Era gentil, efeminado, gracioso, robusto, indolente, feroz. Tinha a
aba do chapéu levantada do lado esquerdo para dar lugar a um tufo de
cabelos, como era moda em 1829. Vivia de roubar violentamente. Sua
casaca tinha o melhor corte, mas era surrada. Montparnasse era uma
gravura de moda cheia de miséria e cometendo homicídios. A causa de
todos os atentados desse adolescente era a vontade de andar bem vestido.
A primeira costureirinha que lhe disse: “Você é bonito!” lançou-lhe a
mancha das trevas ao coração, e fez deste Abel um Caim.
Achando-se bonito, quis ser elegante; ora, a principal elegância é a
ociosidade; a ociosidade do pobre é o crime. Poucos vadios eram tão
temidos quanto Montparnasse. Aos dezoito anos, já tinha vários cadáveres
atrás de si. Mais de um passante jazia de braços estendidos à sombra desse
miserável, o rosto em uma poça de sangue.
Cabelos encaracolados, empomadado, cintura delgada, quadris de
mulher, busto de oficial prussiano, murmúrio de admiração das prostitutas
do bulevar à sua volta, gravata de nó bem feito, cassetete no bolso, uma
flor na lapela; assim era esse dândi do sepulcro.

IV. COMPOSIÇÃO DO BANDO


Esses quatro bandidos formavam uma espécie de Proteu, serpenteando
por entre a polícia e se esforçando para escapar dos olhares indiscretos de
Vidocq “sob diversa figura, árvore, chama, fonte”, emprestando-se uns aos
outros seus nomes e seus truques, escondendo-se na própria sombra,
caixas de segredos e abrigos uns dos outros, desfazendo suas
personalidades como quem tira um nariz postiço no baile de máscaras, às
vezes simplificando-se a ponto de não serem mais que um, outras vezes
multiplicando-se a ponto de o próprio Coco-Lacour os tomar por uma
multidão.
Esses quatro homens não eram quatro homens, eram uma espécie de
misterioso ladrão de quatro cabeças trabalhando em larga escala dentro de
Paris; eram o monstruoso pólipo do mal habitando a cripta da sociedade.
Graças a suas ramificações, e à rede subjacente de suas relações,
Babet, Gueulemer, Claquesous e Montparnasse empreendiam, em geral, as
ciladas do departamento do Sena. Praticavam no transeunte o golpe de
estado da camada de baixo. Os que tinham ideias desse gênero, os homens
de imaginação noturna, dirigiam-se a eles para a execução. Um roteiro era
fornecido aos quatro gatunos e eles se encarregavam de colocá-lo em cena.
Trabalhavam apoiados no roteiro. Estavam sempre em condição de
emprestar um pessoal proporcional e conveniente a todos os atentados que
precisassem de um empurrão e que fossem bastante lucrativos. A um
crime em busca de braços, eles subalugavam cúmplices. Tinham uma
companhia de atores das trevas à disposição de todas as tragédias das
cavernas.
Reuniam-se habitualmente ao anoitecer, hora de seu despertar, nas
estepes próximas à Salpêtrière. Ali conferenciavam. Tinham as doze horas
escuras diante deles; decidiam como empregá-las.
Patron-Minette, esse era o nome que davam à associação dos quatro
homens na circulação subterrânea. Na velha e estranha linguagem popular,
que vai desaparecendo a cada dia, Patron-Minette significa amanhecer,
assim como Entre chien et loup [Entre cão e lobo] significa anoitecer. Esta
denominação, Patron-Minette, vinha, provavelmente, da hora em que seu
trabalho terminava, sendo o alvorecer o momento de dissipação dos
fantasmas e da separação dos bandidos. Esses quatro homens eram
conhecidos por essa rubrica. Quando o presidente do Tribunal de Justiça
visitou Lacenaire na prisão, o questionou sobre um delito que Lacenaire
negava.
— Quem fez isso? — perguntou o presidente.
Lacenaire deu esta resposta, enigmática para o magistrado, mas clara
para a polícia:
— Foi, talvez, Patron-Minette.
Às vezes, adivinha-se uma peça pelo enunciado das personagens; do
mesmo modo, pode-se quase apreciar um bando pela lista dos bandidos. Aí
estão, pois esses nomes subsistem em memórias especiais, a quais
denominações respondiam os principais filiados de Patron-Minette:
Panchaud ou Printanier ou Bigrenaille.
Brujon (havia uma dinastia Brujon, sobre a qual não renunciamos a
dizer alguma coisa).
Boulatruelle, a quem já fizemos menção.
Laveuve.
Finistère.
Homero Hogu, negro.
Mardisoir.
Dépêche.
Fauntleroy, ou Bouquetière.
Glorieux, condenado solto.
Barrecarrosse, chamado senhor Dupont.
Lesplanade-du-Sud.
Poussagrive.
Carmagnolet.
Kruidemers, ou Bizarro.
Mangedentelle.
Les pieds-en-l’air.
Demi-liard, ou Deux-milliards.
Etc., etc.
Omitimos alguns, e não os piores. Esses nomes têm imagens. Não
exprimem somente criaturas, mas espécies. Cada um desses nomes
corresponde a uma variedade desses disformes cogumelos do subsolo da
civilização.
Essas criaturas, pouco pródigas de seus rostos, não eram das que se
veem passar pelas ruas. De dia, cansados das noites ferozes que tiveram,
iam dormir, às vezes nos fornos de cal, outras nas pedreiras abandonadas
de Montmartre ou de Montrouge, às vezes nos esgotos. Enterravam-se.
Que é feito de tais homens? Ainda existem. Sempre existiram. Horácio
fala deles: Ambubaiarum collegia, pharmacopolae, mendici, mimae8 e,
enquanto a sociedade for o que é, eles serão o que são. Sob o escuro teto de
suas covas, renascem para sempre do desmoronamento social. Voltam,
espectros, sempre idênticos; apenas não usam mais os mesmos nomes,
nem estão mais nas mesmas peles.
Extirpados os indivíduos, a tribo subsiste.
Têm sempre as mesmas faculdades. Do bandido ao vagabundo, a raça
conserva-se pura. Adivinham as carteiras, farejam os relógios nos bolsos.
O ouro e a prata para eles têm um cheiro. Há burgueses simples de quem
se pode dizer que parecem “roubáveis”. Aqueles homens seguem esses
burgueses pacientemente. À passagem de algum estrangeiro ou
provinciano, sentem estremecimentos de aranha.
Quando, por volta da meia-noite, em uma rua deserta, encontra-se ou
avista-se um daqueles homens, é de dar medo. Não parecem homens, mas
formas feitas de bruma viva; parece que formam habitualmente um bloco
com as trevas, que nem são distintos delas, que não têm outra alma senão a
escuridão, e que só momentaneamente, e com a finalidade de viverem
alguns minutos de uma vida monstruosa, é que se desprendem dela.
O que é preciso para fazer essas larvas desaparecerem? Luz. Luz em
abundância. Nem um só morcego resiste ao alvorecer. Iluminemos o
subsolo da sociedade.

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1 Este título irá esclarecer-se no último capítulo deste Livro VII.
2 “Os Infernos”, e também: “aqueles que estão por baixo”.
3 “A escória da sociedade”, e também: terreno, local mais baixo que os adjacentes.
4 Lacenaire Pierre François, ficou conhecido como poeta assassino, pois, embora criminoso,
era músico. Foi guilhotinado em 1836.
5 Uma das estátuas mais antigas da cultura grega, a qual fixou a imagem do herói mítico na
Europa.
6 Bobèche: célebre comediante da época do Império e da Restauração; Bobino: teatro de
pantomima e, posteriormente, de “vaudeville”.
7 Pas-du-tout—negação categórica: absolutamente nada, ninguém. Mas, no texto, tem ainda a
função de rimar com o nome Claquesous, dando-lhe um tom irônico.
8 “Trupes de cortesãs, negociantes de drogas, mendigos, bufões” (Horácio, Sátiras).
LIVRO VIII
O MAU POBRE

I. MARIUS, PROCURANDO UMA MOÇA DE CHAPÉU,


ENCONTRA UM HOMEM DE BONÉ
O VERÃO passou, depois o outono; chegou o inverno. Nem o senhor
Leblanc nem a jovem voltaram a pôr os pés no Luxemburgo. Marius só
tinha um pensamento, rever aquele meigo e adorável rosto. Procurava
sempre, procurava por toda parte; nada encontrava. Marius já não era o
sonhador entusiasta, o homem resoluto, ardente e firme, o ousado
provocador do destino, o cérebro que alicerçava futuro sobre futuro, o
jovem espírito cheio de planos, de projetos, de orgulhos, de ideias e de
vontades; era um cão perdido. Caiu em uma tristeza sombria. Estava tudo
acabado; o trabalho o desagradava, o passeio o cansava, a solidão o
entediava; a vasta natureza, outrora tão plena de formas, de fulgores, de
vozes, de conselhos, de perspectivas, de horizontes, de ensinamentos,
estava agora vazia diante dele. Parecia-lhe que tudo havia desaparecido.
Pensava todo o tempo, pois não podia fazer de outra maneira, porém já
não tinha prazer com seus pensamentos. A tudo o que eles lhe propunham
em voz baixa, respondia sombriamente: “Para quê?”
Fazia-se mil recriminações. Por que a segui? Estava tão feliz só por
vê-la! Ela me olhava; já não era uma grande coisa? Parecia gostar de mim.
Não era tudo? Que mais eu queria? Não há mais nada depois daquilo. Fui
absurdo. Foi minha culpa. Etc., etc.
Courfeyrac, a quem ele nada confiava, como era de sua natureza, mas
que adivinhava um pouco de tudo, como também era de sua natureza,
havia começado por felicitá-lo por estar enamorado, aliás admirando-se
com isso; depois, vendo Marius caído naquela melancolia, acabou lhe
dizendo:
— Vejo que simplesmente você foi um animal. Venha, vamos à
Chaumière.1
Uma vez, confiando em um belo sol de setembro, Marius deixara-se
levar ao baile de Sceaux por Courfeyrac, Bossuet e Grantaire, esperando
— que sonho! — que ali talvez a reencontrasse. Bem entendido, não viu
por lá aquela a quem procurava. “No entanto, é aqui que se encontram
todas as mulheres perdidas”, resmungava Grantaire à parte.
Marius deixou seus amigos no baile e voltou para casa a pé, sozinho,
cansado, febril, os olhos turvos e tristes na escuridão, aturdido com o
barulho e com o pó levantado pelas alegres carruagens cheias de gente
cantante que voltava da festa e passava a seu lado, desalentado, aspirando
o cheiro acre das nogueiras da estrada para refrescar a cabeça.
Pôs-se a viver cada vez mais solitário, afastado, oprimido, entregue a
sua angústia interior, girando em torno de sua dor como o lobo em torno
da armadilha, procurando por toda parte a ausente, embrutecido de amor.
Uma outra vez, teve um encontro que lhe causou uma sensação
singular. Cruzou, nas estreitas ruas próximas ao bulevar de Invalides, com
um homem vestido como operário e usando um boné de pala comprida,
que deixava aparecer mechas de cabelos muito brancos.
Marius impressionou-se com a beleza daqueles cabelos brancos, e
ficou contemplando aquele homem que caminhava a passos lentos e como
que absorvido em uma dolorosa meditação. Coisa estranha, pareceu-lhe
reconhecer o senhor Leblanc. Eram os mesmos cabelos, o mesmo perfil,
até onde o boné permitia enxergar, a mesma aparência, apenas mais triste.
Mas por que aqueles trajes de operário? O que aquilo queria dizer? O que
significava aquele disfarce? Marius ficou muito admirado. Quando voltou
a si, seu primeiro movimento foi pôr-se a seguir aquele homem; quem
sabe ele não encontraria, enfim, o rastro que procurava? Em todo caso, era
preciso ver o homem de perto e esclarecer o enigma. Mas teve essa ideia
tarde demais, o homem não estava mais lá. Tomara alguma ruazinha
lateral, e Marius não pôde alcançá-lo. Esse encontro o preocupou por
alguns dias, depois foi esquecido. “Afinal de contas”, pensou, “era
provavelmente apenas uma semelhança”.

II. ACHADO
Marius continuava morando no casebre Gorbeau. Não prestava atenção
em ninguém dali.
Na verdade, nessa época não havia mais no casebre outros habitantes
além dele e dos tais Jondrette, para quem uma vez pagara o aluguel, sem
nunca ter falado nem com o pai, nem com a mãe, nem com as filhas. Os
outros inquilinos tinham se mudado ou morrido, ou haviam sido expulsos
por falta de pagamento.
Em um dia de inverno, o sol se mostrara um pouco durante a tarde,
mas era 2 de fevereiro, o antigo dia da festa da Candelária, cujo sol
traiçoeiro, precursor de um frio de seis semanas, inspirou a Mathieu
Laensberg estes dois versos que, com justiça, tornaram-se clássicos:

Qu’il luise ou qu’il luiserne,


L’ours rentre en sa caverne.

Brilhe de forma intensa ou fraca,


O urso entra em sua caverna.

Marius acabava de sair de sua caverna. A noite caía. Era hora de ir


jantar; pois pelo menos era preciso voltar a jantar, ai! Ó enfermidades das
paixões ideais!
Acabara de transpor o limiar da porta, que mame Bougon varria
naquele momento enquanto proferia este memorável monólogo:
— O que é barato, hoje em dia? Está tudo caro. Só a miséria do mundo
é barata; não custa nada o sofrimento do mundo!
Marius subia o bulevar a passos lentos em direção à rua Saint-Jacques.
Caminhava pensativo, cabeça baixa.
De repente, sentiu-se acotovelado em meio à névoa; voltou-se e viu
duas jovens esfarrapadas, uma alta e magra, a outra mais baixa, que
passavam rapidamente, esbaforidas, assustadas e parecendo fugir; vinham
ao encontro dele, mas não o tinham visto e esbarraram nele ao passar.
Marius distinguiu no crepúsculo seus rostos lívidos, suas cabeças
descobertas, os cabelos despenteados, suas saias em farrapos e seus pés
descalços. Conversavam enquanto corriam. A maior falava com uma voz
muito baixa:
— Os gambés chegaram. Por pouco que não me pegaram.
E a outra respondeu:
— Eu vi. Me mandei, me mandei!
Por meio dessa gíria sinistra, Marius compreendeu que os policiais ou
os agentes municipais quase prenderam as duas meninas, e que elas
haviam fugido. Elas se meteram sob as árvores do bulevar, por trás dele, e,
durante alguns instantes formaram na escuridão uma espécie de vaga
brancura que se desfez. Marius parou por um momento.
Ia continuar seu caminho quando avistou um pequeno embrulho pardo
no chão, próximo a seus pés. Abaixou-se e pegou-o. Era uma espécie de
envelope que parecia conter papéis.
— Bem — pensou —, aquelas infelizes devem ter deixado isto cair!
Voltou atrás, chamou, mas não as encontrou mais; achou que elas já
estavam longe, colocou o embrulho no bolso e foi jantar.
No caminho, viu em uma travessa da rua Mouffetard um caixão de
criança coberto com um pano preto, colocado em cima de três cadeiras e
iluminado por uma vela. Voltaram-lhe à lembrança as duas meninas do
anoitecer.
— Pobres mães! — pensou. — Há uma coisa mais triste que ver seus
filhos morrer; é vê-los viver mal!
Depois, essas sombras que fizeram variar sua tristeza saíram de seu
pensamento, e ele voltou às suas habituais preocupações. Pôs-se
novamente a pensar nos seus seis meses de amor e felicidade ao ar livre,
em plena luz do dia, debaixo das belas árvores do Luxemburgo.
— Como minha vida se tornou sombria! — dizia a si mesmo. — As
jovens continuam me aparecendo. Só que antes eram anjos, e agora são
vampiros.

III. QUADRIFRONS2
À noite, quando tirava a roupa para se deitar, sua mão encontrou no
bolso do casaco o embrulho que recolhera no bulevar. Já havia se
esquecido dele. Pensou que seria útil abri-lo, porque talvez contivesse o
endereço das meninas, se, na realidade, o embrulho lhes pertencesse, ou,
em todo caso, as informações necessárias para o restituir a quem o havia
perdido.
Abriu o envelope.
Não estava lacrado, e continha quatro cartas, igualmente não lacradas.
Todas estavam endereçadas.
Todas as quatro exalavam um medonho odor de tabaco.
A primeira carta estava assim endereçada: à Senhora marquesa de
Grucheray, defronte à Câmara dos Deputados, n°…
Marius achou que provavelmente ali encontraria as indicações que
procurava, e que, além do mais, a carta, não estando fechada, parecia
poder ser lida sem inconvenientes.
A carta fora concebida nos seguintes termos:

“Senhora marquesa,
A virtude da clemência e piedade é a que mais estreitamente une a sociedade. Use seu
sentimento cristão, e lance um olhar de compaixão sobre esta infelis espanhol, vítima da
lealdade e do apego à sagrada causa da legitimidade, que ele pagou com seu sangue, e
devotou sua fortuna, inteira, para defender tal causa, e hoje se encontra na mais grande
miséria. Ele não duvida que sua honorável pessoa irá conceder-lhe uma ajuda para
conservar uma existência extremamente penosa para um militar de educação e de honra
cheio de feridas. Conta de antemão com a humanidade que aníma a senhora e com o
interesse que a marquesa tem por uma nação tão desaventurada. As súplicas dele não serão
em vã, e o reconhecimento conservará sua encantadora lembrança.
De meus respeitosos sentimentos com as quais tenho a honra de ser,
Senhora,
DON ALVARÈS, capitão espanhol de cavalaria, realista refugiado na França que se
encontra em viagém para sua patria e lhe faltam os recursos para continuar sua viagém”.

Nem uma só palavra depois da assinatura. Marius esperou encontrar o


endereço na segunda carta, cuja subscrição era: à Senhora condessa de
Montvernet, rua Cassette, n° 9.
Eis o que Marius leu:

“Senhora Condessa,
É uma disgrassada mãe de família de seis crianças que o mais novo só tem oito meses.
Estou doente desde o meu último parto, abandonada por meu marido desde cinco meses
sem recurso nenhum no mundo na mais completa indigença.
Na esperança da senhora condessa, ela tem a honra de ser, minha senhora, com um
profundo respeito,
Dona Balizar”.

Marius passou à terceira carta, que era, como as precedentes, uma


súplica; lia-se:

“Senhor Pabourgeot, eleitor, negociante-de-bonés por atacado, rua de Saint-Denis,


esquina da rua aux Fers.
Permito-me enviar-lhe esta carta para rogar-lhe que me conceda o presioso favor de suas
simpatias e de interessar-se por um homem de letras que acaba de enviar um drama ao
teatro-francês. O assunto dele é histórico, e a ação se passa em Auvergne do tempo do
Império. O estilo, no meu entender, é natural, lacônico, e pode ter algum mérito. Tem coplas
a serem cantadas em quatro passagens. O cômico, o sério, o imprevisto misturam-se à
variedade dos caracteres e a uma pincelada de romantismo ligeiramente espalhada por toda
a intriga que se desenrola mistereosamente, e vai, por peripéssias de grande efeito, ter seu
desfecho em meio a muitas cenas admiráveis.
Meu principal objetivo é satísfaser o desejo que progressivamente anima o homem do
nosso século, quero dizer, a moda, esse caprixoso e singular catavento que muda
praticamente a cada novo vento.
Apesar dessas qualidades receio que a inveja, o egoísmo dos autores privilegiados
consiga a minha exclusão do teatro, pois não ignoro os dissabores com os quais os novos
autores são acabrunhados.
Senhor Pabourgeot, sua justa reputação de protetor esclarecido de gentes de letras me faz
ousar enviar-lhe minha filha, que vai lhe expor a nossa situação indijente, faltando pão e
fogo nesta estação de hinverno. Dizer-lhe que peço que aceite a homenagem que desejo
fazer-lhe do meu drama e de todos os que farei é dar-lhe uma prova de quanto ambissiono a
honra de me abrigar debaixo da sua égide e adornar os meus escritos com o seu nome. Se
quiser honrar-me com a mais modesta doação, brevemente me ocuparei em fazer uma pessa
em versos para lhe pagar o meu tributu de reconhecimento. Essa pessa, que tratarei de
tornar perfeita o mais possível, será enviada ao senhor antes de ser inserida no princípio do
drama e recitada em cena.
Ao Senhor,
E Senhora Pabourgeot,
Minhas homenagens mais respeitosas.
GENFLOT, homem de letras.
P. S. Nem que sejam só quarenta soldos.
Desculpe-me por mandar minha filha e não me apresentar eu mesmo; mas tristes motivos
de vestuário não me permitem, infelizmente, sair…”

Enfim, Marius abriu a quarta carta. Tinha como endereço: Ao senhor


benfeitor da igreja Saint-Jacques-du-Haut-Pas. Continha estas poucas
linhas:

“Homem caridoso,
Se houver por bem acompanhar minha filha, verá uma calamidade mizerável, e eu lhe
mostrarei meus atestados.
À vista destes escritos, sua alma generosa será movida por um sentimento de sensível
benevolência, pois os verdadeiros filósofos experimentam sempre vivas emoções.
Convenha, homem compassivo, que é preciso passar pela mais cruel necessidade, e que
é bem doloroso, para obter algum alívio, fazer com que seja atestada pela autoridade como
se a gente não fosse livre para sofrer e morrer de inanição esperando que alguém alivie
nossa miséria. Os destinos são bem fatal para alguns e pródigo demais ou protetor demais
para outros.
Espero sua presença ou sua doação, se houver por bem a fazer, e peço-lhe que aceite
meus respeitosos sentimentos, com os quais me honro de ser,
homem verdadeiramente magnânimo,
seu muito humilde
e muito obrigado servo,
P. FABANTOU, artista dramático”.

Após ter lido essas quatro cartas, Marius não se sentiu muito mais
adiantado do que antes.
Primeiro, nenhum dos signatários dava seu endereço.
Depois, pareciam vir de quatro indivíduos diferentes, Don Alvarès,
dona Balizard, o poeta Genflot, e o artista dramático Fabantou; mas as
cartas tinham algo de estranho, o fato de serem, todas as quatro, escritas
com a mesma letra.
Que se podia concluir daí, senão que vinham da mesma pessoa?
Além disso, o que tornava ainda mais verossímil a conjectura, o papel,
grosseiro e amarelado, era o mesmo para as quatro, o cheiro de tabaco era
o mesmo, e, embora fosse evidente que tivessem procurado variar o estilo,
os mesmos erros de ortografia reproduziam-se em todas com uma
tranquilidade profunda, e o homem de letras Genflot não era mais isento
deles do que o capitão espanhol.
Esmerar-se em adivinhar esse pequeno mistério era um trabalho inútil.
Se não tivesse sido um achado, ia parecer um logro. Marius estava
demasiado triste para tomar por bem até mesmo uma brincadeira do acaso
e para se prestar ao jogo que parecia querer jogar com ele a calçada da rua.
Tinha a impressão de que estava em um jogo de cabra-cega com as quatro
cartas que zombavam dele.
Nada, aliás, indicava que as quatro cartas pertencessem às moças com
quem Marius se encontrara no bulevar. Afinal de contas, era uma papelada
evidentemente sem valor algum.
Marius colocou-as de volta no envelope, jogou tudo em um canto e
deitou-se.
Por volta das sete horas, acabava de se levantar e de tomar seu café da
manhã, e dispunha-se a começar seu trabalho quando bateram
delicadamente à sua porta.
Como não possuía nada, nunca tirava a chave da porta, a não ser
algumas vezes, bem raramente, quando trabalhava em algo urgente. De
resto, mesmo quando saía, deixava sua chave na fechadura.
— Vão acabar por roubá-lo — dizia mame Bougon.
— Mas o quê? — respondia Marius.
O fato é que um dia roubaram-lhe um velho par de botas, para grande
triunfo de mame Bougon.
Bateram uma segunda vez tão delicadamente quanto da primeira.
— Pode entrar — disse Marius.
A porta se abriu.
— O que a senhora quer, mame Bougon? — disse Marius sem tirar os
olhos dos livros e manuscritos que tinha sobre a mesa.
Uma voz, que não era a de Mame Bougon, respondeu:
— Perdão, senhor….
Era uma voz surda, abafada, falha, sufocada, roufenha, uma voz de
velho enrouquecida pela aguardente, pela bebida.
Marius voltou-se rapidamente, e viu uma jovem.

IV. UMA ROSA NA MISÉRIA


Era uma jovenzinha quem se achava de pé junto à porta entreaberta. A
pequena janela do quarto, por onde a claridade entrava, ficava justamente
defronte à porta e clareava aquela figura com uma luz pálida. Era uma
criatura lívida, débil, mirrada; nada mais que uma camisa e uma saia por
cima de uma nudez trêmula e gelada. Como cinto, um barbante; prendendo
os cabelos, um barbante; ombros pontudos saindo da camisa, uma palidez
esbranquiçada e linfática, clavículas cor de terra, mãos avermelhadas,
boca entreaberta e deteriorada, alguns dentes a menos, olhos embaçados,
atrevidos, mas baixos; formas de moça malograda e olhar de velha
corrompida; cinquenta anos misturados a quinze anos; uma dessas
criaturas que são ao mesmo tempo frágeis e horríveis, e fazem estremecer
aqueles que não fizeram chorar.
Marius erguera-se e olhava com uma espécie de pasmo essa criatura
quase semelhante às formas sombrias que atravessam os sonhos.
E sobretudo pungente era que essa jovem não tinha vindo ao mundo
para ser feia. Em sua primeira infância, devia até ter sido bonita. A graça
da idade ainda lutava contra a horrível velhice antecipada da devassidão e
da pobreza. Um resto de beleza morria naquele rosto de dezesseis anos,
como o pálido sol que se apaga sob escuras nuvens no amanhecer de um
dia de inverno. Aquele rosto não era completamente desconhecido de
Marius. Ele acreditava lembrar-se de o ter visto em algum lugar.
— O que quer, senhorita? — perguntou ele.
A jovem respondeu com sua voz de homem embriagado:
— Entregar-lhe uma carta, senhor Marius.
Ela o chamava pelo nome; Marius não podia ter dúvida de que o caso
era com ele; mas que moça era aquela? Como ela sabia seu nome?
Sem esperar que ele lhe dissesse para entrar, ela entrou. Entrou
resolutamente, olhando com uma espécie de ousadia, que apertava o
coração, para o quarto inteiro e para a cama desfeita. Estava descalça.
Grandes rasgos em sua saia deixavam ver as pernas longas e os joelhos
magros. Ela tiritava.
De fato, tinha na mão uma carta, que entregou a Marius.
Ao abri-la, Marius percebeu que o lacre caseiro, largo e enorme, ainda
estava úmido. A mensagem não podia vir de muito longe. Ele leu:

“Meu amável vizinho, meu jovem!


Soube da sua bondade para comigo, pagando meu aluguel há seis meses. Eu o abençoo,
meu jovem. Minha filha mais velha lhe dirá que estamos sem um pedaço de pão há dois
dias, quatro pessoas, e minha esposa doente. Se eu não me dessepiciono no meu
pensamento, acredito poder esperar que o seu coração generoso se humanizará com o
exposto e o subjugará o desejo de me ser propício, tendo a bondade de prodigalizar-me um
pequeno donativo.
Sou com a distinta consideração devida aos benfeitores da humanidade,
Jondrette.

P. S. — Minha filha esperará as suas ordens, caro senhor Marius”.

Essa carta, no meio da obscura aventura que preocupava Marius desde


a noite do dia anterior, era como que uma luz em um subterrâneo. Tudo
repentinamente tornou-se claro.
Essa carta vinha de onde vinham as outras quatro. Era a mesma letra, o
mesmo estilo, a mesma ortografia, o mesmo papel, o mesmo cheiro de
tabaco.
Havia cinco missivas, cinco histórias, cinco nomes, cinco assinaturas,
mas um só signatário. O capitão espanhol Don Alvarès, a infeliz dona
Balizard, o poeta dramático Genflot, o velho comediante Fabantou
chamavam-se, todos os quatro, Jondrette, se é que o próprio Jondrette se
chamava Jondrette.
Mesmo morando já havia bastante tempo no casebre, Marius só teve,
como dissemos, bem raras oportunidades de ver, ou mesmo de entrever,
sua vizinhança de tão baixo nível. Tinha o pensamento longe, e onde está o
pensamento está o olhar. Deve ter passado mais de uma vez pelos
Jondrette no corredor ou na escada, mas para ele eram apenas silhuetas;
havia reparado tão pouco neles que no dia anterior, no bulevar, esbarrara
nas filhas sem as reconhecer, pois evidentemente eram elas, e só a muito
custo esta, que acabava de entrar em seu quarto, despertara nele, pela
aversão e pela compaixão, uma vaga lembrança de já tê-la visto em algum
lugar.
Agora ele via tudo claramente. Compreendia que seu vizinho Jondrette
tinha, como modo de ganhar a vida em meio a sua penúria, a exploração da
caridade das pessoas bondosas; que arranjava endereços, e que escrevia
com nomes falsos, a pessoas que supunha ricas e piedosas, cartas que suas
filhas entregavam por sua conta e risco, pois era claro que aquele pai
arriscava suas filhas; jogava uma partida com o destino e as submetia ao
jogo. Marius compreendia que, provavelmente, a julgar pela fuga das
jovens no dia anterior, por seu cansaço, por seu terror, e pelas gírias que
ouvira, aquelas desafortunadas tinham também não se sabe que outras
obscuras ocupações; e que, de tudo aquilo, havia resultado, no meio à
sociedade humana tal qual ela é, duas miseráveis criaturas que não eram
nem crianças, nem moças, nem mulheres, mas espécies de monstros
impuros e inocentes produzidos pela miséria.
Tristes criaturas sem nome, sem idade, sem sexo, a quem nem o bem
nem o mal são mais possíveis, e que, ao sair da infância, já não têm nada
neste mundo, nem liberdade, nem virtude, nem responsabilidade. Almas
desabrochadas ontem, murchas hoje, semelhantes às flores que caem pela
rua, manchadas por todo tipo de lama antes de serem esmagadas por
alguma roda.
No entanto, enquanto Marius não despregava dela um olhar espantado
e doloroso, a jovem ia e voltava dentro do quarto com uma audácia de
espectro. Agitava-se sem preocupar-se com sua nudez. Por instantes, sua
camisa puída e rasgada caía-lhe quase à altura da cintura. Mexia nas
cadeiras, desarrumava os objetos de toalete que estavam sobre a cômoda,
tocava nas roupas de Marius, bisbilhotava em tudo o que havia pelos
cantos.
— Veja — disse ela —, o senhor tem um espelho!
E cantarolava, como se estivesse sozinha, trechos de vaudeville,
refrões amalucados que sua voz gutural e rouca tornava lúgubres. Sob essa
ousadia, transparecia algo de forçado, de inquieto e de humilhado. O
descaramento é uma vergonha.
Nada era mais melancólico que vê-la folgar daquela maneira e, por
assim dizer, esvoaçar pelo quarto com movimentos de um pássaro que se
assustara com a claridade ou quebrara uma asa. Sentia-se que, em outras
condições de educação e de destino, a aparência alegre e livre dessa jovem
poderia ter certa meiguice e encanto. Jamais entre os animais a criatura
nascida para ser pomba converte-se em abutre. Isso só se vê entre os
homens.
Marius pensava, e a deixava à vontade.
Ela aproximou-se da mesa.
— Ah, livros! — disse ela.
Um brilho atravessou seu olhar vidrado. Disse ainda, com um acento
que exprimia a felicidade de gabar-se de alguma coisa, à qual nenhuma
criatura humana é insensível:
— Eu sei ler.
Pegou com presteza o livro aberto que estava sobre a mesa, e leu
correntemente:

“…O general Bauduin recebeu ordem de apoderar-se com os cinco batalhões de sua
brigada do castelo de Hougomont, que fica no meio da planície de Waterloo…”

Ela parou:
— Ah! Waterloo! Eu sei o que é isso. Foi uma batalha que aconteceu
faz tempo. Meu pai estava lá. Meu pai servia no exército. Nós somos
muito bonapartistas em casa! Foi contra os ingleses, Waterloo.
Largou o livro, pegou uma pena, e exclamou:
— E também sei escrever!
Molhou a pena na tinta, e voltando-se para Marius:
— Quer ver? Olhe, vou escrever uma palavra para o senhor ver.
E, antes que ele tivesse tempo de responder, ela escreveu em uma folha
de papel em branco que estava no meio da mesa: Os gambés chegaram.
Depois, largando a pena:
— Não tem erro de ortografia. Pode ver. Eu e minha irmã tivemos
educação. Nós não fomos sempre como somos agora. Não fomos feitas
para…
Parou nesse ponto, fixou em Marius seus olhos sem brilho e desatou a
rir, falando com uma entonação que continha todas as angústias abafadas
por todos os cinismos:
— Bah!
E pôs-se a cantarolar estas palavras de forma alegre:

J’ai faim, mon père,


Pas de fricot.
J’ai froid, ma mere,
Pas de tricot.
Grelotte,
Lolotte!
Sanglote,
Jacquot!

Estou com fome, meu pai,


Não tem comida.
Estou com frio, minha mãe,
Não tem agasalho.
Trema,
Lolotte!
Chore,
Jacquot!

Assim que acabou essa cantiga, exclamou:


— O senhor às vezes vai ao teatro, senhor Marius? Eu vou. Tenho um
irmãozinho que é amigo de uns artistas e que às vezes me dá uns
ingressos. Por exemplo, eu não gosto dos assentos das galerias. A gente
fica apertada, mal acomodada. Às vezes tem muita gente; também tem
gente que cheira mal.
Depois olhou para Marius, ficou com ar estranho e lhe disse:
— Sabe, senhor Marius, que o senhor é um moço muito bonito?
E, ao mesmo tempo, os dois tiveram o mesmo pensamento, que a ela
fez sorrir e a ele corar.
Ela aproximou-se dele e colocou uma das mãos em seu ombro.
— O senhor não presta atenção em mim, mas eu o conheço, senhor
Marius. Encontro o senhor aqui na escada, e também vejo o senhor entrar
na casa de um tal Pai Mabeuf, que mora para os lados de Austerlitz, às
vezes, quando passo por ali. Ficam bem no senhor, esses cabelos
despenteados.
Sua voz queria soar meiga, mas conseguia apenas soar muito baixa.
Parte das palavras se perdia na passagem da laringe aos lábios, como em
um teclado em que faltam algumas notas. Marius havia recuado
delicadamente.
— Senhorita — disse ele com sua fria gravidade —, tenho aqui um
embrulho que, acredito, seja seu. Deixe-me devolvê-lo.
E estendeu-lhe o envelope que continha as quatro cartas.
Ela bateu palmas e exclamou:
— Procuramos por toda parte!
Então pegou rapidamente o embrulho, e abriu o envelope dizendo:
— Meu Deus! Como eu e minha irmã procuramos isso! E foi o senhor
que achou? No bulevar, não foi? Deve ter sido no bulevar. Sabe, caiu
quando nós corremos. Foi a fedelha da minha irmã que fez a besteira.
Quando chegamos em casa não achamos mais. Como a gente não queria
apanhar, que é uma coisa inútil, apanhar é inteiramente inútil,
absolutamente inútil, dissemos que tínhamos levado as cartas para as
pessoas e que elas não disseram nicas! Mas elas estão aqui, coitadas! E
como viu que eram minhas? Ah, sim, pela letra! Então foi no senhor que
esbarramos ontem à noite. Não se via nada! Eu falei para a minha irmã:
“Será que é um homem?” E minha irmã me disse: “Eu acho que é”.
Enquanto isso, ela abriu a súplica endereçada “ao senhor benfeitor da
igreja Saint-Jacques-du-Haut-Pas”.
— Ah! É a carta para o velho que vai à missa. Está bem na hora. Vou
entregar a ele. Talvez nos dê algo para almoçar.
Depois, riu outra vez e acrescentou:
— Quer saber o que significa se almoçarmos hoje? O almoço de hoje
vale pelo almoço de anteontem, pelo jantar de anteontem, pelo almoço de
ontem, pelo jantar de ontem, tudo isso de uma vez, esta manhã. Caramba!
Se não estão contentes, morram de fome, seus cachorros.
Isso fez Marius se lembrar do que a infeliz tinha ido procurar na casa
dele.
Remexeu os bolsos, mas não achou nada.
A jovem continuava, e parecia falar como se não tivesse consciência
de que Marius estivesse ali.
— Às vezes, eu saio à noite. Às vezes, nem volto. Antes de vir para cá,
no outro inverno, a gente morava embaixo dos arcos das pontes. A gente
ficava todos juntos para não congelar. Minha irmã chorava. A água, que
tristeza! Quando eu pensava em me afogar, dizia: “Não, é fria demais”. Eu
saio sozinha quando eu quero; às vezes, durmo por aí. Sabe, de noite,
quando ando pela rua, vejo as árvores como se fossem forcados, vejo as
casas escuras e grandes como as torres de Notre-Dame; imagino que os
muros brancos são o rio, e penso: “Veja, ali tem água!” As estrelas são
como lampiões de iluminação, parece que soltam fumaça e são apagadas
pelo vento; fico aturdida, como se cavalos estivessem bufando em meus
ouvidos; apesar de ser noite, ouço realejos e máquinas de fiar, sei lá!
Parece que me atiram pedras, que eu fujo sem saber, tudo gira, tudo gira.
Quando a gente não come, é muito esquisito.
E olhou para Marius com ar desvairado.
De tanto procurar nos bolsos, ele acabou juntando cinco francos e
dezesseis soldos. Naquele momento, era tudo o que ele possuía no mundo.
“Isso é para o jantar de hoje, amanhã veremos”, pensou, ficando com os
dezesseis soldos e dando os cinco francos para a jovem.
— Bom — disse ela —, tem sol!
E, como se o sol tivesse a propriedade de derreter-lhe no cérebro
avalanches de gíria, prosseguiu:
— Cinco francos! Que grana! Um monarca! Nesse barraco! Que
beleza! O senhor é um cara bacana! Um cara do peito. Viva essa bufunfa!
Dois dias com rango! Boia! Grude! Vamos rangar que é uma beleza! E
encher a cara!
Puxou a camisa sobre os ombros, fez uma grande saudação a Marius,
um gesto familiar com a mão, e encaminhou-se para a porta, dizendo:
— Bom dia, meu senhor. Tudo bem. Vou procurar meu velho.
Ao passar, viu sobre a cômoda uma casca de pão seco que embolorava
empoeirada, atirou-se sobre ela e a mordeu resmungando:
— Está bom! Está duro! Isso vai quebrar meus dentes!
E saiu.

V. O JUDAS DA PROVIDÊNCIA
Havia cinco anos que Marius vivia na pobreza, na privação, na penúria
mesmo, mas percebeu que não havia conhecido a verdadeira miséria. A
verdadeira miséria, ele acabava de vê-la. Era aquela larva que acabava de
passar por seus olhos. É que, na verdade, quem só viu a miséria do homem
nada viu; é preciso ver a miséria da mulher; quem só viu a miséria da
mulher nada viu; é preciso ver a miséria da criança.
Quando o homem chega às últimas extremidades, chega, ao mesmo
tempo, aos últimos recursos. Pobres das criaturas indefesas que o rodeiam!
O trabalho, o salário, o pão, o fogo, o ânimo, a boa vontade, tudo lhe falta
de uma só vez. A claridade do dia parece apagar-se em seu exterior, e a luz
moral apaga-se em seu interior; nessas trevas, o homem encontra a
fragilidade da mulher e da criança, e as submete violentamente às
ignomínias.
Então, todos os horrores são possíveis. O desespero é cercado por
frágeis anteparos que se voltam, todos, para o vício ou para o crime.
A saúde, a juventude, a honra, as santas e intratáveis delicadezas da
carne ainda nova, o coração, a virgindade, o pudor, esse a epiderme da
alma, são sinistramente manejados por aquele apalpar que procura
recursos, que encontra o opróbrio e se acomoda com ele. Pais, mães,
filhos, irmãos, irmãs, homens, mulheres, moças, aderem e se agregam
quase como uma formação mineral, nessa enevoada promiscuidade de
sexos, de parentescos, de idades, de infâmias, de inocências. Acocoram-se,
encostados uns nos outros, em uma espécie de destino-chiqueiro.
Entreolham-se lamentavelmente. Oh! Esses desafortunados! Como são
pálidos! Como sentem frio! Parece que vivem em um planeta muito mais
distante do Sol do que nós.
Aquela jovem fora para Marius como que uma enviada das trevas.
Revelou-lhe todo um lado medonho da escuridão.
Marius quase recriminou-se pelas preocupações sonhadoras e
apaixonadas que até aquele dia o haviam impedido de lançar um olhar
sobre seus vizinhos. Ter-lhes pago o aluguel fora um ato maquinal, que
qualquer um praticaria; mas ele deveria ter feito mais. O que é isso!
Apenas uma parede o separava daqueles seres abandonados que viviam
tateando na escuridão, fora do círculo dos viventes; passava por eles, era,
de alguma forma, o último elo do gênero humano que tocavam; ouvia-os
viver, ou, antes, agonizar a seu lado, e nem sequer prestava atenção neles!
Todos os dias, a cada instante, através da parede, ouvia-os andar, ir, voltar,
falar, e não aplicava os ouvidos! E entre aquelas palavras havia gemidos, e
nem isso ele escutava! Seu pensamento estava longe, em sonhos, em
brilhos impossíveis, em amores no ar, em loucuras; e, no entanto, criaturas
humanas, seus irmãos em Jesus Cristo, seus irmãos do povo agonizavam a
seu lado! Agonizavam inutilmente! Ele até mesmo fazia parte de seu
infortúnio, o agravava. Pois se elas tivessem outro vizinho, um vizinho
menos quimérico e mais atento, um homem comum e caridoso,
evidentemente sua indigência teria sido notada, seus sinais de penúria
teriam sido percebidos, e havia muito tempo talvez já tivessem sido
recolhidos e salvos! Sem dúvida pareciam bem depravados, bem
corrompidos, bem envilecidos e até bem odiosos; mas são raros os que
caíram sem se degradar; além disso, há um ponto em que os
desafortunados e os infames se misturam e se confundem em uma só
palavra, palavra fatal — os miseráveis; de quem é a culpa? E, também,
não é quando a queda é mais profunda que a caridade deve ser maior?
Enquanto pregava-se essa moral, pois havia ocasiões em que Marius,
como todos os corações verdadeiramente honestos, era pedagogo de si
mesmo e se repreendia mais do que merecia, olhava para a parede que o
separava dos Jondrette como se pudesse, através dela, fazer passar seu
olhar cheio de compaixão e ir aquecer aqueles infelizes.
A parede era uma delgada lâmina de gesso, sustentada por algumas
ripas e vigas, que, como acabamos de ler, deixava que se distinguisse
perfeitamente o ruído de palavras e de vozes. Era preciso ser o distraído
Marius para não ter-se ainda dado conta. A grosseira construção dessa
parede estava completamente à vista; nenhum papel fora colado sobre ela,
nem do lado dos Jondrette, nem do lado de Marius.
Quase sem ter consciência do que fazia, Marius examinou a tal parede;
às vezes, a divagação examina, observa e escruta como faria o
pensamento. De repente, ele se levantou; acabava de notar no alto, perto
do teto, um buraco triangular resultante de três ripas que deixavam um
espaço entre elas. O reboque que devia tapar esse espaço não existia, de
modo que, subindo-se na cômoda, podia-se ver por aquela abertura o
quarto dos Jondrette. A comiseração tem, e deve ter, sua curiosidade.
Aquela abertura formava uma espécie de judas.3 É permitido observar
traiçoeiramente o infortúnio para o socorrer. “Vamos ver um pouco quem é
essa gente”, pensou Marius, “e como é que estão”.
Subiu na cômoda, aproximou os olhos da fresta e olhou.

VI. O HOMEM SELVAGEM NO COVIL


As cidades, assim como as florestas, têm seus antros nos quais se
esconde tudo o que elas encerram de mais temeroso e perverso. Com a
diferença de que, nas cidades, o que assim se esconde é feroz, imundo e
pequeno, isto é, feio; nas florestas o que se esconde é feroz, selvagem e
grande, quer dizer, belo. Covil por covil, o dos animais é preferível ao dos
homens. As cavernas são melhores do que as espeluncas.
O que Marius via era uma espelunca.
Marius era pobre e seu quarto era indigente; mas, do mesmo modo que
sua pobreza era nobre, seu quarto era limpo. O chiqueiro em que seu olhar
mergulhava naquele momento era abjeto, sujo, fétido, infecto, tenebroso,
sórdido. Os únicos móveis eram uma cadeira de palha, uma mesa manca,
alguns cacos velhos e, em dois dos cantos, duas miseráveis camas
indescritíveis; a única claridade vinha de uma pequena janela de quatro
vidros coberta de teias de aranha. Por esse postigo entrava somente a luz
necessária para que o rosto de um homem parecesse o rosto de um
fantasma. As paredes tinham um aspecto leproso, estavam cobertas de
remendos e cicatrizes, como um rosto desfigurado por alguma horrível
doença. Uma umidade viscosa brotava delas. Divisavam-se ali desenhos
obscenos grosseiramente feitos com carvão.
O aposento que Marius ocupava era pavimentado com tijolos
deteriorados; este, nem era ladrilhado nem assoalhado; pisava-se a nu em
cima do antigo roboque que se tornara encardido com o tempo. Nesse piso
desigual, em que o pó estava como que incrustado, e que só tinha uma
virgindade, a da vassoura, agrupavam-se caprichosas constelações de
tamancos, chinelos velhos e trapos medonhos; de resto, no quarto havia
uma lareira, que também era alugada por quarenta francos anuais. Tinha
de tudo naquela lareira: um fogareiro, um caldeirão, umas tábuas
quebradas, uns farrapos pendurados em pregos, uma gaiola, cinzas, e até
mesmo um pouco de fogo. Dois tições ali fumegavam tristemente.
Uma coisa que acrescentava ainda mais horror a esse chiqueiro era o
fato de ser grande. Tinha saliências, ângulos, buracos escuros, desvãos,
vãos e promontórios. E aí, medonhos cantos insondáveis onde deveriam
esconder-se aranhas grandes como um punho, lacraias grandes como um
pé, e talvez até mesmo não se sabe que seres humanos monstruosos.
Uma das camas ficava perto da porta, a outra perto da janela. As duas
tocavam, por uma das extremidades, a lareira, e ficavam de frente para
Marius.
Em um ângulo próximo à abertura por onde Marius espreitava, estava
pendurada na parede, em uma moldura de madeira preta, uma gravura
colorida, abaixo da qual estava escrito com letras bem grandes: “O sonho”.
Representava uma mulher e uma criança adormecidas, a criança sobre os
joelhos da mulher; uma águia em uma nuvem trazendo uma coroa, e a
mulher afastando a coroa da cabeça da criança, mas sem acordar; ao
fundo, Napoleão em glória, apoiando-se em uma coluna azul com capitel
amarelo, ornada com esta inscrição:

Maringo
Austerlitz
Iena
Wagramme
Elot

Abaixo desse quadro, uma espécie de painel de madeira, mais


comprido do que largo, estava colocado no chão e apoiado, em plano
inclinado, na parede. Parecia um quadro virado, ou um caixilho
provavelmente sujo do outro lado, ou alguma placa arrancada de uma
parede e ali esquecida à espera de que tornassem a pregá-la.
Perto da mesa, sobre a qual Marius via uma pena, papel e tinta, estava
sentado um homem de aproximadamente sessenta anos, baixo, magro,
lívido, de olhar espantado, aparência finória, cruel e inquieta; um
malandro repugnante.
Se Lavater tivesse observado aquele rosto, teria encontrado nele o
abutre misturado com o procurador; a ave de rapina e o homem de
trapaças enfeiando-se e completando-se um ao outro; o homem de trapaças
tornando a ave de rapina ignóbil; a ave de rapina tornando o homem de
trapaças horrível.
Aquele homem tinha uma longa barba grisalha. Vestia uma camisa de
mulher que lhe deixava à mostra o peito cabeludo e os braços com pelos
grisalhos eriçados. Por baixo da camisa, viam-se umas calças cheias de
lama, e botas das quais ficavam de fora os dedos dos pés.
Tinha um cachimbo na boca e fumava. Não havia mais pão naquela
espelunca, mas ainda havia tabaco.
Estava escrevendo, provavelmente alguma carta como as que Marius
tinha lido.
Em um canto da mesa, via-se um livro velho de cor avermelhada, cujo
formato, o antigo in-12 dos gabinetes de leitura, revelava ser um romance.
Na capa, mostrava-se impresso em grandes letras maiúsculas este título:
Deus, o rei, a honra e as damas, por Ducray Duminil — 1814.
Ao mesmo tempo que escrevia, o homem falava em voz alta, e Marius
ouvia suas palavras:
— Dizer que não há igualdade, nem quando estamos mortos! Olhem só
o Père-Lachaise! Os grandes, os que são ricos, estão na parte de cima, na
alameda de acácias que é pavimentada. Podem ir até lá de carruagem. Os
pequenos, a gente pobre, os desgraçados, ora! São colocados lá embaixo,
onde a lama vai até o joelho, em buracos, na umidade! São jogados ali
para que se estraguem mais depressa! Ninguém pode ir vê-los sem se
afundar na terra.
Parou aí, bateu com o punho na mesa e acrescentou rangendo os
dentes:
— Oh! Eu comeria o mundo!
Uma mulher gorda, que poderia ter quarenta anos ou cem anos, estava
agachada perto da lareira, com os pés descalços. Ela também vestia apenas
uma camisa e uma saia de tricô remendada com uns pedaços de pano
velho. Um avental de tecido grosseiro cobria metade da saia. Embora a
mulher estivesse dobrada e encolhida sobre ela mesma, via-se que era de
estatura alta. Era quase uma gigante ao lado do marido. Tinha cabelos
horríveis, de um ruivo que já se tornava grisalho, que ela remexia de
quando em quando com suas grandes e luzidias mãos de unhas achatadas.
Ao lado dela, no chão, havia um livro aberto, do mesmo formato que o
outro, e provavelmente do mesmo romance.
Sobre uma das camas, Marius entrevia uma espécie de moça esguia e
lívida sentada, quase nua e com os pés pendentes, parecendo nem escutar,
nem ver, nem viver.
Era decerto a irmã mais nova da que tinha ido ao quarto dele.
Parecia ter onze ou doze anos. Examinando-a com atenção, reconhecia-
se que tinha uns catorze. Era a menina que na noite anterior, no bulevar,
dizia: “Me mandei! Me mandei!”
Era daquele tipo doentio que permanece bastante tempo em atraso e
depois cresce rápida e repentinamente. É a indigência que produz essas
tristes plantas humanas. São criaturas que não têm nem infância nem
adolescência. Aos quinze anos, parecem ter doze, aos dezesseis parecem
ter vinte. Hoje meninas; amanhã mulheres. Pode-se dizer que saltam a
vida, para chegar ao fim mais depressa.
Naquele momento, aquela criatura parecia uma criança.
De resto, naquele lugar não se revelava a presença de nenhum trabalho;
nem uma ocupação, nem uma roda de fiar, nem uma ferramenta. Em um
canto, umas ferragens de aspecto duvidoso. Era aquela triste preguiça que
se segue ao desespero e que precede a agonia.
Marius observou por algum tempo aquele interior fúnebre, mais
medonho que o interior de um túmulo, pois ali sentia-se o movimento da
alma humana e o palpitar da vida.
O casebre, o porão, o buraco onde certos indigentes rastejam, no mais
baixo nível do edifício social, não são o sepulcro, são sua antecâmara;
mas, como os opulentos que ostentam suas maiores magnificências à
entrada de seus palácios, parece que a morte, que está bem ao lado, coloca
suas maiores misérias nesse vestíbulo.
O homem calara-se, a mulher não falava, a jovem parecia nem respirar.
Ouvia-se o ranger da pena sobre o papel.
O homem resmungou, sem parar de escrever:
— Corja, corja, é tudo uma corja!
Essa variante do epifonema de Salomão4 arrancou um suspiro à
mulher.
— Meu amigo, fique calmo — disse ela. — Não se atormente, querido.
Você é muito bom por escrever a toda essa gente, meu homem!
Na miséria, os corpos se encostam uns nos outros, como no frio, mas
os corações se afastam. Segundo todas as aparências, aquela mulher deve
ter amado aquele homem com todo o amor que havia dentro dela; mas,
provavelmente, em meio às cotidianas e recíprocas recriminações
motivadas pela horrível penúria que pesava sobre todo o grupo, esse amor
havia se extinguido. Já não existiam nela mais do que cinzas de afeição
por seu marido. Contudo, os tratamentos carinhosos, como tantas vezes
acontece, sobreviveram. Ela lhe dizia: Querido, meu amigo, meu homem,
etc., mas só com a boca, o coração se calava.
O homem pusera-se novamente a escrever.

VII. ESTRATÉGIA E TÁTICA


Marius, com o coração oprimido, ia descer de seu improvisado
observatório quando um ruído chamou sua atenção e o fez permanecer no
lugar.
A porta da espelunca acabava bruscamente de ser aberta.
A filha mais velha apareceu na soleira.
Tinha nos pés grosseiros sapatos de homem, cheios de lama que havia
respingado até em seus tornozelos avermelhados, e se cobria com uma
velha manta esfarrapada que Marius não vira sobre ela uma hora antes,
mas que provavelmente fora deixada à entrada da porta para inspirar mais
compaixão, e colocada de novo ao sair. Entrou, fechou a porta, parou para
tomar fôlego, pois estava toda esbaforida, e depois exclamou com uma
expressão de triunfo e alegria:
— Ele vem!
O pai voltou os olhos, a mulher voltou a cabeça, a irmã mais nova não
se mexeu.
— Quem? — perguntou o pai.
— O tal senhor!
— O filantropo?
— Sim.
— Da igreja Saint-Jacques?
— Sim.
— Aquele velho?
— Sim.
— Ele vem?
— Me seguiu.
— Tem certeza?
— Tenho.
— Verdade? Ele vem?
— Vem de carruagem.
— De carruagem! É Rothschild!
O pai levantou-se.
— Como você tem certeza? Se ele vem de carruagem, como você pôde
chegar antes dele? Pelo menos você deu o endereço direitinho para ele?
Disse a ele que era na última porta, no fundo do corredor à direita? Tomara
que ele não se engane! Então, você encontrou com ele na igreja? Ele leu
minha carta? O que ele disse?
— Tá, tá, tá! — disse a jovem. — Como você galopa, homem! É o
seguinte: entrei na igreja, ele estava no lugar de costume; fiz uma
reverência e entreguei a carta para ele; ele leu e me disse: “Onde você
mora, minha filha?” Eu respondi: “Eu levo o senhor”. E ele me disse:
“Não, me dê seu endereço; minha filha tem compras a fazer, eu vou pegar
uma carruagem e chegarei em sua casa ao mesmo tempo que você”. Dei o
endereço a ele. Quando falei qual era a casa, ele pareceu surpreso e hesitou
um pouco, mas depois disse: “Dá na mesma”, eu irei. No fim da missa, eu
vi que ele saiu da igreja com a filha e vi que subiram numa carruagem. Eu
disse muito bem para ele, última porta no fundo do corredor, do lado
direito.
— Mas o que faz você pensar que ele virá?
— Agora há pouco vi a carruagem chegando na rua Petit-Banquier.
— Como você sabe que é a mesma carruagem?
— Porque prestei atenção no número!
— E que número é?
— 440.
— Bem, você é uma garota esperta!
A filha olhou atrevidamente para o pai, e disse, mostrando os sapatos
que trazia nos pés:
— Uma garota esperta, é possível, mas o que eu digo é que não torno a
calçar estes sapatos e que não quero mais saber deles, primeiro por causa
da saúde, depois por causa da limpeza. Não há nada mais irritante do que
sapatos que fazem suar e que fazem gji, gji, gji pelo caminho inteiro.
Prefiro andar descalça.
— Você tem razão — respondeu o pai em um tom brando que
contrastava com a rudeza da jovem —; mas é que assim não a deixariam
entrar nas igrejas. Os pobres têm que ter sapatos. Não se vai descalço à
casa do bom Deus — acrescentou ele amargamente. Em seguida, voltou ao
assunto que o preocupava: — Então você tem certeza, mesmo, de que ele
vem?
— Ele está bem próximo — disse ela.
O homem levantou-se. Tinha uma espécie de brilho no rosto.
— Mulher! — gritou. — Está ouvindo? O filantropo está chegando.
Apague o fogo.
A mulher, estupefata, não se moveu.
Ele, com a agilidade de um saltimbanco, pegou um jarro sem gargalo
que estava em cima da lareira e despejou a água nos tições.
Em seguida, dirigindo-se à filha mais velha, disse:
— Você! Arranque a palha da cadeira!
A filha não entendeu nada.
Ele empunhou a cadeira e, com um pontapé, fez dela uma cadeira sem
palha. Sua perna passava através do assento.
Enquanto retirava a perna dali, perguntou à filha:
— Está frio?
— Muito frio. Está nevando.
O pai voltou-se para a caçula, que estava na cama de perto da janela, e
gritou-lhe com uma voz medonha:
— Rápido, saia da cama, preguiçosa! Você nunca presta para nada!
Quebre já um vidro!
A menina jogou-se embaixo da cama tremendo.
— Quebre um vidro — tornou ele.
A menina continuou imóvel.
— Você não está ouvindo? — repetiu o pai. — Estou mandando
quebrar um vidro!
A criança, com uma espécie de obediência apavorada, pôs-se nas
pontas dos pés e deu um murro em um dos vidros, que se quebrou e caiu
com bastante ruído.
— Isso — disse o pai.
Ele estava sério e ríspido. Seu olhar percorria todos os cantos do
quarto.
Parecia um general fazendo os últimos preparativos no instante em que
a batalha vai começar.
A mulher, que ainda não havia dito uma só palavra, levantou-se e
perguntou com uma voz lenta e abafada, como se as palavras lhe saíssem
congeladas:
— Querido, o que você quer fazer?
— Ponha-se na cama — respondeu o homem.
Aquela entonação não admitia réplica. A mulher obedeceu, atirando-se
pesadamente sobre uma das camas.
Ao mesmo tempo, ouviam-se soluços em um canto.
— O que é isso? — gritou o pai.
A filha caçula, sem sair do canto onde estava encolhida, mostrou o
punho ensanguentado. Ao quebrar o vidro, havia se machucado; fora
sentar-se perto da cama de sua mãe, e chorava em silêncio.
Foi a vez da mãe levantar-se e gritar:
— Está vendo! Que besteiras você faz! Para quebrar seu vidro ela se
cortou!
— Tanto melhor! — disse o homem. — Eu já previa.
— Como? Melhor? — tornou a mulher.
— Silêncio! — replicou ele. — Suprimo a liberdade de imprensa!
Em seguida, rasgando a camisa de mulher que tinha no corpo, fez uma
tira com a qual envolveu rapidamente o punho ensanguentado da menina.
Feito isso, seus olhos baixaram com satisfação para a camisa rasgada.
— A camisa também — disse ele. — Tudo isso está com uma boa
aparência.
Um vento gelado soprava pela janela e entrava no quarto. O nevoeiro
exterior ali penetrava e se dilatava como um algodão esbranquiçado
vagamente desfiado por dedos invisíveis. Através do vidro quebrado, via-
se a neve cair. O frio prometido na véspera pelo sol da Candelária
efetivamente havia chegado.
O homem olhou em volta de si como para se certificar de que não
havia esquecido de nada. Pegou uma pá velha e espalhou cinza sobre os
tições molhados de modo que ficassem completamente escondidos.
Depois, levantando-se e encostando-se na lareira, disse:
— Agora podemos receber o filantropo.

VIII. UM RAIO DE LUZ NA ESPELUNCA


A filha mais velha aproximou-se e colocou a mão sobre a mão de seu
pai.
— Sinta como estou com frio.
— Bah! — respondeu o pai. — Tenho muito mais frio que isso.
A mãe gritou impetuosamente:
— Você sempre tem tudo mais que os outros, até o mal!
— Quieta! — disse o homem.
A mulher, sendo olhada daquela forma, calou-se.
Houve então um momento de silêncio na espelunca. A filha mais velha
tirava, sem muita preocupação, a lama das extremidades de sua manta; a
mais nova continuava a soluçar; a mãe segurava-lhe a cabeça entre as
mãos e a cobria de beijos, dizendo-lhe em voz baixa:
— Meu tesouro, por favor, isso não é nada, não chore, senão você vai
aborrecer seu pai.
— Não! — exclamou o pai. — Ao contrário! Pode chorar, pode chorar!
Isso faz bem.
Depois, dirigindo-se à mais velha:
— Ora essa! Ele não chega! Se ele não vier, eu apaguei meu fogo,
estraguei minha cadeira, rasguei minha camisa e quebrei meu vidro a troco
de nada!
— E machucou a pequena! — murmurou a mãe.
— Sabe — tornou o pai —, faz um frio do cão nesta espelunca do
diabo! Se esse homem não vier! Ah! É isso! Ele quer ser esperado! Deve
estar pensando: “Pois bem, eles que esperem! Estão lá para isso!” Oh! Que
ódio tenho deles e como eu seria capaz de estrangular com júbilo, alegria,
entusiasmo e satisfação esses ricaços! Todos esses ricaços! Esses
pretensos homens de caridade, que criam conflitos, que vão à missa e se
dão com a padraiada, aquela lenga-lenga, e com os padrecos, e que se
julgam acima de nós, e que vêm nos humilhar, e nos trazer umas roupas,
como eles chamam os trapos que não valem nem quatro soldos, e pão! Não
é isso o que eu quero, bando de canalhas! Quero dinheiro! Ah! Dinheiro?
Jamais! porque eles dizem que iríamos bebê-lo, que somos uns bêbados e
preguiçosos! E eles! O que eles são então, o que foram no seu tempo?
Ladrões! Não fosse isso, não teriam enriquecido! Oh! Devíamos pegar a
sociedade pelas quatro pontas da toalha e jogar tudo para o ar! Tudo se
quebraria, é verdade, mas ao menos ninguém teria nada, isso que se
ganharia! Mas o que ele está fazendo, esse malandro de benfeitor? Vem ou
não vem? O animal talvez tenha esquecido o endereço! Aposto que essa
besta velha…
Nesse momento, bateram levemente à porta; o homem precipitou-se a
abri-la fazendo saudações profundas e sorrindo de forma adorável:
— Entre, meu senhor! Queira entrar, meu respeitável benfeitor, bem
como sua encantadora senhorita.
Um homem já bem maduro e uma jovem apareceram na soleira da
espelunca.
Marius não tinha saído de seu lugar. O que ele experimentou naquele
momento escapa à linguagem humana.
Era ela.
Só quem já amou conhece todos os brilhantes sentidos que encerram as
três letras desta palavra: ela.
Era ela de fato. Era com dificuldade que Marius a distinguia através do
vapor luminoso que subitamente se espalhava diante de seus olhos. Era a
doce criatura ausente, o astro que brilhara para ele durante seis meses,
aqueles olhos, aquela fronte, aquela boca, aquele belo rosto desaparecido
que deixara escuridão ao partir. Eclipsara-se a visão, ela reaparecia!
Reaparecia em meio àquelas trevas, naquela espelunca, naquele lugar
disforme, naquele horror!
Marius estremecia! Oh! Era ela! As palpitações de seu coração
perturbavam-lhe a visão. Sentia-se prestes a chorar. Oh! Enfim podia revê-
la depois de tê-la procurado por tanto tempo! Era como se tivesse perdido
a alma e acabasse de reencontrá-la!
Era a mesma de sempre, apenas um pouco pálida; seu delicado rosto
estava emoldurado por um chapéu de veludo cor de violeta; seu corpo
escondia-se sob uma capa de cetim preto. Por baixo do vestido longo,
entreviam-se seus pequenos pés calçados em botinas de seda.
Continuava acompanhada pelo senhor Leblanc.
Ela dera alguns passos pelo quarto e colocara sobre a mesa um pacote
bastante grande.
A filha mais velha ficara atrás da porta, e lançava um olhar sombrio ao
chapéu de veludo, à manta de seda e àquele rosto feliz e encantador.

IX. JONDRETTE QUASE CHORA


O lugar era tão obscuro que as pessoas vindas de fora experimentavam,
ao entrar ali, o efeito de entrar em um porão. Os dois recém-chegados
avançaram, portanto, com certa hesitação, distinguindo apenas formas
vagas à sua volta, enquanto eram perfeitamente vistos e examinados pelos
olhos dos moradores da espelunca, afeitos àquele crepúsculo.
O senhor Leblanc aproximou-se com seu olhar bondoso e triste, e disse
ao pai Jondrette:
— Neste pacote o senhor encontrará roupas novas, meias e cobertores
de lã.
— Nosso angélico benfeitor nos enche de satisfação — disse Jondrette,
inclinando-se até o chão.
E, aproximando-se do ouvido da filha mais velha enquanto os dois
visitantes examinavam aquele interior lamentável, acrescentou em voz
baixa e rapidamente:
— Hem? O que eu dizia? Trapos! Nada de dinheiro. São todos iguais!
A propósito, como estava assinada a carta a este velho imbecil?
— Fabantou — respondeu a filha.
— O artista dramático, bem.
Foi o que valeu a Jondrette, pois bem naquele momento o senhor
Leblanc voltava-se para ele e lhe dizia como quem quer lembrar o nome:
— Vejo que o senhor está mesmo em uma situação difícil, senhor…
— Fabantou — respondeu imediatamente Jondrette.
— Senhor Fabantou, é verdade; é isso mesmo. Agora me recordo.
— Artista dramático, senhor, e que já fez sucesso.
Nesse ponto, Jondrette achou que era, sem dúvida, chegado o momento
de apoderar-se do “filantropo”. Exclamou em um tom de voz que tinha, ao
mesmo tempo, algo da vaidade do saltimbanco das feiras e da humildade
do mendigo das grandes estradas:
— Discípulo de Talma, senhor! Sou discípulo de Talma! A fortuna
outrora sorriu para mim. Infelizmente, agora é a vez da desgraça. Veja,
meu benfeitor, nem pão, nem fogo. Minhas pobres crianças não têm como
se aquecer! Minha única cadeira, estragada! Um vidro quebrado, com um
tempo desses! Minha esposa de cama! Doente!
— Coitada! — disse o senhor Leblanc.
— Minha filha machucada! — acrescentou Jondrette.
A menina, distraída com a chegada dos desconhecidos, pusera-se a
contemplar “a senhorita” e parara de chorar.
— Chore, vamos! Berre! — disse-lhe Jondrette em voz baixa.
Ao mesmo tempo, beliscou sua mão machucada. Tudo isso com um
talento de escamoteador.
A pequena gritou bem alto.
A adorável jovem, que Marius chamava em seu coração de “sua
Ursule”, aproximou-se e disse:
— Pobre criança!
— Veja, bela senhorita — continuou Jondrette —, seu punho
ensanguentado! Foi um acidente que aconteceu trabalhando numa
máquina, para ganhar seis soldos por dia. Talvez nós sejamos obrigados a
cortar o braço dela!
— Verdade? — disse o velho homem alarmado.
A pequena, levando a sério essas palavras, pôs-se novamente a chorar,
com mais força.
— Infelizmente, é verdade, meu benfeitor! — respondeu o pai.
Havia algum tempo Jondrette olhava para “o filantropo” de um modo
estranho. Enquanto falava parecia examiná-lo com atenção, como se
procurasse reunir lembranças. De repente, aproveitando um momento em
que os recém-chegados questionavam interessadamente a pequena a
respeito de sua mão ferida, passou perto de sua mulher, que estava na
cama com um ar abatido e estúpido, e disse a ela rapidamente e bem
baixinho:
— Olhe bem para esse homem!
Em seguida, voltou-se para o senhor Leblanc e continuou sua
lamentação:
— Veja isto, senhor! Não tenho eu, como vestimenta, nada além de
uma camisa de minha mulher! E toda rasgada! Em pleno inverno. Não
posso sair por falta do que vestir. Se eu tivesse um mínimo de roupas, iria
ver a senhorita Mars, que me conhece e gosta muito de mim. Ela não
continua morando na rua Tour-des-Dames? Sabe, senhor, já representamos
juntos pelo interior. Eu participei dos louros que ela colheu. Célimène
viria em meu auxílio, senhor! Elmire daria esmola a Belisário! Mas não,
nada! Nem um soldo nesta casa! Minha mulher doente, e nem um soldo!
Minha filha perigosamente ferida, e nem um soldo! Minha mulher tem
falta de ar. Por causa da idade, e também do sistema nervoso. Ela
precisaria de cuidados, e minha filha também. Mas, e o médico! Mas, e o
farmacêutico! Como pagar? Sem um tostão! Eu me ajoelharia diante de
uma moeda, senhor! Eis ao que a arte foi reduzida! E quer saber, minha
encantadora senhorita, e o senhor, meu generoso protetor, querem saber,
os senhores que respiram a virtude e a bondade, e que perfumam esta
igreja onde minha filha vai fazer suas orações e nota sua presença todos os
dias?… Pois eu educo as minhas filhas na religião, senhor. Eu não quis que
elas entrassem para o teatro. Ah! Danadas! Eu que as veja dando um passo
em falso! Não sou de brincar, não! Aplico nelas uns sermões sobre a
honra, sobre a moral, sobre a virtude! Perguntem a elas. Têm que andar na
linha. Elas têm um pai. Não são dessas infelizes que começam não tendo
família e terminam por esposar o público. Essas senhoritas Ninguém que
se tornam madames Todo-mundo. Nada disso! Isso não, na família
Fabantou! Pretendo educá-las virtuosamente, para que sejam honestas,
para que sejam gentis, para que creiam em Deus! Nome sagrado! Pois
bem, senhor, meu digno senhor, sabe o que vai acontecer amanhã?
Amanhã é 4 de fevereiro, o dia fatal, o último prazo que me concedeu o
senhorio; se até esta noite eu não o pagar, amanhã, minha mulher com
febre, minha filha mais velha, eu, e minha filha machucada, nós quatro
seremos todos expulsos daqui, jogados para fora, na rua, sem abrigo,
embaixo de chuva, na neve. É isso, senhor. Devo quatro trimestres, um
ano! Ou seja, uns sessenta francos.
Jondrette mentia. Quatro trimestres não dariam mais que quarenta
francos, e ele não poderia dever quatro, pois nem fazia seis meses que
Marius havia pago dois por ele.
O senhor Leblanc tirou cinco francos do bolso e colocou sobre a mesa.
Jondrette teve tempo para resmungar no ouvido da filha mais velha:
“Sovina! O que ele quer que eu faça com seus cinco francos? Cinco
francos não pagam minha cadeira e meu vidro. Depois de tanto esforço!”
Enquanto isso, o senhor Leblanc havia tirado um amplo sobretudo
escuro que vestia por cima de seu casaco azul, e o jogara no encosto da
cadeira.
— Senhor Fabantou — disse ele —, não tenho comigo senão estes
cinco francos; mas vou levar minha filha para casa e volto à noite. Não é
esta noite que o senhor deve pagar?…
O rosto de Jondrette iluminou-se com uma expressão estranha. Ele
respondeu vivamente:
— Sim, meu respeitável senhor. Às oito horas devo estar na casa do
senhorio.
— Estarei aqui às seis horas, vou trazer-lhe os sessenta francos.
— Oh! Meu benfeitor! — exclamou Jondrette maravilhado.
E falou em voz muito baixa:
— Olhe bem para ele, mulher.
O senhor Leblanc retomara o braço da bela jovem e dirigia-se à porta.
— Até a noite, meus amigos — disse ele.
— Às seis horas? — disse Jondrette.
— Às seis em ponto.
Nesse momento, o sobretudo que ficara sobre a cadeira chamou a
atenção da filha mais velha de Jondrette.
— Senhor, está esquecendo seu sobretudo.
Jondrette lançou-lhe um olhar fulminante, acompanhado de um terrível
movimento dos ombros.
O senhor Leblanc voltou-se e respondeu com um sorriso:
— Não o estou esquecendo, mas deixando-o.
— Ó meu protetor — disse Jondrette —, meu augusto benfeitor! Tenho
que conter as lágrimas! Permita-me que o acompanhe até sua carruagem!
— Se quer sair — disse o senhor Leblanc —, vista esse sobretudo.
Está, de fato, muito frio.
Jondrette não esperou que ele falasse duas vezes. Vestiu rapidamente o
sobretudo.
E saíram os três, Jondrette à frente dos dois estranhos.

X. TARIFA DOS CABRIOLÉS DE ALUGUEL: DOIS


FRANCOS POR HORA
Marius não tinha perdido nada de toda a cena, e, contudo, na realidade,
nada tinha visto. Seus olhos permaneceram fixos na jovem, seu coração
havia, por assim dizer, envolvido e se apoderado completamente dela
desde seu primeiro passo dentro daquele quarto. Durante todo o tempo em
que ela esteve ali, ele viveu a vida de êxtase que suspende as percepções
materiais e precipita a alma toda sobre um único ponto. Ele contemplava,
não aquela jovem, mas aquela luz vestida com uma capa de cetim e um
chapéu de veludo. Nem que a estrela Sírius tivesse entrado no quarto ele
teria ficado mais deslumbrado.
Enquanto a jovem abria o pacote, desdobrava as roupas e os
cobertores, questionava a mãe doente com bondade e a pequena que se
cortara com ternura, ele observava todos os seus movimentos e tentava
ouvir suas palavras. Conhecia seus olhos, seu rosto, sua beleza, seu porte,
seu andar, mas não conhecia o som de sua voz. Uma vez, no Luxemburgo,
pensou ter-lhe ouvido algumas palavras, mas não tinha certeza disso.
Daria dez anos de sua vida para ouvi-la, para poder levar na alma um
pouco daquela música. Mas tudo se perdia em meio às lamentações e aos
estrépitos de trombeta emitidos por Jondrette. O que misturava verdadeira
cólera ao encantamento de Marius. Não tirava os olhos dela. Não podia
acreditar que fosse realmente aquela criatura divina que ele divisava no
meio daqueles seres imundos, naquela espelunca monstruosa. Parecia ver
um colibri entre sapos.
Quando ela saiu, teve um só pensamento, segui-la, agarrar-se a seu
rastro, não a deixar senão quando soubesse onde morava, não tornar a
perdê-la depois de tê-la reencontrado tão miraculosamente. Saltou da
cômoda e pegou seu chapéu. Quando colocava a mão na maçaneta para
sair, uma reflexão fez com que parasse. O corredor era comprido, a
escadaria empinada, Jondrette falador, provavelmente o senhor Leblanc
ainda não conseguira entrar na carruagem; e, estando no corredor, ou na
escada, ou na soleira da porta, caso ele se voltasse e o avistasse, a ele,
Marius, naquela casa, evidentemente ficaria alarmado e acharia um meio
de escapar-lhe novamente, e mais uma vez tudo estaria acabado. Que
fazer? Esperar um pouco? Mas, durante essa espera, a carruagem poderia
partir. Marius estava perplexo. Afinal, arriscou-se e saiu de seu quarto.
Não havia mais ninguém no corredor. Correu até a escada. Não havia
ninguém na escada. Desceu apressadamente e chegou ao bulevar a tempo
de ver uma carruagem dobrar a esquina da rua Petit-Banquier e
encaminhar-se para Paris.
Marius precipitou-se naquela direção. Chegando à esquina do bulevar,
tornou a avistar a carruagem, que seguia rapidamente pela rua Mouffetard
e já estava muito distante; não havia meios de alcançá-la; e então? Correr
atrás dela? Impossível; além disso, da carruagem, eles certamente
notariam um indivíduo perseguindo-a em disparada; e o pai o
reconheceria. Nesse momento, acaso incrível e maravilhoso, Marius
avistou um cabriolé de aluguel que passava vazio pelo bulevar. Só havia
uma decisão a tomar, pegar esse cabriolé e seguir a carruagem. Era uma
coisa certa, eficaz e sem perigo.
Marius fez sinal para que o cocheiro parasse e gritou-lhe:
— Por uma hora!
Marius estava sem gravata, vestia seu velho casaco de trabalho, ao
qual faltavam alguns botões, e sua camisa estava rasgada em uma das
pregas do peito.
O cocheiro parou, piscou o olho e estendeu a mão para Marius,
esfregando levemente o polegar e o indicador.
— Que é? — disse Marius.
— Pague adiantado — respondeu o cocheiro.
Marius lembrou-se de que só tinha dezesseis soldos.
— Quanto? — perguntou.
— Quarenta soldos.
— Eu pago na volta.
O cocheiro, como única resposta, assobiou a cantiga de La Palisse e
fustigou seu cavalo.
Marius viu atônito o cabriolé afastando-se. Por vinte e quatro soldos
que lhe faltavam, perdia sua alegria, sua felicidade, seu amor! Tornava a
cair nas trevas! Havia enxergado e tornava a ficar cego! Lembrou-se então
amargamente, e, é preciso dizer, com profundo pesar, dos cinco francos
que havia dado, naquela manhã mesmo, àquela miserável garota. Se
tivesse os cinco francos, estaria salvo, renasceria, sairia do limbo e das
trevas, sairia do isolamento, do tédio, da viuvez, tornaria a atar o fio negro
de seu destino àquele belo fio dourado que acabava de flutuar diante de
seus olhos, quebrando-se mais uma vez. Voltou para o casebre
desesperado.
Ele poderia pensar que o senhor Leblanc prometera voltar à noite, e
que só precisaria estar melhor preparado desta vez para segui-lo; mas, em
sua contemplação, mal ouvira o que fora dito.
Quando ia a subir a escada, viu do outro lado do bulevar, junto ao muro
deserto da rua Barrière des Gobelins, Jondrette, envolvido no sobretudo do
“filantropo”, conversando com um desses homens de aspecto inquietante,
a quem convencionamos chamar de vagabundos de barreiras; pessoas de
rostos equívocos e monólogos suspeitos, com ar de quem tem más
intenções, e que, muito habitualmente, dormem de dia, o que faz supor que
trabalham à noite.
Esses dois homens, conversando imóveis embaixo da neve que caía aos
turbilhões, formavam um grupo que um guarda municipal com toda a
certeza teria observado, mas que Marius mal notara.
No entanto, por maior que fosse sua dolorosa preocupação, não pôde
deixar de pensar que aquele vagabundo de barreiras com quem Jondrette
conversava se parecia com um certo Panchaud, conhecido como
Printanier, ou como Bigrenaille, que Courfeyrac uma vez lhe mostrara, e
que, no bairro, passava por um perigoso andarilho noturno. No livro
precedente, já vimos o nome deste homem. O tal Panchaud, ou Printanier
ou Bigrenaille, figurou mais tarde em muitos processos criminais, e desde
então tornou-se um célebre velhaco. Naquela época, não passava de um
famoso velhaco. Hoje é considerado tradição entre os bandidos e ladrões.
Fazia escola lá pelos fins do último reinado. E ao anoitecer, à hora em que
se formam os grupos que falam em voz baixa, conversava-se a respeito
dele na Force, na cova-dos-leões. Podia-se até, nessa prisão, exatamente
no local por onde passava, por baixo do caminho da ronda, o canal das
latrinas que serviu para a incrível fuga de trinta presos, em pleno dia, em
1843, podia-se então, acima da laje das latrinas, ler seu nome, Panchaud,
audaciosamente gravado por ele no muro da ronda, em uma de suas
tentativas de evasão. Em 1832, a polícia já o vigiava, mas ele ainda não
havia estreado seriamente.

XI. OFERTA DE SERVIÇOS DA MISÉRIA À DOR


Marius subiu vagarosamente a escadaria do casebre; no momento em
que ia entrar em seu quarto, viu no corredor a filha mais velha de
Jondrette, que o seguia. Foi-lhe odioso ver aquela jovem, era ela quem
estava com seus cinco francos, e era tarde demais para pedi-los de volta; o
cabriolé não estava mais ali, a carruagem estava bem distante. Além disso,
ela não os devolveria. Quanto a perguntar-lhe onde moravam as pessoas
que estavam ali havia pouco, seria inútil; era evidente que ela não sabia,
visto que a carta assinada Fabantou estava endereçada ao senhor benfeitor
da igreja de Saint-Jacques-du-Haut-Pas.
Marius entrou em seu quarto e empurrou a porta.
Mas ela não se fechou; ele virou-se e viu uma mão que a mantinha
entreaberta.
— O que é? — perguntou ele. — Quem está aí?
Era a filha de Jondrette.
— É a senhorita? De novo! — tornou Marius quase rudemente. — O
que quer comigo?
Ela parecia pensativa e não olhava para ele. Não tinha mais a
segurança que mostrara pela manhã. Em vez de entrar, permaneceu na
escuridão do corredor, onde Marius a distinguia pela porta entreaberta.
— E então, vai responder? — disse Marius. — O que quer?
Ela levantou-lhe seus olhos tristes, que uma espécie de brilho parecia
iluminar vagamente, e disse-lhe:
— Senhor Marius, o senhor parece triste. O que o senhor tem?
— Eu! — disse Marius.
— É, o senhor.
— Eu não tenho nada.
— Tem, sim.
— Não tenho.
— Eu digo que tem!
— Me deixe em paz!
Marius tornou a empurrar a porta, e ela continuou a impedir.
— Olhe — disse ela —, o senhor está errado. Apesar de não ser rico, o
senhor foi bom hoje de manhã. Seja bom também agora. O senhor me deu
o que comer, agora diga para mim o que tem. O senhor está magoado, dá
para ver. Eu não queria que o senhor tivesse alguma mágoa. O que é
preciso fazer? Posso ajudar em alguma coisa? Disponha de mim. Não peço
que me conte seus segredos, não precisa me dizer, mas, enfim, posso ser
útil. Posso ajudá-lo, porque também ajudo meu pai. Quando é preciso
levar uma carta, ir a alguma casa, pedir de porta em porta, encontrar um
endereço, seguir alguém, eu sirvo para isso. Ora, o senhor pode muito bem
me dizer o que tem, eu vou falar com as pessoas. Às vezes, se alguém fala
com as pessoas é o que basta para que a gente saiba das coisas, e tudo se
arranja. Disponha de mim.
Uma ideia atravessou a cabeça de Marius. Pode-se desprezar um galho
quando se está prestes a cair?
Aproximou-se da jovem e disse-lhe:
— Você… escute…
Ela o interrompeu com um brilho de alegria nos olhos.
— Oh! Isso mesmo, me chame de você! Prefiro assim.
— Pois bem — tornou ele —, você trouxe aqui aquele velho senhor
com a filha…
— Trouxe.
— Sabe onde eles moram?
— Não.
— Descubra para mim.
O olhar da jovem, de melancólico tornou-se alegre, e de alegre tornou-
se sombrio.
— É isso que o senhor quer? — perguntou ela.
— É.
— O senhor os conhece?
— Não.
— Quer dizer — tornou ela vivamente —, não a conhece, mas quer
conhecê-la.
Esse os, que se transformou em a, tinha não sei que de significativo e
amargo.
— Mas então, você pode? — disse Marius.
— O senhor vai saber o endereço da bela senhorita.
Estas palavras “bela senhorita” foram ditas com uma nuance que
importunou Marius.
— Não importa! O endereço do pai, da filha. O endereço deles, certo!
Ela olhou fixamente para ele.
— O que o senhor vai me dar?
— Tudo que você quiser.
— Tudo que eu quiser?
— Sim.
— O senhor vai saber onde ela mora.
Ela baixou a cabeça, e com um movimento brusco bateu a porta, que se
fechou.
Marius se viu só.
Deixou-se cair em uma cadeira, a cabeça e os dois cotovelos apoiados
na cama, abismado em pensamentos que não conseguia conter, e como que
exposto a uma vertigem. Tudo o que se passara desde a manhã, o
aparecimento de seu anjo, seu desaparecimento, o que aquela criatura
acabava de lhe dizer, uma luz de esperança flutuando em meio a um
desespero imenso, tudo isso preenchia confusamente seu cérebro.
De repente, foi violentamente arrancado de seu devaneio.
Ouviu a voz alta e rude de Jondrette pronunciando estas palavras
cheias do mais estranho interesse:
— Digo que tenho certeza, que eu o reconheci.
De quem Jondrette falava? Quem ele havia reconhecido? O senhor
Leblanc? O pai de “sua Ursule”? Como! Será que Jondrette o conhecia?
Marius iria obter desse modo repentino e inesperado todas as informações
sem as quais sua vida era obscura até para ele mesmo? Enfim, será que iria
saber quem ele amava? Quem era aquela jovem? Quem era seu pai? A
sombra tão espessa que os envolvia, estaria a ponto de tornar-se clara? E o
véu iria desfazer-se? Oh! Céus!
Ele saltou, mais do que propriamente subiu, na cômoda, e retomou seu
lugar próximo à pequena fresta da parede.
Tornava a ver o interior da espelunca Jondrette.

XII. EMPREGO DA MOEDA DE CINCO FRANCOS DO


SENHOR LEBLANC
Em nada tinha mudado o aspecto da família, a não ser a mulher e as
filhas terem esvaziado o pacote e colocado as meias e as camisolas de lã.
Dois cobertores novos foram lançados sobre as duas camas.
Era evidente que Jondrette acabava de entrar. Ainda estava ofegante.
Suas filhas estavam perto da lareira, sentadas no chão, a mais velha
fazendo um curativo na mão da mais nova. Sua mulher estava como que
prostrada sobre a cama vizinha à lareira, com ar de admiração. Jondrette
andava pelo quarto de um lado para o outro, a grandes passos. Seu olhar
estava estranho.
A mulher, que parecia tímida e um tanto chocada diante do marido,
aventurou-se a dizer-lhe:
— Então, é verdade? Tem certeza?
— Certeza! Faz oito anos! Mas eu o reconheço. Ah! Reconheço
mesmo! Reconheci imediatamente! Ora, não saltou a seus olhos?
— Não.
— Mas bem que eu disse: preste atenção! É o mesmo porte, o mesmo
rosto, só um pouco mais velho; tem gente que não envelhece, não sei como
fazem, o mesmo tom de voz… Está mais bem vestido, é a única diferença!
Ah! Seu velho misterioso do diabo, hei de pegá-lo, vai ver!
Interrompeu-se e disse a suas filhas:
— Vão embora, as duas! É engraçado que não lhe tenha saltado aos
olhos.
As meninas se levantaram para obedecer.
A mãe balbuciou:
— Com a mão machucada?
— O ar vai fazer bem a ela; fora! — disse Jondrette.
Era visível que se tratava daqueles homens a quem não se replica. As
duas meninas saíram.
No momento em que elas iam passar pela porta, o pai reteve a mais
velha pelo braço e disse com um tom particular:
— Estejam aqui às cinco horas em ponto. As duas. Vou precisar de
vocês.
Marius redobrou a atenção.
Ao ficar a sós com sua mulher, Jondrette voltou a andar pelo quarto,
dando em silêncio duas ou três voltas em torno dele. Depois, passou
alguns minutos colocando dentro das calças a fralda da camisa de mulher
que vestia.
De repente, voltou-se para a mulher, cruzou os braços e exclamou:
— E quer que lhe diga uma coisa? A senhorita…
— O que tem a senhorita? — disse a mulher.
Não podia restar dúvidas a Marius; era mesmo dela que falavam. Ele
escutava com uma ansiedade ardente. Toda a sua vida estava em seus
ouvidos.
Mas Jondrette curvara-se, e falava em voz baixa com sua mulher.
Depois ergueu-se e terminou falando alto:
— É ela!
— É? — disse a mulher.
— É! — respondeu o marido.
Nenhuma expressão poderia traduzir o que havia naquele É dito pela
mãe. Era a surpresa, a raiva, o ódio, a cólera, juntas e combinadas em uma
entonação monstruosa. Bastaram algumas palavras, um nome talvez, ditas
por seu marido ao ouvido, para que aquela mulher enorme despertasse de
seu entorpecimento, e de repulsiva se tornasse medonha.
— Não é possível! — exclamou ela. — Quando penso que minhas
filhas andam descalças e não têm um vestido sequer! Como! Uma capa de
cetim, um chapéu de veludo, botas e tudo! Mais de duzentos francos em
roupas! Parecendo uma dama! Não, você está enganado! Antes de tudo, a
outra era horrorosa, essa aí não é nada mal! Realmente ela não é feia! Não
pode ser ela!
— Estou dizendo que é ela. Você vai ver.
A esta afirmativa tão absoluta, a mulher levantou o enorme rosto
avermelhado e olhou para o teto com uma expressão disforme. Naquele
momento, ela pareceu a Marius ainda mais temível do que seu marido. Era
uma porca com o olhar de uma pantera!
— O quê! — tornou ela. — Essa horrível mocinha bonita, que olhava
para minhas filhas com ar de compaixão, seria aquela indigente! Oh!
Gostaria de arrebentar-lhe o ventre a socos!
Saltou da cama e ficou um instante de pé, despenteada, narinas
dilatadas, boca entreaberta, punhos cerrados em atitude ameaçadora.
Depois, deixou-se novamente cair sobre a cama. O marido ia para lá e para
cá sem prestar atenção em sua mulher.
Após alguns instantes de silêncio, aproximou-se e parou diante dela
com os braços cruzados, como fizera um pouco antes.
— E quer que eu diga mais uma coisa?
— O quê? — perguntou ela.
— Que minha fortuna está feita — respondeu ele rapidamente e em
voz baixa.
Ela o encarou com um olhar que queria dizer: “Será que esse aí está
enlouquecendo?”
Ele continuou:
— Arre! Já faz muito tempo que sou paroquiano da paróquia–morra-
de-fome-se-tiver-fogo, morra-de-frio-se-tiver-pão! Estou farto da miséria!
Da minha carga e da carga dos outros! Não estou mais brincando, não acho
mais que seja cômico, chega de trocadilhos, meu bom Deus! Chega de
farsas, Padre Eterno! Quero comer conforme minha fome, beber conforme
minha sede! Me fartar! Dormir! Nada fazer! Também quero ter minha vez
antes de esticar as canelas! Quero ser um pouco milionário!
Deu outra volta no quarto e acrescentou:
— Como os outros!
— O que você quer dizer? — perguntou a mulher.
Ele balançou a cabeça, piscou os olhos e levantou a voz como um
físico ordinário que vai fazer uma demonstração:
— O que eu quero dizer? Escute!
— Psiu! — resmungou a mulher. — Não fale tão alto! Se são negócios
que não devem ser ouvidos.
— Bah! Quem vai ouvir? O vizinho? Eu o vi saindo agora há pouco.
Além disso, ouve alguma coisa, aquele grande imbecil? Mas eu já disse
que o vi sair.
Contudo, movido por uma espécie de instinto, Jondrette abaixou a voz,
mas não o suficiente para que suas palavras escapassem a Marius. Uma
circunstância favorável, que permitira a este não perder nada daquela
conversa, era que a neve caída abafava o ruído dos carros passando pelo
bulevar.
Eis o que Marius ouviu:
— Ouça bem. Ele está pego, o ricaço! É como se já estivesse. Está
feito. Está tudo arranjado. Já falei com uns sujeitos. Ele vem às seis horas,
trazendo os sessenta francos, patife! Viu só como eu vomitei tudo aquilo,
os sessenta francos, o senhorio, o 4 de fevereiro! Não era mais que um
trimestre! Como é besta! Então, ele vem às seis horas! É a hora em que o
vizinho vai jantar. A mame Burgon vai lavar a louça fora. Não fica
ninguém em casa. O vizinho nunca volta antes das onze horas. As meninas
vão ficar de vigia. Você vai nos ajudar. Ele vai se executar.
— E se ele não se executar? — perguntou a mulher.
Jondrette fez um gesto sinistro e disse:
— Nós o executaremos.
E soltou uma gargalhada.
Era a primeira vez que Marius o via rir. Era um riso frio e calmo, que
dava arrepios.
Jondrette abriu um armário próximo à lareira e tirou dali um velho
boné, que pôs na cabeça depois de limpar com a manga do casaco.
— Agora — disse ele — vou sair. Ainda tenho que ver alguns sujeitos,
dos bons. Você vai ver como vai dar certo. Vou ficar fora o menor tempo
possível. É um belo negócio a fazer. Tome conta da casa.
E, com as duas mãos nos bolsos das calças, ficou pensativo por um
momento, depois exclamou:
— Sabe que foi muito bom ele não ter me reconhecido! Se tivesse, não
voltaria. Ia nos escapar! Foi minha barba que me salvou! Minhas
barbichas românticas! Minhas belas barbichas românticas!
E soltou outra gargalhada.
Depois foi até a janela. A neve continuava a cair, riscando o céu
cinzento.
— Que tempo de cão! — disse ele.
Em seguida acrescentou, fechando o sobretudo:
— Esta casaca está larga demais. Não importa. Ele fez muito bem de
deixá-la para mim, o velho patife! Se não fosse isso, eu não poderia sair e
tudo ia dar errado outra vez! Do que as coisas dependem!
E saiu, puxando bem o boné por cima dos olhos.
Mal tivera tempo de dar uns passos, a porta se reabriu, e seu perfil
arisco e inteligente reapareceu na abertura.
— Já ia esquecendo — disse ele. — Arranje um fogareiro de carvão.
E jogou no avental de sua mulher a moeda de cinco francos que o
“filantropo” lhe deixara.
— Um fogareiro de carvão? — perguntou a mulher.
— Sim.
— Quanto de carvão?
— Dois bons sacos.
— Vai custar trinta soldos. Com o resto, vou comprar alguma coisa
para o jantar.
— Diabos, não.
— Por quê?
— Não vá gastar tudo.
— Por quê?
— Porque eu também vou precisar comprar alguma coisa.
— O quê?
— Alguma coisa.
— De quanto você vai precisar?
— Onde tem um ferro-velho por aqui?
— Na rua Mouffetard.
— Ah! É verdade, numa esquina; já sei qual é.
— Mas então, diga quanto será preciso para o que você tem que
comprar?
— Pouco mais de cinquenta soldos, uns três francos.
— Não vai sobrar nada para o jantar.
— Hoje, não se trata de comer. Há algo melhor a se fazer.
— Está bem, minha joia.
A essas palavras de sua mulher, Jondrette fechou a porta, e dessa vez
Marius ouviu seus passos distanciando-se no corredor do cortiço e
descendo rapidamente as escadas.
Naquele instante soava uma hora em Saint-Médard.

XIII. SOLUS CUM SOLO, IN LOCO REMOTO, NON


COGITABUNTUR ORARE PATER NOSTER5
Marius, por mais sonhador que fosse, tinha, já dissemos, uma natureza
firme e enérgica. Os hábitos de recolhimento solitário, desenvolvendo nele
a simpatia e a compaixão, haviam, talvez, diminuído sua faculdade de se
irritar, mas deixado intacta a faculdade de se indignar; ele tinha a
benevolência de um brâmane e a severidade de um juiz; compadecia-se de
um sapo, mas podia esmagar uma víbora. Ora, era em um ninho de víboras
que seu olhar acabava de mergulhar; era um antro de monstros que tinha
diante dos olhos.
— É preciso pisar nestes miseráveis! — disse ele.
Nenhum dos enigmas que ele esperara ver explicados havia se
esclarecido; ao contrário, todos ficaram até mais complicados; ele não
soube nada mais sobre a bela jovem do Luxemburgo e sobre o homem a
quem chamava de senhor Leblanc, senão que Jondrette os conhecia.
Através das tenebrosas palavras que foram ditas, entrevia distintamente só
uma coisa, que se preparava uma cilada, uma cilada obscura mas terrível;
que ambos corriam um grande perigo, ela, provavelmente, seu pai, com
toda a certeza; que era preciso salvá-los; que era preciso frustrar as
hediondas combinações dos Jondrette e romper a teia daquelas aranhas.
Por um momento, observou a mulher de Jondrette. Ela tirou de algum
canto um velho fogareiro de lata e fuçava nas ferragens.
Ele desceu da cômoda o mais suavemente que pôde, tomando cuidado
para não fazer nenhum ruído.
Com medo daquilo que se aprontava, e com o horror que os Jondrette
lhe haviam incutido, sentia uma espécie de alegria com a ideia de que
talvez viesse a prestar um favor àquela que amava.
Mas como fazer? Avisar as pessoas ameaçadas? Onde encontrá-las?
Não sabia onde moravam. Por um instante, haviam reaparecido a seus
olhos, mas depois tornaram a mergulhar nas imensas profundezas de Paris.
Esperar o senhor Leblanc à porta, quando ele voltasse às seis horas, e
preveni-lo da armadilha? Mas Jondrette e sua gente veriam que ele
vigiava, o lugar era deserto, eles seriam mais fortes, conseguiriam agarrá-
lo ou afastá-lo, e aquele a quem Marius queria salvar estaria perdido.
Acabava de soar uma hora e a cilada deveria ter seu desfecho às seis.
Marius tinha cinco horas pela frente.
E só uma coisa a fazer.
Vestiu sua melhor roupa, amarrou um lenço no pescoço, pegou seu
chapéu e saiu, sem fazer mais barulho do que se caminhasse descalço
sobre a relva.
Além disso, a mulher de Jondrette continuava a remexer nas ferragens.
Uma vez fora da casa, dirigiu-se à rua Petit-Banquier.
Ele estava quase no meio da rua, perto de um muro bem baixo que
podia ser saltado em alguns trechos, e que dava para um terreno baldio;
caminhava lentamente, preocupado, e a neve abafava seus passos; de
repente, ouviu vozes muito próximas a ele. Voltou a cabeça, a rua estava
deserta, não havia ninguém; era dia claro, e, no entanto, ele ouvia
distintamente as vozes.
Pensou em olhar por cima do muro. De fato, ali estavam dois homens
encostados à muralha, sentados sobre a neve e falando em voz baixa.
As duas figuras eram-lhe desconhecidas. Um deles era barbudo e
vestia uma blusa; o outro tinha uma grande cabeleira e estava esfarrapado.
O barbudo tinha na cabeça um barrete grego, o outro tinha a cabeça
descoberta e neve nos cabelos.
Debruçando-se no muro, acima deles, Marius podia ouvi-los.
O cabeludo empurrava o outro com o cotovelo e dizia:
— Com Patron-Minette, o negócio não pode falhar.
— Você acha? — disse o barbudo; e o cabeludo replicou:
— Cada um vai levar umas quinhentas pratas, e, na pior das hipóteses,
cinco, seis anos, dez anos no máximo!
O outro respondeu com alguma hesitação e tiritando embaixo do boné
grego:
— Isso é verdade. Não dá para se opor a essas coisas.
— Estou dizendo que o negócio não tem como falhar — tornou o
cabeludo. — Essa história do senhor Fulano está bem arranjada.
Depois, puseram-se a falar de um melodrama que tinham visto na
véspera, no teatro la Gaité.
Marius continuou seu caminho.
Parecia-lhe que as obscuras palavras daqueles homens, tão
estranhamente ocultos atrás do muro e acocorados na neve, talvez não
deixassem de ter alguma relação com os abomináveis projetos de
Jondrette. Devia ser esse o tal negócio.
Dirigiu-se ao bairro Saint-Marceau e, na primeira loja que encontrou,
perguntou onde havia um comissário de polícia.
Indicaram-lhe a rua Pontoise e o número 14.
Marius foi até lá.
Ao passar diante de uma padaria, comprou um pão de dois soldos e o
comeu, prevendo que não jantaria.
No caminho, fez justiça à Providência. Lembrou que, se não tivesse
dado pela manhã os cinco francos à filha de Jondrette, provavelmente teria
seguido a carruagem do senhor Leblanc, e, por consequência, não saberia
de nada; que nada faria obstáculo à cilada dos Jondrette; e que o senhor
Leblanc estaria perdido, e sem dúvida sua filha com ele.

XIV. EM QUE UM AGENTE DE POLÍCIA DÁ DUAS


PISTOLAS A UM ADVOGADO
Chegado ao número 14 da rua Pontoise, subiu ao primeiro andar e
perguntou pelo comissário de polícia.
— O senhor comissário não está — disse-lhe um funcionário qualquer
—, mas há um inspetor que o substitui. Quer falar com ele? É urgente?
— Sim — respondeu Marius.
O funcionário introduziu-o no gabinete do comissário. Um homem
alto, que estava de pé por trás de uma grade, apoiado em uma salamandra,
levantava com as duas mãos as abas de um capote com cabeção triplo.
Tinha um rosto quadrado, lábios delgados, mas firmes, espessas suíças
grisalhas e um olhar capaz de revirar um bolso do avesso. Podia-se dizer
daquele olhar, não que penetrava, mas que revistava.
Esse homem não tinha o aspecto muito menos feroz, nem muito menos
temível que o de Jondrette; algumas vezes não é menos inquietante
encontrar um cão do que um lobo.
— O que deseja? — disse ele a Marius sem chamá-lo de senhor.
— O senhor comissário de polícia?
— Está ausente. Eu estou no lugar dele.
— Trata-se de um negócio muito secreto.
— Então diga.
— E muito urgente.
— Então diga depressa.
Aquele homem, calmo e ríspido, era ao mesmo tempo amedrontador e
tranquilizador. Inspirava receio e confiança. Marius contou-lhe o caso.
Que uma pessoa que ele só conhecia de vista seria atraída naquela mesma
noite a uma cilada; que morando no quarto vizinho à espelunca, ele,
Marius Pontmercy, advogado, ouvira todo o complô através da fresta; que
o celerado que imaginara a armadilha era um tal de Jondrette; que este
tinha cúmplices, provavelmente uns vagabundos de barreiras, entre outros
um certo Panchaud, conhecido como Printanier ou Bigrenaille; que as
filhas de Jondrette estariam de vigia; que não havia nenhum meio de
prevenir o homem ameaçado, visto que não se sabia nem seu nome; e,
finalmente, que tudo isso devia ser executado às seis horas da tarde, no
local mais deserto do bulevar de l’Hôpital, na casa número 50-52.
Ao ouvir esse número, o inspetor levantou a cabeça e disse friamente:
— Então é no quarto do fundo do corredor?
— Justamente — disse Marius, e acrescentou: — O senhor sabe que
casa é essa?
O inspetor permaneceu um instante em silêncio e depois respondeu,
enquanto aquecia os calcanhares na brasa da salamandra:
— Aparentemente.
E continuou entre os dentes, falando menos a Marius do que à sua
gravata:
— Deve ter uma mãozinha de Patron-Minette nessa história.
Essas palavras impressionaram Marius.
— Patron-Minette — disse ele. — De fato já ouvi falar sobre isso.
E então ele contou ao inspetor o diálogo entre o homem cabeludo e o
barbudo que estavam sentados na neve, por trás do muro da rua Petit-
Banquier.
O inspetor resmungou:
— Esse cabeludo deve ser Brujon, e o barbudo deve ser Demi-Liard,
conhecido como Deux-Milliards.
Baixou novamente os olhos e pôs-se a meditar.
— Quanto ao senhor Fulano, acho que sei quem é. Ora! Queimei meu
capote! Sempre botam fogo demais nesses malditos aquecedores! Número
50-52. Antiga propriedade Gorbeau.
Depois olhou para Marius e disse:
— Viu apenas esses dois?
— E Panchaud.
— Não viu rondar por ali uma espécie de muscadin6 do diabo?
— Não.
— Nem um brutamontes que parece o elefante do Jardim Botânico?
— Não.
— Nem um tipo com ares de um antigo palhaço?
— Não.
— Quanto ao último, ninguém o vê, nem mesmo seus ajudantes,
encarregados e empregados. Não é surpresa que não o tenha visto.
— Não. Mas, o que é toda essa gente? — perguntou Marius.
O inspetor respondeu:
— Além disso, não era a hora deles.
Voltou a ficar em silêncio, depois disse:
— 50-52. Conheço o barraco. É impossível esconder-se lá dentro sem
que os artistas percebam. Com isso, eles ficariam liberados para cancelar o
espetáculo. São tão modestos! O público os constrange. Nada disso, nada
disso. Quero ouvi-los cantar e fazê-los dançar.
Terminado o monólogo, voltou-se para Marius e perguntou-lhe
encarando-o fixamente:
— Tem medo?
— De quê? — disse Marius.
— Desses homens?
— Não mais que do senhor! — replicou Marius de forma rude,
começando a notar que esse espião ainda não o tratara por senhor.
O inspetor olhou mais fixamente ainda para Marius e continuou, com
uma espécie de solenidade sentenciosa:
— Fala como um homem destemido e honesto. A coragem não teme o
crime, e a honestidade não teme a autoridade.
Marius o interrompeu:
— Está bem; mas que tenciona fazer?
O inspetor limitou-se a responder:
— Os inquilinos dali têm uma chave, para entrarem à noite em casa. O
senhor também deve ter uma, não?
— Tenho — disse Marius.
— Passe-a a mim — disse o inspetor.
Marius tirou a chave do bolso, entregou-a ao inspetor, e acrescentou:
— Se acredita no que eu disse, leve reforço.
O inspetor lançou sobre Marius o olhar de Voltaire a um acadêmico
provinciano que lhe tivesse proposto uma rima; ao mesmo tempo enfiou as
duas mãos, que eram enormes, nos imensos bolsos de seu capote, e tirou
dali duas pistolas de aço. Apresentou-as a Marius dizendo vivamente mas
em tom lacônico:
— Pegue isso e volte para casa. Esconda-se em seu quarto. Devem
achar que saiu. Estão carregadas com duas balas cada uma. Fique
observando pelo buraco da parede, como me disse que já fez. Quando eles
vierem, deixe a coisa andar um pouco. Ao julgar que está no ponto, e que é
hora de interrompê-los, dê um tiro. Mas não se precipite. O resto é
comigo. Dispare para o ar, para o teto, para qualquer lugar. Acima de tudo,
não se precipite. Espere que tenha começado a execução. É advogado, sabe
como é isso.
Marius pegou as pistolas e colocou-as no bolso lateral do casaco.
— Assim não, fazem muito volume, dá para ver — disse o inspetor. —
Coloque-as nos bolsos de dentro.
Marius guardou as pistolas nos bolsos de dentro.
— Agora — prosseguiu o inspetor — não temos mais um minuto a
perder. Que horas são? Duas e meia. O negócio é para as sete?
— Para as seis — disse Marius.
— Tenho tempo — tornou o inspetor —, mas só o tempo justo. Não se
esqueça de nada que lhe disse. Pan! Um tiro.
— Fique tranquilo — respondeu Marius.
E quando Marius punha a mão na maçaneta da porta para sair, o
inspetor gritou-lhe:
— A propósito, se precisar de mim de agora até lá, venha ou mande
alguém aqui. Diga para falar com o inspetor Javert.

XV. JONDRETTE FAZ SUAS COMPRAS


Instantes depois, por volta das três horas, Courfeyrac passava por
acaso na rua Mouffetard em companhia de Bossuet. A neve caía cada vez
mais, enchendo completamente o espaço. Bossuet dizia a Courfeyrac:
— Vendo cair tanta neve, parece que no céu há alguma praga de
borboletas brancas.
De repente, Bossuet viu Marius subindo a rua em direção à barreira,
com um ar estranho.
— Olhe! — exclamou Bossuet. — É Marius!
— Já o vi — disse Courfeyrac. — Mas não vamos falar com ele.
— Por quê?
— Ele está ocupado.
— Com quê?
— Não está vendo a expressão dele?
— Que expressão?
— Parece que ele está seguindo alguém.
— É mesmo — disse Bossuet.
— Preste atenção no olhar dele! — tornou Courfeyrac.
— Mas que diabo ele está seguindo?
— Algum rabo de saia! Ele está apaixonado.
— Mas eu não vejo nenhum rabo de saia pela rua — observou Bossuet.
— Não se vê uma só mulher.
— Está seguindo um homem!
De fato, um homem com um boné na cabeça, do qual se enxergava a
barba grisalha embora só fosse visto pelas costas, caminhava vinte passos
adiante de Marius.
Vestia um sobretudo novo, grande demais para ele, e espantosas calças
esfarrapadas sujas de lama.
Bossuet deu uma risada.
— Que homem é aquele? — exclamou Bossuet.
— Aquilo — retorquiu Courfeyrac — é um poeta. Os poetas gostam de
andar com calças de vendedor de peles de coelho e casacos de pares da
França!
— Vamos ver onde Marius vai — disse Bossuet —; vamos ver onde
esse homem vai, vamos segui-los, hein?
— Bossuet! — exclamou Courfeyrac. — Águia de Meaux! Você é um
estúpido prodigioso. Seguir um homem que está seguindo um homem!
Deram meia-volta.
Com efeito, Marius vira Jondrette passar pela rua Mouffetard e o
espiava.
Jondrette ia à frente, longe de suspeitar que existisse um olhar sobre
ele.
Saiu da rua Mouffetard, e Marius viu quando entrou em uma das mais
horríveis baiucas da rua Gracieuse, onde se demorou aproximadamente um
quarto de hora, retornando depois pela rua Mouffetard. Parou em uma loja
de ferragens que naquela época existia na esquina da rua Pierre-Lombard,
e, minutos depois, Marius o viu sair de lá carregando um grande formão
com um cabo de madeira branco, que escondeu debaixo do sobretudo.
Na altura da rua Petit-Gentilly, entrou à esquerda e rapidamente
chegou à rua Petit-Banquier.
A noite caía; a neve, que cessara por alguns momentos, acabava de
recomeçar; Marius emboscou-se na esquina da rua Petit-Banquier, que
estava deserta como sempre, e não seguiu Jondrette. E fez muito bem,
porque, ao chegar perto do muro baixo onde Marius ouvira a conversa
entre o homem cabeludo e o barbudo, olhou para trás, certificou-se de que
ninguém o seguia nem o via, saltou o muro, e desapareceu.
O terreno baldio cercado por esse muro se comunicava com os fundos
da casa de um antigo locador de carruagens, homem de má fama, que
falira mas conservava ainda alguns velhos carros debaixo de um coberto.
Marius pensou que era prudente aproveitar a ausência de Jondrette
para retornar a sua casa; além do que, a hora avançava; e como mame
Burgon, ao sair para lavar a louça, costumava fechar a porta da rua, que
era trancada sempre ao anoitecer, era importante apressar-se, já que havia
dado sua chave ao inspetor de polícia.
A noite chegou; e não havia no horizonte e na imensidão mais que um
ponto iluminado pelo sol, a lua. Ela se elevava avermelhada por trás da
cúpula mais baixa da Salpêtrière.
Marius retornou apressadamente ao número 50-52. A porta ainda
estava aberta quando chegou. Subiu a escada na ponta dos pés e avançou
junto à parede do corredor até seu quarto.
Dos dois lados desse corredor, como se lembram, havia quartos, todos
para alugar e vazios naquela ocasião. Mame Burgon costumava deixar
suas portas abertas. Marius teve a impressão de ver em um deles quatro
cabeças de homens, imóveis, vagamente iluminadas por uma réstia de luz
que entrava por uma fresta.
Marius não quis olhar, não querendo também ser visto. Conseguiu
entrar em seu quarto sem que percebessem, e sem ruídos. Era tempo. Um
instante depois, ouviu mame Burgon saindo e a porta da casa se fechando.

XVI. EM QUE SERÁ ENCONTRADA A LETRA DE


UMA ÁRIA INGLESA NA MODA EM 1832
Marius sentou-se na cama. Podiam ser umas cinco e meia. Apenas
meia hora o separava do que iria acontecer. Ele ouvia a pulsação de suas
artérias assim como se ouvem os ponteiros de um relógio na escuridão.
Ele imaginava a dupla caminhada que ocorria naquele momento em meio
às trevas, o crime avançando de um lado, a justiça avançando do outro.
Não tinha medo, mas não podia pensar sem um certo estremecimento nas
coisas que iam acontecer. Como a todos a quem uma aventura
surpreendente vem repentinamente assaltar, todo aquele dia parecia-lhe
um sonho, e, para não se julgar vítima de um pesadelo, precisava sentir o
frio das duas pistolas de aço que trazia nos bolsos.
Parara de nevar; a lua, cada vez mais clara, emergia das brumas, e seu
clarão, misturado ao branco reflexo da neve que caíra, dava ao quarto um
aspecto crepuscular.
Havia luz no quarto de Jondrette. Marius via o buraco da parede brilhar
com um clarão avermelhado que lhe parecia cor de sangue.
Era evidente que aquele clarão não podia ser produzido por uma vela.
De resto, nenhum movimento na casa dos Jondrette; ali, ninguém se
mexia, ninguém falava, não havia um sussurro, o silêncio era glacial e
profundo, e, sem aquela luz, era possível acreditar que se estivesse ao lado
de um sepulcro.
Marius tirou cautelosamente as botas e empurrou-as para debaixo da
cama.
Alguns minutos se passaram. Marius ouviu a porta da rua se abrindo,
passos pesados e rápidos subiram a escadaria e percorreram o corredor, o
trinco do quarto de Jondrette foi movido ruidosamente; era ele que
acabava de entrar.
Logo em seguida, várias vozes foram ouvidas. A família inteira estava
no quarto, mas calava-se na ausência do chefe, como fazem os filhotes na
ausência do lobo.
— Sou eu — disse ele.
— Boa noite, paizinho! — ganiram as filhas.
— E então? — disse a mulher.
— Corre tudo bem — respondeu Jondrette —, mas estou com um frio
danado nos pés! Bom, é isso mesmo, você está vestida. Você deverá
inspirar confiança.
— Prontinha para sair.
— Não vai esquecer nada do que eu disse? Vai fazer tudo direito?
— Fique tranquilo.
— É que… — disse Jondrette, sem concluir a frase.
Marius o ouviu colocar alguma coisa pesada sobre a mesa,
provavelmente o formão que havia comprado.
— Pois então, alguém aqui comeu?
— Sim — disse a mãe —, arranjei três batatas grandes e sal.
Aproveitei o fogo para assá-las.
— Bom — replicou Jondrette. — Amanhã vou levá-las para jantar
comigo. Vamos ter pato e uns complementos. Vão jantar como Carlos-
Dez. Tudo vai bem!
E acrescentou em seguida, baixando a voz:
— A ratoeira está armada. Os gatos estão aí.
Baixando ainda mais a voz, disse:
— Ponha isso no fogo.
Marius ouviu um estalido de carvão mexido por uma longa pinça ou
por alguma ferramenta, e Jondrette prosseguiu:
— Você engraxou as dobradiças da porta para que não façam barulho?
— Engraxei — respondeu a mãe.
— Que horas são?
— Quase seis horas. Acabou de soar cinco e meia em Saint-Médard.
— Diabos! — resmungou Jondrette. — As meninas têm que ficar de
sentinela. Venham, as duas, escutem aqui.
Cochicharam.
A voz de Jondrette elevou-se novamente:
— A Burgon já saiu?
— Já — disse a mãe.
— Tem certeza de que não há ninguém no vizinho?
— Ele ainda não voltou, e você sabe que a essa hora ele costuma jantar.
— É certeza?
— Certeza!
— Não importa — retrucou Jondrette —, não faz mal nenhum ir ver se
ele está lá. Minha filha, pegue a vela e vá.
Marius apoiou-se nas mãos e nos joelhos e arrastou-se silenciosamente
para debaixo da cama.
Mal acabara de esconder-se, viu uma luz por entre as fendas da porta.
— Pai — gritou uma voz —, ele saiu.
Ele reconheceu a voz da filha mais velha.
— Você entrou? — perguntou o pai.
— Não — respondeu a filha —, mas já que a chave está na porta, ele
saiu.
— Entre assim mesmo — gritou o pai.
A porta se abriu e Marius viu a filha mais velha entrando com uma
vela na mão. Estava como de manhã, mas ainda mais horrível naquela
claridade.
Ela caminhou em direção à cama, e Marius passou por um momento de
inexprimível ansiedade; mas, como ao lado havia um espelho pendurado
na parede, era na direção dele que ela ia. Ergueu-se nas pontas dos pés e
olhou-se. No quarto vizinho ouvia-se um ruído de ferragens sendo
remexidas.
Ela alisou os cabelos com a palma da mão e sorriu para o espelho
enquanto cantarolava com sua voz rouca e sepulcral:

Nos amours ont duré toute une semaine.


Ah! que du bonheur les instants sont courts!
S’adorer huit jours, c’était bien la peine!
Le temps des amours devrait durer toujours!
Devrait durer toujours! devrait durer toujours!

Nossos amores duraram uma semana inteira.


Ah! Como são breves os momentos de felicidade!
Se adorar por oito dias, como valeu a pena!
O tempo dos amores deveria durar para sempre!
Deveria durar para sempre! Deveria durar para sempre!

Enquanto isso, Marius tremia. Parecia-lhe impossível que ela não


ouvisse sua respiração.
Ela foi até a janela e olhou para fora, falando em voz alta com aquele
jeito meio desvairado que tinha.
— Como Paris é feia quando veste uma camisa branca! — disse.
Voltou ao espelho e novamente fez-se caretas, mirando-se ora de
frente, ora de lado.
— E então! — gritou o pai. — O que você está fazendo?
— Estou olhando embaixo da cama e dos móveis — respondeu ela,
continuando a ajeitar os cabelos —, mas não tem ninguém.
— Estúpida! — berrou o pai. — Já para cá! E nada de perder tempo.
— Já vou, já vou! — disse ela. — A gente não tem tempo para nada
naquele barraco!
E cantarolava:

Vous me quittez pour aller à la gloire,


Mon triste coeur suivra partout vos pas.

Você me deixou para encontrar a glória,


Meu triste coração seguirá seus passos por toda parte.

Lançou um último olhar ao espelho e saiu fechando a porta.


Um instante depois, Marius ouviu o ruído dos pés descalços das duas
meninas no corredor, e a voz de Jondrette que lhes gritava:
— Prestem bem atenção! Uma para o lado da barreira, outra para a
esquina da rua Petit-Banquier. Não percam de vista nem um minuto a porta
da casa, e qualquer coisa que vejam, voltem imediatamente aqui!
Correndo! Estão com uma chave para entrar.
A filha mais velha resmungou:
— Ficar de sentinela na neve, descalça!
— Amanhã vocês vão ter botinas de seda colorida! — disse o pai.
Elas desceram a escada e, alguns segundos depois, o choque da porta
de baixo fechando-se anunciou que elas estavam do lado de fora.
No cortiço não havia mais ninguém além de Marius, dos Jondrette, e
provavelmente dos quatro seres misteriosos entrevistos por Marius à luz
do crepúsculo através da porta do quarto desabitado.

XVII. EMPREGO DA MOEDA DE CINCO FRANCOS


DE MARIUS
Marius achou que era hora de retomar seu lugar no observatório. Em
um piscar de olhos, e com a flexibilidade própria de sua idade, logo
chegou perto do buraco da parede.
Observou.
O interior da habitação dos Jondrette oferecia um aspecto singular, e
Marius achou a explicação para a estranha claridade que havia notado.
Uma vela ardia em um castiçal azinabrado, mas não era ela que realmente
clareava o quarto. Todo aquele lugar estava iluminado como que pelo
reflexo de um grande fogareiro de latão colocado dentro da lareira e cheio
de brasas. Era o fogareiro que a mulher de Jondrette preparara pela manhã.
O carvão estava em brasa e o fogareiro vermelho, uma chama azul se
levantava e ajudava a distinguir as linhas do formão, comprado por
Jondrette na rua Pierre-Lombard, que se tornava avermelhado no meio das
brasas. Em um canto perto da porta, viam-se dispostos, como que para um
uso previsto, dois amontoados que pareciam ser, um, de ferragens, e o
outro, de cordas. Tudo aquilo, para quem não soubesse nada do que se
preparava, teria feito a mente passear entre uma ideia muito sinistra e uma
ideia muito simples. Assim iluminada, aquela espelunca mais se parecia
com uma forja do que com uma boca do inferno, mas Jondrette, naquela
luz, mais parecia um demônio do que um ferreiro.
O calor do braseiro era tamanho que a vela acesa sobre a mesa
derretia-se do lado do fogareiro, consumindo-se desigualmente. Uma
velha lanterna furta-fogo de cobre, digna de Diógenes convertido em
Cartouche, estava em cima da lareira.
O fogareiro, colocado dentro da lareira, junto aos tições já meio
apagados, lançava sua fumaça no tubo da chaminé, e não espalhava cheiro
algum.
A lua, entrando pelos quatro vidros da janela, irradiava seu brilho pelo
quarto purpúreo e flamejante, e, para a poética mente de Marius, sonhador
mesmo no momento da ação, era como um pensamento do céu
confundindo-se aos disformes sonhos da terra.
Um sopro de vento, que penetreva pelo vidro quebrado, contribuía para
dissipar o cheiro do carvão e disfarçar o fogareiro.
O covil Jondrette, se nos lembrarmos do que foi dito a respeito do
casarão Gorbeau, era admiravelmente apropriado para servir de teatro a
um fato violento e obscuro, e para ocultar um crime. Era o quarto mais
recuado, da casa mais isolada, do bulevar mais deserto de Paris. Se a
cilada não existisse, era ali que seria inventada.
Toda aquela espessa edificação e um grande número de quartos
desabitados separavam aquele covil do bulevar, e a única janela que
existia dava para uns terrenos baldios cercados por muralhas e sebes.
Jondrette acendera o cachimbo, sentara-se na cadeira estragada e
fumava. Sua mulher falava-lhe em voz baixa.
Se Marius fosse Courfeyrac, quer dizer, um desses homens que riem
em todas as circunstâncias da vida, teria dado uma gargalhada ao olhar
para a mulher de Jondrette. Ela colocara um chapéu preto de plumas,
muito semelhante ao dos arautos das armas que figuraram na sagração de
Carlos X, um imenso xale axadrezado por cima de uma saia de lã e os
sapatos de homem que sua filha enjeitara pela manhã. Fora esse traje que
arrancara de Jondrette aquela exclamação: Bom, é isso mesmo, você está
vestida! Você deverá inspirar confiança.
Quanto a Jondrette, não tirara mais o sobretudo novo, apesar de muito
largo, que o senhor Leblanc lhe dera, e seu traje continuava a oferecer
aquele contraste que constituía aos olhos de Courfeyrac o ideal do poeta.
De repente, Jondrette levantou a voz:
— A propósito, pensando bem, com o tempo que está fazendo, ele virá
de carruagem. Acenda a lanterna e desça. Você vai ficar atrás da porta de
baixo. Quando ouvir a carruagem parando, abra imediatamente a porta; ele
vai subir e você vai iluminar a escada e o corredor, e, logo que ele entrar
aqui, você torna a descer bem rápido, paga o cocheiro e dispensa a
carruagem.
— E o dinheiro? — perguntou a mulher.
Jondrette meteu a mão no bolso das calças e entregou-lhe cinco
francos.
— O que é isso? — exclamou ela.
— É a moeda que o vizinho deu hoje de manhã — respondeu Jondrette
com dignidade.
E acrescentou:
— Sabe? Precisamos de duas cadeiras aqui.
— Para quê?
— Para a gente se sentar.
Marius sentiu um estremecimento percorrer-lhe os rins ao ouvir a
tranquila resposta da mulher de Jondrette:
— Ora! Vou buscar as do vizinho.
E com um movimento rápido ela abriu a porta e saiu no corredor.
Marius não tinha tempo material de descer da cômoda e ir esconder-se
embaixo da cama.
— Pegue a vela — gritou Jondrette.
— Não — disse ela —, ia me atrapalhar para carregar as duas cadeiras.
Tem a claridade da lua.
Marius ouviu o ruído da pesada mão da mãe Jondrette tateando à
procura da chave na escuridão. A porta se abriu. Ele ficou pregado onde
estava pelo medo e pelo estupor.
A mulher entrou.
A janela desse quarto deixava passar uma réstia de luar entre duas
grandes superfícies de sombra, uma das quais cobria completamente a
parede na qual Marius estava encostado, de forma que ele não ficava
visível.
A mãe Jondrette olhou em volta, não viu Marius, pegou as duas únicas
cadeiras que ele tinha, e saiu, deixando a porta bater ruidosamente.
Voltou para seu quarto.
— Aqui estão as cadeiras.
— E aqui está a lanterna — disse o marido. — Desça bem rápido.
Ela obedeceu apressadamente, e Jondrette ficou só.
Ele dispôs as cadeiras dos dois lados da mesa, virou o formão que
estava no braseiro, colocou diante da lareira um velho biombo encobrindo
o fogareiro, depois foi até o canto onde estava o monte de cordas e curvou-
se como se fosse examinar alguma coisa.
Marius percebeu então que o que ele tomara por um amontoado
informe era uma escada de corda muito bem feita, com degraus de
madeira e dois ganchos para prendê-la.
Essa escada e algumas grandes ferramentas, verdadeiras maças de
ferro, que estavam misturadas ao monte de ferragens encostado atrás da
porta, não estavam ali pela manhã; foram, evidentemente, trazidas à tarde,
durante a ausência de Marius.
— São ferramentas de serralheiro — pensou Marius.
Se Marius tivesse mais conhecimentos desse gênero, reconheceria,
entre aquilo que tomava por ferramentas de serralheiro, certos
instrumentos capazes de forçar uma fechadura ou despregar uma porta, e
outros capazes de cortar ou serrar, duas famílias de objetos sinistros que
os ladrões chamam de brocas e segadeiras.
A lareira e a mesa com as duas cadeiras ficavam exatamente em frente
a Marius. Com o fogareiro escondido, o quarto só ficava iluminado pela
vela, e qualquer caco em cima da mesa ou da lareira produzia uma grande
sombra. Um jarro de água sombreava metade de uma parede. Dentro
daquele quarto havia não se sabe que calma medonha e ameaçadora.
Sentia-se a espera de algo amedrontador.
Jondrette deixara apagar o cachimbo, grave sinal de preocupação, e
tornara a sentar-se. A luz da vela fazia com que os ângulos finos e rudes de
seu rosto se sobressaíssem. Franzia as sobrancelhas e fazia bruscos
movimentos com a mão direita como se respondesse aos últimos
conselhos de um sombrio monólogo interior. Em uma dessas misteriosas
réplicas, que fazia a si próprio, abriu rapidamente a gaveta da mesa, tirou
dali uma grande faca de cozinha que escondera, e experimentou o corte
sobre a unha. Depois disso, colocou novamente a faca na gaveta e a
fechou.
Por seu lado, Marius pegou a pistola que trazia no bolso direito e a
engatilhou.
Ao ser engatilhada, a pistola fez um ruído seco. Jondrette estremeceu e
levantou-se um pouco da cadeira.
— Quem está aí? — gritou ele.
Marius prendeu a respiração; Jondrette parou um instante para escutar,
e então pôs-se a rir, dizendo:
— Com sou tolo! Foi só um estalinho.
Marius ficou com a pistola engatilhada na mão.

XVIII. AS DUAS CADEIRAS DE MARIUS FRENTE A


FRENTE
De repente, a vibração longínqua e melancólica de um sino sacudiu a
vidraça. Soavam seis horas em Saint-Médard.
Jondrette marcava cada badalada com um movimento de cabeça. Ao
soar a sexta, apagou a vela com os dedos. Pôs-se a andar pelo quarto, a
escutar o corredor, e andou e tornou a escutar. “Contanto que ele venha!”,
resmungou ele; depois voltou à cadeira.
Mal acabara de sentar quando a porta se abriu.
A mãe Jondrette a abrira, e permanecia no corredor fazendo uma
horrível careta amável que era iluminada por baixo, através de uma das
aberturas da lanterna furta-fogo.
— Entre, meu senhor — disse ela.
— Entre, meu benfeitor — repetiu Jondrette, levantando-se
precipitadamente.
O senhor Leblanc apareceu.
Tinha um ar de serenidade que o tornava singularmente venerável.
Colocou quatro luíses sobre a mesa.
— Senhor Fabantou, aqui tem para o seu aluguel e para suas primeiras
necessidades. Depois veremos.
— Deus o recompense, meu generoso benfeitor! — disse Jondrette; e
acrescentou, aproximando-se rapidamente de sua mulher:
— Dispense a carruagem!
Ela esquivou-se enquanto seu marido fazia inúmeras cortesias e
oferecia uma cadeira ao senhor Leblanc. Um instante depois, voltou e
disse baixo no ouvido de Jondrette:
— Pronto.
A neve, que desde a manhã não tinha parado de cair, era tão espessa
que não se ouviu a carruagem chegar, nem tampouco partir.
O senhor Leblanc se sentara.
Jondrette tomou posse da outra cadeira, de frente para o senhor
Leblanc.
Agora, para que faça uma ideia da cena que vai se seguir, que o leitor
imagine uma noite gélida, as ruas solitárias da Salpêtrière cobertas de
neve, brancas como lençóis ao clarão da lua; a claridade dos lampiões
refletindo uma luz avermelhada aqui e ali sobre aqueles trágicos bulevares
e longas fileiras de olmos escuros; nem um só transeunte em um quarto de
légua ao redor; o casarão Gorbeau em seu momento de maior silêncio,
horror e escuridão; no meio daquela solidão, no meio daquelas trevas, o
vasto casebre de Jondrette iluminado por uma vela, e naquela pocilga dois
homens sentados frente a frente, o senhor Leblanc sereno, Jondrette
risonho e medonho, a mãe loba em um canto, e, do outro lado da parede
divisória, Marius, invisível, de pé, sem perder uma só palavra, sem perder
um só movimento, com os olhos à espreita e a pistola em punho.
Marius experimentava apenas uma sensação de horror, mas nenhum
medo. Apertava a coronha da pistola e sentia-se tranquilizado. “Vou fazer
esse miserável parar quando eu quiser”, pensava.
Sentia a polícia de emboscada em algum lugar por perto, esperando o
sinal combinado e pronta a estender o braço.
E esperava, de resto, que daquele violento encontro entre Jondrette e o
senhor Leblanc alguma luz se fizesse sobre tudo aquilo que lhe interessava
conhecer.

XIX. PREOCUPAÇÕES COM COISAS OBSCURAS


Mal acabou de sentar, o senhor Leblanc voltou os olhos para as duas
camas vazias.
— Como está a pobre menina machucada? — perguntou ele.
— Mal — respondeu Jondrette com um sorriso doloroso e grato —,
muito mal, meu digno senhor. A irmã mais velha levou-a à Bourbe7 para
fazer um curativo. O senhor vai vê-las, logo estarão de volta.
— A senhora Fabantou me parece melhor — tornou o senhor Leblanc,
olhando para a estranha vestimenta da mulher de Jondrette, que, postada
entre ele e a porta, como se guardasse a saída, o encarava com uma atitude
ameaçadora, quase de combate.
— Ela está à beira da morte — disse Jondrette. — Mas que quer o
senhor? Tem tanto ânimo, essa mulher! Não é uma mulher, é um
verdadeiro boi.
A mulher, comovida com o cumprimento, respondeu com trejeitos de
monstro lisonjeado:
— Você é sempre bondoso demais comigo, senhor Jondrette!
— Jondrette? — disse o senhor Leblanc. — Pensei que se chamasse
Fabantou, não?
— Fabantou, conhecido como Jondrette! — replicou o marido
rapidamente. — Apelido de artista!
E, fazendo um movimento de ombros à sua mulher, que o senhor
Leblanc não viu, prosseguiu com uma inflexão de voz enfática e
carinhosa:
— Ah! É que nós sempre nos demos bem, minha pobre mulher e eu! O
que nos restaria se não tivéssemos isso? Somos tão infelizes, meu
respeitável senhor! Temos os braços, mas não trabalho! Temos coração,
mas não serviço. Não sei como o governo arranja essas coisas, mas,
palavra de honra, meu senhor, que não sou jacobino, nem revolucionário,
nem quero mal a ninguém, mas se eu fosse ministro, dou minha palavra
mais sagrada, as coisas andariam de outro jeito. Veja, por exemplo, eu quis
que minhas filhas aprendessem o ofício de fazer caixas de papelão. O
senhor vai me dizer: “O quê! Um ofício?” É, um ofício! Um simples
ofício! Um ganha-pão! Que decadência, meu benfeitor! Que degradação a
nossa, depois de termos sido o que fomos! Infelizmente! Nada nos resta do
nosso tempo de prosperidade! Nada além de uma coisa, um quadro que
aprecio muito, do qual, no entanto, me desfaria, pois é preciso viver! Sim,
é preciso viver!
Enquanto Jondrette falava, com uma espécie de desordem aparente,
que em nada diminuía a expressão sagaz e estudada de sua fisionomia,
Marius levantou os olhos e avistou no fundo do quarto alguém que ele
ainda não tinha visto. Um homem acabava de entrar, tão silenciosamente
que nem se ouviu ranger a porta. Usava um colete de malha roxo, velho,
roto, manchado, com buracos em cada dobra, umas largas calças de
veludo, tamancos nos pés; e sem camisa, o pescoço nu, os braços nus e
tatuados, e o rosto borrado de preto. Sentou-se em silêncio, os braços
cruzados, na cama mais próxima, e, como ficara atrás da mulher de
Jondrette, só confusamente podia-se divisá-lo.
Uma espécie de instinto magnético, que adverte o olhar, fez com que o
senhor Leblanc se voltasse quase ao mesmo tempo que Marius. Ele não
pôde conter um movimento de surpresa, que não passou despercebido a
Jondrette.
— Ah! O senhor está olhando para o seu sobretudo? — exclamou
Jondrette, abotoando-se com ar de complacência. — Caiu bem em mim!
Palavra! Caiu bem!
— Quem é aquele homem? — disse o senhor Leblanc.
— Aquele? — fez Jondrette. — É um vizinho. Não faça caso.
O vizinho tinha um aspecto singular. Como no subúrbio Saint–Marceau
são muitas as fábricas de produtos químicos, muitos operários poderiam
ficar com o rosto sujo de preto. Além disso, toda a pessoa do senhor
Leblanc respirava uma confiança cândida e intrépida.
Continuou:
— Perdão, o que me dizia, senhor Fabantou?
— Eu lhe dizia, meu caro senhor e protetor — replicou Jondrette,
apoiando os cotovelos na mesa e contemplando o senhor Leblanc com um
olhar fixo e terno, bastante semelhante ao de uma serpente —, eu lhe dizia
que tenho um quadro para vender.
Um leve ruído fez-se à porta. Um segundo homem acabava de entrar e
de sentar-se na cama, atrás da mulher de Jondrette. Tinha, como o
primeiro, os braços nus e o rosto sujo de tinta ou de fuligem.
Por mais que esse homem tivesse, ao pé da letra, escorregado para
dentro do quarto, não conseguiu fazer com que o senhor Leblanc não o
notasse.
— Não se incomode — disse Jondrette. — É gente de casa. Eu dizia
que me restava um precioso quadro… Olhe, senhor.
Levantou-se, foi até a parede onde estava encostado o painel de que já
falamos, virou-o, mas o deixou apoiado na parede. De fato, era algo
parecido com um quadro, e que a vela mal iluminava. Marius não
conseguia distinguir nada, já que Jondrette estava entre ele e o quadro;
apenas entreviu umas grosseiras pinceladas e uma espécie de personagem
principal, colorido com a crueza gritante dos quadros de feiras e das
pinturas dos biombos.
— O que é isso? — perguntou o senhor Leblanc.
Jondrette exclamou:
— Uma pintura de mestre, um quadro de grande valor, meu benfeitor!
Gosto dele tanto quanto de minhas duas filhas, me traz recordações! Mas
eu já disse ao senhor e não me desdigo: minha vida vai tão mal que me
desfaria dele.
Seja por acaso ou porque começasse a sentir alguma preocupação,
enquanto examinava o quadro, o olhar do senhor Leblanc dirigiu-se ao
fundo do quarto. Havia então quatro homens, três sentados na cama e um
de pé, encostado na guarnição da porta, os quatro de braços nus, imóveis,
os rostos sujos de preto. Um dos que estavam na cama encostara a cabeça
à parede, tinha os olhos fechados e parecia dormir. Era um velho, seus
cabelos brancos sobre o rosto preto eram horríveis. Os outros dois
pareciam novos. Um era barbudo, o outro cabeludo. Nenhum deles tinha
sapatos; os que não estavam de tamancos estavam descalços.
Jondrette notou que os olhos do senhor Leblanc não desgrudavam
daqueles homens.
— São amigos. Da vizinhança — disse ele. — Estão sujos porque
trabalham com carvão. São limpadores de chaminé. Deixe isso para lá,
meu benfeitor, e compre o meu quadro. Tenha pena da minha miséria! Não
vou cobrar caro. Em quanto o avalia?
— Mas — disse o senhor Leblanc, olhando fixamente para Jondrette
como quem se defende — isso é uma tabuleta de taverna, vale uns três
francos.
Jondrette respondeu com tranquilidade:
— O senhor está com a sua carteira? Eu ficaria contente com mil
escudos.
O senhor Leblanc levantou-se, encostou-se à parede e passeou o olhar
pelo quarto. À esquerda, do lado da janela, tinha Jondrette, e, à direita, do
lado da porta, tinha a mulher dele e os quatro homens. Estes não se
mexiam, e pareciam nem sequer vê-lo; Jondrette voltara a falar em tom
queixoso, com o olhar tão vago e a entonação tão lamentosa que o senhor
Leblanc podia acreditar que tinha diante dos olhos simplesmente um
homem a quem a miséria enlouquecera.
— Se o senhor não me comprar o quadro, meu caro benfeitor — dizia
Jondrette —, não terei mais recursos, só me resta jogar-me no rio. Quando
me lembro que quis mandar minhas filhas aprenderem o ofício da
cartonagem, para fazerem caixas de presente, pois bem! Seria preciso uma
mesa com uma prancha embaixo para os vidros não caírem no chão; um
forno feito para isso; um recipiente com três divisões para os diferentes
graus de adesão que a cola precisa ter conforme seu emprego em madeira,
ou papel ou tecido; um trinchete para cortar o papelão, um molde para o
ajustar, um martelo para fixar os grampos, pincéis, e o diabo, lá sei eu! E
tudo isso para ganhar quatro soldos por dia! E trabalhar catorze horas! E
cada caixa passa treze vezes pelas mãos da operária! E molhar o papel! E
não deixar nada manchar! E manter a cola quente! O diabo! Estou dizendo,
quatro soldos por dia! Como o senhor quer que a gente viva?
Enquanto falava, Jondrette não olhava para o senhor Leblanc, que o
observava. Seus olhos fixavam Jondrette e os de Jondrette fixavam a porta.
A atenção ofegante de Marius ia de um para o outro. O senhor Leblanc
parecia perguntar a si mesmo: “Será algum idiota?” Jondrette repetiu duas
ou três vezes, com todo tipo de inflexões variadas do gênero lastimoso e
suplicante: “Só me resta jogar-me no rio! Outro dia cheguei a descer três
degraus pelo lado da ponte de Austerlitz para fazer isso!”
De repente, seus olhos apagados iluminaram-se com um brilho
horrível; ergueu-se e tornou-se medonho; deu um passo em direção ao
senhor Leblanc e gritou-lhe com uma voz tonitruante:
— Não é nada disso! Não está me reconhecendo?

XX. A CILADA
A porta do quarto acabava de se abrir bruscamente, deixando ver três
homens vestidos com blusas de tecido azul e cobertos com máscaras de
papel preto. O primeiro era magro e segurava um longo bastão com ponta
de ferro; o segundo, que era uma espécie de colosso, segurava, pelo meio
do cabo e com a cabeça para baixo, uma marreta, das que se usam para
golpear os bois. O terceiro, homem de ombros parrudos, menos magro que
o primeiro e menos maciço que o segundo, segurava com força uma
enorme chave roubada de alguma porta de prisão.
Parece que era a chegada desses homens que Jondrette esperava. Um
rápido diálogo se travou entre ele e o homem do bastão, o magro.
— Está tudo pronto? — perguntou Jondrette.
— Está — respondeu o homem.
— Onde está então Montparnasse?
— O galã parou para conversar com a sua filha.
— Qual delas?
— A mais velha.
— Tem uma carruagem lá embaixo?
— Tem.
— A carroça está pronta?
— Está.
— Com dois cavalos bons?
— Excelentes.
— Está esperando onde eu disse para esperar?
— Está.
— Muito bem — disse Jondrette.
O senhor Leblanc estava muito pálido. Observava tudo a sua volta
naquele quarto como um homem que compreende onde caiu; e sua cabeça,
alternadamente voltada para todos os rostos que o rodeavam, movia-se
sobre seu pescoço com uma lentidão atenta e assustada, mas não
demonstrava nada que parecesse medo. Havia feito da mesa uma trincheira
improvisada; e o homem, que um momento antes parecia apenas um bom
velho, tornou-se subitamente uma espécie de atleta, apoiando os punhos
robustos no encosto da cadeira, num gesto temível e surpreendente.
O homem, tão firme e tão bravo diante de tamanho perigo, parecia ser
uma dessas naturezas que são corajosas da mesma forma que são
bondosas, natural e simplesmente. O pai da mulher que amamos não nos é
jamais estranho. Marius sentiu-se orgulhoso daquele desconhecido.
Três dos homens com os braços nus, de quem Jondrette dissera: são
limpadores de chaminé, haviam tirado do monte de ferragens, um, uma
grande tesoura, o outro, uma tenaz, e o terceiro, um martelo, e postaram-se
diante da porta sem pronunciar uma palavra. O velho permanecera na
cama, só que abrira os olhos. A mulher de Jondrette estava sentada ao lado
dele.
Marius pensou que em poucos segundos o momento de intervir teria
chegado, e elevou a mão direita para o teto, na direção do corredor, pronto
a disparar seu tiro de pistola.
Terminado seu colóquio com o homem do bastão, Jondrette voltou-se
novamente para o senhor Leblanc e repetiu sua pergunta, acompanhando-a
com aquele riso abafado, contido e terrível que lhe era peculiar.
— Então não me reconhece?
O senhor Leblanc olhou-o de frente e respondeu:
— Não.
Jondrette foi até a mesa. Inclinou-se por sobre o castiçal, cruzando os
braços, aproximando seu anguloso e feroz maxilar do rosto calmo do
senhor Leblanc, avançando o mais que podia sem que o senhor Leblanc
recuasse, e, nessa atitude de animal feroz prestes a morder, gritou:
— Não me chamo Fabantou, não me chamo Jondrette; meu nome é
Thénardier! Sou o estalajadeiro de Montfermeil! Ouviu bem? Thénardier!
Agora me reconhece?
Um imperceptível rubor passou pelo rosto do senhor Leblanc, e ele
respondeu sem que sua voz tremesse, nem se elevasse, com sua costumeira
placidez:
— Não mais que antes.
Marius não ouviu essa resposta. Quem o olhasse naquele momento,
naquela escuridão, iria vê-lo espantado, abobalhado, desconcertado.
Quando Jondrette dissera: Meu nome é Thénardier, Marius estremeceu
inteiro, e apoiou-se à parede como se sentisse o frio da lâmina de uma
espada atravessando seu coração. Então, seu braço direito, pronto a dar o
tiro de sinal, foi baixando lentamente, e no momento em que Jondrette
repetira: Ouviu bem? Thénardier! os dedos enfraquecidos de Marius quase
deixaram a pistola cair.
Jondrette, revelando quem era, não impressionara o senhor Leblanc,
mas abalara Marius profundamente. O nome Thénardier, que o senhor
Leblanc parecia não conhecer, Marius conhecia muito bem. Basta
lembrarmos o que esse nome significava para ele! Esse nome, ele o
trouxera junto ao peito, escrito no testamento de seu pai! E o trazia no
fundo de sua mente, no fundo de sua memória, naquela sagrada
recomendação: “Um homem chamado Thénardier salvou-me a vida. Se
meu filho algum dia o encontrar, que lhe faça todo o bem que puder”. Esse
nome, nos lembramos, era uma das piedades de sua alma; misturava-se ao
nome de seu pai no culto que lhe rendia. Pois ali estava o tal Thénardier, o
estalajadeiro de Montfermeil, que ele havia em vão e por tanto tempo
procurado! Encontrava-o, enfim, mas de que maneira! O salvador de seu
pai era um bandido! Esse homem, por quem Marius ardia de devoção, era
um monstro! Esse libertador do coronel Pontmercy estava a ponto de
cometer um atentado, cuja forma Marius ainda não via distintamente, mas
que se assemelhava a um assassinato! E contra quem, grande Deus! Que
fatalidade! Que amarga zombaria do destino! Seu pai lhe ordenava, do
fundo de seu túmulo, que fizesse todo o bem possível a Thénardier; havia
quatro anos que Marius só pensava em quitar a dívida de seu pai, e, no
momento em que ia fazer com que a justiça prendesse um bandido no
meio de um crime, o destino gritava-lhe: “É Thénardier!”
A vida de seu pai, salva sob uma saraivada de balas na heroica batalha
de Waterloo, ele enfim iria pagá-la àquele homem com o cadafalso!
Prometera a si mesmo que, se algum dia encontrasse Thénardier, só o
abordaria jogando-se a seus pés, e agora o encontrava, mas para entregá-lo
ao carrasco! Seu pai lhe dizia: “Socorra Thénardier!” e ele respondia a
essa voz adorada e santa esmagando Thénardier! Dar como espetáculo ao
pai, em seu túmulo, o homem que o livrara da morte, arriscando a própria
vida, executado na praça Saint-Jacques, por causa de seu filho, desse
Marius que o recebera do pai como legado! Que ironia, carregar por tanto
tempo sobre o peito as últimas vontades de seu pai, escritas de próprio
punho, para fazer exatamente o contrário! Mas, por outro lado, assistir
àquela cilada e não a impedir! Como! Condenar a vítima e poupar o
assassino! Seria possível sentir-se obrigado a qualquer gratidão para com
um miserável daqueles?
Esse golpe inesperado atravessava de lado a lado todas as ideias que
Marius alimentava havia quatro anos. Ele estremecia. Tudo dependia dele.
Ele tinha nas mãos, sem que suspeitassem, essas criaturas que se agitavam
ali, sob seus olhos. Se disparasse, o senhor Leblanc estaria salvo e
Thénardier perdido; se não disparasse, o senhor Leblanc seria sacrificado,
e, quem sabe, Thénardier escapasse. Precipitar um ou deixar cair o outro!
Remorsos! Dos dois lados. Que fazer? Que escolher? Faltar às mais
imperiosas recordações, a tantos compromissos profundos assumidos com
ele mesmo, ao mais sagrado dos deveres, ao mais venerando dos textos!
Faltar ao testamento de seu pai, ou deixar que um crime se cometesse! De
um lado, parecia-lhe ouvir “sua Ursule” suplicando-lhe pelo pai, e, do
outro, o coronel recomendando-lhe Thénardier. Sentia-se enlouquecendo;
seus joelhos se dobravam. E nem tinha mais tempo para deliberar, tanto a
cena que tinha sob os olhos se precipitava com furor. Era como um
turbilhão do qual se acreditava senhor e que agora o arrebatava. Esteve a
ponto de desmaiar.
Enquanto isso, Thénardier — não o chamaremos mais por outro nome
— andava de um lado para o outro diante da mesa, com uma espécie de
desvairamento e de triunfo frenético. Pegou o castiçal bruscamente e o
colocou sobre a lareira de forma tão violenta que a vela quase se apagou e
o sebo respingou na parede.
Depois, voltou-se para o senhor Leblanc, assustador, e cuspiu estas
palavras:
— Frito! Defumado! Guisado! Grelhado!
E voltou a andar, em plena explosão:
— Ah! — gritou ele. — Enfim o encontrei, senhor filantropo! Senhor
milionário esfarrapado! Senhor que presenteia bonecas! Velho maricas!
Ah! Não me reconhece! Não foi o senhor quem esteve em Montfermeil, na
minha taverna, há oito anos, na noite de Natal de 1823! Não foi o senhor
quem levou da minha casa a filha da Fantine, a Cotovia? Não era o senhor
que tinha um casacão amarelo! Não! E um pacote cheio de trapos na mão,
como esta manhã aqui! Diga, mulher, é mania dele, ao que parece, levar à
casa das pessoas pacotes cheios de meias de lã, não! Seu velho caridoso!
Será que tem uma fábrica, senhor milionário? E dá aos pobres artigos do
seu comércio, santo homem! Que equilibrista! E então não me reconhece?
Mas eu o reconheço! Eu o reconheci logo que meteu o focinho aqui. Ah!
Finalmente vamos ver que nem tudo são rosas, ir assim à casa dos outros,
a pretexto de que são tavernas, com roupas surradas, cara de pobre, para
quem até dariam esmola, enganar as pessoas se fazendo de generoso mas
tirando seu ganha-pão, e ameaçá-las no meio de um bosque, e achar que
saía dessa com o único inconveniente de trazer, mais tarde, quando as
pessoas estão arruinadas, um sobretudo enorme e dois reles cobertores de
hospital, velho gatuno, ladrão de crianças!
Calou-se e, por um momento, pareceu falar com ele mesmo. Seria
possível dizer que seu furor caía como o Ródano em algum buraco; depois,
como se terminasse de dizer em voz alta as coisas que acabara de se falar
baixinho, deu um murro na mesa e exclamou:
— Com aquele jeito simplório!
E dirigindo a palavra ao senhor Leblanc:
— Bolas! O senhor zombou de mim daquela vez! O senhor é a causa
de todas as minhas desgraças! Por mil e quinhentos francos ficou com a
menina que eu tinha, e que decerto era de gente rica, e que já me tinha
rendido bastante dinheiro, e de onde eu teria o que tirar para viver a vida
inteira! Uma menina que me teria compensado de tudo o que perdi naquela
abominável baiuca, onde só se fazia algazarra e onde eu comi, como um
imbecil, todo o meu santo pé de meia! Oh! Como eu gostaria que todo o
vinho que se bebeu ali se convertesse em veneno para todos que o
beberam! Mas enfim, não importa! E então! Deve ter me achado um tolo
quando foi embora com a Cotovia! Tinha aquele seu cajado na floresta, e
era mais forte. Vingança. Sou eu que tenho o trunfo hoje! O senhor está
danado, pobre homem! E eu rio! Verdade, eu rio! Caiu na armadilha!
Disse-lhe que era ator, que me chamava Fabantou, que tinha representado
com a senhorita Mars, com a senhorita Muche, que o proprietário queria o
dinheiro amanhã, 4 de fevereiro, e ele nem viu que é 8 de janeiro e não 4
de fevereiro que vence o trimestre! Absurdo cretino! E essas quatro
moedas que me trouxe! Canalha! Não teve coração nem para chegar a cem
francos! E como entrava nas minhas vilanias! Isso me divertia. Eu me
dizia: “Estúpido! Vá, que você está pego. Lambo suas patas hoje de
manhã, mas à noite vou roer seu coração!”
Thénardier parou. Estava sem fôlego. Seu estreito peito arquejava
como um fole de ferreiro. Seu olhar estava cheio daquela ignóbil
felicidade de uma criatura fraca, cruel e covarde, que pode enfim
aterrorizar quem já temeu e insultar quem já lisonjeou, alegria de um anão
calcando a cabeça de Golias, alegria de um chacal começando a devorar
um touro doente, morto o suficiente para não mais se defender, vivo o
bastante para ainda sofrer.
O senhor Leblanc não o interrompeu, mas disse-lhe depois que se
calou:
— Não sei o que o senhor quer dizer! Está enganado a meu respeito.
Sou um homem pobre e longe de ser milionário. Não o conheço. O senhor
me toma por outra pessoa.
— Ah! — protestou Thénardier. — Que bela piada! Insiste nessa
brincadeira! Está se enrolando, meu velho. Ah! Então não se lembra, não
sabe quem sou?
— Perdão, senhor — respondeu o senhor Leblanc com uma polidez
que, em um momento como aquele, tinha algo de estranho e poderoso —,
vejo que é um bandido!
Quem já não notou? Criaturas odiosas também têm suas
suscetibilidades, monstros são melindrosos. À palavra bandido, a mulher
de Thénardier atirou-se embaixo da cama e este segurou a cadeira como se
fosse despedaçá-la nas mãos.
— Não se mexa! — gritou para sua mulher; e, voltando-se para o
senhor Leblanc:
— Bandido! Isso, sei que vocês nos chamam assim, senhores ricaços!
Pronto! É verdade, fali, vivo escondido, não tenho o que comer, não tenho
dinheiro, então sou um bandido! Há três dias que não como, e sou um
bandido! Ah! Vocês, vocês têm como esquentar os pés, têm escarpins de
Sakoski,8 casacos acolchoados; como arcebispos, moram no primeiro
andar de casas com porteiro; comem trufas, comem aspargos de quarenta
francos em janeiro, e se fartam de ervilhas; e quando querem saber se está
frio, vão ver em algum jornal o que marca o termômetro do engenheiro
Chevalier. Nós? Nosso termômetro somos nós mesmos! Não precisamos ir
ao cais, na esquina da torre do Relógio para ver quantos graus de frio está
fazendo, sentimos o sangue congelando nas veias, e o gelo penetrando no
coração, e dizemos: “Deus não existe!” E vocês vêm às nossas cavernas,
isso mesmo, às nossas cavernas, e nos chamam de bandidos! Mas nós os
comeremos! Nós os devoraremos, pobres crianças! Senhor milionário,
saiba de uma coisa: já fui um homem estabelecido, já paguei impostos, já
fui eleitor, sou um burguês! E o senhor talvez não seja nada disso!
Nesse ponto, Thénardier deu um passo em direção aos homens que
estavam perto da porta e acrescentou demonstrando um tremor:
— Quando penso que ele ousa vir me falar como se eu fosse um
sapateiro qualquer!
Depois prosseguiu, dirigindo-se ao senhor Leblanc com recrudescente
frenesi:
— E fique sabendo mais, senhor filantropo! Eu não sou nenhum
tapado! Não sou um homem de quem não se sabe o nome, ou que vai tirar
crianças de dentro das casas! Sou um antigo soldado francês, devia ser
condecorado! Estive em Waterloo, eu! E na batalha salvei um general
chamado conde não sei de quê! Ele me disse seu nome, mas a sua maldita
voz estava tão fraca que não o ouvi. Só entendi um Merci. Eu teria gostado
mais do nome dele que desse agradecimento. Teria me ajudado a
reencontrá-lo. Este quadro que está vendo, e que foi pintado por David em
Bruqueselles, sabe o que ele representa? Representa a mim. David quis
imortalizar esse feito de armas. Estou com esse general nas costas e o
carrego no meio da metralha. É essa a história! Ele nunca fez nada por
mim, o tal general, não valia mais que os outros! Nem por isso deixei de
salvar a vida dele, colocando a minha em perigo, e tenho meus bolsos
cheios de certificados. Sou um soldado de Waterloo, que diabos! E agora
que tive a bondade de lhe dizer tudo isso, acabou, preciso de dinheiro,
preciso de muito dinheiro, preciso muitíssimo de dinheiro, ou então o
extermino, cólera do bom Deus!
Marius retomara algum domínio sobre suas angústias e escutava. A
última possibilidade de dúvida acabava de desaparecer. Era aquele, de fato,
o Thénardier do testamento. Marius estremeceu àquela acusação de
ingratidão dirigida contra seu pai, a qual ele estava quase a ponto de
justificar tão fatalmente. Com ela, suas perplexidades redobraram. De
resto, havia em todas as palavras de Thénardier, em sua entonação, em
seus gestos, em seu olhar que fazia soltar faíscas de cada palavra, havia
naquela explosão de uma natureza ruim mostrando tudo, naquela mistura
de fanfarronice e de abjeção, de orgulho e de pequenez, de raiva e de
imbecilidade, naquele caos de injúrias reais e de sentimentos falsos,
naquela falta de pudor de um homem mau saboreando a voluptuosidade da
violência, naquela descarada nudez de uma alma horrenda, naquela
conflagração de toda sorte de sofrimentos combinados com toda sorte de
ódios, alguma coisa hedionda como o mal e pungente como a verdade.
O quadro de mestre, a pintura de David, cuja venda propusera ao
senhor Leblanc, não era, o leitor já terá adivinhado, nada mais que a
tabuleta de sua taverna, pintada por ele mesmo, único vestígio que
conservou de seu naufrágio de Montfermeil.
Como Thénardier deixara de interceptar o raio visual de Marius,
Marius agora podia observar o quadro, e naquelas pinceladas conseguia
reconhecer uma batalha, um fundo esfumaçado e um homem carregando
outro. Era o grupo de Thénardier e Pontmercy, o sargento salvador e o
coronel salvo. Marius estava como que embriagado, aquele quadro de
alguma forma fazia seu pai reviver; já não era a tabuleta da taverna de
Montfermeil, era uma ressurreição, um túmulo ali se entreabria, dali se
levantava um fantasma. Marius ouvia seu coração bater em suas têmporas,
tinha os canhões de Waterloo nos ouvidos, seu pai vagamente
ensanguentado pintado naquele quadro sinistro o assustava, e parecia-lhe
que aquela silhueta disforme olhava fixamente para ele.
Quando Thénardier retomou fôlego, fixou no senhor Leblanc seus
olhos sangrentos, e disse-lhe brevemente e em voz baixa:
— Que tem a dizer antes que não consiga mais parar em pé?
O senhor Leblanc ficou calado. No meio de tal silêncio, uma voz
rouquenha lançou do corredor este sarcasmo lúgubre:
— Se for preciso rachar lenha, aqui estou eu!
Era um gracejo do homem da marreta.
No mesmo instante, um enorme rosto eriçado e cor de terra apareceu à
porta com um medonho riso que mostrava, não dentes, mas presas.
Era o rosto do homem da marreta.
— Por que tirou a máscara? — gritou-lhe Thénardier, enfurecido.
— Para rir! — replicou o homem.
Havia alguns instantes, o senhor Leblanc parecia seguir e espreitar
todos os movimentos de Thénardier, que, cego e alucinado pela própria
raiva, ia e voltava dentro do quarto com a confiança de sentir a porta
guardada, de, armado, manter seguro um homem desarmado, e de serem
nove contra um, supondo-se que a senhora Thénardier contasse como um
homem.
Ao interpelar o homem da marreta, Thénardier dera as costas ao senhor
Leblanc.
O senhor Leblanc aproveitou aquele momento, deu um pontapé na
cadeira, empurrou a mesa, e, de um salto, com uma agilidade prodigiosa, e
antes que Thénardier tivesse tempo de se voltar, chegou à janela. Abri-la,
subir no peitoril e começar a saltá-la, foi um segundo. Tinha metade do
corpo para fora quando seis robustos punhos o seguraram e puxaram
energicamente para dentro. Eram os três “limpadores” que haviam se
lançado sobre ele. Ao mesmo tempo, a mulher de Thénardier agarrava-o
pelos cabelos.
Ouvindo o tropel que se fazia, os outros bandidos vieram do corredor.
O velho que estava na cama, e que parecia embriagado, saiu dali e
aproximou-se cambaleando, com um martelo na mão.
Um dos “limpadores”, que tinha o rosto sujo iluminado pela vela, e em
quem, apesar do disfarce, Marius reconheceu Panchaud, ou Printanier, ou
Bigrenaille, mantinha suspenso sobre a cabeça do senhor Leblanc uma
espécie de instrumento contundente feito com duas bolas de chumbo nas
duas extremidades de uma barra de ferro.
Marius não pôde resistir a esse espetáculo.
— Meu pai — pensou —, me perdoe! — E seu dedo procurou o gatilho
da pistola.
O tiro ia ser disparado quando a voz de Thénardier gritou:
— Não lhe faça mal nenhum!
A desesperada tentativa da vítima, em vez de exasperar Thénardier, o
acalmou. Havia nele dois homens, o homem feroz e o homem hábil. Até
aquele instante, no extravasamento do triunfo, diante da presa abatida e
sem movimento, o homem feroz havia dominado; quando a vítima se
debateu e pareceu querer lutar, o homem hábil reapareceu com mais força.
— Não lhe faça mal! — repetiu. E, sem que suspeitasse, o primeiro
resultado disso foi reter o tiro prestes a ser dado, e paralisar Marius, para
quem a urgência desaparecera, não vendo nessa nova fase inconveniente
em esperar mais um pouco. Quem sabe não surgisse alguma possibilidade
que o livrasse da terrível alternativa de deixar morrer o pai de Ursule ou
de perder o salvador do coronel?
Começava uma luta hercúlea. Com um soco em cheio no peito, o
senhor Leblanc lançou o velho ao meio do quarto; depois, derrubou outros
dois assaltantes com duas bofetadas e segurava cada um deles sob cada um
de seus joelhos; os miseráveis agonizavam sob essa pressão como se
estivessem sob uma mó de granito; mas os outros quatro haviam agarrado
o temível velho pelos braços e pela nuca, mantendo-o agachado sobre os
dois “limpadores” caídos no chão. Assim, dominando uns e sendo
dominado pelos outros, esmagando os de baixo e sufocando sob os de
cima, tentando em vão desvencilhar-se das forças que pesavam sobre ele,
o senhor Leblanc desaparecia sob o horrível grupo de bandidos, como um
javali atacado por mastins e sabujos uivando.
Conseguiram atirá-lo na cama mais próxima à janela e contê-lo. A
mulher de Thénardier não largara seus cabelos.
— Não se meta — disse Thénardier —; vai rasgar seu xale.
Ela obedeceu, como a loba obedece ao lobo, rosnando.
— Vocês aí — tornou Thénardier —, revistem-no.
O senhor Leblanc parecia ter renunciado à resistência. Revistaram-no.
Com ele, só trazia uma bolsa de couro, que continha seis francos, e um
lenço.
Thénardier colocou o lenço no bolso.
— O quê! Não tem carteira? — perguntou ele.
— Nem relógio! — respondeu um dos “limpadores”.
— Não importa, é um velho desgraçado! — murmurou com voz de
ventríloquo o homem mascarado que segurava a chave grande.
Thénardier foi até o canto da porta e pegou um monte de cordas, que
atirou para eles:
— Amarrem-no ao pé da cama! — disse ele. E, olhando para o velho
que ficara imóvel, atravessado no quarto com o soco do senhor Leblanc:
— Boulatruelle está morto? — perguntou.
— Não, está bêbado — respondeu Bigrenaille.
— Empurrem-no para um canto — disse Thénardier.
Dois dos “limpadores” empurraram-no com os pés para perto do
amontoado de ferragens.
— Babet, por que você trouxe tanta gente? — disse Thénardier em voz
baixa ao homem da tenaz. — É inútil.
— O que você queria? — replicou o homem. — Todos eles quiseram
vir. A coisa anda ruim, poucos negócios.
A cama na qual o senhor Leblanc fora jogado era uma espécie de leito
de hospital, apoiada em quatro pés de madeira grosseiros e mal aparados.
O senhor Leblanc não ofereceu resistência. Os bandidos amarraram-no
solidamente à cama, de pé, do lado mais afastado da janela e mais
próximo à lareira.
Quando o último nó foi atado, Thénardier pegou uma cadeira e foi
sentar-se quase defronte ao senhor Leblanc. Thénardier já não parecia o
mesmo; em alguns instantes, sua fisionomia passara da violência
desenfreada à doçura tranquila e astuciosa. Marius tinha dificuldade em
reconhecer, naquele sorriso polido de homem de escritório, a boca quase
bestial que um momento antes espumava; contemplava estupefato aquela
fantástica e assustadora metamorfose, e sentia o que sentiria um homem
que visse um tigre transformar-se em um procurador de justiça.
— Senhor… — disse Thénardier.
E afastando com um gesto os bandidos que ainda tinham as mãos sobre
o senhor Leblanc:
— Saiam um pouco e me deixem conversar com este senhor.
Todos foram em direção à porta. Ele continuou:
— Meu senhor, não foi certo querer saltar pela janela. Poderia ter
quebrado uma perna. Agora, se o senhor permitir, vamos conversar com
tranquilidade. Primeiro, preciso comunicar-lhe uma observação que eu fiz,
que o senhor ainda não deu um grito sequer.
Thénardier tinha razão, esse detalhe era real, embora tivesse escapado
a Marius em meio à sua perturbação. O senhor Leblanc apenas pronunciara
algumas palavras sem levantar a voz, e, mesmo enquanto lutava com os
seis bandidos perto da janela, ficara no mais profundo e singular silêncio.
Thénardier prosseguiu:
— Meu Deus! O senhor poderia ter gritado um pouco ladrão!, que eu
não acharia inconveniente; ou assassino!, que é o que se diz nessas
ocasiões, e eu não levaria a mal. É natural que se faça um pouco de
barulho quando se está no meio de pessoas que não inspiram bastante
confiança. Se o senhor tivesse feito isso, ninguém iria incomodá-lo. E nem
amordaçá-lo. E vou lhe dizer por quê. É porque este quarto é muito surdo;
é a única vantagem que ele tem: parece um porão. Mesmo que uma bomba
estourasse aqui, no posto de guarda mais próximo o barulho seria algo
como o ronco de um bêbado. Aqui, um canhão faria bum e um trovão faria
puf. É um lugar cômodo. Mas, enfim, o senhor não gritou, melhor assim;
meus agradecimentos, e vou lhe dizer o que concluí disso. Meu caro
senhor, quando se grita, quem aparece? A polícia. E depois da polícia? A
justiça. Muito bem, se o senhor não gritou, é porque tem tanta vontade
quanto nós de ver chegar a polícia e a justiça. É que — e faz algum tempo
que desconfio disso — o senhor tem algum interesse em esconder alguma
coisa. De nossa parte, temos o mesmo interesse. Portanto, podemos entrar
em acordo.
Enquanto falava assim, parecia que Thénardier, sem despregar os olhos
do senhor Leblanc, tentava cravar as agudas pontas que deles saíam na
consciência de seu prisioneiro. De resto, sua linguagem, impregnada de
uma certa insolência moderada e dissimulada, era reservada e quase
escolhida; e nesse miserável, que havia pouco não passava de um bandido,
agora se reconhecia “o homem que estudou para ser padre”.
O silêncio que o prisioneiro mantivera, a precaução que chegava até
mesmo ao esquecimento do cuidado com a própria vida, a resistência por
ele oposta ao primeiro instinto da natureza, que é soltar um grito, tudo
isso, é preciso que se diga, depois de feita a observação de Thénardier,
importunava Marius, e causava-lhe penosa admiração.
A observação tão fundamentada de Thénardier obscurecia ainda mais,
aos olhos de Marius, o denso mistério que envolvia a grave e estranha
figura à qual Courfeyrac dera o apelido de senhor Leblanc. Mas, quem
quer que fosse, amarrado com cordas, rodeado de carrascos, meio
enterrado, por assim dizer, em uma cova que se aprofundava a cada
instante sob seus pés, tanto diante do furor como da doçura de Thénardier,
aquele homem permanecia impassível. E Marius não podia deixar de
admirar, em um momento daqueles, um rosto tão soberbamente
melancólico.
Era, evidentemente, uma alma inacessível ao medo, não conhecendo o
que era estar fora de controle. Era um desses homens que dominam o
espanto das situações desesperadas. Por mais extrema que fosse a crise,
por mais inevitável que fosse a catástrofe, não demonstrava nada da
agonia do afogado abrindo horrivelmente os olhos embaixo d’água.
Thénardier levantou-se sem afetação, foi até a lareira, retirou o biombo
e o apoiou na cama mais próxima, e assim descobriu o fogareiro cheio de
brasa ardente onde o prisioneiro podia ver perfeitamente o formão
avermelhado pelo fogo e salpicado, aqui e ali, de pequenas estrelas
escarlates.
Depois disso, Thénardier voltou a sentar-se perto do senhor Leblanc.
— Continuando, nós podemos nos entender — disse ele. — Vamos
arranjar essa situação amigavelmente. Há pouco, fiz mal em irritar-me,
não sei onde estava com a cabeça, fui longe demais, disse umas bobagens.
Por exemplo, por o senhor ser milionário, eu lhe disse que exigia dinheiro,
muito dinheiro, muitíssimo dinheiro. Isso não seria razoável. Meu Deus,
por mais que seja rico, o senhor tem suas despesas, quem é que não tem?
Eu não quero arruiná-lo, afinal de contas, não sou um sanguessuga. Não
sou dessas pessoas que por estarem em posição mais vantajosa se
aproveitam para fazer ridículo. Veja, dou minha contribuição, de minha
parte, faço um sacrifício. Preciso simplesmente de duzentos mil francos.
O senhor Leblanc não disse uma só palavra, e Thénardier prosseguiu:
— O senhor está vendo que moderei bastante minhas exigências. Não
sei como anda sua fortuna, mas sei que não dá muita importância ao
dinheiro, e um homem benfeitor como o senhor bem que pode dar
duzentos mil francos a um pai de família desventurado. Certamente o
senhor também será razoável, e não vai pensar que eu me esforçaria como
hoje, que eu organizaria o negócio desta noite, que é um trabalho bem
feito, como testemunham aqueles senhores, para, afinal, pedir-lhe só o
suficiente para beber um tinto e comer um filé no Desnoyers. Tudo isso
vale duzentos mil francos. Assim que essa bagatela sair do seu bolso, eu
lhe garanto que fica tudo acertado e que o senhor não tem nada a recear.
Sei que vai dizer: “Mas eu não tenho comigo duzentos mil francos”. Oh!
Eu não sou tão exagerado! Não é isso que eu exijo. Só lhe peço uma coisa,
que tenha a bondade de escrever o que vou lhe ditar.
Nesse ponto, Thénardier interrompeu-se, e depois acrescentou,
acentuando as palavras e lançando um sorriso na direção do fogareiro:
— Quero preveni-lo de que não vou admitir que não saiba escrever.
Um grande inquisidor teria sentido inveja daquele sorriso.
Thénardier empurrou a mesa para bem perto do senhor Leblanc, e
pegou o tinteiro, uma pena e uma folha de papel de dentro da gaveta, que
deixou entreaberta, mostrando a longa e luzidia lâmina da faca.
Colocou a folha de papel diante do senhor Leblanc.
— Escreva — disse ele.
O prisioneiro finalmente falou:
— Como quer que eu escreva? Estou amarrado.
— É verdade, perdão! — disse Thénardier. — Tem toda a razão.
E voltando-se para Bigrenaille:
— Desamarre o braço direito do senhor.
Panchaud, conhecido como Printanier ou Bigrenaille, executou a
ordem de Thénardier. Quando a mão direita do prisioneiro ficou livre,
Thénardier molhou a pena na tinta e entregou-a a ele.
— Note bem, meu senhor, que está em nosso poder e discrição, que
nenhuma força humana pode tirá-lo daqui, e que realmente sentiríamos
muito se fôssemos obrigados a chegar a desagradáveis extremos. Eu não
sei como se chama nem onde mora, mas o previno de que ficará preso até
que a pessoa encarregada de levar a carta que vai escrever esteja de volta.
Agora, tenha a bondade de escrever.
— O quê? — perguntou o prisioneiro.
— Vou ditar.
O senhor Leblanc pegou a pena. Thénardier começou a ditar:
— “Minha filha…”
O prisioneiro estremeceu e ergueu os olhos para Thénardier.
— Ponha “minha querida filha” — disse ele. O senhor Leblanc
obedeceu, e ele continuou:
— “Venha depressa…”
Interrompeu-se.
— O senhor a chama de você, não é?
— Quem? — perguntou o senhor Leblanc.
— Ora, quem! — disse Thénardier. — A pequena, a Cotovia!
O senhor Leblanc respondeu sem a menor emoção aparente:
— Não sei o que quer dizer.
— Vá em frente — tornou Thénardier, e continuou ditando: — “Venha
depressa. Preciso absolutamente de você. A pessoa que vai lhe entregar
este bilhete está encarregada de trazê-la até mim. Estou esperando por
você. Venha sem receio”.
Tudo foi escrito. Thénardier retomou:
— Ah! Apague esse venha sem receio; isso pode criar uma suspeita de
que a coisa não é tão simples, que cabe alguma desconfiança.
O senhor Leblanc riscou as três palavras.
— Agora, assine — continuou Thénardier. — Como é que se chama?
O prisioneiro largou a pena e perguntou:
— Para quem é esta carta?
— O senhor sabe muito bem — respondeu Thénardier —; é para a
pequena, acabei de lhe dizer.
Era evidente que Thénardier evitava dizer o nome da jovem em
questão. Dizia “a Cotovia”, ou “a pequena”, mas não pronunciava o nome
dela. Precaução de homem hábil guardando seu segredo na presença de
seus cúmplices. Dizer o nome seria entregar-lhes todo “o negócio” e
permitir que soubessem mais do que precisavam saber. Thénardier
continuou:
— Assine. Qual é seu nome?
— Urbain Fabre — disse o prisioneiro.
Thénardier, com um movimento de gato, levou precipitadamente a
mão ao bolso e tirou dali o lenço subtraído ao senhor Leblanc. Aproximou-
o da vela para ver as iniciais.
— U. F. É isso. Urbain Fabre. Assine então U. F.
O prisioneiro assinou.
— Como precisa das duas mãos para dobrar a carta, me dê, eu dobro.
Feito isso, Thénardier retomou:
— Coloque o endereço. Senhorita Fabre, em sua casa. Sei que não
mora muito longe daqui, nas imediações de Saint-Jacques-du-Haut–Pas,
pois é lá que vai à missa todo dia, mas não sei em que rua. Vejo que
compreende sua situação; como não mentiu a respeito de seu nome,
também não mentirá a respeito de seu endereço. Pode escrever.
O prisioneiro ficou pensativo por um momento, depois pegou a pena e
escreveu:
— Senhorita Fabre, casa do Senhor Urbain Fabre, rua Saint-
Dominique-d’Enfer, número 17.
Thénardier pegou a carta com uma espécie de convulsão febril.
— Mulher! — gritou ele.
Ela veio prontamente.
— Aqui está a carta. Você sabe o que deve fazer. Lá embaixo tem uma
carruagem. Vá e volte imediatamente.
E, dirigindo-se ao homem da marreta:
— Já que você tirou a máscara, acompanhe a senhora. Suba na traseira
da carruagem. Lembra onde a deixou?
— Lembro — disse o homem.
E, colocando a corda em um canto, seguiu a mulher de Thénardier.
Enquanto saíam, Thénardier pôs a cabeça na porta entreaberta e gritou
no corredor:
— Cuidado, não vá perder a carta! Lembre-se de que tem com você
duzentos mil francos.
A voz rouca da mulher respondeu:
— Fique tranquilo, guardei dentro da roupa.
Um minuto havia transcorrido quando se ouviu o estalo de um chicote,
que foi diminuindo e se extinguiu rapidamente.
— Bem! — resmungou Thénardier. — Estão indo rápido. Nesse
galope, ela estará de volta em três quartos de hora.
Aproximou uma cadeira da lareira e sentou-se, cruzando os braços e
colocando as botas enlameadas na borda do fogareiro.
— Meus pés estão frios — disse ele.
Ali, com Thénardier e o prisioneiro, só restaram cinco bandidos. Esses
homens, através das máscaras ou da tinta preta que lhes cobria o rosto,
fazendo deles, de acordo com o medo, ou carvoeiros, ou negros, ou
demônios, pareciam entorpecidos e indiferentes, sentia-se que praticavam
um crime como se fosse um serviço, tranquilamente, sem cólera e sem
piedade, com uma espécie de enfado. Estavam em um canto, como um
amontoado de brutos, e calados. Thénardier aquecia os pés. O prisioneiro
voltara a ficar taciturno. Uma calma sombria sucedeu-se ao barulho que
enchia a espelunca alguns instantes antes.
A vela, que já derretera um tanto, mal iluminava o quarto enorme, o
braseiro havia-se enfraquecido, e todas aquelas cabeças monstruosas
formavam sombras disformes sobre as paredes e o teto. O único ruído que
se ouvia era a respiração tranquila do velho bêbado que dormia.
Marius esperava, com uma ansiedade que tudo fazia aumentar.
O enigma estava mais impenetrável do que nunca.
Quem seria a tal “pequena”, que Thénardier também chamara de
“Cotovia”? Seria a sua “Ursule”? O prisioneiro não parecera comover-se
com esse nome, Cotovia, respondendo com o jeito mais natural do mundo:
“Não sei o que quer dizer”.
Por outro lado, as duas letras U. F. estavam explicadas, queriam dizer
Urbain Fabre e Ursule não se chamava mais Ursule. Era isso que Marius
via com mais clareza. Uma espécie de fascinação o retinha pregado ao
lugar de onde observava e dominava toda aquela cena. Ali permanecia,
quase incapaz de reflexão e de movimento, como que aniquilado por
aquelas coisas tão abomináveis vistas de perto. Aguardava, esperando
algum incidente, qualquer coisa, sem conseguir coordenar suas ideias, nem
saber o que fazer.
— Em todo caso — pensava —, se a Cotovia for ela, logo vou saber, já
que a Thénardier vai trazê-la aqui. Então tudo vai ser dito, e darei minha
vida e meu sangue, se for preciso, mas hei de libertá-la! Nada vai me deter.
Assim se passou quase meia hora. Thénardier parecia absorvido em
uma tenebrosa meditação e o preso continuava imóvel. No entanto, em
intervalos, e havia alguns instantes, Marius acreditava ouvir alguns ruídos
surdos vindos dos lados do prisioneiro.
De repente, Thénardier falou ao prisioneiro:
— Senhor Fabre, escute o que vou lhe dizer.
Essas palavras pareciam ser o princípio de algum esclarecimento.
Marius apurou os ouvidos; Thénardier continuou:
— Minha mulher vai voltar, não se impaciente. Eu acho que a Cotovia
é realmente sua filha, e acho normal que o senhor a proteja. Mas escute
um pouco. Minha mulher vai procurá-la com aquela carta. Eu disse a
minha mulher que se vestisse do jeito que o senhor viu, de modo que sua
filha a acompanhe sem problema. As duas vão subir na carruagem, com
meu camarada na traseira. Em algum lugar fora da barreira, estará à espera
um carro puxado por dois ótimos cavalos; sua filha será conduzida a ele.
Ela vai descer de uma carruagem e meu camarada subirá com ela em
outra; minha mulher voltará aqui para nos dizer: “Está feito!” Quanto à
sua filha, ninguém lhe fará mal, a carruagem a levará a um lugar onde
ficará tranquila, e assim que o senhor me der esses modestos duzentos mil
francos, ela será devolvida ao senhor. Caso mande me prender, meu
camarada torcerá o pescoço da Cotovia. É isso.
Após uma pausa, Thénardier prosseguiu, vendo que o prisioneiro não
articulara uma só palavra:
— É simples, como vê. Não haverá nenhum mal se o senhor não quiser
que haja mal. Estou lhe contando as coisas. Previno-o para que saiba.
Ficou quieto, o prisioneiro não rompeu o silêncio, e Thénardier
retomou:
— Assim que minha esposa estiver de volta e me disser: A Cotovia
está no caminho, nós o soltaremos e estará livre para dormir em sua casa.
O senhor vê que não tínhamos más intenções.
Imagens espantosas atravessavam o pensamento de Marius. Seria
possível? Aquela jovem que raptavam, não iriam trazê-la até ali? Um
daqueles monstros ia levá-la a um lugar obscuro? Onde?… E se fosse ela!
E estava claro que era ela. Marius sentia que os batimentos de seu coração
paravam. Que fazer? Disparar a pistola? Colocar nas mãos da justiça todos
aqueles miseráveis? Mas como, se o horrível homem da marreta nem por
isso deixaria de esperar ao lado da jovem, e Marius pensava naquelas
palavras de Thénardier, cujo significado sangrento podia entrever: Caso
mande me prender, meu camarada torcerá o pescoço da Cotovia.
Agora já não era só pelo testamento do coronel, era por seu próprio
amor, pelo perigo que corria aquela a quem amava, que se sentia
amarrado.
Aquela terrível situação, que já durava mais de uma hora, mudava de
figura a cada instante. Marius teve a força de passar sucessivamente em
revista todas as mais pungentes conjecturas, procurando uma esperança
mas não a encontrando. O tumulto de seus pensamentos contrastava com o
fúnebre silêncio daquele covil.
No meio daquele silêncio, ouviu-se o barulho da porta da escada
abrindo-se, e depois fechando-se.
O prisioneiro fez um movimento em suas amarras.
— Lá vem a cidadã — disse Thénardier.
Ele mal terminara a frase, e, de fato, a mulher irrompeu no quarto,
vermelha, arquejante, sem fôlego, os olhos chispando, e gritou, batendo
com as mãos enormes nas coxas:
— Endereço errado!
O bandido que a acompanhara veio logo depois dela para pegar outra
vez a marreta.
— Endereço errado? — repetiu Thénardier.
— Ninguém! Na rua Saint-Dominique, número 17, não tem nenhum
senhor Urbain Fabre! Ninguém sabe quem é!
E parou, sem fôlego, continuando em seguida:
— Thénardier, esse velho o enganou! Você é bom demais! Se fosse eu,
já teria quebrado a cara dele em quatro, para começar! E se ele quisesse
ser mau, eu o assaria vivo! Ele ia ter que falar, e dizer onde está a filha e
onde está a bufunfa! Era assim que eu ia levar essa história! Bem que
dizem que os homens são mais bestas que as mulheres! Ninguém no
número 17! É só um grande portão! Nada de senhor Fabre na rua Saint-
Dominique! E aquela correria, e a gorjeta para o cocheiro, e tudo! Falei
com o porteiro e com a porteira, que é uma mulher das fortes, eles não
conhecem nada disso!
Marius respirou. Ela, Ursule ou Cotovia, aquela que ele não sabia mais
como chamar, estava salva.
Enquanto sua mulher vociferava exasperada, Thénardier sentou-se
sobre a mesa e ficou alguns instantes sem dizer uma palavra, balançando a
perna direita que pendia e olhando para o fogareiro com ares de devaneio
selvagem. Enfim, disse ao prisioneiro com uma entonação lenta e
singularmente feroz:
— Um endereço errado? O que você esperava com isso?
— Ganhar tempo! — gritou o prisioneiro de modo explosivo.
E no mesmo instante desenvencilhou-se das amarras; elas estavam
cortadas. Ele só continuava preso à cama por uma perna.
Antes que os sete homens tivessem tempo de entender o que se passava
e de agir, o homem se inclinara para a lareira, levantara a mão em direção
ao fogareiro, e já se reerguera; e Thénardier, sua mulher e os bandidos,
recuados ao fundo do quarto pela surpresa, olhavam-no, estupefatos,
elevar acima de sua cabeça, quase livre e em atitude ameaçadora, o formão
em brasa irradiando um clarão sinistro.
O inquérito judiciário, que se seguiu à cilada do casebre Gorbeau,
constatou que uma grande moeda, cortada e trabalhada de um modo
particular, foi encontrada no quarto quando a polícia ali fez uma busca;
aquela moeda de um soldo era uma dessas maravilhas da inteligência que
a paciência da prisão engendra em meio às trevas e para as trevas,
maravilhas que não são nada além de instrumentos de evasão. Esses
hediondos e delicados produtos de uma arte prodigiosa são, para a
joalheria, o que as metáforas da gíria são para a poesia. Existem
Benvenutos Cellini nas galés, do mesmo modo que existem Villons na
língua. O infeliz que aspira à liberdade encontra meios, algumas vezes
sem ferramentas, só com uma navalha, ou uma faca velha, de serrar uma
moeda em duas lâminas delgadas, de cavar as duas lâminas sem tocar nas
marcas monetárias, e de produzir uma rosca de parafuso no corte, de modo
a fazer as duas lâminas aderirem novamente. Forma-se uma verdadeira
caixa, que se atarraxa e desatarraxa à vontade. Dentro dessa caixa esconde-
se uma mola de relógio que, bem manejada, corta argolas e barras de ferro.
Acredita-se que o infeliz forçado só possui um soldo; nada disso, ele
possui a liberdade.
Foi uma grande moeda desse tipo que, nas ulteriores buscas da polícia,
foi encontrada, aberta e em dois pedaços, na espelunca, embaixo da cama,
perto da janela. Descobriu-se igualmente uma pequena serra de aço
temperado que podia ser escondida ali dentro. É provável que, quando os
bandidos revistaram o prisioneiro, ele carregasse uma moeda daquelas,
conseguindo escondê-la na mão, e que, em seguida, estando com a mão
direita livre, a abrisse e se servisse da serra para cortar as cordas que o
amarravam; isso explicaria o leve ruído e os movimentos imperceptíveis
que Marius notara.
Não podendo abaixar-se, com medo de se trair, não cortara as cordas
que prendiam sua perna esquerda.
Os bandidos haviam se refeito de sua primeira surpresa.
— Fique tranquilo — disse Bigrenaille a Thénardier —; ele ainda está
preso por uma perna e não vai fugir. Dou minha palavra. Fui eu quem lhe
amarrou essa pata.
No entanto, o prisioneiro elevou a voz.
— Vocês são uns desgraçados, mas a minha vida não vale ser tão
defendida. Quanto a acreditarem que me fariam falar, que me fariam
escrever o que não quero escrever, que me fariam dizer o que não quero
dizer…
Levantou sua manga esquerda e acrescentou:
— Olhem.
Ao mesmo tempo, estendeu o braço e pousou na carne nua o formão
em brasa que segurava com a mão direita pelo cabo de madeira.
Ouviu-se o frêmito da carne queimada, o odor peculiar às câmaras de
tortura espalhou-se pelo quarto. Marius cambaleou horrorizado, os
próprios bandidos estremeceram; o rosto do estranho homem mal se
contraiu, e, enquanto o ferro encandecido afundava na chaga fumegante,
impassível e quase augusto, ele lançava sobre Thénardier um belo olhar
sem ódio, no qual o sofrimento se esvanecia em serena majestade.
Entre as grandes e elevadas naturezas, as revoltas da carne e dos
sentidos em luta com a dor física fazem a alma sair e aparecer na fronte,
do mesmo modo que as rebeliões da soldadesca obrigam o capitão a se
mostrar.
— Miseráveis — disse ele —, não tenham mais medo de mim do que
eu tenho de vocês.
E, arrancando o formão da ferida, lançou-o pela janela que
permanecera aberta, e o horrível instrumento em brasa desapareceu
rodopiando no escuro, indo cair ao longe e apagando-se na neve.
E acrescentou:
— Façam de mim o que quiserem.
— Agarrem-no! — disse Thénardier.
Dois dos bandidos pegaram-no pelos ombros, o homem mascarado
com voz de ventríloquo postou-se diante dele, pronto a fazer seu crânio
saltar, com um golpe de chave, ao menor movimento.
Ao mesmo tempo, Marius ouviu, abaixo dele, e tão junto à parede que
não conseguia ver quem falava em voz baixa, o seguinte diálogo:
— Não há senão uma coisa a fazer.
— Cortá-lo de alto a baixo!
— Isso mesmo!
Eram marido e mulher em conselho.
Thénardier dirigiu-se vagarosamente até a mesa, abriu a gaveta e
pegou a faca.
Marius apertava a coronha da pistola. Singular perplexidade. Havia
uma hora tinha duas vozes em sua consciência, uma dizendo-lhe que
respeitasse o testamento de seu pai, a outra gritando-lhe que socorresse o
prisioneiro. Essas duas vozes continuavam sem interrupção sua luta,
levando-o à agonia. Até aquele momento havia vagamente esperado
encontrar um meio de conciliar os dois deveres, mas nada que fosse
possível havia surgido. E, no entanto, o perigo o pressionava, o último
limite da espera já fora ultrapassado; a poucos passos do prisioneiro,
Thénardier pensava, de faca em punho.
Marius, atormentado, olhava a sua volta, último recurso maquinal do
desespero. De repente, estremeceu.
A seus pés, sobre a mesa, um vivo raio de lua cheia iluminava, e
parecia mostrar-lhe, uma folha de papel. Sobre essa folha ele leu estas
palavras, manuscritas em letras grandes ainda naquela manhã pela filha
mais velha de Thénardier:
Os gambés chegaram.
Uma ideia, uma luz atravessou o espírito de Marius; era aquele o meio
que procurava, a solução do terrível problema que o torturava, poupar o
assassino e salvar a vítima. Ajoelhou-se sobre a cômoda, estendeu o braço,
pegou a folha de papel, arrancou suavemente um pedaço de reboque da
parede, embrulhou-o no papel e atirou tudo, pela abertura, no meio da
espelunca.
Era tempo. Thénardier vencera seus últimos receios, ou seus últimos
escrúpulos, e ia em direção ao prisioneiro.
— Alguma coisa caiu! — gritou a Thénardier.
— O que é? — disse o marido.
A mulher correu para recolher o embrulho e o entregou ao marido.
— Por onde entrou isto? — perguntou Thénerdier.
— Ora essa! — disse a mulher. — Por onde você quer que isso tenha
entrado? Pela janela.
— Eu vi isso passando! — disse Bigrenaille.
Thénardier desdobrou rapidamente o papel e o aproximou da vela.
— É a letra de Éponine. Diabo!
Fez sinal a sua mulher, que se aproximou prontamente, e mostrou-lhe a
linha escrita na folha de papel, depois acrescentou com a voz abafada:
— Depressa! A escada! Vamos deixar o queijo na ratoeira e vamos nos
mandar!
— Sem cortar o pescoço do homem? — perguntou a Thénardier.
— Não temos tempo.
— Por onde? — atalhou Bigrenaille.
— Pela janela! — respondeu Thénardier. — Já que Ponine atirou a
pedra pela janela, é porque a casa não está cercada por este lado.
O máscara com voz de ventríloquo pôs no chão sua enorme chave,
levantou os braços para o ar e fechou rapidamente as mãos por três vezes
sem dizer nada. Foi como um sinal de preparar dado a uma tripulação. Os
bandidos que seguravam o prisioneiro o largaram, num piscar de olhos, a
escada de corda foi desenrolada janela abaixo e solidamente presa ao
peitoril pelos dois ganchos de ferro.
O prisioneiro não prestava atenção ao que se passava a seu redor.
Parecia divagar ou orar.
Assim que a escada foi fixada, Thénardier gritou:
— Venha, mulher!
E correu para a janela.
Quando ia saltar, Bigrenaille o agarrou bruscamente pela gola.
— Nada disso, seu velho farsante! Primeiro nós!
— Primeiro nós! — uivaram os bandidos.
— Vocês são umas crianças — disse Thénardier —; é perda de tempo.
Os meganhas estão no nosso encalço.
— Está bem — disse um dos bandidos —, vamos sortear quem vai ser
o primeiro.
— Estão loucos! Malucos! Que bando de patetas! Perder tempo, é?
Sortear? Par ou ímpar! Palitinhos! Escrever os nomes! E colocar no
boné!…
— Querem meu chapéu? — gritou uma voz da soleira da porta.
Todos se voltaram. Era Javert.
Tinha seu chapéu na mão e o estendia sorrindo.

XXI. DEVE-SE SEMPRE COMEÇAR POR PRENDER


AS VÍTIMAS
Ao anoitecer, Javert postara alguns homens e fora, ele mesmo,
emboscar-se atrás das árvores da rua Barrière des Gobelins, que fica em
frente ao casarão Gorbeau, do outro lado do bulevar. Começara por abrir
“seu bolso” e nele colocar as duas jovens encarregadas de vigiar em torno
do casarão. Mas só conseguiu “embolsar” Azelma. Quanto a Éponine,
abandonara seu posto, desaparecera, e ele não pôde pegá-la. Em seguida,
Javert pôs-se de vigia, apurando os ouvidos à espera do sinal combinado.
As idas e vindas da carruagem deixaram-no muito agitado. Por fim,
impacientou-se, e, certo de que ali havia um ninho, certo da estar com
sorte, tendo reconhecido vários dos bandidos que haviam entrado, resolveu
subir sem esperar pelo tiro de pistola. O leitor se lembra de que ele trazia a
chave de Marius.
Chegou na hora certa.
Os bandidos, assustados, se jogaram sobre as armas que haviam
abandonado pelos cantos quando iam evadir-se. Em menos de um segundo,
os sete homens, medonhos de se ver, agruparam-se em atitude de defesa,
um com sua marreta, outro com sua chave, outro com seu bastão, os outros
com tesouras, tenazes e martelos, Thénardier de faca em punho. A mulher
pegou um enorme bloco que estava no canto da janela e que servia de
banco a suas filhas.
Javert colocou o chapéu na cabeça e deu dois passos para dentro do
quarto, os braços cruzados, a bengala debaixo do braço e a espada na
bainha.
— Alto lá! — disse ele. — Vocês não passarão pela janela, passarão
pela porta. Não é tão perigoso. Vocês são sete, nós somos quinze. Não
vamos nos engalfinhar. Sejamos educados.
Bigrenaille pegou uma pistola que mantinha escondida sob a blusa,
colocou-a na mão de Thénardier, dizendo-lhe ao ouvido:
— É Javert. Não me atrevo a atirar nele. E você?
— Ora! — respondeu Thénardier.
— Então atire.
Thénardier pegou a pistola e apontou para Javert.
Javert, que estava a três passos, olhou fixamente para ele e contentou-
se em dizer:
— Atire, ande! Seu tiro vai falhar.
Thénardier puxou o gatilho. O tiro falhou.
— O que eu falei? — disse Javert.
Bigrenaille atirou seu bastão aos pés de Javert.
— Você é o imperador dos diabos! Eu me rendo.
— E vocês? — perguntou Javert aos outros bandidos.
— Nós também — responderam eles.
Javert replicou com calma:
— Isso mesmo, muito bem; como eu dizia, somos educados.
— Só peço uma coisa — tornou Bigrenaille —, que não me neguem
tabaco enquanto estiver no xadrez.
— De acordo — disse Javert.
Depois voltou-se e chamou:
— Entrem agora!
Um esquadrão de guardas municipais, espadas em punho, e de agentes
armados com cassetetes e bastões avançou ao chamado de Javert.
Cercaram os bandidos. Esse amontoado de homens mal iluminados por
uma vela enchia o covil de sombra.
— Algemas para todos! — gritou Javert.
— Cheguem um pouco para cá! — gritou uma voz que não era de
homem, mas que ninguém poderia afirmar ser uma voz de mulher.
A mulher de Thénardier havia se entrincheirado em um canto da
janela, e era ela quem acabava de rugir.
Os guardas e os agentes recuaram.
Ela jogara seu xale e permanecera de chapéu; seu marido, agachado
atrás dela, praticamente desaparecera sob o xale caído, e ela o cobria com
seu corpo, elevando o bloco com as duas mãos acima da cabeça,
balançando-o como uma gigante que vai arremessar uma rocha.
— Cuidado! — gritou ela.
Todos recuaram para o corredor. Um amplo vazio se fez no meio do
quarto.
Ela lançou um olhar para os bandidos que se deixaram prender e
murmurou em tom gutural e rouco:
— Covardes!
Javert sorriu e dirigiu-se ao espaço vazio que a mulher cobria com os
olhos.
— Não se aproxime, não chegue perto, ou te arrebento! — gritou ela.
— Parece um granadeiro! — disse Javert. — Mãe, você tem barba
como um homem, mas eu tenho garras como uma mulher.
E continuou avançando.
Ela, desgrenhada e terrível, firmou as pernas, curvou-se para trás e
atirou feito louca o bloco na cabeça de Javert. Javert agachou-se, o bloco
passou por cima dele, bateu na parede do fundo, fazendo cair um pedaço
de reboque, e voltou em ricochete ao meio do quarto, felizmente quase
vazio, até parar aos pés de Javert. Ao mesmo tempo, Javert chegava até o
casal Thénardier. Uma de suas enormes mãos pousou no ombro da mulher,
e a outra, na cabeça do marido.
— As algemas! — gritou.
Um grande número de policiais tornou a entrar no quarto, em alguns
segundos a ordem de Javert foi executada.
Ela, vencida, vendo amarradas suas mãos e as de seu marido, deixou-se
cair no chão e exclamou chorando:
— Minhas filhas!
— Estão na prisão — disse Javert.
Enquanto isso, os agentes viram o bêbado adormecido atrás da porta e
o chacoalharam. Ele despertou balbuciando:
— Acabou, Jondrette?
— Acabou! — respondeu Javert.
Os seis bandidos amarrados achavam-se de pé, e continuavam com
caras de espectro; três pintados de preto, três mascarados.
— Fiquem com suas máscaras — disse Javert.
E, depois de os passar em revista com um olhar de Frederico II na
parada de Potsdam, disse aos três “limpadores”:
— Bom dia, Bigrenaille. Bom dia, Brujon. Bom dia, Deux-Milliards.
E depois, voltando-se para os três mascarados:
— Bom dia, Gueulemer — ao homem da marreta.
— Bom dia, Babet — ao homem da chave.
— Olá, Claquesous — ao ventríloquo.
Nesse momento, viu o prisioneiro dos bandidos, que, desde a entrada
dos agentes, não tinha pronunciado uma palavra e mantinha a cabeça
baixa.
— Soltem esse senhor! — disse Javert. — E que ninguém saia!
Dito isso, sentou-se soberanamente diante da mesa, onde haviam
ficado a vela e o tinteiro, tirou do bolso um papel timbrado e começou a
redigir a ocorrência.
Acabando de escrever as primeiras linhas, que não passam das mesmas
fórmulas de sempre, levantou os olhos.
— Façam aproximar-se o senhor que estes homens haviam amarrado.
Os agentes olharam em volta.
— Então, onde está ele? — perguntou Javert.
O prisioneiro dos bandidos, senhor Leblanc, senhor Urbain Fabre, o pai
de Ursule ou da Cotovia, tinha desaparecido.
A porta estava vigiada, mas a janela não. Assim que se viu solto, e
enquanto Javert se ocupava com a ocorrência, aproveitou-se da
conturbação, do tumulto, do amontoado de pessoas, da escuridão e de um
momento em que a atenção não se fixava sobre ele, para saltar pela janela.
Um dos agentes correu à janela, olhou, mas não viu ninguém lá fora.
A escada de corda ainda balançava.
— Diabo! — resmungou Javert entre os dentes. — Esse devia ser o
melhor!

XXII. O PEQUENO QUE GRITAVA EM UM DOS


CAPÍTULOS PRECEDENTES
No dia seguinte àquele em que esses acontecimentos ocorreram na
casa do bulevar de l’Hôpital, um menino, que parecia vir dos lados da
ponte de Austerlitz, subia pela calçada da direita em direção à entrada de
Fontainebleau. Era noite fechada. Era um menino pálido, magro, vestido
com trapos, calças de um tecido fino para o mês de fevereiro, e que
cantava a plenos pulmões.
Na esquina da rua Petit-Banquier, uma velha curvada remexia em um
monte de lixo, iluminado pelo lampião; ao passar, o menino esbarrou nela,
e recuou exclamando:
— Ora essa! E eu que pensei que fosse um enorme, um enorme cão!
Pronunciou a palavra enorme pela segunda vez engrossando a voz com
uma zombaria que seria muito bem expressa por letras maiúsculas: um
enorme, um ENORME cão!
A velha ergueu-se furiosa.
— Moleque sem-vergonha! — resmungou ela. — Se eu não estivesse
agachada, você ia ver onde eu ia lhe acertar um pontapé!
O menino já ia longe, mas replicou:
— Pist! Pist! — fez ele. — Depois dessa, talvez eu não esteja
enganado.
A velha, sufocada de indignação, ergueu-se de todo, e a luz
avermelhada do lampião clareou em cheio seu rosto lívido, todo sulcado
de rugas e linhas. Seu corpo perdia-se no escuro e podia-se divisar apenas
sua cabeça. Parecia a máscara da Decrepitude recortada por um clarão no
meio das trevas. O menino a considerou.
— A madame não é o gênero de beleza que me seria conveniente.
E continuou seu caminho, voltando a cantar:

Le roi Coupdesabot
S’en allait à la chasse,
À la chasse aux corbeaux…

O rei Coupdesabot
Ia à caça,
À caça aos corvos…

Ao final desses três versos, interrompeu-se. Tinha chegado ao número


50-52, e, como encontrasse a porta fechada, começou a bater aos pontapés,
pontapés estrondosos e heroicos, que mais mostravam os sapatos de
homem que calçava do que os pés de criança que tinha.
Enquanto isso, a velha que ele encontrara na esquina da rua Petit-
Banquier corria atrás dele, gritando e gesticulando com exagero.
— O que é isso? O que é isso? Deus do céu! Estão forçando a porta!
Estão arrombando a casa!
Os pontapés continuavam.
A velha se esbaforia.
— Será que agora é assim que maltratam os edifícios?
De repente, parou de falar. Havia reconhecido o menino.
— O quê! É esse demônio!
— Veja só, é a velha! — disse ele. — Bom dia, dona Burgonmuche!
Vim ver os meus ancestrais.
A velha respondeu com uma careta mesclada, admirável improvisação
de raiva tirando partido da caducidade e da feiura, que infelizmente se
perdeu na obscuridade:
— Não tem ninguém, malandro.
— Bah! — tornou o rapaz. — Então onde está meu pai?
— Na Force.
— Puxa! E minha mãe?
— Em Saint-Lazare.
— Sei! E minhas irmãs?
— Em Madelonnettes.
O menino coçou a orelha, olhou para mame Burgon e disse:
— Ah!
Em seguida, deu uma pirueta sobre o calcanhar, e, um momento
depois, a velha, que ficara na soleira da porta, o ouvia cantar, com sua voz
clara e jovem, afastando-se sob os olmos negros que balançavam ao vento
de inverno.

Le roi Coupdesabot
S’en allait à la chasse,
À la chasse aux corbeaux,
Monté sur des échasses.
Quand on passait dessous,
On lui payait deux sous.

O rei Coupdesabot Ia à caça,


À caça aos corvos,
Montado em pernas de pau.
Quando passavam-lhe por baixo,
Pagavam-lhe dois soldos.

Fim do Primeiro Volume

__________________________
1 Baile público que acontecia no bulevar Montparnasse.
2 “O que tem quatro rostos.”
3 Nome dado à fresta que se faz, principalmente em portas de prisão, para observar sem ser
observado, em referência ao apóstolo que traiu Cristo.
4 “Vaidade das vaidades, e tudo é vaidade” (Eclesiastes).
5 “Sozinhos, em um lugar afastado, não se cogita que estejam rezando o Pai-Nosso.”
6 Espécie de elegante ridículo, principalmente da época da Revolução Francesa.
7 Nome pelo qual é conhecido o “Hôpital de la Maternité” (Hospital da Maternidade), situado
na rua Bourbe.
8 Célebre sapateiro do Palácio Real.
QUARTA PARTE
O idílio da rua Plumet e a epopeia
da rua Saint-Denis
LIVRO I
ALGUMAS PÁGINAS DA HISTÓRIA

I. BEM CORTADO
1831 E 1832, os dois anos que se ligam imediatamente à Revolução de
Julho, são alguns dos momentos mais particulares e mais tocantes da
história. Esses dois anos, entremeando os anos precedentes e os
subsequentes, são como duas montanhas, têm a grandeza revolucionária.
Neles dintinguem-se precipícios. As massas sociais, os próprios alicerces
da civilização, o sólido grupo dos interesses sobrepostos e aderentes, os
perfis seculares da antiga formação francesa, neles aparecem e
desaparecem, a cada instante, através das nuvens tempestuosas dos
sistemas, das paixões e das teorias. Essas aparições e desaparições foram
chamadas de resistência e movimento. De tempos em tempos, nesses dois
anos pode-se ver fulgurar a verdade, essa luz da alma humana.
Essa época notável é bastante circunscrita, e começa a distanciar-se o
bastante de nós para que possamos presentemente compreender suas linhas
principais.
É o que vamos tentar.
A Restauração tinha sido uma dessas fases intermediárias difíceis de
definir, compostas de cansaço, ruído, murmúrios, sono, tumulto, e que
nada mais são do que a chegada de uma grande nação ao fim de uma etapa.
Essas épocas são singulares e enganam os políticos que querem explorá-
las. No princípio, a nação só pede descanso; só tem uma sede, de paz; só
tem uma ambição, ser pequena. O que é a tradução de viver tranquila.
Grandes acontecimentos, grandes acasos, grandes aventuras, grandes
homens, obrigado, Senhor, já se viu o suficiente de tudo isso, já se está por
aqui de tudo isso. César seria trocado por Prúsias e Napoleão pelo rei de
Yvetot. “Que bom reizinho era aquele!” Caminhamos desde o romper do
dia, estamos na noite de uma longa e dura jornada; fizemos o primeiro
revezamento com Mirabeau, o segundo com Robespierre, o terceiro com
Napoleão, estamos exaustos. Cada um pede uma cama.
As afeições cansadas, os heroísmos envelhecidos, as ambições
saciadas, as fortunas feitas procuram, reclamam, imploram, solicitam o
quê? Um asilo. Já têm. De posse da paz, da tranquilidade, do lazer, ei-los
contentes.
Ao mesmo tempo, porém, surgem certos fatos que se fazem reconhecer
e, por sua vez, batem à porta. Esses fatos saíram das revoluções e das
guerras, existem, vivem, têm direito de instalar-se na sociedade, e ali se
instalam; e, a maior parte do tempo, os fatos são segundos-sargentos de
cavalaria e soldados que não têm outra coisa a fazer senão preparar o
alojamento para os princípios.
Então, eis o que se apresenta aos filósofos políticos.
Assim como os homens cansados pedem descanso, os fatos
consumados pedem garantias. As garantias são para os fatos o mesmo que
o descanso é para os homens.
É o que a Inglaterra pedia aos Stuarts após o Protetor — Cromwell; é o
que a França pedia aos Bourbons após o Império.
Essas garantias são uma necessidade dos tempos. É preciso que sejam
concedidas. Os príncipes as “outorgam”, mas na realidade é a força das
circunstâncias que as propicia. Profunda e útil verdade, da qual os Stuarts
duvidaram em 1660, e que os Bourbons nem sequer entreviram em 1814.
A família predestinada, que voltou à França após a derrocada de
Napoleão, teve a fatal simplicidade de acreditar que era ela quem dava, e
que aquilo que havia dado, ela podia retirar; que a Casa Bourbon possuía o
direito divino e que a França não possuía nada; e que o direito político
concedido na Carta de Luís XVIII era apenas um ramo do direito divino
cortado pela Casa Bourbon e graciosamente oferecido ao povo até quando
aprouvesse ao rei reavê-lo. No entanto, pelo desprazer que lhe causava, a
Casa Bourbon deveria ter percebido que essa dádiva não vinha dela.
Foi rabugenta no século XIX. Fez cara feia a cada expansão da nação.
Para nos servirmos de um termo trivial, isto é, popular e verdadeiro,
torceu o nariz. O povo viu.
Acreditou que tinha força porque o Império desaparecera diante dela
como um cenário de teatro. Não percebeu que ela própria havia sido
levada da mesma maneira. Não viu que ela também estava nas mesmas
mãos que retiraram Napoleão dali.
Acreditou que tinha raízes porque era o passado. Enganou-se; fazia
parte do passado, mas o passado inteiro era a França. As raízes da
sociedade francesa não estavam nos Bourbons, e sim na Nação. Essas
obscuras e vivazes raízes constituíam não o direito de uma família, mas a
história de um povo. Ramificavam-se por toda parte, menos sob o trono.
A Casa Bourbon era para a França o ilustre e sangrento nó de sua
história, e não mais o elemento principal de seu destino, nem a base
necessária de sua política. Podia-se muito bem ficar sem os Bourbons; já
se tinham passado vinte e dois anos sem eles. Houve solução de
continuidade, mas eles não suspeitavam. E como suspeitariam, eles que
imaginavam que Luís XVII reinava no 9 termidor e que Luís XVIII
reinava no dia de Marengo? Nunca, desde a origem da história, os
príncipes haviam sido tão cegos em presença dos fatos e da porção de
autoridade divina que os fatos contêm e promulgam. Nunca essa pretensão
inferior, chamada de direito dos reis, havia negado a tal ponto o direito
superior.
Erro capital, que levou essa família a recolocar as mãos nas garantias
“outorgadas” em 1814, nas concessões, como ela as denominava. Coisa
triste! O que ela chamava de suas concessões eram nossas conquistas; o
que ela chamava de nossas usurpações eram nossos direitos.
Quando lhe pareceu que havia chegado a hora, a Restauração, supondo-
se vitoriosa sobre Bonaparte e enraizada no país, isto é, julgando-se forte e
profunda, tomou repentinamente sua decisão e arriscou seu golpe. Uma
manhã, ergueu-se diante da França e, elevando a voz, contestou o título
coletivo e o título individual; à Nação, sua soberania; ao indivíduo, sua
liberdade. Em outras palavras, negou à nação o que a tornava uma nação, e
ao cidadão o que o tornava um cidadão.
É esse o fundamento dos célebres atos chamados de Decretos de Julho.
A Restauração caiu.
Caiu com justiça. No entanto, devemos dizer, ela não havia
absolutamente sido hostil a todas as formas do progresso. Grandes coisas
foram feitas tendo seu apoio.
Durante a Restauração, a Nação habituara-se à discussão com calma,
coisa que faltara à República, e à grandeza na paz, coisa que faltara ao
Império. A França livre e forte fora um espetáculo encorajador para os
outros povos da Europa. A Revolução teve a palavra com Robespierre; o
canhão teve a palavra com Bonaparte; foi com Luís XVIII e Carlos X que
chegou a vez da inteligência ter a palavra. O vento cessou, a chama se
reacendeu. Viu-se estremecer nos cimos serenos a pura luz dos espíritos.
Espetáculo magnífico, útil e encantador. Viu-se que trabalharam durante
quinze anos, em plena paz, em plena praça pública, esses grandes
princípios, tão velhos para o filósofo, tão novos para o homem de estado: a
igualdade perante a lei, a liberdade de consciência, a liberdade de palavra,
a liberdade de imprensa, o acesso de todas as capacidades a todas as
funções. Isso durou até 1830. Os Bourbons foram um instrumento de
civilização que se quebrou nas mãos da Providência.
A queda dos Bourbons foi cheia de grandeza, não por parte deles, mas
por parte da nação. Abandonaram o trono com gravidade, mas sem
autoridade; sua descida para as trevas não foi nenhuma dessas solenes
desaparições que deixam à história uma sombria emoção; não foi a
serenidade espectral de Carlos I, nem o grito de águia de Napoleão. Eles se
foram, é tudo. Depuseram a coroa e não mantiveram uma auréola. Foram
dignos, mas não augustos. Em certa medida, faltaram à majestade de seu
infortúnio. Carlos X, durante a viagem de Cherbourg, mandando tornar
quadrada uma mesa redonda, parecia mais preocupado com a etiqueta em
perigo do que com a monarquia desabando. Essa diminuição entristeceu os
homens dedicados, que amavam suas pessoas, e os homens sérios, que
honravam sua raça. O povo, este foi admirável. A Nação, atacada certa
manhã, à mão armada, por uma espécie de insurreição real, sentiu tanta
força que nem sequer encolerizou-se. Defendeu-se, conteve-se, tornou a
colocar as coisas em seu lugar; pôs o governo na lei, os Bourbons no exílio
e, infelizmente, parou. Pegou o velho Carlos X sob o dossel que abrigara
Luís XIV e o colocou devagar no chão. Não tocou nas pessoas reais senão
com tristeza e precaução. Não foi um homem, não foram alguns homens,
foi a França, a França inteira, a França vitoriosa e ébria de sua vitória, que
pareceu recordar e pôr em prática aos olhos do mundo inteiro estas graves
palavras de Guilhaume du Vair após a jornada das barricadas: “É facil para
os que estão acostumados a tocar os favores dos grandes, e a saltar, como
os pássaros, de galho em galho, de uma sorte adversa a outra florescente,
mostrarem-se ousados contra seu príncipe na adversidade; mas para mim a
sorte de meus reis será sempre venerável, e principalmente a dos aflitos”.
Os Bourbons levaram o respeito, mas não deixaram saudades. Como
acabamos de dizer, seu infortúnio foi maior que eles. Sumiram no
horizonte.
A Revolução de Julho logo teve amigos e inimigos no mundo inteiro.
Uns acorreram a ela com entusiasmo e alegria; os outros voltaram-lhe as
costas, cada qual de acordo com sua natureza. Os príncipes da Europa,
num primeiro momento, feito mochos dessa aurora, fecharam os olhos,
feridos e estupefatos, reabrindo-os apenas para ameaçar. Medo que se
compreende, cólera que se desculpa. Essa estranha revolução não foi mais
que um choque; não deu sequer à realeza vencida a honra de tratá-la como
inimiga e de derramar seu sangue. Aos olhos dos governos despóticos
sempre interessados em que a liberdade calunie a si própria, a Revolução
de Julho errou por ser formidável e permanecer branda. De resto, nada foi
tentado nem maquinado contra ela. Os mais descontentes, os mais
irritados, os mais ardorosos saudavam-na; por maiores que sejam nossos
egoísmos e rancores, um respeito misterioso brota dos acontecimentos nos
quais se reconhece a colaboração de alguém que trabalha acima do
homem.
A Revolução de Julho é o triunfo do direito sobre os fatos. Algo cheio
de esplendor.
O direito pondo os fatos por terra. Vem daí o brilho da revolução de
1830, bem como sua mansidão. O direito que triunfa não tem qualquer
necessidade de ser violento.
O direito é justiça e verdade.
É característico do direito conservar-se eternamente belo e puro. O
fato, até o mais aparentemente necessário, até o mais bem aceito pelos
contemporâneos, se só existir como fato, ou se contiver muito pouco ou
nada de direito, estará infalivelmente destinado a tornar-se, com o passar
do tempo, disforme, imundo, talvez até monstruoso. Quem quiser
constatar de vez a que nível de fealdade o fato pode chegar, visto à
distância dos séculos, que olhe para Maquiavel. Maquiavel não é um gênio
mau, nem um demônio, nem um escritor covarde e miserável; não é nada
mais que o fato. E não é só o fato italiano, é o fato europeu, o fato do
século XVI. Parece horrível, e é, em presença da ideia moral do século
XIX.
Essa luta entre o direito e o fato dura desde a origem das sociedades.
Terminar o duelo, amalgamar a ideia pura com a realidade humana, fazer
penetrar pacificamente o direito no fato e o fato no direito, esse é o
trabalho dos sábios.

II. MAL COSTURADO


Mas um é o trabalho dos sábios, e o outro é o trabalho dos espertos.
A revolução de 1830 logo viu-se estancada.
Assim que uma revolução encalha, os espertos dividem o revés.
Em nosso século, os espertos deram a si próprios a qualificação de
homens de estado, embora esse termo, homem de estado, tenha acabado
por tornar-se uma gíria. Que ninguém se esqueça, com efeito, de que onde
só há esperteza necessariamente há pequenez. Dizer “os espertos” é o
mesmo que dizer “os medíocres”.
Da mesma forma, dizer “homens de estado” às vezes equivale a dizer
“traidores”.
Ao dar crédito aos espertos, revoluções como a de julho são artérias
cortadas; é preciso uma pronta atadura. O direito, proclamado com
demasiada grandeza, abala. Assim, uma vez fortalecido o direito, é
necessário fortalecer o Estado. Assegurada a liberdade, é preciso pensar no
poder.
Nesse ponto, os sábios ainda não se separam dos espertos, mas
começam a desconfiar. O poder, muito bem. Mas, antes de tudo, o que é o
poder? E, depois, de onde vem?
Os espertos parecem não ouvir a objeção murmurada, e continuam
suas manobras.
Segundo esses políticos, que engenhosamente sabem colocar em
ficções proveitosas uma máscara de necessidade, a primeira necessidade
de um povo após uma revolução, quando esse povo faz parte de um
continente monárquico, é arranjar uma dinastia. Desse modo, dizem eles, o
povo pode ter paz após sua revolução, quer dizer, ter tempo para curar suas
feridas e reparar sua casa. A dinastia oculta o andaime e cobre a
ambulância.
Ora, nem sempre é fácil arranjar uma dinastia.
A rigor, o primeiro homem inteligente, ou mesmo o primeiro homem
de fortuna, que aparecer basta para que se faça um rei. No primeiro caso,
houve Bonaparte; no segundo, Iturbide.1
Mas a primeira família que apareceu não bastou para que se fizesse
uma dinastia. Deve, necessariamente, haver certa quantidade de
antiguidade em uma raça, e não se pode improvisar a ruga dos séculos.
Se nos colocarmos do ponto de vista dos “homens de estado”,
guardadas, bem entendido, todas as reservas, após uma revolução, quais
são as qualidades do rei originado dela? Pode ser, e convém que seja,
revolucionário, isto é, que tenha participado da revolução por si mesmo,
que tenha colocado as mãos nela, que tenha se comprometido ou ilustrado
com ela, e nela tenha manejado o machado ou a espada.
Quais são as qualidades de uma dinastia? Ela deve ser nacional, isto é,
revolucionária à distância, não por atos praticados, mas pelas ideias
aceitas. Deve compor-se de passado e ser histórica, compor-se de futuro e
ser simpática.
Tudo isso explica por que as primeiras revoluções se satisfazem
encontrando um homem, Cromwell ou Napoleão; e por que as segundas
querem infalivelmente encontrar uma família, a casa Brunswick ou a casa
Orléans.
As casas reais assemelham-se às figueiras-da-índia, em que cada ramo,
ao curvar-se até o chão, lança uma raiz e se torna uma figueira. Cada ramo
pode tornar-se uma dinastia, com a única condição de curvar-se até o
povo.
Tal é a teoria dos espertos.
Esta, então, é a grande arte: emprestar, em certa medida, a um sucesso
o som de uma catástrofe, para que aqueles que dele tiram proveito também
estremeçam; temperar com medo um passo dado; aumentar a curva da
transição até a diminuição do progresso; tornar essa aurora insípida;
mostrar e aplainar as asperezas do entusiasmo; cortar os ângulos e as
garras; amortecer o triunfo, envelopar o direito, enrolar o gigante povo em
flanela e logo colocá-lo para dormir; impor uma dieta a esse excesso de
saúde; dar a Hércules tratamento de convalescente; diluir o acontecimento
no expediente; oferecer aos espíritos sequiosos de ideal este néctar
dissolvido em tisana; tomar as precauções contra o excesso de êxito;
guarnecer a revolução com um quebra-luz.
1830 praticou essa teoria, que já fora aplicada à Inglaterra por 1688.
1830 é uma revolução estancada a meio termo. Metade de progresso;
quase-direito. Ora, a lógica ignora o quase; exatamente como o sol ignora
uma vela.
Quem estanca as revoluções a meio termo? A burguesia.
Por quê?
Porque a burguesia é o interesse satisfeito. Ontem era o apetite, hoje é
a plenitude, amanhã será a saciedade.
O fenômeno de 1814 depois de Napoleão se reproduziu em 1830
depois de Carlos X.
Quiseram, sem razão, fazer da burguesia uma classe. A burguesia não é
mais do que a parte satisfeita do povo. O burguês é o homem que agora
tem tempo para sentar-se. Uma cadeira não é uma casta.
Mas, por querer sentar-se antes do tempo, pode-se estancar até mesmo
a marcha do gênero humano. Esse tem sido, com frequência, o erro da
burguesia. Não se é uma classe por ter-se cometido um erro. O egoísmo
não é uma das divisões da ordem social.
Contudo, é preciso ser justo mesmo em relação ao egoísmo; o estado a
que aspirava, após o abalo de 1830, essa parte da nação que chamamos de
burguesia não era a inércia, que se mescla de indiferença e preguiça, e
contém um tanto de vergonha; não era o sono, que supõe um esquecimento
momentâneo acessível aos sonhos; era o alto-lá, o momento de parar.
Essa expressão encerra dois sentidos singulares e quase contraditórios:
tropa em marcha, isto é, movimento; parada, isto é, descanso.
O alto-lá é a reparação das forças, é o repouso armado e desperto; é o
fato consumado que posta sentinelas e se mantém atento; é a suposição do
combate hoje e do combate amanhã.
É o entremeio de 1830 e de 1848.
O que aqui chamamos de combate também pode se chamar progresso.
Seria, então, preciso, tanto à burguesia quanto aos homens de estado,
um homem que exprimisse esta palavra: alto-lá. Um Embora Porque.2
Uma individualidade mista que significasse revolução e estabilidade, ou,
em outras palavras, que firmasse o presente pela evidente compatibilidade
do passado com o futuro.
Esse homem já estava achado. Chamava-se Luís Filipe de Orléans.
Os 221 deputados fizeram Luís Filipe rei. Lafayette encarregou-se da
sagração. Chamou-o de a melhor das repúblicas. A Câmara de Paris
substituiu a catedral de Reims.
Essa substituição de um meio trono por um trono completo foi “a obra
de 1830”.
Quando os espertos concluíram sua obra, o vício imenso de sua
solução apareceu. Tudo aquilo foi feito fora do direito absoluto. O direito
absoluto gritou: “Protesto!” E depois, coisa temível, voltou às trevas.

III. LUÍS FILIPE


As revoluções têm braços terríveis e mãos certeiras; elas batem com
firmeza e escolhem bem. Mesmo incompletas, mesmo degeneradas e
malfaladas, e reduzidas ao estado de revolução caçula, como a de 1830,
conservam quase sempre suficiente lucidez providencial para que não
terminem mal. Seu eclipse jamais é uma abdicação.
No entanto, não nos vangloriemos demais; as revoluções também se
enganam, e graves erros podem ser vistos.
Voltemos a 1830. 1830, dentro de seus erros, foi feliz. No
estabelecimento do que se chamou ordem, após a revolução
repentinamente estancada, o rei valia mais que a realeza. Luís Filipe era
um homem raro.
Filho de um pai a quem a história certamente concederá circunstâncias
atenuantes, e tão digno de estima quanto seu pai fora digno de censura;
dotado de todas as virtudes pessoais e de muitas virtudes públicas; zeloso
de sua saúde, de sua fortuna, de sua pessoa e de seus negócios; conhecedor
do valor de um minuto, mas nem sempre do valor de um ano; sóbrio,
sereno, pacífico, paciente; bom homem e bom príncipe; dormindo com sua
mulher e tendo em seu palácio criados encarregados de mostrar aos
burgueses o leito conjugal, ostentação de alcova regular que se tornou útil
depois das antigas amostras ilegítimas do ramo primogênito; sabendo
todas as línguas da Europa, e, o que é mais raro, falando todas as
linguagens de todos os interesses; admirável representante da “classe
média”, mas excedendo-a, e de todas as formas sendo superior a ela;
dotado de excelente espírito, ao mesmo tempo que apreciava o sangue de
seus ascendentes avaliava-se principalmente por seu valor intrínseco, até
na questão de sua raça era muito singular, declarando-se Orléans e não
Bourbon; primeiríssimo príncipe de sangue enquanto não foi mais que
alteza sereníssima, mas franco burguês no dia em que chegou a majestade;
difuso em público, conciso na intimidade; considerado avaro, mas sem
provas; no fundo, um desses homens econômicos, facilmente pródigos
para satisfazer uma fantasia ou um dever; letrado, mas pouco sensível às
letras; fidalgo, mas não cavaleiro; simples, calmo e forte; adorado por sua
família e por sua casa; de fala sedutora, homem de estado sem ilusões,
intimamente frio, dominado pelo interesse imediato; incapaz de ódio ou de
gratidão; gastando sem piedade as superioridades sobre as mediocridades;
hábil em desconcertar pelas maiorias parlamentares as unanimidades
misteriosas que se manifestam surdamente sob os tronos; expansivo, às
vezes imprudente em sua expansão, mas muito habilidoso nessas
imprudências; fértil em expedientes, em caras, em máscaras; fazendo
medo à França com a Europa e à Europa com a França; amando seu país
incontestavelmente, mas preferindo sua família; prezando mais o domínio
que a autoridade e a autoridade mais que a dignidade, disposição algo
funesta porque, visando o sucesso, admite a astúcia e não repudia de todo a
baixeza, e algo proveitosa porque preserva a política dos choques
violentos, o estado das fraturas e a sociedade das catástrofes; minucioso,
correto, vigilante, atento, sagaz, incansável, às vezes contradizendo-se e
desmentindo-se; ousado contra a Áustria em Ancona, teimoso contra a
Inglaterra na Espanha; bombardeando Anvers e pagando Pritchard;
cantando a Marselhesa com convicção; inacessível ao desânimo, ao
cansaço, ao gosto do belo e do ideal, às generosidades temerárias, à utopia,
à quimera, à cólera, à vaidade, ao temor; dotado de todas as formas de
intrepidez pessoal; general em Valmy, soldado em Jemmapes; oito vezes
atacado pelo regicídio e sempre risonho; bravo como um granadeiro,
corajoso como um pensador; inquieto apenas diante das possibilidades de
um abalo europeu e impróprio para as grandes aventuras políticas; sempre
pronto a arriscar sua vida, mas nunca sua obra; disfarçando sua vontade
em influência para ser obedecido mais pela inteligência do que por ser rei;
dotado de observação e não de adivinhação; pouco atento aos espíritos,
mas conhecedor de homens, isto é, precisando ver para julgar; bom senso
pronto e penetrante, sabedoria prática, palavra fácil, memória prodigiosa;
tirando muito dessa memória, seu único ponto de semelhança com César,
Alexandre e Napoleão; conhecendo os fatos, os detalhes, as datas, os
nomes próprios, e ignorando as tendências, as paixões, os diversos gênios
da multidão, as aspirações íntimas, as agitações ocultas e obscuras da
alma, em uma palavra, tudo o que poderíamos chamar de correntes
invisíveis da consciência; aceito pela superfície, mas pouco de acordo com
a França das camadas mais baixas; saindo-se bem pela sutileza;
governando de mais e reinando de menos; primeiro-ministro de si mesmo;
primando em fazer da pequenez das realidades um obstáculo à imensidão
das ideias; mesclando a uma verdadeira faculdade criadora de civilização,
de ordem e de organização certo espírito de processo e de chicana;
fundador e procurador de uma dinastia; tendo algo de Carlos Magno e algo
de um advogado; em suma, figura altiva e original, príncipe que soube
obter poder, apesar dos temores da França, e poderio, apesar da inveja da
Europa, Luís Filipe será classificado entre os homens eminentes de seu
século, e seria colocado entre os mais ilustres governantes da história, se
tivesse gostado um pouco da glória e tivesse o sentimento da grandeza no
mesmo grau em que tinha o da utilidade.
Luís Filipe havia sido belo, e, envelhecido, continuava gracios o; nem
sempre bem acolhido pela nação, mas sempre pela multidão; ele agradava.
Tinha o dom de encantar. Faltava-lhe majestade, não usava coroa, embora
fosse rei, nem tinha cabelos brancos, embora estivesse velho. Suas
maneiras eram do Antigo Regime e seus hábitos do novo, mistura de nobre
e de burguês que convinha a 1830; Luís Filipe era a transição reinante;
conservara a antiga pronúncia e a antiga ortografia, que colocava a serviço
das opiniões modernas; amava a Polônia e a Hungria, mas escrevia les
polonois e pronunciava les hongrais.3 Usava o traje da Guarda Nacional
como Carlos X e o cordão da Legião de Honra como Napoleão.
Ia poucas vezes à capela, quase nada à caça, e nunca à ópera.
Incorruptível para os sacristãos, para os criados das matilhas e para as
dançarinas, isso fazia parte da sua popularidade burguesa. Não tinha corte.
Saía com seu guarda-chuva embaixo do braço, e esse guarda-chuva, por
muito tempo, fez parte de sua auréola. Era um pouco pedreiro, um pouco
jardineiro, um pouco médico; era capaz de sangrar um condutor que caísse
do cavalo; assim como Henrique III nunca andava sem seu punhal, Luís
Filipe nunca saía sem sua lanceta. Os realistas zombavam desse rei
ridículo, o primeiro que havia derramado sangue para curar.
Nos agravos da história contra Luís Filipe há um desconto a ser feito;
há quem acuse a realeza, há quem acuse o reinado, e há quem acuse o rei;
três colunas que dão, cada uma, um total diferente. O direito democrático
confiscado, o progresso convertido em interesse secundário, os protestos
de rua reprimidos violentamente, a execução militar das insurreições, a
revolta passada pelas armas, a rua Transnonain,4 os conselhos de guerra, a
absorção do país real pelo país legal, o governo associado a trezentos mil
privilegiados, isso tudo é obra da realeza; a Bélgica recusada, a Argélia tão
duramente conquistada, como a Índia, pelos ingleses, com mais barbárie
do que civilização, a falta de palavra para com Abd-el-Kader, Blaye, Deutz
comprado, Pritchard pago, isso é obra do reinado; a política mais familiar
do que nacional, isso é obra do rei.
Como se vê, feito o desconto, o que pesa sobre o rei diminuiu.
Sua grande falta: ele foi modesto em nome da França.
De onde veio essa falta?
Vamos dizer.
Luís Filipe foi um rei demasiadamente paternal; essa incubação de
uma família que se pretende fazer dinastia tem medo de tudo e não quer
ser incomodada; daí os excessos de timidez importunos para o povo, que
tem um 14 de julho em sua tradição civil e Austerlitz em sua tradição
militar.
De resto, se abstrairmos dos deveres públicos, que querem ver-se
cumpridos em primeiro lugar, essa profunda ternura de Luís Filipe por sua
família, a família a merecia. Aquele grupo doméstico era admirável. Nele,
as virtudes ladeavam os talentos. Uma das filhas de Luís Filipe, Marie
d’Orléans, colocara o nome de sua raça entre os artistas, assim como
Charles d’Orléans o colocara entre os poetas. Ela fez de sua alma um
mármore ao qual chamou de Joana d’Arc. Dois dos filhos de Luís Filipe
arrancaram de Metternich este demagógico elogio: São dois jovens como
poucos e dois príncipes como não se veem mais.
Eis, sem nada dissimular, e também sem nada agravar, a verdade a
respeito de Luís Filipe.
Ser o príncipe igualdade, trazer em si a contradição da Restauração e
da Revolução, ter esse lado inquietante do revolucionário, que se torna
tranquilizador no governante, essa foi a fortuna de Luís Filipe em 1830;
jamais houve adaptação mais completa de um homem a um
acontecimento; um penetrou no outro e a encarnação se fez. Luís Filipe: é
1830 feito homem. Além disso, tinha a seu favor essa grande designação
para o trono — o exílio. Fora proscrito, errante e pobre. Vivera de seu
trabalho. Na Suíça, esse herdeiro dos mais ricos principados da França
precisou vender um cavalo velho para poder comer. Em Reichenau, dera
aulas de matemática, enquanto sua irmã Adélaide bordava e costurava.
Essas recordações ligadas a um rei entusiasmavam a burguesia. Ele
demolira com as próprias mãos a última gaiola de ferro do Mont-Saint-
Michel, construída por Luís XI e utilizada por Luís XV. Era o companheiro
de Dumouriez, era o amigo de Lafayette; pertencera ao clube dos
jacobinos; Mirabeau batera-lhe no ombro; Danton lhe dissera: “Meu
jovem!”
Em 1793, aos vinte e quatro anos de idade, como Senhor de Chartres, e
do fundo de uma escura tribuna da Convenção, assistira ao processo de
Luís XVI, apropriadamente chamado de este pobre tirano. A cega
clarividência da Revolução, abatendo a realeza no rei e o rei com a
realeza, quase sem notar o homem no feroz esmagar da ideia, a vasta
tempestade da assembleia-tribunal, a ira pública interrogando, Capeto não
sabendo o que responder, a terrível vacilação admirada com aquela cabeça
régia sob aquele sopro sombrio, a inocência relativa de todos naquela
catástrofe, tanto dos que condenavam como do que era condenado, ele vira
tudo isso, contemplara essas vertigens; vira os séculos comparecendo
perante a barra da Convenção; vira, por trás de Luís XVI, esse
desafortunado tido como responsável, erguer-se das trevas a temível
acusada, a monarquia; e ficara-lhe na alma o respeitoso temor pelas
imensas justiças do povo, quase tão impessoais quanto a justiça de Deus.
As marcas que a revolução nele deixara eram prodigiosas. Sua
lembrança era como uma impressão viva daqueles grandes anos, minuto
por minuto. Certa vez, em presença de uma testemunha da qual nos é
impossível duvidar, retificou de memória toda a letra A da lista alfabética
da Assembleia Constituinte.
Luís Filipe foi um rei de plena luz. Durante seu reinado, a imprensa foi
livre, a tribuna foi livre, a consciência e a palavra foram livres. As leis de
setembro são de claridade. Embora conhecendo o poder corrosivo do
esclarecimento sobre os privilégios, deixou seu trono exposto a ele. A
história saberá levar em conta sua lealdade.
Luís Filipe, como todos os homens históricos que já saíram de cena, é
hoje posto em julgamento pela consciência humana. Seu processo ainda
não passou da primeira instância.
A hora em que a história fala em tom venerando e livre ainda não soou
para ele; ainda não chegou o momento de se pronunciar sobre esse rei o
julgamento definitivo; o austero e ilustre historiador Louis Blanc
amenizou recentemente seu primeiro veredito; Luís Filipe foi o eleito
desses dois quase, 221 e 1830, isto é, de um meio parlamento e de uma
meia revolução; e, em todo caso, do ponto de vista superior em que se
deve colocar a filosofia, não poderíamos julgá-lo aqui, como acima demos
a entender, senão com certas reservas, em nome do princípio democrático
absoluto; aos olhos do absoluto, fora desses dois direitos, primeiro o
direito do homem, depois o direito do povo, tudo é usurpação; mas o que
desde já podemos dizer, feitas tais reservas, é que, afinal de contas e de
qualquer modo que o considerarmos, Luís Filipe, tomado em si mesmo e
do ponto de vista da bondade humana, continuará a ser, para nos servirmos
da velha linguagem da antiga história, um dos melhores príncipes que
passaram por um trono.
O que há contra ele? Esse trono. Tirem de Luís Filipe o rei, restará o
homem. E o homem é bom. Ele é bom, chegando por vezes a ser
admirável. Frequentemente, em meio às mais graves preocupações, após
uma jornada de luta contra toda a diplomacia do continente, voltava à
noite a seus aposentos e, esgotado pelo cansaço, cheio de sono, o que ia
fazer? Pegava um dossiê e passava a noite revisando um processo
criminal, entendendo que era importante fazer frente à Europa, mas que
era ainda mais importante arrancar um homem de um algoz. Obstinava-se
contra seu ministro da justiça; disputava palmo a palmo o terreno da
guilhotina com os procuradores-gerais, esses tagarelas da lei, como os
chamava. Às vezes, pilhas de autos cobriam sua mesa; ele examinava
todos; para ele era uma agonia abandonar aquelas miseráveis cabeças
condenadas. Um dia, ele dizia à mesma testemunha a que acima nos
referimos: Esta noite, ganhei sete cabeças. Durante os primeiros anos de
seu reinado a pena de morte estava como que abolida, e o restabelecimento
do cadafalso foi uma violência feita ao rei. A Grève tendo desaparecido
sob o ramo primogênito, uma Grève burguesa foi instituída com o nome
de Barreira Saint-Jacques; os “homens práticos” sentiram a necessidade de
uma guilhotina quase legítima, e essa foi uma das vitórias de Casimir
Perier, que representava a face mesquinha da burguesia, sobre Luís Filipe,
que representava sua face liberal. Luís Filipe anotou Beccaria5 de próprio
punho. Depois do caso Fieschi,6 costumava exclamar: Que pena que eu
não tenha sido ferido! Poderia ter perdoado. Em outra vez, fazendo alusão
à resistência de seus ministros, escrevia a respeito de um condenado
político que é uma das figuras mais generosas de nossos tempos: Seu
perdão foi concedido, só me resta obtê-lo. Luís Filipe era afável como
Luís XI e bondoso como Henrique IV.
Ora, para nós, na história, onde a bondade é pérola rara, quem foi bom
quase supera quem foi grande.
Luís Filipe foi severamente apreciado por uns, e com dureza talvez por
outros; não é de admirar que um homem, hoje também fantasma, que
conheceu esse rei, venha tomar sua defesa perante a história; essa defesa,
qualquer que seja sua natureza, é evidentemente, e antes de tudo,
desinteressada; um epitáfio escrito por um morto é sincero; uma sombra
pode consolar outra sombra; partilhar das mesmas trevas dá direito de
louvor; e pouco deve-se temer que digam de dois túmulos levantados no
exílio: “Este adulou aquele”.

IV. FENDAS NOS ALICERCES


No momento em que o drama que contamos começará a penetrar na
densidade de uma das trágicas nuvens que cobrem o início do reinado de
Luís Filipe, não poderia haver equívocos, e faz-se necessário que este livro
se explique a respeito desse rei.
Luís Filipe investiu-se da autoridade real sem violência, sem ação
direta de sua parte, em virtude de uma transformação revolucionária, aliás
muito distinta do verdadeiro objetivo da revolução, mas em relação à qual
ele, duque d’Orléans, não tivera nenhuma iniciativa pessoal. Nascera
príncipe e julgava-se rei eleito. Não dera esse mandato a si mesmo, nem o
tomara; fora-lhe oferecido e ele o aceitara, convencido, equivocadamente
é verdade, mas convencido de que o oferecimento era conforme ao direito,
e a aceitação conforme ao dever. Daí uma posse de boa-fé. Ora, dizemos
com toda a consciência, Luís Filipe sendo de boa-fé na posse de seu
mandato, e a democracia sendo de boa-fé em seu ataque, a quantidade de
espanto que se desprende das lutas sociais não pode ser imputada nem ao
rei, nem à democracia. Um choque de princípios é como um choque de
elementos. O oceano defende a água, o vendaval defende o ar; o rei
defende a realeza; a democracia defende o povo; o relativo, que é a
monarquia, resiste ao absoluto, que é a república; a sociedade sangra sob
esse conflito, o que é seu sofrimento de hoje será mais tarde sua salvação;
e em todo caso não há o que censurar aos que combatem; com certeza, um
dos dois partidos se engana. O direito não está, como o colosso de Rodes,
em duas margens ao mesmo tempo, um pé na república e outro na realeza;
ele é indivisível e está em um só lado; mas os que se enganam, se
enganam sinceramente; um cego é tão culpado quanto um cidadão da
Vendée é um salteador. Imputemos, portanto, somente à fatalidade das
coisas essas colisões temerosas. Quaisquer que sejam essas tempestades, a
irresponsabilidade humana se mescla a elas.
Concluamos esta exposição.
O governo de 1830 teve logo vida difícil. Nascido ontem, teve de
entrar em combate hoje.
Mal se instalara, já sentia por toda parte vagos movimentos de tração
sobre o aparelho de julho, ainda tão recentemente assentado e tão pouco
sólido. A resistência nasceu no dia seguinte; talvez tenha até mesmo
nascido na véspera.
De mês em mês, a hostilidade crescia, e, de encoberta, tornou-se
patente.
A Revolução de Julho, malvista pelos reis fora da França, já o
dissemos, havia sido interpretada diversamente na França.
Deus entrega suas visíveis vontades aos homens por meio dos
acontecimentos, texto obscuro escrito em uma língua misteriosa. Os
homens tentam apressadamente traduzi-lo; são traduções prematuras,
incorretas, cheias de erros, de lacunas e de contrassensos. Muito poucos
espíritos compreendem a língua divina. Os mais sagazes, os mais calmos,
os mais profundos decifram lentamente, e, quando chegam com seu texto,
o trabalho já foi feito há muito tempo, já existem vinte traduções em praça
pública. De cada tradução, nasce um partido, e de cada contrassenso, uma
facção; e cada partido julga possuir o único texto genuíno, e cada facção
julga possuir a luz.
Muitas vezes o próprio poder é uma facção.
Nas revoluções, há os que nadam contra a corrente, são os velhos
partidos.
Para os velhos partidos que se prendem à hereditariedade pela graça de
Deus, como as revoluções saíram do direito de revolta, existe direito de
revolta contra elas. Errado. Pois nas revoluções o revoltado não é o povo,
mas sim o rei. Revolução é justamente o contrário de revolta. Toda
revolução, sendo uma realização normal, contém em si a sua legitimidade,
que falsos revolucionários por vezes desonram, mas que persiste, ainda
que maculada, e que sobrevive, ainda que ensanguentada.
As revoluções nascem, não de um acidente, mas da necessidade. Uma
revolução é um retorno do fictício ao real. Ela existe porque é preciso que
ela exista.
Nem por isso os velhos partidos legitimistas deixavam de atacar a
revolução de 1830 com toda a violência que jorra de falsos raciocínios. Os
erros são excelentes projéteis. Esses partidos a atacavam lá onde ela era
vulnevável, no defeito de sua couraça, em sua falta de lógica; atacavam
essa revolução em sua realeza. Gritavam-lhe: “Revolução, por que este
rei?” As facções são cegos que miram com precisão.
Esse grito, os republicanos também lançavam. Mas, vindo deles, tinha
lógica. O que era cegueira nos legitimistas era clarividência nos
democratas. 1830 havia quebrado o povo. A democracia indignada o
reprovava por isso.
O que fora estabelecido em julho debatia-se entre o ataque do passado
e o ataque do futuro. Representava o minuto em luta, de um lado com os
séculos monárquicos, e, de outro, com o direito eterno.
Além disso, no exterior, não sendo mais a revolução e tendo-se tornado
monarquia, 1830 via-se obrigado a andar no passo da Europa. Manter a paz
era um acréscimo de complicação. Uma harmonia que se quer a
contrassenso é muitas vezes mais onerosa que uma guerra. Desse surdo
conflito, constantemente amordaçado, mas em constante reclamação,
nasceu a paz armada, esse ruinoso expediente de uma civilização que
suspeitava dela mesma. A realeza de julho irritava-se, no que lhe pesava,
com o atrelamento dos gabinetes europeus. Metternich, de boa vontade, a
amarraria. Impelida na França pelo progresso, ela impelia as monarquias
na Europa, aquelas pesadas máquinas. Rebocada, ela também rebocava.
Ao mesmo tempo, internamente, pauperismo, proletariado, salário,
educação, penalidade, prostituição, destino da mulher, riqueza, miséria,
produção, consumo, repartição, troca, moeda, crédito, direito do capital,
direito do trabalho, todas essas questões se multiplicavam acima da
sociedade; sobrecarga terrível.
Fora dos partidos políticos propriamente ditos, um outro movimento se
manifestava. À fermentação democrática respondia a fermentação
filosófica. A elite se sentia perturbada como as multidões; de outra forma,
mas com a mesma intensidade.
Os pensadores meditavam, enquanto que o solo, ou seja, o povo,
atravessado por correntes revolucionárias, estremecia sob seus pés ao
abalo de não se sabe que vagas convulsões epilépticas. Esses pensadores,
uns isolados, outros reunidos em famílias e quase em comunhões,
revolviam as questões sociais, pacífica mas profundamente; mineiros
impassíveis, que tranquilamente cavavam suas galerias nas profundezas de
um vulcão, levemente incomodados pelas comoções surdas e pelas
fornalhas entrevistas.
Essa tranquilidade não era o espetáculo menos belo dessa época
agitada.
Esses homens abandonavam aos partidos políticos a questão dos
direitos e se ocupavam da questão da felicidade.
O bem-estar do homem, era isso que queriam extrair da sociedade.
Elevavam as questões materiais, as questões de agricultura, de
indústria e comércio, quase à dignidade de uma religião. Na civilização,
tal qual ela se forma, um pouco por Deus, e muito pelo homem, os
interesses se combinam, se agregam, se amalgamam de modo a formarem
uma verdadeira rocha dura, segundo uma lei dinâmica pacientemente
estudada pelos economistas, esses geólogos da política.
Esses homens que se agrupavam sob diferentes denominações, mas
que podiam, todos, ser designados pelo título genérico de socialistas,
tratavam de perfurar essa rocha para dela fazer jorrar a água viva da
felicidade humana.
Desde a questão do cadafalso até a questão da guerra, seus trabalhos
englobavam tudo. Ao direito do homem, proclamado pela Revolução
Francesa, acrescentavam o direito da mulher e o direito da criança.
Ninguém deverá se admirar pelo fato de que, por razões diversas, não
trataremos a fundo aqui, do ponto de vista teórico, das questões suscitadas
pelo socialismo. Limitamo-nos a indicá-las.
Todos os problemas que os socialistas se colocavam, as visões
cosmogônicas, os sonhos e o misticismo colocados de lado, podem ser
reduzidos a dois problemas principais.
Primeiro problema: produzir a riqueza.
Segundo problema: reparti-la.
O primeiro problema contém a questão do trabalho.
O segundo contém a questão do salário.
No primeiro problema, trata-se do emprego das forças.
No segundo, da distribuição do que se produziu.
Do bom emprego das forças resulta o poderio público.
Da boa distribuição do que foi produzido resulta a felicidade
individual.
Por boa distribuição deve-se entender, não distribuição igual, mas
distribuição equitativa. A primeira igualdade é a equidade.
Da combinação destas duas coisas, poderio público no exterior,
felicidade individual interna, resulta a prosperidade social.
Prosperidade social significa felicidade para o homem, liberdade para
o cidadão, grandeza para a nação.
A Inglaterra resolveu o primeiro desses problemas. Sabe criar
admiravelmente a riqueza, mas a reparte mal. Essa solução, completa
apenas de um lado, fatalmente a leva a dois extremos: opulência
monstruosa, miséria monstruosa. Todos os gozos para uns; todas as
privações para outros, ou seja, para o povo; o privilégio, a exceção, o
monopólio, a feudalidade nascem do próprio trabalho. Situação errada e
perigosa, que assenta o poderio público na miséria privada, que enraíza a
grandeza do Estado nos sofrimentos do indivíduo. Grandeza malformada,
em que todos os elementos materiais se combinam, e da qual nenhum
elemento moral participa.
O comunismo e a lei agrária acreditam resolver o segundo problema.
Enganam-se. A repartição deles mata a produção. A partilha por igual
abole o sentimento de superação. E, por consequência, o trabalho. Essa é
uma partilha semelhante à que faz o açougueiro, que mata o que reparte. É,
portanto, impossível dar-se por contente com essas pretendidas soluções.
Matar a riqueza não é reparti-la.
Os dois problemas precisam ser resolvidos em conjunto para serem
bem resolvidos. As duas soluções precisam ser combinadas, tornando-se
apenas uma.
Resolvendo apenas o primeiro desses problemas, seremos Veneza,
seremos a Inglaterra. Teremos, como Veneza, um poderio artificial, ou,
como a Inglaterra, um poderio material; seremos o mau rico. Pereceremos
pelas vias de fato, como morreu Veneza, ou por uma bancarrota, como
cairá a Inglaterra. E o mundo nos deixará cair e morrer, porque o mundo
deixa cair e morrer tudo o que não passa de egoísmo, tudo o que não
representa para o gênero humano uma virtude ou uma ideia.
Fique aqui bem entendido que, pelas palavras Veneza, Inglaterra,
designamos não povos, mas construções sociais, as oligarquias
sobrepostas às nações e não as próprias nações. As nações sempre terão
nosso respeito e nossa simpatia. Veneza, povo, renascerá. Inglaterra,
aristocracia, cairá, mas a Inglaterra, nação, é imortal. Dito isso,
continuemos.
Resolvamos os dois problemas; encorajemos o rico e protejamos o
pobre; suprimamos a miséria; ponhamos termo à injusta exploração do
fraco pelo forte; coloquemos um freio na inveja iníqua daquele que está a
caminho contra aquele que já chegou; ajustemos matemática e
fraternalmente o salário ao trabalho; juntemos o ensino gratuito e
obrigatório ao crescimento infantil, fazendo da ciência a base da
virilidade; desenvolvamos as inteligências, dando ao mesmo tempo
ocupação aos braços; sejamos a um só tempo um povo poderoso e uma
família de homens felizes; democratizemos a propriedade, não abolindo-a,
mas universalizando-a, de modo a que todo cidadão, sem exceção, seja
proprietário, coisa mais fácil do que se imagina; em uma palavra,
saibamos produzir a riqueza e saibamos reparti-la, e teremos juntas a
grandeza material e a grandeza moral, e seremos dignos de nos
chamarmos França.
Eis o que dizia o socialismo, fora e acima de algumas seitas que se
desviavam do caminho; eis o que ele procurava nos fatos e o que esboçava
nos espíritos.
Admiráveis esforços! Sagradas tentativas!
Essas doutrinas, essas teorias, essas resistências; a necessidade
inesperada para o homem de estado de contar com os filósofos; confusas
evidências entrevistas; uma nova política a ser criada, de acordo com o
Velho Mundo e sem grande desacordo com o ideal revolucionário; uma
situação em que seria preciso empregar Lafayette em defesa de Polignac; a
intuição do progresso transparente sob a revolta; as câmaras e a rua; as
rivalidades equilibrando em torno de si sua fé na revolução; talvez certa
eventual resignação nascida da vaga aceitação de um direito superior
definitivo; sua vontade de permanecer da própria raça; seu espírito de
família; seu sincero respeito ao povo; sua própria honestidade, tudo isso
preocupava Luís Filipe quase dolorosamente, e, por instantes, por mais
forte e corajoso que fosse, tudo isso o abatia sob as dificuldades de ser rei.
Sentia sob os pés uma desagregação temerosa, que não era, todavia,
uma redução a pó, uma vez que a França era mais França do que nunca.
Tenebrosas nuvens cobriam o horizonte. Uma crescente sombra
estranha estendia-se pouco a pouco sobre os homens, sobre as coisas,
sobre as ideias; sombras que vinham da ira e dos sistemas. Tudo o que
prematuramente havia sido sufocado se revolvia e fermentava. Por vezes,
a consciência do homem de bem precisava retomar fôlego, tamanho o mal-
estar que havia naquela atmosfera onde os sofismas misturavam-se às
verdades. Os espíritos estremeciam na ansiedade social como as folhas das
árvores na aproximação das tempestades. Era tal a tensão elétrica que, em
certos instantes, o primeiro que aparecia, um desconhecido qualquer,
trazia luz. Depois a escuridão crepuscular voltava a cair. De tempos em
tempos, profundos e surdos rumores permitiam imaginar a quantidade de
carga elétrica contida na nuvem.
Apenas vinte meses haviam se passado desde a Revolução de Julho, e o
ano de 1832 abria-se com aspecto de perigo iminente e de ameaça. A
miséria do povo; a fome dos trabalhadores; o desaparecimento nas trevas
do último príncipe de Condé; a expulsão dos Nassau de Bruxelas, como a
dos Bourbons de Paris; a Bélgica oferecendo-se a um príncipe francês e
dada a um príncipe inglês; o ódio russo de Nicolau; atrás de nós, dois
demônios do sul, Fernando na Espanha, e Miguel em Portugal; a terra
estremecendo na Itália; Metternich estendendo a mão sobre Bolonha; a
França agastando-se com a Áustria em Ancona; ao norte, não se sabe que
sinistro martelar fechando a Polônia em seu caixão; por toda a Europa,
olhares irritados espreitando a França; a Inglaterra, aliada suspeita, pronta
a empurrar quem vacilasse e a lançar-se sobre quem caísse; o pariato
abrigando-se sob Beccaria para recusar quatro cabeças à lei; as flores-de-
lis raspadas da carruagem real; a cruz arrancada de Notre-Dame; Lafayette
reduzido, Laffitte arruinado, Benjamin Constant morto indigente, Casimir
Perier morto de exaustão no poder; a doença política e a doença social
sendo ao mesmo tempo declaradas nas duas capitais do reino, uma, cidade
do pensamento, a outra, cidade do trabalho; em Paris, a guerra civil, em
Lyon, a guerra servil, nas duas cidades, o mesmo clarão de fornalha; uma
cratera púrpura na fronte do povo; o sul fanatizado, o oeste perturbado; a
duquesa de Berry na Vendée; os complôs, as conspirações, as revoltas, a
ira, acresciam ao sombrio rumor das ideias o sombrio tumulto dos
acontecimentos.

V. FATOS QUE DÃO ORIGEM À HISTÓRIA E QUE A


HISTÓRIA IGNORA
Por volta do final de abril, tudo se agravara. A fermentação
transformara-se em fervura. Desde 1830, aqui e ali ocorriam pequenas
rebeliões parciais, rapidamente sufocadas, mas recorrentes, sinal de uma
vasta conflagração subjacente. Algo de terrível incubava. Entreviam-se os
lineamentos ainda mal distintos e pouco claros de uma possível revolução.
A França estava de olho em Paris; Paris estava de olho no bairro Saint-
Antoine.
O bairro Saint-Antoine, surdamente aquecido, entrava em ebulição.
Os botequins da rua Charonne, embora a junção destes dois epítetos
pareça singular aplicada a botequins, estavam graves e tempestuosos.
Ali, o governo, pura e simplesmente, era colocado em questão. Ali se
discutia publicamente o negócio, fosse para participar da luta ou para
ficar tranquilo. Existiam salas de fundo onde faziam os operários jurar
que, ao primeiro grito de alarme, estariam nas ruas e “lutariam sem contar
o número de inimigos”. Uma vez feito o juramento, um homem sentado
em um canto do botequim “fazia uma voz sonora” e dizia: “Você ouviu!
Você jurou!” Algumas vezes iam ao primeiro andar, para um cômodo
fechado, onde se passavam cenas quase maçônicas. Faziam o iniciado
jurar prestar-lhes serviços bem como aos pais de família. Essa era a
fórmula.
Nas salas inferiores liam brochuras “subversivas”. Atiravam pedras no
governo, dizia um relatório secreto daquele tempo.
Ali eram ouvidas palavras como estas: Não sei o nome dos chefes. Nós,
aqui, só vamos saber o dia duas horas antes. Um operário dizia: Somos
trezentos, se cada um der dez soldos, são cento e cinquenta francos para
pólvora e balas. Outro dizia: Não dou seis meses, não dou nem dois. Antes
de quinze dias estaremos a par com o governo. Com vinte e cinco mil
homens já podemos enfrentá-los. Outro ainda dizia: Nem tenho dormido
porque passo a noite fazendo cartuchos. De tempos em tempos, alguns
homens “com jeito de burgueses e bem vestidos” apareciam, “causando
embaraço”, e, com ares “de comandar”, apertavam as mãos dos mais
importantes, e iam embora. Nunca ficavam mais que dez minutos.
Trocavam em voz baixa frases significativas: O complô está maduro, a
coisa está no auge. “Era murmurado por todos os que estavam lá”, para
nos servirmos da expressão de um dos próprios assistentes. Era tal a
exaltação que, um dia, em plena taverna, um operário exclamou: Nós não
temos armas! Um de seus camaradas respondeu: Os soldados têm!,
parodiando desse modo, sem se dar conta, a proclamação de Bonaparte ao
exército da Itália. E um relatório acrescenta: “Quando eles tinham algo de
mais secreto, não se comunicavam ali”. Não dá para entender o que
poderiam ocultar depois de ter dito o que diziam.
Às vezes, as reuniões eram periódicas. Em algumas delas, nunca eram
mais de oito ou dez, e sempre os mesmos. Em outras, entrava quem
quisesse, e a sala ficava tão cheia que era preciso ficar de pé. Uns ali
estavam por entusiasmo e paixão; outros porque “era seu caminho para
chegar ao trabalho”. Como ocorrera durante a Revolução, havia nessas
tavernas mulheres patriotas que abraçavam os novos adeptos.
Outros fatos expressivos se mostravam.
Um homem entrava em um botequim, bebia e dizia ao sair: Patrão, o
que eu devo, a revolução pagará.
Em uma taverna de frente para a rua Charonne, agentes
revolucionários eram nomeados. O escrutínio era feito dentro de bonés.
Operários reuniam-se na casa de um mestre de esgrima que promovia
combates na rua Cotte. Ali havia um troféu de armas formado de espadins
de madeira, cajados, bastões e floretes. Um dia, desembainharam os
floretes. Um operário dizia: Somos vinte e cinco, mas não contem comigo,
porque me consideram uma máquina. Essa máquina mais tarde foi
Quéssinet.7
Coisas quaisquer que se premeditavam tomavam pouco a pouco não se
sabe que estranha notoriedade. Uma mulher que varria sua porta dizia a
outra mulher: Faz tempo que trabalham duro fazendo cartuchos. No meio
da rua, liam-se proclamações dirigidas aos guardas nacionais dos
departamentos. Uma dessas proclamações estava assinada assim: Burtot,
comerciante de vinhos.
Um dia, à porta de um licorista do Mercado Lenoir, um homem
portando um colar de barba e com pronúncia italiana subia em uma coluna
de pedra e lia em voz alta um escrito singular, que parecia emanar de um
poder oculto. Alguns grupos formaram-se em volta dele e aplaudiam. As
passagens que mais mexiam com a multidão foram recolhidas e anotadas:
“…Nossas doutrinas são entravadas, nossas proclamações são rasgadas, e
é vigiado e jogado na prisão quem nos ajuda a afixá-las”. “O revés que
acaba de acontecer no setor de algodão converteu a nosso favor muitos dos
neutros.” “…O futuro dos povos é elaborado em nossas obscuras fileiras.”
“…Eis os termos colocados: ação ou reação, revolução ou
contrarrevolução. Pois, em nossa época, ninguém acredita mais na inércia,
nem na imobilidade. A favor ou contra o povo, essa é a questão. Não há
outra.” “…No dia em que nós não lhes formos mais convenientes, que nos
anulem, mas até então ajudem-nos a caminhar.” Tudo isso em pleno dia.
Outros fatos, ainda mais audaciosos, causavam suspeita ao povo
justamente por causa de sua audácia. No dia 4 de abril de 1832, um
passante postado no marco da esquina da rua Sainte-Marguerite gritava:
Eu sou babovista!8 Mas, por baixo de Babeuf, o povo farejava o chefe de
polícia Gisquet.
Entre outras coisas, esse passante dizia:
— Abaixo a propriedade! A oposição de esquerda é covarde e
traiçoeira. Quando quer ter razão, prega a revolução. É democrata para não
ser batida, e realista para não combater. Os republicanos são feras com
penas. Desconfiem dos republicanos, cidadãos operários!
— Silêncio, cidadão espião! — gritou um operário.
Esse grito pôs fim ao discurso.
Incidentes misteriosos se produziam.
Ao final do dia, um operário encontrava perto do canal “um homem
bem vestido” que lhe dizia:
— Para onde vai, cidadão?
— Senhor, não tenho a honra de conhecê-lo — respondia o operário.
— Mas eu o conheço bem.
E o homem acrescentava:
— Não tenha receio, sou agente do comitê. Há suspeitas de que você
não está muito firme. Saiba que, se você revelar alguma coisa, estamos de
olho em você.
Depois apertava a mão do operário e ia embora dizendo:
— Logo tornaremos a nos ver.
A polícia, em suas escutas, recolhia diálogos singulares, não mais
apenas nas tavernas, mas também nas ruas.
— Faça com que o recebam bem depressa — dizia um tecelão a um
marceneiro.
— Por quê?
— Vamos ter que dar uns tiros.
Dois passantes esfarrapados trocavam estas réplicas notáveis, cheias
de uma aparente jacquerie:9
— Quem nos governa?
— É o senhor Filipe.
— Não, é a burguesia.
Engana-se quem acredita que tomamos a palavra jacquerie em sentido
pejorativo. Os jacques eram os pobres.
Uma outra vez, ao passar, dois homens foram ouvidos dizendo um para
o outro: “Temos um belo plano de ataque”.
De uma conversa íntima entre quatro homens agachados em uma vala
próxima à barreira du Trône, só se pôde compreender o seguinte:
— O que for possível será feito para que ele não torne a pôr os pés em
Paris.
Ele quem? Enigma ameaçador.
“Os principais chefes”, como se dizia no bairro, mantinham-se
afastados. Supunha-se que se reunissem para suas deliberações em uma
taverna das imediações da ponte Saint-Eustache. Um fulano chamado
Aug.***, chefe da Sociedade de Ajuda para os Alfaiates, rua Mondétour,
passava para servir de intermediário central entre os chefes e o bairro
Saint-Antoine. Contudo, sempre houve muito segredo a respeito desses
chefes, e fato algum pôde enfraquecer o orgulho singular da seguinte
resposta dada algum tempo depois por um acusado perante a Corte dos
Pares:
— Quem era seu chefe?
— Eu não o conhecia, nem o reconheceria.
Eram, talvez, meras palavras, transparentes, mas vagas; às vezes frases
apanhadas no ar, ou “dizem”, ou “ouvi dizer”. Outros indícios apareciam.
Na rua Reuilly, um carpinteiro, ocupado em pregar um tapume em
volta de um terreno onde se elevava uma casa em construção, achou no
chão um pedaço de uma carta rasgada no qual ainda eram legíveis as
seguintes linhas:
“…É preciso que o comitê tome providências para impedir o recrutamento nas seções
para diferentes sociedades”.

E como post-scriptum:

“Soubemos que havia fuzis na rua Faubourg-Poissonnière, número 5 (bis), na


quantidade de cinco ou seis mil, no quintal da casa de um armeiro. A seção não possui
armas”.

O que impressionou o carpinteiro e o fez mostrar a coisa a seus


vizinhos foi que, alguns passos adiante, ele encontrou outro pedaço
também rasgado e ainda mais significativo, cuja configuração
reproduzimos por causa do interesse histórico desses estranhos
documentos:

Aprenda esta lista de cor. Depois rasgue-a. Os homens admitidos farão o mesmo, depois que
você lhes tiver transmitido as ordens. Saúde e fraternidade.
L.
1
u og a fe

As pessoas que conheceram o segredo desse achado só mais tarde


souberam o que subentendiam as quatro letras maiúsculas: quinturiões,
centuriões, decuriões, esclarecedores; e o sentido das letras u og a1 fe era
uma data e queria dizer 15 de abril de 1832. Por baixo de cada uma das
maiúsculas estavam inscritos alguns nomes, seguidos de indicações bem
características. Deste modo: Q. Bannerel. 8 fuzis. 83 cartuchos. Homem
seguro. — C. Boubière. 1 pistola. 40 cartuchos. — D. Rollet. 1 florete. 1
pistola. 1 libra de pólvora. — E. Teissier. 1 sabre. 1 cartucheira. Exato. —
Terreur. 8 espingardas. Valente, etc.
Finalmente, esse carpinteiro achou, sempre no mesmo local, um
terceiro papel no qual estava escrita a lápis, mas bem legível, esta espécie
de lista enigmática:
Unidade. Blanchard. Árvore seca. 6.
Barra. Soize. Sala-do-Conde.
Kosciusko. Aubry, o açougueiro?
J. J. R.
Caio Graco.
Direito de revisão. Dufond. Forno.
Queda dos Girondinos. Derbac. Maubuée.
Washington. Pinson. 1 pist. 86 cart.
Marselhesa.
Sober. do povo. Michel. Quincampoix. Sabre.
Hoche.
Marceau. Platão. Árvore seca.
Varsóvia. Tilly, vendedor do Popular.10

O honesto burguês, em cujas mãos esse papel fora parar, conseguiu


saber seu significado. Parece que essa lista era a nomenclatura completa
das seções do quarto distrito da Sociedade dos Direitos do Homem, com os
nomes e endereços dos chefes das seções. Hoje, quando todos esses fatos
então ocultos não são nada mais que história, podemos torná-los públicos.
Devemos acrescentar que a fundação da Sociedade dos Direitos do
Homem parece ter sido posterior à data em que aquele papel foi
encontrado. Talvez fosse apenas um esboço.
No entanto, depois das frases e palavras, depois dos indícios escritos,
alguns fatos materiais começaram a transparecer.
Na rua Popincourt, em um depósito de ferro-velho, encontraram na
gaveta de uma cômoda sete folhas de papel pardo, dobradas todas em
quatro e no comprimento; elas encobriam vinte e seis quadrados do
mesmo papel dobrados em forma de cartucho, e um cartão no qual se lia o
seguinte:

Salitre………………………12 onças
Enxofre………………………2 onças
Carvão…………………………2 onças e meia
Água……………………………2 onças

A declaração do auto de busca constatava que a gaveta exalava um


forte odor de pólvora.
Um pedreiro, ao voltar de sua jornada de trabalho, esqueceu um
pequeno pacote sobre um banco próximo à ponte de Austerlitz. Esse
pacote foi levado ao posto de guarda. Ali foi aberto e dentro dele
encontraram dois diálogos impressos, assinados Lahautière, uma canção
intitulada Operários, associai-vos e uma caixa feita de latão, cheia de
cartuchos.
Um operário, bebendo com um camarada, dizia-lhe para sentir como
estava quente; o outro, ao apalpar, sentia uma pistola por baixo da jaqueta.
Entre a barreira du Trône e o Père-Lachaise, em um fosso da parte
mais deserta do bulevar, algumas crianças que ali brincavam descobriram,
por baixo de um monte de aparas e lixo, um saco contendo uma forma para
fazer balas, um mandril de madeira para fazer cartuchos, uma gamela com
alguns grãos de pólvora de caça e uma pequena panela de ferro fundido,
cujo interior mostrava vestígios evidentes de chumbo derretido.
Agentes de polícia entrando de improviso, às cinco horas da manhã, na
casa de um tal Pardon, que mais tarde foi guarda nacional da seção
Barricade-Merry, e que morreu na insurreição de abril de 1834, o
encontraram de pé ao lado de sua cama, segurando cartuchos que estava
fabricando.
Aproximadamente na hora em que os operários costumam descansar,
dois homens foram vistos encontrando-se entre as barreiras Picpus e
Charenton, em um pequeno caminho limitado por dois muros, perto de
uma taverna que tem à porta um bilhar chinês. Um deles tirou de sob a
blusa uma pistola, que entregou ao outro. No momento de entregá-la,
percebeu que sua transpiração passara um pouco de umidade à pólvora.
Preparou a pistola juntando-lhe mais pólvora àquela que já estava ali. Em
seguida, os dois homens se separaram.
Um fulano chamado Gallais, morto mais tarde na rua Beaubourg, por
ocasião do movimento de abril, gabava-se de ter em casa setecentos
cartuchos e vinte e quatro pedras de fuzil.
Um dia, o governo recebeu um aviso de que acabavam de distribuir
armas e duzentos mil cartuchos pelos subúrbios. Na semana seguinte,
trinta mil cartuchos foram distribuídos. Coisa incrível, a polícia não
conseguiu apreender nenhum deles. Uma carta interceptada dizia:
“Não está longe o dia no qual, em quatro horas do relógio, oitenta mil
patriotas estarão sob as armas”.
Toda essa fermentação era pública, e, poderíamos quase dizer,
tranquila. A iminente insurreição aprontava serenamente sua tempestade
na cara do governo. Nenhuma singularidade faltava a essa crise, ainda
subterrânea, mas já perceptível. Os burgueses falavam pacificamente com
os operários sobre o que se preparava. Perguntavam: “Como vai a
revolta?” no mesmo tom com que perguntariam: “Como vai sua mulher?”
Na rua Moreau, um comerciante de móveis perguntava:
— E então, quando vão atacar?
E outro negociante respondia:
— Vão atacar logo, tenho certeza. Há um mês éramos quinze mil,
agora somos vinte e cinco mil.
Ele oferecia seu fuzil, e um vizinho oferecia uma pistola pequena, pela
qual pedia sete francos.
Em suma, a febre revolucionária se espalhava. Nenhum ponto de Paris
ou da França estava isento. A artéria pulsava por toda parte. Semelhante a
essas membranas que nascem de certas inflamações e se formam no corpo
humano, a rede de sociedades secretas começava a estender-se pelo país.
Da Associação dos Amigos do Povo, simultaneamente pública e secreta,
nascia a Sociedade dos Direitos do Homem, que datava do seguinte modo
uma de suas ordens do dia: Pluvioso, ano 40 da era republicana, sociedade
que sobreviveria às sentenças do Tribunal Criminal que ordenavam sua
dissolução, e que não hesitava em dar às suas seções nomes significativos
tais como:

Lanças.
Toque a rebate.
Canhão de alarme.
Barrete frígio.
21 de janeiro.
Mendigos.
Vadios.
Marcha adiante.
Robespierre.
Nível.
Avante.

A Sociedade dos Direitos do Homem engendrava a Sociedade de Ação.


Eram os impacientes que não esperavam e corriam na frente. Outras
associações procuravam recrutar-se nas grandes sociedades-mães. Os
guardas nacionais queixavam-se de serem atacados. Assim se formaram a
Sociedade Gaulesa e o Comitê Organizador das Municipalidades; as
associações em favor da liberdade de imprensa, em favor da liberdade
individual, em favor da instrução do povo, contra os impostos indiretos. E
também a Sociedade dos Operários Igualitários, que se dividia em três
facções: os igualitários, os comunistas e os reformistas. Em seguida, o
Exército das Bastilhas, espécie de corte militarmente organizada, com
quatro homens comandados por um cabo, dez por um sargento, vinte por
um subtenente, quarenta por um tenente; nunca havia mais de cinco
homens que se conhecessem. Criação em que a precaução se combinava
com a audácia e que parecia impregnada do gênio de Veneza. O Comitê
Central, que era a cabeça, tinha dois braços, a Sociedade de Ação e o
Exército das Bastilhas. Uma associação legitimista, os Cavaleiros da
Fidelidade, agitava-se por entre essas filiações republicanas. Nesse meio,
era denunciada e repudiada.
As sociedades parisienses ramificavam-se pelas principais cidades.
Lyon, Nantes, Lille e Marselha tinham sua Sociedade dos Direitos do
Homem, la Charbonnière, a dos Homens Livres. Em Aix, havia uma
sociedade revolucionária chamada Cougourde, cujo nome já foi citado.
Em Paris, o subúrbio Saint-Marceau não era menos efervescente que
Saint-Antoine, e as escolas não estavam menos agitadas que os subúrbios.
Um café da rua Saint-Hyacinthe e o botequim Sept-Billiards, da rua
Mathurins-Saint-Jacques, serviam de pontos de reunião para os estudantes.
A sociedade dos Amigos do ABC, afiliada aos mutualistas de Angers e à
Cougourde de Aix, se reunia, como já vimos, no café Musain. Esses
mesmos jovens, como também já dissemos, reuniam-se em um restaurante
das imediações da rua Mondétour chamado Corinthe. Essas reuniões eram
secretas. Outras eram tão públicas quanto possível, e pode-se julgar tais
ousadias pelo seguinte fragmento de um interrogatório feito em um dos
processos ulteriores: — Onde ocorreu essa reunião? — Na rua de la Paix.
— Na casa de quem? — No meio da rua. — Que seções estavam
presentes? — Uma só. — Qual? — A seção Manuel. — Quem era o chefe?
— Eu. — Você é muito jovem para ter tomado sozinho essa grave
resolução de atacar o governo. De onde recebia as instruções? — Do
comitê central.
O exército era minado ao mesmo tempo que a população, como depois
o provaram os movimentos de Belfort, de Lunéville e de Épinal. Contava-
se com o regimento 52, com o 5, com o 8, com o 37 e com o 20 de
infantaria ligeira. Na Borgonha e nas cidades do sul, plantava-se a Árvore
da Liberdade, ou seja, um mastro com um barrete vermelho no alto.
Essa era a situação.
O bairro Saint-Antoine, mais que qualquer outro grupo de população,
como dissemos no início, tornava essa situação sensível e a acentuava. Ali
era o ponto nevrálgico.
Esse antigo subúrbio, populoso como um formigueiro, laborioso,
corajoso e bravo como um enxame de abelhas, estremecia com a espera e
o desejo de uma comoção. Tudo ali se agitava sem que por isso o trabalho
fosse interrompido. Nada poderia dar uma ideia dessa viva e sombria
fisionomia. Nesse bairro, há misérias pungentes escondidas sob os tetos
das mansardas; mas ali também há inteligências ardentes e raras. É
especialmente em função da indigência e da inteligência que é perigoso
quando dois extremos se tocam.
Saint-Antoine tinha ainda outras causas de estremecimento, pois
recebia o contragolpe das crises comerciais, das falências, das greves, da
falta de trabalho, inerentes aos grandes abalos políticos. Em tempos de
revolução, a miséria é ao mesmo tempo causa e efeito. O golpe que
desfere volta a ela. Essa população, cheia de uma virtude orgulhosa, capaz
no mais alto ponto calórico latente, sempre pronta a pegar em armas,
pronta para as explosões, irritada, profunda, minada, parecia apenas
esperar a queda de uma faísca. Toda vez que certas faíscas flutuam no
horizonte, impelidas pelo vento dos acontecimentos, não é possível
impedir que se pense no bairro Saint-Antoine e no temeroso acaso que
colocou nas portas de Paris aquele paiol de pólvora cheio de ideias e
sofrimentos.
As tavernas do subúrbio Antoine, que por mais de uma vez se
desenharam no esboço que se lê, gozam de notoriedade histórica. Em
tempos de perturbação, nessas casas, fica-se mais embriagado de palavras
que de vinho. Uma espécie de espírito profético e um eflúvio de futuro por
ali circulam, inflando os corações e engrandecendo as almas. As tavernas
do subúrbio Antoine assemelham-se às do monte Aventino, construídas
sobre o antro da sibila e se comunicando com os profundos sopros
sagrados; tavernas cujas mesas eram quase trípodes, e onde se bebia o que
Ênio chama de o vinho sibilino.
O subúrbio Saint-Antoine é um reservatório de povo. Os tremores
revolucionários abrem nele fendas por onde corre a soberania popular.
Essa soberania pode agir mal; ela pode se enganar, como outra qualquer;
mas, mesmo que desencaminhada, permanece grandiosa. Dela pode-se
falar como do ciclope cego: Ingens.11
Em 1793, conforme fosse boa ou má a ideia que pairava, conforme
fosse um dia de fanatismo ou de entusiasmo, partiam do bairro Saint-
Antoine ou legiões selvagens, ou bandos heroicos.
Selvagens. Devemos explicar essa palavra. Esses homens esfarrapados,
barulhentos, de aspecto feroz, cabelos eriçados, cassetetes levantados,
espadas em punho, que nos dias genesíacos do caos revolucionário
arremessaram-se sobre a velha Paris em desordem, que queriam eles?
Queriam o fim das opressões, o fim das tiranias, o fim do jugo, trabalho
para o homem, instrução para a criança, ternura social para a mulher,
liberdade, igualdade e fraternidade, pão para todos, ideia para todos,
edenização do mundo, progresso; e esta coisa santa, suave e boa, o
progresso, irritados, fora de si, reclamavam-na de forma terrível, seminus,
brandindo maças e rugindo. Eram os selvagens, sim, mas os selvagens da
civilização.
Proclamavam o direito com fúria; queriam, mesmo que pelo tremor e
pelo espanto, forçar o gênero humano a aceitar o paraíso. Pareciam
bárbaros mas eram salvadores. Reclamavam a luz com uma máscara de
trevas.
Em face desses homens, ferozes, concordamos, e temerosos, mas
ferozes e temerosos para o bem, há outros homens, sorridentes,
engalanados, dourados, enfeitados, estrelados, meias de seda, plumas
brancas, luvas amarelas, sapatos reluzentes, que, sentados a uma mesa de
veludo ao lado de uma lareira de mármore, insistem tranquilamente na
conservação do passado, da Idade Média, do direito divino, do fanatismo,
da ignorância, da escravidão, da pena de morte, da guerra, glorificando a
meia voz e polidamente a espada, a fogueira e o cadafalso. Quanto a nós,
se fôssemos forçados a escolher entre os bárbaros da civilização e os
civilizados da barbárie, escolheríamos os bárbaros.
Mas, graças aos céus, uma outra escolha é possível. Nenhuma queda a
pique é necessária, seja para avançar ou para retroceder. Nem despotismo,
nem terrorismo. Queremos o progresso em suave declive.
Deus o concede. A suavização dos declives, nisso consiste toda a
política de Deus.

VI. ENJOLRAS E SEUS TENENTES


Por volta dessa época, Enjolras, em vista do possível acontecimento,
fez uma espécie de recenseamento misterioso.
Todos estavam em conciliábulo no café Musain.
Enjolras disse, misturando a suas palavras algumas metáforas semi-
enigmáticas, mas significativas:
— Convém saber em que pé estamos e com quem podemos contar. Se
quisermos combatentes, precisamos fazê-los. Ter com o que bater. Isso não
pode prejudicar. Os que passam sempre têm mais chance de levar
chifradas quando há bois na estrada do que quando não há. Portanto,
vamos contar um pouco o rebanho. Quantos somos? Não é o caso de se
deixar esse trabalho para amanhã. Os revolucionários sempre devem ter
pressa; o progresso não tem tempo a perder. Desconfiemos do inesperado.
Não nos deixemos pegar desprevenidos. Trata-se de revisar todas as
costuras que já fizemos para ver se elas resistem. Isso deve ser
aprofundado ainda hoje. Courfeyrac, você vai encontrar os politécnicos.
Hoje, quarta-feira, é o dia de saída deles. Você, Feuilly, vai encontrar os da
Glacière. Combeferre prometeu ir ao Picpus. Lá está havendo uma
excelente agitação. Bahorel vai visitar a Estrapade. Prouvaire, os maçons
estão esfriando, traga-nos notícias da loja da rua Grenelle-Saint-Honoré.
Joly irá à clínica de Dupuytren tomar o pulso da escola de medicina.
Bossuet fará uma pequena volta pelo palácio para conversar com os
estagiários. E eu me encarrego da Cougorde.
— Pronto, tudo acertado — disse Courfeyrac.
— Não.
— O que falta ainda?
— Uma coisa muito importante.
— O quê? — perguntou Combeferre.
— A barreira Maine — respondeu Enjolras.
Enjolras permaneceu um momento como que absorvido em suas
reflexões, depois retomou:
— Na barreira Maine, há o pessoal que trabalha com mármore,
pintores, gente que aprende nos ateliês de escultura. É uma família
entusiasta, mas sujeita a resfriamentos. Não sei o que há com eles de uns
tempos para cá. Estão pensando em outra coisa. Estão ficando apagados.
Passam o tempo jogando dominó. É preciso urgentemente falar um pouco,
mas firme, com eles. É na casa de Richefeu que eles se reúnem. Podemos
encontrá-los ali entre meio-dia e uma hora. Temos de soprar aquelas
cinzas. Estava contando para isso com aquele distraído do Marius, que,
afinal de contas, é bom, mas ele não aparece mais. Vou precisar de alguém
para a barreira Maine. Não tenho mais ninguém.
— E eu? — disse Grantaire. — Estou aqui.
— Você?
— Eu.
— Você, doutrinar republicanos! Você, esquentar, em nome de
princípios, corações que esfriaram!
— Por que não?
— Será que você serve para alguma coisa?
— Tenho a vaga ambição de servir — disse Grantaire.
— Você não acredita em nada.
— Acredito em você.
— Grantaire, você quer me fazer um favor?
— Todos. Engraxar suas botas.
— Pois bem, não se meta nos nossos negócios. Vá se embebedar com
seu absinto.
— Você é um ingrato.
— Você é homem de ir à barreira Maine! Seria capaz?
— Sou capaz de descer a rua des Grès, de atravessar a praça Saint-
Michel, de passar pela rua Monsieur-le-Prince, de pegar a rua de
Vaugirard, de passar pelo Carmes, dobrar a rua d’Assas, chegar à rua
Cherche-Midi, deixar atrás de mim o Conselho de Guerra, subir a rua des
Vieilles-Tuileries, cruzar o bulevar, seguir pela calçada Maine, transpor a
barreira e entrar na casa de Richefeu. Sou capaz de fazer isso. Meus
sapatos são capazes disso.
— Você conhece ao menos um pouco aqueles camaradas que vão à
casa de Richefeu?
— Não muito. Mas nos tratamos por você.
— O que você vai lhes dizer?
— Vou falar de Robespierre, ora. De Danton. De princípios.
— Você!
— Eu. Mas ninguém me faz justiça. Quando me meto nisso, sou
terrível. Li Proudhomme, conheço o Contrato Social, sei de cor minha
constituição do Ano Dois. “A liberdade de um cidadão termina onde a
liberdade de outro cidadão começa.” Você me toma por um bruto? Guardo
um velho papel-moeda da revolução de 1790 na minha gaveta. Os Direitos
do Homem, a soberania do povo, caramba! Sou até mesmo um pouco
hébertista.12 Posso repetir, durante seis horas contadas, relógio na mão,
coisas incríveis.
— Seja mais sério — disse Enjolras.
— Sou assustador.
Enjolras pensou por alguns segundos, e fez o gesto de um homem que
toma sua decisão.
— Grantaire — disse ele seriamente —, concordo em testá-lo. Você
vai à barreira Maine.
Grantaire morava em um quarto bem próximo ao café Musain. Ele saiu
e retornou cinco minutos depois. Fora até lá para vestir um colete ao estilo
Robespierre.
— Vermelho — disse ele ao entrar, enquanto olhava fixamente para
Enjolras.
Depois, com um enérgico movimento de mãos, apoiou sobre o peito as
duas pontas escarlates do colete. E, aproximando-se de Enjolras, disse-lhe
ao ouvido:
— Fique tranquilo.
Colocou resolutamente seu chapéu, e saiu.
Passado um quarto de hora, a sala de trás do café Musain estava
deserta. Todos os amigos do ABC haviam partido, cada qual para um lado,
cada qual com sua missão. Enjolras, que se reservara a Cougourde, saiu
por último.
Os membros da Cougourde de Aix, que estavam em Paris, reuniam-se
então na planície de Issy, em uma das pedreiras abandonadas, tão
numerosas naquele lado de Paris.
Enquanto caminhava em direção àquele ponto de encontro, Enjolras
passava nele mesmo uma revista da situação. Era visível a gravidade dos
acontecimentos. Quando os fatos, prenúncios de uma espécie de doença
social latente, se movem pesadamente, a menor complicação os
interrompe e embaralha. Fenômeno que dá origem aos desabamentos e aos
renascimentos. Enjolras entrevia uma efervescência luminosa sob as
superfícies tenebrosas do futuro. Quem sabe? Talvez o momento se
aproximasse. O povo retomando seu direito, que belo espetáculo! A
revolução retomando majestosamente a posse da França, e dizendo ao
mundo: “Amanhã continua!” Enjolras estava satisfeito. A fornalha
esquentava. Naquele mesmo momento havia um rastilho de pólvora de
amigos espalhado por Paris. Enjolras compunha em sua cabeça, com a
eloquência filosófica e penetrante de Combeferre, o entusiasmo
cosmopolita de Feuilly, a verve de Courfeyrac, o riso de Bahorel, a
melancolia de Jean Prouvaire, a ciência de Joly, os sarcasmos de Bossuet,
uma espécie de borbulhamento elétrico que pegava fogo ao mesmo tempo
por toda parte. Todos ao trabalho. Com toda a certeza o resultado
corresponderia aos esforços. Muito bem. Isso o fez pensar em Grantaire.
— Bem — pensou —, a barreira Maine mal vai desviar-me de meu
caminho. E se eu fosse até a casa de Richefeu? Vamos ver o que faz
Grantaire, e a quantas anda.
Soava uma hora na torre de Vaugirard quando Enjolras chegou à
taverna Richefeu. Empurrou a porta, entrou, cruzou os braços, deixou a
porta fechar depois de bater em seus ombros, e olhou em torno da sala
cheia de mesas, de homens e de fumaça.
Uma voz se sobressaía em meio àquela bruma, vivamente entrecortada
por uma outra voz. Era Grantaire dialogando com um adversário.
Grantaire estava sentado, de frente para uma pessoa, a uma mesa de
mármore Sant’Ana cheia de migalhas e de pedras de dominó; ele batia no
mármore com os punhos, e eis o que Enjolras ouviu:
— Dupla sena.
— Quadra.
— Porco! Não tenho mais.
— Você está morto.
— Sena.
— Três.
— Ás.
— Minha vez.
— Quatro pontos.
— Com muito custo.
— Sua vez.
— Fiz um erro enorme.
— Você está indo bem.
— Quinze.
— Mais sete.
— Isso dá vinte e dois. (Divagando.) Vinte e dois!
— Você não esperava a dupla sena. Se eu a tivesse colocado no
começo, ia mudar todo o jogo.
— Duque mesmo.
— Ás.
— Ás! Pois então quina!
— Não tenho.
— Foi você que jogou agora, não?
— Sim.
— Branco.
— Que sorte! Ah! Você tem a sorte! (Longa divagação.) Duque.
— Ás.
— Nem quina nem ás! Azar o seu.
— Dominó.
— Cachorro.

__________________________
1 Augustín de Iturbide: político militar mexicano; foi coroado Imperador em 1822. Lutou pela
Independência do México.
2 Expressão aplicada a Luís Filipe, que foi feito rei embora fosse Bourbon e porque era um
Bourbon.
3 Formas antigas de polonais (polonês) e hongrois (húngaro).
4 Referência ao massacre da rua Transnonain, que ocorreu no reinado de Luís Filipe, em
1834.
5 Cesare Bonesana, marquês de Beccaria —jurista italiano cujas teses fizeram-no precursor do
direito penal moderno.
6 Giuseppe Marco Fieschi, conspirador que atentou contra a vida de Luís Filipe, saindo este
ileso.
7 Em 1841, Quéssinet, operário do bairro Saint-Antoine, tentou assassinar dois príncipes da
família real.
8 Partidário de doutrina de Babeuf, idealista que participou da Revolução Francesa; pregava a
igualdade.
9 Nome da insurreição camponesa de 1358 contra a nobreza da França; o termo deriva do
nome Jacques (que designava, com certo escárnio, o homem do povo) e exprime a revolta das
classes pobres perante os abastados.
10 Alusão ao jornal do comunista Cabet, de 1833.
11 “Monstro horrível, disforme, colossal, cego” (Virgílio, Eneida).
12 Grupo político de Jacques Hébert, revolucionário francês, fundador de um jornal
representativo da extrema esquerda.
LIVRO II
ÉPONINE

I. LE CHAMP DE LALOUETTE — O CAMPO DA


COTOVIA
MARIUS ASSISTIRA ao inesperado desenlace da cilada em cujo rastro
havia colocado Javert; mas assim que Javert deixou o casarão, levando
seus presos em três carruagens, Marius, por sua vez, saiu cautelosamente
de casa. Ainda não passava das nove da noite. Marius foi à casa de
Courfeyrac. Courfeyrac já não era o imperturbável morador do Quartier
Latin; havia mudado para a rua de la Verrerie “por razões políticas”; esse
local era do tipo onde a insurreição se instalava de boa vontade naqueles
tempos. Marius disse a Courfeyrac: “Vou dormir na sua casa”. Courfeyrac
tirou um colchão de sua cama, que tinha dois, colocou-o no chão e disse:
“Aí está”.
No dia seguinte, às sete da manhã, Marius voltou ao casarão, pagou o
aluguel e o que devia a mame Bougon, encheu um carrinho de mão com
seus livros, sua cama, sua mesa, sua cômoda e suas duas cadeiras, e partiu
sem deixar endereço, de modo que, quando Javert retornou naquela manhã
para interrogar Marius sobre os acontecimentos da véspera, encontrou
apenas mame Bougon, que lhe disse: “Mudou-se!”
Mame Bougon ficou convencida de que Marius era um tanto cúmplice
dos ladrões capturados na noite anterior. “Quem diria!”, exclamava ela
para as outras porteiras do bairro. “Um rapaz que parecia uma moça!”
Marius teve duas razões para essa mudança repentina. A primeira era
que agora tinha horror àquela casa onde vira, tão de perto e em todo o seu
desenvolvimento mais repulsivo e mais feroz, uma deformidade social
talvez ainda mais medonha do que o mau rico: o mau pobre. A segunda era
que não queria figurar em nenhum processo que provavelmente se
seguiria, sendo levado a depor contra Thénardier.
Javert imaginou que o jovem, cujo nome não guardara, tivera medo e
fugira, ou talvez não tivesse nem mesmo retornado para casa no momento
da cilada; fez então alguns esforços para reencontrá-lo, mas não
conseguiu.
Um mês se passou, depois mais outro. Marius continuava na casa de
Courfeyrac. Soube por um advogado estagiário, frequentador habitual das
antecâmaras dos tribunais, que Thénardier estava incomunicável. Toda
segunda-feira, Marius enviava à Force cinco francos para Thénardier.
Não tendo mais dinheiro, Marius pedia emprestado a Courfeyrac. Pela
primeira vez em sua vida, emprestava dinheiro de alguém. Esses cinco
francos periódicos eram um duplo enigma, para Courfeyrac, que os
emprestava, e para Thénardier, que os recebia. “Para quem será esse
dinheiro?”, pensava Courfeyrac. “De onde isso me vem?”, perguntava-se
Thénardier.
Marius, porém, estava aflito. Tudo ficara obscuro novamente. Não via
mais nada a sua frente; sua vida voltara a mergulhar naquele mistério onde
ele andava tateando. Por um momento tornara a ver, de muito perto, em
meio àquela obscuridade, a moça a quem amava, o velho que parecia ser o
pai dela, esses entes desconhecidos que eram seu único interesse e sua
única esperança neste mundo; e, quando pensou que os tinha seguros, um
sopro carregou todas aquelas sombras. Nem sequer uma faísca de certeza e
de verdade saltara daquele terrível choque. Nenhuma conjectura era
possível. Não sabia nem mesmo o nome que supunha saber. Com toda a
certeza, não se chamava Ursule. E Cotovia era um apelido. E o que pensar
do velho? Escondia-se de fato da polícia? O operário de cabelos brancos,
que Marius uma ocasião encontrara nas imediações de Invalides, voltou a
sua memória. Agora se tornava provável que o tal operário e o senhor
Leblanc fossem o mesmo homem. Será então que se disfarçava? Esse
homem tinha lados heroicos e lados equívocos. Por que não gritara por
socorro? Por que fugira? Ele era ou não o pai da jovem? Enfim, era ele,
realmente, o homem que Thénardier julgou reconhecer? Thénardier
poderia enganar-se? Todos problemas sem saída. Tudo isso, é verdade, em
nada diminuía o encanto angelical da jovem do Luxemburgo. Infelicidade
pungente; Marius tinha uma paixão no coração, e trevas sobre os olhos.
Era puxado, era empurrado, mas não podia se mexer. Tudo se desvanecera,
menos o amor. Do amor mesmo, perdera os instintos e as súbitas
iluminações. Normalmente, essa chama que nos queima também nos
ilumina um pouco, e lança alguma claridade útil à nossa volta. Esses
surdos conselhos da paixão, Marius nem os ouvia mais. Nunca se dizia: “E
se eu fosse ali? E se eu tentasse aquilo?” Aquela a quem já não podia
chamar de Ursule estava evidentemente em algum lugar; mas nada
indicava a Marius em que lado ele devia procurar. Agora, toda a sua vida
se resumia a estas palavras: uma incerteza absoluta em uma bruma
impenetrável. Revê-la, desejava isso sempre, mas não tinha mais
esperança.
E, ainda por cima, a miséria estava de volta. Ele sentia muito de perto,
atrás de si, esse sopro gelado. Em meio a todas essas tormentas, e já havia
muito tempo, interrompera seu trabalho, e nada é mais perigoso que o
trabalho interrompido; é um hábito que se vai. Hábito fácil de perder,
difícil de retomar.
Uma certa quantidade de divagação faz bem, como um narcótico em
dose discreta. Adormece as febres, algumas vezes fortes, da inteligência
em ação, e faz nascer no espírito um vapor brando e fresco que corrige os
contornos demasiado ásperos do pensamento puro, preenche aqui e ali
lacunas e intervalos, liga os conjuntos e encobre os ângulos das ideias.
Mas divagação em demasia submerge e afoga. Infeliz do operário de
espírito que se deixa cair inteiramente do pensamento na abstração.
Acredita que facilmente tornará a subir, e pensa que, afinal de contas, é
tudo a mesma coisa. Erro!
O pensamento é o labor da inteligência, a abstração é o labor da
voluptuosidade. Substituir o pensamento pela divagação é confundir um
veneno com um alimento.
Marius, como se recordam, começara assim. A paixão sobreviera e
acabara por precipitá-lo em quimeras sem objetivo e sem fundamento. Já
não saía de casa senão para sonhar. Criação preguiçosa. Abismo
tumultuoso e estagnante. E, à medida que o trabalho diminuía, cresciam as
necessidades. É de lei. O homem, em estado sonhador, é naturalmente
pródigo e frouxo; o espírito descontraído não pode levar uma vida contida.
Nesse modo de viver, há uma mistura de bem e de mal, pois, se a moleza é
funesta, a generosidade é sã e boa. Mas o homem pobre, generoso e nobre,
que não trabalha, está perdido. Os recursos se esgotam, as necessidades
aparecem.
Ladeira fatal, por onde os mais honestos e os mais firmes são levados
como os mais fracos e os mais viciosos, indo terminar em um destes dois
abismos, o suicídio ou o crime.
À força de sair para sonhar, chega um dia em a pessoa sai para ir jogar-
se na água.
O excesso de devaneio produz os Escousse e os Lebras.1
Marius descia essa ladeira a passos lentos, olhos fixos naquela que já
não via. O que acabamos de escrever parece estranho, no entanto, é
verdadeiro. A lembrança de um ser ausente se acende nas trevas do
coração; e, quanto mais está desaparecido, mais resplandece; a alma
desesperada e obscura avista essa luz em seu horizonte, estrela de uma
noite interior. Ela, esse era o único pensamento de Marius. Não pensava
mais em outras coisas; percebia confusamente que suas velhas roupas
tornavam-se imprestáveis, e que suas roupas novas ficavam velhas, que
suas camisas se estragavam, que seu chapéu se estragava, que suas botas
se estragavam, quer dizer, que sua vida se deteriorava, e dizia a si mesmo:
“Se pelo menos eu pudesse revê-la antes de morrer!”
Restava-lhe apenas uma ideia agradável, que ela o amara, pois seu
olhar mostrara isso a ele, que ela não sabia seu nome, mas conhecia sua
alma, e que talvez, lá onde estivesse, qualquer que fosse esse lugar
misterioso, ela ainda o amasse. Quem sabe ela não pensava nele da mesma
forma que ele pensava nela? Às vezes, em horas inexplicáveis, que
experimenta todo coração que ama, tendo somente motivos para tristeza,
sentia, no entanto, um estranho estremecimento de alegria, e pensava:
“São seus pensamentos que chegam a mim!” E então acrescentava: “Meus
pensamentos talvez cheguem a ela também”.
Essa ilusão, que o fazia sacudir a cabeça no momento seguinte,
conseguia, no entanto, lançar-lhe na alma alguns raios que pareciam, às
vezes, ser de esperança. De tempos em tempos, especialmente ao
anoitecer, momento que entristece os mais sonhadores, deixava cair nas
folhas de um caderno, que não continha outra coisa, o mais puro, o mais
impessoal, o mais ideal dos devaneios com que o amor enchia-lhe o
cérebro. A isso ele chamava “escrever-lhe”.
Não se deve achar que sua razão estivesse em desordem. Pelo
contrário. Ele perdera a faculdade de trabalhar e de mover-se com firmeza
em direção a um objetivo, mas tinha, mais do que nunca, clarividência e
retidão. Marius via com uma clareza calma e real, embora singular, o que
se passava diante de seus olhos, mesmo os fatos ou os homens mais
indiferentes; falava a respeito de tudo as palavras justas, com uma espécie
de abatimento honesto e desinteressadamente cândido. Seu julgamento,
quase desprendido da esperança, mantinha-se alto e livre.
Nessa condição de espírito, nada lhe escapava, nada o enganava, e ele
descobria a todo instante o fundamento da vida, da humanidade e do
destino. Mesmo em meio às angústias, feliz daquele a quem Deus deu uma
alma digna do amor e do infortúnio! Quem não viu as coisas deste mundo
e o coração dos homens sob essa dupla claridade, nada viu de verdadeiro e
nada sabe.
A alma que ama e que sofre encontra-se em estado sublime.
De resto, os dias se sucediam e nenhuma novidade se apresentava.
Apenas parecia-lhe que o espaço sombrio que lhe restava percorrer
tornava-se menor a cada instante. Ele julgava já entrever distintamente a
borda do abismo sem fundo.
— Meu Deus! — repetia a si mesmo. — Será que não tornarei a vê-la
antes disso!
Quando se sobe a rua Saint-Jacques, deixa-se ao lado a barreira e se
segue algum tempo à esquerda pelo antigo bulevar interior, atinge-se a rua
de la Santé, a Glacière, e, um pouco antes de se chegar ao riacho des
Gobelins, encontra-se uma espécie de campo, que é, na extensa e
monótona cintura dos bulevares de Paris, o único local onde Ruisdael2
seria tentado a sentar-se.
Esse não sei que, de onde a graça das coisas se desprende, está ali; um
prado verde atravessado por cordas estendidas onde trapos secam ao vento,
uma antiga fazenda de horticultores, edificada no tempo de Luís XIII, com
seu grande telhado extravagantemente pontilhado de mansardas, sebes
arruinadas, um pouco de água entre as árvores, mulheres, risos, vozes; no
horizonte, o Panthéon, a árvore dos Surdos-Mudos, o Val-de-Grace, negro,
colossal, extravagante, divertido, magnífico, e, ao fundo, o severo topo
quadrado das torres de Notre-Dame.
Como o lugar vale a pena ser visto, ninguém vai até lá. Só uma
charrete ou algum carreteiro a cada quarto de hora.
Ocorreu, certa vez, que os solitários passeios de Marius o conduziram
a esse terreno, perto de onde havia água. Naquele dia, havia uma raridade
no tal bulevar, um passante. Marius, vagamente impressionado pelo
encanto quase selvagem do lugar, perguntou a esse passante:
— Como se chama este lugar?
— Champ de l’Alouette [Campo da Cotovia] — respondeu o passante.
E acrescentou:
— Foi aqui que Ulbach matou a pastora de Ivry.
Mas depois desta palavra: Cotovia, Marius nada mais ouvira. No
estado de divagação, ocorrem essas súbitas paralisias que uma única
palavra consegue produzir. Todo o pensamento se condensa
repentinamente em volta de uma ideia, e torna-se incapaz de qualquer
outra percepção. Cotovia era o nome que, nas profundezas da melancolia
de Marius, substituíra Ursule.
— Ah! — disse ele com aquela espécie de estupefação irracional
peculiar a esses misteriosos apartes. — Este é o campo dela. Aqui ficarei
sabendo onde ela mora.
Era absurdo, mas irresistível.
E passou a ir todos os dias ao Champ de l’Alouette.

II. FORMAÇÃO EMBRIONÁRIA DOS CRIMES NA


INCUBAÇÃO DAS PRISÕES
O triunfo de Javert no cortiço Gorbeau parecia ter sido completo, mas
não o fora.
Primeiro, e era esta sua principal preocupação, Javert não prendera o
prisioneiro. O assassinado que se evade é mais suspeito que o assassino; e
era provável que esse personagem, tão valiosa presa para os bandidos, não
fosse menos precioso para a autoridade.
Segundo, porque Montparnasse havia escapado de Javert.
Seria preciso esperar outra ocasião para pôr novamente as mãos
naquele “imprestável do diabo”. De fato, tendo Montparnasse encontrado
Éponine, que estava de vigia atrás das árvores do bulevar, levara-a
consigo, preferindo ser Némorin para com a filha a Schinderhannes para
com o pai.3 Foi o que lhe valeu. Ficara livre. Quanto a Éponine, Javert
fizera com que a “fisgassem” de volta. Medíocre consolo. Éponine juntou-
se novamente a Azelma em Madelonnettes.
Finalmente, no trajeto entre o cortiço Gorbeau e a Force, um dos
principais presos, Claquesous, fora perdido. Ninguém sabia como isso
acontecera; os agentes e os sargentos “não entendiam nada”, Claquesous
evaporara, soltara-se das amarras, escorrera pelas fendas da carruagem,
que estava rachada, e fugira; ninguém sabia o que dizer chegando à prisão,
a não ser nada mais de Claquesous. Naquilo havia feitiçaria, ou coisa da
polícia. Claquesous derretera nas trevas, como um floco de neve na água?
Teria havido tácita conivência dos agentes? Aquele homem pertencia ao
duplo enigma da desordem e da ordem? Seria ele concêntrico à infração e
à repressão? Essa esfinge teria as patas dianteiras metidas no crime e as
patas traseiras na autoridade? Javert não aceitava de forma alguma
combinações desse tipo, e teria arrepios diante de tais comprometimentos;
mas sua equipe compunha-se de outros inspetores além dele, mais
iniciados talvez do que ele mesmo nos segredos da delegacia, embora
fossem seus subordinados, e Claquesous era tamanho bandido que podia
ser muito bom agente. Estar em tão íntimas relações de ocultação com a
noite é excelente para a bandidagem e admirável para a polícia. Existem
desses velhacos de dois gumes. Fosse como fosse, Claquesous desgarrado
não fora mais encontrado. Javert se mostrava em relação a isso mais
irritado que admirado.
Quanto a Marius, “esse advogado tolo que provavelmente tivera
medo”, e cujo nome esquecera, Javert pouco se importava. Aliás, um
advogado é sempre encontrável. Mas seria ele apenas um advogado?
A coleta de informações havia começado.
O juiz de instrução achara conveniente não colocar um dos homens da
quadrilha Patron-Minette no isolamento, esperando ouvir alguma coisa.
Foi escolhido Brujon, o cabeludo da rua Petit-Banquier. Soltaram-no no
pavilhão Charlemagne, e os vigilantes não tiravam os olhos dele.
Este nome, Brujon, é um dos mais lembrados da Force. No horrível
pavilhão chamado Prédio-Novo, que a administração denominava pátio
Saint-Bernard e os ladrões chamavam de cova-dos-leões, na muralha
coberta de escamas de pele e lepra que subia à esquerda até a altura do
telhado, perto de uma velha porta enferrujada que levava à antiga capela
do palácio ducal da Force — que se tornou um dormitório de bandidos —,
via-se ainda, doze anos depois, uma espécie de prisão grosseiramente
desenhada com uma ponta de prego, e, logo abaixo, esta assinatura:

BRUJON, 1811.

O Brujon de 1811 era o pai do Brujon de 1832.


Este último, que mal foi possível entrever na cilada do cortiço
Gorbeau, era um jovem atrevido, muito esperto e muito hábil, com ar tolo
e lamurioso. Foi por causa desse seu ar tolo que o juiz de instrução o
deixou no pavilhão Charlemagne, acreditando que ele seria mais útil ali do
que na solitária.
Os ladrões não param por estarem nas mãos da justiça. Não se
incomodam com tão pouco. Estar na prisão por um crime não impede que
se comece outro. São artistas que têm um quadro em exposição, sem que
por isso deixem de trabalhar em uma nova obra em seu ateliê.
Brujon parecia ter ficado estupefato pela prisão. Às vezes, era visto
horas seguidas no pátio Charlemagne, de pé, ao lado da pequena janela da
cantina, contemplando como um idiota a sórdida lista dos preços que
começava por: alho, 62 cêntimos, e acabava por: cigarro, 5 cêntimos. Ou
então passava seu tempo tremendo, batendo os dentes, dizendo que tinha
febre, e perguntando se algum dos vinte e oito leitos da sala dos doentes
estava livre.
De repente, por volta da segunda quinzena de fevereiro de 1832, soube-
se que Brujon, esse indolente, mandara, por intermédio de mensageiros da
prisão, não em seu nome, mas em nome de seus camaradas, três recados
diferentes, que lhe custaram ao todo cinquenta soldos, despesa exorbitante
que atraiu a atenção do responsável da prisão.
Tomaram-se informações e, consultando-se as tarifas de recados
pregada no locutório dos detentos, conseguiu-se saber que os cinquenta
soldos se decompunham do seguinte modo: três recados, um ao Panthéon,
dez soldos; outro ao Val-de-Grâce, quinze soldos; e outro à entrada de
Grenelle, vinte e cinco soldos. Este era o recado mais caro da tabela. Ora,
no Panthéon, no Val-de-Grâce e na entrada de Grenelle encontravam-se
justamente os domicílios de três vadios muito temidos, Kruideniers,
conhecido por Bizarro, Glorieux, forçado liberado, e Barre-Carrosse, sobre
os quais esse incidente atraiu o olhar da polícia. Conjecturava-se que esses
homens eram filiados à quadrilha Patron-Minette, da qual dois dos chefes,
Babet e Gueulemer, tinham sido encarcerados. Supunha-se que os recados
de Brujon, enviados, não a endereços domiciliares, mas a pessoas que
esperavam na rua, deviam conter avisos para alguma malfeitoria tramada.
Havia ainda outros indícios; os três vadios foram agarrados, e acreditou-se
haver descoberto a tal maquinação de Brujon.
Certa noite, aproximadamente uma semana depois de tomadas essas
medidas, um dos guardas noturnos, inspecionando a parte inferior do
Prédio-Novo, no momento de colocar sua castanha na caixa de castanhas
— esse era o meio empregado para se assegurar que os vigias realmente
faziam o serviço: de hora em hora, uma castanha devia cair em todas as
caixas pregadas nas portas dos dormitórios —, um guarda, então, viu,
através de uma fresta, Brujon sentado na cama, escrevendo alguma coisa à
luz do candeeiro. O guarda entrou, Brujon foi colocado na solitária durante
um mês, mas não conseguiram pegar o que ele escrevera. A polícia nada
mais soube.
O certo é que, no dia seguinte, um “postilhão” foi atirado do pátio
Charlemagne à cova-dos-leões por cima do edifício de cinco andares que
separava os dois pátios.
Os presos chamam de postilhão uma bolinha de pão engenhosamente
endurecida, que se envia para a Irlanda, quer dizer, por cima dos telhados
de uma prisão, de um pátio a outro. Etimologia: por cima da Inglaterra, de
uma terra a outra; para a Irlanda. Essa bolinha cai no pátio. Quem a
encontra deve abri-la e, dentro, encontra um bilhete dirigido a algum dos
presos. Se o achado é feito por um dos detentos, ele faz o bilhete chegar a
seu destino; se é feito por algum vigia ou algum dos presos secretamente
vendidos, chamados de carneiros nas prisões e de raposas nas galés, o
bilhete é levado ao carcereiro e entregue à polícia.
Desta feita, o postilhão chegou a seu destino, embora, na ocasião,
aquele a quem a mensagem se destinava estivesse “em separado”. O
destinatário era nada menos que Babet, um dos quatro cabeças de Patron-
Minette.
O postilhão continha um papel enrolado, sobre o qual havia apenas
estas duas linhas:
— Babet. Há um negócio a fazer na rua Plumet. Uma grade que dá para
um jardim.
Era a tal coisa que Brujon escrevera à noite.
Apesar dos revistadores e das revistadoras, Babet achou um meio de
fazer o bilhete passar da Force para a Salpêtrière, a uma “boa amiga” que
estava ali encarcerada. Essa moça transmitiu o bilhete a uma conhecida
sua chamada Magnon, muito vigiada pela polícia, mas ainda fora da
prisão. Essa Magnon, cujo nome o leitor já viu, tinha com os Thénardier
relações que serão mais tarde detalhadas, e podia, ao visitar Éponine,
servir de ponte entre a Salpêtrière e Madelonnettes.
Ocorreu que, justamente naquela ocasião, por falta de provas no
processo movido contra Thénardier a respeito de suas filhas, Éponine e
Azelma foram soltas.
Quando Éponine saiu, Magnon, que a espreitava às portas de
Madelonnettes, entregou-lhe o bilhete de Brujon para Babet,
encarregando-a de “esclarecer” o negócio.
Éponine foi à rua Plumet, reconheceu a grade e o jardim, observou a
casa, espiou, espreitou, e, passados poucos dias, levou a Magnon, que
morava na rua Clocheperce, um biscuit [biscoito], que Magnon transmitiu
à amante de Babet, na Salpêtrière.
No tenebroso simbolismo das prisões, um biscuit significa: nada a
fazer. De modo que, em menos de uma semana, Babet e Brujon, ao se
cruzarem no caminho de ronda da Force, um deles indo “à instrução” da
qual o outro voltava:
— E então, a rua P? — perguntou Brujon.
— Biscuit — respondeu Babet.
Dessa forma foi abortado o feto de crime gerado por Brujon na Force.
Esse aborto, no entanto, teve consequências completamente estranhas à
programação de Brujon, como veremos.
Com frequência, acreditando-se atar um certo fio, acaba-se atando um
outro.

III. APARIÇÃO AO PAI MABEUF


Marius não ia mais à casa de ninguém, acontecia-lhe apenas de
encontrar algumas vezes com Pai Mabeuf.
Enquanto Marius descia lentamente os lúgubres degraus, que
poderíamos chamar de escada dos porões, que conduzem a lugares sem
luz, onde ouvem-se os felizes caminhando acima de nós, por seu lado, o
senhor Mabeuf também descia.
A Flora de Cauteretz absolutamente não se vendia mais. As
experiências com o anil não obtiveram êxito no pequeno jardim de
Austerlitz, pouco exposto ao sol. Ali, o senhor Mabeuf apenas podia
cultivar algumas plantas raras que gostam de sombra e de umidade.
Contudo, ele não desanimava. Conseguiu um canto de terra no Jardim
Botânico, bem localizado, para nele fazer “despesas por sua conta”, seus
experimentos com o anil.
Para tanto, empenhara as chapas de cobre de sua Flora no montepio e
reduzira seu almoço a dois ovos, deixando um para sua velha criada, a
quem não pagava havia mais de quinze meses. E muitas vezes o almoço
era sua única refeição. Não mostrava mais aquele riso infantil, tornara-se
melancólico, e não recebia mais visitas. Marius fazia bem de não pensar
em visitá-lo. Às vezes, quando o senhor Mabeuf se dirigia ao Jardim
Botânico, cruzava com Marius no bulevar de l’Hôpital, mas não se
falavam, trocavam tristemente um sinal de cabeça. Coisa pungente, haver
um momento em que a miséria desfaz os laços! Eram dois amigos, são
dois passantes.
O livreiro Royol morrera. O senhor Mabeuf conhecia apenas seus
livros, seu jardim e seu anil; eram as três formas que para ele haviam
tomado a felicidade, o prazer e a esperança. Era quanto lhe bastava para
viver. Pensava: “Quando fizer minhas bolas de anil, ficarei rico, retirarei
minhas chapas do montepio, voltarei a ter minha Flora em voga, com
charlatanismo, muita propaganda e anúncios nos jornais, e comprarei, bem
sei onde, um exemplar de l’Art de Naviguer [A Arte de Navegar], de Pierre
de Médine, capa de madeira, edição de 1559”.
Enquanto esperava, trabalhava o dia inteiro em seu canteiro de anil, e,
à noite, voltava para casa para regar o jardim e ler seus livros. Nessa
época, o senhor Mabeuf estava muito perto de seus oitenta anos.
Certa tarde, teve uma aparição singular.
Voltara para casa com o dia ainda claro. A senhora Plutarque, cuja
saúde se desarranjava, estava doente e acamada. Ele jantou um pouco de
carne que restara em um osso e um pedaço de pão que encontrara sobre a
mesa da cozinha, indo sentar-se em uma pedra que fazia as vezes de banco
em seu jardim.
Perto desse banco, elevava-se, à moda dos velhos jardins com pomar,
uma espécie de grande baú feito de travessas e pranchas, bastante
estragado, casinha de coelhos na parte inferior e fruteira na parte superior.
Não havia coelhos na casinha, mas havia algumas maçãs na fruteira, restos
da provisão de inverno.
O senhor Mabeuf pusera-se a folhear e a ler, com ajuda de seus óculos,
dois livros que o arrebatavam, e também, coisa mais séria em sua idade, o
preocupavam. Sua natural timidez tornava-o propenso a uma certa
aceitação das superstições. O primeiro desses livros era o famoso tratado
do presidente Delancre, Sobre a Inconstância dos Demônios, o outro era o
in-quarto de Mutor de la Rubaudière, Sobre os Diabos de Vauvert e os
Duendes de Bièvre.4 Este último livro o interessava ainda mais porque seu
jardim outrora havia sido um dos terrenos assombrados pelos duendes. O
crepúsculo começava a clarear o que ficava no alto e a escurecer o que
ficava embaixo. Enquanto lia, por sobre o livro que tinha nas mãos, Pai
Mabeuf contemplava suas plantas, entre elas um magnífico rododendro,
uma de suas consolações; quatro dias de calor, de vento e de sol, sem uma
gota de chuva, haviam se passado; os caules curvavam-se, os botões
pendiam, as folhas caíam, tudo aquilo precisava ser regado; o rododendro,
principalmente, estava triste. Pai Mabeuf era daqueles para quem as
plantas têm alma. O velho havia trabalhado o dia todo em seu canteiro de
anil, estava muito cansado, mas levantou-se, colocou os livros sobre o
banco, caminhou todo curvado e com passos cambaleantes até o poço;
mas, quando segurou a corrente, não conseguiu puxá-la o suficiente. Então
voltou-se e lançou um olhar de angústia para o céu, que se cobria de
estrelas.
A noite tinha aquela serenidade que acalma as dores do homem, não se
sabe sob qual lúgubre e eterna alegria, e prometia ser tão árida quanto
havia sido o dia.
— Estrelas por toda parte! — pensou o homem. — Nem a menor
nuvem! Nem uma lágrima de água! — E sua cabeça, que por um instante
se levantara, voltou a cair sobre o peito.
Levantou-a novamente e outra vez olhou para o céu murmurando:
— Uma gota de orvalho! Por piedade!
Tentou mais uma vez levantar a corrente do poço, mas não conseguiu.
Naquele momento, ouviu uma voz lhe dizendo:
— Pai Mabeuf, quer que eu regue seu jardim?
Ao mesmo tempo, ouviu-se algo como o ruído de um animal feroz que
passasse pela sebe, de onde ele viu sair uma espécie de moça alta e magra,
que apareceu diante dele fitando-o atrevidamente. Parecia menos um ser
humano do que uma forma que acabava de nascer do crepúsculo.
Antes que Pai Mabeuf, que se assustava naturalmente e, como já
dissemos, se amendrontava com facilidade, pudesse responder uma única
sílaba, aquele ser, que no escuro mostrava nos movimentos uma espécie de
rapidez estranha, já havia soltado a corrente, mergulhado e retirado o
balde, enchido o regador; e o velho homem via aquela aparição de pés
descalços e roupa esfarrapada correndo pelas platibandas, distribuindo
vida à sua volta. O ruído do regador sobre as folhas enchia de
contentamento a alma de Pai Mabeuf. Agora parecia-lhe que o rododendro
estava feliz.
Esvaziado o primeiro balde, a moça tirou um segundo, e depois um
terceiro. Regou o jardim todo.
Vê-la caminhar assim entre os canteiros, onde sua silhueta aparecia
completamente negra, agitando sobre os longos braços angulosos seu
lenço todo rasgado, dava a ela um certo ar de morcego.
Quando ela terminou, Pai Mabeuf aproximou-se com lágrimas nos
olhos, passando-lhe a mão pelo rosto.
— Deus a abençoe — disse ele. — Você é um anjo, pois tem cuidado
com as flores.
— Não — respondeu ela. — Eu sou o diabo, mas tanto faz.
O velho exclamou, sem esperar e sem entender sua resposta:
— Pena que eu seja tão infeliz e tão pobre, e que eu não possa fazer
nada por você!
— O senhor pode alguma coisa — disse ela.
— O quê?
— Dizer-me onde mora o senhor Marius.
O velho homem não compreendeu.
— Que senhor Marius?
Ele lançou um olhar vidrado e pareceu procurar alguma coisa
desaparecida.
— Um rapaz que vinha aqui antigamente.
Enquanto isso, o senhor Mabeuf havia sondado sua memória.
— Ah! Sim… — exclamou ele. — Entendo o que você quer dizer.
Espere um pouco! Senhor Marius… o barão Marius Pontmercy, ora! Ele
mora… ou melhor, ele já não mora… Pois é, não sei.
Enquanto falava, curvou-se para prender um galho do rododendro, e
continuava:
— Espere, agora me lembro. Ele passa com muita frequência pelo
bulevar e vai para os lados da Glacière, rua Croulebarbe, Champ de
l’Alouette. Vá por ali. Não é difícil encontrá-lo.
Quando o senhor Mabeuf levantou-se, não havia mais ninguém. A
jovem desaparecera.
Decididamente, ele teve um certo medo.
— Na verdade — pensou —, se meu jardim não estivesse molhado, eu
pensaria que era um espírito.
Uma hora depois, quando se deitava, lembrou-se do que ocorrera, e, ao
adormecer, naquele instante confuso em que o pensamento, semelhante à
fabulosa ave que se transforma em peixe para atravessar o mar, vai
gradualmente tomando a forma de sonho para atravessar o sono, dizia-se
confusamente:
— Na verdade, tudo isso se parece muito com o que La Rubaudière
conta dos duendes. Será que era um duende?

IV. APARIÇÃO A MARIUS


Certa manhã, alguns dias após essa visita de um “espírito” ao Pai
Mabeuf — era uma segunda-feira, dia da moeda de cem soldos que Marius
emprestava de Courfeyrac para dar a Thénardier —, Marius colocara a tal
moeda no bolso, e, antes de levá-la à prisão, resolveu “passear um pouco”,
esperando que, ao voltar, isso o fizesse trabalhar. Aliás, era eternamente
assim. Assim que se levantava, sentava-se diante de um livro e de uma
folha de papel para concluir rapidamente alguma tradução; naquela época,
trabalhava na versão para o francês de uma célebre querela de alemães, a
controvérsia de Gans e de Savigny; pegava Savigny, pegava Gans, lia
quatro linhas, tentava escrever uma, mas não conseguia; via uma estrela
entre ele e o papel, e levantava-se da cadeira dizendo:
— Vou sair. Isso vai me deixar disposto.
E dirigia-se ao Champ de l’Alouette.
Ali, mais que nunca, ele via a estrela, e, menos que nunca, Savigny e
Gans.
Ao retornar, tentava retomar seu trabalho, mas não conseguia; não
havia meio de atar um só dos fios rompidos dentro de seu cérebro. Então
pensava: “Amanhã não sairei. Isso me impede de trabalhar”. Mas saía
todos os dias.
Habitava mais o Champ de l’Alouette do que a casa de Courfeyrac. Seu
verdadeiro endereço era este: bulevar de la Santé, sétima árvore após a rua
Croulebarbe.
Naquela manhã, deixara a sétima árvore e fora sentar-se no parapeito
do riacho Gobelins. Um alegre sol penetrava nas tenras folhas abertas e
bem brilhantes.
Marius sonhava com “Ela”. E seu devaneio, transformando-se em
censura, recaía sobre ele; dolorosamente, pensava na ociosidade, paralisia
da alma, que tomava conta dele, e na noite que se adensava de instante em
instante diante de seus olhos, a ponto de não enxergar nem mesmo o sol.
No entanto, por meio desse penoso desenrolar de ideias indistintas, que
nem mesmo era um monólogo, tanto a ação se enfraquecia nele que nem
sequer tinha forças para querer desolar-se; era por intermédio de uma
absorção melancólica que as sensações externas chegavam-lhe. Ouvia
atrás de si, abaixo de si, nas duas margens do riacho, as lavadeiras do
Gobelins batendo as roupas, e, acima de sua cabeça, os pássaros chilreando
e cantando nos olmos. De um lado, o ruído da liberdade, da feliz falta de
preocupação, do ócio que possui asas; de outro, o rumor do trabalho. Coisa
que o fazia pensar profundamente, quase refletir, esses dois ruídos alegres.
De repente, em meio a seu oprimido êxtase, ouviu uma voz conhecida
dizendo:
— Oh! Aí está ele!
Marius levantou os olhos e reconheceu a infeliz menina que certa
manhã fora a sua casa, a filha mais velha de Thénardier, Éponine; agora
ele sabia como ela se chamava. Coisa estranha, ela emprobrecera e se
embelezara, dois passos que ela não parecia poder dar. Ela alcançara um
duplo progresso, em direção à luz e em direção à miséria. Estava descalça
e esfarrapada como no dia em que tão resolutamente havia entrado em seu
quarto, a única diferença era que os farrapos tinham dois meses a mais; os
buracos estavam maiores, os andrajos mais imundos. A mesma voz rouca,
a mesma fronte manchada e enrugada pelo calor, o mesmo olhar
desprendido, desvairado e vacilante. Tinha na fisionomia, mais do que
anteriormente, esse não sei que de assustado e de lamentável que a
passagem pela prisão acrescenta à miséria.
Trazia pontas de palha e feno nos cabelos, não como Ofélia,
enlouquecida pelo contágio da loucura de Hamlet, mas por ter dormido no
sótão de alguma estrebaria.
E apesar de tudo isso era bela. Que grande astro és, ó juventude!
Havia parado diante de Marius, transparecendo um pouco de alegria
sobre o rosto lívido e algo que se assemelhava a um sorriso. Por alguns
momentos permaneceu como se não pudesse falar.
— Então o reencontrei! — disse ela enfim. — Pai Mabeuf tinha razão,
disse que estaria aqui neste bulevar! Como o procurei! Se o senhor
soubesse! Sabia disso? Estive presa. Quinze dias! Mas me soltaram, já que
não havia provas contra mim e, além disso, por eu não estar ainda na idade
do discernimento. Faltavam dois meses para isso. Oh! Quanto o procurei!
Seis semanas. O senhor não mora mais lá?
— Não — disse Marius.
— Ah! Entendo. Por causa daquelas coisas. São desagradáveis aqueles
fanfarrões. Então o senhor se mudou! Veja só! Por que usa um chapéu
velho como esse? Um rapaz como o senhor deve andar bem trajado. Sabe,
senhor Marius, Pai Mabeuf chama o senhor de barão Marius não sei de
quê. Não é verdade que o senhor seja barão, não? Barões são uns velhos
que vão ao Luxemburgo na frente do castelo onde tem mais sol, e dão um
soldo para ler o Quotidienne. Uma vez, fui levar uma carta à casa de um
barão que era assim. Tinha mais de cem anos. Mas então, onde o senhor
está morando agora?
Marius não respondeu.
— Olhe, tem um furo em sua camisa. Preciso costurar isso.
E acrescentou, com uma expressão que pouco a pouco se entristecia:
— O senhor não parece estar contente por me ver.
Marius continuava calado; ela mesma ficou um instante em silêncio,
depois exclamou:
— Mas se eu quisesse bem poderia forçá-lo a ficar contente!
— O quê? — perguntou Marius. — O que a senhorita quer dizer?
— Ah! Antes o senhor me chamava de você! — retrucou ela.
— Está bem, o que você quer dizer?
Ela mordeu os lábios; parecia hesitar como se fosse presa de uma luta
interior. Enfim pareceu tomar uma resolução.
— Tanto faz, dá no mesmo. O senhor está triste, eu quero que fique
contente. Prometa-me apenas que vai rir. Quero ver o senhor rir e ver o
senhor dizer: “Muito bem! Que bom!” Pobre senhor Marius! O senhor
lembra? Havia prometido que me daria tudo que eu quisesse…
— Sim, mas então fale.
Ela olhou no branco dos olhos de Marius e disse:
— Tenho o endereço.
Marius ficou pálido. Todo o seu sangue refluiu ao coração.
— Que endereço?
— O endereço que o senhor havia pedido!
E acrescentou como se fizesse um esforço:
— O endereço… o senhor bem sabe…
— Sei! — balbuciou Marius.
— Daquela senhorita!
Dizendo essas palavras, suspirou profundamente.
Marius saltou do parapeito em que estava sentado e pegou-lhe
sofregamente nas mãos.
— Oh! Pois bem, conduza-me! Diga-me! Peça-me tudo o que quiser!
Onde é?
— Venha comigo — respondeu ela. — Não sei bem a rua nem o
número; é lá do outro lado, mas conheço bem a casa, vou levá-lo.
Retirou sua mão e retomou, com um tom capaz de impressionar
qualquer observador, menos Marius, embriagado e extasiado:
— Oh! Como o senhor ficou contente!
Uma nuvem cobriu o rosto de Marius. Ele agarrou Éponine pelo braço.
— Jure uma coisa!
— Jurar? — disse ela. — Que quer dizer isso? Ora! O que quer que eu
jure?
E soltou uma risada.
— Seu pai! Prometa-me, Éponine! Jure que não vai dizer esse
endereço a seu pai!
Ela virou para ele com um olhar estupefato.
— Éponine! Como sabe que me chamo Éponine?
— Prometa o que estou pedindo!
Mas ela parecia nem ouvi-lo.
— Que gentil! O senhor me chamou de Éponine!
Marius pegou-a pelos dois braços.
— Responda, então, em nome de Deus! Preste atenção ao que lhe digo,
jure que não vai contar a seu pai esse endereço!
— Meu pai? — disse ela. — Ah, sim, meu pai! Fique tranquilo. Ele
está na solitária. Além disso, acha que eu me importo com meu pai?
— Mas você ainda não prometeu! — exclamou Marius.
— Mas então me solte! — disse ela gargalhando. — Olhe como está
me sacudindo! Sim! Sim! Eu prometo! Juro! Que me custa isso? Não vou
dizer nada a meu pai. Está bem assim? Era isso?
— Nem a mais ninguém? — disse Marius.
— Nem a mais ninguém.
— Agora — tornou Marius — leve-me até lá.
— Imediatamente?
— Imediatamente.
— Vamos. Oh! Como ele está contente! — disse ela.
Após alguns passos, ela parou.
— Está me seguindo muito de perto, senhor Marius. Deixe-me ir à
frente, e siga-me sem dar na vista. Um rapaz de bem como o senhor não
deve ser visto com uma mulher como eu.
Nenhuma língua saberia dizer tudo o que estava contido nesta palavra,
mulher, pronunciada daquela forma por aquela menina.
Deu mais uma dezena de passos e tornou a parar; Marius aproximou-
se. Ela falou-lhe de lado, sem voltar-se para ele:
— A propósito, lembra-se de que me prometeu alguma coisa?
Marius apalpou seu bolso. Tudo o que possuía no mundo eram os cinco
francos destinados a Thénardier. Pegou-os e colocou-os na mão de
Éponine.
Ela abriu os dedos e deixou a moeda cair no chão, e olhando para ele
com ar sombrio:
— Não quero seu dinheiro — disse ela.

__________________________
1 Victor Escousse e Auguste Lebras: atores franceses, suicidaram-se em 1832, após o fracasso
de uma peça de teatro que haviam escrito.
2 Jacob van Ruisdael (ou Ruysdael) — pintor, desenhista e mestre paisagista holandês.
3 Némorin é o amante de Estela no célebre romance de Florian Némorin e Estela;
Schinderhannes, também conhecido como Jean l’Écorcheur, era chefe de quadrilha e foi
guilhotinado em 1803.
4 O castelo de Vauvert era tido como mal-assombrado na Idade Média. O nome da
manufatura instalada em Bièvre vem de seu fundador, Jean Gobelin.
LIVRO III
A CASA DA RUA PLUMET

I. A CASA SECRETA
EM MEADOS do século passado, um presidente do Parlamento de Paris,
querendo ocultar a amante, pois naquela época os grandes senhores
mostravam suas amantes e os burgueses as escondiam, mandou construir
“uma casinha” no bairro de Saint-Germain, na deserta rua Blomet, hoje
chamada rua Plumet, não muito longe do local então denominado Combat
des Animaux.
Essa casa se compunha de um pavilhão com um só andar; duas salas na
parte térrea, dois quartos na parte superior; uma cozinha embaixo, uma
sala de toucador em cima; sob o telhado, um sótão; e tudo isso precedido
de um jardim com uma vasta grade dando para a rua. Esse jardim tinha
aproximadamente um arpent.1 Isso era tudo o que os passantes podiam
enxergar; mas por trás do pavilhão havia um quintal estreito, e, ao fundo
deste, uma moradia baixa com dois aposentos acima de um porão, uma
espécie de lugar reservado a dissimular, se necessário, uma criança e uma
ama. Essa segunda casa se comunicava, pela parte posterior e por meio de
uma porta cuidadosamente disfarçada, com um longo e estreito corredor
calçado, sinuoso, a céu aberto, limitado por dois muros altos, o qual,
escondido prodigiosamente e como que perdido entre sebes e plantações,
acompanhava todos os ângulos e todas as sinuosidades, chegando a uma
outra porta igualmente secreta, que se abria praticamente em outro bairro,
a meio quarto de légua, na extremidade solitária da rua Babylone.
O senhor presidente entrava por aí, de modo que aqueles que o
tivessem espreitado e seguido, e observado que todos os dias,
misteriosamente, ele se dirigia a algum lugar, não pudessem suspeitar que
ir à rua Babylone era o mesmo que ir à rua Blomet. Graças a hábeis
compras de terrenos, o engenhoso magistrado pudera fazer secretamente o
trabalho de inspeção de ruas em suas propriedades, e, por consequência,
sem controle. Mais tarde, ele revendeu em pequenas parcelas, para hortas
e jardins, os lotes de terra contíguos ao corredor, e os proprietários desses
lotes, de ambos os lados, acreditavam ter diante dos olhos um muro
divisório, e nem sequer suspeitavam da existência dessa longa “tira”
pavimentada serpenteando entre duas muralhas, e entre suas platibandas e
seus pomares. Apenas os pássaros viam aquela curiosidade. É provável
que as rolinhas e os melharucos do século anterior tivessem muito a
tagarelar por conta do senhor presidente.
O pavilhão, construído em pedra no estilo Mansard, revestido e
mobiliado no estilo Watteau, com incrustrações na parte interior, fora de
moda na parte exterior, murado com tripla cerca de flores, tinha algo de
discreto, de elegante e de solene, como convém a um capricho do amor e
da magistratura.
Essa casa e esse corredor, atualmente desaparecidos, ainda existiam
uns quinze anos atrás. Em 1793, um caldeireiro havia comprado a casa
para demolir, mas, não conseguindo pagar seu preço, o Estado decretou
sua falência. De modo que foi a casa que demoliu o caldeireiro.
Desde então ela permaneceu inabitada, e lentamente foi-se arruinando,
como acontece a qualquer moradia à qual a presença do homem não mais
comunica vida. Seus velhos móveis foram mantidos, e continuava para ser
vendida ou alugada, sendo que as dez ou doze pessoas que passavam, por
ano, na rua Plumet eram advertidas disso por uma tabuleta amarela, meio
ilegível, amarrada à grade do jardim desde 1810.
Por volta do fim da Restauração, esses mesmos passantes puderam
notar que a tabuleta havia sumido e também que as janelas do primeiro
andar estavam abertas. De fato, a casa estava ocupada. Havia “cortininhas”
nas janelas, sinal de que ali habitava uma mulher.
Em outubro de 1829, um homem de certa idade apresentara-se para
alugar a casa tal como estava, incluindo, bem entendido, a casinha de trás
e o corredor que terminava na rua Babylone; ele mandou restabelecer as
entradas secretas das duas portas da passagem. A casa, como acabamos de
dizer, ainda estava mais ou menos mobiliada com as velhas peças do
presidente; o novo inquilino ordenou que se fizessem alguns consertos,
acrescentou aqui e ali o que faltava, recolocou ladrilhos no quintal,
azulejos nas paredes, degraus na escada, tacos no assoalho, vidros nas
vidraças, e, enfim, instalou-se, juntamente com uma jovem e uma criada já
idosa, sem muito ruído, mais como alguém que passa furtivamente do que
como alguém que entra em sua própria casa.
Os vizinhos não comentaram nada pela simples razão de não haver
vizinhos.
O novo inquilino, de pouco ruído, era Jean Valjean, a jovem era
Cosette. A criada se chamava Toussaint, fora salva por Jean Valjean do
hospital e da miséria, e era velha, provinciana e gaga, três qualidades
determinantes para que Jean Valjean ficasse com ela. Ele alugara a casa
com o nome de senhor Fauchelevent, como se vivesse de rendas. Com tudo
o que já foi contado mais acima, sem dúvida o leitor levou menos tempo
ainda que Thénardier para reconhecer Jean Valjean.
Por que Jean Valjean deixara o convento do Petit-Picpus? O que
acontecera?
Nada acontecera.
Como se lembram, Jean Valjean vivia feliz no convento, e tão feliz que
sua consciência acabou por se preocupar. Via Cosette todos os dias, sentia
a paternidade nascer e se desenvolver cada vez mais em seu íntimo, olhava
a menina com a ternura da alma, pensava que ela era dele, que nada
poderia tirá-la de perto, que seria assim indefinidamente, que certamente
ela se tornaria uma religiosa, sendo para isso docemente induzida a cada
dia, que assim o convento iria tornar-se o universo para ela e para ele, que
ali ele envelheceria e ela cresceria, que ali ela envelheceria e ele morreria,
que, enfim, maravilhosa esperança, nenhuma separação seria possível.
Refletindo sobre isso, acabou tendo uma sensação de perplexidade.
Interrogava-se. Perguntava-se se toda aquela felicidade era realmente dele,
se acaso não era feita da felicidade alheia, da felicidade dessa criança,
felicidade que ele vinha confiscando e furtando, ele, um velho, e se isso
não seria um roubo. Dizia-se que aquela criança tinha direito de conhecer
a vida antes de a ela renunciar; que lhe cercear, antecipadamente e de certa
forma sem consultá-la, todas as alegrias sob pretexto de preservá-la de
todas as provações, aproveitar de sua ignorância e de seu isolamento para
nela fazer germinar uma vocação artificial, era desnaturar uma criatura
humana e mentir a Deus. E quem poderia saber se, um dia, ao dar-se conta
de tudo isso e sendo religiosa a contragosto, Cosette não viria a odiá-lo?
Último pensamento, quase egoísta e menos heroico que os outros, mas que
lhe era insuportável. Resolveu deixar o convento.
Resolveu assim, reconhecendo com desolação que era necessário.
Objeções, ele não as tinha. Cinco anos de desaparecimento entre aquelas
quatro paredes deveriam necessariamente ter destruído ou dispersado
qualquer motivo de receio. Ele podia estar de volta entre os homens com
tranquilidade. Havia envelhecido, e tudo havia mudado. Quem o
reconheceria agora? E depois, vendo o lado pior, só existia perigo para ele
mesmo; e ele não tinha o direito de condenar Cosette ao claustro por ter
sido condenado à prisão. Além do mais, o que é o perigo diante do dever?
Enfim, nada o impedia de ser prudente e de tomar suas precauções.
Quanto à educação de Cosette, estava quase terminada e completa.
Uma vez tomada sua decisão, esperou uma ocasião oportuna, e ela não
demorou a aparecer. O velho Fauchelevent morreu.
Jean Valjean solicitou uma audiência com a reverenda prioresa e disse-
lhe que, com a morte de seu irmão, tomara posse de uma pequena herança,
o que lhe permitiria passar a viver sem trabalhar; e deixava o serviço do
convento e levava sua filha; mas que, como não era justo que Cosette, não
professando seus votos, tivesse sido educada gratuitamente, humildemente
suplicava à reverenda prioresa permissão para oferecer à comunidade,
como indenização pelos cinco anos que Cosette passara naquela casa, a
quantia de cinco mil francos.
Foi dessa forma que Jean Valjean saiu do Convento da Adoração
Perpétua.
Saindo do convento, ele próprio carregou, não querendo confiá-la a
ninguém, a pequena mala cuja chave trazia sempre com ele. Essa mala
intrigava Cosette, por causa do cheiro de coisa embalsamada que saía dela.
Devemos logo acrescentar que, desde então, essa mala nunca mais o
largou. Tinha-a sempre em seu quarto. Era a primeira e, às vezes, única
coisa que levava em suas mudanças. Cosette ria disso, e chamava a mala
de a inseparável, dizendo: “Tenho ciúmes dela”.
De resto, Jean Valjean não retornou ao ar livre sem experimentar uma
profunda ansiedade.
Descobriu a casa da rua Plumet e ali se refugiou. Agora usava o nome
Ultime Fauchelevent.
Ao mesmo tempo, alugou dois outros apartamentos em Paris, a fim de
chamar menos atenção do que se residisse permanentemente no mesmo
local, a fim de poder ficar, se necessário, ausente à menor preocupação
que fosse, e, enfim, para nunca mais achar-se desprevenido, como na noite
em que tão miraculosamente escapara de Javert. Esses dois apartamentos
eram habitações muito simples e de aparência pobre, situados em bairros
muito distantes, um na rua de l’Ouest, outro na rua de l’Homme-Armé.
De tempos em tempos, ia passar um mês ou seis semanas, ora na rua
de l’Homme-Armé, ora na rua de l’Ouest, em companhia de Cosette e sem
levar Toussaint. Fazia-se servir pelos porteiros e passava por um
proprietário de terras dos arredores que possuía um alojamento na cidade.
Essa grande virtude tinha três domicílios em Paris para escapar da polícia.

II. JEAN VALJEAN GUARDA NACIONAL


A bem dizer, ele vivia na rua Plumet e ajeitara sua existência do modo
que segue:
Cosette e a criada ocupavam o edifício principal; a jovem tinha o
grande quarto de dormir com paredes pintadas, a sala de toucador com
frisos dourados, a sala do presidente com tapeçarias e amplas poltronas;
ela tinha o jardim. No quarto de Cosette, Jean Valjean mandara colocar
uma cama com cortinado de damasco antigo de três cores, e um velho e
belo tapete persa comprado na rua Figuier-Saint-Paul, na loja da senhora
Gaucher, e, para corrigir a severidade daquelas magníficas velharias,
juntou a esse traste usado todos os pequenos móveis e objetos alegres e
graciosos apropriados às jovens, como prateleiras, estantes e livros
dourados, estojo, mata-borrão, escrivaninha com incrustações de
madrepérola, estojo de costura em prata dourada, objetos de lavatório em
porcelana do Japão. Longas cortinas de damasco, de fundo vermelho e três
cores, semelhantes ao do cortinado da cama, pendiam das janelas do andar
superior. Na parte térrea, cortinas de tapeçaria. O inverno todo a pequena
casa de Cosette ficava aquecida de alto a baixo.
Ele habitava aquela espécie de casa de porteiro, no fundo do quintal;
tinha um colchão sobre uma cama de vento, uma mesa de pinho, duas
cadeiras de palha, um jarro de água de faiança, alguns livros em uma
prateleira, sua inseparável valise em um canto, e o fogo jamais era aceso.
Jantava com Cosette, e, sobre a mesa, sempre havia um pão escuro para
ele. Quando Toussaint entrou para sua casa, ele lhe disse: “É esta senhorita
que é a dona da casa”.
— E o se-senhor? — replicara Toussaint admirada.
— Eu sou mais do que o dono, sou o pai.
No convento, Cosette havia aprendido a cuidar de uma casa e
controlava as despesas, que eram muito modestas. Todos os dias, Jean
Valjean dava o braço a Cosette e a levava a passear. Iam ao Luxemburgo, à
alameda menos frequentada; e, todo domingo, iam à missa, sempre em
Saint-Jacques-du-Haut-Pas, por ser bem distante. Como esse era um bairro
muito pobre, dava muitas esmolas, e os infelizes o rodeavam na igreja; foi
isso que lhe valeu a carta dos Thénardier: Ao senhor benfeitor da igreja de
Saint-Jacques-du-Haut-Pas. Gostava de levar Cosette para visitar os
indigentes e os enfermos. Nenhum estranho entrava na casa da rua Plumet.
Toussaint fazia as compras e o próprio Jean Valjean ia buscar água em uma
fonte que ficava bem próxima, no bulevar. Guardava-se a lenha e o vinho
em uma espécie de cavidade meio subterrânea, forrada de pedrinhas,
vizinha à porta da rua Babylone, e que anteriormente servira de gruta ao
senhor presidente, pois naquele tempo não havia amor sem gruta.
Na porta secreta da rua Babylone, havia uma dessas caixinhas
destinadas às cartas e aos jornais, só que os três moradores do edifício da
rua Plumet não recebiam nem cartas nem jornais; toda a utilidade da
caixa, outrora intermediária de namoricos e confidente de um togado
peralta, limitava-se agora ao recebimento dos avisos do cobrador de
impostos e aos bilhetes da guarda. Pois o senhor Fauchelevent, rendeiro,
fazia parte da Guarda Nacional; não conseguira escapar às estreitas malhas
do recenseamento de 1831. As informações municipais tomadas nessa
época remontavam ao convento do Petit-Picpus, espécie de nuvem
impenetrável e sagrada de onde Jean Valjean saíra venerável aos olhos da
administração de seu bairro, e, por conseguinte, digno de participar da
guarda.
Três ou quatro vezes por ano, Jean Valjean envergava seu uniforme e
fazia sentinela; de muito bom grado, aliás, pois parecia-lhe o disfarce
ideal que o mesclava a todo o mundo deixando-o ao mesmo tempo
solitário. Acabava de chegar aos sessenta anos, idade da isenção legal, mas
não aparentava mais de cinquenta; além disso, não tinha vontade alguma
de desligar-se de seu sargento-mor e de debater com o conde de Lobau,
chefe da Guarda Nacional de Paris; não tinha registro civil, ocultava seu
nome, ocultava sua identidade, ocultava sua idade, ocultava tudo; mas,
acabamos de dizer, gostava de ser um guarda nacional. Parecer-se com
qualquer cidadão que pague suas contribuições, essa era toda a sua
ambição. Esse homem tinha por ideal, interiormente, o anjo,
exteriormente, o burguês.
No entanto, notemos um detalhe. Quando Jean Valjean saía com
Cosette, vestia-se como descrito agora, e ficava realmente com a aparência
de um antigo oficial. Quando saía só, o que ocorria mais habitualmente à
noite, trajava sempre uma calça e uma jaqueta de operário, e usava um
boné cobrindo-lhe os olhos. Seria por precaução ou humildade? As duas
coisas. Cosette estava habituada ao lado enigmático de seu destino, e mal
reparava nas singularidades de seu pai. Quanto a Toussaint, venerava Jean
Valjean, e achava bem feito tudo o que ele fazia. Certo dia, o açougueiro,
que entrevira Jean Valjean, disse a ela: “É um homem esquisito”. Ela
respondeu: “É um-um santo”.
Nem Jean Valjean, nem Cosette, nem Toussaint saíam ou entravam por
outra porta que não a da rua Babylone. A menos que fossem avistados por
entre as grades do jardim, era difícil adivinhar que moravam na rua
Plumet. A grade estava sempre fechada. Jean Valjean deixara o jardim
inculto para que não atraísse a atenção.
Nisso talvez se enganasse.

III. FOLIIS AC FRONDIBUS2


Esse jardim, entregue assim a ele mesmo havia mais de meio século,
fora se tornando extraordinário e belo. Os passantes de quarenta anos atrás
paravam na rua para contemplá-lo, sem suspeitar dos segredos que
escondia atrás de suas espessas folhagens viçosas e verdes. Naquela época,
mais de um sonhador deixou que seus olhos e seu pensamento várias vezes
penetrassem indiscretamente através das barras da antiga grade trancada,
retorcida, pouco firme, presa a dois pilares esverdeados e cobertos de
musgo, e estranhamente coroada por um frontão de indecifráveis
arabescos.
Havia um banco de pedra em um canto, uma ou duas estátuas
emboloradas, algumas treliças de madeira, despregadas pelo tempo,
apodrecendo sobre o muro; não havia mais alamedas nem grama, só mato
por toda parte. A jardinagem fora embora, a natureza estava de volta. As
ervas daninhas abundavam, aventura admirável para um pobre pedaço de
terra. A festa dos goivos era esplêndida. Nada naquele jardim contrariava
o sagrado esforço das coisas em direção à vida; ali, o crescimento
venerável estava em casa. As árvores haviam se abaixado até alcançar os
espinheiros, os espinheiros haviam se elevado até alcançar as árvores, as
plantas foram trepando, os galhos foram se dobrando, o que rastejava pelo
chão fora encontrar o que desabrochava no ar, o que flutuava ao vento
pendera em direção ao que se arrastava pelo musgo; troncos, ramos,
folhas, fibras, moitas, gavinhas, sarmentos, espinhos haviam se misturado,
atravessado, casado, confundido; a vegetação, em um abraço estreito e
profundo, ali havia celebrado e consumado, sob os olhos satisfeitos do
Criador, naquele recinto de noventa metros quadrados, o sagrado mistério
de sua fraternidade, símbolo da fraternidade humana. Aquele jardim já não
era um jardim; era uma mata colossal, quer dizer, alguma coisa
impenetrável como uma floresta, populosa como uma cidade, trêmula
como um ninho, sombria como uma catedral, perfumada como um buquê,
solitária como um túmulo, vivaz como uma multidão.
Na primavera, aquele enorme bosque, livre por trás de sua grade e
dentro de seus quatro muros, entrava no cio, obedecendo ao surdo trabalho
da germinação universal, estremecia ao sol nascente como um animal que
aspira os eflúvios do amor cósmico e que sente a seiva de abril subir e
borbulhar em suas veias e, sacudindo ao vento sua prodigiosa cabeleira
verde, semeava sobre a terra úmida, sobre as estátuas desgastadas, sobre a
escadaria que desabava do pavilhão, e até sobre o calçamento da rua
deserta, as flores, como estrelas, o orvalho, como pérolas, a fecundidade, a
beleza, a vida, a alegria, os perfumes. Ao meio-dia, mil borboletas brancas
ali se refugiavam, e era um espetáculo divino ver turbilhonar em flocos, na
sombra, essa neve viva de verão. Ali, em meio às trevas de verdor, uma
multidão de vozes inocentes falava docemente à alma, e aquilo que os
gorjeios haviam se esquecido de dizer, os zunidos completavam. Ao
anoitecer, um vapor de devaneio elevava-se do jardim, envolvendo-o; um
véu de neblina, uma tristeza celeste e calma o cobriam; o odor inebriante
das damas-da-noite e das madressilvas desprendia-se de toda parte como
um veneno delicado e sutil; ouviam-se os últimos cantos dos pássaros
acomodando-se na ramagem; sentia-se essa intimidade sagrada entre
pássaro e árvore, de dia, as asas mesclando-se às folhas, à noite, as folhas
protegendo as asas.
No inverno, o bosque ficava negro, molhado, eriçado, trêmulo, e
deixava a casa um pouco à vista. Viam-se, em vez de flores nos galhos e de
orvalho nas flores, longas fitas prateadas deixadas pelos caracóis sobre o
frio e espesso tapete de folhas amareladas; mas, de qualquer maneira, sob
qualquer aspecto, em qualquer estação, primavera, inverno, verão, outono,
esse pequeno espaço respirava melancolia, contemplação, solidão,
liberdade, ausência do homem, presença de Deus; e a velha grade
enferrujada parecia dizer: este jardim me pertence.
Por mais que as ruas de Paris estivessem em volta, os clássicos e
esplêndidos palacetes da rua Varennes a dois passos, a cúpula de Invalides
bem próxima, a câmara dos deputados não muito longe; por mais que as
carroças da rua Bourgogne e da rua Saint-Dominique rodassem
faustosamente pela vizinhança, por mais que os ônibus amarelos, marrons,
brancos, vermelhos se cruzassem na próxima encruzilhada, a rua Plumet
era um deserto; e a morte dos antigos proprietários, a passagem de uma
revolução, a ruína de antigas fortunas, a ausência, o esquecimento,
quarenta anos de abandono e isolamento haviam bastado para fazer voltar
àquele privilegiado local as samambaias, o verbasco branco, a cicuta, as
aquileias, as ervas espigadas, as grandes plantas de largas folhas verde-
pálido, os lagartos, os escaravelhos, os insetos inquietos e ligeiros, para
fazer sair das entranhas da terra e reaparecer entre aqueles quatro muros
não sei que grandeza selvagem e feroz, e para que a natureza, que
desconcerta os arranjos mesquinhos do homem e se estende sempre
completamente onde quer que seja, tanto na formiga quanto na águia,
viesse estender-se em um reles jardim parisiense, com tanta rudeza e
majestade quanto se fosse em uma floresta virgem do Novo Mundo.
Com efeito, nada é pequeno; quem quer que tenha experimentado as
profundas penetrações da natureza sabe disso. Embora nenhuma satisfação
absoluta seja dada à filosofia, quer ao circunscrever as causas, quer ao
limitar os efeitos, quem contempla cai em êxtases sem fim por causa de
todas essas decomposições de forças que levam à unidade. Tudo trabalha
para tudo.
A álgebra se aplica às nuvens; a irradiação do astro traz proveito às
rosas; nenhum pensador ousaria afirmar que o perfume do pinheiro é inútil
para as constelações. Quem pode, então, calcular o trajeto de uma
molécula? Que sabemos sobre se a criação de mundos não é determinada
pela queda de grãos de areia? Quem é que conhece os fluxos e refluxos
recíprocos do infinitamente grande e do infinitamente pequeno, o ecoar
das causas nos precipícios do ser, e as avalanches da criação? O menor ser
vivo tem importância; o pequeno é grande, o grande é pequeno; tudo está
em equilíbrio na necessidade; assustadora visão para o espírito. Entre os
seres e as coisas há relações prodigiosas; nesse inesgotável conjunto,
desde o sol até o pulgão, nada deve ser desprezado; temos necessidade uns
dos outros. A luz não carrega os perfumes terrestres pelo espaço sem saber
o que faz deles; a noite distribui essência estelar pelas flores adormecidas.
Todos os pássaros voadores trazem nas patas o fio do infinito. A
germinação se complica com a eclosão de um meteoro e com a bicada da
andorinha quebrando o ovo, e põe de frente o nascimento de um verme e o
advento de Sócrates. Onde termina o telescópio começa o microscópio.
Qual dos dois tem maior alcance? Escolham. Uma mancha de bolor é uma
plêiade de flores; uma nebulosa é um formigueiro de estrelas. A mesma
promiscuidade, e mais incrível ainda, ocorre entre as coisas da inteligência
e os fatos da substância. Os elementos se misturam, se combinam, se
casam, se multiplicam uns pelos outros, a ponto de fazerem com que o
mundo material e o mundo moral cheguem à mesma claridade. O
fenômeno está em perpétua inclinação sobre si mesmo. Nas vastas trocas
cósmicas, a vida universal vai e vem em quantidades desconhecidas,
empurrando tudo para o invisível mistério dos eflúvios; empregando tudo;
não perdendo um só sonho de nenhum sono; semeando um micróbio aqui,
fazendo ali um astro em migalhas; oscilando e serpenteando; fazendo da
luz uma força e do pensamento um elemento disseminado e indivisível;
dissolvendo tudo, menos este ponto geométrico, o eu; reconduzindo tudo à
alma-átomo; desabrochando tudo em Deus; encadeando, desde a mais
importante até a mais insignificante, todas as atividades na escuridão de
um mecanismo vertiginoso; ligando o voo de um inseto ao movimento da
terra; subordinando — quem sabe? —, nem que fosse apenas pela
identidade da lei, a evolução do cometa no firmamento ao girar dos fósseis
microscópicos na gota de água. Máquina feita de espírito. Enorme
engrenagem cujo primeiro motor é o mosquito e a última roda é o zodíaco.

IV. MUDANÇA DE GRADE


Parecia que aquele jardim, outrora criado para esconder os mistérios
libertinos, havia se transformado e tornado próprio para abrigar os
mistérios castos. Já não tinha nem caramanchões, nem canteiros de relva,
nem grutas; tinha uma magnífica escuridão desgrenhada, caindo como um
véu por todos os lados. Era Pafos transformado em Éden. Não se sabe que
arrependimento havia saneado aquele retiro. Aquela criadora de buquês
agora oferecia suas flores à alma. Esse gracioso jardim, antigamente tão
comprometido, voltava à virgindade e ao pudor. Um presidente ajudado
por um jardineiro, um homem que julgava dar continuidade a Lamoignon
e outro que julgava dar continuidade a Le Nôtre, haviam contornado,
talhado, cortado, enfeitado, moldado esse jardim para a galanteria; a
natureza tornou a apoderar-se dele, encheu-o de sombra, e arranjou-o para
o amor.
Naquela solidão, também havia um coração que estava totalmente
pronto. O amor só precisava mostrar-se; ali havia um templo composto de
verdura, de erva, de musgo, de suspiros de pássaros, de brandas trevas, de
ramos agitados, e de uma alma feita de ternura, de fé, de candura, de
esperança, de aspiração e de ilusão.
Cosette saíra do convento quase criança ainda; tinha pouco mais de
catorze anos, e estava numa “idade ingrata”; já dissemos, com exceção de
seus olhos, parecia mais ser feia que bonita. No entanto, não tinha nenhum
traço que não fosse gracioso, mas era desajeitada, magra, tímida e ousada
ao mesmo tempo; enfim, uma grande jovenzinha.
Sua educação se completara; quer dizer, fora instruída em religião, e
até, e sobretudo, em devoção; depois em “história”, isto é, aquilo que no
convento chamam geografia, gramática, os particípios, os reis da França,
um pouco de música, um pouco de desenho, etc., mas, de resto, ela
ignorava tudo, o que é um encanto, e um perigo. A alma de uma jovem não
deve ser deixada às escuras; mais tarde, podem-se criar miragens muito
fortes e muito vivas dentro de um quarto escuro. Ela deve ser doce e
discretamente iluminada, mais pelo reflexo da realidade que por sua luz
direta e dura. Meia-luz útil e graciosamente austera, que dissipe os medos
pueris e impeça as quedas. Só o instinto maternal, intuição admirável que
se compõe das lembranças da virgem e da experiência da mulher, sabe
como e de que deve ser feita essa meia-luz. Nada substitui tal instinto.
Para formar a alma de uma jovem, nem todas as religiosas do mundo
valem uma mãe.
Cosette não teve mãe. Teve apenas muitas mães, no plural.
Quanto a Jean Valjean, havia em seu íntimo todas as ternuras e todas as
atenções juntas, mas não passava de um velho homem que nada sabia.
Ora, nesta obra da educação, neste sério negócio da preparação de uma
mulher para a vida, quanta ciência é necessária para lutar contra a grande
ignorância chamada inocência!
Nada prepara melhor uma jovem para as paixões do que o convento. O
convento leva o pensamento para o lado do desconhecido. O coração,
dobrado sobre ele mesmo, torna-se oco não podendo se expandir, e se
aprofunda não podendo se abrir. Daí formam-se visões, suposições,
conjecturas, esboços de romances, aventuras desejadas, construções
fantasiosas, edifícios inteiros construídos na obscuridade interior do
espírito; sombrias e secretas moradas onde as paixões encontram
rapidamente acolhida, desde que a grade ultrapassada permita-lhes entrar.
O convento é uma compressão que, para triunfar sobre o coração humano,
deve durar a vida toda.
Ao deixar o convento, Cosette não podia encontrar nada de mais
agradável e de mais perigoso do que a casa da rua Plumet. Era a
continuação da solidão, com um princípio de liberdade; um jardim
fechado, mas uma natureza rude, opulenta, voluptuosa e perfumada; os
mesmos sonhos do convento, mas entrevendo rapazes; uma grade, mas
dando para a rua.
No entanto, repetimos, chegando aí, não era mais que uma criança.
Jean Valjean entregou-lhe o jardim inculto. “Faça dele o que quiser”,
disse-lhe.
Isso divertia Cosette; ela remexia todas as moitas e todas as pedras,
procurava “bichinhos”, brincava, enquanto esperava a hora de sonhar; ela
amava esse jardim pelos insetos que ali encontrava sob seus pés, por entre
a relva, enquanto esperava amá-lo pelas estrelas que dali veria através dos
ramos acima de sua cabeça.
E também amava seu pai, quer dizer, Jean Valjean, de todo o coração,
com uma inocente paixão filial que fazia dele um companheiro desejado e
encantador. Como se lembram, o senhor Madeleine lia bastante, e Jean
Valjean continuava a fazê-lo; chegou então a falar bem, possuía a riqueza
secreta e a eloquência de uma inteligência humilde e verdadeira que foi
cultivada espontaneamente. Restara-lhe apenas a aspereza suficiente para
temperar sua bondade; era um espírito rude com um coração terno. No
Luxemburgo, em suas conversas, dava longas explicações sobre tudo,
recorrendo ao que havia lido, recorrendo também ao que havia sofrido.
Enquanto o escutava, os olhos de Cosette erravam vagamente.
Esse homem simples bastava ao pensamento de Cosette, da mesma
forma que aquele jardim selvagem bastava a seus olhos. Quando já tinha
perseguido bastante as borboletas, ela chegava perto dele arquejante e
dizia: “Ah! Como eu corri!” E ele beijava sua fronte.
Cosette adorava o bom homem. Estava sempre perto dele. Onde Jean
Valjean estivesse, estava seu bem-estar. Como Jean Valjean não ficava
nem na casa principal nem no jardim, agradava-lhe mais o quintal dos
fundos do que o jardim cheio de flores; e mais a casinha mobiliada com as
cadeiras de palha do que a ampla sala cheia de tapeçarias e de poltronas
estofadas. Às vezes, Jean Valjean dizia-lhe, sorrindo pela felicidade de ser
importunado:
— Vá para sua casa! Deixe-me um pouco sozinho!
Ela passava-lhe encantadoras e ternas reprimendas que tanta graça têm
quando dirigidas da filha ao pai.
— Pai, sinto muito frio em seu quarto; por que o senhor não coloca um
tapete e um fogareiro aqui?
— Querida, tem tanta gente que vale mais do que eu e que nem sequer
tem um teto sobre a cabeça.
— Então por que no meu quarto tem fogo e tudo o que é preciso?
— Porque você é mulher e criança.
— Ora! Os homens devem passar frio e viver mal?
— Alguns homens.
— Pois bem, virei aqui tantas vezes que o senhor será obrigado a
acender o fogo.
E também lhe dizia:
— Pai, por que o senhor come um pão horrível como esse?
— Porque sim…, minha filha.
— Pois bem, se o senhor come dele, eu também comerei.
Então, para que Cosette não comesse o pão escuro, Jean Valjean comia
pão de trigo.
Cosette lembrava apenas confusamente de sua infância, mas orava pela
manhã e à noite por sua mãe, a quem não conhecera. Os Thénardier
restaram-lhe como duas figuras medonhas em estado de sonho. Lembrava-
se de que, “um dia, de noite”, havia ido buscar água em um bosque. Ela o
imaginava muito longe de Paris. Parecia-lhe ter começado a viver em um
abismo e que fora Jean Valjean quem a tirara dele. Sua infância dava-lhe a
impressão de um tempo em que à sua volta só existiam centopeias,
aranhas e serpentes. Quando, à noite, antes de adormecer, seu pensamento
não fazia uma ideia muito clara de ser a filha de Jean Valjean e de que ele
fosse seu pai, imaginava que a alma de sua mãe passara para aquele bom
homem e viera ficar a seu lado.
Quando ele estava sentado, ela apoiava o rosto em seus cabelos
brancos e pensava, deixando uma lágrima cair silenciosamente: “Talvez
este homem seja minha mãe!”
Embora pareça estranho dizer, em sua profunda ignorância de menina
educada no convento, e sendo, aliás, a maternidade absolutamente
ininteligível para a virgindade, Cosette acabara por imaginar que tivera o
mínimo possível de mãe. Dessa mãe, não conhecia sequer o nome. Todas
as vezes que lhe ocorria perguntar a Jean Valjean, ele se calava. Se ela
repetia a pergunta, ele respondia com um sorriso. Uma vez, ela insistiu; o
sorriso acabou em uma lágrima.
Esse silêncio de Jean Valjean cobria Fantine de obscuridade.
Seria prudência? Seria respeito? Seria temor de entregar aquele nome
aos acasos de outra memória que não a dele?
Enquanto Cosette era criança, Jean Valjean gostava de lhe falar de sua
mãe; quando se tornou moça, isso ficou-lhe impossível. Parecia-lhe não
poder ousar. Seria por causa de Cosette? Seria por causa de Fantine? Ele
sentia uma espécie de horror religioso com a ideia de fazer aquela sombra
entrar no pensamento de Cosette, e de colocar a morte como uma terceira
parte no destino deles. Quanto mais essa sombra lhe era sagrada, mais lhe
parecia temerosa. Pensava em Fantine e se sentia pesado de silêncio. Via
vagamente nas trevas algo que se assemelhava a um dedo sobre uma boca.
Acaso todo o pudor que existira em Fantine e que, em vida, saíra
violentamente de seu interior, teria voltado após sua morte pousando sobre
ela, velando, indignado, a paz da morta, e, bravio, guardando-a em seu
túmulo? Jean Valjean, sem saber, sentia a pressão de tudo isso? Nós, que
acreditamos na morte, não rejeitaríamos essa explicação misteriosa. Vinha
daí a impossibilidade de pronunciar, mesmo para Cosette, este nome:
Fantine.
Um dia Cosette lhe disse:
— Pai, esta noite, eu vi minha mãe em sonhos. Ela tinha duas grandes
asas. Em vida, minha mãe deve ter chegado perto da santidade.
— Pelo martírio — respondeu Jean Valjean.
De resto, Jean Valjean estava feliz.
Quando Cosette saía com ele, apoiava-se em seu braço, orgulhosa,
feliz, na plenitude do coração. Jean Valjean, com todos esses sinais de uma
ternura tão exclusiva e tão satisfeita apenas com ele, sentia seu
pensamento fundir-se em delícias. O pobre homem estremecia, inundado
de uma alegria angelical; afirmava-se com entusiasmo que isso duraria a
vida inteira; e pensava que, na verdade, não havia sofrido tanto assim para
merecer tão radiante felicidade. E agradecia a Deus, das profundezas de
sua alma, por ter permitido que ele fosse amado dessa forma, ele, um
miserável, por essa criatura inocente.

V. A ROSA DESCOBRE QUE É UMA MÁQUINA DE


GUERRA
Um dia, Cosette olhou-se por acaso em seu espelho e disse: “Veja só!”
Quase lhe pareceu que era bonita. Isso a lançou em uma perturbação
singular. Até aquele momento, nunca havia pensado em sua aparência. Via-
se em seu espelho, mas na verdade não se olhava. Além disso, várias vezes
lhe haviam dito que era feia; só Jean Valjean dizia-lhe ternamente: “Mas
não! Não!” Fosse como fosse, Cosette sempre acreditou ser feia, e crescera
com essa ideia, com a fácil resignação da infância. Eis que, subitamente,
seu espelho lhe disse o mesmo que Jean Valjean: “Mas não!” Não
conseguiu dormir. “E se eu for bonita?”, pensava. “Como seria engraçado
se eu fosse bonita!” Lembrava de suas companheiras cuja beleza
impressionava o convento, e dizia-se: “Quer saber, vou ser como a
senhorita tal!”
No dia seguinte, olhou-se novamente, mas não por acaso, e duvidou:
“Onde eu estava com a cabeça?”, disse. “Não, eu sou feia.” Mas
simplesmente havia dormido mal, estava com os olhos fundos e pálida. Na
véspera, não havia se sentido muito contente por acreditar em sua beleza,
mas ficou triste por não acreditar mais nela. Não tornou a se olhar, e
durante mais de quinze dias tratou de pentear-se de costas para o espelho.
À noite, após o jantar, habitualmente ia para a sala fazer tapeçaria ou
outro trabalho que aprendera no convento, e Jean Valjean lia a seu lado.
Certa vez, ela levantou os olhos de seu trabalho e surpreendeu-se com a
maneira inquieta com que seu pai olhava para ela.
Uma outra vez, na rua, pareceu-lhe que alguém, que ela não pôde ver,
dizia atrás dela: “Bonita mulher! Mas mal arrumada!” “Bah!”, pensou ela.
“Não é comigo. Sou bem arrumada e feia.” Nessa ocasião, usava seu
chapéu de pelúcia e seu vestido de merino.
Um dia, finalmente, estava no jardim, e ouviu a velha Toussaint dizer:
“O senhor reparou como a menina está ficando bonita?” Cosette não ouviu
o que seu pai respondeu, mas as palavras de Toussaint causaram-lhe uma
espécie de comoção. Saiu do jardim, foi para seu quarto, correu até o
espelho, onde havia três meses não se olhava, e soltou um grito. Ela
acabava de se deslumbrar consigo mesma.
Estava bela e linda; não podia impedir-se de ter a mesma opinião de
Toussaint e de seu espelho. Seu corpo se delineara, sua pele tornara-se
mais clara, seus cabelos ganharam brilho, um esplendor desconhecido
iluminava seus olhos azuis. A consciência de sua beleza chegou-lhe
inteira, em um minuto, como um clarão repentino. Aliás, os outros a
notavam; Toussaint o dizia, era dela, evidentemente, que falava aquele
passante, não havia mais como duvidar. Ela voltou ao jardim sentindo-se
uma rainha, ouvindo os pássaros cantar; em pleno inverno, via o céu
dourado, o sol nas árvores, flores nos arbustos, encantada, enlouquecida,
com um contentamento inexprimível.
Por seu lado, Jean Valjean sentia um profundo e indefinível aperto no
coração.
É que, na verdade, já havia algum tempo, ele contemplava aterrorizado
essa beleza que aparecia, cada dia mais fulgurante, no meigo rosto de
Cosette. Aurora risonha para todos, lúgubre para ele.
Cosette já era bela muito antes de o perceber. Mas, desde o primeiro
dia, a luz inesperada que vagarosamente despontava, e envolvia pouco a
pouco toda a pessoa daquela jovem, feriu os sombrios olhos de Jean
Valjean. Ele sentiu que ocorria uma mudança em uma vida feliz, tão feliz
que não ousava mexer em nada, temendo causar algum transtorno. Esse
homem que passara por todo tipo de desgraça, que ainda sangrava por
todos os golpes de seu destino, que quase fora mau e que quase se tornara
santo, que, depois de ter arrastado as correntes da prisão, arrastava agora a
corrente invisível, mas pesada, da infâmia indefinida, esse homem que a
lei ainda não liberara e que, a cada instante, podia novamente ser preso e
levado da obscuridade de sua virtude à claridade do opróbrio público, esse
homem aceitava tudo, desculpava tudo, perdoava tudo, bendizia tudo,
queria bem a tudo, só pedia à Providência, aos homens, às leis, à
sociedade, à natureza, ao mundo, uma coisa, que Cosette o amasse.
Que Cosette continuasse a amá-lo! Que Deus não impedisse o coração
dessa criança de vir até ele, e de ficar com ele! Ser amado por Cosette
fazia com que se sentisse curado, descansado, pacificado, satisfeito,
recompensado, coroado. Ser amado por Cosette, não pedia mais que isso.
Se lhe dissessem: “Quer ficar melhor?”, ele responderia: “Não!” Se Deus
lhe dissesse: “Quer o céu?”, ele responderia: “Eu sairia perdendo”.
Tudo o que pudesse alterar essa situação, ainda que superficialmente,
fazia-o estremecer como se fosse o começo de outra coisa. Jean Valjean
nunca soube muito bem o que era a beleza de uma mulher, mas, por
instinto, compreendia que era terrível.
Essa beleza, que desabrochava cada vez mais triunfante e soberba a seu
lado, sob seus olhos, no rosto ingênuo e formidável da menina, do fundo
de sua feiura, de sua velhice, de sua miséria, de sua reprovação, de seu
desalento, olhava-a assustado.
Pensava: “Como é bonita! O que vai ser de mim?”
Nisso, aliás, estava a diferença entre sua ternura e a ternura de uma
mãe. O que ele via com angústia, uma mãe veria com alegria.
Os primeiros sintomas não demoraram a se manifestar.
Desde o dia seguinte àquele em que dissera a si mesma: “Realmente,
eu sou bonita!”, Cosette passou a cuidar de seu vestuário. Lembrou-se do
que dissera o passante: “Bonita, mas mal arrumada”, sopro de oráculo que
passara por ela e se esvanecera após colocar em seu coração um dos dois
germes que devem, com o tempo, ocupar toda a vida da mulher, a graça
sedutora. O outro germe é o amor.
Tendo fé em sua beleza, toda a alma feminina expandiu-se nela. Teve
horror do merino e vergonha da pelúcia. Seu pai jamais lhe recusara
alguma coisa. Logo ficou conhecendo toda a ciência do chapéu, do vestido,
das capinhas, das botinhas, dos punhos, do tecido que combina, da cor que
cai melhor, essa ciência que faz da mulher parisiense algo de tão
encantador, de tão profundo e de tão perigoso. O termo mulher estonteante
foi inventado para a mulher parisiense.
Em menos de um mês, a pequena Cosette tornou-se, naquela deserta
rua Babylone, uma das mulheres, não só mais belas, o que já é alguma
coisa, mas “mais elegantes” de Paris, o que é muito mais. Ela gostaria de
reencontrar “o tal passante” para ver o que ele diria, e para “ensinar a ele!”
O fato é que ela estava encantadora de qualquer ângulo, e distinguia
perfeitamente um chapéu de Gérard de um chapéu de Herbaut.3
Jean Valjean via essas transformações com ansiedade. Ele, que se
sentia apenas capaz de se arrastar, quando muito caminhar, via asas
nascendo em Cosette.
De resto, nada além de uma simples inspeção nos trajes de Cosette, e
qualquer mulher perceberia que ela não tinha mãe. Certas pequenas
correções, certas convenções especiais, não haviam sido observadas por
Cosette. Por exemplo, uma mãe diria que uma jovem não deve se vestir
com damasco.
A primeira vez que Cosette saiu com seu vestido e sua capinha de
damasco preto, e seu chapéu de crepe branco, veio tomar o braço de Jean
Valjean, alegre, radiante, corada, altiva, brilhante. “Pai”, disse ela, “o que
acha de mim assim?” Jean Valjean respondeu com uma voz semelhante à
amarga voz de um invejoso: “Encantadora!” Durante o passeio, ele portou-
se como de costume. Ao voltar perguntou a Cosette:
— Então, você não vai mais usar aquele vestido e aquele chapéu, não
é?
Isso se passava no quarto de Cosette. Ela se voltou para o porta-casaco
do guarda-roupa onde seus trajes de interna estavam pendurados.
— Essa fantasia! Pai, o que quer que eu faça com isso? Não, nunca
mais vou usar essa coisa horrorosa — disse. — Com um negócio daqueles
na cabeça, fico parecendo madame Chien-fou.4
Jean Valjean suspirou profundamente.
A partir desse momento, ele percebeu que Cosette, que antes sempre
pedia para ficar, dizendo: “Pai, eu me divirto mais aqui com o senhor”,
agora sempre pedia para sair. De fato, de que serve ter uma bela aparência
e uma linda roupa, se não for para mostrá-las?
Notou também que Cosette já não gostava tanto do pátio dos fundos.
Agora, ela permanecia de bom grado no jardim, passeando sem se
aborrecer diante da grade. Jean Valjean, arisco, não punha os pés no
jardim. Ficava no seu quintal, como os cães.
Cosette, sabendo-se bela, perdeu a graça de o ignorar; graça delicada,
pois a beleza realçada pela ingenuidade é inefável, e nada é adorável como
uma inocente formosa caminhando, sem saber, com a chave de um paraíso
na mão. Mas o que ela perdeu em graça ingênua, ganhou em pensativo e
sério encanto. Toda a sua pessoa, impregnada pelas alegrias da juventude,
da inocência e da beleza, respirava uma melancolia esplêndida.
Foi por essa ocasião que Marius, depois de passados seis meses, tornou
a vê-la no Luxemburgo.

VI. A BATALHA COMEÇA


Cosette ficava em sua sombra, como Marius na dele, completamente
disposta a incendiar-se.
O destino, com sua misteriosa e fatal paciência, ia aproximando
lentamente uma da outra essas duas criaturas saturadas e abatidas pelas
tempestuosas eletricidades da paixão, essas duas almas que carregavam o
amor, como duas nuvens que carregam o raio, e que deviam encostar-se e
confundir-se em um olhar, como as nuvens em um relâmpago.
Tanto se abusou do olhar nos romances de amor que ele acabou
perdendo consideração. Agora, mal se ousa dizer que dois seres se amaram
porque trocaram olhares. No entanto, é assim que nasce o amor, e
unicamente assim. O resto é resto, e vem depois. Nada é mais real que
esses grandes abalos que duas almas provocam mutuamente ao trocar tais
faíscas.
Naquele exato momento em que Cosette, sem o saber, lançou o olhar
que perturbou Marius, Marius não se deu conta de que ele também lançara
um olhar que perturbou Cosette.
Ele lhe fez o mesmo mal e o mesmo bem.
Havia bastante tempo ela o via e o examinava, como as jovens
costumam examinar e ver, olhando para outras coisas. Quando Marius
ainda achava Cosette feia, Cosette já o achava belo. Mas, como não
prestasse atenção a ela, pouco lhe importava o rapaz.
Todavia, ela não podia impedir-se de pensar que ele tinha lindos
cabelos, lindos olhos, belos dentes, uma voz agradável, quando o ouvia
conversar com seus companheiros, que não tinha um belo modo de andar,
é verdade, mas que tinha uma graça particular, que não parecia tolo, que
toda a sua pessoa era nobre, afável, simples e altiva, e que parecia ser
pobre, mas, enfim, tinha boa aparência.
No dia em que seus olhares se cruzaram, e afinal se disseram
repentinamente essas primeiras coisas obscuras e inefáveis que os olhos
balbuciam, Cosette em princípio não compreendeu. Voltou pensativa para
a casa da rua de l’Ouest, onde Jean Valjean, como de costume, fora passar
seis semanas. No dia seguinte, ao despertar, pôs-se a pensar naquele
desconhecido, por tanto tempo indiferente e frio, que agora parecia prestar
atenção a ela, mas cuja atenção não lhe pareceu de forma alguma
agradável. Era mais uma cólera o que sentia em relação àquele belo
orgulhoso. Uma manifestação de guerra remexeu-se em seu interior.
Parecia-lhe, e ela experimentava com isso uma alegria ainda bem infantil,
que ela iria se vingar.
Sabendo-se bela, ela bem sentia, embora de forma indistinta, que tinha
uma arma. As mulheres brincam com sua beleza do mesmo modo que as
crianças com sua espada. E com ela se machucam.
Vocês devem se lembrar das hesitações de Marius, de suas palpitações,
de seus terrores. Permanecia sentado em seu banco, não se aproximava. O
que causava despeito em Cosette. Um dia ela disse a Jean Valjean: “Pai,
vamos passear um pouco daquele outro lado”. Vendo que Marius não vinha
até ela, ela foi até ele. Em casos semelhantes, toda mulher parece Maomé.
E também, coisa estranha, o primeiro sintoma do amor verdadeiro nos
rapazes é a timidez; nas mocinhas, a ousadia. É surpreendente, e, no
entanto, não há nada mais simples. São os dois sexos tendendo a
aproximar-se e assumindo as qualidades um do outro.
Nesse dia, o olhar de Cosette fez Marius enlouquecer, e o olhar de
Marius fez Cosette estremecer. Marius partiu dali confiante, e Cosette
inquieta. A partir de então, começaram a se adorar.
A primeira coisa que Cosette sentiu foi uma tristeza confusa e
profunda. Parecia-lhe que, de um dia para o outro, sua alma havia se
tornado negra. Ela não a reconhecia mais. A brancura da alma das
donzelas, que se compõe de frieza e alegria, assemelha-se à neve; e derrete
ao contato do amor, que é seu sol.
Cosette não sabia o que era o amor. Nunca ouvira essa palavra ser
pronunciada no sentido terreno. Nos livros de música profana que
entravam no convento, amor era substituída por tambor ou rumor. Isso
dava lugar a enigmas que exercitavam a imaginação das mais velhas, tais
como: Ah! Como o tambor é agradável! ou A compaixão não é um rumor!
Cosette saíra do convento ainda muito nova para se preocupar seriamente
com o tambor. Nem sabia que nome dar ao que estava sentindo agora.
Acaso fica menos doente quem não sabe o nome de sua doença?
Ela amava ainda com mais paixão, já que amava com ignorância. Não
sabia se aquilo era bom ou ruim, útil ou perigoso, necessário ou mortal,
eterno ou transitório, permitido ou proibido; ela amava. Ficaria admirada
se alguém lhe dissesse: “Não consegue dormir? Mas é proibido! Não
come? Mas isso é muito ruim! Sente opressões e palpitações no coração?
Mas isso não se faz! Enrubesce e empalidece quando certa pessoa vestida
de preto aparece na extremidade de uma certa alameda verde? Mas isso é
abominável!” Ela não teria compreendido e responderia: “Como posso ter
feito algo de errado em uma situação sobre a qual não tenho poder algum e
da qual nada sei?”
Acontece que o amor que se apresentou era exatamente o que melhor
convinha a seu estado de alma. Era uma espécie de adoração à distância,
uma contemplação muda, a deificação de um desconhecido. Era a aparição
da adolescência à adolescência, o sonho das noites transformado em
romance, mas ainda sonho, a desejada fantasia enfim realizada e em carne,
mas ainda sem nome, sem erro, sem mancha, sem exigência, sem defeito;
em uma palavra, o amante distante e no plano ideal, uma quimera
possuindo forma. Qualquer encontro mais palpável e mais próximo teria,
naquela ocasião, afugentado Cosette, ainda um tanto envolta na espessa
névoa do claustro. Ela tinha todos os medos infantis e todos os medos das
religiosas juntos. O espírito do convento, com o qual se impregnara
durante cinco anos, ainda se evaporava lentamente de seu ser e fazia tudo
tremer a sua volta. Nessa situação, não era um amante que lhe faltava, e
nem mesmo alguém apaixonado, mas uma visão. Ela pôs-se a adorar
Marius como algo de encantador, de luminoso e de impossível.
Como a extrema ingenuidade toca a extrema vontade de seduzir, ela
sorria para ele, com toda a franqueza.
Esperava todos os dias, com impaciência, a hora do passeio; lá
encontrava Marius, sentia-se indizivelmente feliz, e julgava sinceramente
exprimir todo o seu pensamento ao dizer a Jean Valjean: “Que delicioso
jardim, o Luxemburgo!”
Marius e Cosette viviam, um para o outro, na escuridão. Não se
falavam, não se cumprimentavam, não se conheciam; apenas se viam; e,
como os astros no céu, separados por milhões de léguas, viviam de se
olhar.
Era assim que pouco a pouco Cosette se tornava uma mulher e se
desenvolvia, bela e enamorada, consciente de sua beleza e ignorante de seu
amor. Sedutora, além de tudo, por inocência.

VII. PARA TRISTEZA, TRISTEZA E MEIA


Todas as situações têm seus instintos. A velha e eterna mãe natureza
advertia surdamente Jean Valjean da presença de Marius. Jean Valjean
estremecia no mais fundo de seu pensamento. Ele não via nada, não sabia
de nada e, no entanto, considerava com uma atenção obstinada as trevas
em que se encontrava, como se sentisse, de um lado, algo se construindo e,
de outro, algo desmoronando. Marius, igualmente advertido, e, o que é a
profunda lei do bom Deus, pela mesma mãe natureza, fazia todos os
esforços para se esconder do “pai”. Acontecia, entretanto, que Jean Valjean
às vezes o notava. As atitudes de Marius já não eram naturais. Tinha
prudências suspeitas e temeridades desastradas. Não se aproximava mais
tanto como antes; sentava-se longe e ficava em êxtase; trazia um livro na
mão e fingia ler. Por que fingia? Antes vinha com sua roupa mais velha,
agora usava todo dia sua roupa nova; não era muito certo que não tivesse
mandado frisar os cabelos, tinha um olhar estranho, usava luvas; em
resumo, Jean Valjean cordialmente detestava aquele rapaz.
Cosette nada deixava transparecer. Sem saber ao certo o que tinha,
tinha a nítida sensação de que era alguma coisa, e que devia ocultá-la.
Entre o gosto de Cosette pelas vestimentas e o hábito de usar roupas
novas que acometera aquele desconhecido, havia um paralelismo
importuno para Jean Valjean. Talvez fosse um acaso, provavelmente, com
certeza, mas um acaso ameaçador.
Jamais abria a boca para Cosette a respeito do tal desconhecido. Mas,
um dia, não pôde se conter, e com o vago desespero de quem lança
bruscamente uma sonda na própria infelicidade, disse a ela: “Está aí um
rapaz que tem um ar pedante!”
Um ano antes, Cosette, com sua indiferença de criança, teria
respondido: “Não, eu o acho simpático”. Dez anos mais tarde, com o amor
de Marius no coração, teria respondido: “Pedante e insuportável ao olhar!
O senhor tem toda a razão!” Mas, no momento da vida e do coração em
que se encontrava, limitou-se a responder com extrema serenidade:
— Aquele rapaz ali?
Como se olhasse para ele pela primeira vez em sua vida.
— Como sou estúpido! — pensou Jean Valjean. — Ela ainda não havia
reparado nele. Fui eu que o mostrei a ela.
Ó simplicidade dos velhos! Ó profundidade das crianças!
É também uma lei desses viçosos anos de sofrimento e de preocupação
dessas vivas lutas do primeiro amor contra os primeiros obstáculos: a
jovenzinha não se deixa cair em nenhuma armadilha, o rapaz cai em todas.
Jean Valjean principiara contra Marius uma guerra surda que Marius, com
a sublime estupidez de sua paixão e de sua idade, nem de leve percebeu.
Jean Valjean armou-lhe inúmeras ciladas; alterou os horários, mudou de
banco, esqueceu seu lenço, foi sozinho ao Luxemburgo; Marius caiu em
todas, e a todos esses pontos de interrogação colocados por Jean Valjean
em seu caminho respondeu ingenuamente que sim. Enquanto isso, Cosette
permanecia fechada em sua aparente despreocupação e imperturbável
tranquilidade, de modo que Jean Valjean chegou a esta conclusão: “Esse
tolo está apaixonado por Cosette, mas Cosette nem sabe que ele existe”.
Nem por isso deixava de sentir no coração um doloroso
estremecimento. O minuto em que Cosette começaria a amar podia soar de
um instante a outro. Não é pela indiferença que tudo começa?
Uma única vez Cosette cometeu uma falta e o assustou. Ele se
levantava do banco para ir embora depois de três horas, e Cosette disse:
“Já?!”
Jean Valjean não interrompera os passeios ao Luxemburgo, não
querendo fazer nada de estranho e principalmente temendo dar o alerta a
Cosette; mas durante essas horas tão doces para os dois enamorados,
enquanto Cosette enviava seu sorriso a um Marius embriagado, que só
percebia aquilo, e já não via mais nada no mundo senão aquele radiante
rosto adorado, Jean Valjean fixava em Marius um olhar faiscante e
terrível. Ele, que acabara por não mais julgar-se capaz de sentimentos
ruins, por alguns instantes, quando Marius ali estava, acreditava voltar a
ser selvagem e feroz, e sentia que se reabriam e se reerguiam contra esse
jovem as velhas profundezas de sua alma, onde outrora havia tanta cólera.
Parecia-lhe mesmo que voltavam a se formar em seu íntimo crateras
desconhecidas.
O quê! Aquela criatura estava ali! O que vinha fazer? Vinha rondar,
farejar, examinar, testar! Vinha dizer: “Hein? Por que não?” Vinha girar
em torno de sua felicidade, para tomá-la e levá-la embora!
Jean Valjean acrescentava: “Sim, é isso! O que ele vem procurar? Uma
aventura! O que ele quer? Um namorico! Um namorico! E eu! O quê!
Primeiro, sou o mais miserável dos homens, e também o mais infeliz; fiz
sessenta anos de vida de joelhos, sofri tudo o que se pode sofrer, envelheci
sem ter tido mocidade; vivi sem família, sem parentes, sem amigos, sem
mulher, sem filhos; deixei meu sangue sobre todas as pedras, sobre todos
os espinhos, sobre cada marco de estrada, sobre todos os muros; fui afável,
mesmo para com os que foram duros comigo, e bom, mesmo para com os
maldosos; voltei a ser homem de bem, apesar de tudo, arrependi-me do
mal que fiz e perdoei o mal que me fizeram; e, no momento em que sou
recompensado, no momento em que tudo aquilo é findo, no momento em
que atinjo a meta, no momento em que tenho o que quero, muito bom,
muito bem, paguei por isso, e também ganhei, mas então tudo se vai, tudo
evapora, e perderei Cosette, e perderei minha vida, minha alegria, minha
alma, porque agradou a um grande idiota vir matar o tempo no
Luxemburgo!”
Então, seus olhos encheram-se de uma claridade lúgubre e
extraordinária. Não era mais um homem olhando para outro homem; não
era um inimigo olhando para outro inimigo. Era um cão de guarda olhando
para um ladrão.
O resto se sabe. Marius continuou sendo insensato. Um dia, seguiu
Cosette até a rua de l’Ouest. Em outro, falou com o porteiro. O porteiro,
por seu lado, falou, mas a Jean Valjean:
— Senhor, quem é então um rapaz curioso que perguntou pelo senhor?
No dia seguinte, Jean Valjean lançou a Marius aquele olhar que
Marius, enfim, notou. Oito dias depois, Jean Valjean mudava. Jurou que
não colocaria mais os pés nem no Luxemburgo, nem na rua de l’Ouest. E
retornou à rua Plumet.
Cosette não se queixou, não disse nada, não fez perguntas, não
procurou saber nenhum porquê; ela estava na fase em que receava trair o
que sentia. Jean Valjean não tinha experiência nenhuma nessas misérias, as
únicas agradáveis e as únicas que ele não conheceu; isso fez com que não
compreendesse o grave significado do silêncio de Cosette. Apenas notou
que ela ficara triste e, com isso, tornou-se sombrio. De um lado e do outro,
era uma luta de inexperiências.
Uma vez, fez uma experiência. Perguntou a Cosette:
— Quer ir ao Luxemburgo?
Um raio iluminou o pálido rosto de Cosette.
— Quero — disse ela.
Foram até lá. Três meses haviam se passado. Marius não ia mais ali.
Marius não estava ali.
No dia seguinte, Jean Valjean tornou a perguntar a Cosette:
— Quer ir ao Luxemburgo?
Ela respondeu terna e tristemente:
— Não!
Jean Valjean ficou abatido com aquela tristeza e desolado com aquela
ternura.
O que se passava naquele espírito tão jovem e já tão impenetrável? O
que estaria para acontecer? O que ocorria na alma de Cosette? Às vezes,
em vez de se deitar, Jean Valjean ficava sentado perto da cama, cabeça
entre as mãos, e passava noites inteiras perguntando-se: “O que haverá no
pensamento de Cosette?” e pensando nas coisas em que ela poderia pensar.
Oh! Nesses momentos, que olhares dolorosos lançava ao claustro, esse
degrau mais elevado da castidade, esse lugar de anjos, essa inacessível
geleira da virtude! Com que encantamento desesperado contemplava
aquele jardim do convento, cheio de flores ignoradas e de virgens
encerradas, onde todos os perfumes e todas as almas sobem diretamente ao
céu! Como adorava aquele éden para sempre fechado, de onde saíra
voluntariamente e descera loucamente! Como lamentava sua abnegação e
sua demência de ter trazido Cosette para o mundo, pobre herói do
sacrifício, preso e aniquilado por sua própria dedicação! Quanto se dizia:
“O que eu fui fazer?”
De resto, nada disso era percebido por Cosette. Nem agastamento, nem
aspereza. Sempre o mesmo rosto sereno e bondoso. As maneiras de Jean
Valjean eram mais ternas e mais paternais do que nunca. Se alguma coisa
lhe indicasse menor alegria, maior se tornava sua mansidão.
Por seu lado, Cosette se deprimia. Sofria com a ausência de Marius da
mesma forma que se alegrava com sua presença, simplesmente, sem muita
consciência. Quando Jean Valjean parou de levá-la aos passeios habituais,
um instinto de mulher murmurara-lhe confusamente, no fundo do coração,
que não devia mostrar interesse pelo Luxemburgo, e que, se lhe parecesse
indiferente, seu pai voltaria a levá-la até lá. Mas os dias, as semanas e os
meses se passaram. Jean Valjean havia aceitado tacitamente o tácito
consentimento de Cosette. Ela o lamentou, mas era tarde demais. No dia
em que voltou ao Luxemburgo, já não encontrou Marius; ele havia
desaparecido; estava acabado, que fazer? Algum dia voltaria a encontrá-
lo? Ela sentiu no coração um aperto que nada conseguia aliviar e que
aumentava a cada dia; não sabia mais se era inverno ou verão, se chovia ou
fazia sol, se os pássaros cantavam ou não cantavam, se era tempo de dálias
ou de margaridas, se o Luxemburgo era mais bonito que as Tulherias, se a
roupa que vinha da lavadeira estava engomada de mais ou de menos, se
Toussaint tinha feito mal ou bem suas compras. E ficou abatida, absorta,
dominada por uma só ideia, com o olhar vago e fixo, como quando se olha
na escuridão um ponto negro e profundo onde alguma aparição é vista.
Do mesmo modo, ela também não deixava nada além de sua palidez
transparecer a Jean Valjean. Continuava com seu semblante meigo.
Essa palidez era mais que suficiente para preocupar Jean Valjean.
Algumas vezes lhe perguntava:
— O que você tem?
— Não tenho nada — respondia ela.
E após um momento de silêncio, como também o percebia triste,
perguntava-lhe:
— E o senhor, pai, tem alguma coisa?
— Eu? Nada — dizia ele.
Esses dois seres que tinham se amado tão exclusivamente, com um
amor tão tocante, e que tinham vivido tanto tempo um para o outro, agora
sofriam, um ao lado do outro, um por causa do outro, sem nada se
dizerem, sem se magoarem, e sorrindo.
VIII. A CORRENTE
O mais infeliz dos dois era Jean Valjean. A juventude, mesmo em meio
a suas mágoas, tem sempre um brilho próprio.
Em certos momentos, Jean Valjean sofria tanto que se tornava pueril. É
próprio da dor fazer reaparecer o lado infantil do homem. Sentia
invencivelmente que Cosette lhe escapava. Quis lutar, retê-la, entusiasmá-
la por algo diferente e brilhante. Essas ideias, pueris, como acabamos de
dizer, e ao mesmo tempo senis, deram-lhe, exatamente por sua
infantilidade, uma noção bastante justa da influência dos ornamentos
sobre a imaginação das mocinhas. Certa vez, aconteceu-lhe de ver passar
pela rua, a cavalo, um general em uniforme de gala, o conde Coutard,
comandante de Paris. Teve inveja daquele homem engalanado. Pensou em
qual seria sua felicidade se pudesse vestir um traje daqueles, algo de
incontestável; que, se Cosette o visse assim, ficaria maravilhada; que, ao
dar o braço a Cosette e passar diante da grade das Tulherias, haveriam de
apresentar-lhe as armas, e que isso bastaria a Cosette e faria com que
esquecesse a ideia de olhar para os rapazes.
Um inesperado acontecimento veio mesclar-se a esses pensamentos
tristes.
Na vida isolada que levavam, e desde que se instalaram na rua Plumet,
tinham um hábito. Algumas vezes, davam-se ao prazer de ver o sol nascer,
tipo de alegria amena que convém aos que entram na vida e aos que dela
vão saindo.
Passear ao amanhecer, para quem ama a solidão, equivale a passear de
noite, tendo a mais a alegria da natureza. As ruas estão desertas e os
pássaros cantam. Cosette, ela mesma um pássaro, despertava de bom
grado bem cedo. Essas excursões matutinas eram combinadas de véspera.
Ele propunha, ela aceitava. Tudo era arranjado como um complô; saíam
antes de amanhecer. Isso trazia pequenas alegrias a Cosette. Essas
inocentes excentricidades agradam a juventude.
A preferência de Jean Valjean era, como se sabe, ir aos locais pouco
frequentados, aos recantos solitários, aos lugares esquecidos. Havia, então,
nos arredores das entradas de Paris, espécies de campos pobres,
praticamente embrenhados na cidade, onde crescia, no verão, um trigo
franzino; no outono, feita a colheita, esses campos não pareciam ceifados,
mas raspados. Jean Valjean tinha predileção por frequentá-los. Cosette não
se aborrecia com isso. Era a solidão para ele e a liberdade para ela. Ali
voltava a ser menina, podia correr e até brincar; tirava o chapéu, pousava-
o nos joelhos de Jean Valjean, e colhia buquês. Olhava as borboletas
pousadas nas flores, mas não as pegava; a mansidão e o enternecimento
nascem com o amor, e as mocinhas, que em seu íntimo trazem um ideal
trêmulo e frágil, têm pena das asas da borboleta. Ela fazia guirlandas de
papoulas que punha na cabeça, e que, atravessadas e penetradas de sol,
avermelhadas até parecerem flamejantes, formavam sobre o frescor
daquele rosto corado uma coroa de brasas.
Mesmo depois de suas vidas se tornarem entristecidas, eles
conservaram o hábito dos passeios matutinos.
Assim, em uma manhã de outubro, tentados pela perfeita serenidade do
outono de 1831, saíram, e, ao romper do dia, encontravam-se perto da
entrada do Maine. Ainda não era a aurora, mas o momento que a precede,
minuto encantador e fugidio. Algumas constelações aqui e ali no azul
pálido e profundo, a terra completamente escura, o céu completamente
branco, uma agitação na relva, por toda parte a misteriosa impressão de
crepúsculo. Uma cotovia, que parecia confundir-se com as estrelas,
cantava a uma altura prodigiosa, e era possível dizer que aquele hino da
pequenez ao infinito acalmava a imensidão. No oriente, o Val–de-Grâce
recortava, no horizonte claro como o aço, sua massa obscura; Vênus,
resplandecente, elevava-se por trás dessa cúpula e parecia uma alma que
se evade de um edifício tenebroso.
Tudo era paz e silêncio; ninguém nas ruas; entreviam-se apenas uns
raros operários a caminho do trabalho.
Jean Valjean estava sentado em uma alameda lateral, sobre peças de
madeira colocadas à porta de um canteiro de obras. Seu rosto estava
voltado para a rua principal e suas costas voltadas para o nascente; ele
esquecia que o sol ia levantar-se, e caíra em uma daquelas profundas
divagações nas quais o espírito todo se concentra, que equivalem a quatro
paredes, e que aprisionam até o olhar. Há meditações que poderiam ser
chamadas de verticais, quando se está lá no fundo, e é preciso de tempo
para que se volte à terra. Jean Valjean havia descido a uma dessas
reflexões. Pensava em Cosette, na felicidade que seria possível se nada se
colocasse entre eles, naquela luz que preenchia sua vida, luz que era a
respiração de sua alma. Sentia-se quase feliz em meio a essa divagação.
Cosette, de pé perto dele, olhava as nuvens que se tornavam rosadas.
De repente, ela exclamou: “Pai, parece que alguém está vindo”. Jean
Valjean levantou os olhos. Cosette tinha razão.
A rua que leva à antiga entrada do Maine, como se sabe, é o
prolongamento da rua de Sèvres cortada em ângulo reto pelo bulevar
interior. Na esquina dessa rua com o bulevar, onde ocorre seu
entroncamento, ouvia-se um ruído difícil de se explicar para uma hora
daquelas, e uma espécie de amontoado confuso aparecia. Algo disforme,
que vinha do bulevar, penetrava na rua.
Aquilo crescia, parecia se mover com ordem, no entanto, eriçava-se e
vibrava; parecia um carro, mas não era possível distinguir seu
carregamento. Havia cavalos, rodas, gritos; chicotes estalavam.
Gradativamente as linhas se definiam, embora mergulhadas na penumbra.
De fato, era um carro que acabava de entrar na rua vindo pelo bulevar e
que se dirigia para a entrada perto da qual estava Jean Valjean; um
segundo carro com o mesmo aspecto vinha em seguida, e um terceiro, e
um quarto; sete carruagens desembocaram sucessivamente, as cabeças dos
cavalos tocando a parte posterior das precedentes. Silhuetas agitavam-se
sobre as carruagens, viam-se brilhos na penumbra, como se houvesse
sabres desembainhados, ouvia-se um tinido que parecia vir de correntes
remexidas; aquilo avançava, as vozes se elevavam, era uma coisa
impressionante, como que saída das cavernas dos sonhos.
Ao aproximar-se, aquilo tomou forma, e esboçou-se por trás das
árvores com a palidez de uma aparição; aquela massa embranquecia; o dia,
que pouco a pouco levantava, lançava uma claridade lívida sobre aquele
formigamento ao mesmo tempo sepulcral e vivo, as cabeças dos vultos
tornaram-se rostos de cadáveres, e eis do que se tratava:
Sete carros seguiam enfileirados pelo caminho. Os seis primeiros
tinham uma estrutura singular. Pareciam carros de transportar tonéis,
espécies de longas escadas assentadas sobre duas rodas, formando
“macas” na extremidade anterior. Cada um desses carros, melhor dizendo,
dessas escadas, era puxado por quatro cavalos amarrados um ao outro.
Sobre elas, eram levados estranhos cachos de homens. Com a pouca luz
que havia, esses homens não eram vistos, mal eram divisados. Vinte e
quatro sobre cada carro, doze de cada lado, encostados uns aos outros, de
frente para os passantes, pernas soltas no ar, assim eles avançavam; em
suas costas havia alguma coisa que retinia e era uma corrente, e no
pescoço, alguma coisa que brilhava e era uma coleira. Cada um tinha sua
coleira, mas a corrente era a mesma para todos, de modo que, se
precisassem descer do carro e caminhar, esses vinte e quatro homens
estavam presos por uma espécie de unidade inexorável, e teriam de
serpentear pelo solo com a corrente feito vértebra, quase como uma
centopeia. Adiante e atrás de cada carro, dois homens armados com fuzil
mantinham-se de pé, tendo, cada um, uma das extremidades da corrente
sob os pés. As coleiras eram quadradas. O sétimo carro, vasto furgão com
grades laterais, mas sem capota, tinha quatro rodas e seis cavalos, e
carregava um amontoado sonoro de caldeiras e panelas de ferro, de
fogareiros e correntes, a que se misturavam alguns homens garroteados e
deitados em sua extensão, com aspecto de doentes. Esse furgão tinha o
gradeado todo em péssimo estado, mostrando indícios de que fora usado
em antigos suplícios.
Esses carros ocupavam o centro da rua. Dos dois lados, caminhavam
duas alas de guardas, com aspecto infame, usando chapéus de três pontas
achatadas na cabeça, como os soldados do Diretório, sujos, rotos, sórdidos,
enfiados em horríveis uniformes de inválidos e em calças de coveiros,
meio pardas e azuis, quase esfarrapadas; dragonas vermelhas, boldriés
amarelos, sabres curtos, fuzis e cassetetes, espécie de grosseiros soldados.
Esses esbirros pareciam compostos da abjeção do mendigo e da autoridade
do carrasco. Aquele que parecia o chefe brandia na mão um chicote de
cocheiro. Todos esses detalhes, sombreados pela penumbra, desenhavam-
se cada vez mais nitidamente com o romper do dia. À frente e ao final do
comboio, soldados marchavam a cavalo, graves, sabre em punho.
Esse cortejo era tão extenso que, quando o primeiro carro chegava à
barreira, o último apenas apontava no bulevar.
Uma multidão, saída não se sabe de onde e formada num piscar de
olhos, como acontece frequentemente em Paris, se espremia dos dois lados
da rua e olhava. Ouviam-se nas ruazinhas da vizinhança gritos de pessoas
se chamando, e o ruído dos tamancos dos plantadores de hortaliças que
acorriam para ver.
Os homens amontoados sobre os carros deixavam-se chacoalhar em
silêncio. Estavam lívidos com a friagem do amanhecer. Todos vestiam
calças de algodão e tinham os pés descalços dentro dos tamancos. O
restante de suas vestimentas estava por conta das fantasias da miséria.
Seus trajes ridículos eram horrivelmente disparatados; nada é mais
fúnebre que o arlequim em farrapos. Chapéus estragados, bonés
encardidos, horrorosos gorros de lã, e, ao lado de roupas campesinas,
jaquetas pretas rasgadas nos cotovelos; vários usavam chapéus de mulher,
outros, cestos enfiados na cabeça; viam-se, através das roupas rasgadas,
peitos cobertos de pelos, e distinguiam-se tatuagens como templos de
amor, corações inflamados, cupidos. Viam-se também feridas e manchas
vermelhas. Dois ou três tinham cordas de palha fixadas às travessas do
carro sustentando-lhes os pés. Um deles tinha na mão, e levava à boca,
algo semelhante a uma pedra preta que parecia morder; era um pedaço de
pão que comia. Ali, só havia olhos secos, sem brilho, ou iluminados por
uma luz ruim. A trupe da escolta praguejava, os acorrentados nem
respiravam; de tempos em tempos, ouvia-se o som de uma pancada nas
costas ou na cabeça de algum deles. Uns bocejavam. Os andrajos eram
horríveis; os pés pendiam, os ombros vacilavam, as cabeças se
entrechocavam, os ferros tilintavam, os olhos flamejavam ferozmente, os
punhos se crispavam ou se abriam inertes como mãos de mortos; atrás do
comboio, um bando de crianças gargalhava.
Essa fila de carros, o que quer que fosse, era lúgubre. Era evidente que,
amanhã ou em uma hora, uma tromba d’água pudesse cair e fosse seguida
de uma outra, e mais outra, e que aquelas roupas estragadas ensopariam, e,
uma vez ensopados, aqueles homens não se secariam mais, e, uma vez
congelados, não se aqueceriam mais, que suas calças de algodão ficariam
coladas a seus ossos pela umidade, que a água encheria seus tamancos, que
as chicotadas não poderiam impedir o tiritar de seus queixos, que a
corrente continuaria a segurá-los pelo pescoço, que seus pés continuariam
a pender; e era impossível não tremer ao ver essas criaturas humanas
amarradas assim, passivas sob as frias nuvens do outono e entregues à
chuva, ao vento, a todas as fúrias do ar, como se fossem árvores e pedras.
Os golpes de cassetete não poupavam nem mesmo os doentes,
amarrados com cordas, sem movimentos e estirados sobre o sétimo carro;
pareciam ter sido ali jogados como sacos repletos de miséria.
De repente, o sol apareceu; o imenso raio do oriente jorrou, e era
possível dizer que ele punha fogo em todas aquelas cabeças rudes. As
línguas se desprenderam; um incêndio de risos sarcásticos, de blasfêmias e
de cantorias explodiu. A larga faixa de luz horizontal dividiu em duas toda
a fileira, iluminando as cabeças e os troncos, deixando os pés e as rodas na
sombra. Os pensamentos apareceram nos rostos; esse momento foi
medonho. Demônios visíveis com suas máscaras caídas, almas ferozes a
descoberto. Iluminada, essa corja ficou tenebrosa. Alguns, alegres, traziam
na boca canudos de penas pelos quais sopravam insetos na multidão,
principalmente sobre as mulheres; a aurora acentuava pelo negror das
sombras aquelas lamentáveis silhuetas; nem uma só daquelas criaturas
deixaria de ficar disforme à força da miséria; e aquilo era tão monstruoso
que parecia transformar a claridade do sol em clarão de relâmpago. O
carro que abria o cortejo havia entoado, e salmodiava muito alto e com
uma jovialidade desregrada, um pot-pourri de Désaugiers, então célebre, a
Vestale; as árvores arrepiavam-se lugubremente; nas alamedas laterais,
burgueses escutavam com ar de beatitude aquelas obscenidades cantadas
pelos espectros.
Todas as desgraças estavam presentes naquele cortejo, como um caos;
nele havia o ângulo facial de toda sorte de animais, velhos, adolescentes,
crânios nus, barbas grisalhas, monstruosidades cínicas, resignações
intratáveis, rictos selvagens, atitudes insanas, verdadeir os focinhos
usando bonés, e espécies de cabeças de moças com caracóis sobre a testa,
rostos infantis e por isso mesmo horríveis, magras faces de esqueletos, às
quais apenas a morte faltava. No primeiro carro, via-se um negro que
talvez tivesse sido escravo e pudesse comparar as correntes. O medonho
nível mais baixo, a vergonha, passara sobre aquelas frontes; a esse grau de
rebaixamento, as últimas transformações foram sofridas por todos da
forma mais profunda; e a ignorância transformada em embrutecimento
igualava a inteligência transformada em desespero. Não havia escolha
possível entre aqueles homens que apareciam aos olhares como a elite da
lama. Era claro que o medíocre coordenador daquela imunda procissão não
os havia classificado. Aquelas criaturas tinham sido amarradas e
emparelhadas confusamente, provavelmente em desordem alfabética, e
jogadas ao acaso sobre aqueles carros. Os horrores agrupados, porém,
acabam sempre por produzir uma resultante; toda adição de infelizes
forma um total; de cada corrente, saía uma alma comum, e cada carro
tinha sua fisionomia. Ao lado do carro que cantava, havia um que urrava;
um terceiro mendigava; um outro rangia os dentes; outro ameaçava os
passantes; outro ainda blasfemava contra Deus; o último se calava como
um túmulo. Dante julgaria ver os sete círculos do inferno em marcha.
Marcha das condenações em direção aos suplícios, feita sinistramente,
não no terrível carro fulgurante do Apocalipse, mas, coisa ainda mais
sombria, na carreta da exposição ao desprezo público.
Um dos guardas, que tinha um gancho na ponta de seu cassetete, de
tempos em tempos parecia remexer aquele amontoado de lixo humano. Na
multidão, uma velha os apontava a um menino de uns cinco anos, e dizia:
Que lhe sirva de lição, seu danado!
Como as cantigas e as blasfêmias aumentavam, o que parecia ser o
capitão da escolta fez estalar seu chicote, e, a esse sinal, uma terrível
pancadaria surda e cega, que fazia o barulho de uma saraivada, recaiu
sobre os sete carros; muitos rugiram e se enfureceram, o que redobrou a
alegria dos moleques ali chegados, nuvens de moscas sobre aquelas
feridas.
Os olhos de Jean Valjean tornaram-se medonhos. Não eram mais
pupilas, eram aquele vidrado profundo que substitui o olhar de certos
infelizes, que parece inconsciente da realidade, e no qual flameja o reflexo
dos pavores e das catástrofes. Ele não presenciava um espetáculo, sofria
uma visão. Quis levantar-se, fugir, escapar; não pôde mexer sequer um pé.
Às vezes, as coisas que vemos nos agarram e nos retêm. Ele permaneceu
pregado, petrificado, estúpido, perguntando a si próprio, em uma confusa
angústia inexprimível, o que significava aquela perseguição sepulcral, e de
onde saía aquele pandemônio que o perseguia. De repente, levou a mão à
fronte, gesto habitual daqueles a quem a memória subitamente retorna;
lembrou-se de que era aquele, de fato, o itinerário, que se costumava dar
aquela volta para evitar encontros com comitivas reais sempre possíveis
na estrada de Fontainebleau, e que, trinta e cinco anos atrás, ele passara
por aquela barreira.
Cosette, embora de outra forma, não estava menos apavorada. Ela não
compreendia, a respiração lhe faltava; o que ela via não lhe parecia
possível; afinal, exclamou:
— Pai, o que tem nesse carros?
— Forçados — respondeu Jean Valjean.
— E para onde eles vão?
— Para as galés!
Nesse momento, as cassetadas multiplicadas por cem mãos se
intensificaram, os golpes com as lâminas dos sabres misturaram-se a elas,
e foi como uma rajada de chicotes e bastões; os forçados curvaram-se,
uma obediência horrenda se desprendia do suplício, e todos se calaram,
com olhares de lobos acorrentados. Cosette tremia inteira; e perguntou:
— Pai, será que ainda são homens?
— Às vezes — disse o miserável.
Na verdade, era a cadeia que, saída antes do amanhecer de Bicêtre,
tomava a estrada de Mans para evitar Fontainebleau, onde então estava o
rei. Esse desvio fazia a medonha viagem durar três ou quatro dias a mais;
mas, para poupar à figura real a visão de um suplício, bem que ela podia se
prolongar.
Jean Valjean voltou para casa deprimido. Encontros assim são choques
e a recordação que deixam se assemelha a um grande abalo.
Ao retomar com Cosette a rua Babylone, Jean Valjean não se deu conta
de que ela lhe fazia outras perguntas a respeito do que acabavam de
presenciar; talvez estivesse absorvido demais em sua própria opressão
para ouvir suas palavras e lhe responder. Apenas, à noite, quando Cosette o
deixava para ir se deitar, ouviu-a falar a meia voz e como que a ela
mesma:
— Acho que se encontrasse em meu caminho um daqueles homens, ai
meu Deus, morreria só de o ver de perto!
Felizmente, o acaso fez com que, no dia seguinte ao do trágico
espetáculo, a propósito de não sei qual solenidade oficial, houvesse festas
em Paris, revista no Champ-de-Mars, torneios no Sena, teatros em
Champs-Élysées, fogos de artíficio em l’Étoile, luzes por toda parte. Jean
Valjean, violentando seus hábitos, levou Cosette a esses divertimentos
para distraí-la das lembranças da véspera e apagar, sob o risonho tumulto
de Paris, aquela coisa abominável que passara diante dela. A revista, que
dava sabor à festa, tornava bastante natural a circulação de uniformes;
Jean Valjean vestiu seu traje de guarda nacional com o vago sentimento
interior de um homem que se refugia. De resto, o objetivo do passeio
pareceu ser atingido. Cosette, que tinha por lei agradar a seu pai, e para
quem qualquer espetáculo era novo, aceitou a distração com a leve e fácil
boa vontade da adolescência, sem demonstrar nenhum desdém diante
dessa gamela de alegria chamada de festa pública; de modo que Jean
Valjean achou que tivera êxito, e que não restara mais nenhum vestígio
daquela horrível visão.
Dias depois, pela manhã, fazia um belo sol e os dois estavam no
patamar da escadaria do jardim, outra infração às regras que Jean Valjean
parecia ter se imposto, e ao costume de ficar em seu quarto, que a tristeza
fizera Cosette adotar; Cosette, de penhoar, mantinha-se de pé naquela
simplicidade das primeiras horas que envolve adoravelmente as mocinhas
e tem o aspecto da nuvem encobrindo um astro. Com a fronte banhada em
luz, corada por ter dormido bem, docemente observada por aquele homem
enternecido, Cosette desfolhava uma margarida. Ela ignorava a
encantadora lenda do bem-me-quer, mal-me-quer — quem poderia ter-lhe
ensinado? Mexia naquela flor por instinto, inocentemente, sem suspeitar
que desfolhar uma margarida é indagar um coração. Se houvesse uma
quarta Graça chamada Melancolia, e que fosse sorridente, seria com essa
Graça que ela se pareceria. Jean Valjean era fascinado pela contemplação
daqueles pequenos dedos sobre a flor, esquecendo tudo em meio ao brilho
que tinha aquela menina. Um pintarroxo cantava no arbusto ao lado.
Nuvens brancas atravessavam o céu tão alegremente que pareciam ter
acabado de ser postas em liberdade. Cosette continuava a despetalar
atentamente sua flor, como se pensasse em alguma coisa, mas que fosse
agradável. De repente, voltou a cabeça com a delicada lentidão do cisne e
disse a Jean Valjean: “Pai, o que são então as galés?”

__________________________
1 Antiga medida agrária francesa, equivalente a 0,5 hectares, conforme as regiões.
2 “Folhas e ramos.”
3 Comerciantes de moda em voga na época.
4 “Madame Cachorro-louco.”
LIVRO IV
SOCORRO DA TERRA PODE SER
SOCORRO DO CÉU

I. FERIMENTO POR FORA, CURA POR DENTRO


ASSIM, gradualmente, suas vidas obscureciam-se.
Não lhes restava mais que uma distração, outrora uma felicidade, que era
levar pão aos que tinham fome e roupa aos que tinham frio. Nessas visitas
aos pobres, em que Cosette quase sempre acompanhava Jean Valjean,
encontravam um pouco de sua antiga efusão; e algumas vezes, quando o
dia tinha sido bom, quando muitas misérias tinham sido socorridas e
muitas crianças reanimadas e agasalhadas, à noite, Cosette se mostrava um
pouco alegre. Foi nessa época que visitaram a espelunca Jondrette.
No dia seguinte a essa visita, Jean Valjean apareceu de manhã no
pavilhão, calmo como de costume, mas com uma grande ferida no braço
esquerdo, muito inflamada, muito feia, semelhante a uma queimadura, que
ele explicou de um modo qualquer. Esse ferimento fez com que tivesse
febre por mais de um mês e ficasse sem sair. Não quis chamar nenhum
médico. Quando Cosette insistia, chame o médico dos cachorros, dizia ele.
Cosette fazia-lhe curativos pela manhã e à noite, com seu jeito tão
divino, e tão angelical felicidade de lhe ser útil, que Jean Valjean sentia
voltar toda a sua antiga alegria, e dissiparem-se seus temores e suas
ansiedades; e contemplava Cosette dizendo:
— Oh! Que bom ferimento! Oh! Que mal abençoado!
Ao ver seu pai doente, Cosette saiu do pavilhão, retomando gosto pela
casinha e pelo quintal. Passava os dias quase inteiros perto de Jean Valjean
e lia para ele os livros que ele queria, em geral livros de viagens. Jean
Valjean renascia; sua felicidade revivia com raios inefáveis; o
Luxemburgo, o jovem desconhecido, o distanciamento de Cosette, todas as
nuvens de sua alma desapareciam. Chegou a dizer-se a esse respeito: “Eu
imaginei tudo isso. Sou um velho tolo”.
Era tal sua satisfação que o medonho e tão inesperado achado dos
Thénardier na espelunca Jondrette de algum modo não o impressionara.
Ele conseguira escapar; sua pista fora perdida, que lhe importava o resto?
Só se lembrava disso para lamentar aqueles miseráveis. Estão presos e
impossibilitados de fazerem mal, pensava, mas que lamentável família em
desgraça!
Quanto à medonha visão da entrada do Maine, Cosette não tornara a
falar sobre aquilo.
No convento, irmã Sainte-Mechtilde ensinara música a Cosette. Com a
voz de um pintassilgo que tivesse uma alma, algumas noites, no humilde
quarto do ferido, Cosette cantava tristes canções que alegravam Jean
Valjean.
A primavera chegava, o jardim ficava tão admirável nessa estação do
ano que Jean Valjean disse a Cosette:
— Você nunca vai ao jardim, gostaria que passeasse por lá.
— Como quiser, pai — respondeu Cosette.
E, para obedecer a seu pai, ela voltou aos passeios no jardim, quase
sempre só, pois, como já dissemos, Jean Valjean, que provavelmente temia
ser visto pela grade, quase nunca ia até lá.
O ferimento de Jean Valjean tinha sido uma diversão.
Ao ver que seu pai sofria menos, que se curava e que parecia feliz,
Cosette sentiu um contentamento que praticamente não notou, tão natural
e suavemente tomou conta dela. Além disso, era o mês de março, os dias
se alongavam, o inverno findava; o inverno sempre leva consigo algo de
nossas tristezas. Depois chegou abril, prenúncio do verão, fresco como
todo alvorecer, alegre como todas as infâncias; às vezes, um pouco chorão
como verdadeiro recém-nascido que é. Nesse mês, a natureza exibe
encantadores fulgores que passam do céu, das nuvens, das árvores, dos
prados e das flores para o coração do homem.
Cosette ainda era jovem demais para que essa alegria de abril, parecida
com ela, não a inundasse. Insensivelmente, e sem que percebesse, a
escuridão foi-se embora de seu espírito. Na primavera, faz-se claro nas
almas tristes, assim como ao meio-dia faz-se claro nos porões. De resto,
assim acontecia, mas ela não se dava conta. De manhã, por volta das dez
horas, após o dejejum, quando conseguia arrastar seu pai até o jardim por
um quarto de hora, passeando com ele pelo sol, perto da escadaria,
segurando-o pelo braço enfermo, ela nem percebia que ria a cada instante
e que estava feliz.
Jean Valjean, inebriado, constatava que ela retomava seu rubor e
frescor.
— Oh! Abençoado ferimento! — repetia-se baixinho.
E era reconhecido aos Thénardier.
Curado do ferimento, retomou seus passeios solitários e crepusculares.
Seria um erro supor que se pode passear sozinho dessa forma pelas
regiões inabitadas de Paris, sem encontrar alguma aventura.

II. MÃE PLUTARQUE NÃO FICA EMBARAÇADA


PARA EXPLICAR UM FENÔMENO
Uma noite, Gavroche, que nada havia comido, lembrou-se que também
não havia jantado na véspera; aquilo se tornava cansativo. Resolveu que
tentaria cear. Foi para lá de Salpêtrière, aos lugares desertos; é neles que
está a sorte inesperada; onde não há ninguém, pode-se encontrar alguma
coisa. Chegou a um povoado que lhe pareceu ser a aldeia de Austerlitz.
Em um de seus passeios precedentes, notara por ali um velho jardim
frequentado por um velho senhor e uma velha senhora, e, nesse jardim,
uma macieira interessante. Ao lado dessa macieira, havia uma espécie de
fruteiro mal fechado onde seria possível conseguir uma maçã. Uma maçã é
uma ceia; uma maçã é a vida. A perdição de Adão podia salvar Gavroche.
O jardim ladeava uma pequena rua solitária, não pavimentada e orlada de
plantas silvestres à espera de casas; uma sebe o separava dali.
Gavroche foi em direção ao jardim, encontrou a ruazinha, reconheceu a
macieira, certificou-se do fruteiro, examinou a sebe; uma sebe é um salto.
O dia declinava, nem um gato pela rua, a hora era boa. Gavroche preparava
a escalada, mas de repente parou. Alguém falava no jardim. Espreitou por
uma das aberturas da sebe.
A dois passos dele, ao pé da sebe e do outro lado, justamente no ponto
onde sairia pela abertura que tencionava passar, havia uma pedra colocada
como uma espécie de banco, e sobre esse banco estava sentado o velho
senhor, tendo de pé diante dele a velha senhora. Ela resmungava.
Gavroche, pouco discreto, ficou escutando.
— Senhor Mabeuf! — dizia a velha.
— Mabeuf! — pensou Gavroche. — Esse nome é engraçado.
O velho interpelado nem se mexia. A velha repetiu:
— Senhor Mabeuf!
Sem tirar os olhos do chão, o velho decidiu-se a responder:
— O que é, Mãe Plutarque?
— Mãe Plutarque — pensou Gavroche. — Outro nome engraçado.
Mãe Plutarque continuou, e o velho foi forçado a aceitar a conversa.
— O proprietário não está nada contente.
— Por quê?
— Porque estamos lhe devendo três trimestres.
— E daqui a três meses estaremos devendo quatro.
— Ele disse que vai mandar o senhor dormir na rua.
— Eu irei.
— A quitandeira quer receber. Ela não deixa mais os feixes de lenha.
Com o que o senhor vai se aquecer neste inverno? Não vamos ter lenha
nenhuma.
— Temos o sol.
— O açougueiro se recusa a vender fiado, não quer mais nos entregar
carne.
— Isso até que é bom. A carne me cai mal. É muito pesada.
— E o que vamos ter para jantar?
— Pão.
— O padeiro exige um pagamento, e diz que, sem dinheiro, nada de
pão.
— Está bom.
— O que o senhor vai comer?
— Temos as maçãs da macieira.
— Mas, senhor, não se pode viver assim sem dinheiro.
— Eu não o tenho.
A velha retirou-se, e o velho ficou só. Pôs-se a pensar.
Gavroche, por seu lado, também pensava. Era quase noite. O primeiro
resultado das reflexões de Gavroche foi que, em vez de escalar a sebe,
agachou-se por baixo dela. Os galhos se separavam um pouco na parte
inferior.
— Pronto — exclamou ele interiormente —, uma alcova! — E ali se
acomodou. Estava quase encostado no banco do Pai Mabeuf. Podia ouvir o
octogenário respirar.
Assim, para jantar, tratou de dormir.
Sono de gato, sono de um olho só. Mesmo dormindo, Gavroche estava
alerta.
A claridade do céu crepuscular iluminava a terra, e a ruazinha
desenhava uma linha lívida entre duas fileiras de moitas obscuras.
De repente, naquela faixa esbranquiçada, apareceram dois vultos. Um
mais à frente, o outro, um tanto atrás.
— Aí vêm dois fulanos — resmungou Gavroche.
O primeiro vulto parecia de algum velho burguês, curvado e pensativo,
vestido de forma mais do que simples, caminhando vagarosamente em
virtude da idade, flanando à luz das estrelas.
O segundo era ereto, firme e delgado. Regulava seu passo pelo passo
do primeiro, mas percebia-se flexibilidade e agilidade na voluntária
lentidão com que caminhava. Esse vulto tinha, juntamente com algo de
arisco e inquietante, toda a aparência do que então chamavam um
elegante; o chapéu era de boa forma, a casaca era preta, bem cortada,
provavelmente de um belo tecido e justa na cintura. A cabeça se erguia
com uma espécie de graça robusta, e, sob o chapéu, entrevia-se no
crepúsculo um pálido perfil de adolescente. Esse perfil tinha uma rosa na
boca. Esse segundo vulto era bem conhecido de Gavroche; era
Montparnasse.
Quanto ao outro, ele nada podia dizer, senão que era um velho homem.
Gavroche pôs-se imediatamente em observação.
Um desses dois passeantes tinha evidentemente projetos a respeito do
outro. Gavroche estava bem situado para ver o que se seguiria. A alcova,
muito a propósito, transformou-se em esconderijo.
Montparnasse à caça, em uma hora daquelas, em um lugar daqueles,
era algo ameaçador. Gavroche sentiu suas entranhas de moleque
comoverem-se de pena do velho.
Que fazer? Intervir? Uma fraqueza em socorro de outra! Era de causar
riso a Montparnasse. Gavroche não se iludia; para esse temível bandido de
dezoito anos, o velho primeiro e depois o menino seriam apenas duas
bocadas.
Enquanto Gavroche deliberava, o ataque ocorreu, repentino e ignóbil.
Ataque de tigre ao onagro, ataque de aranha à mosca. Montparnasse,
inesperadamente, atirou a rosa, saltou sobre o velho, puxou-o pelo
pescoço, agarrou-o e segurou-o com toda a força; Gavroche a muito custo
reteve um grito. Um momento depois, um daqueles homens estava sob o
outro, vencido, ofegante, se debatendo, com um joelho de mármore
apertando-lhe o peito. Apenas não era, de forma alguma, aquilo que
Gavroche estava esperando. O que estava no chão era Montparnasse, o que
estava por cima era o outro homem.
Tudo isso se passava a alguns passos de Gavroche.
O velho recebera o choque e o devolvera, e tão terrivelmente que, em
um piscar de olhos, o assaltante e o assaltado tinham invertido os papéis.
— Eis um inválido notável! — pensou Gavroche.
E não pôde evitar de bater palmas. Mas foram palmas perdidas; não
chegaram aos dois combatentes, absorvidos e ensurdecidos um pelo outro,
misturando suas respirações em meio à luta.
Então fez-se silêncio. Montparnasse cessou de debater-se. Gavroche
falou com seus botões: “Será que está morto?”
O velho não havia pronunciado uma só palavra nem soltado um só
grito. Ergueu-se, e Gavroche ouviu-o dizendo a Montparnasse:
— Levante-se.
Montparnasse levantou-se, mas o homem o segurava. Montparnasse
tinha a atitude humilhada e furiosa de um lobo que se via abocanhado por
um cordeiro.
Gavroche olhava e escutava, esforçava-se para redobrar sua visão por
intermédio dos ouvidos. Divertia-se enormemente.
E foi recompensado da sua conscienciosa ansiedade de espectador.
Pôde apanhar no ar este diálogo que dava à escuridão um tom trágico. O
homem perguntava, Montparnasse respondia.
— Que idade você tem?
— Dezenove anos.
— Você é forte e bem saudável. Por que não trabalha?
— Porque me aborrece.
— O que você faz?
— Sou vadio.
— Fale sério. Pode-se fazer alguma coisa por você? O que você quer
ser?
— Ladrão.
Houve um silêncio. O velho parecia profundamente pensativo. Estava
imóvel e não largava Montparnasse.
De vez em quando, o jovem bandido, vigoroso e ágil, tinha
sobressaltos de animal apanhado em armadilha. Dava um puxão, ensaiava
uma rasteira, contorcia desesperadamente seus membros, tentava escapar.
O velho nem parecia dar-se conta, e segurava-lhe os dois braços com uma
só mão, com a indiferença soberana de uma força absoluta.
A meditação do velho durou algum tempo, depois, olhando fixamente
para Montparnasse, elevou docemente a voz, e, na escuridão em que
estavam, dirigiu-lhe uma espécie de monólogo solene, do qual Gavroche
não perdeu uma única sílaba:
— Filho, você entra por preguiça na mais laboriosa das existências.
Ah! Você se declara vadio! Prepare-se para trabalhar. Já viu uma máquina
temível chamada laminador? É preciso tomar cuidado com ela, que é uma
coisa sorrateira e feroz; se nos agarra pela aba do casaco, nos arrasta por
completo. Essa máquina é a ociosidade. Pare, enquanto ainda é tempo, e
salve-se! De outro modo, está acabado; em pouco tempo estará nessa
engrenagem. Uma vez preso, não espere mais nada. Ao cansaço,
preguiçoso! Nada de repouso. A implacável mão de ferro do trabalho o
agarrou. Ganhar a vida, ter uma ocupação, cumprir um dever, isso você
não quer! Ser como os outros o aborrece! Pois bem, você vai ser diferente.
O trabalho é a lei; quem o repele por aborrecimento, há de tê-lo como
suplício. Não quer ser operário, será escravo. O trabalho só nos solta de
um lado para depois nos prender pelo outro; não quer ser seu amigo, será
seu negro. Ah! Você não quis a fadiga honesta dos homens, vai ter o suor
dos condenados. Onde os outros cantam, você ofegará. Verá de longe, de
baixo, os outros homens trabalhando e vai parecer-lhe que descansam. O
lavrador, o ceifeiro, o marinheiro, o ferreiro irão aparecer-lhe iluminados
como os bem-aventurados de um paraíso. Que brilho há em uma bigorna!
Conduzir a charrua, amarrar os feixes, é uma alegria. A barca em liberdade
ao vento, que festa! Enquanto você, preguiçoso, cava, arrasta, rasteja,
caminha! Puxem seu cabresto, e você vira besta de carga nas parelhas do
inferno! Ah! Não fazer nada, esse era seu objetivo. Pois bem! Não terá
uma só semana, um só dia, uma só hora sem abatimento. Não poderá
levantar coisa alguma senão com angústia. Cada minuto que passar fará
estalar seus músculos. O que para os outros é pluma, para você será
rochedo. As coisas mais simples ficarão muito difíceis. A vida será como
um monstro à sua volta. Ir, vir, respirar, serão outros tantos trabalhos
terríveis. Seu pulmão fará em você o efeito de um peso de cem libras.
Andar por aqui ou por ali será um problema a resolver. Qualquer um que
queira sair, abre a porta, e pronto, está fora. Você, se quiser sair, terá de
perfurar as paredes. Para ir à rua, o que todo o mundo faz? Todos descem a
escada; você, terá de rasgar os lençóis da cama, com cada tira fará uma
corda, então passará pela janela e ficará suspenso por esse fio sobre um
abismo, e poderá ser à noite, no meio da tempestade, na chuva, no furacão
e, se a corda for demasiado curta, você terá uma única maneira de descer:
cair. Cair ao acaso, em um precipício, da altura que for, sobre o quê? Sobre
o que estiver embaixo, sobre o incógnito. Ou então terá de subir por um
tubo de chaminé, correndo o risco de queimar-se; ou rastejará pelo
encanamento de latrinas, correndo o risco de afogar-se. Nem vou lhe falar
dos buracos que é preciso tapar, das pedras que é preciso retirar e
recolocar vinte vezes por dia, dos pedaços de reboque que é preciso
esconder no colchão. Uma fechadura aparece, o burguês traz no bolso sua
chave fabricada por um serralheiro. Você, se quiser ir mais longe, está
condenado a fazer uma obra-prima medonha; pegará uma moeda e a
dividirá em duas lâminas, e com que ferramentas? As que você inventar. É
por sua conta. Depois, cavará o interior dessas duas lâminas, preservando
cuidadosamente a parte de fora, e fará uma rosca nas bordas, de modo que
elas se ajustem muito bem uma na outra, como um fundo e uma tampa.
Com as duas partes assim rosqueadas, ninguém suspeitará de nada. Para os
vigias, pois você será vigiado, será uma moeda; para você, será uma caixa.
O que irá colocar nela? Um pedacinho de aço, uma mola de relógio na qual
fará uns dentes e usará como serra. Com essa serra, longa como um
alfinete e escondida em uma moeda, você vai cortar a lingueta da
fechadura, a barra do ferrolho, a alça do cadeado, a grades que haverá em
sua janela, e a argola que haverá em sua perna. Feita essa obra-prima,
completado esse prodígio, todos esses milagres de arte, destreza,
habilidade e paciência executados, se vierem a saber que você é seu autor,
que recompensa terá? O calabouço. Esse é seu futuro. A preguiça, o prazer,
que precipícios! Não fazer nada, é uma lúgubre resolução, sabe? Viver
ocioso da substância social! Ser inútil, quer dizer, prejudicial! Isso leva
diretamente ao fundo da miséria! Desgraçado do que quiser ser parasita,
porque será verme! Ah! Não lhe dá prazer trabalhar? Só tem um
pensamento, comer bem, beber bem, dormir bem! Pois beberá água,
comerá um pão escuro, dormirá sobre uma tábua, com ferros amarrados a
seus membros, sentindo durante a noite o frio deles sobre sua carne! Há de
quebrar esses ferros e fugir. Bom. Vai arrastar-se sobre o ventre pelo mato
e vai comer capim, como os animais. E daí será preso outra vez. E então
passará anos e anos em um subterrâneo, fechado entre quatro paredes,
tateando para beber em sua bilha, mordendo um horrível pão bolorento
que os cães enjeitariam, comendo favas que os vermes já teriam roído.
Você será um verme em um porão. Oh! Tenha piedade de você mesmo,
miserável criança, tão jovem, que ainda não faz vinte anos que mamava, e
que decerto ainda tem mãe! Eu suplico, ouça o que eu digo. Você quer
finos tecidos pretos, calçados de verniz, cabelos frisados e perfumados,
quer agradar as pessoas, ser bonito. Pois terá a cabeça rapada, uma roupa
vermelha, e tamancos. Quer ter um anel no dedo, mas terá uma argola no
pescoço. E, se olhar para alguma mulher, uma pancada é o que receberá.
Vai entrar ali aos vinte anos e sair aos cinquenta! Entrará jovem, corado,
sadio, com os olhos brilhantes, todos os dentes brancos, e sua bela
cabeleira de adolescente; e sairá alquebrado, curvado, enrugado,
desdentado, horrível, de cabelos brancos! Ah! Pobre menino, você está no
caminho errado, a vadiagem o aconselha mal; o mais rude dos trabalhos é
o roubo. Acredite em mim, não empreenda essa penosa tarefa de ser um
preguiçoso. Tornar-se um vadio não é cômodo. Menos custoso é ser
homem de bem. Agora vá, mas pense no que lhe disse. A propósito, o que
você queria de mim? Minha bolsa? Está aqui.
E o velho, soltando Montparnasse, colocou a bolsa em sua mão;
Montparnasse sopesou-a um instante e, em seguida, com a mesma
precaução maquinal que teria se a houvesse roubado, deixou-a escorregar
lentamente no bolso de trás do casaco.
Tudo isso dito e feito, o homem virou-se e retomou tranquilamente seu
passeio.
— Pateta! — murmurou Montparnasse.
Quem era aquele homem? O leitor certamente já adivinhou.
Montparnasse, estupefato, via-o desaparecer no crepúsculo. Essa
contemplação foi-lhe fatal.
Enquanto o velho se afastava, Gavroche se aproximava.
Gavroche, dando uma olhadela para o lado, certificou-se de que Pai
Mabeuf, talvez adormecido, continuava sentado no banco. Então, o
moleque saiu de seu esconderijo e pôs-se a rastejar no escuro por trás do
imóvel Montparnasse. Dessa forma, aproximou-se sem ser visto nem
ouvido por ele, meteu sutilmente sua mão no bolso posterior do casaco de
fino tecido preto, segurou a bolsa, retirou a mão, e, tornando a rastejar,
evadiu-se como uma cobra por entre as trevas. Montparnasse, que não
tinha razão alguma para se precaver, e que, pela primeira vez na vida,
pensava em alguma coisa, não percebeu nada. Gavroche, chegando de
volta ao ponto onde estava Pai Mabeuf, atirou a bolsa por cima da sebe e
fugiu a toda.
A bolsa caiu no pé de Pai Mabeuf. Esse abalo o despertou. Inclinou-se
e recolheu a bolsa. Não compreendeu nada daquilo, mas a abriu. Era uma
bolsa com duas divisões; em uma delas, havia alguns trocados; na outra,
havia seis napoleões.
O senhor Mabeuf, muito assustado, levou tudo até sua governanta.
— Isso caiu do céu — disse Mãe Plutarque.
LIVRO V
CUJO FIM NÃO SE ASSEMELHA AO
COMEÇO

I. A SOLIDÃO E A CASERNA COMBINADAS


A DOR de Cosette, tão pungente ainda e tão viva quatro ou cinco meses
atrás, havia entrado, sem que ela soubesse, em convalescença. A natureza,
a primavera, a juventude, o amor por seu pai, a alegria dos pássaros e das
flores, tudo fazia filtrar, pouco a pouco, dia a dia, gota a gota, naquela
alma tão virgem e tão juvenil, algo muito semelhante ao esquecimento.
Acaso o fogo estaria totalmente extinto? Ou apenas se formavam camadas
de cinza? O fato é que ela quase não sentia mais pontos doloridos ou
ardentes.
Um dia, repentinamente, pensou em Marius: “Ora!”, disse a si mesma,
“nem penso mais nele”.
Nessa mesma semana, ela reparou, ao passar diante da grade do
jardim, em um oficial dos lanceiros, muito bonito, esguio, rosto delicado,
bigodes retorcidos, de uniforme impecável, sabre debaixo do braço e
barrete brilhante. Além disso, cabelos louros, olhos azuis à flor do rosto
arredondado, com ar insolente, vaidoso e belo; o avesso de Marius em
tudo. Tinha um charuto na boca. Cosette pensou que esse oficial
provavelmente pertencia ao regimento aquartelado na rua Babylone.
No dia seguinte, tornou a vê-lo passar. Prestou atenção à hora.
Daí por diante — seria por acaso? —, quase todos os dias ela o viu
passar.
Os camaradas do oficial notaram que havia naquele jardim
“malcuidado”, por trás daquela horrível grade rococó, uma jovem muito
bela, que quase sempre encontrava-se ali quando o belo tenente passava;
este não é desconhecido do leitor e se chama Théodule Gillenormand.
— Veja só! — lhe diziam. — Há uma pequena de olho em você, já
reparou?
— E eu lá tenho tempo — respondia o lanceiro — de olhar para todas
as moças que olham para mim!
Era exatamente a mesma época em que Marius descia vagarosamente
em direção à agonia e pensava: “Se eu pudesse ao menos revê-la antes de
morrer!” Se seu desejo se realizasse, se naquele momento ele tivesse visto
Cosette olhar para um lanceiro, não conseguiria pronunciar uma só palavra
e morreria de dor.
De quem era a culpa? De ninguém.
Marius era desses temperamentos que se afundam na mágoa e aí
permanecem; Cosette era dos que nela mergulham e dela logo saem.
Além disso, Cosette atravessava esse momento perigoso, fase fatal do
devaneio feminino abandonado a si mesmo, em que o coração de uma
jovem que vive isolada se assemelha às gavinhas da videira que se
enroscam, ao acaso, ou ao capitel de uma coluna de mármore ou ao
mourão de uma taverna. Momento rápido e decisivo, crítico para qualquer
órfã, seja pobre ou seja rica, pois a riqueza não defende ninguém de uma
má escolha; uniões desiguais acontecem mesmo nas classes altas; a
verdadeira desigualdade é a das almas. Assim como mais do que um rapaz
desconhecido, sem nome, sem berço, sem fortuna, pode ser um capitel de
mármore que sustenta um templo de grandes sentimentos e grandes ideias,
determinado homem de sociedade, satisfeito e opulento, com botas polidas
e palavras envernizadas, analisado, não pelo exterior, mas por seu interior,
isto é, na parte que está reservada à mulher, pode ser nada mais que um
estúpido homem sem autoridade e iniciativa, obscuramente assaltado por
paixões violentas, imundas e embriagadas: o mourão de taverna.
O que havia na alma de Cosette? Paixão apaziguada ou adormecida;
amor no estado flutuante; alguma coisa que era límpida, brilhante, turva a
certa profundidade, sombria mais abaixo. A imagem do belo oficial
refletia-se na superfície. Havia, no fundo, alguma lembrança? Bem no
fundo? Talvez. Cosette não sabia.
Ocorreu então um incidente singular.

II. MEDOS DE COSETTE


Na primeira quinzena de abril, Jean Valjean fez uma viagem. Isso,
como se sabe, ocorria de tempos em tempos, com longos intervalos.
Ficava ausente um ou dois dias, no máximo. Aonde ia? Ninguém sabia,
nem mesmo Cosette. Uma vez apenas, em uma de suas partidas, ela o
acompanhara na carruagem até a entrada de um beco, em cuja esquina lia-
se Impasse de la Planchette. Ali, ele desceu, e a carruagem levou Cosette
de volta à rua Babylone. Em geral, era quando faltava dinheiro em casa
que Jean Valjean fazia essas pequenas viagens.
Jean Valjean, então, estava ausente. E dissera: “Voltarei em três dias”.
À noite, Cosette estava sozinha na sala. Para se entreter, abriu seu
piano-órgão e pôs-se a cantar, acompanhando-se, o coro de Eurianto:
Chasseurs égarés dans les bois! [Caçadores perdidos nos bosques], que
talvez seja o que há de mais belo em toda a música. Ao terminar, ficou
pensativa.
De repente, teve a impressão de ouvir passos no jardim.
Não podia ser seu pai, pois estava ausente; não podia ser Toussaint, que
estava deitada. Eram dez horas da noite.
Aproximou-se da janela da sala, que estava fechada, e ali colou seu
ouvido.
Pareceu-lhe serem passos de um homem, alguém caminhando muito
suavemente.
Subiu rapidamente a seu quarto, no andar superior, abriu um postigo
que havia na janela, e olhou para o jardim. Era noite de lua cheia.
Enxergava-se como se fosse dia.
Não havia ninguém.
Então abriu a janela. O jardim estava absolutamente calmo, e tudo que
se podia avistar na rua estava deserto como de costume.
Cosette pensou ter-se enganado. Julgara ter ouvido aquele ruído. Era
uma alucinação produzida pelo sombrio e prodigioso coro de Weber, que
abre diante do espírito abismos assustadores, que treme diante do olhar
como uma floresta vertiginosa, onde se ouve o estalido dos galhos secos
sob os passos inquietos dos caçadores entrevistos à luz do crepúsculo.
Não pensou mais nisso.
Além disso, por natureza, Cosette não era muito assustadiça. Havia em
suas veias sangue da boêmia e aventureira que anda descalça. Se bem se
recordam, ela era mais cotovia que pomba. Tinha um fundo selvagem e
bravio.
No dia seguinte, um pouco mais cedo, ao cair da noite, ela passeava no
jardim. Em meio a pensamentos confusos que a ocupavam, por instantes
julgou ouvir um ruído parecido com aquele da noite anterior, como se
alguém caminhasse na escuridão, sob as árvores, não muito longe dela;
mas dizia-se que nada se assemelha tanto a passos sobre a relva quanto o
roçar de dois galhos que se movimentam ao vento, e não se preocupou
com aquilo. Aliás, não enxergava nada.
Saiu então “do bosque”; faltava-lhe atravessar um pequeno gramado
para retornar à entrada da casa. A lua, que acabava de aparecer por trás de
Cosette, projetou sua sombra diante dela, sobre o espaço coberto de relva.
Cosette parou, apavorada.
Ao lado de sua sombra, a lua desenhava distintamente sobre a grama
uma outra sombra singularmente assustadora e terrível, uma sombra que
tinha um chapéu arredondado.
Era como que a sombra de um homem que estivesse de pé na
extremidade do jardim, alguns passos atrás de Cosette.
Ela ficou um minuto sem poder falar, nem gritar, nem chamar, nem
mexer-se, nem virar a cabeça.
Enfim, juntou toda a sua coragem e voltou-se resolutamente.
Não havia ninguém.
Olhou para o chão. A sombra havia desaparecido.
Voltou para o meio das plantas, procurou corajosamente pelos cantos,
foi até a grade, e nada encontrou.
Sentiu-se realmente gelada de medo. Seria novamente uma
alucinação? Mas como! Dois dias seguidos! Uma alucinação, vá lá, mas
duas! O que mais era inquietante é que a sombra seguramente não era um
fantasma. Fantasmas não usam chapéus arredondados.
No dia seguinte, Jean Valjean estava de volta. Cosette contou-lhe o que
supusera ter visto e ouvido. Ela esperava que seu pai a tranquilizasse e lhe
dissesse, levantando os ombros: “Você é uma tolinha”.
Mas Jean Valjean ficou preocupado.
— Alguma coisa deve ser — disse-lhe ele.
Deixou-a sob um pretexto qualquer e foi ao jardim; e ela percebeu que
ele examinava a grade com muita atenção.
No meio da noite, ela acordou; desta vez tinha certeza, ouvia
distintamente andarem muito perto da escadaria que ficava abaixo de sua
janela. Correu ao postigo e o abriu. Com efeito, no jardim havia um
homem segurando um forte bastão. No momento em que ia gritar, a lua
clareou o perfil do homem. Era seu pai.
Tornou a se deitar pensando: “Ele está bem preocupado!”
Jean Valjean passou no jardim aquela e as duas noites seguintes.
Cosette o via através do postigo.
Na terceira noite, a lua minguava e começava a se levantar mais tarde;
podia ser uma hora da manhã quando ela ouviu uma gargalhada e a voz de
seu pai que a chamava:
— Cosette!
Saltou da cama, enfiou seu roupão e abriu a janela.
Seu pai estava embaixo, no gramado.
— Acordei você para que fique tranquila — disse-lhe. — Olhe, esta é a
sombra do chapéu arredondado.
E mostrava-lhe sobre a grama uma sombra saliente desenhada pela lua,
e que efetivamente se assemelhava ao espectro de um homem com um
chapéu arredondado. Era uma silhueta formada por um tubo de chaminé
com cobertura, que se elevava acima de um telhado vizinho.
Cosette também se pôs a rir, todas as suas lúgubres suposições vieram
abaixo, e, no dia seguinte, almoçando com seu pai, ela zombou do sinistro
jardim assombrado por vultos de chaminés.
Jean Valjean voltou a ficar totalmente tranquilo; quanto a Cosette, nem
reparou direito se a chaminé ficava exatamente na direção da sombra que
ela vira ou julgara ter visto, nem se a lua se encontrava no mesmo ponto
do céu. Não se questionou sobre a singularidade de uma chaminé que teme
ser apanhada em flagrante delito e se retira quando olham para sua
sombra; pois a sombra sumira quando Cosette se voltara, e Cosette bem
que acreditava ter certeza do que vira. Cosette tranquilizou-se plenamente.
A demonstração de Jean Valjean pareceu-lhe completa, e que pudesse
haver alguém andando à noite pelo jardim, isso saiu de sua cabeça.
No entanto, alguns dias depois um novo incidente ocorreu.

III. ENRIQUECIDOS PELOS COMENTÁRIOS DE


TOUSSAINT
No jardim, perto da grade que dava para a rua, havia um banco de
pedra protegido dos olhares dos curiosos por um caramanchão; no entanto,
a rigor, o braço de um passante podia alcançá-lo através da grade e das
trepadeiras.
Certa noite desse mesmo mês de abril, Jean Valjean havia saído, e,
após o pôr do sol, Cosette sentara-se nesse banco. O vento se tornava mais
fresco entre as árvores, Cosette divagava; uma tristeza sem fundamento
pouco a pouco tomava conta dela, a tristeza invencível que a noite traz
consigo e que talvez venha — quem sabe? — do mistério das tumbas
entreabertas àquela hora.
Fantine talvez estivesse pairando naquele crepúsculo.
Cosette levantou-se, deu vagarosamente uma volta pelo jardim,
pisando na relva inundada de orvalho e dizendo-se em meio a essa espécie
de melancólico sonambulismo em que estava mergulhada: “Realmente, é
preciso usar tamancos no jardim a essa hora. Assim pega-se um resfriado”.
Voltou ao banco.
No momento em que ia sentar-se, reparou em uma grande pedra
colocada no lugar de onde havia saído, e que, evidentemente, não estava
ali antes.
Olhou para a pedra, perguntando-se o que aquilo queria dizer. De
repente, a ideia de que essa pedra não viera parar naquele banco sozinha,
que alguém a havia colocado ali, que um braço havia passado pela grade,
essa ideia veio-lhe à mente e causou-lhe medo. Dessa vez, foi um medo
verdadeiro; a pedra estava ali, não era possível ter dúvida. Não tocou nela,
fugiu sem ousar olhar para trás, refugiou-se dentro de casa e,
imediatamente, fechou, com a tranca e os trincos, a veneziana da porta-
balcão de entrada. Perguntou a Toussaint:
— Meu pai já voltou?
— Ainda não, senhorita.
(Já indicamos uma vez o fato de Toussaint gaguejar. Que nos permitam
não mais acentuá-lo. Repugnamos a notação musical de uma
enfermidade.)
Jean Valjean, homem pensativo e andarilho noturno, muitas vezes só
retornava bastante tarde.
— Toussaint — replicou Cosette —, durante a noite, está tomando o
cuidado de trancar bem pelo menos as janelas que dão para o jardim, com
as barras e os ferrolhos que se encaixam nas argolinhas?
— Ora! Fique tranquila, senhorita.
Toussaint não falhava em relação a isso, Cosette bem o sabia, mas não
pôde impedir-se de acrescentar:
— É que é tão deserto por aqui!
— Isso é verdade — disse Toussaint. — Seríamos assassinadas antes
de termos tempo de dizer um ai! Ainda mais com essa história de o senhor
não dormir na casa. Mas não tenha medo, senhorita, eu fecho as janelas
como nas prisões. Mulheres sozinhas! Acho mesmo de estremecer! Já
imaginou? Ver entrar, à noite, no quarto, um bando de homens que dizem:
“Cale-se!” e que começam a cortar seu pescoço. Não é tanto por morrer,
que a gente morre mesmo, vá lá, a gente sabe que tem de morrer, mas é
pelo horror de se sentir tocada por essa gente. Além disso, as facas que
têm, mal devem cortar! Ai, meu Deus!
— Fique quieta — disse Cosette. — Feche tudo muito bem.
Cosette, apavorada com o melodrama improvisado por Toussaint, e
talvez também com a lembrança das aparições da outra semana, nem
ousou dizer-lhe: “Vá então ver a pedra que colocaram sobre o banco!”,
com medo de tornar a abrir a porta do jardim e de que os “homens”
entrassem. Mandou fechar cuidadosamente todas as portas e janelas, fez
Toussaint visitar a casa inteira, do porão ao sótão; fechou-se em seu
quarto, passou os trincos, olhou embaixo da cama, deitou-se, mas dormiu
mal. A noite inteira viu a pedra, grande como uma montanha e cheia de
cavernas.
Ao nascer do sol — é próprio do sol nascente nos fazer rir de nossos
terrores noturnos, e nossa risada é sempre proporcional ao medo que
tivemos —, ao nascer do sol, quando despertou, Cosette viu seus temores
como um pesadelo, e pensou: “Com o que andei sonhando? É como os
passos que eu pensei ter ouvido na outra semana, à noite, no jardim! É
como a sombra da chaminé! Será que vou ficar medrosa agora?”
O sol, que brilhava nas fendas de sua veneziana, tornando púrpuras as
cortinas de damasco, a tranquilizou de tal maneira que tudo desapareceu
de seu pensamento, até mesmo a pedra.
— Tinha tanta pedra em cima do banco quanto homem de chapéu
arredondado no jardim; eu sonhei com a pedra como com o resto.
Vestiu-se, desceu ao jardim, correu até o banco, e sentiu um suor frio.
A pedra estava ali. Mas foi só por um momento. O que é medo de noite
vira curiosidade de dia.
— Ora! — disse ela. — Então vejamos.
Levantou a pedra, que era bem grande; embaixo dela havia algo que
parecia ser uma carta.
Era um envelope de papel branco. Cosette o pegou. Não havia endereço
de um lado, nem lacre do outro. No entanto, embora aberto, não estava
vazio. Entreviam-se papéis no interior.
Cosette examinou. Não se tratava mais de medo, nem de curiosidade;
era um começo de ansiedade.
Cosette retirou o conteúdo, um pequeno caderno de papel com cada
uma das páginas numeradas, e algumas linhas escritas com uma caligrafia
muito bonita, pensou Cosette, e muito elegante.
Ela procurou um nome, mas não havia nenhum; uma assinatura, não
havia nenhuma. A quem se endereçava aquilo? A ela, provavelmente, pois
uma mão havia depositado o pacote sobre seu banco. De quem vinha
aquilo? Uma fascinação irresistível apoderou-se dela; ela tentou desviar os
olhos daquelas folhas que tremiam em suas mãos; olhou para o céu, para a
rua, para as acácias inundadas de luz, para os pombos que voavam sobre
um telhado vizinho, e então, repentinamente, seu olhar voltou-se para o
manuscrito, e ela disse consigo que precisava saber o que havia ali dentro.
Eis o que ela leu:

IV. UM CORAÇÃO SOB UMA PEDRA


A redução do universo a uma só criatura, a dilatação de uma só
criatura até Deus, isso é o amor.
O amor é a saudação dos anjos aos astros.
Como a alma é triste quando está triste por amor!
Que vazio deixa a ausência do ser que, sozinho, preenche o mundo!
Oh! Como é verdade que o ser amado torna-se Deus. Seria compreensível
que Deus tivesse inveja disso se o Pai de todas as coisas não tivesse,
evidentemente, feito a Criação para a alma, e a alma para o amor.
Basta um sorriso entrevisto de longe, sob um chapéu de crepe branco
com fita lilás, para que a alma entre no palácio dos sonhos.
Deus está por trás de tudo, mas tudo oculta Deus. As coisas são negras,
as criaturas são opacas. Amar um ser é torná-lo transparente.
Certos pensamentos são verdadeiras orações. Há momentos em que,
qualquer que seja a atitude do corpo, a alma está de joelhos.
Os amantes separados iludem a ausência por meio de mil coisas
quiméricas que, todavia, têm sua realidade. São impedidos de se ver, não
podem se escrever, eles encontram inúmeros meios misteriosos de se
corresponder. Enviam-se o canto dos pássaros, o perfume das flores, o riso
das crianças, a luz do sol, os suspiros do vento, o brilho das estrelas, toda a
Criação. E por que não? Todas as obras de Deus foram feitas para servir ao
amor. O amor é poderoso o suficiente para encarregar a natureza inteira de
suas mensagens.
Ó primavera! És uma carta que escrevo a ela.
O futuro pertence ainda mais aos corações do que aos espíritos. Amar,
eis a única coisa capaz de ocupar e preencher a eternidade. Ao infinito é
necessário o inexaurível.
O amor participa da própria alma. Tem a mesma natureza que ela.
Como ela, é centelha divina; como ela, é incorruptível, indivisível,
imperecível. É um ponto de fogo que está em nós, que é imortal e infinito,
que nada pode limitar e que nada pode extinguir. Nós o sentimos queimar
até a medula dos ossos e o vemos brilhar até a amplidão do céu.
Ó amor! Adorações! Voluptuosidade de dois espíritos que se
compreendem, de dois corações que se confundem, de dois olhares que se
penetram! Hei de conhecê-la, não é mesmo, felicidade? Passeios a dois em
meio à solidão! Dias abençoados e radiantes! Algumas vezes tenho
sonhado que, de tempos em tempos, as horas se desprendem da vida dos
anjos e vêm à terra para atravessar o destino dos homens.
Deus não pode acrescentar nada à felicidade dos que se amam, a não
ser dando-lhes duração sem fim. Após uma vida de amor, uma eternidade
de amor, é um aumento, sem dúvida; mas aumentar em intensidade a
felicidade inefável que o amor proporciona à alma desde esse mundo é
impossível, mesmo para Deus. Deus é a plenitude do céu; o amor é a
plenitude do homem.
Olhamos uma estrela por dois motivos, por ela ser luminosa e por ela
ser impenetrável. Mas há junto de nós um brilho mais terno e um mistério
maior, a mulher.
Todos nós, quem quer que sejamos, temos os nossos entes respiráveis.
Se eles nos faltam, falta-nos o ar, sufocamos. Então morremos. Morrer por
falta de amor é algo medonho. A asfixia da alma.
Quando o amor fundiu e juntou dois seres em uma unidade angelical e
sagrada, o segredo da vida foi encontrado para eles; não são nada mais que
os dois termos de um mesmo destino; não são nada mais que as duas asas
de um mesmo espírito. Amem, flutuem!
No dia em que uma mulher que passa diante de nós desprende
luminosidade ao caminhar, estamos perdidos, estamos amando. Não há
nada mais a fazer, a não ser pensar tão fixamente nela que ela se veja
forçada a pensar em nós.
O que o amor começa não pode ser concluído senão por Deus.
O amor verdadeiro se desola e se encanta por causa de uma luva
perdida ou de um lencinho encontrado, e tem necessidade da eternidade
para sua dedicação e suas esperanças. Ele se compõe ao mesmo tempo do
infinitamente grande e do infinitamente pequeno.
Se és pedra, sê ímã; se és planta, sê sensitiva; se és homem, sê amor.
Nada é bastante para o amor. Temos a felicidade, desejamos o paraíso;
temos o paraíso, desejamos o céu.
Ó vós que vos amais, tudo isso está no amor. Sabei encontrar. O amor
tem, tanto quanto o céu, a contemplação, e, mais que o céu, a
voluptuosidade.
— Ela ainda vai ao Luxemburgo? — Não, senhor. — É nesta igreja que
ela assiste a missa, não é? — Ela não vem mais. — Ainda mora naquela
casa? — Mudou-se. — Onde foi morar? — Não disse.
Que coisa triste não sabermos o endereço de nossa alma!
O amor tem criancices, as outras paixões têm mesquinhez. Vergonha às
paixões que tornam o homem pequeno! Honra à que o torna criança!
Estranha coisa, sabia? Vivo na noite. Há um ser que, ao partir, levou
embora o céu.
Oh! Estar deitados lado a lado em um mesmo túmulo, de mãos dadas,
e, de tempos em tempos, na escuridão, acariciarmos ternamente um dedo,
isso bastaria à minha eternidade.
Vós que sofreis porque amais, amai ainda mais. Morrer de amor é
viver de amor.
Amai. Uma sombria transfiguração estrelada está entremeada a esse
suplício. Há êxtase na agonia.
Ó alegria dos pássaros! É porque têm o ninho que têm o canto.
O amor é uma respiração celeste do ar do paraíso.
Corações profundos, espíritos sábios, recebei a vida como Deus a
criou; é uma longa provação, uma preparação ininteligível para um destino
desconhecido. Esse destino, o verdadeiro, começa para o homem no
primeiro degrau do interior do túmulo. Então, aparece-lhe alguma coisa, e
ele começa a distinguir o definitivo. O definitivo, pensai nessa palavra. Os
vivos veem o infinito, o definitivo não se deixa ver a não ser pelos mortos.
Enquanto isso, amai e sofrei, esperai e contemplai. Infeliz daquele que só
tiver amado corpos, formas, aparências! A morte há de tirar-lhe tudo!
Tratai de amar as almas, assim as reencontrareis.
Encontrei na rua um jovem muito pobre, mas que amava. Seu chapéu
era velho, suas roupas desgastadas; tinha os cotovelos rasgados, a água
atravessava seus sapatos, e os astros atravessavam sua alma.
Que coisa grandiosa, ser amado! Coisa mais grandiosa ainda, amar! O
coração se torna heroico à força de paixão. Não se compõe senão do que é
puro; então não se apoia senão no que é elevado e grande. Um pensamento
indigno não pode nele germinar mais do que uma urtiga no gelo. A alma
elevada e serena, inacessível às paixões e às emoções vulgares, dominando
as nuvens e as sombras deste mundo, as loucuras, as mentiras, os ódios, as
vaidades e as misérias, habita o azul do céu, e não sente mais que os
abalos profundos e subterrâneos do destino, assim como o alto das
montanhas sente os tremores de terra.
Se não houvesse alguém que ama, o sol se apagaria.

V. COSETTE DEPOIS DA CARTA


Durante essa leitura, Cosette entrava pouco a pouco em devaneio. No
momento em que levantava os olhos da última linha do caderno, o belo
oficial, era sua hora, passava diante da grade. Cosette achou-o horrível.
Ela voltou a contemplar o caderno; era escrito com uma bela letra,
pensou Cosette, pela mesma mão, com tintas diversas, ora muito escuras,
ora esbranquiçadas, como quando se coloca tinta no tinteiro, e, por
consequência, em dias diferentes. Era, portanto, um pensamento
desafogado ali, suspiro a suspiro, irregularmente, sem ordem, sem escolha,
sem finalidade, ao acaso. Cosette nunca havia lido nada semelhante. Esse
manuscrito, em que ela ainda via mais de claridade que de obscuridade,
causava-lhe o efeito de um santuário entreaberto. Cada uma dessas linhas
misteriosas resplandecia a seus olhos e inundava-lhe o coração de uma
estranha luz. A educação que recebera sempre havia lhe falado da alma,
mas nunca do amor, mais ou menos como quem falasse do tição e não da
chama. Esse manuscrito de quinze páginas revelava-lhe, repentina e
suavemente, todo o amor, a dor, o destino, a vida, a eternidade, o princípio
e o fim. Era como uma mão que se tivesse aberto lançando-lhe
subitamente um punhado de raios. Ela sentia nessas poucas linhas uma
natureza apaixonada, ardente, generosa, honesta, uma vontade santa, uma
dor imensa e uma imensa esperança, um coração apertado, um êxtase em
expansão. O que era esse manuscrito? Uma carta. Carta sem endereço, sem
nome, sem data, sem assinatura, urgente e desinteressada, enigma
composto de verdades, mensagem de amor feita para ser entregue por um
anjo e lida por uma virgem, encontro marcado fora da terra, doce recado
de um fantasma a uma sombra. Era um ausente apaziguado e triste que
parecia pronto a se refugiar na morte, e que enviava à ausente o segredo do
destino, a chave da vida, o amor. Essas linhas haviam sido escritas com os
pés no túmulo e os dedos no céu. Essas linhas, caídas uma a uma sobre o
papel, eram o que poderíamos chamar de gotas da alma.
Mas de quem poderiam vir essas páginas? Quem poderia tê-las
escrito?
Cosette não hesitou um minuto. Um único homem.
Ele!
A luz se refez em seu espírito. Tudo reapareceu. Experimentava uma
alegria inaudita e uma angústia profunda. Era Ele! Ele lhe escrevia! Ele
estivera ali! Era dele o braço que passara através daquela grade! Enquanto
ela o esquecia, ele a havia reencontrado! Mas será que o esquecera? Não,
nunca! Seria louca se tivesse acreditado nisso por um instante. Sempre o
amara, sempre o adorara. Por algum tempo, o fogo estivera encoberto e em
estado latente, mas, ela bem podia ver, não havia feito senão se
intensificar, e agora irrompia outra vez abrasando-a totalmente. Esse
caderno era como uma faísca caída daquela outra alma dentro da sua. Ela
sentia recomeçar o incêndio. Deixava-se penetrar por cada palavra do
manuscrito.
— Oh! Como reconheço tudo isso! — dizia ela. — É tudo o que eu já
tinha lido nos olhos dele.
Quando terminava pela terceira vez a leitura do manuscrito, o tenente
Théodule passava novamente pela grade fazendo soar suas esporas no
calçamento. Cosette viu-se forçada a levantar os olhos. Achou-o sem
graça, tolo, inútil, pretensioso, desagradável, impertinente e muito feio. O
oficial achou que devia sorrir para Cosette. Ela voltou-lhe as costas,
envergonhada e indignada. Teria, de bom grado, atirado alguma coisa em
sua cabeça.
Fugiu, voltou para dentro da casa e fechou-se em seu quarto para reler
o manuscrito, para sabê-lo de cor, e para sonhar. Depois de lê-lo repetidas
vezes, beijou-o e colocou-o no espartilho.
Pronto. Cosette caíra novamente no profundo amor seráfico. O abismo
do Éden acabava de ser reaberto.
Durante o dia todo, Cosette esteve em meio a uma espécie de
atordoamento. Mal conseguia pensar, suas ideias em estado de meada
emaranhada no cérebro, não podia fazer nenhuma conjectura; esperava
algo, estremecendo, mas o quê? Coisas vagas. Não ousava prometer-se
nada, e não queria nada recusar-se. Certa palidez passava por seu
semblante e tremores por seu corpo. Por instantes, parecia-lhe que entrava
em algo quimérico; ela se perguntava: isso é real? Então apalpava o papel
bem-amado sob o vestido, pressionando-o contra o coração, sentindo suas
dobras na carne. E, se Jean Valjean a visse naquele momento, estremeceria
diante daquela alegria luminosa e desconhecida que transbordava-lhe pelas
pálpebras. “Oh, sim!”, pensava ela. “É ele mesmo! É dele que me vem
isso!”
E ela se dizia que uma intervenção dos anjos, que um acaso celeste o
trouxera de volta a ela.
Ó transfigurações do amor! Ó sonhos! Esse acaso celeste, essa
intervenção dos anjos, era a bolinha de pão atirada por um ladrão a outro
ladrão, do pátio Charlemagne à cova dos leões, por cima dos telhados da
Force.
VI. OS VELHOS SÃO FEITOS PARA SAIR
OPORTUNAMENTE
Ao anoitecer, Jean Valjean saiu; Cosette vestiu-se, arrumou os cabelos
do modo que melhor lhe ficavam; colocou um vestido cujo corpete, que
recebera uma tesourada mais profunda e que, por esse talho, deixava ver
uma pequena parte de seu pescoço, era “um pouco indecente”, como dizem
as mocinhas. Não tinha nada de indecente, mas ficava mais bonito que do
outro jeito. Ela fez toda essa toalete sem saber bem por quê.
Desejava sair? Não.
Esperava alguma visita? Não.
À noitinha, desceu ao jardim. Toussaint andava atarefada em sua
cozinha, que dava para o quintal.
Foi caminhando sob os galhos, afastando-os de tempos em tempos com
as mãos, pois alguns deles estavam muito baixos.
Assim chegou ao banco.
A pedra continuava ali.
Sentou-se e pousou sua delicada e alva mão sobre a pedra como se
quisesse acariciá-la e agradecer-lhe.
De repente, teve a impressão indefinível que experimenta, mesmo que
nada vejamos, quando alguém está de pé atrás de nós.
Voltou a cabeça e ergueu-se.
Era ele.
Estava sem chapéu. Parecia magro e pálido. Mal se distinguiam seus
trajes escuros. O crepúsculo empalidecia seu belo rosto e cobria seus olhos
de sombras. Mostrava, sob um véu de incomparável doçura, algo da morte
e da escuridão. Seu semblante estava iluminado pela claridade do dia que
finda e pelo pensamento de uma alma que parte.
Parecia que ainda não era fantasma, mas que também já não era
homem.
Seu chapéu estava caído a alguns passos, entre as folhagens.
Cosette, a ponto de desfalecer, não soltou um único grito. Recuava
lentamente, porque se sentia atraída. Ele não se movia. Por algo de
inefável e de triste que o envolvia, ela sentia o olhar daqueles olhos que
ela não via.
Recuando, Cosette encontrou uma árvore e encostou-se a ela. Sem essa
árvore, teria caído.
Então ouviu sua voz, essa voz que na verdade ela nunca ouvira, que
com dificuldade se elevava acima do rumor das folhas, e que murmurava:
— Perdoe-me por estar aqui. Tenho vontade de chorar, não podia viver
assim, por isso vim. Leu o que deixei ali, sobre o banco? Reconhece-me?
Não tenha medo de mim. Já faz bastante tempo, lembra-se do dia em que
olhou para mim? Foi no Luxemburgo, perto do gladiador. E do dia em que
passou por mim? Foi em 16 de junho e em 2 de julho. Logo fará um ano.
Há muito tempo não a tenho visto. Perguntei à mulher que aluga as
cadeiras, ela me disse que não a via mais. Morava na rua de l’Ouest, de
frente, no terceiro andar de uma casa nova; veja como eu sei. Eu a seguia.
O que eu podia fazer? Depois desapareceu. Pensei tê-la visto passar uma
vez quando eu lia os jornais sob as arcadas do Odéon. Corri. Mas não. Era
uma pessoa que usava um chapéu como o seu. À noite, venho aqui. Não
tema, ninguém me vê. Venho olhar suas janelas de perto. Caminho com
cuidado para que não ouça, pois poderia ficar com medo. Outra noite,
estava atrás da senhorita, e, quando virou-se, eu fugi. Uma vez a ouvi
cantar, fiquei feliz. Faz mal se eu a ouvir cantar através da janela? Isso não
pode lhe fazer mal algum. Não é mesmo? Sabe, a senhorita é meu anjo,
deixe-me vir um pouco. Acho que vou morrer. Se soubesse! Eu a adoro!
Perdoe-me por lhe falar, nem sei o que digo, talvez a esteja aborrecendo;
eu a aborreço?
— Ó minha mãe! — disse ela.
E curvou-se sobre si mesma como se morresse.
Segurou-a, ela caía; tomou-a nos braços, estreitou-a no peito sem ter
consciência do que fazia. Sustentou-a cambaleando. Era como se tivesse a
cabeça cheia de fumaça; relâmpagos passavam-lhe por entre os cílios; suas
ideias embaralhavam-se; tinha a impressão de praticar um ato religioso e
de cometer uma profanação. Mas não tinha o menor desejo por essa
mulher encantadora de quem sentia as formas contra o peito. Estava louco
de amor.
Ela pegou uma de suas mãos e pousou-a sobre o coração. Ele sentiu os
papéis que ali estavam, e balbuciou:
— Então me ama?
Ela respondeu com uma voz tão baixa que não passava de um sopro, e
que mal se ouvia:
— Cale-se, você sabe!
E escondeu sua fronte envergonhada no peito do jovem soberbo e
inebriado.
Ele caiu sobre o banco, ela perto dele. Não tinham mais palavras. As
estrelas começavam a brilhar. Como aconteceu de seus lábios se
encontrarem? Como acontece de um pássaro cantar, a neve derreter, a rosa
se abrir, maio florescer, a aurora clarear por trás das árvores escuras no
topo das colinas?
Um beijo, e tudo aconteceu.
Os dois estremeceram e se entreolharam nas sombras com olhos
fulgurantes.
Não sentiam nem a noite fresca, nem a pedra fria, nem a terra úmida,
nem a relva molhada; olhavam-se e tinham o coração repleto de
pensamentos. Deram-se as mãos sem saber como.
Cosette não lhe perguntava, nem mesmo nisso pensava, por onde havia
entrado e como havia penetrado no jardim, tão simples lhe parecia que ele
estivesse ali!
Por vezes, o joelho de Marius tocava o joelho de Cosette, e os dois
estremeciam.
Com alguns intervalos, Cosette balbuciava uma palavra. Sua alma
tremia em seus lábios como uma gota de orvalho em uma flor.
Pouco a pouco se falaram. O desabafo sucedeu ao silêncio, que é a
plenitude. A noite era serena e esplêndida acima deles. Essas duas
criaturas, puras como espíritos, disseram-se tudo, seus sonhos, seus
transportes, seus êxtases, suas quimeras, seus delírios; como se adoravam
de longe, como se desejavam; seu desespero quando deixaram de se ver.
Confiaram-se com uma intimidade ideal, que em nada podia ser acrescida,
o que tinham de mais escondido e de mais misterioso. Contaram um ao
outro, com cândida fé em suas ilusões, tudo que o amor, a juventude e o
resto de sua infância colocava em seus pensamentos. Esses dois corações
verteram-se um dentro do outro, de modo que, ao cabo de uma hora, era o
rapaz que possuía a alma da jovem e a jovem que possuía a alma do rapaz.
Penetraram-se, encantaram-se, deslumbraram-se.
Ao terminarem, após terem tudo dito, ela pousou a cabeça em seu
ombro e perguntou-lhe:
— Como se chama?
— Eu me chamo Marius — respondeu ele. — E a senhorita?
— Eu me chamo Cosette.
LIVRO VI
O PEQUENO GAVROCHE

I. MALDOSA TRAVESSURA DO VENTO


DESDE 1823, enquanto a taverna de Montfermeil afundava e submergia
pouco a pouco, não no abismo de uma falência, mas na cloaca das
pequenas dívidas, o casal Thénardier teve outros dois filhos, ambos
meninos. Eram então cinco; duas meninas e três meninos. Era muito.
A senhora Thénardier desvencilhara-se dos dois últimos, ainda com
pouca idade e bem pequenos, com singular felicidade.
Desvencilhar-se é a palavra exata. Aquela mulher possuía apenas um
fragmento de natureza. Fenômeno que, de resto, possui mais de um
exemplar. Como a marechala De La Mothe-Houdancourt, Thénardier era
mãe somente para suas filhas. Nelas findava sua maternidade. Seu ódio ao
gênero humano começava em seus meninos. Em relação a eles, sua
maldade ia a pique, e seu coração tinha nesse terreno um lúgubre aclive
escarpado. Como já foi visto, ela detestava o mais velho; agora execrava
os outros dois. Por quê? Porque sim. O mais terrível dos motivos e a mais
indiscutível das respostas: “Porque sim”. “Não preciso de um monte de
filhos”, dizia essa mãe.
Expliquemos como os Thénardier chegaram a livrar-se de seus dois
últimos filhos e até a tirar proveito disso.
Magnon, de quem já falamos páginas atrás, era a mesma que
conseguira fazer o velho Gillenormand pagar a alimentação das duas
crianças que ela tinha. Morava no cais des Célestins, na esquina da antiga
rua Petit-Musc, que fez o que pôde para transformar em boa fama sua má
reputação.1 Vocês devem se lembrar da grande epidemia de crupe que há
trinta e cinco anos devastou os bairros à beira do Sena, em Paris, epidemia
que a ciência aproveitou para experimentar em larga escala a eficácia das
insuflações de alume, hoje tão utilmente substituídas pela tintura externa
de iodo. Nessa epidemia, Magnon perdeu, no mesmo dia, um pela manhã,
outro à noite, seus dois meninos, ainda com muito pouca idade. Foi um
golpe. Essas crianças eram preciosas para sua mãe, representavam oitenta
francos por mês. Esses oitenta francos eram pagos com a maior
pontualidade, em nome do senhor Gillenormand, por seu procurador,
senhor Barge, antigo oficial de justiça da rua Roi-de-Sicile. Mortas as
crianças, essa renda estaria enterrada. Magnon arrumou um expediente.
Nessa tenebrosa maçonaria do mal, da qual ela fazia parte, sabe-se tudo,
guardam-se segredos e ajudam-se uns aos outros. Magnon precisava de
duas crianças; Thénardier as tinha. Mesmo sexo, mesma idade. Bom
arranjo para uma, boa solução para a outra. Os pequenos Thénardier
tornaram-se os pequenos Magnon. Magnon saiu do cais des Célestins e foi
morar na rua Clocheperce. Em Paris, a identidade que liga um indivíduo a
si mesmo rompe-se de uma rua para outra.
O registro civil, não recebendo nenhuma denúncia, não reclamou, e a
substituição ocorreu com a maior simplicidade do mundo. A única coisa é
que o pai Thénardier exigiu, por esse empréstimo de crianças, dez francos
por mês, que Magnon prometeu, e até pagou. Nem é preciso dizer que o
senhor Gillenormand continuou mandando o dinheiro. A cada seis meses
ia ver os pequenos; nunca percebeu a mudança. “Senhor”, dizia-lhe
Magnon, “como parecem consigo!”
Thénardier, para quem as metamorfoses eram fáceis, aproveitou o
ensejo para se transformar em Jondrette. Suas duas filhas e Gavroche mal
tiveram tempo de reparar que tinham mais dois irmãozinhos. A um certo
grau de miséria, as pessoas são tomadas por uma espécie de indiferença
espectral, e veem os seres como larvas. Seus entes mais próximos com
frequência não lhes são mais do que vagas formas de sombra, mal distintas
no fundo nebuloso da vida e facilmente confundidas com o invisível.
Na noite do dia em que a mãe Thénardier entregara seus dois filhos a
Magnon, com expressa vontade de renunciar a eles para sempre, teve ou
fez parecer que tinha escrúpulos. Dissera a seu marido: “Mas isso é
abandonar as crianças!” Thénardier, magistral e fleumático, cauterizou os
escrúpulos de sua mulher com estas palavras: “Jean-Jacques Rousseau fez
mais!” Do escrúpulo, a mãe passou à preocupação: “Mas e se a polícia vier
nos atormentar? O que nós fizemos, senhor Thénardier, será que é
permitido?” Ele respondeu: “Tudo é permitido. Ninguém verá nisso nada
de estranho. Além disso, essas crianças que não têm um tostão, ninguém
tem interesse de olhar para elas de perto”.
Magnon era uma espécie de elegante do crime. Arrumava-se bem.
Dividia sua casa, mobiliada de forma afetada e miserável, com uma
esperta ladra inglesa afrancesada. Essa inglesa naturalizada parisiense,
recomendável por relações muito ricas, intimamente ligada às medalhas
da biblioteca e aos diamantes da senhorita Mars, mais tarde ficou célebre
nos registros judiciais. Era chamada de Mamselle2 Miss.
Os dois pequenos passados a Magnon não tiveram do que se queixar.
Recomendados pelos oitenta francos, eram bem cuidados, como tudo o que
é explorado; nunca mal vestidos, nunca mal alimentados, tratados quase
como “senhorezinhos”, melhor com a falsa mãe do que com a verdadeira.
Magnon bancava a dama e não falava gíria na frente deles.
Assim se passaram alguns anos. O pai Thénardier tirava disso boas
conjecturas. Um dia chegou a dizer a Magnon, quando esta lhe entregava
os dez francos mensais:
— Vai ser preciso que “o pai” lhes dê educação.
De repente, as duas pobres crianças, até então bastante protegidas
inclusive por sua má sorte, foram bruscamente jogadas na vida, e
obrigadas a começá-la.
Uma prisão em massa de malfeitores, como aquela da espelunca
Jondrette, necessariamente seguida de averiguações e de prisões
posteriores, é um verdadeiro desastre para essa hedionda contra-sociedade
oculta que vive por baixo da sociedade pública; um acontecimento desse
gênero leva a todo tipo de desabamentos nesse mundo sombrio. A
catástrofe dos Thénardier produziu a de Magnon.
Um dia, pouco tempo depois de Magnon ter entregue a Éponine o
bilhete relativo à rua Plumet, ocorreu uma inesperada visita da polícia à
rua Clocheperce; Magnon foi presa, bem como Mamselle Miss, e toda
aquela gente que era suspeita passou pela malha da polícia. Durante esse
tempo, os dois meninos brincavam no fundo do quintal e nada viram da
correria. Quando tentaram entrar, acharam a porta fechada e a casa vazia.
Um sapateiro de uma barraquinha que ficava em frente chamou-os e
entregou-lhes um papel que “a mãe” lhes deixara. No papel havia um
endereço: Senhor Barge, procurador, rua Roi-de-Sicile, número 8. O
homem da barraca lhes disse: “Vocês não moram mais aqui. Vão a esse
lugar, é perto. Primeira rua à esquerda. Perguntem o caminho com esse
papel aí”.
As crianças partiram, o mais velho conduzindo o mais novo e levando
na mão o papel que devia guiá-los. Ele tinha frio, e seus dedinhos
dormentes, com pouca firmeza, seguravam o papel com dificuldade. Ao
virar a rua Clocheperce, uma rajada de vento o arrancou de sua mão, e,
como a noite chegava, o menino não pôde mais encontrá-lo. Puseram-se a
errar ao acaso pelas ruas.

II. EM QUE O PEQUENO GAVROCHE TIRA PARTIDO


DE NAPOLEÃO , O GRANDE
A primavera em Paris é, com muita frequência, atravessada por ventos
do norte impiedosos e rudes, com os quais fica-se, não exatamente
enregelado, mas gelado; esses ventos, que entristecem os mais belos dias,
causam o exato efeito dos sopros de ar frio que entram em um quarto
aquecido pelas frestas de uma janela ou de uma porta mal fechada. É como
se a sombria porta do inverno ficasse entreaberta e o vento viesse por ali.
Na primavera de 1832, época em que aflorou a primeira grande epidemia
deste século na Europa, as ventanias eram mais ásperas e mais pungentes
do que nunca. Era uma porta mais glacial ainda do que aquela do inverno
que ficara entreaberta. Era a porta do sepulcro. Sentia-se naquelas
ventanias o hálito do cólera.
Do ponto de vista meteorológico, esses ventos frios tinham a
particularidade de não excluir uma forte tensão elétrica. Frequentes
tempestades, acompanhadas de trovões e relâmpagos, ocorreram naquela
época.
Uma tarde em que esses ventos sopravam rudemente, a ponto de
parecer que se estava em janeiro e de fazer os burgueses voltarem a usar
seus casacos, o pequeno Gavroche, sempre tiritando alegremente sob seus
farrapos, mantinha-se de pé, e como que em êxtase, diante da loja de um
cabeleireiro dos arredores de l’Orme-Saint-Gervais. Estava enrolado em
um xale feminino de lã, achado não se sabe onde, com o qual protegia o
nariz. O pequeno Gavroche parecia admirar profundamente uma noiva de
cera, decotada e enfeitada com uma grinalda de flores de laranjeira, que
girava na vitrine, mostrando a quem passava, entre dois candeeiros, seu
sorriso; mas, na realidade, ele observava a loja para ver se poderia
“surrupiar” da vitrine uma barra de sabonete que, em seguida, revenderia
por um soldo a algum “barbeiro” dos arredores. Não poucas vezes,
almoçava graças a um desses sabonetes. Chamava esse gênero de trabalho,
para o qual tinha talento, de “fazer a barba dos barbeiros”.
Ao mesmo tempo que contemplava a noiva e espreitava a barra de
sabonete, resmungava o seguinte entre os dentes: — Terça-feira. — Não,
não é terça-feira. — É terça-feira? — Talvez seja terça-feira — É, sim, é
terça-feira.
Nunca se soube com o que tinha relação tal monólogo.
Se, por acaso, esse monólogo se referisse à última vez que tinha
jantado, fazia três dias, pois era uma sexta-feira.
O cabeleireiro, em sua loja aquecida por um bom fogareiro, barbeava
um freguês e, de tempos em tempos, lançava um olhar de través àquele
inimigo, àquele moleque gelado e descarado que tinha as mãos nos bolsos,
mas o espírito claramente em outro lugar.
Enquanto Gavroche examinava a noiva, as vidraças e os Windsor-
soaps, dois meninos de estatura desigual, até que bem vestidos e menores
ainda do que ele, um deles parecendo ter sete anos e o outro cinco, giraram
timidamente a maçaneta e entraram na loja, pedindo não se sabe o que,
talvez alguma esmola, com um murmúrio queixoso que mais parecia um
gemido do que uma súplica. Os dois falavam ao mesmo tempo, e suas
palavras eram ininteligíveis porque os soluços embargavam a voz do mais
novo e o frio fazia o mais velho bater os dentes. O barbeiro voltou-se com
ar furioso e, sem soltar sua navalha, empurrou o mais velho com a mão
esquerda e o mais novo com o joelho; colocou os dois na rua e fechou a
porta, dizendo:
— Vir esfriar todo o mundo a troco de nada!
Os dois meninos voltaram a caminhar, chorando.
Enquanto isso, uma nuvem que passava começou a desaguar.
O pequeno Gavroche correu atrás deles e os abordou:
— O que há com vocês, garotos?
— A gente não sabe onde vai dormir — respondeu o mais velho.
— É isso? — disse Gavroche. — Mas que grande coisa! É por isso que
estão chorando? Como são tolinhos!
E tomando, com sua superioridade um tanto cheia de gracejo, um
acento de autoridade enternecida e de meiga proteção:
— Crianças, venham comigo.
— Sim, senhor — disse o mais velho.
E os dois o seguiram como teriam seguido um arcebispo. Tinham
parado de chorar. Gavroche os fez subir a rua Saint-Antoine em direção à
Bastilha, e, ao caminhar, lançou um olhar indignado e retrospectivo para a
barbearia.
— Não tem coração essa baleia — murmurou ele —, esse inglês
cortador de barba.
Uma moça, vendo os três andando em fila, Gavroche à frente, soltou
uma risada indiscreta. Essa risada faltava com respeito ao grupo.
— Bom dia, manselle Ônibus3 — disse-lhe Gavroche.
Um instante depois, voltando a lembrar do barbeiro, acrescentou:
— Enganei-me de animal; não é uma baleia, é uma serpente. Ah, seu
cabeleireiro, vou arranjar um serralheiro e vou mandar colocar uma
campainha em seu rabo.
Esse cabeleireiro o deixara agressivo. Ao saltar uma enxurrada, disse a
uma porteira barbuda, digna de encontrar Fausto no Brocken, e que estava
com uma vassoura na mão:
— Madame, então a senhora sai com seu cavalo?
E, ao mesmo tempo, respingava de lama as botas de verniz de um
sujeito que passava.
— Patife! — gritou o sujeito furioso.
Gavroche, pondo o nariz fora do xale:
— O senhor está se queixando?
— De você! — disse o passante.
— A repartição está fechada — disse Gavroche —; não recebo mais
queixas.
Continuando a subir a rua, avistou, toda gelada, debaixo de um portão,
uma mendiga de treze ou catorze anos, com uma roupa tão curta que viam-
se seus joelhos. A menina começava a ficar grande demais para andar
daquele jeito. Crescer tem dessas coisas. A saia se torna curta no momento
em que a nudez se torna indecente.
— Pobre menina! — disse Gavroche. — Não tem nem mesmo calças.
Tome, fique com isto.
E, desenrolando toda aquela lã que trazia em volta do pescoço, jogou-a
sobre os magros e roxos ombros da mendiga; o que protegia seu nariz
voltou a ser um xale.
A menina olhou para ele com ar admirado e recebeu o xale em
silêncio. Em certo grau de miséria, o pobre, em seu estupor, nem geme
com o mal nem agradece o bem.
Feito isso:
— Brr! — disse Gavroche, tiritando mais que São Martinho, que, pelo
menos, ficou com metade de seu casaco.
Após aquele brr! o aguaceiro, redobrando em mau humor, recrudesceu.
Esses céus malvados punem as boas ações.
— Essa agora! — exclamou Gavroche. — O que significa isto? Está
rechovendo! Meu Deus, se isso continuar, cancelo minha assinatura.
E voltou a caminhar.
— Não importa — tornou ele, dando uma olhada para a mendiga que
se embrulhava no xale —; ali está alguém com uma bela casca!
E olhando para as nuvens exclamou:
— Vão andando!
Os dois meninos apertavam o passo atrás dele.
Ao passar por um desses espessos gradeados que indicam uma padaria,
pois o pão é colocado atrás de grades de ferro, como o ouro, Gavroche
virou-se e disse:
— É mesmo, crianças, já jantamos?
— Senhor — respondeu o mais velho —, nós não comemos desde esta
manhã.
— Então vocês não têm pai nem mãe? — tornou Gavroche
majestosamente.
— Desculpe, senhor, nós temos pai e mãe, mas não sabemos onde eles
estão.
— Às vezes, é melhor assim do que saber — disse Gavroche, que era
um verdadeiro pensador.
—Já faz duas horas que estamos andando — continuou o mais velho
—, procuramos alguma coisa por todo canto, mas não achamos nada.
— Eu sei — disse Gavroche —, são os cachorros que comem tudo.
E após uma pausa continuou:
— Ah! Então perdemos nossos “autores”. Não sabemos mais o que foi
feito deles. Isso não pode acontecer, meninos. É besteira se perder assim
das pessoas de idade. Mas agora precisamos mesmo comer alguma coisa.
De resto, não lhes fez outras perguntas. Não ter domicílio, o que há de
mais simples?
O mais velho dos meninos, voltando quase inteiramente à pronta
despreocupação da infância, fez esta afirmação:
— Estranho isso; minha mãe falou que ia levar a gente para buscar um
galho de buxo bento no domingo de Ramos.
— Puxa — respondeu Gavroche.
— Minha mãe — tornou o mais velho — é uma senhora que mora com
Mamselle Miss.
— É mesmo? — replicou Gavroche.
Enquanto isso, ele havia parado e, por alguns minutos, apalpou e
revistou todo tipo de cantinho que tinha em seus farrapos.
Por fim, levantou a cabeça de um modo que queria mostrar apenas
satisfação, mas que na realidade mostrava triunfo.
— Vamos nos acalmar, crianças. Aqui está com o que cear, para os
três.
E tirou um soldo de um de seus bolsos.
Sem dar aos dois pequenos tempo de se espantarem, empurrou-os para
dentro da padaria e colocou o soldo em cima do balcão, gritando:
— Rapaz, cinco cêntimos de pão!
O padeiro, que era o próprio dono da padaria, pegou um pão e uma
faca.
— Em três pedaços, rapaz! — tornou Gavroche, e acrescentou com
dignidade: — Somos três!
E, vendo que o padeiro, após examinar os três convivas, pegara um pão
escuro, meteu profundamente o dedo no nariz, com tão imperiosa
aspiração quanto se tivesse na extremidade do polegar a pitada de tabaco
do grande Frederico, e atirou em pleno rosto do padeiro esta indigna
apóstrofe:
— Keksekça?
Nossos leitores que se sentirem tentados a ver nessa interpelação de
Gavroche ao padeiro uma palavra russa ou polonesa, ou um daqueles
gritos selvagens que os Yoways e os Botocudos se lançam de uma margem
a outra do rio, que fiquem prevenidos de que não passa de uma expressão
que usam todo dia (eles, os leitores) e tomou o lugar desta frase: qu’est-ce
que c’est que cela? [o que que é isso?]
O padeiro compreendeu perfeitamente e respondeu:
— Mas, ora! É pão, ótimo pão de segunda qualidade.
— O senhor quer dizer larton brutal4 — replicou Gavroche, calma e
friamente desdenhoso. — Pão branco, rapaz! Larton ensaboado! Estou
dando banquete.
O padeiro não pôde impedir-se de sorrir, e, enquanto partia o pão,
contemplava-os de um modo compassivo que chocou Gavroche.
— Ora essa, seu padeiro! — disse ele. — Por que está medindo a gente
desse jeito?
De ponta a ponta, os três juntos mal chegariam a dois metros.
Partido o pão, o padeiro embolsou a moeda e Gavroche disse para os
meninos:
— Avancem.
Os meninos olharam confusos para ele. Gavroche começou a rir:
— Ah! É verdade, ainda não sabem; são muito pequenos.
E tornou:
— Comam.
Ao mesmo tempo, dava a cada um um pedaço de pão.
E, achando que o mais velho, que lhe parecia mais digno de sua
conversa, merecia um encorajamento especial e devia ser desembaraçado
de qualquer hesitação em satisfazer seu apetite, acrescentou, dando-lhe o
pedaço maior:
— Ponha esta bala no fuzil.
Havia um pedaço menor que os outros, que ele pegou para si.
Os pobres meninos estavam famintos, inclusive Gavroche. Rasgando o
pão com belas dentadas, estorvavam a loja do padeiro, que, agora já pago,
olhava para eles de cara feia.
— Vamos voltar para a rua — disse Gavroche.
Retomaram seu caminho em direção à Bastilha.
De vez em quando, quando passavam diante das vitrines das lojas
iluminadas, o menor parava para ver as horas em um relógio de chumbo
que trazia preso ao pescoço por um cordão.
— Esse aí decididamente é muito palerma! — pensava Gavroche.
Depois, pensativo, dizia entre os dentes:
— Se eu tivesse fedelhos, tomaria mais conta deles do que isso.
Quando terminavam de comer o pão e chegavam à esquina da
melancólica rua des Ballets, no final da qual se distingue a estreita e hostil
entrada da Force:
— Então, é você, Gavroche? — disse alguém.
— Então, é você, Montparnasse? — disse Gavroche.
Era um homem que acabava de abordá-lo, ninguém menos que
Montparnasse disfarçado, com uns velhos óculos azuis, mas reconhecível
para Gavroche.
— Bravo! — prosseguiu Gavroche. — Você está com a casca cor de
cataplasma de linhaça e com uns óculos azuis feito um médico. Você tem
estilo, palavra, velho!
— Chut! — fez Montparnasse. — Não fale tão alto.
E levou Gavroche com precipitação para longe da luz das lojas.
Os dois pequenos iam atrás maquinalmente, de mãos dadas.
Quando chegaram sob o arco escuro de um portão, ao abrigo de olhares
e da chuva:
— Sabe aonde eu vou? — perguntou Montparnasse.
— À abadia de Monte-à-Regret5 — disse Gavroche.
— Engraçadinho!
E Montparnasse prosseguiu:
— Vou encontrar Babet.
— Ah! Ela se chama Babet? — disse Gavroche.
Montparnasse baixou a voz.
— Não é ela, é ele.
— Ah! Babet!
— É, Babet.
— Pensei que estivesse engaiolado.
— Ele desmontou a gaiola — respondeu Montparnasse.
E contou-lhe rapidamente que, na manhã desse mesmo dia em que
estavam, quando era transferido para outra prisão, Babet se evadira,
virando à esquerda, em vez de virar à direita, no “corredor de instrução”.
Gavroche admirou sua habilidade.
— Que dentista! — disse ele.
Montparnasse acrescentou alguns pormenores sobre a evasão de Babet
e terminou desta forma:
— Ah! Mas isso não é tudo!
Enquanto escutava, Gavroche pegara uma bengala que Montparnasse
trazia na mão e, maquinalmente, tirara sua ponteira superior; a lâmina de
um punhal apareceu.
— Oh! — exclamou ele, empurrando rapidamente o punhal.—Trouxe
seu soldado disfarçado de burguês?
Montparnasse piscou o olho.
— Diabos! — tornou Gavroche. — Então você vai se atracar com os
gambés?
— Sei lá — respondeu Montparnasse com ar indiferente —; sempre é
bom ter um alfinete com a gente.
Gavroche insistiu:
— Mas então o que você vai fazer esta noite?
Montparnasse retomou o tom grave e disse mastigando as sílabas:
— Umas coisas.
E mudando subitamente de assunto:
— A propósito!
— O quê?
— Uma história de outro dia. Imagine só. Encontrei um burguês que
me deu de presente um sermão e sua bolsa. Na hora, a meti no bolso. Um
minuto depois remexo nele. Não tinha mais nada.
— Só o sermão — disse Gavroche.
— Mas, e você — continuou Montparnasse —, aonde está indo agora?
Gavroche mostrou seus dois protegidos e disse:
— Vou pôr esses dois na cama.
— Onde, isso?
— Na minha casa.
— Sua casa, onde?
— Na minha casa.
— Então você tem casa?
— Tenho.
— Onde é sua casa?
— No elefante — disse Gavroche.
Montparnasse, embora de natureza pouco admirada, não pôde conter
uma exclamação:
— No elefante!
— É, isso mesmo, no elefante! — replicou Gavroche. — Kekçaa?
Essa também é uma palavra da língua que ninguém escreve mas que
todo o mundo fala, e significa: qu’est-ce que cela a? — o que tem isso?
A profunda observação do moleque devolveu Montparnasse à calma e
ao bom senso. Pareceu retomar melhores sentimentos pelo alojamento de
Gavroche.
— É mesmo! — disse. — Claro, o elefante. Lá é bom?
— Muito bom — disse Gavroche —, uma beleza mesmo. Não tem
vento encanado como embaixo das pontes.
— Como você entra?
— Entrando.
— Mas então tem um buraco? — perguntou Montparnasse.
— Ora bolas! Mas não é pra abrir a boca. Fica entre as pernas da
frente. Os gambés não descobriram.
— Você sobe por ali? Já entendi.
— Rapidinho, cric, crac, pronto, não se vê mais ninguém.
Após uma pausa, Gavroche acrescentou:
— Para esses pequenos, vou arranjar uma escada.
Montparnasse se pôs a rir.
— Onde diabos você arranjou esses pirralhos aí?
Gavroche respondeu com simplicidade:
— São dois molequinhos que ganhei de presente de um barbeiro.
Montparnasse, no entanto, tornara-se pensativo.
— Você me reconheceu com facilidade — murmurou ele.
Tirou do bolso dois pequenos objetos, que não eram nada mais que
dois canudos de pena envoltos em algodão, e introduziu um em cada
narina. Isso lhe transformava o nariz.
— Você mudou — disse Gavroche —, ficou menos feio; devia usar
isso sempre.
Montparnasse era um belo rapaz, mas Gavroche gostava de brincar.
— Sem brincadeira — disse Montparnasse —, o que você acha?
Falou também com outro tom de voz. Em um piscar de olhos ficara
irreconhecível.
— É o próprio Porrichinelle! — exclamou Gavroche.
Os dois pequenos, que até então nada tinham escutado, tão ocupados
estavam em enfiar os próprios dedos no nariz, ao ouvirem esse nome se
aproximaram e olharam para Montparnasse com um começo de alegria e
de admiração.
Infelizmente, Montparnasse estava preocupado.
Pôs a mão no ombro de Gavroche e disse-lhe, acentuando as palavras:
— Escute o que lhe digo, moleque, se eu estivesse na praça com meu
dogue, minha dague e minha digue, e se me distribuíssem dez belas
moedas, não me recusaria a dar duro, mas não estamos na terça-feira
gorda.
Esta frase esquisita produziu em Gavroche um singular efeito. Voltou-
se rapidamente, passeou seus pequenos olhos azuis e brilhantes em torno
de si com profunda atenção, e percebeu, a poucos passos de distância, um
guarda municipal de costas para eles. Deixou escapar um: “Ah, bom!”, que
imediatamente reprimiu, e apertando a mão de Montparnasse:
— Bem, boa noite — disse —, vou para o meu elefante com meus
garotinhos. Se por acaso precisar de mim alguma noite, me procure lá.
Moro no sótão. Não tem porteiro. Chame pelo senhor Gavroche.
— Está bem — disse Montparnasse.
Separaram-se, Montparnasse indo em direção à Grève e Gavroche em
direção à Bastilha. O pequeno de cinco anos, levado por seu irmão, que era
levado por Gavroche, voltou diversas vezes a cabeça para trás, para ver
“Porrichinelle” ir embora.
A frase anfigúrica pela qual Montparnasse advertira Gavroche da
presença do guarda municipal não continha outro talismã além da
assonância dig repetida algumas vezes de formas variadas. Essa sílaba,
dig, não pronunciada isoladamente, mas artisticamente combinada às
palavras de uma frase, quer dizer: Cuidado, não se pode falar livremente.
Além disso, havia na frase de Montparnasse uma beleza literária que
escapou a Gavroche: meu dogue, minha dague e minha digue, locução da
gíria do Temple que significa meu cão, minha adaga e minha mulher,
muito usada entre os palhaços do grande século em que Molière escrevia e
Callot desenhava.
Há vinte anos, via-se ainda no ângulo sudeste da praça da Bastilha,
perto da estação do canal, cavada no antigo fosso da prisão-cidadela, um
monumento esquisito que já se apagou da memória dos parisienses, mas
que merecia nela deixar alguma marca, pois era algo idealizado pelo
“membro do Instituto, general-chefe do exército do Egito”.
Dizemos monumento, embora não fosse mais que uma maquete. Mas
essa maquete, esboço prodigioso, cadáver grandioso de uma ideia de
Napoleão, que duas ou três sucessivas rajadas de vento haviam carregado e
lançado cada vez mais longe de nós, tornara-se histórica e tomara um não
sei que de definitivo que contrastava com seu aspecto provisório. Era um
elefante de doze metros de altura, construído em madeira e alvenaria,
levando nas costas sua torre que se assemelhava a uma casa, outrora
pintado de verde por um passa-tintas qualquer e atualmente pintado de
preto pelo céu, pela chuva e pelo tempo. Do ângulo deserto e descoberto
da praça, a larga fronte do colosso, sua tromba, suas presas, sua torre, seu
dorso enorme, suas quatro patas parecendo colunas, à noite, formavam
contra o céu estrelado uma silhueta surpreendente e terrível. Não se sabia
o que aquilo significava. Era uma espécie de símbolo da força popular. Era
uma coisa sombria, enigmática e imensa. Era como um fantasma
poderoso, visível, de pé ao lado do espectro invisível da Bastilha.
Poucos estrangeiros visitavam esse edifício, nem um só transeunte
olhava para ele. Caiu em ruínas; a cada estação, pedaços de reboque que se
soltavam dos flancos abriam-lhe chagas horríveis. Os “edis”, como se diz
em linguagem elegante, o haviam esquecido desde 1814. Ficara lá, no seu
canto, triste, doente, desabando, cercado por um tapume apodrecido,
manchado a cada instante por cocheiros bêbados; fendas abrindo-lhe o
ventre, uma ripa saindo-lhe da cauda, um mato crescido subindo-lhe pelas
pernas; e como o nível da praça, havia trinta anos, se elevava a seu redor
por causa do lento e contínuo movimento que insensivelmente levanta o
solo das grandes cidades, ele estava em um buraco, era como se a terra
afundasse debaixo dele. Estava imundo, desprezado, repelente e soberbo,
feio aos olhos do burguês, melancólico aos olhos do pensador. Tinha algo
de uma imundície que vão varrer e algo de uma majestade que vão
decapitar.
Como já dissemos, à noite, o aspecto mudava. A noite é o verdadeiro
meio de tudo aquilo que é sombra. Desde que o crepúsculo chegava, o
velho elefante se transfigurava; ficava com aspecto tranquilo e temível na
formidável serenidade da escuridão. Sendo algo do passado, era algo da
noite; e aquela obscuridade condizia com sua grandeza.
Esse monumento, rude, atarracado, pesado, áspero, austero, quase
disforme, mas certamente majestoso e marcado por uma espécie de
gravidade magnífica e selvagem, desapareceu para deixar reinar em paz
aquele tipo de fogareiro gigantesco, ornado com sua chaminé, que
substituiu a sombria fortaleza de nove torres, mais ou menos como a
burguesia substituiu o feudalismo. Nada mais natural que um fogareiro
seja o símbolo de uma época em que um dos caldeirões contenha o poder.
Essa época passará, já está passando; começa-se a compreender que, se
pode haver força em uma caldeira, só pode haver poder em um cérebro;
em outras palavras, o que conduz e arrasta o mundo não são as
locomotivas, são as ideias. Atrelem as locomotivas às ideias, está bem,
mas não tomem o cavalo pelo cavaleiro.
Seja como for, para voltar à praça da Bastilha, o arquiteto do elefante,
com argamassa, conseguiu fazer algo de grande; o arquiteto do tubo da
chaminé, com o bronze, conseguiu fazer algo de pequeno.
Esse tubo, batizado com o sonoro nome de Coluna de Julho, esse
monumento defeituoso de uma revolução abortada, em 1832 ainda estava
envolto por uma imensa camisa de madeira, que, de nossa parte,
lamentamos, e por um vasto cercado de tábuas, que acabava de isolar o
elefante.
Foi para esse recanto da praça, mal iluminado pelo reflexo de um
lampião afastado, que Gavroche levou as duas “crianças”.
Permitam nos interrompermos aqui para lembrar que estamos tratando
da simples realidade, e que, há vinte anos, os tribunais correcionais
tiveram de julgar, sob acusação de vagabundagem e arrombamento de um
monumento público, um garoto que fora surpreendido deitado no interior
do mesmo elefante da Bastilha.
Relatado esse fato, podemos continuar.
Chegando perto do colosso, Gavroche avaliou o efeito que o
infinitamente grande pode ter sobre o infinitamente pequeno e disse:
— Meninos, não tenham medo!
Então, entrou por uma fresta do tapume no cercado do elefante e
ajudou os meninos a passarem pela brecha. Os dois pequenos, um pouco
assustados, seguiam Gavroche sem dizer uma palavra e confiando-se a
essa pequena providência em farrapos que lhes havia dado de comer e
prometido um abrigo.
Havia ali, deitada ao longo do tapume, uma escada que, de dia, servia
aos operários de um canteiro de obras vizinho. Gavroche levantou-a com
singular vigor e encostou-a em uma das pernas dianteiras do elefante. Na
direção do ponto onde a escada ia se apoiar, distinguia-se um buraco negro
no ventre do colosso.
Gavroche mostrou a escada e o buraco a seus hóspedes e lhes disse:
— Subam e entrem.
Os dois meninos entreolharam-se apavorados.
— Vocês estão com medo, crianças! — exclamou Gavroche.
E acrescentou:
— Então vejam.
Agarrou-se ao rugoso pé do elefante e, em um piscar de olhos, sem
dignar-se a se servir da escada, chegou ao buraco. Entrou como uma cobra
que desliza por uma fenda, meteu-se lá dentro, e, um momento depois, os
dois meninos viram vagamente sua cabeça reaparecer, como uma forma
esbranquiçada e pálida, na borda do buraco envolto em trevas.
— Pois bem, vamos, subam, fedelhinhos! — gritou ele. — Vocês vão
ver como aqui a gente está bem! Suba você, vou lhe dar a mão — disse ao
mais velho.
Os dois se empurraram com os ombros, o moleque lhes dava medo e os
tranquilizava ao mesmo tempo, e, além disso, chovia forte. O mais velho
se arriscou. O mais novo, vendo seu irmão subir e ele mesmo ficar sozinho
entre as patas daquele bicho enorme, bem que tinha vontade de chorar,
mas não se atrevia.
O mais velho subia, cambaleando, os degraus da escada; ao longo do
caminho, Gavroche o encorajava com exclamações de um mestre de armas
a seus discípulos ou de um condutor de bestas a suas mulas:
— Não tenha medo!
— Assim!
— Continue!
— Ponha o pé ali!
— A mão aqui.
— Bravo!
E quando estava a seu alcance, segurou-o rápida e vigorosamente pelo
braço e puxou-o para cima.
— Está pego! — disse ele.
O menino ultrapassara o buraco.
— Agora — disse Gavroche — me espere. Senhor, tenha a bondade de
sentar-se.
E, saindo do buraco como tinha entrado, deixou-se escorregar com a
agilidade de um saguizinho pela perna do elefante, caiu de pé no mato,
pegou o pequeno de cinco anos debaixo do braço e o colocou bem no meio
da escada e se pôs a subir atrás dele, gritando ao mais velho:
— Eu empurro e você puxa.
Em um instante, o pequeno foi guindado, empurrado, arrastado,
puxado e enfiado no buraco sem ter tempo de dar-se conta; e Gavroche,
entrando atrás dele, empurrando com um pontapé a escada, que caiu no
meio do mato, pôs-se a bater palmas e gritou:
— Eis a gente aqui! Viva o general Lafayette!
E, passada essa explosão, acrescentou:
— Crianças, vocês estão na minha casa.
Gavroche, de fato, estava em sua casa.
Ó inesperada utilidade do inútil! Caridade das coisas grandes! Bondade
dos gigantes! Esse monumento descomunal, que era a expressão de um
pensamento do imperador, se transformara na casa de um garoto. O
menino fora aceito e recebera abrigo do colosso. Os burgueses
endomingados que passavam diante do elefante da Bastilha gostavam de
dizer, quando o mediam com seus olhos à flor do rosto, e com ar de
desprezo: “Para que serve isto?”
Aquilo servia para salvar do frio, da geada, da neve, da chuva, para
abrigar do vento de inverno, para preservar do sono na lama, que causa
febre, e do sono na neve, que causa a morte, um pequeno ser sem pai nem
mãe, sem pão, sem roupa, sem asilo. Aquilo servia para recolher o
inocente que a sociedade rejeitava. Aquilo servia para atenuar o delito
público. Era uma toca aberta àquele para quem todas as portas estavam
fechadas. Parecia que o velho mastodonte miserável, atacado pelos vermes
e pelo esquecimento, coberto de verrugas, de bolor e de úlceras,
cambaleante, carcomido, abandonando, condenado, espécie de mendigo
colossal pedindo em vão a esmola de um olhar benévolo nos cruzamentos,
tivera pena, ele, daquele outro mendigo, do pobre pigmeu vagando sem
nada nos pés, sem um teto sobre a cabeça, soprando para aquecer os dedos,
vestido com trapos, alimentado com o que jogam fora. Eis para o que
servia o elefante da Bastilha. Essa ideia de Napoleão, desdenhada pelos
homens, fora retomada por Deus. O que teria apenas sido ilustre, tornara-
se augusto. Para que o imperador realizasse o que planejara, precisaria de
pedra, de bronze, de ferro, de ouro, de mármore; para Deus, o velho
conjunto de pranchas, de vigas e de estuque era suficiente. O imperador
tivera um sonho de gênio; naquele elefante titânico, armado, prodigioso,
de tromba erguida, carregando sua torre, fazendo brotar por toda parte à
sua volta águas alegres e vivificantes, queria encarnar o povo; Deus fizera
dele coisa maior, ali alojara uma criança.
O buraco por onde Gavroche havia entrado era uma brecha que mal se
via de fora, escondida como ficava, já o dissemos, sob o ventre do
elefante, e tão estreita que nada além de gatos e crianças poderia por ali
passar.
— Vamos começar dizendo ao porteiro — disse Gavroche — que não
estamos aqui.
E mergulhando na escuridão com a segurança de alguém que conhece
seu apartamento, pegou uma tábua e com ela tapou o buraco.
Tornou a mergulhar na escuridão. Os meninos ouviram o ruído do
fósforo colocado na garrafa fosfórica. O fósforo químico ainda não existia;
nessa época, o isqueiro Fumade representava o progresso.
Uma claridade súbita fez com que fechassem os olhos; Gavroche
acabava de acender um desses pedaços de barbante encharcados de resina
que são chamados de ratos de porão. O rato de porão, que mais produzia
fumaça do que iluminava, deixava confusamente visível o interior do
elefante.
Os dois hóspedes de Gavroche olharam ao redor e experimentaram
algo semelhante ao que experimentaria alguém que fosse fechado dentro
do grande tonel de Heidelberg, ou, melhor ainda, ao que Jonas deve ter
sentido dentro do ventre bíblico da baleia. Todo um gigantesco esqueleto
mostrava-se a eles e os envolvia. No alto, uma longa trave escura, de onde
partiam, a certos intervalos, maciços conjuntos de membros curvados,
dava a impressão de uma coluna vertebral com as costelas; estalactites de
estuque pendiam dali como vísceras; e de um lado ao outro vastas teias de
aranha formavam diafragmas empoeirados. Viam-se, aqui e ali, pelos
cantos, grandes manchas pretas que pareciam estar vivas e que se
deslocavam rapidamente com um movimento rápido e assustado.
Os fragmentos caídos do dorso do elefante sobre seu ventre
preenchiam a concavidade, de modo que podia-se caminhar por ali como
sobre um assoalho.
O menorzinho aconchegou-se no irmão e disse a meia voz:
— É escuro.
Essas palavras fizeram Gavroche estrilar. O ar petrificado dos dois
pequenos tornava uma bronca necessária.
— O que estão resmungando? — exclamou ele. — Estamos de
brincadeira? Estamos bancando os delicados? Será que não queriam as
Tulherias? Será que são umas bestas? Vão dizendo. Vou logo avisando que
não sou do regimento dos palermas. Ora essa! Ou vocês são os
carneirinhos do pastorzinho do papa?
Um pouco de aspereza faz bem ao medo. Tranquiliza. Os dois
pequenos se reaproximaram de Gavroche, que, paternalmente enternecido
com essa confiança, passou “do rude ao terno”, e dirigindo-se ao mais
novo:
— Bobinho — disse-lhe, acentuando a injúria com um tom carinhoso
—, é lá fora que está escuro. Lá fora chove, aqui não chove; lá fora está
frio, aqui não entra um pingo de vento; lá fora está cheio de gente, aqui
não tem ninguém; lá fora não tem nem lua, aqui tem minha vela, seu
tontinho!
Os dois pequenos começaram a olhar o apartamento com menos temor,
mas Gavroche não lhes deu muito mais tempo para o lazer da
contemplação.
— Rápido — disse ele.
E empurrou-os para aquilo que, muito felizes, podemos chamar de
fundo do quarto.
Ali ficava sua alcova.
A cama de Gavroche era completa. Quer dizer que tinha um colchão,
uma coberta e um cortinado.
O colchão era uma esteira de palha; a coberta, um vasto pano de lã
escura, muito quente e quase nova. Eis no que consistia a alcova: três
estacas bem longas enterradas e consolidadas no entulho do chão, isto é,
do ventre do elefante, duas na frente e uma atrás, reunidas no topo por
meio de uma corda, de modo a formar um feixe piramidal. Esse feixe
sustentava uma armação de arame que era simplesmente posta por cima,
porém artisticamente aplicada e presa por ganchos de ferro, de forma a
envolver inteiramente as três estacas. Uma fileira de pedras volumosas
fixava toda a volta dessa armação no chão, não deixando nada passar por
baixo. Essa armação nada mais era que um pedaço dessas telas de cobre
com que se fecham viveiros de aves. A cama de Gavroche ficava sob essa
tela, como dentro de uma gaiola. O conjunto se assemelhava a uma tenda
de esquimó.
Era essa tela que fazia o papel de cortinado.
Gavroche empurrou um pouco as pedras que seguravam a tela na parte
da frente, e os dois lados da armação que se sobrepunham um ao outro se
afastaram.
— Crianças, de quatro! — disse Gavroche.
Com cautela, fez seus hóspedes entrarem na gaiola; entrou depois
deles, se arrastando, e recolocou as pedras para fechar hermeticamente a
abertura.
Deitaram-se os três sobre a palha.
Por menores que fossem, nenhum deles poderia ficar de pé dentro da
alcova. Gavroche trazia sempre o rato de porão na mão.
— Agora — disse ele — durmam! Vou apagar o candelabro.
— Senhor — perguntou o mais velho dos dois irmãos a Gavroche,
apontando para a tela —, o que é isto?
— Isso — disse Gavroche gravemente — é por causa dos ratos.
Durmam.
No entanto, sentiu-se obrigado a acrescentar algumas palavras para a
instrução daqueles dois seres de tão pouca idade, e continuou:
— São coisas do Jardim Botânico. Serve para os animais ferozes. Ali
tem um depósito cheio disso. É só saltar um muro, subir por uma janela e
passar por baixo de uma porta. A gente pega quanto quiser.
Enquanto falava, cobria com uma ponta da coberta o menorzinho, que
murmurou:
— Oh! É bom, está quentinho!
Gavroche lançou um olhar de satisfação para a coberta.
— Também é do Jardim Botânico. Peguei isso dos macacos.
E, apontando ao mais velho a esteira de palha sobre a qual estava
deitado, muito espessa e admiravelmente trabalhada, acrescentou:
— Isso era da girafa.
Após uma pausa, prosseguiu:
— Os animais tinham tudo isso. Eu fui pegando deles. Eles não
ficaram bravos. Eu disse a eles: “É para o elefante”.
Ficou outra vez em silêncio e retomou:
— A gente pula o muro e que se dane o governo. Pronto.
Os dois meninos consideravam com um respeito temeroso e espantado
aquele ser intrépido e inventivo, vagabundo como eles, isolado como eles,
insignificante como eles, que tinha algo de admirável e de poderoso, que
lhes parecia sobrenatural, e cuja fisionomia se compunha de todas as
caretas de um velho saltimbanco mescladas ao mais ingênuo e encantador
sorriso.
— Senhor — disse timidamente o mais velho —, então não tem medo
dos guardas municipais?
Gavroche limitou-se a responder:
— Menino! Não se diz guardas municipais, se diz gambés.
O mais novo tinha os olhos abertos, mas não dizia nada. Como ele
estava na borda da esteira e o mais velho no meio, Gavroche ajeitou-lhe a
coberta como teria feito uma mãe, e levantou a esteira sob sua cabeça,
com uns trapos velhos, de modo a fazer-lhe um travesseiro. Depois voltou-
se para o mais velho.
— E então? Não estamos muito bem aqui?
— Estamos! — respondeu o mais velho, olhando para Gavroche com
uma expressão de anjo salvo.
Os dois pobres pequenos, que estavam bem molhados, começavam a se
aquecer.
— É verdade — continuou Gavroche —, por que era mesmo que vocês
estavam chorando?
E apontando o pequeno ao irmão:
— Um criançola como este, não digo nada, mas um do seu tamanho,
chorando, é ridículo; parece um bezerrinho.
— Puxa — disse o menino —, a gente ficou sem casa nenhuma para ir.
— Pimpolho! — replicou Gavroche. — Não se diz casa, se diz barraco.
— E a gente também estava com medo de ficar assim sozinho de noite.
— Não se diz de noite, se diz de madruga.
— Obrigado, senhor — disse o menino.
— Escute — continuou Gavroche —, não precisa mais choramingar
por nada. Vou tomar conta de vocês. Você vai ver como a gente se diverte.
No verão, vamos à Glacière com Navet, um camarada meu, tomar banho
na estação, correr sem roupa em cima dos trens na frente da ponte de
Austerlitz; as lavadeiras morrem de raiva. Elas gritam, elas se irritam, se
você soubesse como elas são gozadas! Vamos ver o homem esqueleto. Ele
está vivo, em Champs-Élysées. É magro feito uma tripa, esse sujeito.
Depois vou levar vocês ao espetáculo, para ver Frédérick Lemaître. Tenho
as entradas, conheço uns atores, até já representei numa peça. A gente era
criança assim, correndo por baixo de um pano, fazia de conta que era o
mar. Vou fazer vocês entrarem para o meu teatro. Vamos ver os selvagens.
Mas esses selvagens não são de verdade. Usam maiôs cor-de-rosa que
fazem umas pregas e se vê nos cotovelos umas costuras com linha branca.
Depois disso, vamos ao Ópera. A gente entra com a claque. A claque do
Ópera é muito bem selecionada. Eu não iria com a claque para as ruas. No
Ópera, imagine só, tem quem pague vinte soldos, mas são uns bestas! São
chamados de fracotes. E depois vamos ver a guilhotina. Vou mostrar o
carrasco para vocês. Ele mora na rua des Marais, o senhor Sanson. Tem
uma caixa de correio na porta. Ah! Como a gente se diverte!
Nesse momento, uma gota de cera caiu no dedo de Gavroche fazendo
com que lembrasse das realidades da vida.
— Droga! — disse ele. — Lá vai a vela gastando. Atenção! Não posso
gastar mais que um soldo por mês com iluminação. Quando a gente se
deita, é para dormir. Não temos tempo de ler os romances do senhor Paul
de Kock.6 Além disso, a luz poderia passar pelas frestas do portão e os
gambés acabariam vendo.
— E também — observou timidamente o mais velho, único que ousava
conversar com Gavroche e responder-lhe —, a vela acesa poderia cair na
palha, é preciso tomar cuidado para não queimar a casa.
— Não se diz queimar a casa — retrucou Gavroche —, se diz tocar
fogo no barraco.
A tempestade dobrava de intensidade. Ouvia-se, em meio aos
estrondos de trovão, a chuvarada batendo no costado do colosso.
— Desaba, chuva! — disse Gavroche. — Eu me divirto ouvindo a água
escorrer pelas pernas da casa. O inverno é uma besta; perde a mercadoria,
perde o trabalho, não consegue molhar a gente e por isso ele resmunga,
esse velho carregador de água.
Essa alusão ao trovão, da qual Gavroche, em sua qualidade de filósofo
do século XIX, aceitava todas as consequências, foi seguida de um grande
relâmpago, tão resplandecente, que um pouco dele entrou pelo buraco no
ventre do elefante. Quase ao mesmo tempo, o raio fez seu estrondo, e
furiosamente. Os dois pequenos deram um grito, erguendo-se tão
rapidamente que a tela quase se deslocou. Mas Gavroche virou-se para
eles com sua cara de atrevido e aproveitou o trovão para cair na risada.
— Calma, crianças. Nada de chacoalhar o edifício. Esse foi um belo
trovão, na hora certa! Não foi um relâmpago qualquer. Bravo, nosso bom
Deus! Caramba! Foi quase tão bom quanto em Ambigu!
Dito isso, recompôs a tela, empurrou ternamente os meninos para a
cabeceira da cama, ajeitou seus joelhos para que ficassem bem estendidos
e exclamou:
— Já que o bom Deus acende a vela dele, posso assoprar a minha.
Crianças, temos que dormir, meus jovens humanos.
É muito ruim não dormir. Faz schlinguer a goela, ou, como se diz na alta
sociedade, faz a garganta feder. Enrolem-se bem na coberta! Vou apagar.
Estão prontos?
— Eu estou — respondeu o mais velho. — Parece que tem um
travesseiro de plumas embaixo da minha cabeça!
— Não se diz cabeça — gritou Gavroche —, se diz cachola.
Os dois pequenos ficaram bem juntinhos um do outro. Gavroche
terminou de acomodá-los na esteira e puxou o cobertor até cobrir-lhes as
orelhas; então repetiu a injunção em língua hierática:
— Apaguem!
E soprou o toco de vela.
Mal a luz se acabara, um estranho tremor começou a chacoalhar a tela
sob a qual os três meninos estavam deitados. Era uma multidão de atritos
surdos que produziam um som metálico, como se unhas e dentes fizessem
ranger os fios de arame. Isso era acompanhado de todo tipo de gritinhos
agudos.
O pequeno de cinco anos, ouvindo esse barulho acima de sua cabeça e
gelado de medo, acotovelou o irmão mais velho, mas o irmão mais velho
já havia “apagado”, como Gavroche lhe ordenara. Então o pequeno, não
aguentando mais de medo, ousou interpelar Gavroche, mas bem baixinho,
contendo a respiração:
— Senhor?
— Hein? — disse Gavroche, que acabava de fechar as pálpebras.
— O que é esse barulho?
— São os ratos — respondeu Gavroche.
E tornou a deitar a cabeça no travesseiro.
Efetivamente, os ratos, que pululavam aos milhares na carcaça do
elefante, e que eram aquelas vivas manchas pretas de que já falamos,
tinham sido mantidos em respeito pela claridade da vela enquanto esteve
acesa; mas desde que essa caverna, que era como a cidade deles, rendera-
se à noite, e sentindo ali o que Perrault, bom contador de histórias, chama
de “carne fresca”, precipitaram-se em multidão sobre a tenda de Gavroche,
e treparam até o alto, mordendo o arame como se tentassem perfurar esse
novo tipo de mosquiteiro.
Entretanto, o pequeno não conseguia dormir.
— Senhor! — tornou ele.
— Hein? — disse Gavroche.
— O que são os ratos?
— São camundongos.
Essa explicação tranquilizou um pouco o menino. Uma vez na vida
tinha visto camundongos brancos e não sentira medo deles. Apesar disso,
tornou a elevar a voz:
— Senhor?
— Hein? — respondeu Gavroche.
— Por que o senhor não tem um gato?
— Eu já tive um, mas ele foi comido pelos ratos — respondeu
Gavroche.
Essa segunda explicação desfez a obra da primeira, e o pequeno voltou
a tremer. O diálogo entre ele e Gavroche recomeçou pela quarta vez.
— Senhor!
— Hein?
— Quem é que foi comido?
— O gato.
— Quem comeu o gato?
— Os ratos.
— Os camundongos?
— É, os ratos.
O pequeno, chocado com esses camundongos que comem gatos,
prosseguiu:
— Senhor, será que eles também comeriam a gente?
— Como não! — respondeu Gavroche.
O terror do menino tinha chegado ao auge. Gavroche, porém,
acrescentou:
— Mas não tenha medo! Eles não conseguem entrar. Além disso, estou
aqui! Tome, segure minha mão. Fique quieto e trate de dormir!
Gavroche segurou a mão do pequeno por cima de seu irmão. O
pequeno apertou essa mão contra si e sentiu-se mais tranquilo. A coragem
e a força têm dessas misteriosas comunicações. O silêncio se refizera em
torno deles, o ruído das vozes amendrontara e afastara os ratos; ao cabo de
alguns minutos, por mais que insistissem em voltar e fazer tumulto, os três
garotos, mergulhados em sono profundo, não ouviam mais nada.
As horas da noite se passaram. A escuridão cobria a imensa praça da
Bastilha, um vento de inverno se misturava à chuva e soprava em rajadas;
as patrulhas revistavam as portas, as ruas, os becos, os cantos obscuros à
cata de vagabundos noturnos, e passavam silenciosamente diante do
elefante. O monstro, de pé, imóvel, de olhos abertos na escuridão, parecia
sonhar, como que satisfeito com sua boa ação, abrigando do céu e dos
homens as três pobres crianças adormecidas.
Para se compreender o que segue, devemos nos lembrar de que,
naquela época, o corpo de guarda da Bastilha estava situado na outra
extremidade da praça, e o que acontecia perto do elefante não podia ser
visto nem ser ouvido pelas sentinelas.
Próximo ao final daquela hora que precede imediatamente o despontar
do dia, um homem chegou correndo da rua Saint-Antoine, atravessou a
praça, deu uma volta em torno do grande cercado da Coluna de Julho,
passou por entre as tábuas e foi até embaixo do ventre do elefante. Se
alguma claridade iluminasse aquele homem, pelo modo intenso como
estava molhado, seria fácil perceber que tinha passado a noite debaixo de
chuva. Ao chegar junto do elefante, deu um grito estranho, que não
pertence a nenhuma língua humana, e que só algum periquito seria capaz
de reproduzir. Repetiu duas vezes esse grito, cuja ortografia que segue
pode dar alguma ideia:
— Kirikikiu!
Ao segundo grito, uma voz clara, alegre e jovial respondeu de dentro
da barriga do elefante:
— Olá.
Quase imediatamente, a tábua que tapava o buraco se deslocou e deu
passagem a um menino que desceu pelas pernas do elefante, vindo
rapidamente cair perto do homem. Era Gavroche; o homem era
Montparnasse.
Quanto ao tal grito, kirikikiu, era, sem dúvida, o que o menino quisera
dizer com: Chame pelo senhor Gavroche.
Ao ouvi-lo, acordara sobressaltado, se arrastara para fora de sua
alcova, afastando um pouco a tela, que em seguida voltou a fechar
cuidadosamente, e só então destapara o buraco e descera.
O homem e o menino se reconheceram silenciosamente no escuro;
Montparnasse limitou-se a dizer:
— Precisamos de você, venha nos dar uma mãozinha.
O moleque não pediu esclarecimentos.
— Pronto, estou aqui!
E os dois se dirigiram à rua Saint-Antoine, de onde saíra
Montparnasse, serpenteando rapidamente por entre a longa fileira de
charretes dos verdureiros que, àquela hora, iam para o mercado.
Os verdureiros, agachados em suas carroças entre as hortaliças e os
legumes, meio adormecidos, enfiados até os olhos em suas blusas por
causa da chuva forte, nem sequer olharam para esses estranhos passantes.

III. AS PERIPÉCIAS DA EVASÃO


Eis o que havia ocorrido naquela mesma noite na Force:
Uma fuga fora combinada entre Babet, Brujon, Gueulemer e
Thénardier, embora Thénardier estivesse na solitária. Babet fez o negócio
por sua conta, nesse mesmo dia, como foi visto no relato de Montparnasse
a Gavroche. Montparnasse devia ajudá-los de fora.
Brujon, que passara um mês em um quarto de punição, tivera tempo
de, primeiramente, tecer uma corda e, depois, de amadurecer um plano.
Outrora, esses severos lugares em que a disciplina da prisão deixava o
condenado entregue a si mesmo compunham-se de quatro paredes de
pedra, de um teto de pedra, de um piso de laje, de uma cama de lona, de
uma portinhola com grade, de uma porta dupla de ferro, e eram chamados
de masmorras; mas a masmorra foi julgada por demais horrível. Agora,
essas celas se compõem de uma porta de ferro, uma portinhola com grade,
uma cama de lona, um piso de laje, um teto de pedra, quatro muros de
pedra, e são chamadas de quartos de punição. Por volta de meio-dia, há
nessas celas um pouco de claridade. O inconveniente desses quartos, que,
como se vê, não são masmorras, é permitir que pessoas que deveriam
trabalhar sonhem.
Brujon, então, havia sonhado, e saíra do quarto de punição com uma
corda. Como tinha fama de ser muito perigoso no pátio Charlemagne, foi
colocado no Pavilhão Novo. A primeira coisa que ele encontrou no
Pavilhão Novo foi Gueulemer; a segunda, foi um prego; Gueulemer, ou
seja, o crime, um prego, ou seja, a liberdade.
Brujon, de quem é tempo de se fazer uma ideia completa, com uma
aparência de compleição delicada e uma languidez profundamente
premeditada, era um gentil atrevido, inteligente e ladrão que tinha um
olhar meigo e um sorriso atroz. Seu olhar era o resultado de sua vontade, e
seu sorriso o resultado de sua natureza. Seus primeiros estudos em sua arte
foram dirigidos aos telhados; ele fez com que houvesse grandes progressos
na indústria dos larápios do chumbo que despojam telhados e arrancam
canos pelo processo conhecido como dobradinha.
O que acabava de tornar o momento favorável a uma tentativa de
evasão era o fato de os pedreiros remanejarem e consertarem, exatamente
nessa época, uma parte do telhado da prisão. O pátio Saint-Bernard não se
encontrava mais isolado do pátio Charlemagne nem do pátio Saint-Louis.
Ali por cima, havia alicerces e escadas, ou, em outros termos, pontes e
passagens para o lado da libertação.
O Pavilhão Novo, que era tudo que se podia ver no mundo de mais
arruinado e de mais decrépito, era o ponto fraco da prisão. Suas paredes
estavam a tal ponto roídas pelo salitre que foram obrigados a revestir com
madeira as abóbadas dos dormitórios, porque dali se desprendiam pedras
que caíam sobre as camas dos presos. Apesar dessa precariedade, cometia-
se o erro de prender no Pavilhão Novo os acusados mais preocupantes;
para ali, vinham as “fortes causas”, como se diz na linguagem das prisões.
Esse pavilhão continha quatro dormitórios sobrepostos e um sótão
chamado de Bel-Air. Um largo tubo de chaminé, provavelmente de alguma
antiga cozinha dos duques de la Force, partia do térreo, atravessava os
quatro andares, dividia em dois todos os dormitórios, onde aparecia como
um pilar achatado, e ia furar o telhado.
Gueulemer e Brujon estavam no mesmo dormitório. Por precaução,
foram colocados no andar de baixo. O acaso fazia com que a cabeceira de
suas camas se apoiasse no tubo da chaminé.
Thénardier encontrava-se exatamente acima de suas cabeças, no sótão
conhecido como Bel-Air.
Quem para na rua Culture-Sainte-Catherine, após o quartel dos
bombeiros, em frente ao portão da casa de banhos, avista um pátio cheio
de flores e de arbustos dentro de caixas, ao fundo do qual se eleva, em
duas alas, um pequeno edifício arredondado, branco, alegrado por toldos
verdes, o sonho bucólico de Jean-Jacques. Há não mais de dez anos, por
trás desse edifício arredondado, existia um muro escuro, enorme,
medonho, nu, ao qual o edifício estava encostado. Era o muro do caminho
de ronda da Force.
Esse muro, por trás desse edifício, era Milton entrevisto por trás de
Berquin.
Por mais alto que fosse, esse muro era ultrapassado por um telhado
mais escuro ainda, que se via além dele. Era o telhado do Pavilhão Novo,
no qual se observavam quatro mansardas protegidas com barras; eram as
janelas do Bel-Air. Uma chaminé atravessava o teto; era a chaminé que
dividia os dormitórios.
Bel-Air, o topo do Pavilhão Novo, era uma espécie de grande galpão
com janelas, fechado com grades triplas e portas de chapas duplas
salpicadas de pregos enormes. Entrando-se ali pela extremidade norte,
tinha-se, à esquerda, as quatro portinholas, e, à direita, de frente para as
portinholas, quatro gaiolas quadradas, bem vastas, espaçadas, separadas
por corredores estreitos, construídas até certa altura em alvenaria, e o
resto, até o telhado, com grades de ferro.
Thénardier estava no isolamento em uma dessas gaiolas desde a noite
de 3 de fevereiro. Nunca se pôde descobrir como, nem por conivência de
quem, ele conseguiu obter e esconder uma garrafa desse vinho, segundo se
diz, inventado por Desrues, ao qual se mistura um narcótico, e que o bando
dos Adormecedores tornou célebre.
Há em muitas prisões empregados desleais, meio carcereiros, meio
ladrões, que auxiliam as evasões, que vendem à polícia uma
domesticidade infiel, e que se beneficiam ilicitamente.
Naquela mesma noite, então, em que Gavroche recolhera os dois
meninos errantes, Brujon e Gueulemer, sabendo que Babet, fugido naquela
manhã, os esperava na rua, bem como Montparnasse, levantaram-se
cuidadosamente e puseram-se a furar, com o prego que Brujon havia
achado, o tubo da chaminé onde suas camas se encostavam. O cascalho
caía sobre a cama de Brujon, de modo que não se ouvia nada. Os
aguaceiros, mesclados aos trovões, sacudiam as portas, produzindo dentro
da prisão um barulho medonho e útil. Os presos que acordaram fingiram
voltar a dormir, e deixaram Gueulemer e Brujon prosseguir. Brujon era
hábil, Gueulemer vigoroso. Antes que qualquer ruído chegasse ao vigilante
que dormia na cela gradeada, com abertura para o dormitório, a parede já
estava furada, a chaminé escalada, a grade de ferro que fechava o orifício
superior do tubo forçada, e os temíveis bandidos sobre o telhado. A chuva
e o vento se intensificavam, o telhado escorregava.
— Que bela noite para se cair fora! — disse Brujon.
Um abismo de um metro e oitenta de largura e vinte e cinco de
profundidade os separava do caminho de ronda. No fundo desse abismo,
eles viam reluzir em meio à escuridão o fuzil de um sentinela. Prenderam
por uma ponta, aos pedaços das barras de proteção da chaminé que
acabavam de torcer, a corda que Brujon fizera na masmorra, atiraram a
outra ponta por cima do muro de ronda, transpuseram o abismo com um
salto, agarraram-se à aresta do muro, encavalaram-se nele, deixaram-se
escorregar, um após o outro, pela corda, até um pequeno telhado encostado
à casa de banhos, puxaram a corda, saltaram no terraço dos banhos,
atravessaram-no, empurraram a janelinha do porteiro, ao lado da qual
pendia o cordão, puxaram o cordão, abriram o portão e viram-se na rua.
Não fazia três quartos de hora que tinham se colocado de pé sobre suas
camas, no escuro, seus pregos nas mãos, seu plano em mente.
Alguns instantes depois, já haviam se juntado a Babet e Montparnasse,
que rondavam pelos arredores.
Ao puxarem a corda, esta se rompeu, ficando um pedaço dela preso à
chaminé, em cima do telhado. De resto, a única avaria sofrida foi
esfolarem quase completamente a pele das mãos.
Nessa noite, Thénardier fora prevenido, sem que se pudesse esclarecer
de que maneira, e não dormia.
Por volta de uma da manhã, mesmo com a noite muito escura, ele viu
passar sobre o telhado, no meio da chuva e do vendaval, diante da
portinhola que ficava em frente à sua gaiola, dois vultos. Um deles parou
na portinhola o tempo de um olhar. Era Brujon. Thénardier o reconheceu, e
entendeu. Isso lhe bastava.
Thénardier, considerado perigoso e detido preventivamente por cilada
noturna à mão armada, era constantemente vigiado. Uma sentinela, que se
revezava a cada duas horas, passeava diante de sua cela de fuzil carregado.
Bel-Air era iluminado por um lampião. O preso tinha nos pés um par de
ferros de cinquenta libras. Todo dia, às quatro horas da tarde, um guarda
escoltado por dois mastins — naquela época, isso ainda era feito —
entrava em sua gaiola, colocava perto de sua cama um pão escuro de duas
libras, uma bilha de água e uma tigela cheia de um caldo bem magro onde
boiavam algumas favas, revistava seus ferros e batia nas barras da grade.
Esse homem com seus cães retornava duas vezes durante a noite.
Thénardier obtivera permissão de manter uma espécie de cavilha de
ferro, que usava para espetar seu pão em uma fenda da parede, a fim, dizia
ele, “de preservá-lo dos ratos”. Como Thénardier era vigiado de perto,
ninguém viu inconveniente nessa cavilha. No entanto, lembrou-se mais
tarde que um guarda havia dito: “Seria melhor que lhe deixassem só uma
cavilha de madeira”. Às duas horas trocaram a sentinela, que era um velho
soldado, e a substituíram por um recruta. Instantes depois, o homem dos
cães fez sua visita, e foi-se sem ter notado nada, a não ser a extrema
juventude e “o ar caipira” do “soldadinho”.
Duas horas depois, às quatro da manhã, quando vieram render o
recruta, encontraram-no adormecido e caído no chão como um bloco de
pedra, perto da gaiola de Thénardier. Quanto a Thénardier, não estava mais
ali. Os ferros que o prendiam estavam pelo chão. Havia um buraco no
forro de sua cela, e, mais acima, um outro buraco no telhado. Uma prancha
de sua cama fora arrancada e, sem dúvida, levada, pois ninguém a
encontrou. Também foi achada dentro da cela uma garrafa meio vazia,
contendo o resto do vinho entorpecente com o qual o soldado fora
adormecido. Sua baioneta havia desaparecido.
Quando tudo isso foi descoberto, supôs-se que Thénardier estaria
completamente fora de alcance. A realidade é que ele não estava mais no
Pavilhão Novo, mas ainda corria muito perigo.
Chegando ao telhado do Pavilhão Novo, Thénardier encontrou o resto
da corda de Brujon, que pendia das barras da proteção superior da
chaminé, mas essa parte rasgada era demasiado curta, e ele não pôde fugir
por cima do caminho de ronda, como haviam feito Brujon e Gueulemer.
Quem sai da rua des Ballets para a rua Roi-de-Sicile, encontra quase
imediatamente, à direita, um sórdido lugar. No século passado, existia ali
uma construção, da qual não resta mais que a parede do fundo, verdadeiro
muro de casebre que se eleva até a altura de um terceiro andar entre os
edifícios vizinhos. Essa ruína é reconhecível por duas grandes janelas
quadradas que ainda existem; a do meio, que é a mais próxima da empena
da direita, está fechada com uma viga carcomida ajustada como uma
escora. Através dessas janelas, outrora divisava-se uma muralha alta e
lúgubre que era uma parte do paredão do caminho de ronda da Force.
O vazio que essa construção demolida deixou na rua está parcialmente
preenchido por um tapume de tábuas podres, escorado por cinco pilares de
pedra. Aí dentro se esconde uma pequena barraca encostada à ruína que
permaneceu de pé. O tapume tem uma porta que, há alguns anos, era
fechada apenas por um trinco.
Foi ao alto dessa ruína que Thénardier conseguira chegar pouco depois
das três horas da manhã.
Como havia chegado ali? Foi o que jamais se pôde explicar ou
compreender. Os relâmpagos devem tê-lo ajudado e atrapalhado ao mesmo
tempo. Acaso teria usado as escadas e os andaimes dos pedreiros para ir de
telhado em telhado, de muro em muro, de compartimento em
compartimento, passar pelos prédios do pátio Charlemagne, depois pelos
prédios do pátio Saint-Louis, pelo muro de ronda, e daí ao casebre da rua
Roi-de-Sicile? Mas havia nesse trajeto soluções de continuidade que
pareciam torná-lo impossível. Acaso teria colocado a tábua que arrancara
da cama como uma ponte entre o telhado de Bel-Air e o muro de ronda,
pondo-se a rastejar sobre a beira desse muro em torno da prisão até chegar
à ruína? Mas o muro da Force descrevia uma linha denteada e desigual,
subia e descia, abaixava-se perto do quartel dos bombeiros, elevava-se
perto da casa de banhos; era cortado por algumas construções, não tinha a
mesma altura do lado do palacete Lamoignon e do lado da rua Pavée, por
toda parte tinha declives e ângulos retos; e, além de tudo, as sentinelas
teriam visto o vulto escuro do fugitivo; de modo que o caminho feito por
Thénardier ainda continua mais ou menos inexplicável. Das duas
maneiras, fuga impossível. Thénardier, iluminado pela assustadora sede da
liberdade que transforma os precipícios em fossos, as grades de ferro em
grades de vime, um estropiado em atleta, um gotoso em pássaro, a
estupidez em instinto, o instinto em inteligência, e a inteligência em
gênio, Thénardier, então, teria inventado e improvisado uma terceira
maneira? Jamais se soube.
Nem sempre podemos nos dar conta das maravilhas da evasão. O
homem que se evade, repetimos, é um inspirado; há um pouco de estrela e
de relâmpago no misterioso clarão da fuga; o esforço em direção à
libertação não é menos surpreendente do que o bater de asas em direção ao
sublime. Diz-se de um ladrão que conseguiu evadir-se: “Como ele fez para
escalar aquele telhado?” do mesmo modo que se diz de Corneille: “Onde
teria encontrado aquele verso Qu’il mourût?”7
Fosse como fosse, molhado de suor, encharcado de chuva, com as
roupas em frangalhos, as mãos esfoladas, os cotovelos sangrando, os
joelhos machucados, Thénardier havia chegado ao que as crianças, em sua
linguagem figurada, chamam de gume do muro da ruína, sobre o qual se
deitara, as forças lhe faltando. Um paredão inclinado da altura de um
terceiro andar o separava da rua.
A corda que tinha consigo era curta demais.
Esperava ali, pálido, esgotado, desesperado, apesar de toda a esperança
que tivera, ainda imerso na escuridão da noite, mas pensando que não
tardaria a amanhecer, apavorado com a ideia de ouvir em poucos instantes
soar quatro horas no relógio vizinho de Saint-Paul, hora em que iriam
render a sentinela e encontrá-la adormecida embaixo do teto arrombado, e
olhando com estupor, de uma altura medonha, à claridade de alguns
lampiões, o chão molhado e escuro, esse chão desejado e assustador que
era a morte e que era a liberdade.
Perguntava a si mesmo se seus três cúmplices de fuga teriam
conseguido, se o teriam ouvido, e se viriam em seu socorro. Escutava.
Exceto uma patrulha, ninguém passara na rua desde que ele ali se
encontrava. Quase todos os verdureiros que vinham de Montreuil, de
Charonne, de Vincennes e de Bercy em direção ao mercado passavam pela
rua Saint-Antoine.
Soaram quatro horas. Thénardier estremeceu. Poucos instantes depois,
aquele rumor alarmado e confuso que se segue à descoberta de uma fuga
rebentou na prisão. O barulho das portas abrindo-se e fechando-se, o
ranger das grades, o tumulto do corpo de guarda, os chamados roucos dos
carcereiros, o choque das coronhas de fuzil no chão dos pátios, tudo isso
chegava até ele. Luzes subiam e desciam pelas janelas gradeadas dos
dormitórios, uma tocha corria no topo do Pavilhão Novo, os bombeiros do
quartel ao lado foram chamados. Seus capacetes, que a tocha iluminava na
chuva, iam de um lado para o outro ao longo dos telhados. Ao mesmo
tempo, Thénardier via, pelos lados da Bastilha, uma nuance pálida clarear
lugubremente a parte inferior do céu.
Ele estava no alto de um muro de dez polegadas de largura, estendido
sob o temporal, com dois abismos, à direita e à esquerda, sem poder se
mexer, atormentado pela vertigem de uma possível queda e pelo horror de
uma detenção quase certa; e seu pensamento, como o badalo de um sino, ia
de uma dessas ideias à outra: “Morte, se eu cair; prisão, se eu ficar”.
Em meio a essa angústia, de repente viu, mesmo a rua estando ainda
completamente obscura, um homem que deslizava ao longo das muralhas,
que vinha dos lados da rua Pavée, e que parou na ruína acima da qual
Thénardier estava como que suspenso. A esse homem veio juntar-se um
segundo, caminhando com a mesma precaução, e um terceiro e ainda um
quarto. Ao se reunirem, um deles abriu o trinco da porta do tapume e os
quatro entraram no cercado onde se encontrava a barraca. Achavam-se
exatamente abaixo de Thénardier. Esses homens haviam, evidentemente,
escolhido essa ruína para poder conversar sem serem vistos pelos
passantes, nem pela sentinela que vigiava a entrada da Force a alguns
passos dali. É preciso dizer que a chuva mantinha essa sentinela presa em
sua guarita.
Thénardier, não conseguindo distinguir seus rostos, aplicava os
ouvidos às suas palavras com a atenção desesperada de um miserável que
se sente perdido. Viu passar diante de seus olhos algo que se assemelhava
à esperança: eles falavam gíria.8
O primeiro falava baixo, mas distintamente:
— Décarrons. Qu’est-ce que nous maquillons icigo? [Vamos embora.
O que estamos fazendo aqui?]
O segundo respondeu:
— Il lansquine à éteindre le riffe du rabouin. Et puis les coqueurs vont
passer, il y a là un grivier qui porte gaffe, nous allons nous faire emballer
icicaille. [Chove que dá para apagar o fogo do diabo. Além disso, a polícia
vai passar. Ali tem um soldado de vigia. Vão acabar nos prendendo aqui.]
Essas duas palavras, icigo e icicaille, que significam aqui, e
pertencem, uma, à gíria dos subúrbios, a outra, à gíria do Temple, foram
traços de luz para Thénardier. Ouvindo icigo reconheceu Brujon,
vagabundo dos arrabaldes, e, ouvindo icicaille, reconheceu Babet, que,
entre todos os seus ofícios, tinha sido camelô no Temple.
A antiga gíria do grande século não é mais falada, a não ser no Temple,
e Babet era mesmo o único que a falava de forma pura. Sem icicaille,
Thénardier não o teria reconhecido, pois Babet tinha mudado
completamente sua voz.
Então, o terceiro homem interveio:
— Nada de pressa ainda, vamos esperar um pouco. Quem garante que
ele não precisa de nós?
A essas palavras, que eram apenas francês, Thénardier reconheceu
Montparnasse, que usava sua elegância para ouvir todas as gírias e não
falar nenhuma.
Quanto ao quarto, permanecia em silêncio, mas seus ombros largos o
denunciavam. Thénardier não hesitou. Era Gueulemer.
Brujon replicou quase impetuosamente, mas sempre em voz baixa:
— Qu’est-ce que tu nous bonis là? Le tapissier n’aura pas pu tirer sa
crampe. Il ne sait pas le truc, quoi! Bouliner sa limace et faucher ses
empaffes pour maquiller une tortouse, caler des boulins aux lourdes,
braser des faffes, maquiller des caroubles, faucher les durs, balancer sa
tortouse dehors, se planquer, se camouffler, il faut être mariol! Le vieux
n’aura pas pu, il ne sait pas goupiner! [O que você está dizendo? O
taverneiro não conseguiu fugir. Ele não conhece o assunto, ora! Rasgar a
camisa e cortar os lençóis para fazer uma corda, fazer buracos nas portas,
arranjar documentos falsos, fazer chaves falsas, cortar os ferros, prender
sua corda do lado de fora, se esconder, se disfarçar, tem que ser esperto. O
velho não deve ter conseguido, ele não sabe trabalhar!]
Babet acrescentou, sempre usando a comportada gíria clássica que
usavam Poulailler e Cartouche, e que está para a gíria atrevida, nova,
colorida e ousada que Brujon utilizava assim como a língua de Racine está
para a língua de André Chénier:
— Ton orgue tapissier aura été fait marron dans l’escalier. Il faut être
arcasien. C’est un galifard. Il se sera laissé jouer l’harnache par un
roussin, peut-être même par un roussi, qui lui aura battu comtois. Prête
l’oche, Montparnasse, entends-tu ces criblements dans le collége? Tu as
vu toutes ces camoufles. Il est tombé, va! Il en sera quitte pour tirer ses
vingt longes. Je n’ai pas taf, je ne suis pas un taffeur, c’est colombé, mais
il n’y a plus qu’à faire les lézards, ou autrement on nous la fera gambiller.
Ne renaude pas, viens avec nousiergue. Allons picter une rouillarde
encible. [Seu taverneiro deve ter sido pego no ato. Tem que ser esperto.
Ele não passa de um aprendiz. Deve ter-se deixado enganar por um espião,
talvez até mesmo por um dedo-duro que se fez de camarada. Escute,
Montparnasse, está ouvindo esses gritos na prisão? Você viu todas aquelas
luzes. Ele foi recapturado, vai! Saiu dessa para pegar seus vinte anos de
xadrez. Eu não tenho medo, não sou um covarde, vocês sabem, mas só nos
resta fugir, senão vão fazer a gente dançar. Não se aborreça, venha com a
gente. Vamos tomar juntos uma boa garrafa de vinho.]
— Não se deixa os amigos numa enrascada dessas — resmungou
Montparnasse.
Brujon retrucou:
—Je te bonis qu’il est malade! À l’heure qui toque, le tapissier ne vaut
pas une broque! Nous n’y pouvons rien. Décarrons. Je crois à tout moment
qu’un cogne me cintre en pogne! [Estou lhe dizendo que ele foi
recapturado! Nessas alturas, o taverneiro não vale mais um tostão! A gente
não pode fazer nada. Vamos embora. Estou vendo que a qualquer momento
um guarda põe as mãos em mim.]
Montparnasse ainda resistia, mas fracamente; o fato é que esses quatro
homens, com a fidelidade dos bandidos de jamais abandonarem-se
mutuamente, haviam perambulado a noite inteira em volta da Force, por
maior que fosse o perigo, na esperança de ver Thénardier surgir no alto de
alguma muralha. Era uma noite realmente bela, com um temporal que
deixava todas as ruas desertas; mas o frio que se apoderava deles, suas
roupas encharcadas, seus calçados furados, o barulho inquietante que
acabava de irromper na prisão, as horas que transcorriam, as patrulhas que
passavam, a esperança que se ia, o medo que voltava, tudo isso os
empurrava à retirada. O próprio Montparnasse, que era um pouco genro de
Thénardier, cedia. Mais um momento e eles teriam partido.
Thénardier arquejava em cima daquele muro como os náufragos do
Meduse sobre a jangada em que boiavam, vendo desaparecer no horizonte
o navio que tinham avistado.
Não ousava chamá-los, um grito poderia pôr tudo a perder; teve uma
ideia, uma última, um lampejo. Tirou do bolso a ponta da corda de Brujon,
que tinha retirado da chaminé do Pavilhão Novo, e atirou-a no terreno
cercado.
A corda caiu-lhes aos pés.
— Une veuve! — disse Babet. [Uma corda! (gíria do Temple)]
— Ma tortouse! — disse Brujon. [Minha corda! (gíria do subúrbio)]
— O taverneiro está aqui — disse Montparnasse.
Levantaram os olhos. Thénardier avançou um pouco a cabeça.
— Depressa! — exclamou Montparnasse. — Você tem a outra parte da
corda, Brujon?
— Tenho.
—Junte os dois pedaços, vamos jogar a corda para ele, e ele a prende
ao muro, aí vai poder descer.
Thénardier arriscou-se a levantar a voz.
— Estou gelado.
— Logo você vai se aquecer.
— Não consigo mais me mexer.
— É só escorregar, nós seguramos você.
— Minhas mãos estão dormentes.
— É só prender a corda no muro.
— Não vou conseguir.
— Um de nós vai ter que subir — disse Montparnasse.
— Três andares! — exclamou Brujon.
Um antigo cano de chaminé, que serviu a um fogareiro que outrora
acendiam na barraca, subia ao longo do muro até quase o local onde se
avistava Thénardier. Esse tubo, então muito estragado e todo fendido, mais
tarde caiu, mas ainda veem-se seus vestígios. Era muito estreito.
— A gente poderia subir por ali — disse Montparnasse.
— Por esse cano? — exclamou Babet. — Un orgue jamais! Il faudrait
un mion. [Um homem, jamais! Precisamos de um garoto (gíria do
Temple).]
— Il faudrait un môme — retrucou Brujon. (Precisamos de um garoto
[gíria do subúrbio].)
— Onde encontrar um pirralho? — disse Gueulemer.
— Esperem — disse Montparnasse. — Deixem comigo.
Entreabriu cuidadosamente a porta do tapume, certificou-se de que
nenhum passante atravessava a rua, saiu com precaução, fechou a porta, e
foi correndo em direção à Bastilha.
Sete ou oito minutos se passaram, oito mil séculos para Thénardier;
Babet, Brujon e Gueulemer não abriam a boca; enfim a porta se abriu, e
Montparnasse apareceu, esbaforido, trazendo Gavroche. A chuva
continuava deixando a rua completamente deserta.
O pequeno Gavroche entrou no cercado e olhou com ar tranquilo para
os rostos dos bandidos. A água pingava de seus cabelos. Gueulemer
dirigiu-lhe a palavra.
— Moleque, você é homem?
Gavroche levantou os ombros e respondeu:
— Un môme comme mézig est un orgue, et des orgues comme
vousailles sont des mômes. [Um moleque como eu é um homem, e homens
como vocês são moleques.]
Babet exclamou:
— Comme le mion joue du crachoir! [Como o moleque tem a língua
afiada!]
Brujon acrescentou:
— Le môme pantinois n’est pas maquillé de fertille lansquinée. [O
moleque de Paris não é feito de palha molhada.]
— Vocês precisam de quê? — disse Gavroche.
Montparnasse respondeu:
— Subir por este tubo.
— Avec cette veuve — disse Babet. [Com esta corda.]
— Et ligoter la tortouse — continuou Brujon. [E prender a corda.]
—Au monté du montant — retrucou Babet. [No alto do muro.]
— Au pieu de la vanterne — acrescentou Brujon. [Na travessa da
janela.]
— E que mais?
— É isso! — disse Gueulemer.
O menino examinou a corda, o tubo, o muro, as janelas, e fez aquele
inexprimível e desdenhoso ruído com os lábios que significa:
— Só isso!
— Tem um homem lá em cima que você vai salvar — retomou
Montparnasse.
— Você quer? — perguntou Brujon.
— Palerma! — respondeu o menino, como se a pergunta lhe parecesse
estranha; e tirou os sapatos.
Gueulemer segurou Gavroche por um braço, colocou-o sobre o telhado
da barraca, cujas tábuas carcomidas se vergavam ao peso do menino, e
entregou-lhe a corda que Brujon emendara durante a ausência de
Montparnasse. O menino foi até o tubo, onde era fácil entrar graças a uma
larga fenda que chegava ao telhado. No momento em que ia subir,
Thénardier, vendo a salvação e a vida se aproximar, debruçou-se na borda
do muro; o primeiro raio do dia clareou seu rosto inundado de suor, suas
faces lívidas, seu nariz afilado e selvagem, sua barba grisalha e eriçada, e
Gavroche o reconheceu.
— Ora! — disse ele. — É meu pai!… Mas isso não me impede.
E, segurando a corda com os dentes, começou resolutamente a
escalada.
Chegou ao alto da ruína, montou no velho muro como em um cavalo, e
prendeu solidamente a corda na travessa superior da janela.
Um momento depois, Thénardier estava na rua.
Assim que tocou no chão, assim que se viu fora de perigo, não se
sentia mais cansado, nem gelado, nem trêmulo; as coisas terríveis das
quais acabava de sair desapareceram como fumaça; toda aquela estranha e
feroz inteligência despertou, encontrando-se de pé e livre, pronta para
caminhar à frente. Eis as primeiras palavras desse homem:
— Agora, quem é que vamos comer?
É inútil explicar o sentido dessa palavra horrivelmente transparente
que significa, ao mesmo tempo, matar, assassinar e roubar. Comer,
verdadeiro sentido: devorar.
— Melhor a gente se esconder bem neste canto — disse Brujon. —
Combinamos em três palavras e nos separamos imediatamente. Tinha um
negócio que parecia bom na rua Plumet, uma rua deserta, uma casa
isolada, uma grade velha e podre num jardim, mulheres sozinhas.
— E então, por que não? — perguntou Thénardier.
— Sua fée [filha] Éponine foi ver a coisa — respondeu Babet.
— E levou um biscoito a Magnon — acrescentou Gueulemer. — Rien a
maquiller là. [Nada a fazer ali.]
— La fée n’est pas loffe [ela não é besta], no entanto temos que ver —
disse Thénardier.
— Sim, sim — disse Brujon —, temos que ver.
Enquanto isso, nenhum desses homens parecia mais ver Gavroche, que,
durante a conversa, fora sentar em um dos pilares do tapume; ele esperou
alguns instantes, talvez para ver se seu pai se voltava para ele; depois
tornou a calçar seus sapatos e disse:
— Acabou? Não precisam mais de mim, homens? Estão fora da
enrascada. Vou embora. Preciso acordar os pivetes.
E se foi.
Os cinco homens saíram, um atrás do outro, de dentro do tapume.
Quando Gavroche desapareceu na esquina da rua des Ballets, Babet
chamou Thénardier de lado.
— Você viu esse moleque? — perguntou-lhe.
— Que moleque?
— O moleque que trepou no muro e levou a corda.
— Não reparei muito.
— Então, não sei, mas me parece que era seu filho.
— Ora! — respondeu Thénardier. — Será?
__________________________
1 Essa rua era frequentada por mulheres de má vida, o que poderia explicar seu nome a partir
de certa semelhança fonética com a expressão em francês “la pute y muse”, significando o verbo
muser: flanar, passar o tempo.
2 Corruptela de mademoiselle [senhorita].
3 Palavra do latim que significa “para todos”, usada pelo personagem com sentido ofensivo.
4 Gíria significando pão negro, de má qualidade.
5 Forca, cadafalso, em linguagem própria das pessoas desse meio.
6 Charles Paul de Kock (Paris, 1793-1871). Novelista e dramaturgo na época da Restauração.
7 “Que vouliez-vous qu’il fît contre trois? Qu’il mourût…?” Que queríeis que ele fizesse
contra três? Que morresse? (Pierre Corneille, Horace).
8 O trecho que vem a seguir é repleto da típica gíria usada por bandidos da época retratada no
romance. Tentar transcrevê-lo com a gíria usada na língua portuguesa implicaria perder a riqueza
do texto original. Assim, optamos pela fidelidade à edição francesa, que explicita, em notas, o
significado dessas frases, sem o que ficariam ininteligíveis mesmo para os leitores franceses, e as
transcrevemos junto ao texto para maior fluência da leitura.
LIVRO VII
A GÍRIA

I. ORIGEM
PIGRITIA1 é uma palavra terrível.
Ela engendra um mundo, la pègre, leiam o roubo, e um inferno, la
pégrenne, leiam a fome.
Assim, a preguiça é mãe.
Tem um filho, o roubo, e uma filha, a fome.
Onde nós estamos neste momento? Na gíria.
O que é a gíria? É, ao mesmo tempo, a nação e o idioma; é o roubo
nestas duas espécies, povo e língua.
Quando, há trinta e quatro anos, o narrador desta grave e sombria
história introduziu em uma obra, escrita com o mesmo objetivo desta,2 um
ladrão falando gíria, houve espanto e clamor.
— O quê! Como! Gíria!? Mas gíria é horrível! É a língua da ralé, das
galés, das prisões, de tudo o que a sociedade tem de mais abominável!
Etc., etc., etc.
Nunca compreendemos esse gênero de objeções.
Mais tarde, quando dois grandes romancistas, um, profundo
observador do coração humano, outro, intrépido amigo do povo, Balzac e
Eugène Sue, fizeram os bandidos falar em sua linguagem natural, como
havia feito em 1828 o autor de O último dia de um condenado, as mesmas
reclamações se ergueram. Repetia-se: “O que estão querendo os escritores
com este revoltante patoá? A gíria é odiosa! A gíria dá arrepios!”
Alguém nega? Sem dúvida.
Quando se trata de sondar uma ferida, um abismo ou uma sociedade,
desde quando é um erro descer mais fundo, ir mais além? Sempre
pensamos que, algumas vezes, era um ato de coragem, e, no mínimo, uma
ação simples e útil, digna da atenção simpática que merece o dever aceito
e cumprido. Não explorar tudo, não estudar tudo, parar no meio do
caminho, por quê? Parar diz respeito à sonda e não a quem sonda.
Por certo, ir procurar nas escórias da ordem social, lá onde a terra
acaba e onde a lama começa, remexer nessas vagas espessas, perseguir,
agarrar e arremessar, palpitante, sobre a calçada, esse idioma abjeto que
escorre da imundície, esse vocabulário pustulento, do qual cada palavra se
assemelha a um anel imundo de um monstro do lodo e das trevas, não é
uma tarefa atraente nem uma tarefa fácil. Nada é mais lúgubre do que
contemplar assim, a nu, à luz do pensamento, o horrível formigar da gíria.
De fato, parece tratar-se de uma espécie de medonha besta feita pela
escuridão, que acabara de ser arrancada de sua cloaca. Julga-se ver um
pavoroso matagal, vivo e eriçado, que estremece, se move, se agita, que
pede novamente pela escuridão, ameaça e observa. Tal palavra parece uma
garra, aquela outra, um olho atento e sangrento; tal frase parece mover-se
como uma pinça de caranguejo. Tudo isso vive daquela vitalidade horrível
das coisas que são organizadas dentro da desorganização.
Agora, desde quando o horror exclui o estudo? Desde quando a doença
afasta o médico? É possível imaginar um naturalista que se recusasse a
estudar as víboras, os morcegos, os escorpiões, as centopeias, as tarântulas
e que os enxotasse para suas tocas dizendo: “Oh! Que coisa feia!”? O
pensador que se desviasse da gíria seria como um cirurgião que se
desviasse de uma úlcera ou de uma verruga. Seria um filólogo hesitando
em examinar um fato da língua; um filósofo hesitando em escrutar um
fato da humanidade. Porque, é mesmo preciso dizer àqueles que o
ignoram, a gíria é, ao mesmo tempo, um fenômeno literário e um
resultado social. O que é a gíria propriamente dita? A gíria é a língua da
miséria.
Nesse ponto, podemos parar, podemos generalizar o fato, o que,
algumas vezes, é uma maneira de atenuá-lo; podemos dizer que todos os
ofícios, todas as profissões, poderíamos quase acrescentar que todos os
acidentes da hierarquia social e todas as formas da inteligência, têm sua
gíria própria. O negociante que diz: Montpellier disponível, Marseille boa
qualidade; o agente de câmbio que diz: a transportar, alta, fim do corrente
(mês); o jogador que diz: bater, dar as cartas; o oficial de justiça das ilhas
normandas que diz: o fiador que para de ceder seus recursos não pode
reclamar os frutos desses recursos durante a penhora hereditária dos
imóveis daquele que renuncia; o “vaudevilista” que diz: fomos vaiados; o
ator que diz: fui um fracasso; o filósofo que diz: triplicidade fenomenal; o
caçador que diz: estes, quando eu ia, estes, quando fugiam; o frenólogo
que diz: amatividade, combatividade, secretividade; o soldado de
infantaria que diz: meu clarinete; o cavaleiro que diz: meu alazão; o
mestre de armas que diz: terça, quarta, romper; o impressor que diz:
baixo-relevo; todos, impressor, mestre de armas, cavaleiro, soldado,
frenólogo, caçador, filósofo, ator, vaudevilista, oficial de justiça, jogador,
agente, negociante, falam gíria. O pintor que diz: meu rapin; o notário que
diz: meu saute-ruisseau; o cabeleireiro que diz: meu commis; o sapateiro
que diz: meu gniaf, falam gíria.3 A rigor, e se assim quisermos, todas as
diversas maneiras de dizer direita e esquerda, o marinheiro, bombordo e
estibordo; o maquinista, lado do pátio e lado do jardim; o sacristão, lado
da epístola e lado do evangelho, são gíria. Há a gíria das afetadas assim
como já houve a gíria das preciosas. O Palácio de Rambouillet se
avizinhava um pouco à Cour des Miracles. Há a gíria das duquesas, como
testemunha esta frase, escrita em um doce bilhete por uma grande dama,
muito bela mulher da época da Restauração: Vous trouverez dans ces
potins-là une foultitude de raisons pour que je me libertise.4 As cifras
diplomáticas são gíria; a chancelaria pontifícia dizendo 26 para Roma,
grkzintgzyal para remessa, e abfxustgrtrnogrkzu tu XI para duque de
Módena, fala gíria. Os médicos da Idade Média, que, para dizerem
cenoura, rabanete e nabo, diziam: opoponach, perfroschinum, reptitalmus,
dracatholicum angelorum, postmegorum, falavam gíria. O fabricante de
açúcar que diz: vergoise, tête, claircé, tape, lumps, mélis, bâtarde,
commum, brûlé, plaque,5 esse honesto manufatureiro fala gíria. Uma certa
escola de crítica, de vinte anos atrás, que dizia: Metade de Shakespeare é
jogo de palavras e trocadilhos, falava gíria. O poeta e o artista que, com
um senso profundo, qualificarem o Senhor de Montmorency como “um
burguês”, porque não entende de versos e de estátuas, falam gíria. O
acadêmico clássico que chama as flores de Flora, os frutos de Pomone, o
mar de Netuno; o amor de fogo, a beleza de encantos, o cavalo de corcel, a
insígnia branca ou tricolor de rosa de Bellone, o chapéu de três pontas de
triângulo de Marte, o acadêmico clássico fala gíria.
A álgebra, a medicina, a botânica têm sua gíria. A língua empregada a
bordo, essa admirável linguagem do mar, tão completa e tão pitoresca, que
Jean Bart, Duquesne, Suffren e Duperré falaram, e que se confunde com o
assobio dos aparatos de mastreação, com o ruído dos porta-vozes, com as
batidas do machado de abordagem, com o balanço da embarcação, com o
vento, com a rajada, com o canhão, é toda uma gíria heroica e brilhante,
que está para a selvagem gíria dos bandidos como o leão está para o
chacal.
Sem dúvida. Mas, o que quer que possamos dizer a esse respeito, essa
maneira de compreender a palavra gíria é uma extensão, que nem todo o
mundo admitirá. Quanto a nós, conservamos sua velha acepção precisa,
circunscrita e determinada, restringimos a gíria à gíria. A gíria verdadeira,
a gíria por excelência, se é que essas palavras podem andar juntas, a
imemorial gíria que é um império, não é outra coisa, repetimos, senão a
feia, inquieta, sorrateira, pérfida, venenosa, cruel, equívoca, vil, profunda,
fatal linguagem da miséria. No extremo de todas as humilhações e de
todos os infortúnios, existe uma última miséria que se revolta e que se
decide a entrar em luta contra o conjunto dos fatos felizes e dos direitos
reinantes; luta terrível em que, ora astuciosa, ora violenta, ao mesmo
tempo insana e feroz, ataca a ordem social, a alfinetadas, por meio do
vício, e a pancadas, por meio do crime. Para as necessidades dessa luta, a
miséria inventou uma língua de combate, que é a gíria.
Fazer flutuar e sustentar acima do esquecimento, acima do abismo, um
fragmento que seja de uma língua qualquer que o homem tenha falado e
que se perderia, isto é, um dos elementos, bons ou maus, com que a
civilização se compõe ou se complica, significa estender os dados da
observação social, servir de fato à civilização. Esse serviço, Plauto o
prestou, querendo ou não, ao fazer dois soldados cartagineses falarem a
língua fenícia; esse serviço, Molière o prestou ao fazer tantos de seus
personagens falarem o levantino e todo tipo de dialeto. Neste ponto, as
objeções se reanimam. O fenício, uma maravilha! O levantino, esplêndido!
Até mesmo um dialeto, vá lá! São linguagens que pertenceram a nações ou
províncias; mas a gíria? Para que conservar a gíria? Para que “fazer
flutuar” a gíria?
A isso respondemos com uma só palavra. Por certo, se a língua que
uma nação ou uma província falaram é digna de interesse, há uma coisa
ainda muito mais digna de atenção e de estudo, a linguagem que falou uma
miséria.
É a língua que tem falado na França, por exemplo, há mais de quatro
séculos, não somente uma miséria, mas a miséria, toda a miséria humana
possível.
Depois, insistimos, estudar as deformidades e as enfermidades sociais,
e as assinalar para curá-las, não é um trabalho que permita escolha. O
historiador dos costumes e das ideias não tem uma missão menos austera
que a do historiador dos acontecimentos. Este tem a superfície da
civilização, as lutas das coroas, os nascimentos de príncipes, os
casamentos de reis, as batalhas, as assembleias, os grandes homens
públicos, as revoluções às claras, todo o exterior; o outro historiador tem o
interior, o fundo, o povo que trabalha, que sofre e que espera, a mulher
oprimida, a criança que agoniza, as guerras surdas do homem contra o
homem, as ferocidades obscuras, os preconceitos, as iniquidades
acordadas, os contragolpes subterrâneos da lei, as evoluções secretas das
almas, os estremecimentos indistintos das multidões, os mortos de fome,
os pés descalços, os braços nus, os deserdados, os órfãos, os infelizes e os
infames, todas as larvas que erram na escuridão. É preciso que ele desça,
tendo o coração cheio tanto de caridade quanto de severidade, como um
padre e como um juiz, até essas casamatas impenetráveis onde rastejam,
confusamente, aqueles que sangram e aqueles que ferem, aqueles que
choram e aqueles que maldizem, aqueles que jejuam e aqueles que
devoram, aqueles que sofrem o mal e aqueles que o fazem. Esses
historiadores dos corações e das almas têm deveres menores que os
historiadores dos fatos exteriores? É possível acreditar que Alighieri tenha
menos coisas a dizer que Maquiavel? A parte inferior da civilização, sendo
mais profunda e mais sombria, acaso é menos importante que a parte
superior? Conhece-se bem a montanha quando não se conhece a caverna?
De resto, diga-se de passagem, de algumas das palavras precedentes
seria possível inferir que, entre as duas classes de historiadores, há uma
separação nítida que não existe em nosso espírito. Ninguém é bom
historiador da vida patente, visível, incontestável e pública dos povos se
não for ao mesmo tempo, e em certa medida, historiador de sua vida
profunda e oculta; ninguém é bom historiador do interior se não sabe ser,
sempre que preciso, historiador do exterior. A história dos costumes e das
ideias penetra pela história dos acontecimentos, e vice-versa. São duas
ordens de fatos diferentes que se correspondem, que se encadeiam sempre,
e frequentemente se geram. Todas as linhas que a Providência traça na
superfície de uma nação têm seus paralelos sombrios, mas, no fundo,
distintos; e todas as convulsões do fundo produzem manifestações na
superfície. A verdadeira história estando ligada a tudo, o verdadeiro
historiador deve se envolver em tudo.
O homem não é um círculo com um só centro; é uma elipse com dois
focos. Os fatos são um, as ideias são o outro.
A gíria não é outra coisa senão um vestiário onde a linguagem, quando
tem uma má ação a praticar, se disfarça. Aí se reveste de palavras-
máscaras e de metáforas-farrapos.
E dessa maneira fica horrível.
É custoso reconhecê-la. Será que é mesmo a língua francesa, a grande
língua da humanidade? Ei-la pronta a entrar em cena e fazer réplica ao
crime, e apropriada a qualquer emprego do repertório do mal. Já não anda,
manqueja; manqueja apoiada à muleta da Corte dos Milagres, muleta que
se transforma em clava. Chama-se vadiagem. Todos os espectros, seus
maquiadores, a caracterizam. Arrasta-se e ergue-se, duplo modo de andar
do réptil. Está apta a desempenhar todos os papéis, se faz de vesga pelo
falsário, de zinabre pelo envenenador, de chamuscada pela fuligem do
incendiário; e o assassino põe nela seu vermelho.
Quando, pelo lado das pessoas honestas, se escuta à porta da sociedade,
surpreende-se o diálogo daqueles que estão de fora. Distinguem-se
perguntas e respostas. Percebe-se, sem que se compreenda, um murmúrio
horrendo, soando quase como o sotaque humano, mas mais parecido com
uivos do que com palavras. É a gíria. As palavras são disformes, e
marcadas não se sabe com que bestialidade fantástica. Julga-se ouvir o
falar das hidras.
É o ininteligível dentro do tenebroso; ranger e cochichar, completando
o crepúsculo com o enigma. Há escuridão na desgraça, e mais escuridão
ainda no crime; esses dois negrumes amalgamados compõem a gíria.
Obscuridade na atmosfera, obscuridade nos atos, obscuridade nas vozes.
Pavorosa língua de sapos que vai, vem, salta, rasteja, baba, e se move
monstruosamente nessa imensa bruma cinzenta feita de chuva, de escuro,
de fome, de vício, de mentira, de injustiça, de nudez, de asfixia e de
inverno, pleno meio-dia dos miseráveis.
Tenhamos compaixão dos castigados. Ai! Quem somos nós mesmos?
Quem sou eu, eu que falo a vocês? Quem são vocês, vocês que me
escutam? De onde viemos? Há mesmo a certeza de que nada fizemos antes
de nascermos? A terra não deixa de ter semelhanças com uma prisão.
Quem sabe se o homem não é um condenado pela justiça divina?
Olhem a vida de perto. Ela é feita de tal forma que por toda parte se vê
punição.
Você é daqueles a quem se chama de feliz? Pois bem, você fica triste
todos os dias. Cada dia tem sua grande amargura ou sua pequena
preocupação. Ontem você temia pela saúde de alguém querido, hoje receia
pela própria saúde; amanhã, haverá uma preocupação de dinheiro, depois,
a crítica de um caluniador, a infelicidade de um amigo, mais tarde o tempo
que está fazendo, e depois, alguma coisa que se quebrou ou se perdeu; e
ainda, um prazer que a consciência e a coluna vertebral reprovam; e outra
vez, a marcha dos negócios públicos. Sem contar as penas do coração. E
assim sucessivamente. Uma nuvem se dissipa, outra logo se forma.
Apenas um dia em cem, de plena felicidade e pleno sol. E você faz parte
desse pequeno número que é feliz! Quanto aos outros homens, a noite
estagnante paira sobre eles.
Os espíritos reflexivos servem-se pouco destas palavras: os felizes e os
infelizes. Neste mundo, vestíbulo de um outro, evidentemente, não há
felizes.
A verdadeira divisão humana é esta: os que vivem na luz e os que
vivem nas trevas. Diminuir o número dos que vivem nas trevas, aumentar
o número dos que vivem na luz, eis o objetivo. É por isso que gritamos:
ensino! ciência! Aprender a ler é iluminar com fogo; cada sílaba soletrada
cintila.
De resto, quem diz luz não diz, necessariamente, alegria. Também se
sofre com a luz; em demasia, queima. A chama é inimiga da asa. Queimar-
se sem parar de voar, é esse o prodígio do gênio.
Mesmo com conhecimento e amor, ainda se sofre. O dia nasce em
lágrimas. Os iluminados choram, mesmo que seja apenas sobre os que
vivem nas trevas.
II. RAÍZES
A gíria é a língua dos que vivem nas trevas.
O pensamento comove-se em suas mais sombrias profundezas, a
filosofia social é chamada a fazer suas meditações mais pungentes, em
presença desse enigmático dialeto, ao mesmo tempo abatido e revoltado. É
nele que há um castigo visível. Cada sílaba parece marcada. As palavras
da linguagem vulgar aí aparecem como que enrugadas e endurecidas sob o
ferro em brasa do carrasco. Algumas parecem ainda fumegar. Tal frase
causa-lhes o efeito do ombro, marcado com a flor-de-lis, de um ladrão,
repentinamente posto a nu. A ideia quase se recusa a deixar-se exprimir
por esses substantivos condenados. A metáfora é às vezes tão atrevida que
se nota sua passagem pelo cárcere.
De resto, apesar de tudo isso, e por causa de tudo isso, esse dialeto
estranho tem direito a seu compartimento nesta grande estante imparcial
onde há lugar tanto para a moeda de cobre oxidada quanto para a medalha
de ouro, que é chamada de literatura. A gíria, quer estejamos ou não de
acordo, tem sua sintaxe e sua poesia. É uma língua. Se pela deformidade
de certos vocábulos se reconhece que foi mastigada por Mandrin, pelo
esplendor de certas metonímias sente-se que foi falada por Villon.
Este verso tão delicado e tão célebre:

Mais où sont les neiges d’antan?

Mas onde estão as neves de antanho?

é um verso de gíria. Antan — ante annum — é uma palavra da gíria de


Thunes que significava o ano passado e, por extensão, outrora. Há trinta e
cinco anos, época da grande leva de condenados de 1827, podia-se ainda
ler, em uma das celas de Bicêtre, esta inscrição feita com um prego, na
parede, por um rei de Thunes condenado às galés: Les dabs d’antan
trimaient siempre pour la pierre du coësre. O que quer dizer: Os reis de
outrora sempre faziam-se sagrar. No pensamento desse rei, sagração
significava cadeia.
A palavra décarade, que exprime a partida de uma carruagem pesada a
galope, é atribuída a Villon, e é digna dele. Essa palavra, que se esforça
para ter êxito, resume em uma onomatopeia magistral todo o admirável
verso de La Fontaine:

Six forts chevaux tiraient un coche.

Seis fortes cavalos puxavam uma carruagem.

Do ponto de vista puramente literário, poucos estudos seriam mais


curiosos e mais fecundos que o da gíria. É toda uma língua dentro da
língua, uma espécie de excrescência doentia, um enxerto insalubre que
produziu uma vegetação, um parasita que tem suas raízes no velho tronco
gaulês e cuja folhagem sinistra rasteja sobre todo um lado da língua. Isso é
o que se pode chamar de primeiro aspecto, o aspecto vulgar da gíria. Mas,
para aqueles que estudam a língua do modo como deve ser estudada, ou
seja, como os geólogos estudam a terra, a gíria aparece como um
verdadeiro aluvião. Conforme é cavada, mais ou menos a fundo, encontra-
se na gíria, abaixo do velho francês popular, traços do provençal, do
espanhol, do italiano, do levantino, da linguagem dos portos do
Mediterrâneo, do inglês e do alemão, do românico em suas três
variedades, românico francês, românico italiano, românico romano, do
latim, e, finalmente, do basco e do celta. Formação profunda e bizarra.
Edifício subterrâneo construído em comum por todos os miseráveis. Cada
raça maldita depositou sua camada, cada sofrimento deixou cair sua pedra,
cada coração deu seu cascalho. Uma multidão de almas maldosas, baixas
ou irritadas, que atravessaram a vida e desapareceram na eternidade,
encontram-se ali, quase inteiras e, de algum modo, ainda visíveis na forma
de uma palavra monstruosa.
Queremos espanhol? A velha gíria gótica está repleta dele. Aqui está
boffette, bofetada, que vem de bofeton; vantane, janela (mais tarde
vanterne), que vem de vantana; gat, chat, que vem de gato; acite, azeite,
que vem de aceyte. Queremos italiano? Temos spade, espada, que vem de
spada; carvel, barco, que vem de caravella. Queremos inglês? Eis bichot,
bispo, que vem de bishop; raille, espião, que vem de rascal, rascalion,
velhaco; pilche, estojo, que vem de pilcher, bainha. Queremos alemão? Eis
caleur, menino, kellner; hers, mestre, herzog (duque). Queremos latim?
Temos frangir, quebrar, frangere; affurer, furtar, fur; cadène, corrente,
catena. Há uma palavra que reaparece em todas as línguas do continente
com uma espécie de poder e misteriosa autoridade: é a palavra magnus; a
Escócia fez dela seu mac, que designa o chefe da tribo, Mac-Farlane, Mac-
Callummore, o grande Farlane, o grande Callummore;6 a gíria fez dele
meck, e, mais tarde, meg, quer dizer, Deus. Queremos basco? Temos
gahisto, diabo, que vem de gaïztoa, malvado; sorgabon, boa noite, que
vem de gabon, boa noite. Queremos celta? Eis blavin, lenço, que vem de
blavet, água que jorra; ménesse, mulher (em sentido pejorativo), que vem
de meinec, cheio de pedras; barant, riacho, de baranton, fonte; gofeur,
serralheiro, de goff, ferreiro; guédouze, morte, que vem de guenn-du,
branco-negro. Finalmente, queremos história? A gíria chama os escudos
de malteses, lembrança da moeda corrente nas galeras de Malta.
Além das origens filológicas, que acabam de ser apontadas, a gíria tem
outras raízes mais naturais ainda, que saem, por assim dizer, do próprio
espírito do homem.
Primeiramente, a criação direta das palavras. Aí está o mistério das
línguas. Pintar por meio de palavras que têm, não se sabe como nem por
que, figuras. Esse é o fundamento primitivo de toda linguagem humana,
aquilo a que se pode chamar de seu granito. A gíria está repleta de
palavras desse gênero, palavras imediatas, criadas de uma só vez, não se
sabe onde nem por quem, sem etimologias, sem analogias, sem derivados,
palavras solitárias, bárbaras, algumas vezes horríveis, que têm um singular
poder de expressão, e que vivem. O carrasco, le taule; a floresta, le sabri;
o pavor, a fuga, taf; o lacaio, le larbin; o general, o prefeito, o ministro,
pharos; o diabo, le rabouin. Nada é mais estranho que essas palavras que
mascaram e que mostram. Algumas, le rabouin, por exemplo, são ao
mesmo tempo grotescas e terríveis, e causam o efeito de uma careta
ciclópica.
Em segundo lugar, a metáfora. A propriedade de uma língua que quer
dizer tudo e esconder tudo é a abundância de figuras. A metáfora é um
enigma onde se refugia o ladrão que trama um golpe, o prisioneiro que
combina uma fuga. Nenhum idioma é mais metafórico que a gíria.
Dévisser le coco, torcer o pescoço; tortiller, comer; être gerbé, ser
julgado; un rat, um ladrão de pão; il lansquine, chove, velha figura
admirável que de alguma forma traz consigo a própria data, que assimila
as longas linhas oblíquas da chuva às lanças espessas e inclinadas dos
lansquenetes, e que reduz a uma só palavra a metonímia popular: chove
canivete. Algumas vezes, à medida que a gíria vai de uma primeira a uma
segunda época, as palavras passam do estado selvagem e primitivo ao
sentido metafórico. O diabo deixa de ser le rabouin e se torna le boulanger
[o padeiro], isto é, aquele que põe no forno. É mais espirituoso, mas
menos grandioso; algo como Racine depois de Corneille, como Eurípides
depois de Ésquilo. Certas frases da gíria, que participam das duas épocas e
têm ao mesmo tempo o caráter bárbaro e o caráter metafórico,
assemelham-se a fantasmagorias. Les sorgueurs vont sollicer des gails à
la lune [os vagabundos vão roubar cavalos de noite]. Isso passa diante de
nosso espírito como um grupo de espectros. Não se sabe o que se vê.
Em terceiro lugar, o expediente. A gíria vive da língua. Faz uso dela ao
sabor de sua fantasia, serve-se dela ao acaso, e limita-se, com frequência,
quando surge a necessidade, a desnaturá-la sumária e grosseiramente. Por
vezes, com as palavras usuais assim deformadas e complicadas com
palavras de gíria pura, compõe locuções pitorescas onde se reconhece a
mistura dos dois elementos precedentes, a criação direta e a metáfora: Le
cab jaspine, je marronne que la roulotte de Pantin trime dans le sabri [o
cão ladra, suspeito que a diligência de Paris passe pelo bosque]. Le dab est
sinve, la dabuge est merloussière, la fée est bative [o burguês é besta, a
burguesia é velhaca, a filha é linda].
No mais das vezes, para desconcertar os ouvintes, a gíria restringe-se a
juntar indistintamente a todas as palavras da língua uma espécie de cauda
ignóbil, terminações em orgue, em aille, em iergue ou em uche. Como:
Vousiergue trouvaille bonorgue ce gigotmuche? — Trouvez-vous ce gigot
bon? [Acha esse pernil bom?] Frase dirigida por Cartouche a um guarda de
prisão, para saber se a soma oferecida para a evasão lhe convinha. A
terminação em mar é muito recente.
A gíria, sendo o idioma da corrupção, corrompe-se depressa. Além
disso, como procura sempre encobrir-se, logo que se sente compreendida,
se transforma. Ao contrário de qualquer outra vegetação, qualquer raio de
luz mata aquilo que toca. Assim, a gíria vai se decompondo e recompondo
sem cessar; trabalho obscuro e rápido que nunca termina. Caminha mais
em dez anos do que uma língua em dez séculos. Assim, le larton [o pão]
torna-se le lartif; le gail [o cavalo] torna-se le gaye; la fertanche [a palha],
la fertille; le momignard [a criança], le momacque; les siques [os
farrapos], les frusques; la chique [a igreja], l’égrugeoir; le colabre [o
pescoço], le colas. O diabo em princípio foi gahisto, depois, le rabouin,
depois le boulanger; o padre foi le ratichon, depois le sanglier; o punhal,
le vingt-deux, em seguida, le surin, depois, le lingre; os policiais railles,
roussins, russes, marchands de lacets, coqueurs e cognes; o carrasco le
taule, mais tarde, Charlot, e depois, l’atigeur, e le becquillard. No século
XVII, bater-se era se donner du tabac [dar tabaco]; no século XIX, é se
chiquer la gueule [bater na cara]. Vinte locuções diferentes passaram entre
esses dois extremos. Cartouche falaria hebraico para Lacenaire. Todas as
palavras dessa linguagem estão perpetuamente em fuga, como os homens
que as pronunciam.
Entretanto, de tempos em tempos, e exatamente por causa desse
movimento, a antiga gíria reaparece e torna a ser nova. Ela tem seus
distritos onde se mantém. O Temple conserva a gíria do século XVII;
Bicêtre, quando era prisão, conservava a gíria de Thunes. Ouvia-se ali a
terminação em anche dos velhos thunenses. Boyanches-tu? — Bois-tu?
[Bebes?]; il croyanche — il croit [ele acredita]. Mas o movimento
perpétuo não deixa de ser a lei.
Se o filósofo consegue fixar um momento para observar essa língua
que se evapora incessantemente, cai em dolorosas e úteis reflexões.
Nenhum estudo é mais eficaz e mais fecundo em ensinamentos. Não há
metáfora, não há etimologia da gíria que não contenha uma lição. Entre
aqueles homens, bater quer dizer fingir; bate-se uma doença; a força deles
está na astúcia.
Para eles, a ideia do homem não se separa da ideia da sombra. Noite,
se diz la sorgue; homem, l’orgue. O homem é um derivado da noite.
Adquiriram o hábito de considerar a sociedade como uma atmosfera
que os mata, como uma força fatal, e falam de sua liberdade como
falariam de sua saúde. Um homem preso é um malade [doente]; um
homem condenado é um mort [morto].
O que há de mais terrível para o prisioneiro, dentro das quatro paredes
de pedra que o enterram, é uma espécie de castidade glacial; ele chama a
cela de castus. Nesse lugar fúnebre, é sempre sob o aspecto mais risonho
que a vida exterior aparece. O prisioneiro tem correntes nos pés; pensam
que ele imagina que é com os pés que se anda? Não, ele imagina que é
com os pés que se dança; e, se consegue cortar os ferros que o prendem,
sua primeira ideia é que agora pode dançar, por isso chama à serra de
bastringue [baile]. Um nom [nome] é um centre [centro]; profunda
assimilação. O bandido tem duas cabeças, uma que raciocina sobre suas
ações e o guia durante toda a sua vida, e outra que tem sobre os ombros no
dia de sua morte; ele chama à cabeça que o aconselha o crime sorbonne [a
universidade] e à cabeça que o espia, tronche [pedaço de madeira].
Quando um homem não tem mais do que farrapos sobre o corpo e vícios
no coração, quando chegou a esta dupla degradação material e moral que
caracteriza em suas duas acepções a palavra gueux [miserável], está pronto
para o crime; é como uma faca bem afiada, tem dois cortes: sua miséria e
sua maldade; aí a gíria não usa gueux, mas réguisé [miserável criminoso].
O que é uma prisão? Um braseiro de condenação, um inferno. O forçado é
chamado de fagot [feixe de lenha]. Enfim, que nome dão os malfeitores à
prisão? Le collège [o colégio]. Todo um sistema penitenciário pode sair
dessa palavra.
O ladrão tem também sua tropa inimiga, a matéria roubável, você, eu,
qualquer pessoa que passe: le pantre — de Pan, todo o mundo.
Querem saber onde eclode a maior parte das canções de prisão, esses
refrões que no vocabulário especial chamam de lirlonfa? Escutem isto:
Havia no Châtelet de Paris um grande subterrâneo. Esse subterrâneo
ficava dois metros e meio abaixo do nível do Sena. Não tinha janelas, nem
respiradouros, a única abertura era a porta; os homens podiam entrar ali, o
ar não. Esse subterrâneo tinha como teto uma abóbada de pedra, e, como
piso, dez polegadas de lama. Havia sido lajeado, mas, com a umidade das
águas, o ladrilho apodreceu e gretou-se. Dois metros e meio acima do solo,
uma longa e sólida viga atravessava o subterrâneo de lado a lado; dessa
viga pendiam, em intervalos regulares, correntes com um metro de
comprimento, e na extremidade de cada corrente havia argolas de ferro.
Era nesse subterrâneo que colocavam os condenados às galés até o dia
de sua partida para Toulon. Eram empurrados para baixo dessa viga, onde
cada um tinha à sua espera uma argola oscilando na escuridão. As
correntes, aqueles braços pendentes, e as argolas, aquelas mãos abertas,
prendiam esses desgraçados pelo pescoço. Eram amarrados e deixados ali.
Como a corrente era muito curta, não podiam deitar-se. Ficavam imóveis
nesse subterrâneo, nessa escuridão, sob essa viga, quase enforcados,
fazendo esforços incríveis para alcançarem o pão ou o cântaro de água; a
abóbada sobre a cabeça, a lama até metade das pernas, seus excrementos
escorrendo por elas, esquartejados de cansaço, dobrados sobre os quadris e
os joelhos, agarrando-se à corrente para repousar, não podendo dormir
senão de pé, e despertando a cada instante estrangulados pela argola no
pescoço; alguns não acordavam mais. Para comer, empurravam com o
calcanhar, ao longo da tíbia, até chegar às mãos, o pão que lhes jogavam
na lama. Por quanto tempo permaneciam assim? Um mês, dois meses, seis
meses às vezes; um esteve ali por um ano. Era a antecâmara das galés.
Eram levados para lá por terem roubado uma lebre ao rei. Nesse sepulcro-
inferno, o que eles faziam? O que se pode fazer em um sepulcro, eles
agonizavam, e o que se pode fazer em um inferno, eles cantavam. Pois,
onde não há mais esperança, resta o cantar. Nas águas de Malta, quando
uma galera se aproximava, ouvia-se o canto antes de se ouvir os remos. O
pobre caçador furtivo Survincent, que havia passado pela prisão-
subterrâneo do Châtelet, dizia: Foram as rimas que me socorreram.
Inutilidade da poesia. Para que serve a rima? Foi nesse subterrâneo que
nasceram quase todas as canções de gíria. Foi da prisão do Grand-Châtelet
de Paris que veio o melancólico estribilho da galera de Montgomery:
Timaloumisaine, timoulamison. A maioria dessas canções é lúgubre;
algumas são alegres; uma delas é terna:

Icicaille est le théâtre


Du petit dardant.

Aqui é o teatro
Do pequeno cupido.

Por mais que se faça, nada aniquila este eterno resto do coração do
homem: o amor.
Neste mundo das ações sombrias, guarda-se segredo. O segredo é coisa
de todos. O segredo, para esses miseráveis, é a unidade que serve de base à
união. Romper o segredo é arrancar a cada membro dessa comunidade
feroz alguma coisa dele mesmo. Denunciar, na enérgica língua da gíria, se
diz: manger un morceau [comer um pedaço]. Como se o denunciante
tirasse para si um pouco da substância de todos e se nutrisse de um pedaço
de carne de cada um.
O que é levar un soufflet [uma bofetada]? A metáfora banal responde:
C’est voir trente-six chandelles [É ver trinta e seis velas, ou ver estrelas].
Aqui a gíria intervém e retoma: Chandelle — camoufle [vela]; e a
linguagem usual deu a soufflet o sinônimo camouflet. Assim, por uma
espécie de penetração de baixo para cima, com a ajuda da metáfora, essa
trajetória incalculável, a gíria sobe da caverna à Academia, e Poulailler,
dizendo: J’allume ma camoufle [Acendo minha vela], fez Voltaire
escrever: Langleviel La Beaumelle7 mérite cent camouflets [Langleviel La
Beaumelle merece cem bofetadas].
Uma escavação na gíria é uma descoberta a cada passo. O estudo e o
aprofundamento desse estranho idioma conduzem ao misterioso ponto de
interseção da sociedade regular com a sociedade maldita.
A gíria é o verbo que se tornou condenado.
Que o princípio pensante do homem possa ser empurrado tão para
baixo, que ele possa ser arrastado e forçado pelas obscuras tiranias da
fatalidade, que possa ser amarrado, não se sabe com que liames, à beira
desse precipício, é consternador.
Ó pobre pensamento dos miseráveis!
Ai! Será que ninguém virá em socorro da alma humana nessa
escuridão? Será que seu destino é esperar para sempre o espírito, o
libertador, o imenso cavaleiro dos pégasos e dos hipogrifos, o combatente
cor de aurora que desce do azul entre duas asas, o radiante cavaleiro do
futuro? Será que ela sempre pedirá em vão que venha em seu socorro a
lança luminosa do ideal? Será que está condenada a escutar a vinda
assustadora do Mal saído do espesso abismo, e a entrever, cada vez mais
perto de si, sob a água imunda, essa cabeça draconiana, essa goela
engolindo espuma, e essa ondulação serpenteante de garras, de tumefações
e de anéis? É preciso que aí fique, sem um clarão, sem esperança, entregue
a essa aproximação terrível, vagamente farejada pelo monstro, trêmula,
desgrenhada, torcendo os braços, para sempre encadeada ao rochedo da
noite, sombria Andrômeda branca e nua nas trevas!

III. GÍRIA QUE CHORA E GÍRIA QUE RI


Como se vê, toda gíria, a gíria de quatrocentos anos bem como a gíria
de hoje, é penetrada por esse sombrio espírito simbólico que dá a todas as
palavras ora uma aparência triste, ora um ar ameaçador. Sente-se nela a
velha tristeza feroz dos vadios da Corte dos Milagres que jogavam cartas
com baralhos próprios, alguns dos quais foram conservados. O oito de
paus, por exemplo, representava uma grande árvore com oito enormes
folhas de trevo, espécie de personificação fantástica da floresta. Ao pé
dessa árvore, via-se uma fogueira, onde três lebres assavam um caçador no
espeto, e, mais atrás, sobre outra fogueira, um caldeirão fumegante de
onde saía a cabeça de um cão. Nada mais lúgubre do que essas represálias,
pintadas sobre cartas de jogar, em presença de fogueiras assando
contrabandistas e de caldeirões fervendo moedeiros falsos. As diversas
formas que o pensamento toma no reino da gíria, tanto a canção, como a
zombaria, como a ameaça, têm, todas, esse caráter impotente e oprimido.
Todas as canções, das quais foram recolhidas algumas melodias, eram
humildes e lamentosas, de fazer chorar. O ladrão [pègre] é chamado de
pobre ladrão [le pauvre pègre], e é sempre a lebre que se esconde, o
camundongo que se salva, o pássaro que foge. Quase nem reclama, limita-
se a suspirar; um de seus gemidos chegou até nós: Je n’entrave que le dail
comment meck, le daron des orgues, peut atiger ses mômes et ses
momignards et les locher criblant sans être atigé lui-mêm [Não entendo
como Deus, o pai dos homens, pode torturar seus filhos e seus netos e
ouvi-los gritar sem sentir-se torturado].
O miserável, todas as vezes que tem tempo para pensar, faz-se pequeno
diante da lei e mesquinho diante da sociedade; torna-se submisso, suplica,
volta-se para o lado da piedade; percebe-se que se reconhece em suas
faltas.
Em meados do século passado, ocorreu uma transformação. Os cantos
de prisões, os estribilhos de ladrões, tomaram, por assim dizer, um caráter
insolente e jovial. O lastimoso maluré foi trocado por larifla. No século
XVIII, encontra-se em quase todas as canções das galés, das prisões e dos
forçados, uma alegria diabólica e enigmática. Nelas, ouve-se o refrão
estridente e saltitante que parece iluminado por um clarão fosforescente e
lançado na floresta por um fogo-fátuo tocando pífaro:

Mirlababi surlababo,
Mirliton ribon ribette,
Surlababi mirlababo,
Mirliton ribon ribo.

Isso era cantado ao se degolar um homem em um subterrâneo ou no


canto de um bosque.
Sintoma sério. No século XVIII, a antiga melancolia dessas classes
tristes se dissipa. Começam a rir. Zombam do grande meg [Deus] e do
grande dab [rei]. Luís XV no trono, chamavam o rei da França de
“marquês de Pantin”. Ei-los quase alegres. Uma espécie de luz leviana sai
desses miseráveis como se a consciência não lhes pesasse mais. Essas
lamentáveis tribos da sombra não têm somente a audácia desesperada das
ações, têm a audácia despreocupada do espírito. Indício de que perdem a
noção de sua criminalidade e sentem, até entre os pensadores e os
sonhadores, não se sabe que tipo de apoio que eles mesmos ignoram.
Indício de que o roubo e a pilhagem começam a se infiltrar até nas
doutrinas e nos sofismas, de maneira a perderem um pouco de sua
fealdade ao dar muito dela aos sofismas e às doutrinas. Indício, enfim, se
não surgir nenhum desvio, de alguma eclosão prodigiosa e próxima.
Paremos um momento. Quem acusamos aqui? O século XVIII? Sua
filosofia? Não, certamente. A obra do século XVIII é sã e boa. Os
enciclopedistas, Diderot à frente, os fisiocratas, Turgot à frente, os
filósofos, Voltaire à frente, e os utopistas, Rousseau à frente, são suas
quatro legiões sagradas. O imenso avanço da humanidade em direção à luz
deve-se a eles. São as quatro vanguardas do gênero humano caminhando
para os quatro pontos cardeais do progresso, Diderot em direção ao belo,
Turgot em direção ao útil, Voltaire em direção ao verdadeiro, e Rousseau
em direção ao justo. Mas, ao lado e abaixo dos filósofos, havia os sofistas,
vegetação venenosa misturada ao crescimento salubre, cicuta na floresta
virgem. Enquanto o carrasco queimava sobre a escada principal do Palácio
de Justiça os grandes livros libertadores do século, escritores hoje
esquecidos publicavam, com privilégio do rei, não se sabe que escritos
estranhamente desorganizadores, mas avidamente lidos pelos miseráveis.
Algumas dessas publicações, detalhe bizarro, patrocinadas por um
príncipe, encontram-se na Biblioteca Secreta. Esses fatos, profundos mas
ignorados, passavam despercebidos à superfície. Às vezes, a própria
obscuridade de um fato é seu verdadeiro perigo. É obscuro porque está
subterrâneo. De todos os escritores, o que talvez tenha cavado nas massas
a galeria mais insalubre foi Restif de la Bretonne.8
Esse trabalho, adequado a toda a Europa, fez mais estragos na
Alemanha do que em qualquer outro lugar. Na Alemanha, durante um certo
período, resumido por Schiller em seu famoso drama Os Bandidos, o
roubo e a pilhagem erguiam-se em protesto contra a propriedade e o
trabalho, assimilando certas ideias elementares, e especiosas e falsas,
justas na aparência, absurdas na realidade; ocultavam-se nessas ideias,
nelas desaparecendo de alguma forma, tomavam um nome abstrato e
passavam ao estado de teoria; e dessa maneira circulavam pelas multidões
laboriosas, sofredoras e honestas, sem nem mesmo o conhecimento dos
químicos imprudentes que haviam preparado a mistura, sem nem mesmo o
conhecimento das massas que as aceitavam. Todas as vezes que um fato
desse tipo se produz, é grave. O sofrimento engendra a cólera; e, enquanto
as classes prósperas ficam cegas ou adormecem, o que é sempre fechar os
olhos, o ódio das classes infelizes acende sua tocha em algum espírito
angustiado ou imperfeito que divaga em algum canto, e põe-se a examinar
a sociedade. O exame do ódio, que coisa terrível!
Daí, se o infortúnio dos tempos assim quiser, essas pavorosas
comoções, que outrora eram chamadas de jacqueries, perto das quais as
agitações puramente políticas são brincadeiras de crianças, não são mais a
luta do oprimido contra o opressor, mas a revolta da penúria contra o bem-
estar. Tudo então desmorona.
As jacqueries são terremotos do povo.
Foi a esse perigo, iminente talvez na Europa de fins do século XVIII,
que veio pôr fim a Revolução Francesa, esse imenso ato de probidade.
A Revolução Francesa, que nada mais é que o ideal armado com
gládio, ergueu-se, e, com o mesmo movimento brusco, fechou a porta do
mal e abriu a porta do bem.
Ela desembaraçou a questão, promulgou a verdade, expulsou o
miasma, saneou o século, coroou o povo.
Pode-se dizer, a respeito dela, que criou o homem uma segunda vez,
dando-lhe uma segunda alma, o direito.
O século XIX herdou e aproveitou sua obra; e hoje a catástrofe social
que indicávamos há pouco é simplesmente impossível. É cego quem a
denuncia! Tolo quem a teme! A Revolução é a vacina contra a jacquerie.
Graças à Revolução, as condições sociais mudaram. As doenças
feudais e monárquicas não estão mais no nosso sangue. Não há mais Idade
Média em nossa constituição. Não estamos mais no tempo em que
terríveis movimentos interiores faziam irrupção; em que ouvíamos sob
nossos pés a corrida obscura de um ruído surdo; em que apareciam, à
superfície da civilização, não se sabe que violentas agitações em galerias
de toupeiras, onde o solo se fendia, onde o topo das cavernas se abria, e
onde de repente viam-se sair da terra cabeças monstruosas.
O senso revolucionário é um senso moral. O sentimento do direito,
desenvolvido, desenvolve o sentimento do dever. A lei de todos é a
liberdade, que acaba aonde começa a liberdade de outrem, segundo a
definição admirável de Robespierre. Desde 1789, o povo inteiro se dilata
no indivíduo sublimado; não há pobre que, tendo seu direito, não tenha seu
raio de luz; o morto de fome sente em si a honestidade da França; a
dignidade do cidadão é uma armadura interior; quem é livre é escrupuloso;
quem vota reina. Daí a incorruptibilidade; daí o aborto das cobiças
doentias; daí os olhos heroicamente abaixados diante das tentações. O
saneamento revolucionário é tal que, em um dia de libertação, um 14 de
julho ou um 10 de agosto, não há mais populacho. O primeiro grito das
multidões iluminadas e engrandecidas é: morte aos ladrões! O progresso é
homem honesto; o ideal e o absoluto não são coisa de se pôr no bolso. Por
quem foram escoltados, em 1848, os furgões que continham as riquezas
das Tulherias? Pelos catadores de trapos do subúrbio Saint-Antoine. O
farrapo montou guarda diante do tesouro. A virtude tornou esses
esfarrapados resplandecentes. Nesses furgões havia, em caixas apenas
fechadas, algumas até mesmo entreabertas, entre centenas de joias
deslumbrantes, a velha coroa da França, toda em diamantes, cravejada
com os rubis da realeza, do regente, que valia trinta milhões. Eles
guardavam, os pés-descalços, essa coroa.
Então, fim das jacqueries. Sinto muito pelos espertos. Esse era o velho
medo que produziu seu último efeito e que não poderá, daqui por diante,
ser empregado em política. A grande mola do espectro vermelho se
quebrou. Todo o mundo sabe disso agora. O espantalho não espanta mais.
Os pássaros criam familiaridade com o boneco; os estercorários pousam
nele, os burgueses riem.

IV. OS DOIS DEVERES: VELAR E ESPERAR


Sendo assim, todo o perigo social desapareceu? Certamente não. Nada
mais de jacqueries. A sociedade pode se tranquilizar por esse lado, o
sangue não subirá mais à sua cabeça; mas que se preocupe com a maneira
como respira. A apoplexia não precisa mais ser temida, mas a tísica ainda
existe. A tísica social chama-se miséria.
Morre-se de fraqueza tanto quanto se morre fulminado.
Não nos cansemos de repetir: antes de tudo, deve-se pensar nas
multidões deserdadas e sofredoras; aliviá-las, arejá-las, iluminá-las, amá-
las, ampliar magnificamente seu horizonte, prodigalizar-lhes de todas as
formas a educação, oferecer-lhes o exemplo do trabalho e nunca o
exemplo da ociosidade, diminuir-lhes o peso do fardo individual
acrescentando-lhes a noção do objetivo universal, limitar a pobreza sem
limitar a riqueza, criar vastos campos de atividade pública e popular, ter,
como Briareu,9 cem mãos para estender de todos os lados aos oprimidos e
aos fracos, empregar o poder coletivo no grande dever de abrir oficinas
para todos os braços, escolas para todas as aptidões e laboratórios para
todas as inteligências, aumentar o salário, diminuir o infortúnio, equilibrar
o dever e o ter, isto é, proporcionar o gozo ao esforço e a fartura à
necessidade; em poucas palavras: fazer liberar do aparelho social, em
proveito daqueles que sofrem e daqueles que ignoram, mais claridade e
mais bem-estar. Está aí, que as almas simpáticas não esqueçam, a primeira
das obrigações fraternais; está aí, que os corações egoístas fiquem
sabendo, a primeira das necessidades políticas.
E, diga-se, tudo isso não é mais que um começo. A verdadeira questão
é esta: o trabalho não pode ser uma lei sem ser um direito.
Não insistiremos mais, aqui não é o lugar.
Se a natureza se chama providência, a sociedade deve se chamar
previdência.
O desenvolvimento intelectual e moral não é menos indispensável que
o melhoramento material. Saber é um viático; pensar é primeira
necessidade; a verdade é alimento assim como o trigo. A razão, em jejum
de ciência e de sabedoria, definha. Lamentemos, tanto quanto pelos
estômagos, pelos espíritos que não se alimentam. Se há alguma coisa mais
pungente do que um corpo agonizante pela falta de pão, é uma alma que
morre da fome de luz.
O progresso todo pende para o lado da solução. Um dia ficaremos
estupefatos. À medida que o gênero humano se elevar, as camadas
profundas naturalmente sairão da zona de desgraça. O fim da miséria
ocorrerá por meio de uma simples elevação de nível.
Dessa abençoada solução seria um erro duvidar.
O passado, de fato, tem muita força no momento em que estamos. Ele
se recupera. Esse rejuvenescimento de um cadáver é espantoso. Ei-lo que
anda e se chega. Parece vencedor; esse morto é um conquistador. Chega
com sua legião, as superstições, com sua espada, o despotismo, com sua
bandeira, a ignorância; há pouco tempo ganhou dez batalhas. Avança,
ameaça, ri, está diante de nossas portas. Quanto a nós, não nos
desesperemos. Vendamos o campo onde Aníbal se instala.
Nós, que acreditamos, o que poderemos temer?
Não há retrocessos de ideias bem como não há retrocessos de rios.
Mas, que aqueles que não desejam um futuro pensem bem nisso.
Dizendo não ao progresso, não é o futuro que eles condenam, mas a si
mesmos. Contraem uma doença sombria, inoculam-se o passado. Só há
uma maneira de recusar o Amanhã, morrer.
Ora, morte nenhuma, a do corpo, o mais tarde possível, a da alma,
jamais, é o que queremos.
Sim, o enigma dirá sua palavra, a esfinge falará, o problema será
resolvido. Sim, o povo esboçado pelo século XVIII será concluído pelo
século XIX. Idiota de quem duvidar! A eclosão futura, a eclosão de bem-
estar universal que se aproxima, é um fenômeno divinamente fatal.
Imensos impulsos de conjunto regem os fatos humanos e levam-nos,
todos, após um certo tempo, ao estado lógico, ou seja, ao equilíbrio, ou
seja, à equidade. Uma força composta de terra e de céu resulta da
humanidade e a governa; essa força é uma realizadora de milagres;
soluções maravilhosas não lhe são mais difíceis do que peripécias
extraordinárias. Ajudada pela ciência que vem de um homem e por um
acontecimento que vem de outro, ela pouco se espanta com as
contradições na colocação dos problemas, que ao povo parecem
impossibilidades. Não é menos hábil em fazer brotar uma solução pela
aproximação de ideias que um ensinamento pela aproximação de fatos, e
pode-se esperar tudo por parte desse misterioso poder do progresso que,
um belo dia, confronta o Oriente e o Ocidente no fundo de um sepulcro, e
faz Bonaparte dialogar com os imames no interior da grande pirâmide.
Nessa espera, que não haja descanso, nem hesitação, nem pausas na
grandiosa marcha avante dos espíritos. A filosofia social é essencialmente
a ciência e a paz. Tem como meta, e deve ter como resultado, dissolver a
cólera por meio do estudo dos antagonismos. Ela examina, perscruta,
analisa; depois recompõe. Procede pela via da redução, eliminando
totalmente o ódio.
Que uma sociedade se perca ao vento que se enfurece sobre os homens,
isso já foi visto mais de uma vez; a história é repleta de naufrágios de
povos e de impérios; costumes, leis, religiões, um belo dia, esse
desconhecido, o furacão, passa e leva tudo consigo. As civilizações da
Índia, da Caldeia, da Pérsia, da Síria, do Egito, desapareceram uma após a
outra. Por quê? Nós o ignoramos. Quais são as causas desses desastres?
Não as conhecemos. Essas sociedades poderiam ter sido salvas? Tiveram
culpa? Ter-se-iam obstinado em algum vício fatal que fez sua perdição?
Que quantidade de suicídio existe nessas mortes terríveis de nações e de
raças? Perguntas sem resposta. A sombra cobre as civilizações
condenadas; elas faziam água, posto que afundaram. Não temos nada mais
a dizer; e é com uma espécie de pavor que vemos desaparecer, no fundo
desse mar que chamamos de passado, por trás dessas ondas colossais, os
séculos, esses imensos navios, Babilônia, Nínive, Tarso, Tebas, Roma, sob
o sopro medonho que sai de todas as bocas das trevas. Mas, o que lá eram
trevas, aqui é claridade. Ignoramos as doenças das civilizações antigas,
mas conhecemos as enfermidades da nossa. Temos, sobre ela inteira, o
direito à luz; contemplamos suas belezas e colocamos a nu suas
deformidades. Onde ela tem um mal, sondamos; e, uma vez constatado o
sofrimento, o estudo da causa conduz à descoberta do remédio. Nossa
civilização, obra de vinte séculos, é ao mesmo tempo monstro e prodígio
dessa obra; vale a pena ser salva. E ela o será. Consolá-la, já é bastante;
iluminá-la, é ainda muito mais. Todos os trabalhos da filosofia social
moderna devem convergir para essa meta. O pensador de hoje tem um
grande dever, auscultar a civilização.
Repetimos, essa auscultação é encorajadora; e é por essa insistência no
encorajamento que queremos acabar estas poucas páginas, entreato austero
de um drama doloroso. Sob a mortalidade social sente-se a imortalidade
humana. Por haver aqui e ali essas chagas, as crateras, e essas impigens, as
solfataras, por haver um vulcão que supura e lança seu pus, nem por isso o
globo vai morrer. Doenças do povo não matam o homem.
No entanto, quem quer que siga a clínica social meneia a cabeça por
instantes. Os mais fortes, os mais ternos, os mais lógicos têm suas horas
de desânimo.
O futuro chegará? Parece que quase podemos nos fazer essa pergunta
quando vemos tanto dessa sombra terrível. Melancólico, face a face com
os egoístas e os miseráveis. Entre os egoístas, os preconceitos, as trevas da
educação rica, o crescente apetite para o inebriamento, um atordoamento
de prosperidade que ensurdece, o receio de sofrer que, em alguns, vai até a
aversão pelos sofredores, uma satisfação implacável, o eu tão empertigado
que fecha a alma; entre os miseráveis, a cobiça, a inveja, o ódio de ver os
outros felizes, os profundos impulsos da besta humana para a saciedade, os
corações cheios de névoa, a tristeza, a necessidade, a fatalidade, a
ignorância impura e simples.
Deve-se continuar erguendo os olhos para o céu? O ponto luminoso
que ali se vê é daqueles que se apagam? O ideal é medonho ao ver-se
assim perdido nas profundezas, pequeno, isolado, imperceptível, brilhante,
mas rodeado de todas essas grandes e negras ameaças monstruosamente
amontoadas à sua volta; no entanto, não está em maior perigo do que uma
estrela nas goelas das nuvens.

__________________________
1 Preguiça, em latim.
2 Trata-se de O último dia de um condenado, de 1829.
3 Para esses termos, com conotação de aprendiz ou ajudante, poderíamos pensar, em
português, respectivamente, no uso de: aluno, moço de cartório, auxiliar, ajudante remendão.
4 Encontrareis naquelas fofocas um grande número de razões para que eu assuma minha
liberdade. Essa frase, aqui transcrita em português, aparece como nota explicativa na edição
original francesa.
5 Dentre esses termos, alguns figuram nos dicionários: vergoise — açúcar ordinário; claircé
— xarope de açúcar branco; brûlé — queimado.
6 Deve-se, no entanto, observar que mac, em celta, significa filho. (N. A.)
7 Trata-se de um desafeto de Voltaire.
8 Autor, entre muitos outros livros, de Paysan Perverti [Camponês Pervertido] e que tinha o
apelido de “Rousseau du ruisseau” [Rousseau do córrego].
9 Um dos três filhos de Urano (o Céu) e de Gaia (a Terra), cada um deles com cem braços e
cinquenta cabeças, comumente representados como divindades marinhas.
LIVRO VIII
OS ENCANTOS E AS DESOLAÇÕES

I. LUZ PLENA
O LEITOR decerto já compreendeu que Éponine, reconhecendo por entre
as grades a habitante da rua Plumet, onde Magnon a enviara, começara por
afastar os bandidos, e, em seguida, ali conduzira Marius; este, após vários
dias em êxtase diante da grade, arrastado por essa força que impele o ferro
para o ímã e o apaixonado para as pedras com que são feitas a casa da
amada, acabara por entrar no jardim de Cosette, como Romeu no jardim de
Julieta.
O que foi mais fácil para ele do que para Romeu; Romeu foi obrigado
a escalar um muro, enquanto Marius precisou apenas forçar uma das
barras da decrépita grade que vacilava em seu alvéolo enferrujado, como
dentes na boca de gente velha. Marius era magro e passou facilmente.
Como nunca havia ninguém na rua e, além disso, Marius só entrava no
jardim à noite, não corria o risco de ser visto.
A partir do momento abençoado e santo em que um beijo uniu essas
duas almas, Marius passou a ir até lá todas as noites. Se, naquela fase de
sua vida, Cosette tivesse caído de amores por um homem pouco
escrupuloso e libertino, estaria perdida; pois existem naturezas generosas
que se entregam, e Cosette era uma delas. Uma das magnanimidades da
mulher é ceder. O amor, elevado a uma altura em que se torna absoluto,
complica-se com não se sabe que celeste cegueira do pudor.
Mas que perigos correis, ó almas nobres! Quantas vezes nos dais o
coração, e tomamos o corpo. Vossos corações vos restam, e os olhais no
escuro a tremer.
O amor não tem meio-termo; ou perde ou salva. Todo o destino
humano está nesse dilema. Tal dilema, perda ou salvação, nenhuma outra
fatalidade o coloca mais inexoravelmente que o amor. O amor é a vida, se
não for a morte. É berço; também é túmulo. O mesmo sentimento diz sim
e não dentro do coração humano. De todas as coisas que Deus criou, o
coração humano é a que desprende mais luz, ai! E mais escuridão.
Deus quis que o amor encontrado por Cosette fosse um desses amores
que salvam.
Enquanto durou o mês de maio daquele ano de 1832, estiveram ali,
todas as noites, naquele pobre jardim selvagem, sob a folhagem cada dia
mais perfumada e espessa, dois seres compostos de toda espécie de
castidade e inocência, transbordando de todas as felicidades do céu, mais
próximos dos arcanjos que dos homens, puros, honestos, inebriados,
radiantes, resplandecendo um para o outro nas trevas. Parecia a Cosette
que Marius tinha uma coroa, e a Marius que Cosette tinha uma auréola.
Tocavam-se, olhavam-se, davam-se as mãos, estreitavam-se um contra o
outro, mas havia uma distância que eles não ultrapassavam. Não que a
respeitassem; a ignoravam. Marius sentia uma barreira, a pureza de
Cosette, e Cosette sentia um apoio, a lealdade de Marius. O primeiro beijo
também fora o último. Desde então, Marius não fora além de roçar com os
lábios a mão, o lenço ou um cacho dos cabelos de Cosette. Para ele,
Cosette era um perfume e não uma mulher. Ele a respirava. Ela nada
recusava, ele nada pedia.
Cosette estava feliz, e Marius estava satisfeito. Viviam nesse
maravilhoso estado que poderia ser chamado de deslumbramento de uma
alma por outra alma. Era esse inefável primeiro abraço de duas
virgindades no ideal. Dois cisnes encontrando-se na Jungfrau.
Naquela fase do amor, fase em que a voluptuosidade se cala
completamente sob o poder soberano do êxtase, Marius, o puro e seráfico
Marius, antes teria sido capaz de ir à casa de uma mulher da vida do que
de erguer o vestido de Cosette até a altura do tornozelo. Certa vez, ao luar,
Cosette abaixou-se para apanhar alguma coisa do chão; sua gola
entreabriu-se deixando ver o princípio de seu colo. Marius desviou os
olhos.
Que se passava entre esses dois seres? Nada. Eles se adoravam.
À noite, quando estavam ali, aquele jardim parecia um lugar vivo e
sagrado. Todas as flores se abriam em volta deles enviando-lhes seus
perfumes; e eles abriam suas almas expandindo-as nas flores. A vegetação
lasciva e vigorosa estremecia cheia de seiva e embriaguez em volta dos
dois inocentes, e eles diziam palavras de amor que faziam estremecer as
árvores.
O que eram essas palavras? Suspiros. Nada mais. Esses suspiros
bastavam para perturbar e emocionar toda aquela natureza. Mágico poder,
difícil de compreender se lêssemos em um livro essas conversas feitas
para serem levadas e dissipadas como fumaça pelo vento, através da
folhagem. Tirem dos murmúrios de dois amantes essa melodia que vem da
alma e que os acompanha como uma lira, e o que resta não é mais que uma
sombra. Então dirão: “Como! É só isso?” Ah, sim, criancices, repetições,
risos sem motivo, bobagens, futilidades, tudo o que há no mundo de mais
sublime e de mais profundo! As únicas coisas que valem a pena serem
ditas e ouvidas!
Essas futilidades, essas pobrezas, o homem que nunca as ouviu, o
homem que nunca as pronunciou, é um imbecil e um mau homem.
Cosette dizia a Marius:
— Sabe?…
(Em meio a tudo isso, nessa celeste virgindade, e sem que soubessem
dizer como, começaram a tratar-se com maior intimidade, por você.)
— Sabe? Eu me chamo Euphrasie.
— Euphrasie? Claro que não, seu nome é Cosette.
— Oh! Cosette é um nome muito feio que me deram quando eu era
pequena. Mas meu verdadeiro nome é Euphrasie. Você não gosta deste
nome, Euphrasie?
— Gosto; mas Cosette não é feio.
— Você gosta mais de Cosette que de Euphrasie?
— É… gosto.
— Então também gosto mais dele. É verdade, Cosette é bonito; me
chame de Cosette.
E o sorriso que ela acrescentava fazia desse diálogo um idílio digno de
um bosque que estivesse no céu.
Uma outra vez, olhava fixamente para ele e exclamava:
— O senhor é encantador, é bonito, é espirituoso, não é nada bobo, é
bem mais esperto do que eu, mas o desafio com estas palavras: eu o amo!
E Marius, em pleno céu, julgava ouvir uma estrofe cantada por uma
estrela.
Ou então, ela lhe dava um tapinha quando ele tossia, e lhe dizia:
— Não tussa, senhor. Não quero que tussam em minha casa sem minha
permissão. É muito feio tossir e me deixar preocupada. Quero que passe
bem, porque, antes de tudo, se você não passar bem, eu ficarei muito
infeliz. O que quer que eu faça?
E isso era simplesmente divino.
Uma vez Marius disse a Cosette:
— Imagine só, durante algum tempo, eu achei que você se chamasse
Ursule.
Isso fez com que rissem a noite inteira.
No meio de uma outra conversa, ocorreu-lhe de exclamar:
— Oh! Um dia, no Luxemburgo, tive vontade de acabar de quebrar um
inválido!
Mas logo interrompeu-se e não foi mais adiante, pois teria de falar a
Cosette sobre sua liga, coisa que lhe era impossível. Via nisso uma
aproximação desconhecida, a carne, diante da qual recuava, com uma
espécie de medo sagrado, aquele imenso amor inocente.
Marius imaginava a vida com Cosette daquele jeito, sem qualquer
outra coisa; dirigir-se todo fim de tarde à rua Plumet, deslocar a velha
barra complacente da grade do jardim, sentar lado a lado com ela naquele
banco, observar por entre as árvores o cintilar da noite começando, fazer
coabitar a dobra do joelho de suas calças com o amplo vestido de Cosette,
acariciar-lhe a unha do polegar, chamá-la de você, respirar, um após o
outro, a mesma flor, para sempre, indefinidamente. Enquanto isso, as
nuvens passavam acima de suas cabeças.
Cada vez que o vento sopra, leva consigo mais sonhos dos homens do
que nuvens do céu.
Não que esse casto e quase arisco amor fosse absolutamente sem
galanteria, não. “Fazer elogios” à mulher amada é o primeiro modo de
fazer carícias, uma meia audácia que se tenta. O elogio é algo como um
beijo dado através de um véu. Uma doce pontinha de volúpia existe aí,
embora escondida. Diante da volúpia, o coração recua, para melhor amar.
As carícias de Marius, completamente saturadas de quimera, eram, por
assim dizer, do céu. Os pássaros, quando voam bem alto, perto dos anjos,
devem ouvir palavras como essas. A elas, no entanto, se mesclava a vida, a
humanidade e tudo de positivo de que Marius era capaz. Era o que se diz
na gruta, prelúdio do que será dito na alcova; uma efusão lírica, a estrofe e
o soneto entremeados, as gentis hipérboles do arrulho, todos os
refinamentos da adoração arrumados em forma de buquê e exalando um
sutil perfume celeste, um inefável murmúrio de coração a coração.
— Oh! — murmurava Marius. — Como é bela! Não ouso olhar para
você, o que faço é contemplá-la. Você é uma graça. Não sei o que me
acontece; quando a ponta de seu pé passa pela barra de seu vestido, fico
perturbado. E depois, que brilho encantado quando seu pensamento se
entreabre! Fala com admirável razão. Por instantes me parece que você é
um sonho. Fale, eu a escuto, a admiro. Ó Cosette! Como é estranho e
encantador! Estou realmente enlouquecido. A senhorita é adorável. Estudo
seus pés ao microscópio e sua alma ao telescópio.
E Cosette respondia:
— Amo você um pouco mais depois do tempo que se passou desde esta
manhã.
Perguntas e respostas entravam como podiam nesses diálogos, sempre
chegando a um acordo sobre o amor.
Toda a pessoa de Cosette era singeleza, ingenuidade, transparência,
alvura, candura, fulgor. Era possível dizer que ela era luminosa. Causava
em quem a via uma sensação de abril e de alvorada. Havia orvalho em
seus olhos. Cosette era uma condensação de luz da aurora em forma de
mulher.
Era muito simples entender que Marius, por adorá-la, a admirasse.
Mas a verdade era que essa pequena interna, saída havia pouco do
convento, conversava com uma singular penetração, e às vezes dizia todo
tipo de palavras verdadeiras e delicadas. Sua tagarelice era, de fato, uma
conversa. Não se enganava a respeito de nada, e tinha uma visão justa. A
mulher sente e fala com o suave instinto do coração, essa infalibilidade.
Ninguém sabe, como uma mulher, dizer coisas ao mesmo tempo doces e
profundas. Doçura e profundidade, eis tudo o que é a mulher; eis tudo o
que é o céu.
Nessa felicidade plena, a cada instante, lágrimas vinham a seus olhos.
Um inseto esmagado, uma pluma caída de um ninho, um galho de árvore
quebrado causavam-lhes piedade, e seu êxtase, suavemente inundado de
melancolia, parecia não querer nada melhor do que chorar. O mais
soberano sintoma do amor é esse enternecimento, às vezes quase
insuportável.
E, a par disso — todas essas contradições formam o jogo de brilhos do
amor —, eles riam com gosto, com uma liberdade encantadora, e com
tanta familiaridade que às vezes quase pareciam dois garotos. Contudo,
mesmo sem que os corações inebriados de castidade tenham consciência, a
inesquecível natureza está sempre presente. Está presente, com seu
propósito brutal e sublime, e, seja qual for a inocência das almas, pode-se
sentir, até nas mais pudicas conversas a sós, a adorável e misteriosa
nuance que separa um casal de amantes de um par de amigos.
Eles se idolatravam.
O que é permanente e imutável subsiste. Os que se amam sorriem-se,
riem-se, fazem pequenos trejeitos com os lábios, entrelaçam os dedos das
mãos, tratam-se carinhosamente, e nada disso é obstáculo à eternidade.
Dois amantes se escondem na noite, no crepúsculo, no invisível, entre os
pássaros, as rosas; fascinam um ao outro, em meio às sombras, colocando
seus corações em seus olhos; murmuram, cochicham, e, enquanto isso,
imensas oscilações de estrelas enchem o infinito.

II. O ASSOMBRO DA FELICIDADE COMPLETA


Vagamente existiam, desvairados de felicidade. Não se deram conta do
cólera que dizimava Paris justamente naquele mês.
Fizeram-se o maior número de confidências que puderam, mas isso
não havia ido muito além de seus nomes. Marius tinha dito a Cosette que
era órfão, que se chamava Marius Pontmercy, que era advogado, que vivia
de escrever para livreiros, que seu pai tinha sido coronel, que tinha sido
um herói, e que ele, Marius, se indispusera com seu avô, que era rico.
Também lhe disse meio por cima que era barão; mas isso não produziu
efeito algum em Cosette. Marius barão? Ela não entendeu muito bem. Não
sabia o que essa palavra queria dizer. Marius era Marius. Por seu lado, ela
confiara-lhe que fora educada no convento do Petit-Picpus, que sua mãe
havia morrido, como a dele, que seu pai se chamava Fauchelevent, que era
muito bom, que ajudava muito os pobres, embora ele mesmo fosse pobre,
e que se privava de tudo para que ela não se privasse de nada.
Coisa estranha, naquela espécie de sinfonia em que Marius vivia desde
que passara a encontrar-se com Cosette, o passado, mesmo o mais recente,
tornara-se de tal forma confuso e remoto para ele que o que Cosette lhe
contou o satisfez plenamente. Ele nem pensou em lhe falar da aventura
noturna no casebre dos Thénardier, da queimadura, da estranha atitude e
da singular fuga de seu pai. Marius havia momentaneamente esquecido
tudo isso; à noite, nem sequer lembrava o que havia feito pela manhã, nem
onde havia almoçado, nem com quem havia falado; nos ouvidos tinha uma
espécie de cântico que o deixava surdo a qualquer outro pensamento; ele
não existia, senão nos momentos em que via Cosette. Então, como estava
nas nuvens, nada mais fácil que esquecer a terra. Ambos sustentavam com
languidez o indefinível peso das voluptuosidades imateriais. Assim vivem
esses sonâmbulos que chamamos de apaixonados.
Ai! Quem já não experimentou todas essas coisas? Por que deve haver
uma hora em que saímos desse céu, e por que a vida deve continuar
depois?
O amor quase substitui o pensar. O amor é um ardente esquecer de todo
o resto. Peçam lógica à paixão. Há no coração humano tanto encadeamento
lógico quanto figuras geométricas perfeitas na mecânica celeste. Para
Cosette e Marius, nada mais existia além de Marius e Cosette. O universo
em volta deles caíra em um buraco. Viviam em um minuto de ouro. Como
se nada houvesse à frente, nem atrás. Marius mal se lembrava que Cosette
tinha um pai. Em seu cérebro, tudo era apagado pelo deslumbramento. De
que então falavam esses amantes? Já vimos; das flores, das andorinhas, do
pôr do sol, do nascer da lua, de todas as coisas importantes. Haviam dito
tudo um ao outro, exceto tudo. O tudo dos enamorados é o nada. Mas o
pai, a realidade, aquele covil, aqueles bandidos, aquela aventura, falar
disso para quê? Era mesmo certo que aquele pesadelo tivesse acontecido?
Os dois existiam, adoravam-se, isso era tudo. Nada mais contava. É
provável que esse deixar para trás de um inferno seja inerente a chegar ao
paraíso. Será que vimos algum demônio? Será que existem? Será que
tivemos medo? Será que realmente sofremos? Já não sabemos. Uma
nuvem cor-de-rosa paira acima de tudo.
Então, essas duas criaturas viviam assim, muito no alto com toda a
inverossimilhança que existe na natureza; nem no nadir, nem no zênite,
entre o homem e o serafim, acima da lama, abaixo do éter, nas nuvens,
apenas osso e carne, alma e êxtase da cabeça aos pés; já sublimados
demais para andarem pela terra, ainda carregados demais de humanidade
para desaparecerem no espaço, em suspensão como átomos que esperam a
precipitação; aparentemente fora do destino; ignorando esta barreira
chamada ontem, hoje, amanhã; maravilhados, pasmados, flutuantes; por
momentos, leves o bastante para fugirem pelo infinito; quase prontos para
o voo eterno.
Dormiam acordados nesse ninar. Ó letargia esplêndida do real repleto
de ideal!
Algumas vezes, por mais bela que Cosette estivesse, Marius fechava os
olhos diante dela. De olhos fechados, essa é a melhor maneira de ver a
alma.
Marius e Cosette não se perguntavam onde aquilo os levaria. Olhavam-
se como se já tivessem chegado. É uma estranha pretensão dos homens
querer que o amor conduza a algum lugar.

III. PRINCÍPIO DE SOMBRA


Jean Valjean não desconfiava de nada.
Cosette, um pouco menos sonhadora que Marius, estava alegre, e isso
bastava para que Jean Valjean ficasse feliz. Os pensamentos de Cosette,
suas ternas preocupações, a imagem de Marius preenchendo sua alma, em
nada diminuíam a pureza incomparável de sua bela fronte casta e risonha.
Estava na idade em que a virgem carrega seu amor como o anjo carrega
seu lírio. Jean Valjean, então, se sentia tranquilo. E depois, quando dois
amantes se entendem, tudo corre sempre muito bem; qualquer um que
possa perturbar seu amor é mantido em perfeita cegueira, por meio de um
pequeno número de precauções, sempre as mesmas para todos os
enamorados. Dessa forma, nenhuma objeção de Cosette a Jean Valjean. Ele
queria passear? Sim, paizinho. Queria ficar em casa? Está bem, papai.
Queria passar a noite na companhia de Cosette? Ela ficava contente. Como
ele se retirava sempre às dez horas da noite, Marius só vinha ao jardim
depois dessa hora, quando ouvia, da rua, Cosette abrir a porta-balcão que
dava para a escadaria. Nem é preciso dizer que durante o dia Marius
jamais era encontrado. Jean Valjean nem lembrava mais que Marius
existia.
Certa vez, pela manhã, ocorreu-lhe de dizer a Cosette: “Olhe, você tem
uma marca branca nas costas!” É que, na noite anterior, Marius, num
arrebatamento, pressionara Cosette contra o muro.
A velha Toussaint, que se deitava cedo, uma vez terminadas suas
tarefas, só pensava em dormir, e, como Jean Valjean, ignorava tudo.
Marius nunca punha os pés dentro da casa. Quando estava com
Cosette, escondiam-se em um vão da escada para não serem vistos nem
ouvidos da rua, e ali se sentavam, contentando-se muitas vezes, como
única forma de conversar, em apertar-se as mãos vinte vezes por minuto,
contemplando os galhos das árvores. Nesses momentos, se um raio caísse
a trinta passos dali, nem perceberiam, tanto a divagação de um absorvia-se
e mergulhava na divagação do outro.
Límpidas purezas. Horas muito brancas, quase todas iguais. Esse
gênero de amores é uma coleção de pétalas de lírio e plumas de pombas.
O jardim inteiro estendia-se entre eles e a rua. Toda vez que Marius
entrava e saía, ajeitava com todo o cuidado a barra da grade, de modo que
nenhuma alteração fosse visível.
Habitualmente, ia embora à meia-noite, retornando à casa de
Courfeyrac.
Courfeyrac dizia a Bahorel:
— Acredita? Agora Marius tem voltado lá pela uma da manhã.
Bahorel respondia:
— O que você quer? Sempre se esconde um escândalo em um
seminarista.
Às vezes, Courfeyrac cruzava os braços, tomava um ar sério, e dizia a
Marius:
— Você está ficando perdido, rapaz!
Courfeyrac, homem prático, não fazia juízo favorável desse reflexo de
um paraíso invisível sobre Marius; tinha pouco conhecimento de paixões
inéditas, impacientava-se com elas, e às vezes intimava Marius a voltar ao
mundo real.
Uma manhã, lançou-lhe esta advertência:
— Meu caro, no momento, você me parece estar no mundo da lua,
reino do sonho, província da ilusão, capital Bolha de Sabão. Vamos, seja
um bom menino, como ela se chama?
Mas nada fazia Marius falar. Mais fácil seria arrancar-lhe as unhas do
que uma das três sílabas sagradas que compunham este nome inefável,
Cosette. O amor verdadeiro é luminoso como a aurora e silencioso como o
sepulcro. Para Courfeyrac, somente havia esta mudança em Marius, ele
tinha agora uma taciturnidade fulgurante.
Durante aquele doce mês de maio, Marius e Cosette experimentaram
estas imensas venturas:
Discutirem e se tratarem com toda a formalidade, unicamente para
depois melhor se tratarem carinhosamente;
Falarem longamente, e com os mais minuciosos detalhes, das pessoas
que menos lhes interessavam no mundo, prova, além de tudo, de que nesta
encantadora ópera chamada amor o libreto não significa quase nada;
Para Marius, ouvir Cosette falar de amenidades;
Para Cosette, ouvir Marius falar de política;
Ouvirem, joelho contra joelho, as carruagens passarem pela rua
Babylone;
Contemplarem o mesmo planeta no espaço ou o mesmo luzidio verme
na relva;
Permanecerem calados, prazer maior ainda do que falar;
Etc., etc.
Entretanto, diversas complicações se aproximavam.
Certa noite, Marius se encaminhava para o encontro pelo bulevar de
Invalides; habitualmente andava de cabeça baixa; quando ia dobrar a
esquina da rua Plumet, ouviu alguém dizer muito perto dele:
— Boa noite, senhor Marius.
Ergueu a cabeça e reconheceu Éponine.
Isso causou-lhe uma impressão singular. Não se lembrara uma só vez
dessa moça desde o dia em que ela o levara à rua Plumet, nem tornara a
vê-la; ela havia saído completamente de sua memória. Tinha apenas
motivos de reconhecimento para com ela, devia-lhe sua felicidade
presente; todavia, era-lhe constrangedor encontrá-la.
É um erro supor que a paixão, quando feliz e pura, conduz o homem a
um estado de perfeição; ela simplesmente o conduz, já o constatamos, a
um estado de esquecimento. Nessa situação, o homem se esquece de ser
mau, mas também se esquece de ser bom. O reconhecimento, o dever, as
lembranças essenciais e importunas desaparecem. Em qualquer outro
momento, Marius teria sido muito diferente para com Éponine. Absorvido
por Cosette, nem se dera muito claramente conta de que aquela Éponine se
chamava Éponine Thénardier, e que ela carregava um nome escrito no
testamento de seu pai, nome ao qual, alguns meses antes, teria sido
ardentemente dedicado. Mostramos Marius tal como estava. Até mesmo
seu pai desaparecera um pouco de sua mente sob o esplendor de seu amor.
Respondeu um tanto embaraçado:
— Ah! É a senhorita Éponine.
— Por que me trata por senhorita? Eu lhe fiz alguma coisa?
— Não — respondeu ele.
Claro, ele nada tinha contra ela. Longe disso. Só que reconhecia não
poder agir de outra forma, agora que tratava Cosette por você, a não ser
tratar Éponine com formalidade.
Como ele se calasse, ela exclamou:
— E então…
Aí parou. Parecia que as palavras faltavam a essa criatura antes tão
despreocupada e tão ousada. Tentou sorrir, mas não pôde. Retomou:
— Pois bem!…
Novamente se calou, permanecendo de olhos baixos.
— Boa noite, senhor Marius — disse ela subitamente; e foi-se embora.

IV. CAB1 CIRCULA EM INGLÊS E LADRA EM GÍRIA


O dia seguinte, era 3 de junho, 3 de junho de 1823, é uma data que
devemos indicar em virtude dos graves acontecimentos que por essa
ocasião estavam suspensos sobre o horizonte de Paris, no estado de nuvens
carregadas. Ao anoitecer, Marius seguia o mesmo caminho da véspera,
com os mesmos pensamentos enlevados no coração, quando, por entre as
árvores do bulevar, avistou Éponine vindo em sua direção. Dois dias
seguidos era demais. Desviou rapidamente, saiu do bulevar, mudou de
caminho e dirigiu-se à rua Plumet pela rua Monsieur.
Isso fez com que Éponine o seguisse até a rua Plumet, coisa que até
então ela ainda não fizera. Até aí, ela se contentara em vê-lo passar pelo
bulevar sem nunca ter procurado encontrá-lo. Somente na véspera tentara
falar com ele.
Éponine, então, seguiu-o sem que ele percebesse, e viu quando ele
deslocou a barra da grade e introduziu-se no jardim.
— Veja só! — disse ela. — Ele entra na casa!
Aproximou-se da grade, apalpou as barras uma por uma e facilmente
encontrou a que Marius havia deslocado. Murmurou a meia voz, em tom
lúgubre:
— Essa não!
E sentou-se na parte inferior da grade, bem ao lado da barra, como se a
vigiasse. Era justamente o ponto em que a grade vinha unir-se ao muro
vizinho. Havia ali um canto escuro onde Éponine desaparecia
inteiramente. Ela permaneceu assim por mais de uma hora, sem se mexer
e sem respirar, dominada por seus pensamentos.
Por volta das dez horas, um dos dois ou três transeuntes da rua Plumet,
um velho burguês, que se apressava naquele local deserto e de má fama,
beirando a grade do jardim e chegando ao ângulo que a grade fazia com o
muro, ouviu uma voz surda e ameaçadora dizer:
— Não me admira que ele venha todas as noites!
O passeante olhou em volta de si, não viu ninguém, não ousou olhar
para aquele canto escuro e teve muito medo. Apertou o passo.
Esse homem tinha razão em se apressar, pois, poucos instantes depois,
seis homens que andavam ao longo do muro, separados e um tanto
distantes uns dos outros, e que poderiam ser tomados por uma patrulha
tocada a aguardente, entraram na rua Plumet.
O primeiro que chegou junto da grade parou e esperou os outros; daí a
um segundo, estavam todos os seis reunidos. Esses homens puseram-se a
falar em voz baixa.
— É icicaille [aqui] — disse um deles.
— Tem algum cab [cão] no jardim? — perguntou um outro.
— Não sei. Em todo caso, eu trouxe uma bolinha de carne que o
faremos morfiler [comer].
— Você trouxe a massa para frangir la venterne [quebrar a vidraça]?2
— Trouxe.
— A grade está velha — retrucou um quinto homem que tinha uma
voz de ventríloquo.
— Melhor assim — disse o segundo que falara —; ela não criblera
[fará barulho] na hora da bastringue [serra] e nem será tão dura de faucher
[cortar].
O sexto homem, que ainda não havia aberto a boca, começou a
examinar a grade, como Éponine havia feito uma hora antes, empunhando
e balançando cada uma das barras com precaução. Assim também
encontrou a barra que Marius havia afastado. Quando ia segurá-la, uma
mão, saindo bruscamente do escuro, abateu-se sobre seu braço; ele sentiu-
se fortemente empurrado pelo peito, e uma voz rouca lhe disse sem gritar:
— Tem um cab!
Ao mesmo tempo, ele viu uma jovem pálida, de pé diante dele. O
homem experimentou a comoção que o inesperado sempre causa.
Arrepiou-se medonhamente; nada é mais formidável de se ver que as
bestas ferozes inquietas; seu ar apavorado é apavorante. Ele recuou e
balbuciou:
— Quem será essa daí?
— Sua filha.
De fato, era Éponine que falava com Thénardier.
À aparição de Éponine, os outros cinco, isto é, Claquesous, Gueulemer,
Babet, Montparnasse e Brujon, aproximaram-se sem ruído, sem
precipitação, sem dizer uma só palavra, com a sinistra lentidão própria
desses homens da noite.
Viam-se em suas mãos sabe-se lá que medonhas ferramentas.
Gueulemer trazia uma espécie de tenaz curva, que os ladrões chamavam
de fanchon.
— Ora essa, o que você está fazendo aqui? O que você está querendo?
Está doida? — exclamou Thénardier, gritando tanto quanto possível a
quem fala em voz baixa. — O que é isso de vir nos impedir de trabalhar?
Éponine desatou a rir e saltou em seu pescoço.
— Estou aqui, paizinho, porque estou aqui. Será que agora não é mais
permitido sentar nas pedras? O senhor é que não deveria estar aqui. O que
vieram fazer, já que era um biscoito? Eu já tinha dito a Magnon, não há
nada a fazer aqui. Mas me dê um abraço, meu bom paizinho! Há quanto
tempo não vejo o senhor! Então agora está solto?
Thénardier tentou se desvencilhar dos braços de Éponine e resmungou:
— Está bem; já me abraçou. É, estou solto; não estou mais lá dentro.
Agora, vá embora.
Mas Éponine não desistia e redobrava suas carícias.
— Paizinho, mas como o senhor fez? É preciso ter muita cabeça para
sair de lá. Ora, conte-me como foi isso! E minha mãe? Onde está minha
mãe? Dê notícias de mamãe para mim.
Thénardier respondeu:
— Ela está bem, sei lá, me deixe em paz, já disse, vá embora.
— Mas justamente — disse Éponine com jeito de criança mimada —
eu não quero ir, o senhor me manda embora e já são quatro meses que eu
não o vejo e mal tive tempo de abraçar o senhor. — E tornou a segurá-lo
pelo pescoço.
— Ora, mas que coisa boba! — disse Babet.
— Vamos rápido! — disse Gueulemer. — Os meganhas podem passar.
A voz de ventríloquo escandiu este dístico:

Nous ne sommes pas le jour de l’an


À becoter papa maman.

Não estamos no dia de ano-novo


Para beijar papai e mamãe.

Éponine voltou-se para os cinco bandidos:


— Vejamos, é o senhor Brujon. Bom dia, senhor Babet. Bom dia,
senhor Claquesous. Não está me reconhecendo, senhor Gueulemer? Como
vai, Montparnasse?
— Claro que reconhecemos você! Mas bom dia, boa noite, cai fora!
Deixe a gente sossegado — disse Thénardier.
— É hora das raposas e não das galinhas — disse Montparnasse.
— Você está vendo muito bem que nós temos o que goupiner icigo
[fazer aqui] — acrescentou Babet.
Éponine pegou na mão de Montparnasse.
— Cuidado! — disse ele. — Vai se cortar, estou com um lingre ouvert
[navalha aberta].
— Meu querido Montparnasse — respondeu Éponine docemente —, é
preciso ter confiança nas pessoas. Sou filha de meu pai, talvez. Senhor
Babet, senhor Gueulemer, foi a mim que encarregaram de sondar o
negócio.
É notável o fato de Éponine não falar gíria. Desde que conhecera
Marius, essa linguagem medonha passara a ser-lhe impossível.
Ela apertou em sua pequena mão ossuda e fraca, como a mão de um
esqueleto, os grossos e ásperos dedos de Gueulemer, e continuou:
— Bem sabem que não sou nenhuma tonta. Em geral, acreditam em
mim. Já fiz favores para vocês quando foi preciso. Pois bem, tirei
informações, vocês iriam se expor inutilmente, entendem. Juro que não há
nada a fazer nesta casa.
— Tem mulheres sozinhas — disse Gueulemer.
— Não. Já se mudaram.
— Mas as velas ainda não! — disse Babet.
E mostrou a Éponine, através da copa das árvores, uma luz que se
movia no sótão do pavilhão. Era Toussaint, que ainda estava de pé
estendendo roupa para secar.
Éponine tentou um último esforço.
— Mas é só gente muito pobre — disse ela —, e um casebre onde não
têm um centavo.
— Vá para os diabos! — exclamou Thénardier. — Quando a gente
tiver revirado a casa, e deixado o porão em cima e o sótão embaixo, é a
gente que vai dizer o que tinha lá dentro, se eram balles, ronds ou broques
[francos, moedas ou tostões].
E empurrou-a para passar adiante.
— Meu bom amigo Montparnasse — disse Éponine —, eu lhe peço,
você que é gente boa, não entre!
— Então tome cuidado, você vai se cortar! — replicou Montparnasse.
Thénardier tornou, com o tom decisivo que lhe era peculiar:
— Ande logo, mocinha, e deixe os homens tratarem de seus negócios.
Éponine largou a mão de Montparnasse, que ela tinha tornado a
segurar, e disse:
— Então vocês querem mesmo entrar nesta casa?
— Um pouco! — disse o ventríloquo fazendo chacota.
Então ela encostou-se à grade, encarou os seis bandidos, armados até
os dentes e a quem a noite dava ares de demônios, e disse em voz baixa
mas firme:
— Sei, mas eu não quero!
Eles pararam, espantados. O ventríloquo, no entanto, rematou sua
zombaria. Ela continuou:
— Amigos, ouçam bem! Não é para zombar. Agora, eu falo. Se vocês
entrarem no jardim, se tocarem nesta grade, eu começo a gritar, bato nas
portas, acordo a rua inteira, mando prender os seis, chamo a guarda
municipal.
— Ela é capaz de fazer isso — disse Thénardier em voz baixa a Brujon
e ao ventríloquo.
Ela balançou a cabeça e acrescentou:
— A começar pelo meu pai.
Thénardier aproximou-se.
— Não chegue tão perto, meu senhor! — disse ela.
Thénardier recuou resmungando entre os dentes:
— O que será que deu nela?
E acrescentou:
— Cadela!
Ela desatou a rir de um modo terrível.
— Como quiser, mas vocês não vão entrar. E não sou filha de cachorro,
já que sou filha de lobo. Vocês são seis, mas e daí? São homens. Muito
bem, eu sou uma mulher. Não me metem medo. Estou dizendo que vocês
não vão entrar nesta casa porque isso não me agrada. Caso se aproximem,
eu ladro. Já disse, o cab sou eu. Não dou a mínima para vocês. Tomem seu
rumo, estão me aborrecendo! Vão para onde quiserem, mas não aqui,
porque eu os proíbo! Vocês a navalhadas, eu a pontapés, pouco importa,
vamos, avancem!
Deu um passo em direção aos bandidos, estava assustadora, e pôs-se a
rir.
— Caramba! Não tenho medo. Neste verão vou passar fome, neste
inverno vou passar frio. São uma comédia, esses homens bestas achando
que metem medo em uma mulher como eu! Medo de quê? Vão esperando!
Só porque têm umas tontas de umas amantes que se escondem embaixo da
cama quando falam grosso, essa não! Eu, não tenho medo de nada!
Lançou sobre Thénardier um olhar penetrante, e disse:
— Nem mesmo do senhor, meu pai!
E depois prosseguiu, correndo sobre os bandidos suas terríveis pupilas
de espectro:
— Que me importa que amanhã me encontrem caída na rua Plumet,
morta a facadas por meu pai, ou então que me encontrem daqui a um ano
nas redes de Saint-Cloud,3 ou na ilha des Cygnes, no meio de velhas rolhas
podres e cachorros afogados?
Foi obrigada a interromper-se; uma tosse seca a atacou, sua respiração
saía de seu peito estreito e debilitado como um estertor. Continuou, porém:
— Basta gritar, e pronto, alguém aparece. Vocês são seis; eu sou todo o
mundo.
Thénardier fez um movimento em direção a ela.
— Não se aproxime! — ela gritou.
Ele parou e disse-lhe com mansidão:
— Está bem. Não vou me aproximar, mas não fale tão alto. Minha
filha, então você quer nos impedir de trabalhar? Mas temos que ganhar a
vida. Então você não é mais amiga de seu pai?
— Está me aborrecendo — respondeu Éponine.
— Mas a gente precisa viver, comer…
— Que se dane.
Ao dizer isso, sentou-se na parte inferior da grade cantarolando:

Mon bras si dodu,


Ma jambe bien faite,
Et le temps perdu.4

Meu braço tão roliço,


Minha perna bem feita,
E o tempo perdido.

Apoiava o cotovelo no joelho e o queixo nas mãos; balançava a perna


com ar de indiferença. Seu vestido rasgado deixava à mostra seus ombros
magros. Um lampião próximo iluminava seu perfil e sua atitude. Nada se
via de mais resoluto e de mais surpreendente.
Os seis bandidos, paralisados e preocupados por verem seus esforços
anulados por uma garota, foram para um local mais escuro e
confabularam, erguendo os ombros com humilhação e raiva.
Ela os observava com ar tranquilo e cruel.
— Ela tem alguma coisa — disse Babet. — Uma razão. Será que está
apaixonada pelo cab? É uma pena perder esse negócio. Duas mulheres, um
velho que mora no fundo do quintal; umas belas cortinas nas janelas. O
velho deve ser um guinal (judeu). Acho que é um bom trabalho.
— Então vocês entram — exclamou Montparnasse —, façam o
serviço. Eu fico aqui com a mocinha, e se ela vacilar…
E fez brilhar, à luz do lampião, a navalha que trazia aberta na manga.
Thénardier não dizia uma palavra, parecendo pronto àquilo que
decidissem.
Brujon, que era meio oráculo, e que tinha, como se sabe, “arranjado o
serviço”, ainda não falara. Parecia pensativo. Passava por alguém que não
recuava diante de nada, e era sabido que, por mera bravata, assaltara um
posto da guarda municipal. Além disso, fazia versos e canções, o que lhe
dava grande autoridade.
Babet o questionou.
— Você não diz nada, Brujon?
Brujon permaneceu mais um instante silencioso; depois, balançou a
cabeça de muitos e variados modos, e decidiu-se, enfim, a elevar a voz.
— É o seguinte: esta manhã encontrei dois pardais se batendo; esta
noite, esbarro com uma mulher que quer briga. Tudo isso é ruim. Vamos
embora.
Foram-se.
Ao retirar-se, Montparnasse murmurou:
— Não me importaria; se quisessem, eu teria dado o golpe final.
Babet respondeu:
— Eu não. Não ponho as mãos em mulher.
Chegando à esquina, pararam e trocaram em voz baixa este enigmático
diálogo:
— Onde vamos passar esta noite?
— Em Pantin (Paris).
— Está com você a chave da grade, Thénardier?
— Está.
Éponine, que não tirava os olhos deles, viu quando retomaram o
caminho por onde tinham vindo. Levantou-se e pôs-se a segui-los ao longo
dos muros e das casas. Seguiu-os desse modo até o bulevar. Ali, os
bandidos se separaram; ela viu os seis homens sumirem na escuridão, com
a qual pareciam ter se fundido.

V. COISAS DA NOITE
Depois que os bandidos se foram, a rua Plumet readquiriu seu
tranquilo aspecto noturno.
O que acabava de se passar naquela rua não teria, de modo algum,
causado admiração a uma floresta. Os bosques, as matas, as charnecas, os
galhos rudemente entrelaçados, o mato crescido, vivem de uma maneira
sombria; o formigamento selvagem entrevê ali súbitas aparições do
invisível; o que está abaixo do homem distingue ali, através da bruma, o
que está além do homem; e as coisas que nós, os vivos, ignoramos,
confrontam-se ali no meio da noite. A natureza eriçada e feroz se assusta
com certas aproximações nas quais julga sentir o sobrenatural. As forças
da escuridão se conhecem e têm entre elas misteriosos equilíbrios. Os
dentes e as garras temem o que não se pode agarrar. A bestialidade sedenta
de sangue, os vorazes apetites esfaimados em busca de presas, os instintos
armados de garras e de mandíbulas, que têm por fonte e finalidade o
ventre, espreitam e farejam, com inquietude, o impassível delineamento
espectral vagando sob uma mortalha, envolto em seu vago manto
arrepiante, e que lhes parece viver de uma vida morta e terrível. Essas
brutalidades, que não são mais que matéria, receiam confusamente ter de
se confrontar com a imensa obscuridade condensada em um ser
desconhecido. Uma figura negra, barrando a passagem, estanca de pronto a
besta feroz. Aquilo que sai do cemitério intimida e desconcerta o que sai
do antro; o feroz tem medo do sinistro; os lobos recuam ao encontro de
uma goule.5

VI. MARIUS VOLTA A SE TORNAR REAL A PONTO


DE DAR SEU ENDEREÇO A COSETTE
Enquanto aquela espécie de cadela com figura humana montava guarda
na grade, e os seis bandidos recuavam diante de uma mulher, Marius
estava ao lado de Cosette.
Nunca o céu estivera mais estrelado e mais encantador, nem as árvores
mais trêmulas, nem o perfume das plantas mais penetrante; nunca os
pássaros haviam adormecido na folhagem com rumor mais doce; nunca
todas as harmonias da serenidade universal haviam mais bem respondido
às melodias interiores do amor; Marius nunca estivera mais fascinado,
mais feliz, mais extasiado. Mas encontrara Cosette triste. Cosette havia
chorado. Tinha os olhos vermelhos.
Era a primeira nuvem naquele sonho admirável.
A primeira frase de Marius fora:
— O que você tem?
E ela respondera:
— Vou dizer.
Então sentou-se no banco próximo à escadaria e, enquanto ele se
colocava, estremecendo, ao lado dela, ela prosseguiu:
— Esta manhã, meu pai disse que eu deveria estar pronta, que tinha
alguns negócios, que talvez tenhamos de partir!
Marius estremeceu da cabeça aos pés.
Quando se está no fim da vida, morrer significa partir; quando se está
no princípio, partir significa morrer.
Havia seis semanas que Marius, pouco a pouco, lenta e gradualmente,
a cada dia, tomava posse de Cosette. Posse de todo ideal, mas profunda.
Como já explicamos, no primeiro amor toma-se a alma muito antes do
corpo; mais tarde, toma-se o corpo muito antes da alma; às vezes, não se
toma absolutamente a alma; os Faublas e os Prudhommes acrescentam:
porque não há alma. Mas, felizmente, esse sarcasmo é uma blasfêmia.
Marius, então, possuía Cosette, como os espíritos possuem; mas a
envolvia com toda a sua alma e apoderava-se dela ciosamente, com
incrível convicção. Possuía seu sorriso, seu hálito, seu perfume, o brilho
profundo de seus olhos azuis, a maciez de sua pele quando lhe tocava as
mãos, o gracioso sinal que tinha no pescoço, todos os seus pensamentos.
Haviam combinado de nunca dormir sem sonhar um com o outro, e
mantiveram sua palavra. Ele possuía, então, todos os sonhos de Cosette.
Contemplava sem parar, e algumas vezes roçava com sua respiração os
cabelinhos que ela tinha na nuca, declarando-se que não havia um só
desses fiozinhos que não pertencesse a ele, Marius. Contemplava e
adorava tudo o que ela usava, seu laço de fita, suas luvas, seus punhos,
suas botinhas, como objetos sagrados dos quais fosse o dono. Pensava que
era o senhor daqueles lindos pentes que ela usava nos cabelos, e chegava a
dizer-se, surdo e confuso balbuciar da voluptuosidade que começava a se
mostrar, que não havia um fio de seu vestido, uma malha de suas meias,
uma prega de seu corpete, que não fosse dele. Ao lado de Cosette, ele se
sentia perto de seu bem, perto do que era seu, perto de seu déspota e de seu
escravo. Parecia que tinham de tal forma confundido suas almas que, se
quisessem retomá-las, seria impossível que as reconhecessem.
— Esta é a minha. — Não, é a minha. — Tenho certeza de que está
enganado. Este sou eu.
— Quem você toma por você, sou eu.
Marius era algo que fazia parte de Cosette e Cosette era algo que fazia
parte de Marius. Marius sentia Cosette viver dentro dele. Ter Cosette,
possuir Cosette, para ele não era diferente de respirar. Foi em meio a essa
fé, a essa embriaguez, a essa posse virginal, extraordinária e absoluta, a
essa soberania, que as palavras: “Nós vamos partir”, caíram de repente em
seus ouvidos, e que a brusca voz da realidade gritou-lhe: Cosette não lhe
pertence!
Marius acordou. Havia seis semanas, Marius vivia, já dissemos, fora
da vida; esta palavra, partir!, fez com que retornasse duramente a ela.
Não encontrou uma só palavra para dizer. Cosette apenas sentiu que ele
tinha as mãos muito frias. Foi sua vez de lhe perguntar:
— O que você tem?
Ele respondeu tão baixo que Cosette mal o ouviu:
— Não compreendo o que você disse.
Ela retomou:
— Esta manhã meu pai disse para eu preparar todas as minhas coisas e
ficar pronta; que ia dar a roupa dele para eu colocar em uma mala; que ele
precisava fazer uma viagem; que íamos partir; que seriam necessárias uma
mala grande para mim e uma pequena para ele; disse para preparar tudo
isso em uma semana, e que talvez iremos para a Inglaterra.
— Mas isso é monstruoso! — exclamou Marius.
O certo é que, naquele momento, no espírito de Marius, nenhum abuso
de poder, nenhuma violência, nenhuma abominação dos mais abomináveis
tiranos, nenhuma ação de Busíris, de Tibério ou de Henrique VIII
igualava-se em ferocidade a esta: o senhor Fauchelevent levando sua filha
para a Inglaterra por causa de seus negócios.
Ele perguntou com a voz fraca:
— Quando você parte?
— Ele não disse quando.
Marius levantou-se e disse friamente:
— A senhorita irá?
Cosette fixou nele seus belos olhos azuis cheios de angústia, e
respondeu de um modo meio delirante:
— Para onde?
— Para a Inglaterra. A senhorita irá?
— Por que está me chamando de senhorita?
— Estou perguntando, a senhorita irá?
— Como quer que eu faça? — disse ela, juntando as mãos.
— Assim, irá?
— Se meu pai vai!
— Então irá?
Cosette pegou a mão de Marius e apertou-a sem responder.
— Está bem — disse Marius —, então irei para outro lugar.
Cosette sentiu ainda mais o significado dessa frase porque não a
compreendeu. Empalideceu tanto que seu rosto tornou-se branco na
obscuridade. Ela balbuciou:
— O que você quer dizer?
Marius fitou-a, depois ergueu lentamente os olhos para o céu e
respondeu:
— Nada!
Quando os abaixou, viu que Cosette lhe sorria. O sorriso da mulher
amada é um clarão que se vê na noite.
— Como somos tolos! Marius, tenho uma ideia.
— Qual?
— Parta também se nós partirmos! Eu lhe direi para onde. Vá me
encontrar onde eu estiver!
Agora Marius era um homem completamente acordado. Caíra
novamente na realidade. Gritou para Cosette:
— Partir com vocês? Está louca! É preciso ter dinheiro, e eu não
tenho! Ir para a Inglaterra? Já estou devendo, nem sei direito, mais de dez
luíses a Courfeyrac, um de meus amigos que você não conhece! E o que
tenho é um chapéu velho que não vale três francos, um casaco sem botões
na frente, uma camisa toda rasgada, rota nos cotovelos, botas furadas; há
seis semanas não penso mais nisso, e não contei a você. Cosette, eu sou
um miserável! Você só me vê à noite, e me dá seu amor; se me visse de
dia, me daria uma esmola! Ir para a Inglaterra! Não tenho nem com o que
pagar o passaporte!
Jogou-se sobre uma árvore próxima dali, os dois braços acima da
cabeça, a fronte contra o tronco, não sentindo nem a madeira que lhe
arranhava a pele, nem a febre que martelava suas têmporas, imóvel,
prestes a cair, como se fosse a estátua do desespero.
Assim permaneceu por muito tempo. Pode-se passar a eternidade
nesses abismos. Mas, enfim, voltou-se. Ouvia por trás dele um pequeno
ruído abafado, suave e triste.
Era Cosette que soluçava.
Ela chorava ao lado de Marius havia mais de duas horas, enquanto ele
divagava.
Então foi até ela, caiu de joelhos e, prostrando-se lentamente, segurou
a ponta de seu pé que passava pela barra do vestido e a beijou.
Silenciosa, ela não se opôs. Há momentos em que a mulher aceita,
como uma deusa triste e resignada, a religião do amor.
— Não chore — disse ele.
Ela murmurou:
— Como não, se talvez eu vá embora, e você não poderá ir!
Ele tornou:
— Você me ama?
Ela respondeu-lhe soluçando, com estas palavras do paraíso que são
ainda mais encantadoras através das lágrimas:
— Eu adoro você!
Ele prosseguiu com um tom de voz que era uma inexprimível carícia:
— Não chore! Olhe, faça isso por mim, não chore.
— Você me ama? — disse ela.
— Cosette, nunca dei minha palavra de honra a ninguém, porque
minha palavra de honra me dá medo. Eu sinto que meu pai está ao lado.
Pois bem, dou-lhe minha palavra de honra mais sagrada que, se você for
embora, eu morrerei.
No acento com o qual pronunciou essas palavras havia uma melancolia
tão solene e tão tranquila que Cosette estremeceu. Ela sentiu aquele
calafrio que causa a passagem de uma coisa sombria e real. Até parou de
chorar com tal emoção.
— Agora escute — disse ele —, não me espere amanhã.
— Por quê?
— Espere por mim apenas depois de amanhã.
— Mas por quê?
— Você vai ver.
— Um dia sem vê-lo! É impossível.
— Sacrifiquemos um dia para termos talvez a vida toda.
E Marius acrescentou a meia voz e a si mesmo:
— É um homem que em nada muda seus hábitos, e nunca recebeu
ninguém a não ser à noite.
— De que homem você fala? — perguntou Cosette.
— Eu? Eu não disse nada.
— Que esperança você tem, então?
— Aguarde até depois de amanhã.
— É isso que você quer?
— Sim, Cosette!
Ela segurou-lhe a cabeça entre as mãos, pondo-se na ponta dos pés
para chegar à sua altura, e procurando ver a esperança dentro de seus
olhos.
Marius continuou:
— Estou pensando, você deve saber meu endereço, se acontecer
alguma coisa, nunca se sabe; moro na casa deste amigo que se chama
Courfeyrac, na rua de la Verrerie, número 16.
Remexeu no bolso, tirou dali um canivete, e com a lâmina escreveu no
reboque do muro:
Rua de la Verrerie, número 16.
Entretanto, Cosette voltara a olhar em seus olhos.
— Diga em que está pensando. Marius, você tem alguma ideia. Oh!
Conte pra mim o que é, para que eu passe uma noite tranquila.
— O que estou pensando é isto: que é impossível que Deus queira nos
separar. Espere por mim depois de amanhã.
— E o que eu vou fazer até lá? — disse Cosette. — Você está lá fora,
pode ir e voltar. Como os homens são felizes! Mas eu, vou ficar sozinha.
Oh! Vou me sentir tão triste! O que você vai fazer, então, amanhã à noite,
diga?
— Vou tentar uma coisa.
— Então vou rezar a Deus e pensar em você o tempo todo para que
seja bem-sucedido. Não vou mais questioná-lo, já que você não quer. Você
é meu senhor! Passarei a noite de amanhã cantando aquela música de
Eurianto, da qual você tanto gosta, aquela que certa noite você veio ouvir
atrás da minha janela. Mas depois de amanhã venha bem cedo. Estarei
esperando à noite, às nove horas em ponto. Meu Deus! Que tristeza os dias
serem tão longos! Ouça, quando soarem nove horas eu estarei no jardim.
— E eu também.
E sem nada dizerem um ao outro, movidos pelo mesmo pensamento,
arrastados por essas correntes elétricas que colocam dois amantes em
comunicação contínua, inebriados de voluptuosidade até mesmo em meio
à sua dor, caíram nos braços um do outro, sem perceberem que seus lábios
haviam-se juntado enquanto seus olhares elevados, transbordando de
lágrimas, contemplavam as estrelas.
Quando Marius saiu, a rua estava deserta. Era o momento em que
Éponine seguia os bandidos pelo bulevar.
Enquanto Marius sonhava, tendo a cabeça apoiada à árvore, uma ideia
atravessara-lhe a mente; uma ideia — ai! — que ele mesmo julgava
insensata e impossível. Tomara uma decisão violenta.

VII. UM VELHO CORAÇÃO EM PRESENÇA DE UM


JOVEM CORAÇÃO
Pai Gillenormand tinha nessa época seus bons noventa e um anos.
Continuava morando com a senhorita Gillenormand na rua Filles-du–
Calvaire, número 6, na velha casa que pertencia a ele. Era, como se
lembram, um desses velhos antiquados que esperam a morte
empertigados, sem que o peso da idade os consiga dobrar, e nem mesmo as
mágoas os possam curvar.
No entanto, havia algum tempo, sua filha dizia: meu pai anda meio
acabado. Não batia mais nas criadas; nem batia mais, com tanta verve, sua
bengala no patamar da escada quando Basque demorava para abrir-lhe a
porta. A Revolução de Julho o havia exasperado apenas durante seis
meses. Tinha visto até com tranquilidade no Moniteuru este conjunto de
palavras: senhor Humblot-Conté, par de França. O fato é que o velho
homem estava cheio de desânimo. Não se dobrava, não se rendia, não era
de sua natureza física nem tampouco de sua natureza moral; mas ele
sentia-se enfraquecer interiormente. Havia quatro anos esperava Marius,
de pé firme, esse é o termo exato, com a convicção de que o patifezinho,
um dia ou outro, bateria à sua porta. Agora, em certas horas tristes,
chegava a dizer-se que, por pouco que Marius se demorasse… Não era a
morte que lhe era insuportável, mas a ideia de que talvez não tornasse a
ver Marius. Não tornar a ver Marius; até então, isso não havia entrado
sequer um instante em seu cérebro, mas agora esse pensamento começava
a ocorre-lhe, e o gelava. A ausência, como sempre acontece com os
sentimentos naturais e verdadeiros, só tinha feito aumentar seu amor de
avô pelo ingrato neto que fora embora daquela forma. É nas noites de
dezembro, com um frio de dez graus, que mais se pensa no sol. O senhor
Gillenormand era, ou acreditava ser, acima de tudo, incapaz de dar um
passo, sendo o avô, em direção a seu neto; “Antes morrer!”, dizia ele. Não
se atribuía nenhum erro, mas só pensava em Marius com um profundo
enternecimento e o mudo desespero de um velho homem que está indo
para as trevas.
Começava a perder seus dentes, o que aumentava sua tristeza.
O senhor Gillenormand, sem, no entanto, confessar a si mesmo, senão
ficaria furioso e envergonhado com isso, jamais amara uma mulher como
amava Marius.
Mandara colocar em seu quarto, diante da cabeceira de sua cama,
como se fosse a primeira coisa que desejasse ver ao despertar, um antigo
retrato de sua outra filha, aquela que morrera, a senhora Pontmercy, retrato
tirado quando ela contava dezoito anos. Olhava sem cessar para ele. Certo
dia, ao contemplá-lo, disse:
— Acho que ele se parece com ela.
— Com minha irmã? — perguntou a senhorita Gillenormand. — Sem
dúvida.
— E com ele também — acrescentara o velho.
Uma vez, estando sentado, com os joelhos unidos e os olhos quase
fechados, em uma postura de abatimento, sua filha arriscou-se a dizer-lhe:
— Pai, o senhor continua muito zangado com ele?…
E calou-se, sem ousar ir mais adiante.
— Com quem? — perguntou ele.
— Com o pobre Marius.
Ele endireitou a velha fronte, colocou o punho magro e enrugado sobre
a mesa, e exclamou com seu acento mais vibrante e mais irritado:
— Você disse pobre Marius! Esse senhor é um patife, um miserável,
vaidoso e ingrato, sem coração, sem alma, um orgulhoso, um homem
ruim!
E virou o rosto para que sua filha não visse uma lágrima que tinha nos
olhos.
Três dias depois, quebrava um silêncio que durava quatro horas para
dizer à sua filha, à queima-roupa:
— Tenho a honra de rogar à senhorita Gillenormand que nunca mais
me fale a esse respeito.
Tia Gillenormand renunciou a qualquer tentativa e fez este profundo
diagnóstico:
— Depois que minha irmã fez aquela asneira, meu pai nunca mais
gostou dela da mesma forma. Está claro que ele detesta Marius.
“Depois que fez aquela asneira” significava: depois que ela tinha se
casado com o coronel.
De resto, como já pudemos conjecturar, a senhorita Gillenormand
fracassara em sua tentativa de colocar seu favorito, o oficial dos lanceiros,
no lugar de Marius. O substituto Théodule não fora bem-sucedido. O
senhor Gillenormand não aceitara o quiproquó. O vazio do coração não se
resolve com um tapa-buraco. Por sua parte, Théodule, ao mesmo tempo
que farejava a herança, detestava o penoso dever de agradar. O velho
aborrecia o lanceiro, e o lanceiro chocava o velho. O tenente Théodule era
alegre, sem dúvida, mas muito falador; frívolo, mas vulgar; bon vivant,
mas andava em má companhia; tinha amantes, é verdade, e falava muito
delas, também é verdade, mas falava mal. Todas as suas qualidades tinham
algum defeito. O senhor Gillenormand já estava farto de ouvi-lo contar
sobre algumas conquistas que fizera nos arredores do quartel, na rua
Babylone. Além disso, o tenente vinha algumas vezes de farda e com a
insígnia tricolor. Isso o tornava simplesmente impossível. Pai
Gillenormand acabara por dizer a sua filha:
— Estou farto do Théodule. Essa gente de guerra me faz pouco gosto
em tempos de paz. Receba-o, se você quiser. Não sei se gosto menos dos
espadachins ou dos que carregam uma espada por aí. O tilintar das lâminas
em uma batalha é menos miserável, no fim das contas, do que o barulho
das bainhas se arrastando no chão. Além disso, se curvar como valentão e
se apertar como uma mulherzinha, usando um espartilho por baixo de uma
couraça, é ser ridículo duas vezes. Quando se é um homem de verdade, é
preciso se manter a igual distância da fanfarronice e da afetação. Nem
ferrabrás, nem coração mole. Fique com seu Théodule para você.
Por mais que sua filha lhe dissesse: “Mas é seu sobrinho-neto”,
acontece que o senhor Gillenormand, que era avô até o último fio de
cabelo, não era de forma alguma tio-avô.
No fundo, como era espirituoso e fazia comparações, Théodule não
servira senão para que lamentasse ainda mais a ausência de Marius.
Uma noite, era 4 de junho, o que não impedia o pai Gillenormand de
ter um belo fogo em sua lareira, ele pedira a sua filha, que costurava, que
se retirasse para o cômodo vizinho. Estava só em seu quarto, os pés
apoiados nas travessas da chaminé, meio escondido por seu vasto biombo
de nove folhas de Coromandel, sentado à sua mesa, sobre a qual ardiam
duas velas sob um quebra-luz verde, afundado em sua poltrona e com um
livro, que ele não lia, na mão. Estava vestido, seguindo a moda, como
incroyable, e se assemelhava a um antigo retrato de Garat. Isso faria com
que o seguissem pelas ruas, mas sua filha sempre o cobria, quando ele
saía, com uma ampla capa de bispo, que escondia seus trajes. Em casa,
exceto na hora de dormir e de se levantar, jamais usava roupão.
— Isso dá aparência de velho — dizia ele.
O senhor Gillenormand pensava em Marius amorosa e amargamente,
e, como de costume, o amargor predominava. Sua ácida ternura acabava
sempre por ferver e converter-se em indignação. Estava naquele ponto em
que se procura tomar uma decisão e se aceita o que dilacera. Explicava-se
que agora não havia mais razão para que Marius voltasse; que, se ele
tivesse de voltar, já o teria feito; que era preciso renunciar a isso. Tentava
habituar-se à ideia de que tudo estava acabado, e que morreria sem tornar
a ver “aquele senhor”. Mas toda a sua natureza se revoltava; seu velho
instinto paternal não permitia que fosse assim. “Ora! Ele não voltará!”,
dizia; e esse era seu doloroso estribilho. Sua cabeça envelhecida tombara
sobre o peito, e ele fixava vagamente nas cinzas de sua lareira um olhar
lastimoso e irritado.
No mais profundo dessa divagação, seu velho criado, Basque, entrou e
perguntou:
— O senhor pode receber o senhor Marius?
O velho endireitou-se na cadeira, lívido e semelhante a um cadáver que
se levantasse por causa de um abalo galvânico. Todo o seu sangue refluíra
para o coração. Ele gaguejou:
— Senhor Marius o quê?
— Não sei — respondeu Basque intimidado e embaraçado pelo jeito
do patrão —, não o vi; foi Nicolette quem acabou de me dizer: “Tem um
rapaz aqui, diga que é o senhor Marius”.
Pai Gillenormand balbuciou em voz baixa:
— Mande entrar.
E permaneceu na mesma atitude, a cabeça vacilante, olhos fixos na
porta. Ela voltou a se abrir. Um jovem entrou. Era Marius.
Marius parou à porta, como se esperasse que lhe dissessem para entrar.
Suas roupas quase miseráveis passavam despercebidas naquela
luminosidade obscura. Apenas era possível distinguir seu rosto calmo e
sério, mas estranhamente triste.
Pai Gillenormand, paralisado pelo pasmo e pela alegria, ficou alguns
instantes sem enxergar outra coisa a não ser um clarão, como se estivesse
diante de uma aparição. Estava prestes a desmaiar; via Marius através de
um deslumbramento. Era ele mesmo, era mesmo Marius! Finalmente!
Depois de quatro anos! Envolveu-o, pode-se dizer, por inteiro, num só
olhar. Achou-o belo, nobre, distinto, crescido, homem feito, a atitude
conveniente, a aparência encantadora. Teve vontade de abrir-lhe os braços,
de chamá-lo, de precipitar-se; suas entranhas se fundiam de
contentamento, as palavras afetuosas enchiam e transbordavam de seu
peito; enfim, toda essa ternura abriu caminho e chegou a seus lábios, e,
pelo contraste que vivia no fundo de sua natureza, deles saíram uma
indelicadeza. Disse asperamente:
— O que o senhor veio fazer aqui?
Marius respondeu com embaraço:
— Senhor…
O senhor Gillenormand queria que Marius se jogasse em seus braços.
Ficou descontente com o neto e consigo mesmo. Sentiu que tinha sido rude
e que Marius estava frio. Para o velho homem, era uma insuportável e
irritante ansiedade sentir-se tão terno e tão comovido intimamente e só
conseguir externar sua dureza. O amargor apoderou-se novamente dele.
Interrompeu Marius em tom ríspido:
— Então, por que veio aqui?
Este “então” significava: se não veio para me abraçar. Marius olhou
para seu avô, a quem a palidez dava um semblante de mármore.
— Senhor…
O velho tornou com a voz severa:
— Vinha pedir-me perdão? Reconheceu seus erros?
Pensava indicar a Marius o que gostaria que ele fizesse, e que assim o
“menino” se dobraria. Marius estremeceu; o que lhe pediam era que
renegasse seu pai. Baixou os olhos e respondeu:
— Não, senhor.
— Mas então — exclamou impetuosamente o velho, com uma dor
pungente e repleta de cólera — o que o senhor quer?
Marius juntou as mãos, deu um passo e disse com voz fraca e trêmula:
— Senhor, tenha pena de mim.
Essas palavras mexeram com pai Gillenormand; ditas havia mais
tempo, teriam conseguido enternecê-lo, mas vinham tarde demais. O avô
se levantou; apoiava-se com as duas mãos à bengala, seus lábios estavam
brancos, sua fronte vacilava, mas sua elevada estatura dominava Marius.
—Ter pena do senhor! É o adolescente que pede piedade a um velho de
noventa e um anos? Está entrando na vida, eu saindo dela; vai aos
espetáculos, aos bailes, aos cafés, aos bilhares; é inteligente, agrada as
mulheres, é um belo rapaz; a mim, em pleno verão, o que resta é ficar
diante da lareira; o senhor é rico das riquezas que contam, eu tenho todas
as pobrezas da velhice, as doenças, o isolamento! O senhor tem seus trinta
e dois dentes, um bom estômago, olhos vivos, força, apetite, saúde,
alegria, uma floresta de cabelos pretos, e eu, nem cabelos brancos tenho
mais, perdi meus dentes, estou perdendo minhas pernas, minha memória;
há três nomes de rua que confundo sem cessar, rua Charlot, rua Chaume e
rua Saint-Claude, cheguei a esse ponto; o senhor tem diante de si um
futuro cheio de sol, e eu começo a não enxergar uma gota de futuro, de
tanto que avanço na escuridão; o senhor está apaixonado, nem é preciso
dizer, eu não sou amado por ninguém no mundo; e vem pedir-me
compaixão? Ora! Molière esqueceu-se disso. Se é assim que costumam
gracejar no tribunal, senhores advogados, dou-lhes meus sinceros
parabéns. Vocês são mesmo engraçados.
E o velho continuou em tom enfurecido e grave:
— Mas então, o que é mesmo que quer?
— Senhor — disse Marius —, sei que minha presença o desagrada,
mas venho pedir-lhe apenas uma coisa, depois irei embora imediatamente.
— Mas como é tolo! — disse o velho. — Quem lhe falou para ir
embora?
Essa era a tradução das ternas palavras que tinha no fundo do coração:
Mas, então, é só pedir-me perdão! Vamos, dê-me um abraço!
O senhor Gillenormand sentia que Marius iria embora em alguns
instantes, que sua péssima acolhida o repelia, que sua dureza o afastava,
pensava em tudo isso, e com isso sua dor aumentava, mas, como sua dor se
transformava imediatamente em ira, sua dureza também crescia. Queria
que Marius compreendesse, mas Marius não compreendia, o que fazia o
velho homem ficar furioso.
E continuou:
— Como! O senhor faltou para comigo, seu avô, saiu de minha casa
para ir sabe-se lá onde, encheu sua tia de desgosto, foi levar, é fácil
adivinhar, pois é mais cômodo, uma boa vida, se fazendo de elegante,
voltando à hora que bem entendesse, divertindo-se; não me deu um sinal
de vida, fez dívidas sem ao menos me pedir que as pagasse; tornou-se
vociferante e turbulento, e, depois de quatro anos, vem a minha casa, e não
tem outra coisa a me dizer além disso!
Esse modo violento de empurrar o neto em direção à ternura só fez
produzir o silêncio de Marius. O senhor Gillenormand cruzou os braços,
gesto que nele era particularmente imperioso, e interpelou Marius
amargamente:
— Vamos acabar com isso. Veio pedir-me alguma coisa, não foi o que
disse? Pois bem, o quê? Diga.
— Senhor — disse Marius com o olhar de um homem que se sente a
ponto de cair em um precipício —, venho pedir-lhe permissão para me
casar.
O senhor Gillenormand tocou a campainha. Basque entreabriu a porta.
— Chame minha filha.
Um segundo depois, a porta tornou a abrir-se; a senhorita
Gillenormand não entrou, mas mostrou-se. Marius estava de pé, mudo, os
braços pendentes, com aspecto de criminoso; o senhor Gillenormand ia de
um lado para o outro dentro do quarto. Voltou-se para sua filha e lhe disse:
— Não é nada. É o senhor Marius. Diga-lhe bom-dia. Ele quer se casar.
É isso. Pode ir.
A entonação breve e rouca do velho homem anunciava uma estranha
plenitude de exaltação. A tia olhou para Marius com ar assustado, mal
pareceu reconhecê-lo, não deixou escapar nem um gesto nem uma sílaba, e
desapareceu ao sopro de seu pai, mais depressa que uma palha diante de
um furacão.
Enquanto isso, pai Gillenormand voltara a encostar-se à lareira.
— Casar! Aos vinte e um anos! O que foi arranjar! Não tem mais nada
a pedir além de uma permissão! Uma formalidade. Sente-se, senhor. Pois
bem, houve uma revolução desde que eu não tenho mais a honra de vê-lo.
Os jacobinos levaram a melhor. O senhor deve estar contente. Ou não é
mais republicano desde que se tornou barão? Isso acomoda as coisas; a
república serve de molho ao baronato. Tem a condecoração de Julho?
Participou um pouco da tomada do Louvre, senhor? Bem perto daqui, na
rua Saint-Antoine, defronte à rua des Nonaindières, há uma bala incrustada
no muro do terceiro andar de uma casa, com esta inscrição: 28 de julho de
1830. Vá ver. Isso causa boa impressão. Ah! Fazem coisas lindas, os seus
amigos! A propósito, não estariam colocando um chafariz no lugar do
monumento ao senhor duque de Berry? Então quer se casar? Com quem?
Pode-se, sem querer ser indiscreto, perguntar com quem?
Parou, mas antes que Marius tivesse tempo de responder, acrescentou
violentamente:
— Ah! E tem uma boa situação? Uma fortuna guardada? Quanto ganha
em sua profissão de advogado?
— Nada — respondeu Marius com uma espécie de firmeza e de
resolução quase feroz.
— Nada? Para viver não tem, então, nada além das mil e duzentas
libras que lhe remeto?
Marius não respondeu. O senhor Gillenormand continuou:
— Ah! Entendo, é porque a moça é rica?
— Como eu.
— O quê? Não tem dote?
— Não.
— Nenhuma esperança?
— Creio que não.
— Completamente sem nada! E quem é o pai?
— Não sei.
— E como ela se chama?
— Senhorita Fauchelevent.
— Fauche o quê?
— Fauchelevent.
— Ich! — fez o velho.
— Senhor! — exclamou Marius.
O senhor Gillenormand o interrompeu com um tom de quem fala a si
mesmo.
— É assim, vinte e um anos, sem uma situação, mil e duzentas libras
por ano, a senhora baronesa Pontmercy indo à quitanda comprar dois
soldos de salsinha.
— Senhor — tornou Marius na exaltação da última esperança que se
desvanece —, eu lhe suplico! Eu lhe rogo, em nome do céu, de mãos
postas, senhor, ajoelho-me a seus pés, permita-me esposá-la.
O velho soltou uma estridente e lúgubre gargalhada em meio à qual
tossia e falava.
— Ah! Ah! Ah! Deve ter dito com seus botões: “Ora! Vou encontrar
aquele velho antiquado, aquele incrível palerma! Que pena eu ainda não
ter meus vinte e cinco anos! Bem que eu lhe daria uma intimação
respeitosa! E passaria muito bem sem ele! Mas tanto faz, lhe direi: ‘Seu
velho cretino, você está feliz demais por me ver; quero casar com a
senhorita qualquer uma, filha do senhor qualquer um, não tenho sapato, ela
não tem vestido, tudo bem; tenho vontade de jogar fora minha carreira,
meu futuro, minha juventude, minha vida; quero dar um mergulho na
miséria com uma mulher presa ao meu pescoço, essa é minha ideia, é
preciso que você consinta!’ E o velho fóssil consentirá”. Ande, meu filho,
como quiser, amarre sua pedra ao pescoço, case-se com sua Pousselevent,
sua Coupelevent… Jamais, meu senhor! Jamais!
— Meu pai!
— Jamais!
Ouvindo o tom com que esse “jamais” foi pronunciado, Marius perdeu
todas as esperanças. Atravessou o quarto a passos lentos, de cabeça baixa,
cambaleando, mais parecendo alguém que vai morrer do que alguém que
vai partir. O senhor Gillenormand o seguia com os olhos, e, no momento
em que a porta se abria e que Marius saía, deu quatro passos com a
vivacidade senil dos velhos impetuosos e mimados, agarrou Marius pela
gola, levou-o energicamente de volta ao quarto, jogou-o em uma poltrona
e disse-lhe:
— Conte-me essa história!
Era apenas por causa daquelas palavras meu pai, que Marius deixara
escapar, que se fizera essa revolução.
Marius olhou-o admirado. O semblante mudado do senhor
Gillenormand não exprimia nada mais que uma rude mas inefável
bonomia. O vovô tomara o lugar do avô.
— Vamos, ande, fale, conte-me seus namoricos, trate de tagarelar e
dizer-me tudo! Caramba! Como esses jovens são tolos!
— Meu pai — retomou Marius.
Todo o rosto do velho homem iluminou-se com um brilho
inexprimível.
— Sim, isso mesmo! Chame-me de pai que você vai ver!
Agora havia algo de tão bondoso, de tão terno, de tão aberto, de tão
paternal naquela grosseria, que Marius, nessa passagem súbita do
desalento à esperança, ficou como que aturdido e inebriado. Estava
sentado perto da mesa, a luminosidade das velas salientava o mau estado
de seu terno, que pai Gillenormand considerava com espanto.
— Pois então, meu pai — disse Marius.
— Ora essa — interrompeu o senhor Gillenormand —, realmente você
não tem um tostão? Está vestido como um ladrão.
Remexeu em uma gaveta e tirou dali uma bolsa que colocou sobre a
mesa:
— Tome, aqui tem cem luíses; compre um chapéu.
— Meu pai — continuou Marius —, meu bom pai, se o senhor
soubesse como eu a amo! O senhor não imagina, a primeira vez que a vi
foi no Luxemburgo, onde ela costumava passear; no começo, não prestava
muita atenção a ela, mas depois, nem sei como aconteceu, fiquei
apaixonado. Oh! Como me tornei infeliz! Agora voltei a vê-la, todos os
dias, na casa dela, mas o pai não sabe; imagine que vão partir; é no jardim
que nos encontramos, à noite, mas seu pai quer levá-la para a Inglaterra; aí
então pensei: vou ver meu avô e vou contar-lhe tudo. Eu ficaria louco,
morreria, adoeceria, acabaria jogando-me na água. Preciso casar-me com
ela de qualquer jeito, senão enlouqueço. Enfim, é essa a verdade, creio que
não me esqueci de nada. Ela mora em uma casa que tem um jardim com
uma grade, na rua Plumet, nas proximidades de Invalides.
Pai Gillenormand sentara-se radiante junto de Marius. Enquanto o
escutava e saboreava o som de sua voz, também saboreava uma boa pitada
de rapé. Às palavras rua Plumet, interrompeu sua aspiração e deixou cair o
resto do rapé sobre os joelhos.
— Rua Plumet! Você disse rua Plumet? Vamos ver… Não tem um
quartel por ali? É, é isso. Seu primo Théodule falou-me dessa rua; o oficial
lanceiro. Uma garota, meu bom menino, uma garota! Ora essa, rua Plumet,
que antigamente era chamada de rua Blomet. Agora me lembro. Já ouvi
falar dessa moça da grade da rua Plumet. Em um jardim. Uma Pamela.
Você não tem mau gosto, não. Dizem que é arrumadinha. Cá entre nós,
acho que aquele lanceiro boboca andou lhe fazendo a corte. Mas não sei
até onde chegou. Enfim, isso não é nada. Além do mais, não se deve dar-
lhe crédito. Adora se gabar. Marius! Acho muito bom que um jovem como
você esteja apaixonado. É normal na sua idade. Prefiro vê-lo apaixonado a
jacobino. Gosto mais que esteja animado por um rabo de saia, ora, por
vinte rabos de saia do que pelo senhor Robespierre. De minha parte,
declaro que, em matéria de sans-culotte, nunca gostei senão das mulheres.
Mulher bonita é mulher bonita, qua diabo! Nenhuma objeção. Quanto à tal
pequena, ela recebe você às escondidas de papai. Isso é de regra. Também
tive umas histórias como essa. Mais de uma. Sabe o que a gente faz? Não
se toma o caso com ferocidade; nada de se precipitar no trágico; não se
conclui pelo casamento diante do prefeito com faixa e tudo. Deve-se,
simplesmente, agir com presença de espírito, bom senso. Deslizem,
mortais, não se casem. Vamos encontrar o avô, que no fundo é boa pessoa,
e sempre tem alguns luíses dentro de uma velha gaveta, e lhe dizemos:
“Meu avô, é isto que acontece”. E o avô responde: “É muito simples. A
juventude tem de passar e a velhice chegar. Já fui jovem, e um dia você
será velho. Vá, meu filho, você também fará isso por seu neto. Aqui estão
duzentas pratas. Divirta-se, nada melhor!” É assim que as coisas devem
acontecer. Casar não, mas isso não é problema. Me entende?
Marius, petrificado e sem condições de articular uma só palavra,
acenou com a cabeça que não.
O velho desatou a rir, piscando-lhe, deu-lhe um tapinha no joelho,
olhou-o nos olhos com ar misterioso mas radiante, e levantando
ternamente os ombros disse-lhe:
— Seu tolo! Faça dela sua amante.
Marius empalideceu. Não tinha entendido nada do que seu avô acabava
de dizer. Toda aquela história de rua Blomet, de Pamela, de quartel, de
lanceiro, passara diante de Marius como uma fantasmagoria. Nada daquilo
podia referir-se a Cosette, que era um lírio. O velho divagava. Mas essa
divagação terminara em uma frase que Marius havia compreendido e que
era uma injúria mortal a Cosette. A frase faça dela sua amante penetrou
como uma espada no coração do severo jovem.
Levantou-se, pegou o chapéu que estava no chão e caminhou até a
porta com passo firme e seguro. Ali, voltou-se, inclinou-se profundamente
diante do avô, ergueu novamente a cabeça e disse:
— Há cinco anos, o senhor ultrajou meu pai; hoje o senhor ultraja
minha mulher. Não lhe peço mais nada, senhor. Adeus!
Pai Gillenormand, estupefato, abriu a boca, estendeu os braços, tentou
levantar-se, mas, antes que conseguisse pronunciar uma palavra, a porta já
se havia fechado e Marius já havia desaparecido.
O velho permaneceu alguns instantes imóvel e como que fulminado,
sem poder falar nem respirar, como se um punho fechado lhe apertasse a
garganta. Enfim, despregou-se de sua poltrona, correu para a porta, tanto
quanto se pode correr aos noventa e um anos, abriu-a e gritou:
— Acudam! Acudam!
Sua filha apareceu, em seguida os criados. Ele continuou, ofegando de
forma lamentável:
— Corram atrás dele, alcancem-no! O que eu fiz a ele? Está louco! Foi
embora! Ai, meu Deus! Ai, meu Deus! Dessa vez ele não volta mais!
Foi até a janela que dava para a rua, abriu-a com suas velhas mãos
trêmulas, debruçando mais de meio corpo, enquanto Basque e Nicolette
tentavam retê-lo, e gritou:
— Marius! Marius! Marius!
Mas Marius já não podia ouvir, e naquele mesmo momento dobrava a
esquina da rua Saint-Louis.
O velho, com expressão de angústia, levou por duas ou três vezes as
duas mãos às têmporas, recuou cambaleando e deixou-se cair sobre uma
poltrona, sem pulso, sem voz, sem lágrimas, balançando a cabeça e
agitando os lábios com ar estúpido; não tinha mais nada nos olhos e no
coração senão algo de triste e profundo que se assemelhava à escuridão.

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1 Espécie de cabriolé inglês introduzido na França por volta de 1852; mas a palavra é aqui
usada como gíria, significando “cão”.
2 Trata-se de utilizar massa de vidraceiro apoiada à vidraça, de forma que ela retenha os
pedaços de vidro e impeça o barulho. (N. A.)
3 Em Saint-Cloud, uma rede era atravessada no Sena para reter cadáveres.
4 O primeiro verso desta cantiga de Béranger (Ma grand’mère) é: “Quanto eu lamento…”
5 Criatura monstruosa das lendas orientais — arábe e persa — que aparece nos contos de As
mil e uma noites.
LIVRO IX
PARA ONDE VÃO ELES?

I. JEAN VALJEAN
NESTE MESMO dia, por volta das quatro horas da tarde, Jean Valjean
estava sentado sozinho sobre o reverso de um dos taludes mais solitários
do Champ-de-Mars. Fosse por prudência, ou pelo desejo de se isolar, ou
simplesmente em consequência de uma dessas mudanças de hábito que
pouco a pouco se introduzem em todas as existências, ele agora saía com
Cosette muito raramente. Usava sua jaqueta de operário e uma calça de
tecido pardo, e seu boné de pala comprida escondia-lhe o rosto. Estava,
presentemente, calmo e feliz em relação a Cosette; aquilo que por algum
tempo o assustara e perturbara havia se dissipado; mas, havia uma ou duas
semanas, ansiedades de outra natureza o perturbavam. Um dia, passeando
pelo bulevar, avistara Thénardier; graças a seu disfarce, Thénardier não o
reconhecera; mas, daí em diante, Jean Valjean tornou a vê-lo várias vezes,
e agora tinha certeza de que Thénardier vagava pelos arredores. Isso foi
suficiente para fazê-lo tomar uma importante resolução. Thénardier por ali
era igual a todos os perigos reunidos. Além disso, Paris não era um lugar
tranquilo; as agitações políticas traziam um inconveniente para quem quer
que tivesse algo a esconder em sua vida: a polícia tomara-se muito
inquieta e muito desconfiada, e, procurando um homem como Pepin ou
Morey,1 podia muito bem descobrir um homem como Jean Valjean. Jean
Valjean decidira sair de Paris, e até mesmo da França, e ir para a
Inglaterra. Prevenira Cosette. Antes de oito dias gostaria de já ter partido.
Sentara-se na rampa do Champ-de-Mars deixando passar em sua mente
todo tipo de pensamentos, Thénardier, a polícia, a viagem e a dificuldade
de conseguir um passaporte.
Estava preocupado com todos esses aspectos.
Enfim, um fato inexplicável que acabava de chamar sua atenção, e com
o qual ainda estava todo impressionado, viera juntar-se a suas
preocupações. Na manhã desse mesmo dia, sendo o único na casa que já se
levantara, e passeando no jardim antes que as janelas de Cosette se
abrissem, de repente avistou esta frase no muro, provavelmente gravada
com algum prego:
Rua de la Verrerie, número 16.
Isso era bem recente, os traços eram brancos sobre a velha argamassa
escura, e um tufo de urtiga ao pé do muro estava coberto com uma poeira
de cal. Provavelmente, aquilo tinha sido escrito naquela noite. O que era?
Um endereço? Um sinal para alguém? Um aviso para ele? Em todo caso,
era evidente que o jardim fora violado, e que desconhecidos ali entravam.
Lembrou-se dos estranhos incidentes que já haviam alarmado a casa. Sua
mente trabalhava sobre aquelas palavras. Guardou-se de contar a Cosette
sobre a linha escrita sobre o muro com medo de assustá-la.
Em meio a essas preocupações, deu-se conta, por uma sombra que o
sol projetava, de que alguém acabava de parar no topo do talude
imediatamente atrás dele. Ia voltar-se quando um papel dobrado em quatro
caiu sobre seus joelhos, como se uma mão o tivesse soltado acima de sua
cabeça. Pegou o papel, desdobrou-o, e leu estas palavras escritas a lápis
em grandes letras:

MUDE-SE.

Jean Valjean ergueu-se com presteza, mas não havia mais ninguém no
talude; procurou à sua volta e avistou uma espécie de criatura, maior que
uma criança e menor do que um homem, vestida com uma blusa cinza e
uma calça de veludo cor de poeira, saltando o parapeito e escorregando no
fosso do Champ-de-Mars.
Jean Valjean, ainda mais pensativo, voltou imediatamente para casa.
II. MARIUS
Marius partira desconsolado da casa do senhor Gillenormand. Entrara
ali com uma pequena esperança; saía com um imenso desespero.
De resto, e os que têm observado as origens do coração humano
compreenderão, o lanceiro, o oficial, o palerma do primo Théodule não
deixara nenhuma sombra em seu espírito. A menor sombra. O poeta
dramático aparentemente poderia esperar algumas complicações por causa
dessa revelação feita à queima-roupa pelo avô ao neto. Mas, o que o drama
ganharia com isso, a verdade perderia. Marius achava-se na idade em que,
em se tratando do mal, em nada se acredita; só mais tarde vem a idade em
que se acredita em tudo. As suspeitas não são mais que rugas. A primeira
juventude não as tem. O que abala Otelo nem é percebido por Cândido.
Suspeitar de Cosette! Há uma infinidade de crimes que Marius teria
cometido com mais facilidade.
Pôs-se a caminhar pelas ruas, recurso dos que sofrem. Não pensou em
nada de que pudesse se recordar. Voltou para a casa de Courfeyrac às duas
horas da manhã e jogou-se vestido sobre o colchão. Era dia claro quando
adormeceu, com esse terrível sono pesado que faz as ideias irem e virem
dentro do cérebro. Quando acordou, viu, dentro do quarto, de chapéu na
cabeça, prontos para sair e muito agitados, Courfeyrac, Enjolras, Feuilly e
Combeferre.
Courfeyrac lhe disse:
— Você vai ao enterro do general Lamarque? Parecia-lhe que o amigo
falava chinês.
Ele saiu algum tempo depois dos rapazes. Colocou no bolso as pistolas
que Javert lhe confiara por ocasião da aventura de 3 de fevereiro, e que
ainda permaneciam em suas mãos. Essas pistolas ainda estavam
carregadas. Seria difícil dizer que sombrios pensamentos tinha em mente
ao levá-las consigo.
Durante o dia inteiro vagou sem saber bem por onde; por vezes chovia,
mas ele nem se dava conta; para jantar, comprou um pequeno pão de um
soldo que colocou no bolso e esqueceu. Parecia ter tomado um banho no
Sena, mas sem ter consciência disso. Há momentos em que se tem uma
verdadeira fornalha no cérebro. Marius estava em um desses momentos.
Não esperava mais nada, não temia mais nada. Dera esse passo desde a
véspera. Esperava a noite com uma impaciência febril, tinha uma única
ideia clara, ver Cosette às nove horas. Essa derradeira felicidade era agora
todo o seu futuro; depois, a escuridão. Às vezes, ao caminhar pelas ruas
mais desertas, parecia ouvir estranhos ruídos em Paris. Tirava um pouco a
cabeça de suas divagações e dizia: “Será que estão combatendo?”
Ao cair da noite, precisamente às nove horas, como prometera a
Cosette, achava-se na rua Plumet. Ao aproximar-se da grade, esqueceu-se
de tudo. Havia quarenta e oito horas não via Cosette, e agora ia vê-la,
todos os outros pensamentos dissiparam-se, e ele sentiu apenas uma
alegria extraordinária e profunda. Esses minutos, durante os quais vivem-
se séculos, sempre têm de soberano e de admirável que enquanto passam,
preenchem completamente o coração.
Marius deslocou o varão da grade e entrou no jardim. Cosette não
estava no local onde normalmente o esperava. Ele atravessou em meio às
árvores e foi até o vão próximo à escadaria. “Ela me espera ali”, pensou.
Mas Cosette não estava lá. Levantou os olhos e viu que as janelas estavam
fechadas. Deu uma volta no jardim, o jardim estava deserto. Então voltou
até a casa, e, louco de amor, ébrio, assustado, exasperado de dor e de
ansiedade, bateu nas venezianas, como o dono da casa que voltasse fora de
hora. Bateu e tornou a bater, arriscando-se a ver a janela se abrir e o rosto
sombrio do pai aparecer perguntando-lhe: “O que quer?” Mas isso não era
nada perto do que ele entrevia. Depois de bater, elevou a voz e chamou
Cosette.
— Cosette! — gritou ele. — Cosette! — repetiu imperiosamente.
Ninguém respondeu. Era o fim. Ninguém no jardim; ninguém na casa.
Marius fixou seus olhos desesperados naquela casa lúgubre, tão escura,
tão silenciosa e tão vazia quanto um túmulo. Olhou para o banco de pedra
onde passara tantas horas adoráveis perto de Cosette. Então, sentou-se nos
degraus da escadaria, o coração cheio de doçura e de resolução,
bendizendo seu amor do fundo de seu pensamento e dizendo-se que, já que
Cosette havia partido, só lhe restava morrer.
De repente, ouviu uma voz que parecia vir da rua e que gritava por
entre as árvores: — Senhor Marius! Ele se ergueu.
— O quê? — disse ele.
— Senhor Marius, é o senhor que está aí?
— Sim.
— Senhor Marius, retomou a voz, seus amigos o esperam na barricada
da rua de la Chanvrerie.
Essa voz não lhe era inteiramente desconhecida. Assemelhava-se à voz
rouca e áspera de Éponine. Marius correu até a grade, empurrou o varão
solto, passou a cabeça por ali, e viu alguém, que lhe pareceu ser um rapaz,
desaparecer correndo na escuridão.

III. SENHOR MABEUF


A bolsa de Jean Valjean tinha sido inútil para o senhor Mabeuf, que,
em sua venerável austeridade infantil, não aceitara o presente dos astros;
não admitia que uma estrela pudesse converter-se em moedas de ouro. Não
percebera que o que caía do céu vinha de Gavroche. Fora entregar a bolsa
ao delegado de polícia do bairro, como objeto perdido, colocado por quem
a encontrara à disposição do reclamante. Com efeito, a bolsa ficou
perdida. Nem é preciso dizer que ninguém a reclamou, e que ela em nada
serviu para socorrer o senhor Mabeuf.
De resto, o senhor Mabeuf continuou decaindo.
As experiências com o anil não haviam sido mais satisfatórias no
Jardim Botânico do que em seu jardim de Austerlitz. No ano anterior,
devia os vencimentos de sua governanta; atualmente, como se viu, devia o
aluguel da casa. A casa de penhores, passados treze meses, vendera as
chapas de cobre de sua Flora. Algum caldeireiro deve tê-las transformado
em panelas. Sem o cobre, não podendo nem mesmo completar os
exemplares desemparelhados que ainda possuía, cedera pranchas e textos
como défets,2 a preço vil, a um negociante de livros usados. Assim, nada
mais lhe sobrara da obra de toda a sua vida.
Passou a comer o dinheiro desses exemplares. Quando viu que essa
insignificante fonte se esgotava, renunciou a seu jardim e deixou-o sem
cuidados. Antes, muito tempo antes, já havia renunciado aos dois ovos e
ao pedaço de carne que comia de tempos em tempos. Seu jantar consistia
em pão e batatas. Vendeu seus últimos móveis, em seguida, tudo o que
tinha em dobro em matéria de roupa de cama, cobertores e vestimentas, e,
finalmente, seus herbários e suas estampas; mas ainda lhe restavam seus
livros mais preciosos, entre os quais vários de grande raridade como os
Quadrains Historiques de la Bible [Quadros Históricos da Bíblia], edição
de 1560, a Concordance des Bibles [Concordância das Bíblias], de Pierre
de Besse, as Marguerites da la Marguerite [Margaridas da Margarida], de
Jean de La Haye, com uma dedicatória à rainha de Navarra, o livro Charge
et Dignité de I’Embassadeur [Cargo e Dignidade do Embaixador] —, pelo
Senhor de VilliersHotman, um Florilegium rabbinicum de 1644, um Tibulo
de 1567, com esta esplêndida inscrição: Venetiis, in aedibus Manutianis;
finalmente, um Diógenes Laércio, impresso em Lyon em 1644, no qual se
encontravam as célebres variantes do manuscrito 411, século XIII, do
Vaticano, bem como as variantes dos dois manuscritos de Veneza, 393 e
394, tão proveitosamente consultados por Henri Estienne. e todas as
passagens, em dialeto dórico, que só se encontram no célebre manuscrito
do século XII, pertencente à Biblioteca de Nápoles.
O senhor Mabeuf nunca acendia a lareira em seu quarto, e deitava-se
ainda de dia para não precisar acender velas. Parecia não mais ter
vizinhos, evitavam-no quando ele saía, e ele o percebia. A miséria de uma
criança interessa a uma mãe, a miséria de um rapaz interessa a uma jovem,
a miséria de um velho não interessa a ninguém. É, de todos os abandonos,
o mais cruel. Apesar de tudo, o senhor Mabeuf não tinha perdido
inteiramente sua serenidade infantil. Seus olhos ganhavam alguma
vivacidade quando se fixavam em seus livros, e até sorria quando
considerava o seu Diógenes Laércio, que era um exemplar único. Seu
armário envidraçado era o único móvel que conservara além do
estritamente indispensável.
Um dia Mãe Plutarque lhe disse:
— Não tenho com o que comprar algo para o jantar.
O que ela chamava de jantar era um pão e quatro ou cinco batatas.
— Nem fiado? — perguntou o senhor Mabeuf.
— O senhor bem sabe que recusam.
Ele abriu seu armário, por bastante tempo contemplou, um após o
outro, todos os seus livros, como um pai que, obrigado a dizimar seus
filhos, os contemplaria antes de escolher; então rapidamente pegou um
deles, colocou-o debaixo do braço, e saiu. Voltou duas horas depois sem
nada debaixo do braço, colocou trinta soldos sobre a mesa e disse:
— A senhora fará o jantar.
A partir desse momento, Mãe Plutarque viu estender-se sobre a
cândida fronte do velho um sombrio véu que nunca mais se ergueu.
No dia seguinte, e no outro, e todos os dias, foi preciso recomeçar; o
senhor Mabeuf saía com um livro e voltava com uma moeda. Como os
livreiros de sebo viam que ele necessitava vender, compravam-lhe por
vinte soldos o que havia pago vinte francos, algumas vezes aos mesmos
livreiros. Volume a volume, toda a sua biblioteca se ia. Em alguns
momentos, dizia a si mesmo: “Mas já estou com oitenta anos, como se
tivesse não se sabe que oculta esperança de chegar ao fim de seus dias
antes que seus livros chegassem ao fim”.
Sua tristeza aumentava. Certa vez, no entanto, teve uma alegria. Saíra
de casa com um Robert Estienne, que vendeu por trinta c cinco soldos no
cais Malaquais, e voltou com um Aldo, que comprara por quarenta na rua
des Grès.
— Estou devendo cinco soldos — disse ele radiante a Mãe Plutarque.
Nessa noite não jantou.
Era membro da Sociedade de Horticultura, onde conheciam suas
privações. O presidente dessa sociedade o procurou, prometeu interceder
por ele junto ao ministro do Comércio e Agricultura, e, de fato, o fez.
— Mas como! — exclamou o ministro. — Não acredito! Um velho
sábio! Um botânico! Um homem inofensivo! É preciso que façamos
alguma coisa por ele!
No dia seguinte, o senhor Mabeuf recebeu um convite para jantar na
casa do ministro. Mostrou a carta a Mãe Plutarque, trêmulo de alegria.
“Estamos salvos!”, exclamou.
No dia marcado, foi à casa do ministro. Percebeu que sua gravata
amarrotada, seu casaco fora de moda e seus sapatos lustrados com clara de
ovo causavam espanto aos porteiros. Ninguém lhe falou, nem mesmo o
ministro. Por volta das dez horas da noite, sempre à espera de alguma
palavra, ouviu a mulher do ministro, bela dama decotada de quem não
ousara se aproximar, perguntar:
“Quem será aquele velho senhor?”
À meia-noite, voltou para casa a pé, debaixo de uma forte chuva. Teve
de vender um Elzevir para pagar a carruagem da ida.
Todas as noites antes de se deitar, habituara-se a ler algumas páginas
de seu Diógenes Laércio. Sabia grego o bastante para apreciar as
particularidades do texto que possuía. Agora, essa era sua única alegria.
Algumas semanas se passaram. De repente, Mãe Plutarque adoeceu. Há
uma coisa mais triste do que não ter com o que comprar o pão do padeiro,
é não ter com o que comprar os remédios do farmacêutico. Uma noite, o
médico receitou um medicamento muito caro; além disso, a doença se
agravava, era preciso uma enfermeira. O senhor Mabeuf abriu sua
biblioteca, não havia mais nada. O último volume já se fora. A única coisa
que lhe restava era o Diógenes Laércio.
Colocou o exemplar único debaixo do braço e saiu; era dia 4 de junho
de 1832; dirigiu-se à Porte Saint-Jacques, foi à casa do sucessor de Royol,
e voltou para casa com cem francos. Colocou a pilha de moedas de cinco
francos sobre o criado-mudo da velha criada e recolheu-se a seu quarto
sem dizer uma palavra.
No dia seguinte, logo ao amanhecer, foi sentar-se no banco de pedra de
seu jardim, e, por cima da sebe, durante toda a manhã, foi possivel vê-lo
imóvel, cabeça baixa, os olhos vagamente fixos nas platibandas murchas.
Chovia por instantes, mas o velho homem nem parecia dar-se conta.
Durante a tarde, ruídos extraordinários irromperam em Paris.
Assemelhavam-se a tiros de espingarda e aos clamores de uma multidão.
Pai Mabeuf levantou a cabeça; viu um jardineiro que passava e
perguntou:
— O que é isso?
O jardineiro respondeu, com sua enxada às costas, e no tom de voz
mais pacífico:
— São motins.
— Como assim, motins?
— É. Estão em combate.
— Por que combatem?
— Ah! Ora essa! — fez o jardineiro.
— Para que lados? — tomou o senhor Mabeuf.
— Para os lados de l’ Arsenal.
Pai Mabeuf entrou em casa, pegou seu chapéu, procurou
maquinalmente um livro para colocar debaixo do braço, não encontrou
nenhum, e disse: “Ah! É verdade!”
E saiu, com ar perturbado.

__________________________
1 Cúmplices de Fieschi, homem que tentou assassinar o rei em julho de 1835.
2 Folhas soltas de uma obra, com as quais não se pode formar um exemplar completo, e que
servem apenas para completar exemplares defeituosos.
LIVRO X
5 DE JUNHO DE 1832

I. A SUPERFÍCIE DA QUESTÃO
DE QUE se compõe um motim? De nada e de tudo. De uma eletricidade
que lentamente se propaga, de uma chama que subitamente cintila, de uma
força que vagueia, de um sopro que passa. Esse sopro encontra cabeças
que falam, cérebros que sonham, almas que sofrem, paixões que ardem,
misérias que gritam, e leva tudo consigo.
Aonde?
Ao acaso. À revelia do Estado, à revelia das leis, à revelia do bem-
estar e da insolência dos outros.
As convicções irritadas, os entusiasmos exasperados, as indignações
emocionadas, os instintos de guerra comprimidos, as jovens coragens
exaltadas, as cegueiras generosas; a curiosidade, o gosto pelas mudanças, a
sede pelo inesperado, o sentimento que nos leva a ler com prazer o cartaz
de um novo espetáculo e a gostar de ouvir no teatro o apito do
contrarregra; os ódios vagos, os rancores, os desapontamentos, todas as
vaidades que acreditam ser vítimas de uma bancarrota do destino; a falta
de meios, os sonhos vazios, as ambições rodeadas de dificuldades, os que
esperam de um desabamento uma saída; finalmente, no nível mais baixo, a
turba, essa lama que se incendeia, tais são os elementos do motim.
O que há de maior e o que há de mais ínfimo; seres que vagam
excluídos de tudo, à espera de uma oportunidade, boêmios, gente sem
ocupação, vagabundos das ruas, os que à noite dormem em um deserto de
casas sem outro teto que as frias nuvens do céu, os que, a cada dia, pedem
seu pão ao acaso e não ao trabalho, os desconhecidos da miséria e do nada,
os braços nus, os pés descalços, esses pertencem à revolta.
Quem quer que abrigue na alma uma revolta secreta contra um fato
qualquer do Estado, da vida ou da sorte, se encerra na revolta e, assim que
ela aparece, começa a agitar-se e a sentir-se impelido pelo turbilhão.
O motim é uma espécie de tufão da atmosfera social que se forma
repentinamente sob certas condições de temperatura e que, em seu
rodopio, sobe, corre, estoura, arranca, arrasa, esmaga, derruba, puxa as
raízes, arrastando consigo as grandes naturezas bem como as mesquinhas,
o homem forte e o espírito fraco, o tronco de árvore e o fragmento de
palha.
Infelizes tanto dos que arrebata quanto dos que atropela! Um é jogado
contra o outro.
Comunica aos que a ele aderem não se sabe que poder extraordinário.
Preenche os desavisados com a força dos acontecimentos; transforma tudo
em projéteis. De um seixo faz uma bala, de um carregador faz um general.
Se dermos crédito a certos oráculos da política hipócrita, do ponto de
vista do poder, um pouco de revolta é desejável. Esquema: a revolta
reforça os governos que não derruba; põe à prova o exército; concentra a
burguesia; distende os músculos da polícia; constata a força da ossatura
social. É uma ginástica; é quase uma higiene. O poder se sente melhor
depois de um motim, como o homem depois de uma massagem.
Há trinta anos, as revoltas eram consideradas sob outros pontos de
vista.
Para todas as coisas, há uma teoria que proclama a si mesma de “bom
senso”; Filinto contra Alceste; mediação oferecida entre o verdadeiro e o
falso; explicação, advertência, atenuação um tanto altiva que, por ser uma
mescla de censura e desculpa, se julga sabedoria, quando, muitas vezes,
não passa de pedantismo. Toda uma escola política, chamada com justiça
de centro, saiu daí. Entre a água fria e a água quente, é o partido água-
morna. Essa escola, com sua falsa profundidade, toda superficial, que
disseca os efeitos sem remontar às causas, censura, do alto de uma meia-
ciência, as agitações da praça pública.
Se dermos ouvidos a essa escola: “Os motins que complicaram o feito
de 1830 tiraram desse grande acontecimento parte de sua pureza. A
Revolução de Julho tinha sido um belo vendaval popular, rapidamente
seguido por um céu azul. Mas eles fizeram o céu nebuloso reaparecer.
Fizeram degenerar em querela essa revolução, em princípio tão notável
por sua unanimidade. Na Revolução de Julho, como em todo progresso que
vem aos safanões, houve fraturas secretas; mas os motins as tomaram
sensíveis. Podia-se dizer: ‘Ah! Isto está quebrado’. Após a Revolução de
Julho, sentia-se apenas a redenção; após as revoltas, sentia-se a catástrofe.
Qualquer motim fecha lojas, rebaixa o valor dos fundos, consterna a
bolsa, suspende o comércio, entrava os negócios, precipita as falências; o
dinheiro acaba, as fortunas privadas se inquietam, o crédito público vacila,
a indústria se desconcerta, os capitais recuam. o trabalho é mal pago, há
medo por toda parte; há contragolpes em todas as cidades. Daí surgem os
abismos. Calcula-se que o primeiro dia de uma revolta custa à França
vinte milhões, o segundo quarenta, o terceiro sessenta. Uma revolta de três
dias custa cento e vinte milhões, quer dizer, vendo-se apenas o resultado
financeiro, equivale a um desastre, naufrágio ou batalha perdida, que
aniquilasse uma armada de sessenta naus de linha.
Sem dúvida, historicamente, as revoltas tiveram sua beleza; a guerra
das ruas não é menos grandiosa, nem menos patética, que a guerra dos
bosques; uma encerra a alma das florestas, a outra, o coração das cidades;
uma tem Jean Chouan, a outra, tem Jeanne. As revoltas tingiram de
vermelho, mas de forma esplêndida, todas as mais originais saliências do
caráter parisiense, a generosidade, a dedicação, a alegria tumultuosa, os
estudantes provando que a bravura faz parte da inteligência, a Guarda
Nacional inabalável, as trincheiras de comerciantes, as fortalezas de
garotos, o desprezo pela morte dos que estão na rua. Escolas e legiões se
chocavam. No final das contas, entre os combatentes havia apenas uma
diferença de idade; todos da mesma raça; todos os mesmos homens
estoicos que morrem aos vinte anos por suas ideias, e aos quarenta por
suas famílias. O exército, sempre triste nas guerras civis, opunha a
prudência à audácia. Os motins, ao mesmo tempo que manifestaram a
intrepidez popular, forjaram a educação da coragem burguesa.
Muito bem. Mas tudo isso vale o sangue derramado? E, ao sangue
derramado, acrescentem o futuro nebuloso, o progresso comprometido, a
inquietude entre os melhores, o desespero dos liberais honestos, o
absolutismo estrangeiro feliz com esses ferimentos feitos à revolução por
ela mesma, os vencidos de 1830 triunfando e dizendo: ‘Bem que nós
dissemos!’ Acrescentem uma Paris talvez engrandecida, mas uma França
seguramente diminuída. Acrescentem, pois é necessário dizer tudo, os
massacres que, com muita frequência, desonravam a vitória da ordem, que
se tornava feroz, sobre a liberdade, que se tornava insensata. Feitas as
contas, os motins foram funestos”.
Assim fala esse arremedo de sabedoria com que a burguesia, esse
arremedo do povo, tão facilmente se contenta.
Quanto a nós, rejeitamos esta palavra, ampla em demasia e, por
consequência, cômoda em demasia: motins. Fazemos distinção entre
movimento popular e outro movimento popular. Não nos perguntamos se
um motim custa tanto quanto uma batalha. E, em primeiro lugar, por que
uma batalha? Nesse ponto, surge a questão da guerra. Seria a guerra menos
flagelo do que são os motins calamidade? E quando o 14 de julho custaria
cento e vinte milhões? O estabelecimento de Filipe V na Espanha custou à
França dois bilhões. Mesmo que fosse a igual preço, preferiríamos o 14 de
julho. Aliás repelimos essas cifras, que parecem argumentos mas não
passam de palavras. Dada uma revolta, devemos examiná-la em si mesma.
Em tudo o que diz a objeção doutrinária acima exposta, a questão é de
efeito, nós procuramos a causa.
Seremos mais precisos.

II. O FUNDO DA QUESTÃO


Existe revolta e existe insurreição; são dois tipos de ira; uma é
condenável, a outra é legítima. Nos Estados democráticos, os únicos
fundados na justiça, acontece que, algumas vezes, a fração usurpa, e então
o todo se ergue, e a necessária reivindicação de seus direitos pode chegar
até a pegar em armas. Em todas as questões que são de competência da
soberania coletiva, a guerra do todo contra a fração é insurreição; o ataque
da fração contra o todo é revolta; conforme as Tulherias contenham o rei
ou contenham a Convenção, serão justamente ou injustamente atacadas. O
mesmo canhão apontado contra a multidão foi justo no 10 de agosto, e
injusto no 14 vindimiário.1 Aparências semelhantes, fundamentos
diferentes; as guardas suíças defendem o falso, Bonaparte, o verdadeiro. O
que o sufrágio universal fez no uso de sua liberdade e de sua soberania não
pode ser desfeito nas ruas. Do mesmo modo no que tange às coisas de pura
civilização; o instinto das massas, ontem clarividente, pode amanhã estar
turvado. A mesma fúria é legítima contra Terray c absurda contra Turgot.
A destruição de máquinas, os saques de armazéns, a quebra de trilhos, a
demolição de docas, os tortos caminhos seguidos pelas multidões, o povo
negando justiça ao progresso, Ramus assassinado pelos estudantes,
Rousseau expulso da Suíça a pedradas, tudo isso é revolta.2 Israel contra
Moisés, Atenas contra Fócion, Roma contra Cipião, é revolta; Paris contra
a Bastilha, é insurreição. Os soldados contra Alexandre, os marinheiros
contra Cristóvão Colombo, é a mesma revolta; revolta ímpia. Por quê?
Porque Alexandre fez com sua espada pela Ásia o mesmo que Cristóvão
Colombo fez pela América com sua bússola; Alexandre, assim como
Colombo, descobriu um mundo. Esse doar de mundos à civilização
significa tamanho aumento de luz que qualquer resistência é culpável. Às
vezes, o povo falta com fidelidade a si mesmo. A multidão é traidora do
povo. Não há, por exemplo, nada mais estranho do que esse longo e
sangrento protesto dos contrabandistas de sal, legítima revolta crônica
que, no momento decisivo, no dia da salvação, na hora da vitória popular,
esposa o trono, muda de lado e, de insurreição contra, se converte em
revolta a favor! Tristes primores da ignorância! O contrabandista de sal
escapa às forças reais e, ainda com um resto de corda no pescoço, ostenta a
insígnia branca. Morte aos impostos sobre o sal dá à luz os “Viva o rei”.
Matadores da noite de São Bartolomeu, degoladores de Setembro,
carniceiros de Avignon, assassinos de Coligny, assassinos da Senhora de
Lamballe, assassinos de Brune, miquelets, verdets, cadenettes, compagnos
de Jehu, cavaleiros du brassard, isso é a revolta.3 A Vendeia é uma grande
revolta católica.
O ruído do direito em movimento é facilmente reconhecível e nem
sempre sai do tremor das massas agitadas; há raivas insanas; há sinos
quebrados — nem todo toque de alarme soa como o bronze. O impulso das
paixões e das ignorâncias é diferente do impulso do progresso. Levantem-
se, que seja, mas para crescer. Mostrem-me para que lado vão. Não há
insurreição senão para adiante. Qualquer outro levante é mau. Qualquer
passo violento para trás é revolta; recuar é uma violência contra o gênero
humano. A insurreição é o acesso de fúria da verdade; as ruas que a
insurreição põe em movimento lançam a centelha do direito, e não deixam
para a revolta senão sua lama. Danton contra Luís XVI, é insurreição;
Hébert contra Danton, é revolta.
Daí vem que, se a insurreição, em certos casos, pode ser, como disse
Lafayette, o maior sagrado dos deveres, a revolta pode ser o maior dos
atentados.
Há também uma diferença na intensidade calórica; a insurreição com
frequência é vulcão, e a revolta com frequência é fogo de palha.
A revolta, já dissemos, está algumas vezes no poder. Polignac é um
fomentador de revoltas, Camille Desmoulins é um governante.
Outras vezes, insurreição é ressurreição.
Sendo a solução de tudo pelo sufrágio universal um fato inteiramente
moderno, e toda a história anterior a esse fato estando, há quatro mil anos,
repleta do direito violado e do sofrimento do povo, cada época da história
carrega com ela o protesto que lhe é possível.
No tempo dos Césares, não havia insurreição, mas havia Juvenal.
O facit indignatio4 substitui os Gracos.
No tempo dos Césares, havia o exilado de Sena (Juvenal); havia
também o autor dos Anais (Tácito).
Nem falamos do imenso exilado de Patmos, que, também ele, oprime o
mundo real com um protesto em nome do mundo ideal, faz da visão uma
sátira enorme, e arremessa sobre Roma-Nínive, Roma-Babilônia, Roma-
Sodoma, o fulgurante reflexo do Apocalipse.
João,5 sobre seu rochedo, é a esfinge sobre seu pedestal; podem não
compreendê-lo; é um judeu, e se expressa em hebraico; mas o homem que
escreve os Anais é um latino; melhor dizendo, é um romano.
Como os Neros reinam de um modo negro, devem ser pintados da
mesma forma. O simples trabalho do buril seria por demais pálido; é
preciso derramar no entalhe uma concentrada prosa que morda.
Os déspotas têm responsabilidade sobre os pensadores. Palavra
acorrentada é palavra terrível.
O escritor duplica e triplica seu estilo quando o silêncio é imposto ao
povo por um tirano. Sai desse silêncio certa plenitude misteriosa que se
filtra e se condensa em bronze no pensamento. A compressão na história
produz a concisão no historiador. A solidez granítica de tal prosa célebre
não é mais do que um amontoado feito por um tirano.
A tirania obriga o escritor a encolhimentos de diâmetro que são
incrementos de força. O período ciceroniano, suficiente em Verrès, ficaria
embotado em Calígula. Quanto menor a envergadura na frase, maior a
intensidade no golpe. Tácito pensa à bras raccourci.6
A honestidade de um grande coração, condensada em justiça e em
verdade, fulmina.
Diga-se de passagem, é preciso observar que Tácito, historicamente,
não se sobrepõe a César. Os Tibérios estão-lhe reservados. César e Tácito
são dois fenômenos sucessivos cujo encontro parece misteriosamente
evitado por aquele que, na direção de cena dos séculos, regula as entradas
e saídas. César é grande, Tácito é grande Deus poupa essas duas grandezas
não permitindo que uma se choque com a outra. O justiceiro, ferindo
César, poderia ferir demais e ser injusto. Deus não quer isso. As grandes
guerras da África e da Espanha, os piratas da Cilícia destruídos, a
civilização introduzida na Gália, na Bretanha, na Germânia, toda essa
glória cobre o Rubicão. Há nisso uma espécie de delicadeza da justiça
divina, hesitando em soltar sobre o usurpador ilustre o historiador
formidável, dispensando César de se defrontar com Tácito, e concedendo
circunstâncias atenuantes ao gênio.
Claro, o despotismo continua sendo o despotismo, mesmo sob um
déspota genial. Existe corrupção sob tiranos ilustres, mas a peste moral é
ainda mais hedionda sob tiranos infames. Nesses reinados, nada encobre a
vergonha; e os que dão exemplos, tanto Tácito como Juvenal, esbofeteiam
com mais utilidade, em presença do gênero humano, essa ignomínia sem
réplica.
Roma cheira pior sob Vitélio do que sob Sila. Sob Cláudio Domiciano,
ocorre uma deformidade de baixeza correspondente à vilania do tirano. A
vilania dos escravos é um produto direto do déspota; um miasma é exalado
dessas consciências corrompidas em que há reflexos do senhor; os poderes
públicos são imundos; os corações são pequenos, as consciências
achatadas, as almas desprezíveis; é assim sob Caracala, é assim sob
Cômodo, é assim sob Heliogábalo, ao passo que, sob César, não sai do
senado romano senão aquele odor de excrementos próprio aos ninhos de
águia.
Daí o advento, aparentemente tardio, dos Tácitos e dos Juvenais; na
hora da evidência é que o demonstrador aparece.
Mas Juvenal e Tácito, do mesmo modo que Isaías nos tempos bíblicos,
que Dante na Idade Média, é o homem; revolta e insurreição, é a multidão,
que ora tem razão, ora está errada.
Na maior parte dos casos, a revolta provém de um fato material; a
insurreição é sempre um fenômeno moral. A revolta é Masaniello
inssurreição é Espártaco. A insurreição toca os limites do espírito, a
revolta, os do estômago. Gaster se irrita, mas Gaster, claro, nem sempre
está errado. Nas questões de fome, a revolta em Buzançais,7 por exemplo,
tem um ponto de partida verdadeiro, patético e justo. Contudo, continua
sendo revolta. Por quê? Porque embora no fundo tivesse razão, estava
errada quanto à forma. Feroz, apesar de ter direito, violenta, apesar de
forte, ela feriu ao acaso; marchou como o elegante cego, esmagando;
deixou atrás de si cadáveres de velhos de mulheres e de crianças;
derramou, sem saber por que, o sangue dos inofensivos e dos inocentes.
Alimentar o povo é um bom objetivo, massacrá-lo é um péssimo meio.
Todos os protestos armados, mesmo os mais legítimos, mesmo o 10 de
agosto, mesmo o 14 de julho, começam por uma idêntica perturbação.
Antes que o direito emane, há tumulto e ódio. No princípio, a insurreição é
revolta, do mesmo modo que um rio é torrente. Geralmente, ela chega
neste oceano: a revolução. Algumas vezes, porém, vinda destas elevadas
montanhas que dominam o horizonte moral, a justiça, a sabedoria, a razão,
o direito, feita da mais pura neve do ideal, após prolongada queda de rocha
em rocha, após ter refletido o céu em sua transparência e ter-se engrossado
com centenas de afluentes em sua majestosa marcha de triunfo, a
insurreição se perde repentinamente em algum pântano burguês, como o
Reno em um brejo.
Tudo isso é passado, o futuro é diferente. O sufrágio universal tem de
admirável o fato de dissolver a revolta em seu princípio, e retirar-lhe as
armas ao dar o voto à insurreição. O desaparecimento das guerras, tanto a
guerra das ruas como a das fronteiras, tal é o inevitável progresso. Seja o
hoje como for, a paz é o Amanhã.
De resto, insurreição ou revolta, naquilo que a primeira difere da
segunda, o burguês propriamente dito conhece pouco essas nuances. Para
ele tudo é sedição, rebelião pura e simples, revolta do cão contra seu dono,
tentativa de mordida que merece ser punida com corrente e prisão, latido,
uivo; até o dia em que a cabeça do cão, subitamente crescida, se esboça
vagamente na sombra com aspecto de leão.
O burguês então grita: “Viva o povo!”
Dada essa explicação, o que é para a história o movimento de junho de
1832? Uma revolta? Uma insurreição?
Uma insurreição.
Pode acontecer que, nesta nossa apresentação de um evento tão
terrível, algumas vezes digamos revolta, mas somente para qualificarmos
os fatos superficiais, e sempre mantendo a distinção entre a forma revolta
e o fundo insurreição.
O movimento de junho de 1832, em sua rápida explosão e em sua
lúgubre extinção, teve tamanha grandeza que mesmo aqueles que o veem
apenas como uma revolta não deixam de tratá-lo com respeito. Para esses,
é como um resto de 1830. As imaginações exaltadas, dizem, não se
acalmam em um dia. Uma revolução não acaba bruscamente. Ela passa,
necessariamente, por algumas ondulações antes de voltar ao estado de paz,
como uma montanha em sua descida rumo à planície. Não há Alpes sem
Jura, nem Pirineus sem Astúrias.
Esta crise patética da história contemporânea, chamada pelos
parisienses de época das revoltas, é, seguramente, um momento
característico entre os momentos tempestuosos deste século.
Uma última palavra antes de entrarmos na narração.
Os fatos que serão relatados pertencem a uma realidade dramática e
viva que o historiador às vezes negligencia por falta de tempo e de espaço.
Mas, insistimos, é nisso que está a vida, a palpitação, a animação humana.
Os pequenos detalhes, acreditamos já haver dito, são, por assim dizer, a
folhagem dos grandes acontecimentos e se perdem na distância da história.
A chamada época das revoltas está repleta de detalhes desse gênero. As
instruções judiciárias, por motivos diferentes dos da história, nem tudo
revelaram, e talvez nem tudo tenham aprofundado. Traremos, então, à luz,
entre as particularidades conhecidas e publicadas, coisas que ninguém
soube, fatos que ficaram sob o esquecimento de uns e a morte de outros. A
maior parte dos atores destas cenas gigantescas já não existe; já no dia
seguinte estavam emudecidos; mas, sobre o que relataremos, podemos
dizer: Isso nós vimos.
Mudaremos alguns nomes, pois a história deve contar e não denunciar,
mas pintaremos as coisas de forma verdadeira. Nas condições do livro que
escrevemos, mostraremos apenas um lado e um episódio, certamente o
menos conhecido, das jornadas de 5 e 6 de junho de 1832; mas o faremos
de forma que o leitor entreveja, sob o escuro véu que iremos levantar, a
real figura dessa terrível aventura pública.
III. UM ENTERRO: OCASIÃO DE RENASCER
Na primavera de 1832, embora durante três meses a ira tivesse
congelado os espíritos e lançado sobre sua agitação não se sabe que morno
apaziguamento, Paris estava havia muito tempo preparada para uma
comoção. Como já dissemos, a cidade grande assemelha-se a uma peça de
artilharia; quando está carregada, basta uma faísca e o tiro é disparado. Em
junho de 1832, a faísca foi a morte do general Lamarque.
Lamarque era um homem de fama e de ação. Demonstrara
sucessivamente, sob o Império e sob a Restauração, as duas bravuras
necessárias às duas épocas, a bravura dos campos de batalha e a bravura da
tribuna. Era eloquente, assim como tinha sido valente; sentia-se uma
espada em suas palavras. Como Foy, seu antecessor, depois de ter mantido
em alta o comando, mantinha em alta a liberdade. Postava-se entre a
esquerda e a extrema-esquerda, amado pelo povo porque aceitava os
acasos do futuro, amado pela multidão porque havia bem servido ao
imperador. Era, juntamente com os condes Gérard e Drouet, um dos
marechais in petto8 de Napoleão. Os tratados de 1815 o abalavam como
uma ofensa pessoal. Odiava Wellington com um ódio direto que agradava
à multidão, e durante dezessete anos, apenas atento aos acontecimentos
intermediários, havia majestosamente velado a tristeza de Waterloo. Em
sua agonia, em sua derradeira hora, estreitara no peito uma espada que lhe
fora oferecida pelos oficiais dos Cem Dias. Napoleão morrera
pronunciando a palavra exército, Lamarque pronunciando a palavra pátria.
Sua morte, prevista, era temida pelo povo como uma perda, e pelo
governo como uma oportunidade. Essa morte foi um luto. Como tudo que
é amargo, o luto pode se transformar em revolta. Foi o que ocorreu.
Na véspera e na manhã do dia 5 de junho, dia marcado para o enterro
de Lamarque, o bairro Saint-Antoine, por onde o séquito devia passar,
tomou um aspecto temeroso. Essa tumultuada rede de ruas encheu-se de
rumores. Cada qual se armava como podia. Os marceneiros levavam
ferramentas de suas bancadas “para arrombar as portas”. Um deles fez-se
um punhal com um gancho de sapateiro, quebrando-o e afiando a parte
restante. Um outro, na febre de “atacar”, havia três dias dormia vestido.
Um carpinteiro chamado Lombier encontrava um companheiro que lhe
perguntava: “Aonde vai?” “Ora, não tenho arma.” “E então?” “Vou até
minha oficina buscar meu compasso.” “Para fazer o quê?” “Não sei”, dizia
Lombier.
Um tal Jacqueline, homem de expediente, abordava alguns operários
que passavam: “Venha cá, você!” Pagava-lhe dez soldos de vinho e dizia:
“Tem serviço?” Não. “Vá à casa de Filspierre, entre a barreira Montreuil e
a barreira Charonne, e encontrará o que fazer.”
Na casa de Filspierre o que se encontrava eram cartuchos e armas.
Certos chefes conhecidos se faziam de correio, isto é, corriam à casa de
um e de outro para reunir sua gente. No bar Barthélemy, perto da barreira
du Trône, no bar Capel, em Petit-Chapeau, os beberrões se agrupavam com
ar sério. O que se ouvia era dizerem uns aos outros: “Onde está sua
pistola?” “Debaixo da blusa.” “E a sua?” “Debaixo da camisa.” Na rua
Traversiere, em frente à loja de Roland, e no pátio da Maison-Brûlée, em
frente à oficina de ferramentas de Bernier, viam-se grupos cochichando.
Ali notava-se, como o mais ardoroso, um tal Mavot, que nunca parava
mais de uma semana em uma oficina, os patrões mandavam-no embora
“porque todo dia era preciso brigar com ele”. Mavot foi morto no dia
seguinte, na barricada da rua Ménilmontant. Pretot, que iria igualmente
morrer na luta, secundava Mavot, e a esta pergunta: “Qual é seu
objetivo?”, respondia: A insurreição.
Operários reunidos na esquina da rua de Bercy aguardavam um certo
Lemarin, agente revolucionário do bairro Saint-Marceau. Palavras de
ordem eram praticamente trocadas em público.
Em 5 de junho, então, dia entremeado de chuva e de sol, o cortejo do
general Lamarque atravessou Paris com pompa militar oficial, um tanto
reforçada pelas precauções. Dois batalhões, tambores cobertos de luto,
fuzis arriados, dez mil guardas nacionais com seus sabres de lado, baterias
de artilharia da Guarda Nacional escoltavam a urna mortuária. A
carruagem do enterro era puxada por jovens e imediatamente seguida
pelos oficiais de Invalides, que levavam ramos de louro. Em seguida,
vinha uma multidão inumerável, agitada, estranha, os seccionários dos
Amis du Peuple — Amigos do Povo —, a Faculdade de Direito, a Escola
de Medicina, os refugiados de todas as nações, bandeiras espanholas,
italianas, alemãs, polonesas, bandeiras tricolores horizontais e todas as
bandeiras possíveis, crianças agitando ramos verdes, pedreiros e “tinteiros
que faziam greve naquela ocasião, gráficos reconhecíveis por seus bonés
de papel, caminhando dois a dois, três a três, gritando, quase todos
agitando bastões, alguns agitando sabres, desordenadamente, e, no entanto,
com uma só alma, ora em turba, ora em coluna. Pelotões escolhiam
chefes; um homem, armado com um par de pistolas perfeitamente
visíveis, parecia passar em revista outros homens, cujas fileiras se
afastavam diante dele. Nas calçadas das avenidas, nos galhos das árvores,
nas varandas, nas janelas, sobre os telhados, cabeças formigavam; homens,
mulheres e crianças, os olhos cheios de ansiedade. Uma multidão armada
passava, uma multidão assustada olhava.
Por seu lado, o governo observava. Observava com a mão no punho da
espada. Podiam-se ver, praça Luís XV, prontos para murchar, cartucheiras
cheias, fuzis e mosquetões carregados, quatro esquadrões de carabineiros,
montados e encabeçados por clarins; no bairro latino e no Jardim
Botânico, a guarda municipal escalonada de rua em rua; em Halle-aux-
vins, um esquadrão de dragões; na Grève, metade do 12º batalhão de linha,
a outra metade na Bastilha; o 6º batalhão de dragões em Célestins; e a
artilharia lotava o pátio do Louvre. O resto das tropas estava de sentinela
nos quartéis, sem contar os regimentos dos arredores de Paris. O poder
inquieto mantinha suspensos dentro da cidade, sobre a multidão
ameaçadora, vinte e quatro mil soldados, mais trinta mil nos arrabaldes.
Diversos boatos circulavam no cortejo. Falava-se de intrigas
legitimistas; falava-se do duque de Reichstadt, que Deus marcava para a
morte naquele mesmo momento em que a multidão o designava para o
Império. Um personagem que permaneceu incógnito anunciava que, em
determinada hora, dois contramestres subornados abririam ao povo as
portas de uma fábrica de armas. A expressão que predominava nas frontes
descobertas da maior parte dos assistentes era a de um entusiasmo
mesclado de abatimento. Aqui e ali, viam-se também, em meio àquela
multidão dominada por tantas emoções violentas, mas nobres, verdadeiros
rostos de malfeitores, e bocas ignóbeis, que pareciam dizer: vamos pilhar!
Há certas agitações que revolvem o fundo dos pântanos e fazem subir da
água nuvens de lama. Fenômeno ao qual as polícias “bem organizadas”
não são estranhas.
O cortejo caminhou pelos bulevares, com lentidão febril, da casa
mortuária até a Bastilha. De tempos em tempos, chovia; a chuva não
causava efeito algum sobre a multidão. Diversos incidentes: o caixão
passando em volta da coluna Vendôme; pedras atiradas contra o duque de
Fitz-James, visto em uma varanda de chapéu na cabeça; o galo gaulês9
arrancado de uma bandeira popular e arrastado pela lama; um guarda
municipal ferido por uma espada, na entrada Saint-Martin; um oficial do
12º batalhão de linha dizendo em voz alta: Eu sou republicano; a Escola
Politécnica aparecendo inesperadamente apesar da ordem para não sair; e
gritos como: “Viva a Escola Politécnica! Viva a República!” marcaram o
trajeto do cortejo. Na Bastilha, longas filas de terríveis curiosos que
desciam do subúrbio Saint-Antoine juntaram-se ao cortejo, e certa
ebulição perigosa começou a inflamar a multidão.
Ouviu-se um homem dizer a outro: “Está vendo aquele ali de barbicha
ruiva? É ele que vai dizer quando é para atirar”. Parece que esse mesmo
barbicha ruiva encontrava-se, mais tarde, desempenhando as mesmas
funções, em outra revolta, o caso Quéssinet. A carruagem passou pela
Bastilha, seguiu o canal, atravessou a pequena ponte e atingiu a esplanada
da ponte de Austerlitz. Ali parou. Naquele momento, se fosse vista do alto,
a multidão ofereceria o aspecto de um cometa cuja cabeça estaria na
esplanada e a cauda, estendida sobre o cais Bourdon, cobriria a Bastilha,
prolongando-se pelo bulevar até a entrada Saint–Martin. Um círculo se
formou em volta da carruagem fúnebre. A vasta multidão fez silêncio.
Lafayette falou, e disse adeus a Lamarque. Foi um instante tocante e
augusto, em que todas as cabeças se descobriram e todos os corações
palpitaram. De repente, um homem a cavalo, vestido de preto, surgiu no
meio do grupo com uma bandeira vermelha, outros dizem que com uma
lança coroada por um boné vermelho. Lafayette desviou a cabeça.
Excelmans deixou o cortejo.
Essa bandeira vermelha suscitou uma tempestade e nela desapareceu.
Do bulevar Bourdon à ponte de Austerlitz, um desses clamores,
semelhantes a vagas, agitou a multidão. Dois prodigiosos gritos se
elevaram: Lamarque para o panteão! Lafayette para a câmara municipal!
À aclamação da multidão, alguns jovens se juntaram e começaram a
arrastar Lamarque dentro do carro fúnebre pela ponte de Austerlitz, e
Lafayette, dentro de uma carruagem, pelo cais Morland.
Em meio à multidão que rodeava e aclamava Lafayette, notavam e
apontavam um alemão chamado Ludwig Snyder, que mais tarde morreria
centenário, que também havia participado da guerra de 1776 e combatido
em Trenton sob as ordens de Washington, e em Bradywine sob o comando
de Lafayette.
Enquanto isso, na margem esquerda, a cavalaria municipal punha-se
em marcha para barrar a ponte; na margem direita, os dragões saíam de
Célestins e se estendiam ao longo do cais Morland. O povo que arrastava
Lafayette de repente os avistou na esquina do cais e gritou:
— Os dragões!
Os dragões avançavam lentamente, em silêncio, as pistolas nos
coldres, os sabres embainhados, os mosquetões no porta-armas, com ar de
sombria expectativa.
A duzentos passos da ponte do canal, fizeram uma parada. A
carruagem que conduzia Lafayette chegou perto deles, eles abriram
fileiras, deixaram-na passar, e fecharam-se novamente sobre ela. Nesse
momento, dragões e povo se tocaram. As mulheres fugiam apavoradas.
O que se passou naquele minuto fatal? Ninguém saberia dizer. Foi o
momento tenebroso em que duas nuvens se chocaram. Alguns contam que
uma fanfarra, dando o sinal de ataque, foi ouvida para os lados do Arsenal;
outros, que um soldado dos dragões recebeu uma punhalada dada por uma
criança. O fato é que três tiros foram subitamente disparados; o primeiro
matou o chefe de esquadrão Cholet, o segundo matou, na rua Contrescarpe,
uma velha senhora surda que fechava suas janelas, o terceiro queimou a
dragona de um oficial; uma mulher gritou: Começaram cedo demais! e, de
repente, do lado oposto ao cais Morland, viu-se um esquadrão de dragões,
que ficara no quartel, desembocar a galope, sabres nus, na rua
Bassompierre e no bulevar Bourdon, varrendo tudo à sua frente.
Então está feito; a tempestade se desencadeia, chovem pedras; a
fuzilaria irrompe; muitos se precipitam margem abaixo e passam o
pequeno braço do Sena, hoje aterrado; os depósitos da ilha Louviers, essa
vasta cidadela desenvolvida, enchem-se de combatentes; estacas são
arrancadas, tiros de pistola são disparados, uma barricada se esboça; os
jovens rechaçados passam correndo pela ponte de Austerlitz com a
carruagem funerária e atacam a guarda municipal; os carabineiros
acorrem, os dragões acutilam, a multidão se dispersa em todas as direções,
um rumor de guerra se espalha pelos quatro cantos de Paris; grito geral:
“Às armas!” Todos correm, debandam, fogem, resistem. A ira ateia a
revolta do mesmo modo que o vento ateia o fogo.

IV. AS EFERVESCÊNCIAS DE OUTRORA


Nada é mais extraordinário que a primeira agitação de um. revolta.
Tudo eclode ao mesmo tempo por todos os lados. Era previsível? Sim.
Fora preparado? Não. De onde saiu então? Das ruas. De onde caiu? Das
nuvens. Aqui, a insurreição tem o caráter de uma conspiração; ali, de uma
improvisação. O primeiro que aparece se apodera de uma corrente da
multidão e a conduz para onde quiser. Começo repleto de espanto, ao qual
se mescla uma espécie de alegria terrível. No princípio, são os clamores;
as lojas se fecham, as bancas dos comerciantes desaparecem; depois, tiros
isolados, as pessoas fogem; coronhadas são desferidas nos portões,
ouvem-se, nos, quintais das casas, criadas rirem e dizerem: Vai haver
confusão!
Nem quinze minutos haviam decorrido, e eis o que se passava ao
mesmo tempo em vinte diferentes pontos de Paris.
Na rua Sainte-Croix-de-la-Brettonnerie, uns vinte rapazes, de barbas e
cabelos compridos, entravam em um botequim e um momento depois
saíam com uma bandeira tricolor horizontal coberta com uma tarja de luto,
encabeçados por três homens armados, um deles com um sabre, outro com
um fuzil, o terceiro com uma espécie de lança.
Na rua Nonaindières, um burguês bem trajado, ventre proeminente,
voz sonora, calvo, fronte alta, barba preta, e um desses bigodes revoltos
que não se domam, oferecia publicamente cartuchos aos passantes.
Na rua Saint-Pierre-Montmartre, homens de mangas arregaçadas
carregavam uma bandeira preta em que se liam, em letras brancas, estas
palavras: República ou morte. Nas ruas des Jeuneurs, du Cadran,
Montorgueil, Mandar, apareciam grupos agitando bandeiras sobre as quais
se dintinguia, em letras douradas, a palavra seção seguida de um número.
Uma dessas bandeiras era vermelha e azul, com um imperceptível
entremeio branco.
Pilhavam uma fábrica de armas no bulevar Saint-Martin e três oficinas
de armeiros, a primeira na rua Beaubourg, a segunda na rua Michel-le-
Comte, a terceira na rua du Temple. Em alguns minutos, as mil mãos da
multidão seguravam e carregavam duzentos e trinta fuzis, quase todos de
dois canos, sessenta e quatro sabres, oitenta e três pistolas. Para que mais
pessoas se armassem, uns pegavam os fuzis, outros as baionetas.
Defronte ao cais da Greve, jovens armados de mosquetes instalavam-
se, para atirar, em casas onde havia mulheres. Um deles trazia um
mosquete de roda. Batiam na porta, entravam e punham-se a fazer
cartuchos. Uma dessas mulheres contou: Eu nem sabia o que era um
cartucho; foi meu marido quem me explicou.
Um grupo arrombava uma loja de curiosidades na rua Vieilles
Haudriettes se apoderava de iatagãs e de armas turcas.
O cadáver de um pedreiro, morto com um tiro de espingarda, jazia na
rua de la Perle.
Além disso, na margem direita, na esquerda, no cais, nos bulevares, no
bairro latino, na região dos mercados, homens arquejantes, operários,
estudantes, seccionários liam proclamações, gritavam: “às armas!”,
quebravam lampiões, desatrelavam carruagens, arrancavam pedras do
calçamento, arrombavam as portas das casas, arrancavam árvores,
reviravam porões, rolavam tonéis, amontoavam pedras, tábuas, móveis,
pranchas, faziam barricadas.
Forçavam os burgueses a ajudá-los. Entravam nas casas, obrigavam as
mulheres a dar-lhes os sabres e fuzis dos maridos ausentes, e escreviam
em giz sobre as portas: armas entregues. Alguns assinavam “com seus
nomes” recibos dos fuzis e dos sabres, e diziam: mande buscá-los amanhã
na prefeitura. Pelas ruas, desarmavam sentinelas isoladas e guardas
nacionais a caminho de sua municipalidade. Arrancavam as dragonas dos
oficiais. Na rua Cimetière-Saint-Nicolas, um oficial da Guarda Nacional,
perseguido por um bando armado com bastões e floretes, com muita
dificuldade refugiou-se em uma casa de onde só pôde sair à noite, e
disfarçado.
No bairro Saint-Jacques, estudantes saíam aos enxames de seus
alojamentos e subiam pela rua Saint-Hyacinthe até o Café du Progrès, ou
desciam até o Café Sept-Billards pela rua des Mathurins. Ali, diante das
portas, jovens distribuíam armas. Pilhavam o depósito da rua Transnonain
para fazer barricadas. Em um único ponto, na esquina das ruas Saint-
Avoye e Simon-le-Franc, os habitantes resistiam, e eles próprios destruíam
a barricada. Em um único ponto, alguns insurgentes cediam; abandonavam
uma barricada, que começava na rua du Temple, após abrirem fogo sobre
um destacamento da Guarda Nacional, fugindo pela rua de la Corderie. O
destacamento recolheu na barricada uma bandeira vermelha, um pacote de
cartuchos e trezentas balas de pistola. Os guardas nacionais rasgaram a
bandeira e levaram as tiras nas pontas de suas baionetas.
Tudo isso que contamos aqui, lenta e sucessivamente, ocorria ao
mesmo tempo em todos os pontos da cidade, em meio a vasto tumulto,
como se inúmeros relâmpagos saíssem de um só trovão.
Em menos de uma hora, vinte e sete barricadas levantaram-se do chão
apenas na região dos mercados. No centro ficava a célebre casa número
50, que fora a fortaleza de Joana e de seus cento e seis companheiros, e
que, flanqueada de um lado por uma barricada em Saint-Merry, e de outro
por uma barricada na rua Maubuée, dominava três ruas, rua des Arcis, rua
Saint-Martin e rua Aubry-leBoucher, onde era sua frente.
Duas barricadas formadas em ângulo reto se erguiam, uma da rua
Montorgueil em direção à Grande-Truanderie, a outra da rua Geoffroy-
Langevin para a rua Saint-Avoy. Sem contar as inúmeras barricadas em
outros vinte bairros de Paris, no Marais, na montanha Sainte-Genevieve;
uma, na rua Ménilmontant, onde se via um portão arrancado dos batentes;
outra perto da ponte do Hôtel-Dieu, feita com uma carruagem desatrelada
e virada, a trezentos passos da delegacia de polícia.
Na barricada da rua des Ménétriers, um homem bem trajado distribuía
dinheiro aos trabalhadores. Na barricada da rua Greneta, um cavaleiro
apareceu e entregou, ao que parecia ser o chefe da barricada, um embrulho
parecendo conter dinheiro. Aqui está, para pagar as despesas, o vinho, et
coetera, disse ele. Um jovem de cabelos loiros, sem gravata, ia de uma
barricada a outra levando palavras de ordem. Outro, de sabre
desembainhado, boné azul de polícia na cabeça, postava sentinelas. No
interior, para cá das barricadas, os cabarés e guaritas convertiam-se em
postos de guarda. De resto, a revolta se comportava segundo a mais sábia
tática militar. As ruas, estreitas, sinuosas, desiguais, cheias de ângulos e de
voltas, não podiam ser mais bem escolhidas; especialmente, as imediações
dos mercados, rede de ruas mais emaranhada que uma floresta. Dizia-se
que a sociedade Amis du Peuple passara a dirigir a insurreição no bairro
Saint-Avoy. Um homem, morto na rua Ponceau, foi revistado, e trazia
consigo um mapa de Paris.
O que, realmente, havia tomado a direção da revolta era uma
impetuosidade extraordinária que pairava no ar. A insurreição,
rapidamente, construíra as barricadas com uma mão, e, com a outra,
tomara os postos da guarnição. Em menos de três horas, como um rastro
de pólvora que se acende, os insurgentes tinham invadido e ocupado, na
margem direita, o Arsenal, a prefeitura da praça Royal, todo o Marais, a
fábrica de armas Popincourt, a Galiote, o Châteaud’Eau, todas as ruas das
imediações dos mercados; na margem esquerda, o quartel des Vétérans,
Sainte-Pélagie, a praça Maubert, a fábrica de pólvora Deux-Moulins, e
todas as entradas. Às cinco horas da tarde, eram senhores da Bastilha, da
Lingerie, de BlancsManteaux; seus postos avançados chegavam à praça
des Victoires e ameaçavam o Banco, o quartel Petits-Peres, o palácio dos
Correios. Um terço de Paris participava da revolta.
Em todos os pontos a luta era gigantescamente travada; e, dos
desarmamentos, visitas domiciliares, oficinas de armeiros invadidas,
resultava que o combate, iniciado a pedradas, continuava a tiros de fuzil.
Por volta das seis horas, a passagem Saumon tomava-se um campo de
batalha. Em uma extremidade, achavam-se os revoltosos, na extremidade
oposta, a tropa. Fuzilavam-se, de uma grade à outra. Um observador, um
sonhador, o autor deste livro, que fora ver o vulcão de perto, viu-se preso
entre dois fogos. Para se proteger, das balas, tinha apenas as saliências das
meias colunas que separam as lojas; ficou perto de meia hora nessa
situação delicada.
Enquanto isso, soava o toque de chamada, os guardas nacionais
vestiam-se e armavam-se apressadamente, as legiões saíam das
repartições municipais, os regimentos saíam dos quartéis. Em frente, à
passagem de l’Ancre, um oficial tamborileiro recebia uma punhalada.
Outro, na rua du Cygne, era assaltado por uns trinta jovens que destruíram
seu tambor e pegaram seu sabre. Outro ainda era morto na rua Grenier–
Saint-Lazare. Na rua Michel-le-Comte, três oficiais caíam mortos, um
após o outro. Muitos guardas municipais feridos, na rua des Lombards,
retrocediam.
Em frente à Cour-Batave, um destacamento de guardas nacionais
encontrava uma bandeira vermelha com a seguinte inscrição: Revolução
republicana, número 127. Aquilo era de fato uma revolução?
A insurreição fizera do centro de Paris uma cidadela inextricável,
tortuosa, colossal.
Lá estava o foco, estava lá, evidentemente, a questão. Todo o resto não
era senão escaramuças. O que provava que tudo se resolveria ali era que,
nesse local, ninguém combatia ainda.
Em alguns regimentos, os soldados estavam indecisos, o que
aumentava a medonha obscuridade da crise. Eles se lembravam da ovação
popular que havia acolhido, em julho de 1830, a neutralidade do 53º
regimento de linha. Dois homens intrépidos e postos à prova por grandes
guerras, o marechal de Lobau e o general Bugeaud, comandavam, Bugeaud
sob Lobau. Enormes patrulhas, compostas de batalhões da tropa de linha,
cercadas por companhias inteiras da Guarda Nacional, e precedidas por um
comissário de polícia a tiracolo, faziam o reconhecimento das ruas
insurgentes. Por sua vez, os revoltosos postavam sentinelas pelas esquinas
das encruzilhadas, e audaciosamente enviavam patrulhas para fora das
barricadas. As duas partes se observavam. O governo, mesmo com um
exército à mão, hesitava; a noite ia caindo e começava-se a ouvir o toque
de recolher de Saint-Merry. ministro da Guerra naquela época, o marechal
Soult, que presenciara Austerlitz, olhava para aquilo com ar sombrio.
Esses velhos marinheiros, habituados a manobras corretas, e não tendo
como recurso e guia senão a tática, essa bússola das batalhas, ficam
completamente desorientados em presença dessa imensa espuma chamada
ira pública. O vento das revoluções não é manipulável.
As guardas nacionais dos subúrbios acorriam apressadamente e em
desordem. Um batalhão do 12° regimento ligeiro vinha em correria de
Saint-Denis; o 14° de linha chegava de Courbevoie; as baterias da Escola
Militar haviam tomado posição no Carroussel; canhões desciam de
Vincennes.
Nas Tulherias, a solidão grassava; Luís Filipe conservava-se em plena
serenidade.

V. ORIGINALIDADE DE PARIS
Em dois anos, como já dissemos, Paris tinha visto mais de uma
insurreição. Fora dos locais insurgentes, em geral nada é mais
estranhamente calmo que a fisionomia de Paris durante uma revolta. Paris
se acostuma muito rapidamente a tudo — afinal, não passava de uma
revolta — e Paris vive tão ocupada que não se incomoda por tão pouco.
Essas cidades colossais, somente elas podem oferecer tais espetáculos.
Somente esses imensos espaços podem conter, ao mesmo tempo, a guerra
civil e não se sabe que estranha tranquilidade. Habitualmente, quando a
insurreição começa, quando ouvem-se os tambores, o toque de chamada, o
toque de reunir, o comerciante limita-se a dizer:
— Parece que há desordem na rua Saint-Martin. Ou:
— É no bairro Saint-Antoine.
Com frequência acrescenta com indiferença: — Em algum lugar por
aí.
Mais tarde, quando se ouve distintamente o barulho rascante e lúgubre
da fuzilaria e do entusiasmo dos pelotões, o comerciante diz: — Então está
esquentando? Ora, está esquentando!
Um instante depois, se a revolta se aproxima e se espalha, ele fecha
precipitadamente seu comércio e se alista, quer dizer, coloca suas
mercadorias em segurança e arrisca a própria pessoa.
Fuzila-se nas esquinas, nas passagens, nos becos; tomam-se, perdem-
se e retomam-se as barricadas; o sangue escorre, o tiroteio criva as
fachadas das casas, as balas matam as pessoas em seus quartos, os
cadáveres atravancam as calçadas. A alguns quarteirões dali, ouve-se o
choque das bolas de bilhar dentro dos cafés.
Os teatros abrem suas portas e levam seus vaudevilles; os curiosos
conversam e riem a dois passos daquelas ruas plenas de guerra. As
carruagens circulam, as pessoas vão jantar na cidade, por vezes nos
próprios locais onde se trava combate. Em 1831, um tiroteio foi
interrompido para deixar passar um cortejo nupcial.
Por ocasião da insurreição de 12 de maio de 1839, na rua Saint–Martin,
um velho homem enfermo, puxando um carrinho de mão enfeitado com
um trapo tricolor, contendo garrafas cheias de um líquido qualquer, ia e
voltava da barricada à tropa e da tropa à barricada, oferecendo sua bebida,
imparcialmente, ora ao governo, ora à anarquia.
Nada é mais estranho; e é essa característica das revoltas de Paris que
não se encontra em nenhuma outra capital. Para tanto, seriam necessárias
duas coisas, a grandeza de Paris e sua alegria. Seriam necessárias a cidade
de Voltaire e a de Napoleão.
Desta feita, porém, quando as armas foram tomadas em 5 de junho de
1832, a grande cidade sentiu algo que talvez fosse mais forte do que ela.
Teve medo. Viam-se, por toda parte, mesmo nos bairros mais distantes e
mais “desinteressados”, portas, janelas e venezianas fechadas em pleno
dia. Os corajosos se armaram, os medrosos se esconderam. O passante
despreocupado ou atarefado desapareceu. Muitas ruas estavam tão vazias
quanto às quatro horas da manhã. Detalhes alarmantes eram espalhados,
notícias fatais eram divulgadas. Que eles tomaram conta do Banco; que, só
no Claustro de Saint-Merry, eram seiscentos, entrincheirados na igreja;
que a tropa de linha não estava segura; que Armand Carrel tinha ido falar
com o marechal Clausel e que o marechal dissera:
Arranjem primeiro um regimento; que Lafayette estava doente, mas
que assim mesmo lhes dissera: Estou às suas ordens. Vou segui-los por
toda parte onde houver lugar para uma cadeira; que era preciso ficar
atento, porque à noite haveria gente pilhando casas isoladas nos cantos
desertos de Paris (nisso reconhecia-se a imaginação da polícia, essa Anne
Radcliffe envolvida com o governo); que uma bateria se estabelecera na
rua Aubry-le-Boucher; que Lobeau e Bugeaud entravam em acordo e que,
à meia-noite, ou, mais tardar, ao amanhecer, quatro colunas marchariam
ao mesmo tempo sobre o centro da revolta, a primeira vindo da Bastilha, a
segunda da porta Saint-Martin, a terceira da Grève, a quarta dos mercados;
que, talvez, as tropas evacuassem Paris e se retirassem para o Champ-de-
Mars; que não se sabia o que estava para acontecer, mas que, certamente,
desta vez o negócio era sério. E havia preocupação quanto às hesitações do
marechal Soult. Por que razão ele não atacava imediatamente?
O certo é que ele estava profundamente preocupado. O velho leão
parecia farejar um monstro desconhecido naquela situação sombria.
Chegada a noite, os teatros não abriram; as patrulhas circularam com
aspecto irritado; revistavam os passantes; prendiam os suspeitos. Às nove
horas, havia mais de oitocentas pessoas presas; a delegacia de polícia
estava lotada, a Conciergerie10 lotada, a Force lotada. Na Conciergerie,
em particular, o longo subterrâneo denominado rua de Paris estava forrado
de fardos de palha sobre os quais amontoavam os prisioneiros, a quem
Lagrange, o homem de Lyon, arengava com valentia. Toda aquela palha,
revolvida por todos aqueles homens, fazia o barulho de uma tromba
d’água. Em outros lugares, os presos deitavam ao relento, uns por cima
dos outros, nos pátio, das cadeias. Havia ansiedade por toda parte, e um
certo temor, pouco habitual em Paris.
Nas casas, todos tratavam de se entrincheirar; as mulheres e as mães se
preocupavam; só se ouvia dizer: Oh! Meu Deus, ele ainda não voltou!
Raras vezes ouviam-se, ao longe, carruagens se deslocando; e, por trás
das portas, rumores, gritos, tumultos, ruídos surdos e indistintos dos quais
se dizia: É a cavalaria, ou: São as caixas de munição a galope; clarins,
tambores, tiroteios e, sobretudo, o lamentoso toque de chamada de Saint-
Merry. Esperava-se o primeiro tiro de canhão. Homens surgiam nas
esquinas e desapareciam gritando: “Voltem para suas casas!” E todos
corriam para trancar as portas. Todos se perguntavam: “Como isso vai
acabar?” A cada instante, à medida que a noite caía, Paris parecia colorir-
se cada vez mais lugubremente com o terrível reluzir da revolta.

__________________________
1 14 vindimiário (4 de outubro de 1795): fracasso, sob a artilharia de Bonaparte, de um golpe
de estado realista em Paris.
2 Abade Terray, ministro das Finanças, foi substituído por Turgot, célebre economista. Ramus,
humanista protestante, foi morto na Saint-Barthélemy (Noite de São Bartolomeu).
3 Miquelets — milícia espanhola; verdets — realistas responsáveis pelo Terror Branco;
cadenettes — integrantes da reação ao Termidor, entre os quais os compagnons de Jehu, que
militavam na região de Avignon; cavaleiros du brassard [braçadeira] — os mais exaltados
camaradas do duque de Angouleme.
4 “A indignação faz (o verso)”: extraído de um verso em que Juvenal (Sátiras) diz que a
indignação pode substituir o talento.
5 São João, exilado em Patmos, ali compôs o Apocalipse, profecia do Julgamento Final.
6 “Com o braço encolhido”; tem o sentido de bater forte — encolhe-se o braço para melhor
golpear. O pensamento de Tácito seria, então, de grande contundência.
7 Cidade situada na região central da França, onde ocorreu uma das últimas revoltas agrícolas
do país (Janeiro de 1847).
8 Do peito, do coração.
9 Em 1830, a flor-de-lis foi substituída pelo galo, o novo emblema nacional.
10 Prisão anexa ao Palácio de Justiça, em Paris.
LIVRO XI
O ÁTOMO FRATERNIZA COM A
TEMPESTADE

I. ALGUNS ESCLARECIMENTOS SOBRE AS ORIGENS


DA POESIA DE GAVROCHE. INFLUÊNCIA DE UM
ACADÊMICO SOBRE ESSA POESIA
NO MOMENTO em que a insurreição, surgindo do choque entre entre o
povo e a tropa diante do Arsenal, determinou um movimento de frente
para trás na multidão que seguia o carro fúnebre, e que ao longe de toda a
extensão dos bulevares, pesava, por assim dizer, sobre a cabeça do cortejo,
houve um medonho refluxo. A turba se agitou, as fileiras se romperam,
todos correram, partiram, debandaram, uns soltando gritos de ataque,
outros com a palidez da fuga. O grande rio que cobria os bulevares
dividiu-se num piscar de olhos, transbordou à direita e à esquerda,
espalhando-se em torrentes por duzentas ruas ao mesmo tempo, com o
jorro de uma eclusa que se tivesse rompido. Naquele momento, um
menino esfarrapado, que descia pela rua Ménilmontant trazendo na mão
um galho florido que acabara de colher nos altos de Belleville, viu na
vitrine de uma loja de antiguidades uma velha pistola. Jogou no chão o
galho florido, e disse à dona da loja:
— Dona “coisa”, estou pegando esse treco emprestado.
E saiu correndo com a pistola.
Dois minutos depois, uma onda de burgueses assustados, que fugia
pelas ruas Amelot e Basse, encontrou o menino brandindo sua pistola e
cantando:

La nuit on ne voit rien,


Le jour on voit très bien,
D’un écrit apocryphe
Le bourgeois s’ ébouriffe,
Pratiquez la vertu,
Tutu chapeau pointu!

De noite não se vê nada,


De dia se vê muito bem,
Com qualquer escrito apócrifo
O burguês se arrepia,
Pratique a virtude,
Tutu chapéu pontudo!

Era o pequeno Gavroche que ia para a guerra.


Chegando ao bulevar, percebeu que a pistola não tinha cão. Quem era o
autor dessa cantiga, que servia para pontuar sua marcha, e de todas as
outras canções que, nos momentos oportunos, ele gostava de cantar? Não
sabemos dizer. Quem saberia? Talvez fosse ele mesmo. Aliás, Gavroche
estava a par de toda a cantoria popular em voga, à qual misturava seu
próprio gorjeio. Danado e traquinas, fazia um pot-pourri das vozes da
natureza e das vozes de Paris. Combinava o repertório dos pássaros com o
repertório das oficinas. Conhecia novatos alunos de pintura, tribo contígua
à sua; passara, ao que parece, três meses como aprendiz tipógrafo. Certa
vez, levara um recado ao senhor Baour-Lormian, um dos membros da
Academia. Gavroche era um moleque letrado.
De resto, Gavroche nem desconfiava que, naquela horrível noite
chuvosa em que oferecera aos dois meninos a hospitalidade de seu
elefante, era para seus próprios irmãos que fizera ofício da Providência.
Seus irmãos à noite, seu pai ao amanhecer; eis como tinha sido sua noite.
Ao sair da rua des Ballets quando despontava o dia, retornara
apressadamente ao elefante, de onde artisticamente tirara os dois
pequenos, e com eles dividira uma comida qualquer que tinha inventado;
depois se foi, confiando-os a essa boa mãe, a rua, que praticamente o havia
criado. Ao deixá-los, marcou de encontrá-los novamente à noite, no
mesmo local, e, como adeus, fez-lhes o seguinte discurso: Estou dando no
pé, dito de outro modo, estou me mandando, ou, como dizem na corte, vou-
me. Crianças, se vocês não encontrarem papai e mamãe, voltem para cá à
noite. Eu arranjo algo para comerem e ponho vocês na cama. Os dois
meninos, recolhidos por algum guarda municipal e levados a uma
detenção provisória, ou roubados por algum saltimbanco, ou simplesmente
perdidos no imenso quebra-cabeça chinês de Paris, não voltaram. A
escória do atual mundo social está cheia desses rastros perdidos. Gavroche
não tornou a vê-los. Dez ou doze semanas se passaram depois daquela
noite. Ocorreu-lhe, mais de uma vez, de coçar a cabeça e se perguntar:
Onde diabos estão meus dois meninos?
Gavroche, então, havia chegado, pistola em punho, à rua Pont-aux–
Choux. Notou que nessa rua não havia mais que uma loja aberta, e coisa
digna de reflexão, era uma confeitaria. Era uma oportunidade providencial
de comer uma torta de maçã antes de entrar para o desconhecido.
Gavroche parou, apalpou-se, revistou os bolsos, não encontrou nada, nem
um soldo, e pôs-se a gritar: “Socorro!”
É duro perder um pedaço do doce supremo.
Nem por isso deixou de seguir seu caminho.
Dois minutos depois, achava-se na rua Saint-Louis. Ao atravessar a rua
Parc-Royal, sentiu necessidade de desforrar a torta de maçã impossível, e
deu-se a imensa volúpia de rasgar, em pleno dia, os cartazes do espetáculo.
Um pouco mais adiante, vendo passar um grupo de sujeitos saudáveis,
que lhe pareceram ser proprietários, levantou os ombros e cuspiu ao acaso,
à sua frente, este bocado de bílis filosófica:
— Esses ricaços, como são gordos! Se empanturram. Chafurdam em
fartos jantares. Perguntem a eles o que fazem de seu dinheiro. Não têm
ideia. Eles o comem, ora essa! A barriga que os carregue!

II. GAVROCHE EM MARCHA


A agitação de uma pistola sem gatilho, que se leva na mão em plena
rua, é de tal função pública que Gavroche sentia sua verve crescer a cada
passo. Ele gritava, entre os trechos da Marselhesa que ia cantando:
— Tudo vai bem. Tenho muita dor na pata esquerda, meu reumatismo
me incomoda, mas estou contente, cidadãos. Os burgueses só precisam
ficar tranquilos, vou espirrar em cima deles umas cantigas subversivas. O
que são os espiões? São uns cachorros. Caramba! Não se deve faltar com
respeito aos cães. Bem que eu gostaria de ter um na minha pistola. Estou
vindo do bulevar, meus amigos, o negócio está esquentando, começando a
ferver, cozinhando em fogo baixo. É hora de fazer alguma coisa. Avante,
homens que um sangue impuro inunde os campos!1 Dou meus dias pela
pátria, não tornarei a ver minha concubina, n-i-ni, fini, oui, Nini!, mas
tanto faz, viva a alegria! Ao combate, estou por aqui do despotismo!
Nesse instante, o cavalo de um lanceiro da Guarda Nacional que
passava caiu; Gavroche colocou sua pistola no chão, ergueu o homem,
depois o ajudou a erguer o cavalo. Em seguida, recolheu a arma e retomou
seu caminho.
Na rua de Thorigny, tudo era paz e silêncio. Essa apatia, própria do
Marais, contrastava com o vasto rumor dos arredores. Quatro comadres
conversavam à soleira de uma porta. A Escócia tem seus trios de
feiticeiras, mas Paris tem seus quartetos de comadres, e o “serás rei” seria
tão lugubremente dito a Bonaparte na encruzilhada de Baudoyer como a
Macbeth na charneca de Armuyr. Seria praticamente o mesmo grasnar.
As comadres da rua de Thorigny ocupavam-se apenas do que lhes dizia
respeito. Três eram porteiras e uma, catadora de lixo, com seu cesto e seu
gancho. Todas elas pareciam estar de pé nos quatro cantos da velhice, que
são a caducidade, a decrepitude, a ruína e a tristeza.
A catadora era humilde. Nessa sociedade ao desabrigo, as catadoras
saúdam, as porteiras protegem; atitudes relativas aos resíduos que as
zeladoras amontoam e querem ver no canto da porta, considerados mais ou
menos abundantes segundo o olhar de cada uma. Pode haver bondade em
uma vassoura.
Essa catadora era agradecida, ela sorria — e que sorriso! — para as
três porteiras. Diziam-se coisas como estas:
— E então, seu gato continua bravo?
— Os gatos, meu Deus, a senhora sabe que são naturalmente inimigos
dos cães. São estes que se queixam. — E as pessoas também.
— Mas as pulgas dos gatos não saltam nas pessoas.
— Não é esse o problema; os cães, isso é um perigo. Lembro de um
ano em que havia tantos cachorros que precisaram colocar o assunto nos
jornais. Era o tempo em que, nas Tulherias, havia uns carneiros muito
grandes que puxavam o carrinho do rei de Roma. Lembram-se do rei de
Roma?
— Eu preferia o duque de Bordeaux.
— Eu conheci Luís XVII. Gosto mais de Luís XVII.
— É a carne que está cara, mame Patagon!
— Ai! Nem me fale, o açougue está um horror. Um horror horrível. Só
nos dão réjouissance.2
Nesse ponto, a catadora interferiu:
— Minhas senhoras, o comércio vai mal. Os montes de lixo estão
muito ruins. Não jogam mais nada fora. Comem tudo.
— E tem gente mais pobre que a senhora, dona Vargoulême.
— Ah, isso é verdade — respondeu a catadora com deferência —,
tenho um meio de vida.
Seguiu-se uma pausa, e, cedendo a essa necessidade de ostentação que
está no fundo da natureza humana, ela acrescentou:
— Pela manhã, ao voltar para casa, despejo meu cesto e faço uma
triagem. Com isso, há vários montes no meu quarto. Coloco os trapos
numa cesta, os talos num balde, as roupas no meu armário, sobras de lã na
cômoda, os papéis velhos no canto da janela, o que ainda está bom para
comer na minha tigela, os pedaços de vidro na lareira, os chinelos atrás da
porta e os ossos debaixo da cama.
Gavroche, parado ali atrás, escutava.
Suas velhas — disse ele —, por que vocês têm que falar em política?
Recebeu um ataque composto de uma quádrupla saraivada de injúrias.
— Esse aí é mais um bandido!
O que então ele tem na mão? Uma pistola?
Já, já, você vai ver, seu moleque vadio!
Esse aí não tem sossego se não consegue derrubar a autoridade.
Como represália, Gavroche, desdenhoso, limitou-se a levantar a ponta
do nariz com o polegar enquanto abria o resto da mão.
A catadora de lixo gritou:
— Seu sem-vergonha vagabundo!
A que era chamada de mame Patagon bateu uma mão na outra fazendo
escândalo:
— Vai acontecer alguma desgraça, é certeza. O rapazinho aqui do lado,
aquele que tem uma barbicha, toda manhã eu o via passar de braços com
uma moçoila de chapéu cor-de-rosa; hoje o vi passando de braços com um
fuzil. mame Bacheux disse que, semana passada, houve uma revolução em
… em … em … onde mesmo? Em Pontoise. E agora, estão vendo esse aí,
com uma pistola, esse horror de moleque endiabrado! Parece que em
Célestins está cheio dc canhões. O que querem que o governo faça com
esses danados que não sabem mais o que inventar para atazanar todo o
mundo; quando a gente começava a ter um pouco de sossego, depois de
todas as desgraças que já aconteceram, Senhor meu Bom Deus, aquela
pobre rainha que eu vi passar na charrete! E tudo isso ainda vai fazer o
tabaco encarecer. É uma infâmia! E certamente hei de ver você na
guilhotina, seu malfeitor.
— Você está fungando, velhinha — disse Gavroche —, trate de assoar
seu promontório.
E seguiu em frente.
Quando chegou à rua Pavée, a catadora de lixo voltou-lhe à mente, e
então fez este solilóquio:
— A senhora está errada ao insultar os revolucionários, dona Monte–
de-Lixo. Esta pistola é em seu interesse, é para que tenha mais coisas boas
para comer em seu cesto.
De repente, ouviu um barulho atrás dele. Era a porteira Patagon que o
seguira, e que, de longe, mostrava-lhe o punho cerrado e gritava:
— Você não passa de um enjeitado!
— Estou me lixando profundamente para isso — disse Gavroche.
Pouco depois, passava diante do Palácio Lamoignon. Bem ali soltou
este brado:
— Em marcha para a batalha!
E então foi tomado por um acesso de melancolia. Olhou para sua
pistola com ar de censura, mas parecendo tentar consolá-la.
— Estou indo — disse-lhe —, mas você não vai.
Um cão pode fazer distrair de outro. Um cãozinho muito magro passou
por ali; Gavroche teve pena.
— Pobre Lulu - disse-lhe —, então quer dizer que você engoliu um
tonel, dá para ver todos os anéis.
Em seguida, encaminhou-se para Orme-Saint-Gervais.
III. JUSTA INDIGNAÇÃO DE UM CABELEIREIRO
O digno cabeleireiro, que havia expulsado os dois pequenos a quem
Gavroche abrira o paternal intestino do elefante, estava, nesse mesmo
momento, em seu estabelecimento, ocupado em barbear um velho soldado
legionário que servira na época do Império. Conversavam. O barbeiro
havia naturalmente falado ao veterano sobre a revolta, e também sobre o
general Lamarque, e, de Lamarque, chegaram ao imperador. Daí, então,
um diálogo entre barbeiro e soldado que, se Prudhomme presenciasse, por
certo o teria enriquecido com arabescos e intitulado: Diálogo da navalha e
do sabre.
— Senhor — dizia o barbeiro —, como é que o imperador montava a
cavalo?
— Mal. Não sabia cair. Mas também nunca caía.
— E tinha cavalos bonitos? Devia ter, não é!
— No dia em que ele me condecorou, reparei em seu animal.
Era uma égua de corrida, toda branca. Tinha as orelhas muito
separadas, o dorso profundo, a testa marcada com uma estrela preta, o
pescoço bem longo, a cabeça delgada, os joelhos fortemente articulados,
as costelas salientes, as espáduas oblíquas, as ancas potentes. Um pouco
mais de quinze palmos de altura.
— Belo cavalo — exclamou o cabeleireiro.
— Era o cavalo de Sua Majestade.
O cabeleireiro percebeu que, depois dessa frase, era conveniente ficar
um pouco em silêncio; foi o que fez, e depois continuou: — O imperador
só foi ferido uma vez, não é mesmo, senhor? O velho soldado respondeu
com o tom calmo e soberano de quem ali estivera:
— No calcanhar. Em Regensburg. Nunca o vi tão elegante como
naquele dia. Estava impecável.
— E o senhor, veterano, deve ter-se ferido muitas vezes? Eu? —
respondeu o soldado. — Ah! Nem tanto. Em Marengo loram dois golpes
de sabre na nuca; em Austerlitz, uma bala no braço direito; uma outra no
quadril esquerdo, em Iéna; em Friedland, um golpe de baionetada bem
aqui; em Moscou, sete ou oito golpes de lança, nem sei mais onde; em
Lutzen, um estilhaço de granada esmagou-me um dedo… Ah! E também
em Waterloo, um tiro de espingarda na coxa. Foi isso.
— Como é belo morrer no campo da batalha! — exclamou o
cabeleireiro com acento poético. — Palavra de honra que eu preferiria,
muito mais a morrer em uma cama, de uma doença, lentamente, um pouco
por dia, cheio de remédios, cataplasmas, seringas e toda a medicina, levar
uma bala de canhão na barriga!
— Não é difícil contentá-lo — respondeu o soldado.
Mal acabou de falar e um terrível estrondo estremeceu a barbearia. Um
vidro da frente acabava de quebrar-se bruscamente.
O cabeleireiro ficou lívido.
— Meu Deus! — exclamou ele. — É uma!
— Uma o quê?
— Uma bala de canhão!
— Ali está ela — disse o soldado.
E apanhou algo que rolava pelo chão. Era uma pedra.
O cabeleireiro foi até a vidraça quebrada e avistou Gavroche, que
corria a toda em direção ao mercado Saint-Jean. Ao passar pela barbearia,
Gavroche, que tinha os dois pequenos no coração, não conseguira resistir
ao desejo de dar-lhe bom-dia, e atirou uma pedra em sua vidraça.
— Está vendo! — gritou o barbeiro, que, de branco, ficara roxo.
— Esse aí faz o mal pelo mal. O que foi que eu fiz para esse moleque?

IV. A CRIANÇA SE ADMIRA COM O VELHO


No mercado Saint-Jean, porém, cujo posto da guarda já havia sido
desarmado, Gavroche acabava de efetuar sua junção a uma turma
conduzida por Enjolras, Courfeyrac, Combeferre e Feuilly; estes traziam
algumas armas. Bahorel e Jean Prouvaire os encontraram e engrossaram o
grupo. Enjolras tinha uma espingarda de caça de dois canos; Combeferre,
um fuzil de guarda nacional com um número da legião e, na cintura, duas
pistolas que seu casaco desabotoado deixava à mostra; Jean Prouvaire, um
velho mosquetão de cavalaria; Bahorel, uma carabina; Courfeyrac agitava
uma bengala de estoque. Feuilly, um sabre desembainhado em punho,
caminhava na frente, gritando:
— Viva a Polônia!
Eles vinham do cais Morland, sem gravatas, sem chapéus, esbaforidos,
molhados de chuva, brilho nos olhos. Gavroche abordou-os calmamente.
— Aonde vamos?
— Venha — disse Courfeyrac.
Atrás de Feuilly caminhava, ou melhor, saltava Bahorel, verdadeiro
peixe nas águas da revolta. Usava um colete vermelho e dizia dessas
palavras que colocam tudo abaixo. Seu colete incomodou um passante, que
gritou perturbado:
— Eis os vermelhos!
— O vermelho, os vermelhos! — replicou Bahorel. — Que medo
esquisito, burguês. Eu não tremo diante de uma papoula, Chapeuzinho
Vermelho não me causa nenhum pânico. Burguês, acredite, vamos deixar o
medo do vermelho aos animais de chifre!
Viu um canto de muro onde estava pregada a mais pacífica folha de
papel do mundo, uma permissão para comer ovos, pastoral de quaresma
dirigida pelo arcebispo de Paris a suas “ovelhas”.
Bahorel exclamou:
— Ovelhas; maneira educada de dizer imbecis.
E arrancou a pastoral do muro. Isso conquistou Gavroche, que, a partir
desse instante, pôs-se a estudar Bahorel.
— Bahorel — observou Enjolras —, você fez mal; deveria ter deixado
essa pastoral em paz, não é com ela que temos a ver, está gastando sua ira
inutilmente. Guarde sua provisão. Não se faz fogo fora das fileiras, nem
com a alma, nem com a espingarda.
— Cada um do seu jeito, Enjolras — retrucou Bahorel. Essa conversa
de bispo me choca, quero comer ovos sem precisar de permissão. Você faz
o gênero frio que queima; e eu, gosto de me divertir. Além disso, não estou
gastando nada, estou tomando ânimo; e se rasguei essa pastoral — Herle!
— é para dar apetite.
Esta palavra, Herle, impressionou Gavroche. Como aproveitava todas
as ocasiões para se instruir, e como aquele destruidor de cartazes tinha sua
estima, perguntou-lhe:
— O que quer dizer Herle?
— Quer dizer “santo nome de um cão”, em latim.
Nesse momento, Bahorel reconheceu, em uma janela, um jovem
pálido, de barba preta, que os olhava passar, provavelmente algum; amigo
do “ABC”. Gritou-lhe:
— Rápido, cartuchos! Para bellum.3
— Belo homem! É isso — disse Gavroche, que agora entendia o latim.
Um cortejo tumultuoso os acompanhava; estudantes, artistas, jovens
filiados à Cougourde de Aix, operários, trabalhadores do porto, todos se
armavam com bastões e baionetas; alguns, como Combeferre, com
pistolas enfiadas nas calças. Um homem, que parecia muito velho,
caminhava no meio dessa turma. Não tinha nenhuma; arma, e se apressava
para não ficar para trás, embora parecesse pensativo. Gavroche o notou.
— Keksekça? — perguntou a Courfeyrac.
— É um velho.
Era Mabeuf.

V. O VELHO
Contemos o que havia ocorrido.
Enjolras e seus amigos estavam no bulevar Bourdon, perto dos
celeiros, quando os dragões atacaram. Enjolras, Courfeyrac e Combeferre
eram dos que pegaram a rua Bassompierre, gritando: “Às barricadas!” Na
rua Lesdiguières, encontraram um velho caminhando.
O que lhes atraiu a atenção foi ver que o pobre homem andava em
ziguezague, como se estivesse embriagado. Além disso, trazia o chapéu na
mão, apesar de ter chovido a manhã inteira e de ainda chover forte naquele
momento. Courfeyrac reconheceu Pai Mabeuf. Ele o conhecia por ter
tantas vezes acompanhado Marius até sua porta. Sabendo dos hábitos
pacíficos e mais do que tímidos do velho tesoureiro, e espantado de vê-lo
em meio àquele tumulto, a dois passos das cargas da cavalaria, quase no
meio de um tiroteio, sem chapéu, na chuva, passeando entre as balas,
abordou-o; o revoltoso de vinte e cinco anos e o octogenário travaram o
seguinte diálogo:
— Senhor Mabeuf, volte para casa.
— Por quê?
— Porque vai haver barulho.
— Isso é bom.
— Golpes de sabre, tiros, senhor Mabeuf.
— Isso é bom.
— Tiros de canhão.
— Isso é bom. Aonde vocês vão?
— Vamos colocar o governo abaixo.
— Isso é bom.
E pusera-se a segui-los. Desde aquele momento, não dissera uma só
palavra. Seu andar tomara-se subitamente firme; alguns operários
ofereceram-lhe o braço, mas ele recusou com um aceno de cabeça.
Caminhava quase na primeira fileira da coluna, e tinha, ao mesmo tempo,
os movimentos de um homem que anda e o semblante de um homem que
dorme.
— Que velho danado! — murmuravam os estudantes. Corria no grupo
o boato de que era um antigo convencional, um velho regicida.
O numeroso grupo tomara a rua de la Verrerie. O pequeno Gavroche ia
na frente cantando a todo pulmão, o que fazia dele uma espécie de clarim.
Cantava assim:

Voici la lune qui paraêt,


Quand irons-nous dans la forêt?
Demandait Charlot à Charlotte.

Eis a lua que aparece,


Quando iremos à floresta?
Perguntava Charlot a Charlotte.

Tou tou tou


Pour Chatou.
Je n’ai qu’un Dieu, qu’un roi, qu’un liard et qu’une botte.

Tou tou tou


Para Chatou.
Só tenho um Deus, um rei, um tostão e uma bota.

Pour avoir bu de grand matin


La rosée à même le thym,
Deux moineaux étaient en ribote.

Por terem bebido muito cedo


O orvalho e também o tomilho,
Dois pardais estavam aos gracejos.

Zi zi zi
Pour Passy.
Je n’ai qu’un Dieu, qu’un roi, qu’un liard et qu’une botte.

Zi zi zi
Para Passy.
Só tenho um Deus, um rei, um tostão e uma bota.

Et ces deux pauvres petits loups


Comme deux grives étaient soûls;
Un tigre en riait dans sa grotte.

E aqueles dois pobres lobinhos


Embriagados como dois beberrões;
Ria disso um tigre em sua toca.

Don don don


Pour Meudon
Je n’ai qu’un Dieu, qu’un roi, qu’un liard et qu’une botte.

Don don don


Para Meudon.
Só tenho um Deus, um rei, um tostão e uma bota.

L’un jurait et l’autre sacrait.


Quand irons-nous dans la forêt?
Demandait Charlot à Charlotte.

Um jurava e o outro blasfemava.


Quando iremos à floresta?
Perguntava Charlot a Charlotte.

Tin tin tin


Pour Pantin.
Je n ‘ai qu‘un Dieu, qu‘un roi, qu‘un liard et qu‘une botte.

Tin tin tin


Para Pantin.
Só tenho um Deus, um rei, um tostão e uma bota.

Iam na direção de Saint-Merry.

VI. RECRUTAS
O grupo engrossava a cada instante. Próximo à rua des Billettes, um
homem alto, grisalho, cujo aspecto rude e audacioso fora notado por
Courfeyrac, Enjolras e Combeferre, mas que nenhum deles conhecia,
juntou-se a eles. Gavroche, ocupado em cantar, assobiar, cantarolar, andar
na frente, batendo nas portas dos estabelecimento, com a coronha da sua
pistola sem cão, não prestou atenção ao tal homem.
Ocorreu que, na rua de la Verrerie, passaram em frente à casa de
Courfeyrac.
— Isso é bom — disse Courfeyrac —, já que esqueci minha bolsa e
perdi meu chapéu.
Deixou o grupo e subiu correndo para seu quarto. Pegou um chapéu
velho e sua bolsa. Pegou também uma espécie de cofre quadrado, bastante
grande, do tamanho de uma boa mala, que estava escondido no meio da
roupa suja. Quando descia correndo, a porteira o chamou.
— Senhor de Courfeyrac!
— Dona porteira, como a senhora se chama? — retrucou Courfeyrac.
A porteira ficou abismada.
— Mas o senhor sabe muito bem, sou a zeladora, me chamo dona
Veuvain.
— Muito bem, se a senhora continuar me chamando de senhor de
Courfeyrac, vou chamá-la de dona de Veuvain. Agora diga, o que há? O
que acontece?
— Tem alguém que quer lhe falar.
— Quem é?
— Não sei.
— Onde?
— No meu quarto.
— Aos diabos! — exclamou Courfeyrac.
— Mas faz mais de uma hora que sua espera sua volta! — replicou a
porteira.
Ao mesmo tempo, uma espécie de jovem operário, magro, pálido,
baixo, cheio de sardas, usando uma blusa toda furada e uma calça de
veludo cheia de remendos, e que tinha mais a aparência de uma garota
vestida de rapaz que de um homem, saiu do quarto e perguntou a
Coufeyrac, com uma voz que, de forma alguma, era uma voz de mulher:
— O senhor Marius, por favor?
— Não está.
— Ele voltará esta noite?
— Não faço ideia — respondeu Coufeyrac, e acrescentou: — Quanto a
mim, não voltarei.
— O jovem encarou-o fixamente e perguntou-lhe:
— Por que não?
— Porque não.
— Para onde vai?
— Que importância tem isso para você?
— Quer que eu vá com o senhor?
— Se você quiser! — respondeu Coufeyrac. — A rua é livre, os
caminhos são de todo o mundo.
E saiu correndo para juntar-se novamente aos companheiros. Assim
que os encontrou, deu o cofre para que um deles carregasse. Só após um
quarto de hora reparou que o jovem, de fato, os acompanhava.
Um ajuntamento desses não vai precisamente para onde quer. Já
explicamos que um pé de vento pode carregá-lo. Eles passaram por Saint-
Merry e, sem saber muito bem como, foram parar na rua Saint-Denis.

__________________________
1 Adaptação de Gavroche de um verso da Marselhesa.
2 Parte de carne ruim ou pedaços de ossos que eram inclusos no pedido do freguês.
3 Do latim: “prepare para a guerra”.
LIVRO XII
CORINTHE

I. HISTÓRIA DA CORINTHE DESDE SUA FUNDAÇÃO


OS PARISIENSES que, nos dias de hoje, entrando na rua Rambuteau pelo
lado dos mercados, avistam à direita, em frente à rua Mondétour, uma loja
de artefatos de vime que tem como tabuleta um cesto na forma do
imperador Napoleão, o Grande, onde se lê esta inscrição:

NAPOLEÃO, TODO FEITO DE VIME

nem imaginam as cenas terríveis que esse mesmo local presenciou há


apenas trinta anos.
Ali se encontravam a rua de la Chanvrerie, que nos documentos
antigos se escrevia Chanverrerie, e a célebre taverna chamada Corinthe.
Vocês se lembram de tudo o que já foi dito a respeito da barricada
levantada naquele local e eclipsada, aliás, pela barricada de Saint-Merry. É
sobre essa famosa barricada da rua de la Chanvrerie, hoje mergulhada em
profunda escuridão, que vamos lançar um pouco de luz.
Que nos permitam recorrer, para clareza da narração, ao meio simples
que já empregamos em relação a Waterloo. As pessoas que quiserem
imaginar de um modo bastante exato os conjuntos de casas que existiam
naquela época perto da ponte Saint-Eustache, no ângulo nordeste dos
mercados de Paris, onde hoje desemboca a rua Rambuteau, precisam
apenas pensar em um N, cujas hastes verticais seriam a rua de la Grande-
Truanderie e a rua de la Chanvrerie, e, a haste transversal, a rua de la
Petite-Truanderie. A velha rua Mondétour cortava as três hastes formando
os ângulos mais tortuosos, tanto que o cruzamento confuso dessas quatro
ruas bastava para fazer, em um espaço de cem toesas quadradas,
compreendido entre os mercados e a rua Saint-Denis, de um lado, e entre a
rua du Cygne e a rua des Prêcheurs do outro, sete ilhotas de casas,
estranhamente talhadas, de tamanhos diversos, construídas de través e
como ao acaso, mal separadas, assim como blocos de pedra nos canteiros,
por fendas estreitas.
Dizemos fendas estreitas, e não poderíamos dar uma ideia mais justa
daquelas ruelas obscuras, apertadas, angulosas, ocupadas com casebres de
oito andares. Esses casebres estavam tão decrépitos que, nas ruas de la
Chanvrerie e de la Petite-Truanderie, as fachadas sustentavam-se em vigas
que iam de uma casa a outra. A rua era estreita e o canal largo; os
passantes caminhavam sobre um calçamento sempre molhado, beirando
lojas que pareciam porões, grandes marcos cercados de ferro, enormes
montes de lixo, entradas de alamedas guarnecidas com enormes grades
seculares. A rua Rambuteau devastou tudo isso.
O nome Mondétour pinta com perfeição as sinuosidades de todas
aquelas vielas. Um pouco mais adiante, elas eram ainda mais bem
expressas pela rua Pirouette, que se lançava na rua Mondétour.
O passante que ia da rua Saint-Denis à rua de la Chanvrerie via que ela
se estreitava pouco a pouco à sua frente; era como se tivesse entrado em
um funil alongado. Na extremidade da rua, que era bem curta, encontrava
a passagem barrada no sentido dos mercados por uma alta fileira de casas,
e acreditaria estar em um beco sem saída se não percebesse, tanto à direita
como à esquerda, dois vãos negros por onde podia escapar. Era a rua
Mondétour, que, de um lado, ia encontrar a rua des Prêcheurs e, do outro, a
rua du Cygne e a Petite-Truanderie. No fundo dessa espécie de beco, no
ângulo do vão da direita, notava-se uma casa menos elevada que as outras,
formando um tipo de cabo sobre a rua.
Era nessa casa, com dois andares apenas, que estava alegremente
instalada, havia uns trezentos anos, uma ilustre taverna. Essa taverna
produzia um alegre ruído no exato local assinalado pelo velho Théophile1
nestes dois versos:

Là branle le squelette horrible


D’un pauvre amant qui se pendit.

Aqui balança o horrível esqueleto


De um pobre amante que se enforcou.

O lugar era bom, os taverneiros ali se sucediam de pai para filho.


No tempo de Mathurin Régnier, essa taverna se chamava Pot-aux-
Roses [Vaso de Rosas], e, como a moda eram os rébus,2 tinha como
insígnia um poste cor-de-rosa.
No século passado, o digno Natoire,3 um dos mestres do fantástico,
hoje desdenhado, tendo-se embebedado várias vezes nessa taverna, na
mesma mesa em que se embebedara Régnier, havia pintado, por gratidão,
um cacho de uvas de Corinto no poste cor-de-rosa. O taverneiro, de tão
contente, mudou sua insígnia e mandou pintar em dourado, abaixo do
cacho de uvas, estas palavras: au Raisin de Corinthe [ao Uvas de Corinto].
Veio daí esse nome, Corinthe. Nada mais natural para os bêbados do que
as elipses. A elipse é o ziguezague da frase. Pouco a pouco, Corinthe
destronou Pot-aux-Roses. O último proprietário da dinastia, Pai
Hucheloup, desconhecendo a tradição, mandara pintar o poste de azul.
Uma sala embaixo, onde ficava o balcão; uma sala no primeiro andar,
onde ficava o bilhar; uma escada de madeira em espiral, passando através
do teto; vinho em cima das mesas, fumaça cobrindo as paredes, velas
acesas em pleno dia; assim era a tal taverna. Uma escada com alçapão, na
sala de baixo, levava ao porão. No andar superior ficavam os aposentos
dos Hucheloup. Subia-se ali por uma escadinha, e a entrada não passava de
uma porta escondida na grande sala do primeiro andar. Abaixo do telhado,
dois sótãos serviam de quarto das criadas. A cozinha dividia a parte térrea
com a sala do balcão.
Pai Hucheloup talvez tivesse nascido químico, mas o fato é que se
tornara cozinheiro; não só se bebia como também se comia em sua
taverna. Hucheloup inventara uma coisa excelente, carpas recheadas, que
ele chamava carpes au gras, que se comiam à luz de uma vela de sebo ou
de um candeeiro do tempo de Luís XVI, em mesas cobertas com tecido
encerado à guisa de toalha. As pessoas vinham de longe. Uma bela manhã,
Houcheloup achou por bem advertir os passantes sobre sua
“especialidade”; molhou um pincel em tinta preta, e como tinha uma
ortografia própria, do mesmo modo que tinha uma culinária toda sua,
improvisou na parede esta notável inscrição:

CARPES HO GRAS

Certo inverno, os temporais e o granizo tiveram a veleidade de apagar


o S que terminava a primeira palavra e o G que começava a terceira,
restando isto:

CARPE HO RAS4

Com a ajuda da chuva e do tempo, um humilde anúncio gastronômico


transformara-se em um conselho profundo.
Assim, aconteceu que, não sabendo bem o francês, Pai Hucheloup
soube o latim, que fizera sair da cozinha da filosofia, e que, querendo
simplesmente suplantar Carême,5 igualara Horácio. E o mais notável era
que aquilo também queria dizer: “Entrem em minha taverna”.
Hoje, nada disso existe. O labirinto Mondétour foi rasgado e
amplamente aberto a partir de 1847, e, provavelmente, a essa altura, já
nem exista. A rua de la Chanvrerie e a Corinthe desapareceram sob o
calçamento da rua Rambuteau.
Como já dissemos, a Corinthe era um dos locais de encontro, para não
dizer de reunião, de Courfeyrac e seus amigos. Foi Grantaire quem
descobriu a Corinthe. Entrara ali por causa do Carpe Ho ras e retornara
por causa do Carpes au Gras. Ali bebia-se, comia-se, gritava-se, pagava-se
pouco, pagava-se mal, não se pagava, era-se sempre bem-vindo. Pai
Hucheloup era boa pessoa.
Hucheloup, homem bom, como acabamos de dizer, era um taverneiro
com bigodes; variedade divertida. Tinha sempre ar de mau humor, parecia
querer intimidar os fregueses, resmungava com as pessoas que entravam
em sua casa, parecendo disposto mais a procurar encrenca do que a servir-
lhes a sopa. No entanto, mantemos a palavra, todos eram sempre bem-
vindos. Esse jeito estranho atraíra fregueses a seu estabelecimento, ali
trazendo jovens que diziam entre si: “Vamos ver Pai Hucheloup
resmungar”.
Havia sido mestre de armas. De repente, desatava a rir. Voz grossa, o
bom diabo. Era um fundo cômico com uma aparência trágica; não queria
nada mais que botar medo; mais ou menos como essas caixas de rapé que
têm a forma de uma pistola. A detonação é um espirro.
Sua mulher, Mãe Hucheloup, era uma criatura barbada, muito feia.
Por volta de 1830, Pai Hucheloup morreu. Com ele desapareceu o
segredo das carpas recheadas. Sua viúva, mulher pouco consolável,
continuou tocando a taverna. Mas a cozinha degenerou-se e tornou-se
execrável; o vinho, que sempre fora ruim, ficou medonho. No entanto,
Courfeyrac e seus amigos continuaram frequentando a Corinthe, por
compaixão, dizia Bossuet.
A viúva Hucheloup era disforme, tinha falta de ar e muitas recordações
campestres. Tirava delas a insipidez com seu modo de falar. Tinha um
jeito próprio de dizer as coisas, o que temperava suas reminiscências
campesinas e primaveris. Outrora, sua felicidade, afirmava ela, era ouvir
os “goela-de-passarim cantar nos burganviles”.
A sala do primeiro andar, onde ficava o “restaurante”, era um amplo e
extenso cômodo repleto de banquinhos, banquetas, cadeiras, bancos e
mesas, juntamente com um velho bilhar manco. Chegava-se ali pela
escada em espiral, que dava para um canto da sala, com uma abertura
quadrada, semelhante a uma escotilha de navio.
Essa sala, iluminada por uma única janela estreita e por um candeeiro
sempre aceso, parecia um lugar miserável. Todos os móveis de quatro pés
se comportavam como se tivessem três.
As paredes, brancas de cal, tinham como único ornamento esta quadra
em homenagem a mame Hucheloup:

Elle étonne à dix pas, elle épouvante à deux,


Une verrue habite en son nez hasardeux;
On tremble à chaque instant qu’elle ne vous le mouche,
Et qu’un beau jour son nez ne tombe dans sa bouche.

A dez passos ela impressiona, a dois ela assusta,


Uma verruga habita seu nariz arrojado;
A cada instante dá medo que ela o assoe,
E que um belo dia ele lhe caia dentro da boca.

Isso fora escrito com carvão sobre a parede.


Mame Houcheloup, parecida com essa descrição, ia e vinha diante
dessa quadra, da manhã à noite, na maior tranquilidade. Duas criadas,
chamadas Matelote e Gibelotte,6 de quem nunca se conheceram outros
nomes, ajudavam mame Hucheloup a colocar sobre as mesas os canjirões
de vinho da casa e os variados angus, que serviam aos famintos em tigelas
de barro. Matelote, baixa, gorda, ruiva e tagarela, antiga amante favorita
do falecido Hucheloup, era mais feia do que qualquer monstro mitológico;
porém, como convém que a criada sempre fique atrás da ama, ela era
menos feia que mame Hucheloup. Gibelotte, alta, delicada, branca de uma
brancura linfática, olheiras, pálpebras caídas, sempre cansada e exausta,
atacada pelo que poderia ser chamado de fadiga crônica, primeira a
levantar, última a deitar, servia todo o mundo, inclusive a outra criada, em
silêncio e com amabilidade, sorrindo sob o cansaço com uma espécie de
vago sorriso adormecido.
Antes de entrar na sala-restaurante, lia-se na porta este verso escrito
com giz por Courfeyrac:

Régale si tu peux et mange si tu l’oses.7

Regala-te se puderes e come se ousares.

II. ALEGRIAS PRELIMINARES


Laigle de Meaux, como sabemos, morava mais na casa de Joly do que
em qualquer outro lugar. Ele tinha uma casa do mesmo modo que os
pássaros têm um ramo. Os dois amigos viviam juntos, comiam juntos,
dormiam juntos. Tudo entre eles era comum, até mesmo, um pouco,
Musichetta. Eram o que, entre os frades chapeaux, se chamava bini.8 Na
manhã de 5 de junho, foram à Corinthe para comer. Joly, resfriado e
fanhoso, tinha muita coriza, e Laigle começava a partilhá-la. A roupa de
Laigle estava surrada, mas Joly estava bem vestido.
Eram aproximadamente nove horas da manhã quando empurraram a
porta da Corinthe. Subiram ao primeiro andar.
Matelote e Gibelotte os receberam.
— Ostras, queijo e presunto — disse Laigle. E sentaram-se.
A taverna estava vazia; só havia os dois ali.
Gibelotte, reconhecendo Joly e Laigle, colocou uma garrafa de vinho
na mesa.
Quando estavam nas primeiras ostras, uma cabeça apareceu na
escotilha da escada, e uma voz disse:
— Eu estava passando. Senti da rua um delicioso odor de queijo de
Brie. E entrei.
Era Grantaire.
Grantaire pegou uma banqueta e sentou-se.
Gibelotte, vendo Grantaire, colocou duas garrafas de vinho na mesa.
Já eram três.
— Você vai beber essas duas garrafas? — perguntou Laigle a
Grantaire.
— Todos são engenhosos, só você é ingênuo. Duas garrafas nunca
assustaram um homem.
Os outros começaram comendo, Grantaire começou bebendo. Meia
garrafa foi rapidamente engolida.
— Você tem um buraco no estômago? — tornou Laigle.
— Você é que tem um no cotovelo — respondeu Grantaire.
E, depois de esvaziar o copo, acrescentou:
— É mesmo, Laigle das orações fúnebres, sua roupa está velha.
— Suponho que sim — replicou Laigle. — Por isso fazemos boa
dupla, eu e meu casaco. Ele ficou com todas as minhas rugas, não me
constrange em nada, moldou-se às minhas deformidades, é
condescendente com todos os meus movimentos; só o sinto porque me
mantém aquecido. Roupas velhas são como os velhos amigos.
— Isso é verdade — exclamou Joly entrando no diálogo —, un viel
habit est un viel abi.9
— Principalmente na boca de um homem com o nariz entupido —
respondeu Grantaire.
— Grantaire, você está chegando do bulevar? — perguntou Laigle.
— Não.
— Eu e Joly acabamos de ver passar a frente do cortejo.
— É um espetáculo baravilhoso — disse Joly.
— Como essa rua está tranquila! — exclamou Laigle. — Quem diria
que Paris está de cabeça para baixo! Agora se vê que antigamente tudo por
aqui era convento! Du Breul e Sauval podem dar a lista deles, e o abade
Lebeuf também. Aqui em volta havia muitos, isso formigava de calçados,
descalços, tonsurados, barbudos, pardos, negros, brancos, franciscanos,
mínimos, capuchinhos, carmelitas, agostinianos menores, agostinianos
maiores, velhos agostinianos… Pululavam.
— Não vamos falar de padres — interrompeu Grantaire —, isso dá
coceira.
Em seguida exclamou:
— Bah! Acabo de comer uma ostra ruim. Aí está a hipocondria me
pegando novamente. As ostras estão estragadas, as criadas são feias. Eu
odeio a espécie humana. Passei ainda agora pela enorme livraria pública
na rua Richelieu. Aquele monte de conchas de ostras chamado biblioteca,
me dá desgosto só de pensar. Quanto papel! Quanta tinta! Quanto rabisco!
Escreveram tudo aquilo! Quem foi o patife que disse que o homem era um
bípede sem penas? Além disso, encontrei uma moça que conheço, bela
como a primavera, digna de se chamar Floréal, encantada, extasiada, feliz,
nas alturas, a miserável, porque ontem um medonho banqueiro, todo
marcado pela varíola, dignou-se interessar-se por ela! Ai! As mulheres
estão de olho em cuidados e galanteios; gatas, que tanto caçam ratos como
pássaros. Não faz dois meses, essa donzela vivia discretamente em uma
água-furtada, colocando argolinhas de cobre em espartilhos, como é
mesmo que isso se chama? Ela costurava, tinha uma cama de lona, morava
junto a um vaso de flores, vivia contente. Agora virou banqueira! Essa
transformação aconteceu esta noite. Encontrei a vítima de manhã, toda
feliz. O que é horrível é que a esperta estava tão bonita hoje quanto ontem.
Seu financiador não marcou presença em seu rosto. As rosas têm como
vantagem, ou desvantagem, em relação às mulheres, que as marcas nelas
deixadas pelas lagartas são visíveis. Oh! Não há moral sobre a terra, como
atestam a murta, símbolo do amor, o louro, símbolo da guerra, a oliveira,
essa coisa besta, símbolo da paz, a macieira, que quase sufocou Adão com
sua semente, e a figueira, avó das saias. Quanto ao direito, querem saber o
que é o direito? Os gauleses cobiçam Cluse, Roma protege Cluse, e
pergunta aos gauleses que mal lhes fez Cluse. Breno responde: “O mesmo
mal que Alba fez a vocês, o mesmo mal que Fidenes fez a vocês, o mesmo
mal que os équos, os volscos e os sabinos fizeram a vocês. Eram seus
vizinhos. Os clusianos são nossos vizinhos. Entendemos vizinhança da
mesma forma que vocês; se roubaram Alba, nós tomamos Cluse”. Roma
disse: “Não tomarão Cluse”. Mas Breno tomou Roma, e depois gritou: Vae
victis.10 Eis o que é o direito. Ah! Neste mundo, como há aves de rapina!
Quantos gaviões! Isso me dá medo.
Estendeu o copo a Joly, que o encheu, bebeu e prosseguiu, quase sem
ser interrompido por esse copo de vinho, do qual ninguém se deu conta,
nem ele mesmo:
— Breno, que tomou Roma, é um gavião; o banqueiro, que ficou com a
costureira, é um gavião. O pudor não é maior aqui do que lá. Portanto, não
acreditemos em nada. Só existe uma realidade: beber. Qualquer que seja
sua opinião, a favor do galo magro ou do cantão de Uri, ou a favor do galo
gordo ou do cantão de Glaris, pouco importa, bebam! Vocês me
perguntaram do bulevar, do cortejo, et coetera. Então, quer dizer que ainda
vai haver uma revolução? Essa indigência de meios por parte do bom Deus
me espanta. A todo instante, ele precisa tornar a untar o encaixe dos
acontecimentos. Tudo emperra, a coisa não vai para frente. Rápido, uma
revolução! O bom Deus está o tempo todo com as mãos pretas desse sebo
horrível. No lugar dele, eu simplificaria; não tornaria, cada vez, a montar
minha mecânica, tocaria o gênero humano sem hesitação, tricotaria os
fatos malha por malha, sem romper os fios, não teria nenhum expediente
para imprevistos, nem repertórios extraordinários. O que vocês chamam
de progresso funciona com dois motores, os homens e os acontecimentos.
Mas, coisa triste, de tempos em tempos, o excepcional se faz necessário.
Tanto para os homens como para os acontecimentos, a trupe comum não
basta; entre os homens, é preciso haver gênios, e entre os acontecimentos,
revoluções. Os grandes acidentes são a lei; a ordem das coisas não pode
prescindir deles; e, em vista da aparição de cometas, seríamos tentados a
crer que até mesmo o céu precisa de atores para suas representações.
Quando menos se espera, Deus prega um meteoro na muralha do
firmamento. Uma estrela esquisita surge, sublinhada por uma cauda
enorme. Isso faz César morrer. Brutus o ataca com um punhal, e Deus com
um cometa. Zás! Eis uma aurora boreal, eis uma revolução, eis um grande
homem; 1793 em grandes letras, Napoleão em destaque, o cometa de 1811
no topo do cartaz. Ah! O belo cartaz azul, todo cravejado de fulgores
inesperados! Bum! Bum! Espetáculo extraordinário. Levantem os olhos,
palermas. Tudo está desgrenhado, tanto o astro como o drama. Bom Deus,
é demais, e não é o bastante. Esses recursos, tirados da exceção, parecem
magnificência, mas são pobreza. Meus amigos, a Providência está
reduzida aos expedientes. Uma revolução prova o quê? Que Deus está na
penúria. Dá um golpe de Estado porque há solução de continuidade entre o
presente e o futuro, e porque ele, Deus, não conseguiu equilibrar o
orçamento. Na verdade, isso confirma minhas conjecturas sobre a situação
da fortuna de Jeová; e, em vista de tanto apuro, lá em cima e cá embaixo,
de tanta mesquinharia e avareza e sovinice e miséria, no céu como na
terra, desde a ave, que não tem um grão de quirera, até mim, que não tenho
cem mil libras de renda; em vista do destino humano, bastante
deteriorado, e até do destino real, em situação embaraçosa, como
testemunha o príncipe de Condé enforcado; em vista do inverno, que nada
mais é do que um rasgo no zênite por onde o vento sopra; em vista de
tantos farrapos, mesmo na púrpura novinha em folha da manhã, no alto das
colinas; em vista das gotas de orvalho, essas pérolas falsas; em vista da
geada, esse diamante fingido; em vista da humanidade esfarrapada e dos
acontecimentos remendados; e de tantas manchas no sol, e de tantos
buracos na lua; e em vista de tanta miséria por toda parte, suspeito que
Deus não seja rico. Aparenta ser, é verdade, mas percebo suas
dificuldades. Dá então uma revolução, do mesmo modo que um
negociante, cujo caixa está vazio, esbraveja. Não se deve julgar os deuses
pela aparência. Sob o dourado do céu, entrevejo um universo pobre. Até na
criação há bancarrota. Por isso estou descontente. Vejam vocês, hoje é
cinco de junho, já é quase noite; desde esta manhã espero que o dia
chegue, e ele não chega, e aposto que não vai chegar. É uma falta de
pontualidade de caixeiro mal pago. Sim, está tudo mal organizado, nada se
ajusta a nada, esse velho mundo está completamente empenado, vou me
encaixar na oposição. Tudo anda torto; o universo está implicante. É como
os filhos: os que os desejam, não os têm, os que não os desejam, os terão.
Em suma: isso me irrita. Além do mais, me dá aflição ver Laigle de
Meaux, esse careca. Fico humilhado de pensar que sou da mesma idade
que esse “joelho”. De resto, eu critico, mas não insulto. O universo é
aquilo que é. Falo aqui sem más intenções e para desencargo da minha
consciência. Recebei, Padre Eterno, os protestos de minhas sinceras
considerações. Oh! Por todos os santos do Olimpo e por todos os deuses do
paraíso, não nasci para ser parisiense, isto é, para ricochetear para sempre,
como uma bolinha entre duas raquetes, do grupo dos ociosos para o grupo
dos arruaceiros. Fui feito para ser turco, para ficar o dia inteiro vendo
sirigaitas orientais executando aquelas exóticas danças do Egito, lúbricas
como os sonhos de um homem casto, ou então para ser um camponês da
Beócia, ou um fidalgo veneziano, rodeado de damas gentis, ou um
principezinho alemão, contribuindo com metade de um soldado para a
Confederação Germânica e ocupando as horas de lazer em secar as meias
em cima da sebe, isto é, nas próprias fronteiras! Esses são os destinos para
os quais nasci! Turco, eu disse, e não me desdigo. Não entendo por que
habitualmente levam os turcos a mal; Maomé tem coisas boas; muito
respeito ao inventor dos palácios cheios de mulheres e dos paraísos de
odaliscas! Não insultemos o maometismo, única religião ornada por um
galinheiro! Dito isso, insisto, vamos beber. A terra é uma grande tolice. E
parece que vão combater, todos esses imbecis; vão quebrar-se a cara,
massacrar-se, em pleno verão, no mês de junho, enquanto poderiam ir, de
braços com alguém, respirar nos campos a imensa chávena de chá das
ervas ceifadas! Realmente, fazemos tolices demais! Uma velha lanterna
quebrada, que há pouco vi em um ferro-velho, me sugere uma reflexão: já
é tempo de o gênero humano ser iluminado. Pronto, agora estou triste!
Vejam o que causa engolir uma ostra e uma revolução de través! Estou
lúgubre outra vez. Oh! O terrível velho mundo! Aqui nos esforçamos, nos
privamos, nos prostituímos, nos matamos, nos habituamos!
E, após esse acesso de eloquência, Grantaire teve um acesso de tosse,
bem merecido.
— A propósito de revolução — disse Joly —, parece que,
decididabente, Barius está enaborado.
— Sabem de quem? — perguntou Laigle.
— Dão.
— Não?
— Dão, estou dizendo.
— Os amores de Marius! — exclamou Grantaire. — Posso ver daqui.
Marius é um nevoeiro, e deve ter encontrado algum vapor. Marius é da
raça poeta. Quem diz poeta, diz louco. Timbraeus Apollo.11 Marius e sua
Marie, ou sua Maria, ou sua Mariette, ou sua Marion, devem formar uma
curiosa dupla de amantes. Imagino como pode ser isso. Êxtases em que se
esquece o beijo. Castos sobre a terra, mas unidos no infinito. Almas
dotadas de sensibilidade. Dormem juntos nas estrelas.
Grantaire ia começar sua segunda garrafa, e talvez sua segunda arenga,
quando um novo ser emergiu da abertura quadrada da escada. Era um
garoto com menos de dez anos, esfarrapado, bem pequeno, amarelado,
rosto afilado, olhos vivos, cabeludo, molhado de chuva, mas parecendo
contente.
Escolhendo entre os três sem hesitar, embora, evidentemente, não
conhecesse nenhum deles, dirigiu-se a Laigle de Meaux.
— Será que o moço é o senhor Bossuet? — perguntou.
— É meu apelido — respondeu Laigle —; o que quer comigo?
— É o seguinte: um loiro alto, lá no bulevar, me disse: “Conhece Mãe
Hucheloup?” Eu disse: “Conheço, na rua de la Chanvrerie, a viúva do
velho”. Aí ele me disse: “Vá até lá; você vai encontrar o senhor Bossuet, e
vai lhe dizer de minha parte: A-B-C”. É alguma brincadeira com o senhor,
não é? Ele me deu dez soldos.
—Joly, empreste-me dez soldos — disse Laigle; e voltando-se para
Grantaire: — Grantaire, empreste-me mais dez soldos.
Somaram vinte soldos, que Laigle deu ao garoto.
— Obrigado, senhor — disse o menino.
— Como você se chama? — perguntou Laigle.
— Navet, o amigo de Gavroche.
— Fique conosco — disse Laigle.
— Almoce com a gente — acrescentou Grantaire.
O menino respondeu:
— Não posso, faço parte do cortejo, sou eu que grito: abaixo Polignac!
E, estendendo longamente um dos pés para trás, o que é a mais
respeitosa possível das saudações, foi-se embora.
Assim que saiu, Grantaire tomou a palavra:
—Esse é o puro moleque. Há muitas variedades no gênero moleque. O
moleque tabelião se chama saute-ruisseau, o moleque cozinheiro se chama
marmiton, o moleque padeiro se chama mitron, o moleque criado se chama
groom, o moleque marinheiro se chama mousse, o moleque soldado se
chama tapin, o moleque pintor se chama rapin, o moleque negociante se
chama trottin, o moleque cortesão se chama menin, o moleque rei se
chama dauphin, o moleque deus se chama bambino.
Enquanto isso, Laigle meditava. Disse a meia voz:
— A-B-C quer dizer: “Enterro de Lamarque”.
— O loiro alto — observou Grantaire — é Enjolras, mandando avisá-
lo.
— E nós vamos? — disse Bossuet.
— Está chovendo — disse Joly —, eu jurei ir ao fogo e dão à água.
Dão quero be constipar.
— Vou ficar aqui — disse Grantaire —; prefiro um almoço a um carro
de defunto.
— Conclusão: nós ficamos — tornou Laigle. — Pois bem, então
bebamos. Além disso, podemos faltar ao enterro sem faltar à revolta.
— Ah! Da revolta quero participar — exclamou Joly.
Laigle esfregou as mãos:
— Então quer dizer que a revolução de 1830 vai ser aperfeiçoada. Na
verdade ela deixa o povo pouco à vontade.
— Para mim, praticamente tanto faz, essa sua revolução — disse
Grantaire. — Não execro este governo. É a coroa temperada pelo boné de
algodão. É um cetro que termina como um guarda-chuva. Na verdade,
hoje, estou pensando, com o tempo que está fazendo, Luís Filipe poderá
utilizar sua realeza para dois fins: estender a ponta cetro contra o povo e
abrir a ponta guarda-chuva contra o céu.
A sala estava escura, grandes nuvens acabavam de suprimir a luz do
dia. Não havia ninguém na taverna, nem na rua; todos tinham ido “ver os
acontecimentos”.
— É meio-dia ou meia-noite? — exclamou Bossuet. — Não se vê um
palmo diante do nariz. Gibelotte, luz!
Grantaire, triste, bebia.
— Enjolras me despreza — murmurou ele. — Enjolras pensou: Joly
está doente, Grantaire está bêbado. Então foi a Bossuet que enviou Navet.
Se ele tivesse vindo me procurar, eu o teria acompanhado. Azar dele! E
não irei a seu enterro.
Tomada essa resolução, Bossuet, Joly e Grantaire não saíram mais da
taverna. Por volta das duas horas da tarde, a mesa que ocupavam estava
coberta de garrafas vazias. Duas velas ardiam, uma em um castiçal de
cobre inteiramente verde, outra no gargalo de uma garrafa quebrada.
Grantaire arrastara Joly e Bossuet para o vinho; Bossuet e Joly
puxaram Grantaire de volta à alegria.
Quanto a Grantaire, desde meio-dia já ia além do vinho, essa medíocre
fonte de sonhos. O vinho, entre os bêbados sérios, não alcança mais que
um êxito afetivo. Em matéria de embriaguez, existe uma magia preta e
uma magia branca; o vinho não passa da magia branca. Grantaire era um
ousado bebedor de sonhos. A escuridão de uma temerosa bebedeira
entreaberta diante dele, longe de o fazer parar, o atraía. Deixara as garrafas
de lado e passara ao caneco. O caneco é o abismo. Não tendo à mão nem
ópio nem haxixe, e querendo encher o cérebro de crepúsculo, recorrera à
medonha mistura de aguardente, cerveja e absinto, que produz terríveis
letargias. É destes três vapores, cerveja, aguardente e absinto, que é feito o
chumbo da alma. São três trevas; a borboleta celeste se afoga aí; formam-
se aí, em meio a uma fumaça membranosa vagamente condensada em asa
de morcego, três fúrias mudas, o pesadelo, a escuridão e a morte,
esvoaçando acima da Psique adormecida.
Grantaire ainda não tinha chegado a essa fase lúgubre, longe disso.
Estava admiravelmente alegre, e Bossuet e Joly faziam-lhe a réplica.
Brindavam. Grantaire juntava à entonação excêntrica das palavras e das
ideias a divagação do gesto; apoiava com dignidade o punho esquerdo no
joelho, formando com o braço um ângulo reto, e, gravata desatada, a
cavalo sobre uma banqueta, copo cheio na mão direita, lançava à gorda
criada Matelote estas solenes palavras:
— Que as portas do palácio sejam abertas! Que todo o mundo seja da
Academia Francesa e tenha o direito de abraçar madame Hucheloup!
Bebamos!
E voltando-se para mame Hucheloup, acrescentava:
— Mulher antiga e consagrada pelo uso, aproxima-te que te
contemplo!
E Joly exclamava:
— Batelote e Gibelotte, dão deem bais vinho a Grantaire. Está
gastando um dinheirão. Desde esta banhã ele já devorou em loucas
prodigalidades dois francos e noventa e cinco cêntibos.
E Grantaire retomava:
— Mas quem foi que despregou as estrelas sem minha permissão, para
colocá-las em cima da mesa feito velas?
Bossuet, muito embriagado, conservava sua calma.
Sentara-se no peitoril da janela aberta, deixando-se molhar nas costas
pela chuva que caía, e contemplava seus dois amigos.
De repente, ouviu um tumulto atrás de si, passos precipitados, gritos de
às armas! Virou-se e avistou, na rua Saint-Denis, na extremidade da rua de
la Chanvrerie, Enjolras, que passava com uma carabina na mão, e
Gavroche com sua pistola, Feuilly com seu sabre, Courfeyrac com sua
espada, Jean Prouvaire com seu mosquetão, Combeferre com sua
espingarda, Bahorel com seu fuzil, e todo aquele ajuntamento armado e
tempestuoso que os seguia.
A rua de la Chanvrerie não era mais longa que o alcance de um tiro de
carabina. Bossuet improvisou, com as duas mãos em volta da boca, uma
espécie de concha, e gritou:
— Courfeyrac! Courfeyrac! Hei!
Courfeyrac ouviu o chamado, viu Bossuet, deu alguns passos pela rua
de la Chanvrerie gritando um: o que você quer? que se cruzou com um:
aonde você vai?
— Fazer uma barricada! — respondeu Courfeyrac.
— Então aqui! O lugar é bom! Faça-a aqui!
— É verdade, Aigle — disse Courfeyrac.
E, a um sinal de Courfeyrac, a multidão se precipitou pela rua de la
Chanvrerie.

III. A ESCURIDÃO COMEÇA A SE FAZER SOBRE


GRANTAIRE
O local, de fato, fora muito bem indicado; a entrada da rua era bem
larga, o fundo estreito e praticamente sem saída, a Corinthe formando um
estreitamento, a rua Mondétour fácil de barrar, tanto à direita quanto à
esquerda, nenhum ataque possível, a não ser pela rua Saint-Denis, ou seja,
de frente e a descoberto.
Bossuet, bêbado, tinha tido o golpe de vista de um Aníbal em jejum.
Com a súbita invasão do ajuntamento, o medo tomou conta da rua
inteira. Nem um só passante que não tivesse desaparecido. Foi o tempo de
um relâmpago e, ao fundo, à direita, à esquerda, lojas, bancas, portas,
janelas, persianas, mansardas, portinholas de todas as dimensões se
fecharam, de alto a baixo. Uma senhora idosa, apavorada, fixou um
colchão diante da janela com duas varas de secar roupa, para amortecer os
tiros. A casa da taverna era a única que ficara aberta, e isso pela simples
razão de que o bando ali se precipitara.
— Ai meu Deus! Ai meu Deus! — suspirava mame Hucheloup.
Bossuet tinha descido ao encontro de Courfeyrac.
Joly, que se pusera à janela, gritava:
— Courfeyrac, você devia ter trazido um guarda-chuva. Vai se resfriar.
Enquanto isso, em poucos minutos, vinte barras de ferro tinham sido
arrancadas da grade frontal da taverna, dez toesas de rua tinham sido
descalçadas; Gavroche e Bahorel, ao passar, tinham tomado e tombado a
carroça de um fabricante de cal chamado Anceau; essa carroça continha
três barricas cheias de cal, que foram colocadas por baixo das pilhas de
pedras arrancadas; Enjolras tinha levantado o alçapão do porão, e todos os
tonéis vazios da viúva Hucheloup foram parar ao lado das barricas de cal;
Feuilly, com seus dedos afeitos a colorir as delicadas lâminas dos leques,
tinha guarnecido as barricas e a carroça com duas maciças pilhas de
pedras. Pedras arranjadas como todo o resto, não se sabe onde. Vigas de
escora tinham sido arrancadas da fachada de uma casa vizinha e
assentadas sobre os tonéis. Quando Bossuet e Courfeyrac se voltaram,
metade da rua já se encontrava obstruída por uma trincheira mais alta que
um homem. Nada se compara à mão popular para construir tudo aquilo
que se ergue demolindo.
Matelote e Gibelotte juntaram-se aos trabalhadores. Gibelotte ia e
vinha carregada de entulho. Seu tédio era útil à barricada. Executava essa
tarefa como teria servido o vinho, com ar sonolento.
Um ônibus puxado por dois cavalos brancos passou pela extremidade
da rua. Bossuet saltou as pedras, correu, parou o cocheiro, fez os
passageiros descerem, deu a mão “às damas”, despediu o condutor, e
voltou, conduzindo carro e cavalos pelas rédeas.
— Os ônibus — disse ele — não vão passar na frente da Corinthe. Non
licet omnibus adire Corinthum.12
Um instante depois, os cavalos dasatrelados vagavam à solta pela rua
Mondétour, e o ônibus tombado completava a barragem à entrada da rua.
Mame Hucheloup, transtornada, fora se refugiar no primeiro andar.
Tinha o olhar vago; olhava sem ver, e gritava baixinho. Seus gritos
assustados sequer ousavam sair de sua garganta.
— É o fim do mundo! — murmurava ela.
Joly dava um beijo no gordo, vermelho e enrugado pescoço de mame
Hucheloup, e dizia a Grantaire:
— Meu caro, eu sempre considerei o pescoço de uma mulher como
algo de infinitamente delicado.
Grantaire, porém, atingia as mais altas regiões do delírio poético.
Matelote, subindo ao primeiro andar, foi agarrada na cintura por Grantaire,
que soltava longas gargalhadas à janela.
— Matelote é feia! — gritava ele. — Matelote é a feiura dos sonhos!
Matelote é uma quimera. Eis o segredo de seu nascimento: um pigmalião
gótico, que fazia carrancas nas catedrais, um belo dia apaixonou-se por
uma delas, a mais horrível. Suplicou ao amor que a animasse, e assim
surgiu Matelote. Olhem para ela, cidadãos! Tem os cabelos cor de cromato
de chumbo, como a amante de Ticiano, e é uma boa moça. Garanto a vocês
que combaterá muito bem. Toda boa moça encerra em si um herói! Quanto
à Mãe Hucheloup, é uma velha corajosa. Veem os bigodes que ela tem!
Herdou-os do marido. Uma hussarda, ora! Também vai combater. Só as
duas já bastam para fazer medo ao subúrbio inteiro. Camaradas! Vamos
derrubar o governo, tão certo como é certo que existem quinze ácidos
intermediários entre o ácido margárico e o ácido fórmico, coisa que, de
resto, para mim, absolutamente tanto faz. Senhores, meu pai sempre me
detestou porque eu nunca conseguia entender a matemática. Eu não
entendo senão o amor e a liberdade. Sou Grantaire, o bom menino! Como
nunca tive dinheiro, nunca me acostumei a ele, o que me fez nunca sentir-
lhe a falta; mas, se eu fosse rico, não haveria mais gente pobre! Iam só
ver! Oh! Se os bons corações tivessem bolsos cheios! Como tudo seria
melhor! Eu imagino Jesus Cristo com a fortuna de Rothschild! Quanto
bem ele não faria! Matelote, abraça-me! És voluptuosa e tímida! Tens
umas faces que atraem beijos de irmã, e lábios que pedem beijos de
amante!
— Cale a boca, barril! — disse Courfeyrac.
Grantaire respondeu:
— Sou capitoul13 e mestre em jogos florais!
Enjolras, que estava de pé no topo da barricada, espingarda na mão,
levantou seu belo semblante austero. Enjolras, como se sabe, era espartano
e puritano. Teria morrido com Leônidas nas Termópilas, e queimado
Drogheda com Cromwell.
— Grantaire! — gritou ele. — Vá curtir seu porre longe daqui. Aqui é
lugar de embriaguez, não de bebedeira! Não desonre a barricada!
Essas palavras irritadas produziram um efeito singular sobre Grantaire.
Foi como se tivesse recebido um balde de água fria no rosto. Subitamente
pareceu refeito. Sentou-se, encostou-se a uma mesa próxima à janela, fitou
Enjolras com uma inexprimível ternura, e disse-lhe:
— Deixe-me dormir aqui.
— Vá dormir em outro lugar — gritou Enjolras.
Mas Grantaire, continuando a fixar seu olhar terno e turvo sobre ele,
respondeu:
— Deixe-me dormir aqui, até que eu morra.
Enjolras olhou-o desdenhosamente:
— Grantaire, você é incapaz de crer, de pensar, de querer, de viver e de
morrer.
Grantaire replicou com voz grave:
— Você verá.
Balbuciou ainda algumas palavras ininteligíveis, em seguida sua
cabeça pendeu pesadamente sobre a mesa, e, o que é um efeito bastante
habitual da segunda fase da embriaguez para a qual Enjolras, de forma
rude e repentina, o impelira, um instante depois estava adormecido.

IV. TENTATIVA DE CONSOLO DA VIÚVA


HUCHELOUP
Bahorel, extasiado com a barricada:
— Pronto, a rua está livre! Como isso faz bem!
Courfeyrac, demolindo um pouco mais a taverna, procurava consolar a
viúva taverneira.
— Mãe Hucheloup, outro dia a senhora não havia se queixado de que a
tinham feito pagar uma multa por Gibelotte ter sacudido o tapetinho do
quarto pela janela?
— É verdade, meu bom senhor Courfeyrac! Ah, meu Deus! Será que o
senhor também vai me levar essa mesa para o meio daquele horror? E foi
mesmo, por causa do tapete, e também de um vaso de flores, que caiu da
mansarda na rua, que o governo me arrancou cem francos de multa. Não é
um absurdo?
— Pois bem, Mãe Hucheloup, agora vamos nos vingar!
Mãe Hucheloup, com essa reparação que lhe faziam, não parecia
compreender muito bem o que ganhava. Sentia-se satisfeita à maneira da
mulher árabe que, tendo recebido uma bofetada de seu marido, fora-se
queixar a seu pai, pedindo vingança e dizendo: “Pai, deves a meu marido
afronta por afronta”. O pai perguntou: “Em qual face recebeste a
bofetada?” “Na face esquerda.” O pai bateu-lhe na face direita e disse:
“Pronto, agora estás vingada; vai dizer a teu marido que ele bateu em
minha filha, mas que eu bati na mulher dele”.
A chuva cessara. Alguns recrutas haviam chegado. Operários traziam,
escondidos sob algumas roupas, um pequeno barril de pólvora, um cesto
com algumas garrafas de vitríolo, duas ou três tochas de carnaval e uma
canastra cheia de lampiões, “sobras da festa do rei”. Festa bem recente,
que ocorrera no primeiro de maio. Dizia-se que essas munições vinham da
parte de um merceeiro chamado Pépin, do bairro Saint-Antoine. O único
lampião da rua de la Chanvrerie foi quebrado, bem como a lanterna
correspondente da rua Saint-Denis, e todos as lanternas das ruas
circunvizinhas, Mondétour, du Cygne, des Prêcheurs, de la Grande e de la
Petite-Truanderie.
Enjolras, Combeferre e Courfeyrac dirigiam tudo. Agora, duas
barricadas eram construídas ao mesmo tempo, ambas apoiadas na taverna
Corinthe e em ângulo reto; a maior fechava a rua de la Chanvrerie, a outra
fechava a rua Mondétour pelo lado da rua du Cygne. Esta última barricada,
muito estreita, era constituída apenas de tonéis e de pedras. Ali estavam
aproximadamente cinquenta homens, trinta dos quais armados de
espingardas, pois, no caminho, haviam feito um “empréstimo por atacado”
na loja de um armeiro.
Nada era mais estranho e mais variado do que esse grupo. Um usava
um casaco curto, um sabre de cavalaria e duas pistolas; um outro estava
em mangas de camisa, com chapéu de aba redonda e um polvorinho a
tiracolo; um terceiro tinha uma couraça feita com nove folhas de papelão e
sua arma era uma sovela de seleiro. Um deles gritava: Exterminemos até o
último e morramos na ponta de nossa baioneta! Mas esse nem tinha
baioneta. Outro ostentava, por cima do casaco, umas correias e uma
cartucheira de guarda nacional cuja capa era ornada com a seguinte
inscrição feita em lã vermelha: Ordem pública.
Grande quantidade de espingardas com números das legiões, poucos
chapéus, nenhuma gravata, muitos braços nus, algumas lanças.
Acrescentem a isso todas as idades, todos as feições, jovenzinhos pálidos,
operários do porto morenos de sol. Todos se apressavam, e, enquanto
mutuamente se ajudavam, conversavam sobre as possíveis ocorrências —
que teriam ajuda por volta das três da manhã, que poderiam contar com
um regimento, que Paris se rebelaria. Conjecturas terríveis, entremeadas
por uma espécie de cordial jovialidade. Pareciam irmãos, mas sequer
sabiam os nomes uns dos outros. Os grandes perigos têm isso de belo,
colocam à luz a fraternidade de desconhecidos.
O fogo foi aceso na cozinha da taverna, e ali fundiam, em uma forma
de balas com alça, colheres, garfos, todos os objetos de estanho do
estabelecimento. E, em meio a tudo isso, bebiam. Cápsulas e balas
rolavam sobre as mesas misturadas aos copos de vinho. Na sala do bilhar,
mame Hucheloup, Matelote e Gibelotte, diversamente modificadas pelo
terror, uma embrutecida, outra esbaforida, outra desperta, rasgavam tiras
de pano velho, preparando ataduras; três revoltosos as ajudavam, três
homens com barbas, cabeleiras e bigodes muito grandes, que desfiavam o
pano com delicadeza, mas faziam-nas tremer de medo.
O homem alto que Courfeyrac, Combeferre e Enjolras haviam notado,
no momento em que se agregara ao bando na esquina da rua des Billettes,
trabalhava na barricada pequena, e era muito útil ali. Gavroche trabalhava
na barricada maior. Quanto ao rapaz que havia esperado por Courfeyrac
em sua casa e lhe perguntara pelo senhor Marius, tinha desaparecido mais
ou menos no momento em que o ônibus fora virado.
Gavroche, ligeiro e radiante, encarregara-se de animar os preparativos.
Ia, vinha, subia, descia, tornava a subir, berrava, faiscava. Parecia estar ali
para encorajar a todos. Tinha alguma motivação, por acaso? Claro que
sim, sua miséria; por acaso tinha asas? Claro que sim, sua alegria.
Gavroche era um turbilhão. Era visto o tempo todo, era ouvido sem cessar.
Enchia o ar, estando ao mesmo tempo por toda parte. Era uma espécie de
onipresença quase irritante; com ele, não havia possibilidade de parada.
A enorme barricada o sentia bem no alto. Atrapalhava os ociosos,
animava os preguiçosos, reanimava os cansados, impacientava os
pensativos, deixava alguns alegres, deixava outros sem fôlego, outros
ainda com raiva; punha todos em movimento, picava um estudante,
mordia um operário; colocava-se em posição, parava, recomeçava, voava
por cima do tumulto e do esforço, saltava destes até aqueles, murmurava,
zumbia, e importunava todo o mundo; mosca do imenso Carro
revolucionário.
O movimento perpétuo se fazia em seus pequenos braços, e o clamor
perpétuo se fazia em seus pequenos pulmões:
— Vamos! Mais pedras! Mais tonéis! Mais coisas! Onde se pode
achar? Um cesto de entulho para tapar este buraco! Está muito baixa, essa
barricada, tem que ficar mais alta! Ponham tudo aí, encostem tudo aí!
Quebrem a casa! Uma barricada é o chá da Mãe Gibou!14 Pronto, ali está
uma porta envidraçada.
Isso fez com que os trabalhadores exclamassem:
— Uma porta envidraçada! O que você quer que a gente faça com uma
porta dessas, seu tubérculo?
— Érculos são vocês! — retrucou Gavroche. — Uma porta
envidraçada é excelente numa barricada. Não impede que seja atacada,
mas atrapalha para ser tomada. Então vocês nunca pularam um muro,
cheio de fundos de garrafas, para afanar maçãs? Uma porta envidraçada
corta os calos da guarda nacional se ela quiser subir na barricada. Ora
essa! O vidro é traidor. Ah! Vocês não têm imaginação, meus camaradas.
De resto, estava furioso com sua pistola sem cão. Ia de um a outro
reclamando:
— Uma espingarda! Quero uma espingarda! Por que ninguém me dá
uma espingarda?
— Uma espingarda para você? — disse Combeferre.
— É! — retrucou Gavroche. — E por que não? Em 1830, quando
brigamos com Carlos X, eu tive uma!
Enjolras encolheu os ombros.
— Quando todos os homens tiverem uma espingarda, também as
daremos para as crianças.
Gavroche voltou-se com ar orgulhoso e respondeu-lhe:
— Se o matarem primeiro, ficarei com a sua.
— Seu moleque! — disse Enjolras.
— Seu fedelho! — disse Gavroche.
Um elegante perdido, que passeava na extremidade da rua, os distraiu.
Gavroche gritou-lhe:
— Venha conosco, moço! Então, essa velha pátria, ninguém faz nada
por ela?
O elegante fugiu.

V. OS PREPARATIVOS
Os jornais da época enganaram-se no que se refere a essa parte da
nossa história, quando disseram que a barricada da rua de la Chanvrerie,
“essa construção quase inexpugnável”, como a denominam, se elevava à
altura de um primeiro andar. A verdade é que a citada barricada não
ultrapassava a altura média de um metro e oitenta ou dois. Era construída
de tal forma que os combatentes podiam, à vontade, ou desaparecer por
trás dela, ou dominar a barreira e até subir ao topo por meio de alguns
degraus, formados na parte interna por quatro fileiras de pedras
sobrepostas colocadas no interior. A frente externa da barricada, formada
por pilhas de pedras e de barris, segura com vigas e tábuas metidas por
entre as rodas da charrete Anceau e do ônibus virado, apresentava o
aspecto de um obstáculo emaranhado e inextricável. Uma brecha,
suficiente para dar passagem a um homem, havia sido deixada entre a
parede das casas e a extremidade da barricada mais afastada da taverna,
permitindo uma saída. A flecha do ônibus era mantida bem reta por meio
de cordas, e, amarrada a ela, flutuava uma bandeira vermelha que
tremulava sobre a barricada.
A pequena barricada da rua Mondétour, escondida atrás da taverna, não
aparecia. As duas barricadas reunidas formavam um verdadeiro reduto.
Enjolras e Courfeyrac não haviam julgado necessário montar barricadas na
outra parte da rua Mondétour, que abre para a rua des Prêcheurs uma saída
sobre os depósitos, provavelmente desejando manter uma possível
comunicação com o exterior, e não receando serem atacados pela perigosa
e difícil rua des Prêcheurs.
Desse modo, com exceção da saída livre da segunda parte da rua
Mondétour, que Folard, em seu estilo estratégico, denominaria um
desfiladeiro, e da estreita abertura praticada no entrincheiramento da rua
de la Chanvrerie, o interior da barricada, com o ângulo saliente formado
pela taverna, apresentava a figura de um quadrilátero irregular fechado por
todos os lados. Havia um intervalo de vinte passos entre a barricada
grande e os elevados edifícios que formavam o fundo da rua, de modo que
se podia dizer que a barricada ficava encostada a essas casas, todas
habitadas, porém fechadas de alto a baixo.
Todo esse trabalho foi feito sem obstáculos em menos de uma hora, e
sem que aquele punhado de homens audaciosos vissem surgir um gorro de
pelos ou uma baioneta. Os raros burgueses que ainda se aventuravam a
passar pela rua Saint-Denis olhavam para a rua de la Chanvrerie e, ao
avistarem a barricada, apressavam o passo.
Terminadas as duas barricadas e hasteada a bandeira, foi trazida, de
dentro da taverna, uma mesa em cima da qual subiu Courfeyrac. Enjolras
trouxe o baú quadrado e Courfeyrac o abriu. O baú estava cheio de
cartuchos. Quando viram os cartuchos, houve um estremecimento e um
momento de silêncio.
Courfeyrac os distribuiu sorrindo.
Cada um recebeu trinta cartuchos. Muitos tinham pólvora e puseram-
se a fazer outros com as balas que eram fundidas. Quanto ao barril de
pólvora, tinha sido colocado, como reserva, sobre uma mesa separada e
perto da porta.
O toque de chamada que percorria toda Paris não cessava, porém
tornara-se apenas um sussurro monótono ao qual não prestavam mais
atenção. Esse barulho ora se afastava, ora se aproximava, com lúgubres
ondulações.
Os fuzis e as carabinas foram carregados ao mesmo tempo, sem
precipitação e com solene gravidade. Enjolras foi postar três sentinelas
fora das barricadas, uma na rua de la Chanvrerie, a segunda na rua des
Prêcheurs e a terceira na esquina da Petite-Truanderie.
Depois, construídas as barricadas, distribuídos os postos, carregadas as
armas, colocadas as sentinelas, sós no meio daquelas temíveis ruas por
onde ninguém passava, rodeados daquelas casas mudas e como que
mortas, em que não palpitava nenhum movimento humano, envolvidos
pelas sombras crescentes do crepúsculo que começava, no meio daquela
escuridão e daquele silêncio em que se sentia avançar algo de trágico e
aterrador, isolados, armados, resolutos, serenos, eles esperaram.

VI. ESPERANDO
Nessas horas de espera, o que fizeram?
É preciso dizê-lo, pois isso é história.
Enquanto os homens faziam cartuchos e as mulheres ataduras,
enquanto uma grande panela cheia de estanho e de chumbo fundido,
destinados ao molde de balas, fumegava em cima do fogo, enquanto as
sentinelas vigiavam de arma em punho sobre a barricada, enquanto
Enjolras, a quem nada conseguia distrair, vigiava as sentinelas,
Combeferre, Courfeyrac, Jean Prouvaire, Feuilly, Bossuet, Joly, Bahorel, e
outros ainda, se encontraram e se reuniram, como nos mais tranquilos dias
de sua vida de estudante, e a um canto da taverna, transformada em
casamata, a dois passos do reduto que haviam levantado, com as armas
carregadas e preparadas, apoiadas no encosto das cadeiras, aqueles belos
rapazes, tão próximos da hora suprema, puseram-se a recitar versos de
amor.
Quais versos? Ei-los:

Vous rappelez-vous notre douce vie


Lorsque nous étions si jeunes tous deux
Et que nous n’avions au coeur d’autre envie
Que d’être bien mis et d’être amoureux!

Lembram-se de nossa doce vida


Quando ambos éramos tão jovens
Quando em nosso coração somente um desejo havia
De estar bem vestidos e enamorados!

Lorsqu’en ajoutant votre age à mon âge,


Nous ne comptions pas à deux quarante ans
Et que, dans notre humble et petit ménage,
Tout, même l’hiver, nous était printemps!

Quando acrescentando sua idade à minha,


Não somávamos, os dois, quarenta anos
E que, em nosso pequeno e humilde lar,
Tudo, mesmo o inverno, para nós era primavera!

Beaux jours! Manuel était fier et sage,


Paris s’asseyait à de saints banquets,
Foy lançait la foudre, et votre corsage
Avait une épingle où je me piquais.

Belos dias! Manuel era orgulhoso e sábio,


Paris sentava-se em santos banquetes,
Foy lançava raios, e em seu corpete.
Havia um alfinete onde eu me espetava.

Tout vous contemplait. Avocats sans causes,


Quand je vous menais au Prado dîner,
Vous étiez jolie au point que les roses
Me faisaient l’effet de se retourner.

Tudo a contemplava. Advogados sem causas,


Quando a levava ao Prado para jantar,
Você era tão linda que as rosas
Pareciam-me até que se voltavam.
Je les entendais dire: Est-elle belle!
Comme elle sent bon! quels cheveux à flots!
Sous son mantelet elle cache une aile;
Son bonnet charmant est à peine éclos.

Eu as ouvia dizer: Como é bela!


Que perfume! Que cabelos abundantes!
Sob seu mantel esconde uma asa;
Sua encantadora boina mal desabrocha.

J’errais avec toi, pressant ton bras souple.


Les passants croyaient que l’amour charmé
Avait marié, dans notre heureux couple,
Le doux mois d’avril au beau mois de mai.

Vagava com você, pressionando seu delgado braço.


Os transeuntes pensavam que o amor encantado
Casara, em nosso feliz casal,
O doce mês de abril ao belo mês de maio.

Nous vivions cachés, contents, porte close,


Dévorant l’amour, bon fruit defendu;
Ma bouche n’avait pas dit une chose
Que déjà ton coeur avait répondu.

Vivíamos escondidos, contentes, portas fechadas,


Devorando o amor, belo fruto proibido;
Minha boca mal dizia algo
Seu coração já havia respondido.

Sorbonne était l’endroit bucolique


Ou je t’adorais du soir au matin.
C’est ainsi qu’une âme amoureuse applique
La carte du Tendre au pays latin.

A Sorbonne era um lugar bucólico


Onde eu a adorava da noite ao dia.
Assim é que uma alma enamorada utiliza
O mapa da Ternura no país latino.

Ô place Maubert! Ô place Dauphine!


Quand, dans le taudis frais et printanier,
Tu tirais ton bas sur ta jambe fine
Je voyais un astre au fond du grenier.

Ó praça Maubert! Ó praça Dauphine!


Quando, no casebre, fresco e primaveril,
Estirava sua meia sobre sua delicada perna
Eu via um astro no fundo do sótão.

J’ai fort lu Platon, mais rien ne m’en reste;


Mieux que Malebranche et que Lamennais
Tu me démontrais la bonté céleste
Avec une fleur que tu me donnais.

Li muito Platão, mas nada me resta;


Melhor que Malebranche e que Lamennais
Você me demonstrava a bondade celeste
Com uma flor que me dava.

Je t’obéissais, tu m’étais soumise.


Ô grenier doré! te lacer! te voir
Aller et venir dès l’aube en chemise,
Mirant ton front jeune à ton vieux miroir!

Eu lhe obedecia, você me era submissa.


Ó celeiro dourado! Laçá-la! Vê-la
Ir e vir desde cedo de camisa,
Olhando sua jovem fronte em seu velho espelho!

Et qui donc pourrait perdre la mémoire


De ce temps d’aurore et de firmament,
De rubans, de fleurs, de gaze e de moire,
Où l’amour bégaye un argot charmant?

E quem poderia esquecer


Esse tempo de aurora e de firmamento,
De fitas, de flores, de gaze e de tecido brilhante,
Em que o amor gagueja uma gíria encantadora?

Nos jardins étaient un pot de tulipe;


Tu masquais la vitre avec un jupon;
Je prenais le bol de terre de pipe,
Et je te donnais la tasse en japon.

Nossos jardins eram um vaso de tulipas;


Você tampava o vidro com uma anágua;
Eu pegava a tigela de cerâmica,
E lhe dava uma xícara japonesa.

Et ces grands malheurs qui nous faisaient rire!


Ton manchon brulé, ton boa perdu!
Et ce cher portrait du divin Shakespeare
Qu’un soir pour souper nous avons vendu!
E as grandes desgraças que nos faziam rir!
Seu xale queimado, seu cachecol perdido!
E o querido retrato do divino Shakespeare
Que uma noite para jantar vendemos!

J’étais mendiant, et toi charitable.


Je baisais au vol tes bras frais et ronds.
Dante in-folio nous servait de table
Pour manger gaîment un cent de marrons.

Era eu mendigo e você caridosa.


Beijava rapidamente seus braços frescos e roliços.
Dante in-folio nos servia de mesa
Para comer alegres um pouco de castanhas.

La première fois qu’en mon joyeux bouge


Je pris un baiser à ta lèvre en feu,
Quand tu t’en allas décoiffée et rouge,
Je restai tout pâle et je crus en Dieu!

A primeira vez que em meu alegre casebre


Roubei um beijo de seu lábio em fogo,
Quando partiu despenteada e corada,
Permaneci pálido e acreditei em Deus!

Te rappelles-tu nos bonheurs sans nombre,


Et tous ces fichus changés en chiffons?
Oh! que de soupirs, de nos coeurs pleins d’ombre,
Se sont envolés dans les cieux profonds!

Lembra de nossa felicidade sem igual,


E de todos os lenços transformados em trapos?
Oh! Quantos suspiros de nossos corações cheios de sombra,
Levantaram voo nos céus profundos!

A hora, o lugar, essas reminiscências dos tempos da juventude, as raras


estrelas que principiavam a cintilar no céu, o fúnebre repouso daquelas
ruas desertas, a iminência da inexorável aventura que se preparava davam
um encanto patético a esses versos murmurados a meia voz, no indeciso
clarão do crepúsculo, por Jean Prouvaire, que, como já dissemos, era um
doce poeta.
Entretanto, haviam acendido um lampião na pequena barricada, e, na
grande, um desses archotes de cera, como encontramos na terça-feira
gorda diante dos carros cheios de mascarados que vão a Courtille. Essas
tochas, como vimos, provinham do bairro Saint-Antoine.
O archote fora colocado dentro de uma espécie de gaiola de
paralelepípedos, fechada em três lados para abrigá-lo do vento, e disposto
de modo que o reflexo da luz caía na bandeira. A rua e a barricada ficavam
imersas na escuridão, e não se via nada além da bandeira vermelha,
brilhantemente iluminada como que por uma enorme lanterna encoberta.
Aquela luz acrescentava ao escarlate da bandeira não se sabe que
terrível reflexo vermelho.

VII. O HOMEM RECRUTADO NA RUA DES


BILLETTES
A noite caíra completamente e nada acontecia. Ouviam-se apenas
rumores confusos, e por instantes alguns tiroteios, porém, raros, pouco
duradouros e longínquos. Essa espera, que se prolongava, era um sinal de
que o governo, sem pressa, reunia suas forças. Aqueles cinquenta homens
esperavam por sessenta mil.
Enjolras sentia-se tomado pela impaciência que se apodera das almas
fortes no limiar dos acontecimentos temerosos. Foi em busca de Gavroche,
que se pusera a fabricar balas na sala baixa, na incerta claridade de duas
velas colocadas sobre o balcão, por precaução, devido à pólvora espalhada
pelas mesas. Essas velas não projetavam o menor clarão no exterior. Os
rebeldes tinham tomado o cuidado de não acender nenhuma luz nos
andares superiores.
Nesse momento, Gavroche estava muito preocupado, mas não devido
às suas balas.
O homem da rua des Billettes acabara de entrar na sala baixa e fora
sentar-se à mesa menos iluminada. Coubera-lhe um fuzil de munição,
modelo grande, que colocara entre os joelhos. Até então, Gavroche,
distraído por mil coisas “divertidas”, nem percebera o tal homem.
Quando ele entrou, seguiu-o maquinalmente com os olhos, admirando
o fuzil; em seguida, assim que o homem se sentou, o menino se levantou.
Os que estivessem vigiando aquele homem até aquele instante teriam visto
que observava tudo na barricada e todos os revoltosos com uma atenção
singular; mas desde que tinha entrado na sala fora tomado por uma espécie
de recolhimento e parecia não ver mais nada do que se passava. O garoto
aproximou-se do pensativo personagem e pôs-se a andar a seu redor, na
ponta dos pés, como quem teme acordar alguém. Ao mesmo tempo, em
seu rosto infantil, simultaneamente tão descarado e tão grave, tão volúvel
e tão profundo, tão risonho e tão pungente, passavam todas essas caretas
de velho que significam: “Ora, bah! Não é possível! Devo estar enganado!
Estou sonhando! Será ele?… Não, não é! Mas é! Mas não!”, etc. Gavroche
balançava-se sobre os calcanhares, cerrava os punhos dentro dos bolsos,
remexia o pescoço como um pássaro, gastava em um beiço desmesurado
toda a sagacidade de seu lábio inferior. Estava estupefato, incerto,
incrédulo, convencido, deslumbrado. Tinha o aspecto de um chefe de
eunucos em um mercado de escravas descobrindo uma Vênus entre um
grupo de mulheres feias, e o ar de alguém que ama quadros reconhecendo
um Rafael em um amontoado de tintas. Tudo nele estava em ação, o
instinto que fareja e a inteligência que combina. Era evidente que algo
acontecia a Gavroche.
Foi no auge dessa preocupação que Enjolras o encontrou.
— Você é pequeno — disse-lhe Enjolras —, não o verão. Saia da
barricada, encoste-se ao longo dos muros das casas, dê uma volta pelas
ruas e volte para me dizer o que se passa.
Gavroche empertigou-se o quanto pôde.
— Então os pequenos servem para alguma coisa! Felizmente! Eu vou.
Enquanto isso confie nos pequenos e desconfie dos grandes!…
E Gavroche, erguendo a cabeça e baixando a voz, acrescentou,
designando o homem da rua des Billettes:
— Vê bem aquele grande?
— Então?
— É um espião.
— Tem certeza?
— Há quinze dias ele me pegou no parapeito da ponte Royal, onde eu
respirava ar fresco.
Enjolras afastou-se rapidamente do menino e murmurou algumas
palavras a um operário do porto que lá estava. O operário saiu da sala
retornando em seguida acompanhado por outros três. Os quatro homens,
carregadores de ombros largos, sem chamar a atenção, colocaram-se atrás
da mesa onde estava o homem da rua des Billettes. Estavam visivelmente
prontos a se lançarem sobre ele.
Enjolras aproximou-se então do homem e perguntou-lhe:
— Quem é você?
A esta brusca pergunta, o homem se sobressaltou. Olhou no fundo dos
cândidos olhos de Enjolras parecendo ler seus pensamentos. Sorriu de
forma mais desdenhosa, mais enérgica e resoluta e respondeu com altiva
gravidade:
— Entendo… Pois bem, não nego!
— Você é espião?
— Sou agente da autoridade.
— Como se chama?
— Javert.
A um sinal de Enjolras, os quatro homens precipitaram-se sobre Javert
e, num abrir e fechar de olhos, antes que tivesse tempo de se voltar, foi
agarrado pelo pescoço, deitado ao chão, amarrado e revistado.
Encontraram um pequeno cartão redondo colado entre dois vidros,
tendo de um lado as armas da França gravadas com a seguinte legenda:
“Precaução e Vigilância”, e do outro a menção: “JAVERT, inspetor de
Polícia, de cinquenta e dois anos de idade”; e a assinatura do delegado de
polícia, naquela época, senhor Gisquet.
Além disso, encontraram um relógio e uma bolsa com algumas moedas
de ouro, que deixaram em seu poder. Por trás do relógio, no fundo do
bolso, encontraram um papel dentro de um envelope, que Enjolras abriu e
no qual leu estas cinco linhas escritas de próprio punho pelo chefe de
polícia:
“Logo depois de cumprida sua missão política, o inspetor Javert irá se
certificar, mediante uma vigilância especial, se é verdade que malfeitores
se reúnem à margem direita do Sena, perto da ponte d’Iéna”.
Terminada a revista, levantaram Javert, ataram-lhe as mãos atrás das
costas e o amarraram no meio da sala à célebre coluna que outrora dera
seu nome à taverna.
Gavroche, que assistira a toda a cena, aprovando tudo em silêncio,
aproximou-se de Javert e lhe disse:
— Foi o rato que prendeu o gato!
Tudo aconteceu tão rapidamente que, quando os outros em volta da
taverna perceberam, já estava tudo terminado. Javert não dera um grito.
Ao vê-lo amarrado à coluna, Courfeyrac, Bossuet, Joly, Combeferre e os
demais homens que estavam dispersos pelas duas barricadas vieram
correndo.
Javert, encostado à coluna e de tal forma amarrado com cordas que não
podia fazer o menor movimento, erguia a cabeça com a intrépida
serenidade do homem que nunca mentiu.
— É um espião! — disse Enjolras.
E voltando-se para Javert:
— Será fuzilado dez minutos antes que a barricada seja tomada.
Javert replicou no tom mais imperioso:
— Por que não agora?
— Precisamos poupar a pólvora!
— Então, me matem com uma facada!
— Espião — disse o belo Enjolras —, nós somos juízes e não
assassinos!
Depois chamou Gavroche.
— Você! Faça o que mandei!
— Já vou — gritou Gavroche.
E, parando no momento de sair, disse:
— A propósito, vai me dar a espingarda dele! — E acrescentou: —
Deixo-lhe o músico, mas quero o clarinete!
O moleque fez uma continência militar e saiu alegremente pela
abertura da grande barricada.

VIII. VÁRIOS PONTOS DE INTERROGAÇÃO A


RESPEITO DE UM CERTO LE CABUC QUE TALVEZ
NÃO SE CHAMASSE LE CABUC
A trágica pintura que empreendemos não seria completa, o leitor não
veria em seu real e exato relevo os grandes momentos desse parto social e
revolucionário, cujos esforços são entremeados de convulsões, se neste
esboço que traçamos omitíssemos um incidente cheio de horror épico e
selvagem que aconteceu logo após a saída de Gavroche.
Os agrupamentos populares são, como sabemos, uma espécie de bola
de neve que aglomera na queda um amontoado de desordeiros. Esses
homens não perguntam uns aos outros de onde vêm. Entre os transeuntes
que se haviam reunido ao grupo conduzido por Enjolras, Combeferre e
Courfeyrac, encontrava-se um ser usando o traje de um carregador puído
nos ombros, gesticulando e vociferando como um bêbado selvagem. Esse
homem, de nome ou apelido Le Cabuc, aliás completamente desconhecido
por aqueles que diziam conhecê-lo, muito embriagado ou fingindo estar,
sentara-se com todos a uma mesa que tinham trazido de dentro da taverna.
Esse Cabuc, enquanto fazia beber os que estavam à sua frente, parecia
contemplar com ar de reflexão a grande casa situada ao fundo da
barricada, cujos cinco andares dominavam a rua em toda a sua extensão,
dando de frente para a rua Saint-Denis. De repente, exclamou:
— Sabem, camaradas? Deveríamos atirar daquela casa. Quando
estivermos no fogo cruzado, duvido que alguém possa avançar pela rua!
— Sim, mas a casa está fechada — disse um dos que bebiam.
— Bateremos!
— Não abrirão.
— Arrombaremos a porta!
Le Cabuc correu para a porta, que possuía um forte martelo de ferro, e
começou a bater. A porta não se abriu. Bateu uma segunda vez. Ninguém
respondeu. Uma terceira vez. O mesmo silêncio.
— Há alguém aí? — gritou Le Cabuc.
Nada se mexeu.
Le Cabuc pegou então uma espingarda e começou a bater na porta, às
coronhadas. Era uma velha porta de entrada, centralizada, baixa, estreita,
sólida, em madeira de carvalho e interiormente forrada por uma chapa e
uma armadura de ferro; uma verdadeira porta de castelo. As coronhadas
faziam estremecer a casa, mas não abalavam a porta.
Contudo, os moradores sensibilizaram-se, porque, finalmente, viram
uma luz que se acendia e uma pequena claraboia quadrada que se abria no
terceiro andar deixando aparecer uma vela e a inofensiva e atemorizada
cabeça de um velho de cabelos grisalhos, que era o porteiro.
O homem parou de bater.
— Senhores — perguntou o porteiro —, que desejam?
— Abra! — disse Le Cabuc.
— Senhores, não posso.
— Abra, mesmo assim!
— Impossível, senhores!
Le Cabuc pegou sua espingarda e apontou-a para o porteiro. Porém,
como Le Cabuc estava embaixo e estava muito escuro, o porteiro não o
viu.
— Vai abrir ou não?
— Não, senhores!
— Disse não?
— Já disse que não, meus caros…
O porteiro não pôde concluir a frase. A espingarda foi disparada; a bala
entrou-lhe por baixo do queixo e foi sair pela nuca, depois de ter
atravessado a jugular. O velho caiu sobre si mesmo sem soltar um suspiro.
A vela caiu e apagou-se, e não se viu mais nada além de uma cabeça
imóvel pousada no peitoril da claraboia e um pequeno rolo de fumaça
esbranquiçada subindo para o telhado.
— Pronto! — disse Le Cabuc, deixando cair no chão da calçada a
coronha da espingarda.
Acabara de proferir essa palavra quando sentiu que pousavam uma
mão em seu ombro, pesada como a garra de uma águia, e ouviu uma voz
que lhe dizia:
— De joelhos!
O assassino voltou-se e viu diante dele o rosto frio e branco de
Enjolras. Enjolras segurava uma pistola na mão.
Ao ouvir a detonação, viera.
— De joelhos — repetiu.
Com um movimento soberano, o frágil rapaz de vinte anos vergou,
como se fosse um junco, o robusto e gordo carregador, ajoelhando-o na
lama. Le Cabuc tentou resistir, porém parecia que um pulso sobre-humano
o conservava vergado.
Pálido, o pescoço nu, os cabelos em desalinho, Enjolras, com seu rosto
de mulher, apresentava naquele momento um não sei que da antiga
Thémis. As narinas dilatadas, os olhos baixos, davam a seu implacável
perfil grego essa estranha expressão de cólera e castidade que, do ponto de
vista do mundo antigo, convém à justiça.
Todos os que estavam na barricada vieram, formando um círculo a
pouca distância, sentindo que seria impossível proferir uma palavra diante
do que iriam presenciar.
Le Cabuc, vencido, não tentava mais debater-se e tremia. Enjolras
largou-o e pegou o relógio.
— Recolha-se — disse ele. — Reze ou pense. Você tem um minuto.
— Perdão! — balbuciou o assassino; depois abaixou a cabeça e
murmurou algumas imprecações inarticuladas.
Ao mesmo tempo, Enjolras, que não despregava os olhos do relógio,
deixou passar um minuto e guardou o relógio no bolso. Isso feito, agarrou
Le Cabuc pelos cabelos e enquanto este lhe agarrava os joelhos gritando,
encostou-lhe o cano da pistola junto ao ouvido. Muitos desses homens
intrépidos, que tão tranquilamente haviam entrado na mais assustadora das
aventuras, viraram a cabeça.
Ouviu-se a explosão, o assassino caiu de bruços no chão, e Enjolras
endireitou-se olhando ao seu redor com olhar convicto e severo.
Depois, empurrou o cadáver com o pé e disse:
— Joguem isto fora!
Três homens ergueram o cadáver do miserável agitado pelas últimas
convulsões maquinais da vida extinta e o jogaram, por cima da barricada,
para a rua Mondétour.
Enjolras permanecera pensativo. Não se sabe que trevas grandiosas
ergueram-se lentamente sobre sua temível serenidade. De repente, elevou
a voz. Fez-se silêncio.
— Cidadãos! O que este homem fez é assustador e o que eu acabo de
fazer é horrível! Ele matou e por isso eu o matei. Tive de fazê-lo pois a
insurreição deve ter sua disciplina. O assassinato aqui é um crime maior
ainda que em outro lugar; estamos sob o olhar da revolução, somos os
sacerdotes da república, as hóstias do dever, e não devemos deixar que
caluniem nosso combate. Portanto julguei e condenei à morte esse homem.
Quanto a mim, obrigado a fazer o que fiz, mas odiando fazê-lo, julguei a
mim mesmo, e logo verão a que me condenei.
Os que o ouviam estremeceram.
— Partilharemos sua sorte — gritou Combeferre.
— Que seja! — continuou Enjolras. — Mais uma palavra. Executando
esse homem, obedeci à necessidade, mas a necessidade é um monstro do
velho mundo; a necessidade chama-se Fatalidade. Ora, a lei do progresso
ordena que os monstros desapareçam diante dos anjos e que a Fatalidade
se desvaneça diante da Fraternidade. Não é um bom momento para dizer a
palavra amor. Não importa, eu o digo e o glorifico. Amor, você tem o
futuro. Morte, eu me sirvo de você, mas a odeio. Cidadãos, no futuro, não
haverá nem trevas, nem raios, nem ignorância feroz, nem talião sangrento.
Como não haverá mais Satanás, não haverá mais Miguel. No futuro,
ninguém matará ninguém, a Terra resplandecerá, a humanidade amará.
Cidadãos, chegará o dia em que tudo será amor, concórdia, harmonia, luz,
alegria e vida. E é para que chegue esse dia que nós vamos morrer.
Enjolras calou-se. Seus lábios de virgem cerraram-se e ele permaneceu
algum tempo de pé, no mesmo lugar onde derramara o sangue, em uma
imobilidade de mármore. Seu olhar fixo fazia com que falassem baixo a
seu redor.
Jean Prouvaire e Combeferre apertavam-se as mãos silenciosamente, e,
apoiados um ao outro em um ângulo da barricada, contemplavam com
admiração e compaixão aquele jovem sério, carrasco e sacerdote, de luz,
como o cristal, mas também de rocha.
Digamos logo que, mais tarde, após a batalha, quando os cadáveres
foram transportados para o necrotério e revistados, foi encontrada com Le
Cabuc uma carteira de agente de polícia. Em 1848, o autor deste livro teve
em suas mãos o relatório especial feito a esse respeito ao chefe de polícia
de 1832.
Acrescentemos que, se devemos dar crédito a uma tradição da polícia,
estranha mas provavelmente bem fundada, Le Cabuc era Claquesous. O
fato é que, depois da morte de Le Cabuc, não se ouviu mais falar de
Claquesous. Claquesous desaparecera sem deixar nenhum indício,
parecendo ter-se amalgamado ao invisível. Sua vida fora trevas, seu fim
noite. Todo o grupo de revoltosos permanecia comovido por esse processo
trágico tão depressa instaurado e tão rapidamente julgado, quando
Courfeyrac tornou a avistar na barricada o rapaz maltrapilho que pela
manhã tinha ido a sua casa procurar Marius.
O rapaz, de aspecto atrevido e despreocupado, viera à noite juntar-se
aos revoltosos.

__________________________
1 Théophile de Viau, poeta francês da corte real (1590 –1626).
2 Representação de frases por meio de figuras.
3 Charles-Joseph Natoire, pintor francês (1700 –1777).
4 Jogo de palavras proferido por Horácio, “Carpe diem”. “Carpe horas” dado como
conselho aos insurgentes: que aproveitem as horas que ainda lhes restam.
5 Marie-Antoine Carême, autor de livros culinários.
6 Esses nomes significam, respectivamente, “caldeirada” e “guisado.”
7 Paródia ao verso de Corneille: “Devine si tu peux et choisis si tu l’oses” [Adivinha se
puderes e escolhe se ousares].
8 Frade chapeau: religioso não ordenado que usava um chapéu, e não um capucho, ligado ao
serviço de um padre dessa ordem (capuchinhos), formando um bini [binômio].
9 Na frase original usa-se a palavra “ami”. No caso, “abi” foi empregado para mostrar que o
personagem era fanho.
10 “Desgraça aos vencidos” — de Tito Lívio, em História Romana.
11 Referência à cidade de Tímbrea, onde havia um templo de Apolo.
12 “Não é a todos que se permite ir a Corinto”.
13 Antigo magistrado municipal.
14 Expressão proverbial advinda da farsa Gibou et Madame Pochet, cujo enredo girava em
torno de um chá.
LIVRO XIII
MARIUS ENTRA NA SOMBRA

I. DA RUA PLUMET AO BAIRRO SAINT-DENIS


ESSA VOZ, que ao crepúsculo chamara por Marius na barricada da rua de
la Chanvrerie, parecera-lhe a voz do destino. Ele queria morrer, a ocasião
ali estava; batia à porta do túmulo, uma mão na sombra dava-lhe a chave.
Estas lúgubres portas, que se abrem nas trevas diante do desespero, são
tentadoras. Marius afastou a grade que tantas vezes o deixara passar, saiu
do jardim e disse: vamos!
Louco de dor, nada mais sentindo de fixo e sólido no cérebro, incapaz
de aceitar qualquer coisa da sorte após esses dois meses passados ao redor
da juventude e do amor, acabrunhado ao mesmo tempo por todas as
divagações do desespero, tinha um único desejo, terminar com tudo
rapidamente.
Pôs-se a caminhar depressa. Acontecia exatamente que estava armado,
tendo com ele as duas pistolas de Javert.
O rapaz que julgara ter visto desaparecera no meio das ruas.
Marius, que saíra da rua Plumet pela alameda, atravessou a Esplanade
e a ponte des Invalides, os Champs Elysées, a praça Luís XV, e entrou na
rua de Rivoli. As lojas estavam abertas, lampiões a gás iluminavam as
arcadas, as senhoras faziam compras, tomava-se sorvete no café Laiter,
comiam-se pequenos doces na doceira inglesa. Somente algumas
carruagens do correio partiam a galope do hotel des Princes e do hotel
Meurice.
O rapaz, através da passagem Delorme, entrou na rua Saint-Honoré. As
lojas estavam fechadas, os comerciantes conversavam em frente a suas
portas meio cerradas, os transeuntes circulavam, os lampiões estavam
acesos, a partir do primeiro andar tudo estava iluminado como de costume.
Na praça do Palais-Royal havia uma parte da cavalaria.
Marius continuou pela rua Saint-Honoré. À medida que se afastava do
Palais-Royal, havia menos janelas iluminadas; as lojas completamente
fechadas, ninguém conversava nos portões, a rua escurecia ao mesmo
tempo que a multidão crescia. Pois agora os transeuntes eram multidão.
Não se via ninguém conversando nessa multidão, porém ouvia-se um
burburinho surdo e profundo.
Próximo à fonte de l’Arbre-Sec, havia “agrupamentos”, espécies de
grupos imóveis e escuros que pareciam, em meio a pessoas que iam e
vinham, pedras por entre água corrente.
À entrada da rua des Prouvaires, a multidão não andava mais. Era um
bloco resistente, maciço, sólido, compacto, quase impenetrável, de pessoas
amontoadas que conversavam em voz baixa. Quase não se viam casacos
pretos ou chapéus redondos. Japonas, jaquetas, blusas, bonés, cabeças
desgrenhadas e lívidas. Essa multidão ondulava confusamente na neblina
noturna. Seu sussurro tinha o tom rouco de um estremecimento.
Embora nenhum deles andasse, ouviam-se passos na lama. Logo
depois desse compacto ajuntamento, na rua du Roule, na des Prouvaires e
na continuação da rua Saint-Honoré, não havia uma única janela onde
brilhasse uma vela. Viam-se, indo ao longo dessas ruas, as decrescentes e
solitárias fileiras das lanternas. As lanternas daquele tempo
assemelhavam-se a grandes estrelas vermelhas, pendendo de cordas,
desenhando nas lajes das ruas sombras que pareciam grandes aranhas.
Essas ruas não estavam desertas. Viam-se sarilhos de espingardas,
baionetas em movimento e tropas acampadas. Nenhum curioso
ultrapassava aquele limite. Ali cessava a circulação. Ali terminava a
multidão e principiava o exército.
Marius desejava com a força de vontade do homem que nada mais
espera. Tinha sido chamado, era preciso que fosse. Conseguiu atravessar a
multidão e atravessar os acampamentos da tropa, escondeu-se das
patrulhas e evitou as sentinelas. Fez um desvio, chegou à rua Béthisy, e
dirigiu-se aos depósitos. Na esquina da rua des Bourdonnais não havia
mais lampiões.
Depois de transpor a zona da multidão, havia ultrapassado a linha das
tropas; encontrava-se em algo que era assustador. Nenhum transeunte,
nenhum soldado, nenhuma luz; ninguém. A solidão, o silêncio, um frio
que penetrava. Entrar em uma rua era entrar em uma caverna.
Continuou avançando.
Andou um pouco. Alguém passou por ele correndo. Era um homem?
Uma mulher? Seriam muitos? Não poderia dizer. Aquilo passara e sumira.
De circuito em circuito, chegou a uma ruazinha que supôs ser a rua de
la Poterie; no meio dessa ruazinha, bateu em um obstáculo. Estendeu as
mãos. Era uma carruagem tombada; seu pé reconheceu poças de água,
charcos, paralelepípedos espalhados e amontoados. Havia ali uma
barricada iniciada e abandonada. Subiu pelas pedras e encontrou-se do
outro lado da barricada. Andava muito perto das beiradas e guiava-se
através dos muros das casas. Um pouco mais adiante da barricada,
pareceu-lhe entrever algo branco. Aproximou-se, aquilo tomou forma.
Eram dois cavalos brancos; os mesmos que Bossuet havia desatrelado do
ônibus pela manhã e que tinham vagado sem rumo, de rua em rua, durante
todo o dia e finalmente haviam parado ali, com a paciência característica
dos brutos que entendem tanto as ações do homem como o homem
compreende as ações da Providência.
Marius deixou os cavalos para trás. Ao entrar em uma rua que lhe
parecia ser a rua du Contrat-Social, um tiro de fuzil, vindo não se sabe de
onde, atravessando a escuridão e sem rumo, zuniu bem perto dele, e a bala
foi furar uma bacia de cobre pendurada na loja de um barbeiro. Em 1846,
via-se ainda na rua du Contrat-Social, na esquina dos pilares dos
depósitos, essa bacia furada.
Aquele tiro de espingarda ainda era vida. A partir desse instante, não
encontrou mais nada.
Esse itinerário assemelhava-se a uma descida por degraus negros.
Marius seguiu adiante.

II. PARIS EM VOO DE CORUJA


Alguém que tivesse planado sobre Paris naquele momento, com as asas
do morcego ou da coruja, veria um espetáculo sem graça.
Todo esse velho bairro dos depósitos, que é como uma cidade em uma
cidade, atravessado pelas ruas Saint-Denis e Saint-Martin, onde mil
ruazinhas se cruzam e onde os rebeldes haviam instalado seu reduto e sua
praça de armas, apareceria como um grande buraco sombrio cavado no
centro de Paris. Ali o olhar caía em um abismo.
Graças aos candeeiros quebrados, graças às janelas fechadas, ali
cessava qualquer clarão, qualquer vida, qualquer rumor, qualquer
movimento. A invisível polícia da rebelião vigiava todos os lugares e
mantinha a ordem, quer dizer, a escuridão. Submergir o pequeno número
na maior escuridão possível, multiplicar cada combatente pelas
possibilidades que essa escuridão oferece é a tática necessária à rebelião.
Ao anoitecer, toda janela onde uma vela estava acesa recebia uma bala. A
luz se apagava e o morador, às vezes, era morto. Assim nada se mexia. Nas
casas, só havia pavor, luto e pasmo; nas ruas, uma espécie de sagrado
terror. Nem sequer divisavam-se as extensas fileiras de janelas e andares,
as ondulações das chaminés e telhados, os vagos reflexos que tremulam na
superfície úmida e lamacenta das ruas. O olho que do alto se dirigisse para
todo aquele amálgama de sombras talvez entrevisse, aqui e ali, de tempos
em tempos, claridades indistintas que salientavam linhas trincadas e
estranhas, perfis de singulares construções, algo semelhante a uma luz
fraca indo e vindo nas ruínas; era ali que se encontravam as barricadas. O
resto era um lago de escuridão, enevoado, pesado e fúnebre, acima do qual
erguiam-se silhuetas imóveis e lúgubres, a torre Saint-Jacques, a igreja
Saint-Merry e dois ou três desses grandes edifícios que o homem
transforma em gigantes e a noite transforma em fantasmas.
Ao redor desse labirinto deserto e inquietante, nos bairros onde a
circulação parisiense não fora aniquilada e onde alguns raros lampiões
brilhavam, o observador aéreo poderia distinguir a cintilação metálica dos
sabres e das baionetas, o ribombar surdo da artilharia, e o formigamento
dos batalhões silenciosos aumentando de minuto em minuto, cinto
formidável que se estreitava e fechava em torno da revolta.
O bairro assim cercado parecia apenas uma caverna monstruosa; tudo
parecia adormecido ou imóvel, e, como acabamos de ver, cada uma das
ruas às quais se podia chegar não oferecia nada mais que sombra.
Sombra arredia, cheia de armadilhas, de choques desconhecidos e
temíveis, onde era assustador penetrar e apavorante permanecer, onde os
que entravam estremeciam na presença dos que os esperavam, onde os que
esperavam estremeciam diante dos que viriam. Combatentes invisíveis
escondidos em cada esquina das ruas; as ciladas do sepulcro escondidas na
espessura da noite. Era o fim. A partir desse momento, nenhuma claridade
poderia ser esperada ali além do relampejar das espingardas, nenhum
outro encontro além da repentina e inesperada aparição da morte. Onde?
Como? Quando? Não se sabia, mas era certo e inevitável. Ali, naquele
lugar marcado para a luta, o governo e a rebelião, a guarda nacional e as
sociedades populares, a burguesia e o motim se abordariam às apalpadelas.
Tanto para uns como para outros, a necessidade era a mesma. Sair dali, ou
mortos ou vencedores, única saída possível a partir de então. Situação de
tal modo crítica, obscuridade tão poderosa, que os tímidos sentiam-se
resolutos e os mais corajosos aterrorizados.
Quanto ao resto, de ambos os lados, fúria, ódio, obstinação, resolução
iguais. Para uns, avançar era morrer, mas ninguém pensava em recuar;
para outros permanecer era morrer, mas ninguém pensava em fugir.
Era necessário que no dia seguinte tudo estivesse terminado, quer o
triunfo fosse aqui ou ali, quer a insurreição fosse uma revolução, quer ela
fosse uma escaramuça. O governo compreendia-o tão bem como os
partidos; o menor dos burgueses o sentia. Daí a angústia que se mesclava à
sombra impenetrável desse bairro onde tudo seria decidido; daí o aumento
da ansiedade em torno desse silêncio de onde sairia uma catástrofe. Ouvia-
se um único som, som cortante como um estertor, ameaçador como uma
maldição: as badaladas de Saint-Merry. Nada mais gélido que o clamor
desse sino desvairado e desesperado lamentando-se nas trevas.
Como frequentemente acontece, a natureza parecia estar de acordo
com o que seria feito por aqueles homens. Nada perturbava as funestas
harmonias daquele conjunto. As estrelas haviam desaparecido; grossas
nuvens cobriam o horizonte com suas dobras melancólicas. O céu estava
negro sobre as ruas mortas, como se uma imensa mortalha se estendesse
sobre esse imenso túmulo.
Enquanto uma batalha, ainda completamente política, se preparava
neste mesmo lugar que tantos movimentos revolucionários já presenciara,
enquanto a juventude, as sociedades secretas, as escolas, em nome dos
princípios, e a classe média, em nome dos interesses, se aproximavam
para o confronto, para estreitar-se e destruir-se, enquanto cada um
apressava e chamava a hora derradeira e decisiva da crise, ao longe e fora
desse bairro fatal, do mais profundo das insondáveis cavidades dessa
miserável e velha Paris, que desaparece sob o esplendor da Paris feliz e
opulenta, ouvia-se o clamor surdo da sombria voz do povo.
Voz assustadora e sagrada, composta do rugir da besta e da voz de
Deus, que aterroriza os fracos e adverte aos sábios, que provém ao mesmo
tempo de baixo, como a voz do leão, e de cima, como a voz do trovão.

III. O LIMITE EXTREMO


Marius chegara aos depósitos.
Ali, tudo estava mais calmo, mais escuro e imóvel ainda do que nas
ruas vizinhas. Era possível dizer que a paz glacial do sepulcro saíra da
terra e se espalhara sob o céu.
Porém, um clarão avermelhado cortava, sob esse fundo negro, os
elevados telhados das casas que fechavam a rua de la Chanvrerie pelo lado
de Saint-Eustache. Era o reflexo da tocha que ardia na barricada da
Corinthe. Marius guiara-se por esse clarão. Este o levara ao Marché–aux-
poirées, e ele já entrevia a tenebrosa abertura da rua des Prêcheurs. Entrou.
A sentinela dos revoltosos, que vigiava do outro lado, não o viu. Sentia-se
muito próximo do que viera buscar e caminhava na ponta dos pés. Chegou
assim à esquina do pequeno trecho da ruazinha Mondétour, que, como
devemos lembrar, era a única comunicação mantida por Enjolras com o
exterior. No ângulo da última casa, à sua esquerda, estendeu o pescoço e
olhou com cuidado para o interior da ruazinha Mondétour.
Logo adiante da esquina formada pelas ruas Mondétour e de la
Chanvrerie, que projetava uma extensa toalha de sombra em que ele
próprio estava envolto, avistou alguns reflexos nos paralelepípedos, parte
da taverna e, atrás, um lampião piscando em uma espécie de muralha
informe, e homens agachados com espingardas sobre os joelhos. Tudo isso
estava a dez toesas de distância dele. Era o interior da barricada.
As casas que orlavam a ruazinha à direita escondiam dele o resto da
taverna, a grande barricada e a bandeira. Marius não tinha mais que um
passo a dar.
Então o infeliz rapaz sentou-se no limite, cruzou os braços e pensou no
pai.
Pensou naquele heroico coronel Pontmercy, soldado valente, que no
tempo da República defendera as fronteiras da França e no tempo do
imperador tocara as fronteiras da Ásia, que vira Gênova, Alexandria,
Milão, Turim, Madri, Viena, Dresden, Berlim, Moscou; que deixara, em
todos os campos de vitória da Europa, gotas desse mesmo sangue que ele,
Marius, trazia nas veias; que havia encanecido antes do tempo na
disciplina e no comando, que vivera com o cinturão afivelado, as
ombreiras caindo sobre o peito, o laço enegrecido pela pólvora, a testa
marcada pelo capacete, sob a barraca, no campo, nos acampamentos, nas
ambulâncias, e que após vinte anos voltara das grandes guerras com a face
marcada, o rosto sorridente, simples, tranquilo, admirável, puro como uma
criança, tendo feito tudo pela França e nada contra ela.
Pensou que sua vez também chegara, que sua hora enfim soara, que,
depois do pai, ele também seria bravo, intrépido, corajoso; iria enfrentar
balas, exporia seu peito às baionetas, derramaria seu sangue, procuraria o
inimigo, procuraria a morte, que ele também iria guerrear e desceria aos
campos de batalha, e que este campo de batalha para onde desceria seria a
rua, e que essa guerra seria a guerra civil!
Viu a guerra civil aberta como um abismo diante de si, e era nesse
abismo que iria cair.
Então estremeceu.
Pensou na espada de seu pai que o avô vendera a um antiquário, e que
ele tão dolorosamente lastimara. Disse a si mesmo que essa espada,
valente e casta, fizera bem em escapar-lhe e em fugir irritada para as
sombras; e que, se ela assim havia fugido, demonstrava inteligência e
previa o futuro; pressentia a revolta, a guerra das sarjetas, a guerra das
ruas, os tiroteios pelos respiradouros dos porões, os golpes dados e
recebidos traiçoeiramente; vinda de Marengo e de Friedland ela não queria
ir para a rua de la Chanvrerie; depois do que fizera com o pai, ela não
queria fazer isso com o filho! Marius pensou que se aquela espada
estivesse ali, se a tivesse recolhido à cabeceira de seu pai morto, se tivesse
ousado tomá-la e trazê-la a esse combate noturno entre franceses em um
cruzamento, certamente ela queimaria suas mãos e brilharia à sua frente
como a espada do anjo! Pensou que estava feliz por ela não estar ali e por
ter desaparecido, que isso era bom, que era justo, que seu avô fora o
verdadeiro guardião da glória de seu pai, e que era preferível que a espada
do coronel tivesse sido apregoada em um leilão, vendida ao antiquário,
jogada entre ferros velhos a sangrar, hoje, o solo da pátria.
Depois, chorou amargamente.
Aquilo era horrível! Mas o que fazer? Viver sem Cosette era
impossível. Já que ela partira, era preciso que ele morresse. Não lhe dera
sua palavra de honra de que morreria? Ela partira sabendo disso, então
gostaria que Marius morresse. Além disso, estava claro que ela não o
amava mais, de outro modo não teria partido assim, sem o avisar, sem
uma palavra, sem uma carta, e ela sabia seu endereço! Para que viver e por
que viver agora? Ora! Ter chegado até ali para depois recuar? Ter chegado
perto do perigo e fugir! Ver a barricada e esquivar-se! Esquivar-se trêmulo
dizendo: realmente estou saturado, eu vi, e isso é suficiente, é a guerra
civil, vou embora! Abandonar seus amigos que o esperavam! Que talvez
precisassem dele! Que eram um punhado contra um exército! Trair tudo ao
mesmo tempo, amor, amizade, sua palavra! Dar à sua covardia o pretexto
do patriotismo! Mas isso era impossível, e, se o fantasma de seu pai
estivesse ali nas sombras e o visse recuar, chicotearia suas costas com a
espada e gritaria: “Avante, covarde!”
Lutando com o vaivém de seus pensamentos, ele curvava a cabeça.
De repente, ergueu-a. Uma espécie de esplêndida retificação acabara
de surgir em seu espírito. Há uma espécie de dilatação de pensamento,
própria de quando estamos próximos ao túmulo; estar perto da morte, isso
destaca a verdade. A visão da ação na qual sentia-se a ponto de entrar
pareceu-lhe, não mais lamentável, mas maravilhosa. A guerra da rua
transfigurou-se subitamente, mediante não se sabe que trabalho interior da
alma, diante do olhar de seu pensamento. Todos os tumultuosos pontos de
interrogação do devaneio voltaram em peso, mas sem perturbá-lo. Não
deixou nenhum sem resposta.
Vejamos, por que seu pai se indignaria? Não existiriam casos em que a
insurreição ascende à dignidade do dever? Que haveria de humilhante para
o filho do coronel Pontmercy no combate que iria começar? Não é mais
Montmirail nem Champaubert; é outra coisa. Não se trata mais de um
território sagrado, mas de uma ideia sagrada. A pátria lamenta, é verdade;
mas a humanidade aplaude. Será mesmo verdade que a pátria lamenta? A
França sangra, mas a liberdade sorri; e, diante do sorriso da liberdade, a
França esquece sua ferida. Além do mais, olhando as coisas de um ponto
de vista mais alto ainda, que diriam da guerra civil?
A guerra civil? Que quer dizer? Haveria alguma guerra estrangeira?
Toda guerra entre homens não é uma guerra entre irmãos? A guerra não se
qualifica por seu objetivo. Não há nem guerra estrangeira nem guerra
civil; há somente a guerra injusta e a guerra justa. Até o dia em que a
grande concordata humana tiver sido concluída, a guerra, pelo menos
aquela que é o esforço do futuro que se apressa contra o passado que se
atrasa, pode ser necessária. O que temos a criticar nessa guerra? A guerra
só se torna vergonhosa, e a espada punhal, quando assassina o direito, o
progresso, a razão, a civilização, a verdade. Então, guerra civil ou
estrangeira, ela é iníqua; chama-se crime. Excetuando-se essa coisa
sagrada, a justiça, com que direito uma forma da guerra desprezaria uma
outra? Com que direito a espada de Washington renegaria a lança de
Camille Desmoulins? Leônidas contra o estrangeiro, Timoléon contra o
tirano, qual é o maior? Um é defensor, o outro, libertador.
Difamarão, sem preocupar-se com o objetivo, toda tomada de armas no
interior da cidade? Então classifiquem de infame Brutus, Marcel, Arnould
de Blankenheim, Coligny. Guerra das moitas? Guerra das ruas? Por que
não? Era a guerra de Ambiorix, de Artevelde, de Marnix, de Pélage. Mas
Ambiorix lutava contra Roma, Artevelde contra a França, Marnix contra a
Espanha, Pélage contra os mouros; todos contra o estrangeiro. Pois bem, a
monarquia é o estrangeiro; a opressão é o estrangeiro; o direito divino é o
estrangeiro. O despotismo viola a fronteira moral assim como a invasão
viola a fronteira geográfica. Expulsar o tirano ou o inglês, nos dois casos,
significa reconquistar seu território. Chega um momento em que protestar
já não basta; depois da filosofia, é necessária a ação; a força viva termina
o que a ideia esboçou. Prométhée enchaîné [Prometeu
acorrentado]começa, Aristogiton termina; a Enciclopédia ilumina as
almas, o 10 de agosto as eletriza. Depois de Ésquilo, Thrasybule; depois de
Diderot, Danton. As multidões tendem a aceitar o mestre. Sua massa
forma certa apatia. Uma multidão torna-se facilmente obediente. É
necessário sacudi-las, empurrá-las, maltratar os homens para o bem de sua
própria libertação, ferir seus olhos com a verdade, lançar-lhes luz em
terríveis punhados. É preciso que eles mesmos sejam um pouco
fulminados por sua própria salvação; esse deslumbramento os desperta.
Daí a necessidade dos toques de alarme e das guerras. É preciso que
grandes combatentes se levantem, iluminem as nações pela audácia e
sacudam esta triste humanidade que o direito divino, a glória dos césares,
a força, o fanatismo, o poder irresponsável e as majestades absolutas
cobrem de sombra; turba estupidamente ocupada em contemplar, em seu
esplendor crepuscular, os sombrios triunfos da noite. Abaixo o tirano! Mas
o quê? De quem falam? Chamam Luís Filipe de tirano? Não, não mais que
Luís XVI. Ambos são o que a história costuma denominar bons reis; mas
os princípios não se retalham, a lógica da verdade é retilínea, é próprio da
verdade a falta de complacência; portanto, nada de concessões; toda
usurpação do homem deve ser reprimida; há direito divino em Luís XVI,
assim como em Luís Filipe há o porque é Bourbon; ambos, de certa forma,
representam o confisco do direito, e para exterminar a usurpação universal
é necessário combatê-los; é preciso, e a França é sempre a que começa.
Quando o amo cai na França, cai em todos os lugares. Em suma,
restabelecer a verdade social, restituir o trono à liberdade, restituir o povo
ao povo, restituir ao homem a soberania, tornar a colocar a dignidade
soberana na cabeça da França, restaurar em toda a sua plenitude a razão e a
equidade, suprimir todo o germe de antagonismo restituindo cada um a si
mesmo, aniquilar o obstáculo que a realeza oferece à imensa concórdia
universal, recolocar o gênero humano no mesmo nível que o direito, que
causa mais justa e, consequentemente, que guerra maior? Essas guerras
constroem a paz. Uma fortaleza enorme de preconceitos, privilégios,
superstições, mentiras, exações, abusos, violências, iniquidades e trevas
ainda paira sobre o mundo com suas torres de ódio. É preciso derrubá-la. É
preciso destruir essa massa monstruosa. Vencer em Austerlitz é grande,
tomar a Bastilha é imenso.
Não há ninguém que não o tenha observado em si mesmo: a alma, e
nisso está a maravilha de sua unidade, complicada pela ubiquidade, tem
essa estranha aptidão de raciocinar quase que friamente nos extremos mais
violentos; e frequentemente acontece que a paixão desolada e o desespero
profundo, na própria agonia de seus monólogos mais tenebrosos, tratem de
assuntos e discutam teses. A lógica mistura-se à convulsão, e o fio do
silogismo flutua, sem arrebentar, na tempestade lúgubre do pensamento.
Esse era o estado de espírito de Marius.
Enquanto assim pensava, acabrunhado mas resoluto, embora hesitando,
e, em suma, receoso diante do que iria fazer, seu olhar errava pelo interior
da barricada. Os revoltosos conversavam em voz baixa, sem se agitar, e
sentia-se esse meio silêncio que caracteriza a última fase da espera. Acima
deles, no postigo de um terceiro andar, Marius distinguia uma espécie de
espectador ou testemunha que lhe parecia estranhamente atento. Era o
porteiro morto por Le Cabuc. Visto de baixo, aos reflexos da tocha
escondida no meio dos paralelepípedos, podia-se vagamente ver aquela
cabeça. Nada era mais estranho do que, ao sombrio e incerto reflexo
daquela luz trêmula, aquela face lívida, imóvel, espantada, com os cabelos
eriçados, os olhos abertos e fixos e a boca escancarada, debruçada para a
rua em atitude de curiosidade. Parecia que o morto contemplava os que
iam morrer. Um longo rastro de sangue, que havia escorrido daquela
cabeça, descia em fios avermelhados parede abaixo, até junto das janelas
onde o primeiro andar terminava.
LIVRO XIV
AS GRANDEZAS DO DESESPERO

I. A BANDEIRA — PRIMEIRO ATO


NADA AINDA. Acabavam de soar dez horas em Saint-Merry. Enjolras e
Combeferre tinham ido sentar-se, carabina na mão, perto da brecha da
grande barricada. Não se falavam; escutavam, procurando captar o menor
rumor de passos, bem como o mais longínquo.
De súbito, do meio do profundo e lúgubre silêncio que os rodeava, uma
voz clara, forte e alegre, que parecia vir da rua Saint-Denis, elevou-se e
começou a cantar distintamente sobre a antiga canção popular Au clair de
la lune esta poesia terminada por uma espécie de grito semelhante ao
canto do galo:

Mon nez est en larmes.


Mon ami Bugeaud,
Prêt’-moi tes gendarmes,
Pour leur dire un mot.
En capote bleue,
La poule au shako,
Voici la banlieue!
Co-cocoricó!

Meu nariz está em lágrimas.


Meu amigo Bugeaud,
Empreste-me seus guardas,
Para dizer-lhes uma palavra.
De capa azul,
A galinha de capacete,
Eis o subúrbio!
Co-cocoricó!

Apertaram-se as mãos.
— É Gavroche — disse Enjolras.
— Vem nos informar — disse Combeferre.
O som de uma corrida perturbou a rua deserta, viram um ser mais ágil
que um malabarista pular o ônibus, e Gavroche saltou para dentro da
barricada esbaforido, dizendo:
— Minha espingarda! Aí vêm eles!
Um arrepio percorreu toda a barricada, e ouviu-se o movimento das
mãos à procura das espingardas.
— Quer a minha carabina? — disse Enjolras ao moleque.
— Quero a espingarda grande — respondeu Gavroche.
E pegou a espingarda de Javert.
Quase ao mesmo tempo que Gavroche, duas sentinelas entraram na
barricada, encolhidas. Eram a sentinela do final da rua e o vigia da Petite-
Truanderie. A sentinela da rua des Prêcheurs tinha permanecido em seu
posto, o que indicava que nada vinha do lado das pontes e dos depósitos.
A rua de la Chanvrerie, na qual apenas alguns paralelepípedos eram
um pouco visíveis ao reflexo da luz que se projetava sobre a bandeira,
oferecia aos revoltosos o aspecto de um grande pórtico negro, ligeiramente
aberto em meio à fumaça.
Cada qual havia ocupado seu posto de combate.
Quarenta e três revoltosos, entre os quais Enjolras, Combeferre,
Courfeyrac, Bossuet, Joly, Bahorel e Gavroche estavam de joelhos na
grande barricada, atentos, silenciosos, prontos a abrir fogo, com as cabeças
no nível do topo da barreira e os canos dos fuzis e das carabinas apontados
para o solo, como que em uma seteira. Seis comandados de Feuilly tinham
se instalado no peitoril das janelas dos dois andares da Corinthe, os fuzis
em posição.
Decorreram-se ainda alguns instantes, em seguida um ruído de passos,
comedidos, pesados, numerosos, fez-se ouvir distintamente pelos lados de
Saint-Leu. Esse ruído, em princípio fraco, depois preciso, depois pesado e
sonoro, aproximava-se lentamente, sem parar, sem interrupção, com uma
continuidade tranquila e terrível. Não se ouvia nada além disso. Era, ao
mesmo tempo, o silêncio e o ruído da estátua do comendador; mas esse
passo de pedra possuía um não sei que de enorme e de múltiplo que
despertava a ideia de uma multidão e também a de um espectro. Tinha-se a
impressão de ouvir andar a assustadora estátua Légion.1 Esse passo
aproximou-se; aproximou-se mais e parou. Parecia ouvir-se o som da
respiração de muitos homens na extremidade da rua. Entretanto, nada se
via, apenas distinguia-se bem ao fundo, naquela espessa obscuridade, uma
profusão de fios metálicos, finos como agulhas e quase imperceptíveis,
que se agitavam, semelhantes a essas indescritíveis redes fosforescentes
que no momento de adormecer são vistas sob as pálpebras cerradas, nas
primeiras neblinas do sono. Eram as baionetas e os canos dos fuzis
confusamente iluminados pelo reflexo longínquo da tocha.
Houve mais uma pausa, como se, dos dois lados, aguardassem. De
repente, do fundo dessa sombra, uma voz, ainda mais sinistra pois não se
via ninguém, e porque dava a impressão de que era a própria escuridão
quem falava, disse:
— Quem está aí?
E ouviu-se, ao mesmo tempo, o tinido dos fuzis apontando.
Enjolras respondeu em tom vibrante e altivo:
— A Revolução Francesa!
— Fogo! — disse a voz.
Um clarão avermelhou todas as fachadas da rua como se a porta de
uma fornalha se abrisse e se fechasse bruscamente.
Uma assustadora detonação estourou sobre a barricada. A bandeira
vermelha caiu. A descarga fora tão violenta e tão densa que cortara a
haste, isto é, a própria ponta do timão do ônibus. Algumas balas, que
haviam ricocheteado nas cornijas das casas, penetraram na barricada
ferindo vários homens.
A impressão dessa primeira descarga foi enregelante. O ataque era
rude e de natureza a fazer meditar os mais ousados. Era evidente que
estavam lidando com um batalhão inteiro.
— Camaradas! — gritou Courfeyrac. — Não desperdicemos pólvora.
Esperemos que eles entrem na rua para revidar.
— E, antes de tudo — continuou Enjolras —, que seja hasteada
novamente a bandeira!
E, ao dizer isso, levantou a bandeira que caíra a seus pés.
Fora, ouvia-se apenas o tinido que os soldados faziam com as varetas,
carregando de novo as armas.
Enjolras continuou:
— Quem aqui tem coragem? Quem é que vai repor a bandeira no alto
da barricada?
Ninguém respondeu. Subir à barricada naquele momento em que ela,
sem dúvida, estava novamente sob a mira de tantas armas, era
simplesmente a morte. O mais corajoso hesita em condenar-se. O próprio
Enjolras estremeceu.
— Ninguém se apresenta?

II. A BANDEIRA — SEGUNDO ATO


Desde que haviam chegado à Corinthe, e que haviam iniciado a
construção da barricada, ninguém mais se preocupara com Pai Mabeuf. E,
no entanto, o senhor Mabeuf não deixara o grupo. Ele entrara na parte
térrea da taverna e se sentara atrás do balcão. Ali ficara, por assim dizer,
inteiramente alheado em si mesmo. Parecia não mais ver e nem mais
pensar. Por duas ou três vezes, Courfeyrac e outros chegaram perto dele
advertindo-o do perigo, instando-o a se retirar, sem que desse mostras de
tê-los ouvido. Quando ninguém lhe dirigia a palavra, seus lábios se
moviam como se estivesse respondendo a alguém, e, quando lhe falavam,
ficavam imóveis e seus olhos pareciam sem vida. Algumas horas antes que
a barricada fosse atacada, tomara uma posição da qual não mais saíra, os
punhos apoiados nos joelhos e a cabeça inclinada para a frente como se
olhasse para um precipício. Nada conseguiu tirá-lo dessa posição; parecia
que seu espírito não estava na barricada. Quando cada um foi ocupar seu
posto para o combate, os únicos que ficaram na sala foram Javert, preso ao
poste, um dos revoltosos de sabre desembainhado, vigiando Javert, e ele,
Mabeuf.
No momento do ataque, o abalo físico da detonação o atingiu e como
que o despertou; então levantou-se bruscamente, atravessou a sala e, no
momento em que Enjolras repetia seu apelo: “Ninguém se apresenta?”,
viram o velho aparecer à porta da taverna.
Sua presença provocou uma espécie de comoção nos grupos. Um grito
se ouviu:
— É o votante! É o convencional! É o representante do povo!
É bem provável que ele não escutasse.
Caminhou na direção de Enjolras, os revoltosos afastavam-se diante
dele com temor religioso; tirou a bandeira das mãos de Enjolras, que
recuou petrificado, e então, sem que ninguém ousasse impedi-lo ou ajudá-
lo, esse ancião de oitenta anos, cabeça trêmula, pés firmes, começou a
subir vagarosamente a escada de pedra construída na barricada. A cena era
tão sombria e grandiosa que todos ao seu redor gritaram: “Tirem os
chapéus!” A cada degrau que subia, isso era assustador, seus cabelos
brancos, sua face decrépita, sua grande fronte calva e enrugada, seus olhos
encovados, sua boca espantada e aberta, seu velho braço levando a
bandeira vermelha, saíam das sombras e cresciam na claridade sangrenta
do archote; e julgava-se ver o espectro de 93 saindo da terra, com a
bandeira do terror nas mãos.
Quando chegou ao último degrau, quando aquele trêmulo e terrível
fantasma, de pé sobre aquele monte de escombros, em presença de mil e
duzentas espingardas invisíveis, se ergueu diante da morte e como se fosse
mais forte que ela, a barricada assumiu um aspecto sobrenatural e
colossal.
Seguiu-se um desses silêncios que só se observam em volta dos
prodígios.
No meio desse silêncio, o ancião agitou a bandeira vermelha e gritou:
— Viva a Revolução! Viva a República! Fraternidade! Igualdade! E a
morte!
Ouviu-se um murmúrio baixo e rápido da barricada, semelhante ao de
um padre que deseja terminar depressa uma oração. Provavelmente era o
comissário de polícia fazendo as intimações legais na outra extremidade
da rua.
Depois, a mesma voz sonora que perguntara quem está aí? gritou:
— Retire-se!
O senhor Mabeuf, pálido, espantado, com os olhos iluminados pelas
lúgubres chamas do desvario, elevou a bandeira acima da cabeça e repetiu:
— Viva a República!
— Fogo! — disse a voz.
Uma segunda descarga, semelhante a uma metralha, caiu sobre a
barricada.
O ancião curvou os joelhos, depois levantou-se, deixou cair a bandeira
e caiu de costas sobre a calçada, como uma tábua, estendido, os braços em
cruz.
De seu corpo corriam filetes de sangue. A velha cabeça, pálida e triste,
parecia olhar o céu.
Uma dessas emoções superiores ao homem, que fazem com que nos
esqueçamos até de nos defender, apoderou-se dos revoltosos, e eles se
aproximaram do cadáver tomados de respeitoso pavor.
— Que homens esses regicidas! — disse Enjolras.
Courfeyrac disse ao ouvido de Enjolras:
— Isso é só para você, e eu não quero diminuir o entusiasmo. Mas era
somente um regicida. Eu o conheci. Ele se chamava Pai Mabeuf. Não sei o
que tinha hoje. Mas era um bravo tolo. Veja sua cabeça.
— Cabeça de tolo, mas coração de Brutus — respondeu Enjolras.
E depois elevou a voz:
— Cidadãos! Eis o exemplo que os velhos dão aos jovens. Nós
hesitávamos, ele veio! Nós recuávamos, ele avançou! Eis o que os que
tremem de velhice ensinam aos que tremem de medo! Esse avô é um
augusto perante a pátria. Teve vida longa e morte magnífica! Agora
recolhamos o cadáver, que cada um de nós defenda esse velho morto como
defenderia seu pai vivo, e que sua presença entre nós torne inconquistável
a barricada!
Um murmúrio de adesão, morno e enérgico, seguiu-se a essas palavras.
Enjolras curvou-se, ergueu a cabeça do ancião e bravamente beijou-lhe
a testa; depois, afastando-lhe os braços e manipulando esse morto com
terna precaução, como se temesse machucá-lo, tirou-lhe o casaco, mostrou
a todos os buracos ensanguentados e disse:
— É esta agora a nossa bandeira.

III. GAVROCHE TERIA FEITO MELHOR SE


ACEITASSE A CARABINA DE ENJOLRAS
Sobre Pai Mabeuf, jogaram um longo xale preto da viúva Hucheloup.
Seis homens fizeram com seus fuzis uma maca, ali colocaram o cadáver e
o carregaram, cabeças descobertas, com uma solene lentidão, até a mesa
grande da sala baixa.
Esses homens, completamente absortos na ação grave e sagrada que
executavam, não pensavam mais na situação perigosa em que se
encontravam.
Quando o cadáver passou perto de Javert, sempre impassível, Enjolras
disse ao espião:
— Você! Logo mais.
Enquanto isso, o pequeno Gavroche, único que não abandonara seu
posto e ficara observando, pensou ver homens aproximando-se
sorrateiramente da barricada. De repente gritou:
— Cuidado!
Courfeyrac, Enjolras, Jean Prouvaire, Combeferre, Joly, Bahorel,
Bossuet, todos saíram em tumulto da taverna. Quase não dava mais tempo.
Via-se o brilho de grande número de baionetas ondulando acima da
barricada. Guardas municipais de alta estatura já entravam, uns passando
por cima do ônibus, outros pela pequena abertura, empurrando o garoto
que recuava, mas não fugia.
O momento era crítico. Era como aquele primeiro e temido minuto da
inundação, quando o rio se levanta ao nível da barragem e a água começa a
infiltrar-se pelas fendas do dique. Mais um segundo e a barricada seria
tomada.
Bahorel precipitou-se sobre o primeiro guarda municipal que tentava
entrar e o matou à queima-roupa, com um tiro de carabina; o segundo
matou Bahorel com um golpe de baioneta. Outro já tinha derrubado
Courfeyrac, que gritava: “A mim!” O mais alto de todos, espécie de
colosso, marchava sobre Gavroche de baioneta em riste. O garoto pegou
com seus pequenos braços o enorme fuzil de Javert, mirou resolutamente o
gigante e disparou. Nada aconteceu. Javert não carregara seu fuzil. O
guarda municipal deu uma gargalhada e apontou a baioneta para o menino.
Antes que a baioneta tivesse tocado Gavroche, o fuzil escapava das
mãos do soldado, uma bala atingia o guarda municipal no meio da testa e
ele caía de costas. Uma segunda bala atingia em cheio o peito do outro
guarda que havia atacado Courfeyrac, jogando-o no chão.
Era Marius que acabava de entrar na barricada.
IV. O BARRIL DE PÓLVORA
Marius, sempre escondido na esquina da rua Mondétour, assistira à
primeira fase do combate, indeciso e trêmulo. Entretanto, não pôde resistir
por mais tempo à soberana e misteriosa vertigem a que poderíamos
chamar de atração do abismo. Diante da iminência do perigo, diante da
morte de Mabeuf, aquele fúnebre enigma, diante de Bahorel morto, de
Courfeyrac gritando: “A mim!”, daquela criança ameaçada, de seus
amigos a socorrer ou a vingar, desvaneceu-se toda a sua hesitação e ele
precipitou-se na confusão com duas pistolas em punho. Com o primeiro
tiro salvara Gavroche, com o segundo livrara Courfeyrac.
Ao estampido dos tiros, aos gritos dos guardas feridos, os assaltantes
haviam subido à barricada, em cuja crista viam-se agora erguer-se, até
mais de meio corpo e em grande número, guardas municipais, soldados de
infantaria, guardas nacionais dos subúrbios, todos, fuzis em punho. Já
cobriam mais de dois terços da barricada, mas não ousavam saltar para seu
interior, como se hesitassem, temendo uma cilada. Olhavam para a
barricada obscura como se olhassem para um antro de leões. O clarão do
archote iluminava apenas as baionetas, as barretinas de pelo e a parte
superior dos rostos inquietos e irritados.
Marius não tinha mais armas, havia jogado suas pistolas
descarregadas, mas percebera o barril de pólvora perto da porta na sala ao
rés do chão.
No momento em que se voltava, olhando para aquele lado, um dos
soldados apontou-lhe a arma. Nesse instante, uma mão agarrou a
extremidade do cano do fuzil e o tapou. Alguém decidira intervir, o jovem
operário das calças de veludo. O tiro partiu, atravessou a mão e talvez o
operário, porque este caiu, mas a bala não atingiu Marius. Tudo isso em
meio à fumaça, mais entrevisto que propriamente visto. Marius, que
entrava na sala baixa, mal percebeu. Porém, vira confusamente o cano da
espingarda apontado em sua direção, aquela mão que o tampara, e ouvira o
tiro. Mas, em instantes como esses, as coisas que vemos vacilam e se
precipitam sem dar tempo para considerações. Sentimo-nos
misteriosamente impelidos para uma escuridão ainda mais densa, e tudo é
nevoeiro.
Os insurgentes, surpreendidos, mas não assustados, haviam se reunido.
Enjolras gritou: “Esperem! Não atirem ao acaso!” Efetivamente, na
confusão do primeiro momento poderiam ferir-se uns aos outros. A
maioria deles havia subido às janelas do primeiro andar e às águas-
furtadas, de onde dominavam os assaltantes. Os mais resolutos, com
Enjolras, Courfeyrac, Jean Prouvaire e Combeferre, corajosamente
encostaram-se às casas do fundo, sem cobertura, de frente para as fileiras
de soldados e guardas que coroavam a barricada.
Tudo isso foi feito sem precipitação, com essa estranha e ameaçadora
gravidade que precede o combate. De ambas as partes apontavam-se as
armas, de muito perto, tão próximos ficavam que poderiam conversar.
Quando chegou o momento em que a faísca parece estar a ponto de saltar,
um oficial de gola bordada e grandes dragonas levantou a espada e disse:
— Apontar!
— Fogo! — disse Enjolras.
As duas detonações partiram ao mesmo tempo e tudo desapareceu na
fumaça.
Fumaça acre e sufocante, onde se arrastavam, com gemidos fracos e
surdos, moribundos e feridos.
Quando a fumaça se dissipou, eram vistos os combatentes de ambos os
lados, clareados, mas sempre nos mesmos lugares, recarregando suas
armas em silêncio.
De repente, ouviu-se uma voz forte que gritava:
— Retirem-se, ou faço saltar a barricada!
Todos se voltaram para o lado de onde vinha a voz.
Marius havia entrado na sala baixa e pegara o barril de pólvora;
depois, aproveitou-se da fumaça e da espécie de nevoeiro escuro que
enchia o interior da barricada para esgueirar-se até o monte de pedras onde
estava fixado o archote. Arrancar a tocha, colocar o barril de pólvora,
empurrar a pilha de paralelepípedos sob o barril, que rapidamente se
abrira, com uma espécie de terrível obediência, tudo isso fora para Marius
o tempo de se abaixar e de se levantar; e agora, todos, guardas nacionais,
guardas municipais, oficiais, soldados amontoados na outra extremidade
da barricada, contemplavam-no estupefatos, o pé sobre os paralelepípedos,
o archote na mão, o orgulhoso rosto iluminado por uma resolução fatal,
inclinando a chama da tocha na direção do temeroso amontoado onde se
distinguia o barril de pólvora rachado, e soltando este grito aterrador:
— Retirem-se, ou faço saltar a barricada!
Marius, em cima dessa barricada, depois do octogenário, era a visão da
revolução jovem depois da aparição da velha.
— Saltar a barricada! — disse um sargento. — E você também!
Marius respondeu:
— E eu também!
E, ao dizer isso, aproximou a tocha do barril de pólvora.
Porém, sobre a barricada já não se via ninguém. Os assaltantes,
abandonando seus mortos e feridos, afastavam-se em uma confusa
desordem para a extremidade da rua e desapareciam novamente na noite.
Foi um salve-se quem puder.
A barricada estava livre.

V. FIM DOS VERSOS DE JEAN PROUVAIRE


Todos cercaram Marius. Courfeyrac o abraçou impetuosamente.
— Aqui está você!
— Que bom! — disse Combeferre.
— Você chegou na hora certa! — disse Bossuet.
— Sem você, eu estaria morto! — falou novamente Courfeyrac.
— Sem o senhor, eu seria engolido! — acrescentou Gavroche.
Marius perguntou:
— Onde está o chefe?
— É você — disse Enjolras.
Marius sentira, durante todo o dia, uma espécie de fornalha no cérebro;
agora sentia um turbilhão. Esse turbilhão parecia arrebatá-lo e fazia com
que se sentisse fora de si.
Parecia-lhe já estar a uma imensa distância da vida. Seus dois
luminosos meses de alegria e amor terminavam bruscamente nesse
medonho precipício, Cosette perdida para ele, esta barricada, o senhor
Mabeuf sendo morto em favor da república, ele mesmo chefe dos
revoltosos, tudo isso lhe parecia um monstruoso pesadelo. Necessitava
fazer um esforço espiritual para lembrar de que tudo que o rodeava era
real. Marius vivera muito pouco ainda para saber que não há nada mais
iminente do que o impossível e que o que sempre é preciso prever é o
imprevisto. Ele assistia a seu próprio drama como uma peça
incompreensível.
Nessa névoa onde estava seu pensamento, não reconheceu Javert, que,
amarrado a seu poste, não fizera um movimento sequer com a cabeça
durante o ataque da barricada, e olhava a revolta agitar-se em torno de si
com a resignação de um mártir e a majestade de um juiz. Marius não
percebeu sua presença.
Todavia, os assaltantes não se mexiam mais, permaneciam na
extremidade da rua, de onde se ouviam seus passos e sua agitação, mas ali
não se aventuravam, ou porque esperassem ordens, ou porque aguardassem
reforço antes de novamente se precipitarem sobre o invencível reduto. Os
revoltosos haviam postado sentinelas, e alguns que eram estudantes de
medicina começaram a tratar dos feridos.
Colocaram as mesas fora da taverna e as acrescentaram à barricada,
com exceção de duas reservadas para as ataduras e para os cartuchos, e
daquela em que jazia o corpo de Pai Mabeuf; essas mesas foram
substituídas na sala baixa pelos colchões das camas da viúva Hucheloup e
das criadas. Sobre esses colchões estenderam os feridos. Quanto às três
pobres criaturas que habitavam a Corinthe, não se sabia o que fora feito
delas. Mas acabaram por encontrá-las escondidas no porão.
Uma pungente emoção veio sombrear o prazer da liberação da
barricada.
Feita a chamada, verificou-se que faltava um dos revoltosos. Quem?
Um dos mais caros, um dos mais valorosos, Jean Prouvaire. Procuraram-
no entre os feridos, não estava. Procuraram-no entre os mortos, não estava.
Era evidente que fora feito prisioneiro.
Combeferre disse a Enjolras:
— Eles estão com nosso amigo; nós temos o agente deles. Você faz
questão da morte desse espião?
— Sim — respondeu Enjolras —, porém menos do que da vida de Jean
Prouvaire.
Isso se passava na sala baixa, perto do poste de Javert.
— Então — continuou Combeferre —, atarei um lenço a minha
bengala e irei como parlamentar oferecer-lhes a troca de nosso prisioneiro
pelo deles.
— Ouça — disse Enjolras, pousando a mão no braço de Combeferre.
Ouvia-se na extremidade da rua um significativo tinido de armas.
Ouviu-se uma voz varonil gritar:
— Viva a França! Viva o futuro!
Reconheceram a voz de Jean Prouvaire.
Houve um clarão e o estrondo de uma detonação.
O silêncio voltou.
— Foi morto — exclamou Combeferre.
Enjolras olhou para Javert e lhe disse:
— Seus amigos acabam de fuzilá-lo!

VI. A AGONIA DA MORTE DEPOIS DA AGONIA DA


VIDA
Uma das singularidades desse gênero de guerra é que o ataque às
barricadas é feito quase sempre de frente, e que, em geral, os assaltantes se
abstêm de inverter as posições, seja com receio de alguma emboscada,
seja por temerem embrenhar-se em ruas tortuosas. Por isso, toda a atenção
dos insurgentes se dirigia para o lado da barricada grande, que era
evidentemente o ponto sempre ameaçado, e onde, infalivelmente, deveria
recomeçar a luta. Porém, Marius lembrou da pequena barricada e foi até
lá. Ela estava deserta e guardada apenas pelo lampião que tremia entre os
paralelepípedos. Quanto à ruazinha Mondétour e às ramificações da Petite-
Truanderie e du Cygne, estavam profundamente calmas.
Quando Marius, concluída sua inspeção, se retirava, ouviu seu nome
pronunciado de forma bem fraca na escuridão:
— Senhor Marius!
Estremeceu, pois reconheceu a voz que, duas horas antes, o havia
chamado através da grade da rua Plumet.
A voz, porém, parecia agora não passar de um sopro.
Ele olhou à sua volta e não viu ninguém.
Marius julgou ter-se enganado, achando que era uma ilusão
acrescentada por seu espírito às extraordinárias realidades que se
chocavam ao seu redor. Deu um passo para sair do recuo onde estava a
barricada.
— Senhor Marius! — repetiu a voz.
Dessa vez não havia dúvidas. Ouvira distintamente; olhou e não viu
nada.
— A seus pés — disse a voz.
Abaixou-se e viu na escuridão um vulto arrastando-se em direção a ele.
Era aquilo que lhe falava.
O lampião permitia que distinguisse uma blusa, uma calça de grosso
veludo rasgado, pés descalços e algo que parecia com uma poça de sangue.
Marius entreviu uma cabeça pálida que se erguia para ele e que lhe disse:
— Não me reconhece?
— Não.
— Éponine.
Marius abaixou-se rapidamente. Realmente era essa infeliz criança.
Estava vestida como um homem.
— Como veio parar aqui? O que faz aqui?
— Estou morrendo — disse ela.
Há palavras e incidentes que despertam os seres angustiados. Marius
exclamou sobressaltado:
— Está ferida! Espere, vou levá-la para a sala. Irão tratá-la. É grave?
Como devo carregá-la para não machucá-la? Onde dói? Socorro! Meu
Deus! Mas o que veio fazer aqui?
E tentou passar o braço por baixo de seu corpo para erguê-la.
Ao erguê-la, encontrou sua mão.
Ela deu um grito fraco.
— Machuquei-a? — perguntou Marius.
— Um pouco.
— Mas só toquei sua mão.
Ela levantou a mão para o olhar de Marius, e Marius viu um buraco
negro no meio dessa mão.
— O que tem sua mão? — disse ele.
— Foi furada.
— Furada!
— Sim.
— Com quê?
— Com uma bala.
— Como?
— Viu um fuzil que lhe apontavam?
— Sim, e uma mão que o tapou.
— Era a minha.
Marius estremeceu.
— Que loucura! Pobre criança! Mas ainda bem, se é só isso, não é
nada. Deixe-me carregá-la até uma cama. Vão fazer um curativo, não se
morre de uma mão furada.
Ela murmurou:
— A bala atravessou a mão, mas saiu pelas costas. É inútil tirar-me
daqui. Vou lhe dizer como pode enfaixar-me melhor que um cirurgião.
Sente-se aqui, nesta pedra, perto de mim.
Ele obedeceu; ela encostou a cabeça nos joelhos de Marius e, sem
olhar para ele, disse:
— Oh! Como é bom! Como estamos bem! Pronto! Não sofro mais!
Permaneceu um instante em silêncio, depois virou o rosto com esforço
e olhou para Marius.
— Sabe de uma coisa, senhor Marius? Eu ficava contrariada quando o
senhor entrava naquele jardim; era tolice, já que fui eu mesma quem lhe
mostrou a casa, e, enfim, eu me dizia que um rapaz como o senhor…
Interrompeu-se e, transpondo as sombrias transições que decerto tinha
no espírito, continuou com dilacerante sorriso:
— O senhor me achava feia, não é?
E continuou:
— Veja, o senhor está perdido! Agora ninguém mais sairá da barricada.
Fui eu quem o trouxe aqui! Vai morrer, conto com isso. E, no entanto,
quando vi que o visavam, coloquei a mão na frente do cano do fuzil. Que
estranho! Mas é porque eu queria morrer antes do senhor! Quando a bala
me atingiu, arrastei-me até aqui, não me viram, não me pegaram. Eu o
esperava, eu pensava: “Então ele não virá?” Oh! Se soubesse, eu mordia
minha blusa, sofria tanto! Agora estou bem. Lembra-se do dia em que
entrei em seu quarto e me olhei em seu espelho, e do dia em que o
encontrei no bulevar perto de algumas mulheres? Como os pássaros
cantavam! Nem faz muito tempo. O senhor me deu cem soldos, e eu lhe
disse: “Não quero seu dinheiro”. Pelo menos recolheu seu dinheiro? O
senhor não é rico. Eu nem pensei em dizer-lhe que o pegasse. Havia um
lindo sol, não sentíamos frio. Lembra-se, senhor Marius? Oh! Estou feliz!
Todos vão morrer.
Ela tinha um ar insensato, grave e tocante. Sua blusa rasgada mostrava
seu pescoço nu. Ela apoiava a mão machucada sobre o peito onde havia
outro buraco, do qual, por instantes, saía uma golfada de sangue
semelhante a um jato de vinho saindo de um gargalo aberto.
Marius contemplava a infeliz com ar de profunda compaixão.
— Oh! — disse ela de repente. — Está voltando. Estou sufocando!
Agarrou a blusa e a mordeu, e suas pernas esticaram-se sobre o
calçamento.
Nesse momento, a voz de galo jovem do pequeno Gavroche ressoou na
barricada. O menino subira em cima de uma mesa para carregar sua
espingarda e cantava alegremente a canção tão popular:

En voyant Lafayette,
Le gendarme répète:
Sauvons-nous! sauvons-nous! sauvons-nous!

Vendo Lafayette,
O guarda repete:
Fujamos! Fujamos! Fujamos!

Éponine ergueu-se, escutou, depois murmurou:


— É ele!
E voltando-se para Marius:
— Meu irmão está aqui. Não pode me ver. Ele ralharia comigo.
— Seu irmão! — perguntou Marius, que pensava, no mais amargo e
doloroso de seu coração, nos deveres que seu pai lhe havia legado para
com os Thénardier. — Quem é seu irmão?
— Esse pequeno.
— O que canta?
— Sim.
Marius fez um movimento.
— Oh! Não vá embora! — disse ela. — Falta pouco agora!
Ela estava meio sentada, mas sua voz era baixa e entrecortada de
soluços. De vez em quando era interrompida pelo estertor. Aproximava seu
rosto o mais que podia do rosto de Marius. Acrescentou com estranha
expressão:
— Escute. Não quero pregar-lhe uma peça. Tenho aqui no bolso uma
carta para o senhor. Desde ontem. Pediram-me que a colocasse no correio.
Eu a guardei. Não queria que chegasse a suas mãos! Mas talvez o senhor
se aborreça comigo quando logo mais nos reencontrarmos. Vamos nos ver
novamente, não é? Pegue sua carta.
Ela segurou convulsivamente a mão de Marius com sua mão furada,
mas não parecia mais sentir dor. Colocou a mão de Marius no bolso de sua
blusa. De fato, Marius sentiu ali um papel.
— Pegue — disse ela.
Marius pegou a carta.
Ela fez um gesto de satisfação e de consentimento.
— Agora, pelo meu sofrimento, prometa-me…
E parou.
— O quê? — perguntou Marius.
— Prometa-me!
— Prometo.
— Prometa-me que me dará um beijo na testa quando já estiver morta.
Eu o sentirei.
Ela deixou cair outra vez a cabeça sobre os joelhos de Marius e suas
pálpebras se fecharam. Ele pensou que essa pobre alma partira. Éponine
permanecia imóvel; de súbito, no momento em que Marius a julgava
adormecida para sempre, ela abriu lentamente seus olhos, nos quais se
divisava a sombria profundidade da morte, e disse-lhe em um tom cuja
suavidade já parecia vir de um outro mundo:
— Além do mais, senhor Marius, eu acho que estava um tanto
apaixonada pelo senhor.
Ela ainda tentou sorrir e expirou.

VII. GAVROCHE, PROFUNDO CALCULADOR DE


DISTÂNCIAS
Marius cumpriu sua promessa. Deu um beijo naquela fronte lívida,
onde escorria em forma de pérolas um suor gelado. Não era uma
infidelidade a Cosette; era um adeus pensativo e doce a uma alma infeliz.
Foi com um estremecimento que pegou a carta que Éponine lhe dera.
Tinha imediatamente sentido que ali havia algo importante. Estava
impaciente por lê-la. O coração do homem é feito dessa maneira, a
desafortunada criança mal fechara os olhos e Marius pensava em
desdobrar o papel. Pousou-a docemente no chão e se foi. Algo lhe dizia
que não podia ler essa carta diante do cadáver.
Entrou na sala baixa e aproximou o papel de uma vela. Era um
bilhetinho dobrado e lacrado com o elegante esmero das mulheres. O
endereço era de uma caligrafia feminina e dizia:
— Ao Senhor Marius Pontmercy, em casa do Senhor Courfeyrac, rua
de la Verrerie, número 16.
Marius rompeu o lacre e leu:

“Meu bem amado, infelizmente meu pai quer que partamos já. Esta noite estaremos na
rua de l’Homme-Armé, número 7. Dentro de oito dias estaremos em Londres. Cosette. 4 de
junho”.

Esses amores eram a tal ponto inocentes que Marius nem sequer
conhecia a letra de Cosette.
O que havia ocorrido pode ser dito em poucas palavras. Éponine fizera
tudo. Após a noite de 3 de junho, ela tivera dois pensamentos, frustrar os
planos de seu pai e dos bandidos em relação à casa da rua Plumet, e
separar Marius de Cosette. Ela trocara suas roupas com o primeiro jovem
brincalhão que achara divertido vestir-se de mulher, enquanto Éponine se
disfarçava de homem. Fora ela quem, no Champs–de-Mars, dera a Jean
Valjean aquele expressivo aviso Mude-se. De fato, Jean Valjean entrara em
casa e dissera a Cosette: Partimos esta noite e vamos para a rua de
l’Homme-Armé com Toussaint. Semana que vem estaremos em Londres.
Cosette, aterrada por esse golpe inesperado, escrevera às pressas duas
linhas a Marius. Mas como fazer para colocá-las no correio? Ela não saía
sozinha e Toussaint, surpresa com essa incumbência, certamente mostraria
a carta ao senhor Fauchelevent. Nessa ansiedade, Cosette avistara através
da grade Éponine em trajes de homem, zanzando sem parar em volta do
jardim. Cosette chamara “o jovem operário”, entregara-lhe cinco francos e
a carta, dizendo: “Leve esta carta imediatamente ao seu destino”. Éponine
colocou a carta no bolso. No dia seguinte, 5 de junho, foi à casa de
Courfeyrac perguntar por Marius, não para entregar-lhe a carta, mas, coisa
que todas as almas ciumentas e apaixonadas compreenderão, “para ver”.
Ali ela esperara por Marius, ou pelo menos por Courfeyrac, sempre para
ver. Quando Courfeyrac lhe disse: “Vamos para as barricadas”, uma ideia
passou por seu espírito. Atirar-se nessa morte como teria se atirado em
qualquer outra, e induzir Marius a isso. Seguira Courfeyrac, certificando-
se do local em que estavam construindo a barricada; e estando bem segura,
uma vez que Marius não recebera nenhum aviso e que ela interceptara a
carta, de que ele estaria ao anoitecer no encontro de todas as noites, foi à
rua Plumet, ali esperou por Marius e enviou-lhe, em nome de seus amigos,
esse chamado que deveria, pensava ela, levá-lo à barricada. Ela contava
com o desespero de Marius quando não encontrasse Cosette; e não se
enganava. Voltou à rua de la Chanvrerie. Acabamos de ver o que havia
feito. Ela morreu com essa alegria trágica dos corações enciumados que
arrastam o ser amado para a morte e que dizem: “ninguém o terá!” Marius
beijou repetidas vezes a carta de Cosette. Então ela o amava! Por um
momento, pensou que já não deveria morrer. Depois, disse consigo: “Ela
parte. Seu pai a leva para a Inglaterra e meu avô é contra o casamento.
Nada mudou na fatalidade!” Os sonhadores como Marius estão sujeitos a
esses desânimos supremos que acabam em resoluções desesperadas. O
cansaço da vida é insuportável; a morte é muito mais simples.
Então, lembrou-se que tinha ainda dois deveres a cumprir: informar
Cosette de sua morte e enviar-lhe um adeus supremo, e salvar, da
catástrofe iminente que se preparava, aquela pobre criança, irmão de
Éponine e filho de Thénardier.
Marius trazia consigo uma carteira, a mesma que continha o caderno
onde escrevera tantos pensamentos de amor por Cosette. Arrancou-lhe
uma folha e escreveu a lápis estas poucas linhas:

“O nosso casamento era impossível. Pedi o consentimento de meu avô, ele o recusou;
não possuo fortuna, você também não. Corri à sua casa, não a encontrei mais; sabe que lhe
dei minha palavra, eu a mantenho. Vou morrer. Eu a amo! Quando estiver lendo isto, minha
alma estará a seu lado, sorrindo-lhe”.

Como não tinha envelope, limitou-se a dobrar o papel em quatro e


anotou este endereço:

À senhorita Cosette Fauchelevent, casa do senhor Fauchelevent, rua de l’Homme–Armé,


número 7.

Dobrada a carta, ficou um momento pensativo, tornou a pegar a


carteira, abriu-a e escreveu com o mesmo lápis, na primeira página, estas
quatro linhas:

“Meu nome é Marius Pontmercy. Levem meu cadáver à casa de meu avô, senhor
Gillenormand, rua Filles-du-Calvaire, número 6, Marais”.
Colocou novamente a carteira no bolso de seu casaco e depois chamou
Gavroche. O menino, ao som da voz de Marius, atendeu rapidamente com
expressão feliz e devotada.
— Quer fazer algo por mim?
— Tudo — disse Gavroche. — Deus, meu bom Deus! Se não fosse o
senhor, verdade, eu estaria frito.
— Está vendo esta carta?
— Sim.
— Pegue-a. Saia da barricada agora (Gavroche, preocupado, começou
a coçar a orelha) e amanhã de manhã leve-a, neste endereço, à senhorita
Cosette, casa do senhor Fauchelevent, rua de l’Homme-Armé, número 7.
A heroica criança respondeu:
— Ah! Está bem, mas nesse meio tempo a barricada será tomada e eu
não estarei aqui.
— A barricada não será atacada antes do amanhecer, aparentemente, e
não será tomada antes do meio-dia de amanhã.
A nova pausa que os assaltantes davam à barricada de fato se
prolongava. Era uma dessas intermitências, frequentes nos combates
noturnos, que sempre são seguidas de um redobrado encarniçamento.
— Bem — disse Gavroche —, e se eu fosse entregar a carta amanhã de
manhã?
— Seria tarde demais. Provavelmente a barricada será bloqueada,
todas as ruas serão vigiadas, e você não poderá sair. Vá agora.
Gavroche não encontrou nada para replicar, permanecia ali, indeciso e
coçando a orelha tristemente. De repente, com um desses movimentos de
pássaro que eram de seu feitio, pegou a carta.
— Está bem — disse ele.
E saiu correndo pela ruazinha Mondétour.
Gavroche tinha tido uma ideia que o fizera se decidir, mas que não
havia contado com medo de que Marius fizesse alguma objeção.
A ideia era esta:
— Ainda é meia-noite, a rua de l’Homme-Armé não é longe, vou levar
a carta agora e estarei de volta a tempo.

__________________________
1 Referente ao Comendador da Legião de Honra, o grau mais alto da cavalaria.
LIVRO XV
A RUA DE L’HOMME-ARMÉ

I. BUVARD, BAVARD1
QUE SÃO AS convulsões de uma cidade ao lado das revoltas da alma? O
homem é um abismo ainda maior que o povo. Jean Valjean, naquele
mesmo instante, era presa de medonha agitação. Todos os abismos
tornavam a abrir-se em seu íntimo. Ele também estremecia, como Paris,
no limiar de uma formidável e obscura revolução. Algumas horas haviam
bastado. Seu destino e sua consciência foram repentinamente cobertos de
sombras. Dele, como de Paris, era possível dizer: os dois princípios estão
na presença um do outro. O anjo branco e o anjo negro lutarão corpo a
corpo sobre a ponte do abismo. Qual dos dois precipitará o outro? Quem
vencerá?
Na véspera daquele mesmo dia, 5 de junho, Jean Valjean,
acompanhado de Cosette e de Toussaint, instalara-se na rua de l’Homme-
Armé. Uma peripécia o aguardava.
Cosette não deixara a rua Plumet sem tentar resistir. Pela primeira vez,
desde que ambos viviam lado a lado, a vontade de Cosette e a vontade de
Jean Valjean tinham sido diferentes, e, se não se confrontaram, pelo menos
se opuseram. Houvera objeção de um lado e inflexibilidade de outro. O
brusco conselho: Mude-se, dado por um desconhecido a Jean Valjean, o
alarmara a ponto de torná-lo despótico. Julgava-se descoberto e
perseguido. Cosette tivera de ceder.
Ambos haviam chegado à rua de l’Homme-Armé sem descerrar os
dentes e sem trocar uma palavra, cada um absorto em suas preocupações
pessoais; Jean Valjean tão preocupado que não percebia a tristeza de
Cosette; Cosette tão triste que não percebia a preocupação de Jean Valjean.
Jean Valjean levara Toussaint consigo, coisa que nunca fizera em suas
ausências anteriores.
Ele pressentia que talvez não mais retornasse à rua Plumet, e não podia
nem deixá-la para trás, nem contar-lhe seu segredo. Além disso, achava-a
devotada e de confiança. Do criado em relação ao patrão, a traição começa
pela curiosidade. Mas Toussaint, como se tivesse sido predestinada a ser a
criada de Jean Valjean, não era curiosa. Costumava dizer, gaguejando, em
seu linguajar de camponesa de Barneville: “Je suis de même de même; je
chose mon fait; le demeurant n’est pas mon travail” (Je suis ainsi; je fais
ma besogne; le reste n’est pas mon affaire).2
Na partida da rua Plumet, que fora quase uma fuga, Jean Valjean não
levara nada além da pequena valise perfumada, batizada por Cosette de a
inseparável. Malas cheias exigiriam carregadores, e carregadores são
testemunhas. Mandaram vir uma carruagem à porta da rua de Babylone e
partiram.
A muito custo, Toussaint obtivera permissão para empacotar algumas
roupas de cama, vestimentas e alguns objetos de toucador. Já Cosette só
levara seus papéis e seu mata-borrão.
Para tornar ainda maior a solidão e a sombra desse desaparecimento,
Jean Valjean arranjara as coisas de modo a não sair da rua Plumet senão ao
escurecer, o que deu a Cosette tempo para escrever seu bilhete a Marius.
Haviam chegado à rua de l’Homme-Armé noite fechada. Deitaram-se
silenciosamente.
A casa da rua de l’Homme-Armé ficava situada em um pátio traseiro,
no segundo andar, e era composta de dois quartos, de uma sala de jantar e
de uma cozinha contígua à sala de jantar, com uma espécie de sótão onde
havia uma cama de vento que coube a Toussaint. A sala de jantar servia, ao
mesmo tempo, de antecâmara e de separação entre os dois quartos de
dormir. O apartamento era provido de todos os utensílios necessários.
Com a mesma facilidade com que nos inquietamos, nos
tranquilizamos; assim é a natureza humana. Assim que Jean Valjean
chegou à rua de l’Homme-Armé, sua ansiedade clareou e gradualmente
dissipou-se. Há lugares tranquilizadores que operam, de certo modo,
mecanicamente sobre o espírito. Rua escura, moradores pacatos. Jean
Valjean sentiu uma espécie de contágio de tranquilidade naquela ruazinha
da antiga Paris, tão estreita que estava barrada aos veículos por uma
prancha transversal apoiada sobre dois postes, muda e surda no meio da
cidade barulhenta, crepuscular em pleno dia, e, por assim dizer, incapaz de
emoções entre aquelas duas fileiras de altas casas centenárias que se
calavam como anciãs que são. Há nessa rua um esquecimento estagnado.
Jean Valjean respirou. De que modo poderiam encontrá-lo ali?
Seu primeiro cuidado foi colocar a inseparável a seu lado.
Dormiu bem. A noite é conselheira, e podemos acrescentar: a noite
tranquiliza. Na manhã seguinte, Jean Valjean acordou quase alegre. Achou
encantadora a sala de jantar, que era horrível, mobiliada com uma velha
mesa redonda, um pequeno aparador sobre o qual se via um espelho
inclinado, uma poltrona carcomida e algumas cadeiras sobre as quais
estavam empilhados os pacotes de Toussaint. Em um desses pacotes,
entrevia-se, por uma abertura, o uniforme de guarda nacional de Jean
Valjean.
Quanto a Cosette, pediu a Toussaint que lhe levasse um caldo no
quarto, e não apareceu senão à noite.
Por volta das cinco horas, Toussaint, indo e vindo muito atarefada com
essa pequena mudança, pusera na mesa da sala de jantar uma galinha fria
para a qual Cosette, em deferência a seu pai, consentira em olhar.
Isso feito, Cosette, pretextando uma dor de cabeça persistente, dissera
boa-noite a Jean Valjean e trancara-se no quarto. Jean Valjean comera uma
asa de galinha com apetite e, debruçado sobre a mesa, tranquilizando-se
pouco a pouco, retomava posse de sua segurança.
Enquanto fazia essa sóbria refeição, tinha percebido confusamente, por
duas ou três vezes, o balbuciar de Toussaint, que lhe dizia: “Senhor, há
uma revolta, estão lutando em Paris”.
Mas, absorto em uma infinidade de combinações interiores, não havia
prestado a menor atenção. Para dizer a verdade, não havia escutado.
Levantou-se e começou a andar da janela à porta e da porta à janela,
cada vez mais tranquilo. Com essa calmaria, Cosette, sua única
preocupação, voltou a seu pensamento. Não porque estivesse preocupado
com essa dor de cabeça, pequena crise de nervos, cara feia de moça,
nuvem momentânea, que desapareceria em um dia ou dois; mas pensava
no futuro e, como de costume, pensava com doçura. Além do mais, não via
nenhum obstáculo para que a vida feliz não retomasse seu curso. Em
certas horas, tudo parece impossível, em outras, tudo parece fácil; Jean
Valjean achava-se em uma dessas horas boas. Elas chegam, normalmente,
após as más, como o dia após a noite, por meio dessa lei de sucessão e de
contraste que é o próprio fundo da natureza e que os espíritos superficiais
chamam de antítese. Na pacífica rua em que se havia refugiado, Jean
Valjean desembaraçava-se de tudo o que, havia algum tempo, o
perturbava. Por ter visto muitas trevas, começava a entrever um fragmento
de céu azul. Sair da rua Plumet, sem complicações nem incidentes, já era
um bom passo dado. Talvez fosse interessante mudar de país, mesmo que
só por alguns meses, e ir para Londres. Pois bem, iriam. Estar na França,
estar na Inglaterra, o que isso mudava, desde que tivesse Cosette a seu
lado? Cosette era a sua pátria. Cosette bastava-lhe para ser feliz; a ideia de
que ele talvez não bastasse à felicidade de Cosette, essa ideia que fora
outrora sua febre e sua insônia, não se apresentava a seu espírito. Estava
em colapso de todas as suas dores passadas, e em pleno otimismo. Cosette,
estando perto dele, parecia lhe pertencer; efeito ótico que todo o mundo já
sentiu. Interiormente planejava, com todas as facilidades, a partida com
Cosette para a Inglaterra, e via sua felicidade reconstituir-se em qualquer
lugar nas perspectivas de seu devaneio.
Enquanto caminhava de um lado para o outro, a passos lentos, seu
olhar encontrou de repente algo estranho.
Viu diante dele, no espelho inclinado que estava acima do aparador, e
leu distintamente estas quatro linhas:

“Meu amado, infelizmente meu pai quer que partamos já. Esta noite estaremos na rua de
l’Homme-Armé, número 7. Dentro de oito dias estaremos em Londres. Cosette. 4 de junho”.

Jean Valjean estacou, perturbado.


Ao chegar, Cosette pusera o mata-borrão sobre o aparador, diante do
espelho, e, absorta em sua dolorosa angústia, ali o esquecera sem nem
mesmo reparar que o deixava aberto justamente na página em que apoiara,
para secá-las, as quatro linhas que havia escrito e encaminhado por
intermédio do jovem operário que passava pela rua Plumet.
O espelho refletia o que estava escrito.
Disso resultava o que, em geometria, se denomina imagem simétrica;
de tal forma que, o que estava escrito, no espelho reproduzia-se
corretamente; e Jean Valjean tinha sob os olhos a carta escrita na véspera
por Cosette a Marius.
Era simples e estarrecedor.
Jean Valjean foi até o espelho. Releu as quatro linhas, mas não
acreditou. Elas lhe causavam a impressão de sair da luz de um relâmpago.
Era uma alucinação. Aquilo era impossível. Não podia ser.
Aos poucos sua percepção tornou-se mais precisa; olhou o mata-borrão
de Cosette, e o sentimento do fato real retornou. Pegou o mata-borrão e
disse: “Isso vem daqui”. Examinou febrilmente as quatro linhas impressas
no mata-borrão, as letras invertidas formavam um rabisco bizarro, e não
faziam sentido. Então disse a si mesmo: “Mas isso não significa nada, não
há nada escrito ali”. E respirou profundamente com um imenso alívio.
Quem já não teve dessas alegrias bobas nos instantes horríveis? A alma
não se rende ao desespero sem haver esgotado todas as ilusões.
Ele segurava o mata-borrão na mão e o contemplava estupidamente
feliz, quase disposto a rir da alucinação de que fora objeto. De repente,
seus olhos se voltaram novamente para o espelho e reviu a imagem. As
quatro linhas desenhavam-se com inexorável nitidez. Dessa vez não era
uma miragem. A repetição de uma visão é uma realidade, era palpável, era
o que estava escrito refletido no espelho. Ele compreendeu.
Jean Valjean cambaleou, deixou escapar o mata-borrão e deixou-se cair
na velha poltrona ao lado do aparador, a cabeça pendente, a íris vidrada,
perdido. Disse a si mesmo que era evidente, e que a luz do mundo estava
apagada para sempre, e que Cosette escrevera isso a alguém. Então
escutou sua alma, que voltava a ser terrível, soltar nas trevas um rugido
surdo. Tente, então, tirar do leão o cão que ele tem em sua jaula!
Fato triste e estranho, nesse momento Marius não tinha ainda a carta
de Cosette; o acaso a trouxera traidoramente às mãos de Jean Valjean antes
de entregá-la a Marius.
Até aquele dia, Jean Valjean não fora vencido pela provação. Vira-se
submetido a provas terríveis, não fora poupado por nenhuma má sorte; a
ferocidade da sorte, armada de todas as vinganças e de todos os enganos
sociais, o tomara por alvo e jogara-se encarnecidamente sobre ele. Ele não
recuara nem sucumbira diante de nada. Aceitara, quando tinha sido
necessário, todas os extremos; sacrificara sua inviolabilidade de homem
reconquistada, entregara sua liberdade, arriscara a cabeça, perdera tudo,
tudo sofrera, e permanecera desinteressado e estoico, a ponto de ser
possível, em alguns momentos, acreditar que era alheio a si mesmo, como
um mártir. Sua consciência, atacada por todos os assaltos possíveis da
adversidade, podia julgar-se para sempre invencível. E, todavia, quem
tivesse visto seu interior seria forçado a constatar que, nesse momento, ela
enfraquecia.
É que, de todas as torturas que ele havia sofrido nessa longa questão
que lhe fornecia o destino, essa era a mais temida. Jamais semelhante
tenaz o dominara. Sentiu a misteriosa agitação de todas as sensibilidades
latentes. Sentiu o aperto da fibra desconhecida. Infelizmente, a suprema
provação, melhor dizendo, a provação única, é a perda do ser amado.
O amor que o pobre velho Jean Valjean sentia por Cosette era, claro,
puramente paternal; mas, como já mencionamos anteriormente, nessa
paternidade, a própria solidão de sua vida introduzira todos os tipos de
amor; amava Cosette como sua filha, amava-a como sua mãe, e amava-a
como sua irmã; e, como nunca tivera nem amante nem esposa, como a
natureza é um credor que não aceita nenhum protesto, esse sentimento, de
todos o mais difícil de perder, confundira-se com os outros, vago,
ignorante, puro da pureza da cegueira, inconsciente, celeste, angélico,
divino; menos como sentimento do que como instinto; menos como
instinto do que como atrativo; imperceptível e invisível, mas real; e o
amor propriamente dito estava na sua enorme ternura por Cosette, como o
veio de ouro está na montanha, tenebroso e virgem.
Lembremos desta situação de coração que já mencionamos. Nenhum
casamento era possível entre eles, nem mesmo o das almas; e todavia é
certo que seus destinos haviam se desposado. Com exceção de Cosette,
isto é, com exceção de uma infância, Jean Valjean, em toda a sua longa
vida, nunca conhecera nada do que se pode amar. As paixões e os amores
que se sucedem não produziram nele esses verdes sucessivos, verde tenro
sobre verde-escuro, que se observa nas folhas que passam o inverno e nos
homens que ultrapassam os cinquenta anos. Em suma, e já o repetimos por
mais de uma vez, toda aquela fusão interior, todo aquele conjunto cuja
resultante era uma grande virtude, terminava por fazer de Jean Valjean um
pai para Cosette. Pai estranho, forjado do avô, do filho, do irmão e do
marido que havia em Jean Valjean; pai no qual havia até mesmo uma mãe;
pai que amava Cosette e que a adorava, que tinha aquela criança como luz,
como morada, como família, como pátria, como paraíso.
Assim, quando viu que tudo estava definitivamente terminado, que ela
lhe escapava, que escorregava de suas mãos, que se furtava, que era
nuvem, que era água; quando viu diante de si esta avassaladora evidência:
um outro é o alvo de seu coração, um outro é a aspiração de sua vida, há
um bem amado, eu sou apenas o pai, não existo mais; quando não pôde
mais duvidar, quando pensou: “Ela vai embora para longe de mim!”, a dor
que sentiu ultrapassou o possível. Fazer o que havia feito para chegar a
isso! E o que, então! Não ser nada! Então, como acabamos de dizer,
estremeceu da cabeça aos pés de revolta. Sentiu até as raízes do cabelo o
imenso despertar do egoísmo e o eu uivou no abismo desse homem.
Existem desmoronamentos internos. A penetração de uma certeza
lancinante no homem não se produz sem afastar e romper certos elementos
profundos que, às vezes, são o próprio homem. A dor, quando chega a esse
ponto, é um salve-se quem puder de todas as forças da consciência. Estas
são crises fatais. Poucos dentre nós saem delas semelhantes a si mesmos e
firmes no seu dever. Quando o limite do sofrimento trasborda, a virtude
mais imperturbável se desconcerta. Jean Valjean pegou novamente o mata-
borrão e convenceu-se novamente; ficou curvado e como que petrificado
sobre as quatro linhas irrecusáveis, o olhar fixo; e formou-se uma tal
nuvem em seu íntimo que se podia acreditar que todo o interior dessa alma
desabava.
Examinou essa revelação por meio da ampliação da divagação, com
uma calma aparente e assustadora, pois é algo assustador quando a calma
de um homem alcança a frieza de uma estátua.
Mediu o pavoroso passo que seu destino havia dado sem que ele
suspeitasse; lembrou-se dos temores que sentira no verão anterior, tão
loucamente dissipados; reconheceu o precipício; ainda era o mesmo; só
que Jean Valjean não se encontrava mais no limiar, estava no fundo.
Coisa incrível e pungente, caíra sem perceber. Toda a luz de sua vida se
fora, ele continuava acreditando ver o sol.
Seu instinto não hesitou. Confrontou certas circunstâncias, certas
datas, certos rubores e certa palidez de Cosette, e disse consigo: “É ele”. A
intuição do desespero é como um misterioso arco que jamais perde seu
golpe. Desde sua primeira conjectura, acertara em Marius. Não sabia o
nome, mas descobriu imediatamente o homem. Percebeu distintamente, no
fundo de sua implacável lembrança, o desconhecido que passeava no
Luxemburgo, aquele miserável namorador, aquele preguiçoso romanesco,
aquele imbecil, aquele covarde, pois é covardia olhar docemente as moças
que têm a seu lado os pais que as amam.
Depois de constatar que no fundo dessa situação estava aquele rapaz, e
que tudo vinha dali, ele, Jean Valjean, o homem regenerado, o homem que
tanto trabalhara sua alma, o homem que fizera tantos esforços para
resolver toda a vida, toda a miséria e toda a desgraça em amor, olhou em
si mesmo e viu um espectro, o Ódio.
As grandes dores contêm o desalento. Elas desencorajam a existência.
O homem no qual penetram sente que algo é retirado dele. Na juventude,
sua visita é lúgubre; mais tarde, é sinistra.
Oh, quando o sangue é quente, quando os cabelos são pretos, quando a
cabeça está ereta sobre o corpo como a chama sobre a tocha, quando o rolo
do destino ainda tem toda a sua espessura, quando o coração, cheio de um
amor desejável, bate em um ritmo ao qual podemos corresponder, quando
temos diante de nós o tempo de corrigir, quando todas as mulheres estão
aqui, e todos os sorrisos, e todo o futuro, e todo o horizonte, quando a
força da vida é completa, se o desespero é algo assustador, o que é então a
velhice, quando os anos precipitam-se, cada vez mais descorados, nessa
hora crespuscular em que se começa a divisar as estrelas do túmulo!
Enquanto ele pensava, Toussaint entrou. Jean Valjean se levantou e lhe
perguntou:
— De que lado é, sabe?
Toussaint, espantada com a pergunta, só pôde responder:
— Desculpe?
— Não me disse há pouco que lutam na cidade?
— Ah! Sim, senhor — respondeu Toussaint. — É do lado de Saint–
Merry.
Há certos movimentos maquinais que, sem nos darmos conta, vêm de
nosso pensamento mais profundo. Foi, sem dúvida, sob o impulso de um
movimento desse gênero, e do qual mal tinha consciência, que Jean
Valjean encontrou-se na rua depois de cinco minutos.
Sem chapéu, sentado na soleira da porta. Parecia escutar.
A noite caíra.
II. O MENINO INIMIGO DAS LUZES
Quanto tempo ele permaneceu assim? Quais foram os fluxos e refluxos
de sua meditação trágica? Ergueu-se? Permaneceu curvado? Permaneceu
curvado até romper-se? Poderia ainda endireitar-se e tomar pé em algum
ponto sólido de sua consciência? Provavelmente nem ele mesmo saberia
dizer.
A rua estava deserta. Alguns burgueses preocupados, que se recolhiam
apressadamente a suas casas, mal o viram. Cada um por si em tempos de
perigo. Como de costume, o acendedor noturno apareceu para acender o
lampião que ficava justamente em frente ao número 7, e se foi. Jean
Valjean, para quem o visse nessa sombra, não pareceria um homem vivo.
Estava lá, sentado na soleira de sua porta, imóvel como uma larva de gelo.
O desespero congela. Ouviam-se o toque de alarme e alguns vagos e
tempestuosos rumores. No meio de todas essas convulsões do sino
misturado à revolta, soaram onze horas no relógio de Saint-Paul, grave e
compassadamente, porque o toque de alarme é o homem, e a hora é Deus.
O passar das horas não teve efeito sobre Jean Valjean. Jean Valjean não se
mexeu. Porém, mais ou menos nesse momento, uma brusca detonação
estourou para o lado dos depósitos, seguida de uma segunda, ainda mais
violenta; provavelmente era aquele ataque à barricada da rua de la
Chanvrerie que acabamos de ver repelido por Marius. A essa dupla
descarga, cuja fúria parecia maior na estupefata noite, Jean Valjean
estremeceu; ergueu-se para o lado de onde viera o barulho, e depois
deixou-se cair na soleira da porta, cruzando os braços, e sua cabeça
lentamente pendeu sobre seu peito.
Retomou o tenebroso diálogo consigo mesmo.
De repente ergueu os olhos, andavam na rua, ouvia passos perto dele,
olhou, e, ao clarão do lampião, pelo lado da rua que termina em Archives,
avistou uma figura lívida, jovem e radiante.
Gavroche acabara de chegar à rua de l’Homme-Armé.
Gavroche olhava para cima, e parecia procurar. Via perfeitamente Jean
Valjean, mas não percebia.
Depois de ter olhado para cima, Gavroche olhou para baixo; ficava na
ponta dos pés e apalpava as portas e janelas ao rés do chão; todas estavam
fechadas, travadas e aferrolhadas. Após verificar cinco ou seis fachadas
protegidas dessa mesma forma, o garoto encolheu os ombros e entrou no
assunto com ele mesmo nestes termos:
— Caramba!
Em seguida, voltou a olhar para cima.
Jean Valjean, que um momento antes, na situação em que estava sua
alma, não teria falado, nem mesmo respondido a ninguém, agora sentiu-se
irresistivelmente impelido a dirigir a palavra àquela criança.
— Pequeno — disse ele —, o que você tem?
— O que tenho, é que tenho fome — respondeu Gavroche claramente.
E acrescentou: — Pequeno você também.
Jean Valjean meteu a mão ao bolso e tirou uma moeda de cinco
francos.
Mas Gavroche, que era da espécie dos hochequeue,3 e que passava
rapidamente de um gesto a outro, acabava de pegar uma pedra. Reparara
no lampião.
— Ora — disse —, vocês ainda têm suas lanternas aqui. Não estão
seguindo as regras, meus amigos. Isso é desordem. Quebrem isso.
E atirou a pedra no lampião, cujos vidros caíram com tal barulho que
alguns burgueses, escondidos atrás das cortinas da casa da frente,
exclamaram: “É noventa e três!”
O lampião oscilou violentamente e apagou-se. A rua ficou
repentinamente escura.
— É isso — disse Gavroche —; antiga rua, coloque sua touca de
dormir.
E voltando-se para Jean Valjean:
— Como chamam aquele monumento enorme que tem lá no fim da
rua? Archives, não é verdade? Seria preciso que me demolissem um pouco
aqueles grandes animais de colunas, para fazer gentilmente uma barricada
com eles.
Jean Valjean aproximou-se de Gavroche.
— Pobre criatura! — disse baixinho falando consigo mesmo. — Está
com fome.
E colocou a moeda de cinco francos na mão dele.
Gavroche ergueu o nariz, espantado com o tamanho daquela gorda
moeda; olhou-a na escuridão e seu brilho o maravilhou. Conhecia as
moedas de cinco francos de ouvir falar; sua reputação lhe era agradável;
ficou encantado ao ver uma de perto. Disse: contemplemos o tigre.
Olhou alguns instantes com êxtase; depois, voltando-se para Jean
Valjean, estendeu-lhe a moeda e disse-lhe majestosamente:
— Burguês, prefiro quebrar os lampiões. Pegue o seu animal feroz. Eu
não me deixo corromper. Isso tem cinco garras, mas não me arranha!
— Você tem mãe? — perguntou Jean Valjean.
Gavroche respondeu:
— Talvez mais do que você.
— Então — recomeçou Jean Valjean — guarde esse dinheiro para sua
mãe.
Gavroche sentiu-se vacilar. Além disso, acabava de reparar que o
homem estava sem chapéu, e isso lhe inspirava confiança.
— De verdade — disse ele —, não é para impedir-me de quebrar os
lampiões?
— Quebre tudo que quiser.
— O senhor é um bom homem — disse Gavroche.
E colocou a moeda de cinco francos em um de seus bolsos.
Sua confiança aumentando, acrescentou:
— O senhor é desta rua?
— Sim, por quê?
— Poderia me indicar o número 7?
— O número 7, para quê?
Nesse ponto, o garoto parou, receou ter falado demais, mergulhou
energicamente suas unhas nos cabelos, e limitou-se a responder:
— Ah! Aqui está!
Uma ideia passou pelo espírito de Jean Valjean. A angústia tem desses
clarões. Disse à criança:
— É você que traz a carta que eu espero?
— O senhor? — disse Gavroche. — O senhor não é uma mulher.
— A carta é para a senhorita Cosette, não é?
— Cosette? — murmurou Gavroche. — Sim, acho que é esse o nome
esquisito.
— Então — disse Jean Valjean — sou eu que devo entregar-lhe a carta.
Dê.
— Neste caso, deve saber que venho da barricada.
— Sem dúvida — disse Jean Valjean.
Gavroche meteu a mão em um outro dos seus bolsos e tirou um papel
dobrado em quatro. Depois fez uma continência militar.
— Respeito ao despacho — disse ele. — Que vem do governo
provisório.
— Dê — disse Jean Valjean.
Gavroche mantinha o papel erguido acima de sua cabeça.
— Não imagine que é algum bilhete de amor. É para uma mulher, mas
é para o povo. Nós, nós lutamos, e nós respeitamos o sexo. Não somos
como no grande mundo onde há leões que enviam frangos aos camelos.
— Dê.
— Na verdade — continuou Gavroche —, o senhor parece ser um bom
homem.
— Dê, rápido.
— Pegue.
E entregou o papel a Jean Valjean.
— E apresse-se, senhor Coisa, visto que a senhorita Cosette espera.
Gavroche ficou satisfeito por ter dito essas palavras.
Jean Valjean continuou:
— A resposta deve ser levada à Saint-Merry?
— Com isso o senhor cometeria — respondeu Gavroche — um erro.
Essa carta vem da barricada da rua de la Chanvrerie, para onde retorno.
Boa noite, cidadão.
Dito isso, Gavroche partiu, ou, melhor dizendo, retornou para o local
de onde viera em seu voo de pássaro fugido. Mergulhou na escuridão
como se fizesse um buraco, com a rapidez rígida de um projétil; a
ruazinha de l’Homme-Armé voltou a ficar silenciosa e solitária; em um
piscar de olhos aquela estranha criança, que possuía sombra e sonho,
enfiara-se na bruma dessa fileira de casas escuras, e perdera-se como
fumaça nas trevas; e podia-se pensar que se dissipara e se desvanecera se,
alguns minutos depois de seu desaparecimento, um estrondoso ruído de
vidros quebrando e o esplêndido tombo de um lampião sobre o pavimento
não tivesse bruscamente acordado mais uma vez os burgueses indignados.
Era Gavroche que passava na rua du Chaume.

III. ENQUANTO COSETTE E TOUSSAINT DORMEM


Jean Valjean entrou com a carta de Marius.
Subiu a escada tateando, satisfeito com as trevas como o mocho que
tem em seu poder uma presa, abriu e fechou devagar a sua porta, escutou
se havia algum barulho, constatou que, segundo as aparências, Cosette e
Toussaint dormiam; sua mão tremia tanto que mergulhou na garrafa do
isqueiro Fumade três ou quatro fósforos antes de conseguir uma chama;
era uma espécie de roubo o que acabara de fazer. Enfim, sua vela acendeu-
se, sentou-se à mesa, desdobrou o papel e leu.
Ao sentir uma emoção violenta não lemos, esmagamos, por assim
dizer, o papel que seguramos, o apertamos como uma vítima, o
amarrotamos, cravamos nele as unhas da cólera ou da alegria; corremos ao
final, pulamos ao início; a atenção está febril, ela entende o sentido geral,
mais ou menos o essencial; focaliza um ponto e todo o resto desaparece.
No bilhete de Marius para Cosette, Jean Valjean só viu estas palavras: “…
Morro! Quando estiver lendo isto, minha alma estará a seu lado!” Em
presença dessas duas linhas, sentiu um ofuscamento horrível; ficou um
momento como que esmagado pela mudança de emoção que se operava
nele, olhava o bilhete de Marius com uma espécie de pasmo ébrio; tinha
diante dos olhos esse esplendor, a morte do ser odiado.
Ele soltou um horrível grito de alegria interior: assim, tudo estaria
acabado. O desfecho chegava mais rápido do que teria ousado esperar. O
ser que entulhava seu destino desaparecia. Partia de espontânea vontade,
livremente, de boa vontade. Sem que ele, Jean Valjean, tivesse feito
qualquer coisa para isso, sem que fosse por sua culpa, “aquele homem” ia
morrer. Talvez já estivesse morto. Nesse ponto, sua febre fez cálculos.
“Não. Ainda não morreu. A carta foi visivelmente escrita para ser lida por
Cosette na manhã do dia seguinte; e depois daquelas duas descargas que
foram ouvidas entre as onze horas e a meia-noite, nada mais aconteceu; a
barricada não será atacada seriamente senão de madrugada; mas é a
mesma coisa, do momento em que ‘aquele homem’ está envolvido nessa
guerra, está perdido; está preso na engrenagem.” Jean Valjean se sentia
liberado. Então voltaria a ficar só com Cosette. Cessava a concorrência; o
futuro recomeçava. Bastava que ele guardasse esse bilhete no bolso.
Cosette jamais ficaria sabendo o que fora feito “daquele homem”. Era só
deixar as coisas acontecerem. Aquele homem não pode escapar. Se ainda
não morreu, é certo que vai morrer. Que felicidade!
Tendo dito tudo isso consigo mesmo, tornou-se sombrio.
Depois desceu e acordou o porteiro.
Mais ou menos uma hora depois, Jean Valjean saía vestido com a farda
completa de guarda nacional e em armas. O porteiro facilmente lhe
arranjara na vizinhança o resto de seu equipamento. Tinha um fuzil
carregado e uma bolsa cheia de cartuchos. Encaminhou-se para o lado dos
depósitos.

IV. OS EXCESSOS DE ZELO DE GAVROCHE


Enquanto isso, Gavroche acabara de passar por uma aventura.
Depois de conscienciosamente ter apedrejado o lampião da rua du
Chaume, Gavroche chegou à rua des Vieilles-Haudriettes, e, não vendo
sequer “um gato”, achou que era ocasião oportuna para cantar com todas
as forças a canção que sabia. Suas passadas, ao invés de serem retardadas
pelo canto, aceleravam. Começou a semear ao longo das casas
adormecidas ou apavoradas estes versos incendiários:

L’oiseau médit dans les charmilles


Et prétend qu’hier Atala
Avec un Russe s’en alla.

O pássaro fala mal nos jardins arborizados


E afirma que ontem Atala
Com um russo partiu.

Où vont les belles filles,


Lon la.

Aonde vão as belas moças,


Lon la.

Mon ami Pierrot, tu babilles,


Parce que l’autre jour Mila
Cogna sa vitre, et m’appela.

Meu amigo Pierrot, você tagarela,


Porque outro dia Mila
Bateu sua vidraça e me chamou.

Où vont les belles filles,


Lon la.
Aonde vão as belas moças,
Lon la.

Les drôlesses sont fort gentilles:


Leur poison que m’ensorcela
Griserait monsieur Orfila.

As mulheres são muito gentis:


Seu veneno que me enfeitiçou
Embriagaria o senhor Orfila.

Où vont les belles filles,


Lon la.

Aonde vão as belas moças,


Lon la.

J’aime l’amour et ses bisbilles,


J’aime Agnès, j’aime Paméla,
Lise en m’allumant se brûla.

Gosto do amor e de suas pequenas discussões,


Amo Agnès, amo Paméla,
Lise ao acender-me se queimou.

Où vont les belles filles,


Lon la.

Aonde vão as belas moças,


Lon la.

Jadis, quand je vis les mantilles


De Suzette et de Zélia,
Mon âme à leurs plis se mêla.

Outrora, quando vi as rendas


De Suzette e de Zélia,
Minha alma a suas dobras misturou-se.

Où vont les belles filles,


Lon la.

Aonde vão as belas moças,


Lon la.

Amour, quand dans l’ombre où tu brilles,


Tu coiffes de roses Lola,
Je me damnerais pour cela.

Amor, quando na sombra onde brilhas,


Enfeitas Lola com rosas,
Me atormentaria com isso.

Où vont les belles filles,


Lon la.

Aonde vão as belas moças,


Lon la.

Jeanne, à ton miroir tu t’habilles!


Mon coeur un beau jour s’envola;
Je crois que c’est Jeanne qui l’a.

Jeanne, em frente a teu espelho te vestes!


Meu coração um belo dia voou;
Acho que foi Jeanne quem o pegou.

Où vont les belles filles,


Lon la.

Aonde vão as belas moças,


Lon la.

Le soir en sortant des quadrilles


Je montre aux étoiles Stella
Et je leurs dis: regardez-la.

À noite saindo das quadrilhas


Mostro às estrelas Stella
E lhes digo: olhem para ela.

Où vont les belles filles,


Lon la.

Aonde vão as belas moças,


Lon la.

Enquanto cantava, Gavroche fazia a pantomima. O gesto é o ponto de


apoio do refrão. Seu rosto, inexaurível repertório de máscaras, fazia
caretas mais convulsivas e extravagantes do que um pano roto estendido
ao vento. Infelizmente, como estava sozinho e no escuro, isso não era
visto, nem visível. Existem riquezas como essa perdidas.
De repente, ele estacou.
— Interrompamos o canto — disse ele.
Seus olhos felinos acabavam de distinguir no vão de um portão o que,
em pintura, é chamado de um conjunto, isto é, um ser e uma coisa; a coisa
era uma charrete de mão, o ser um camponês que dormia nela.
Os braços da charrete estavam apoiados no chão e a cabeça do
camponês apoiava-se no dorso da charrete. Seu corpo estendia-se naquele
plano inclinado e seus pés tocavam o chão.
Gavroche, com sua experiência das coisas deste mundo, percebeu que
era um bêbado.
Era algum carregador da vizinhança que bebera demais e dormia
demais.
— Aí está — pensou Gavroche — para que servem as noites de verão.
O camponês dorme em sua charrete. Pegamos a charrete para a república e
deixamos o camponês para a monarquia.
Seu espírito acabava de ser iluminado pelo seguinte clarão:
— Esta charrete ficaria muito bem sobre nossa barricada.
O camponês roncava.
Gavroche puxou a charrete devagar pela parte de trás e o camponês
pela frente, isto é, pelos pés, e, ao cabo de um minuto, o homem,
imperturbável, descansava no chão.
A charrete estava livre.
Gavroche, acostumado a encarar todas as eventualidades possíveis,
sempre trazia de tudo consigo. Meteu a mão no bolso, tirou um pedaço de
papel e um pedaço de lápis vermelho roubado de algum carpinteiro.
Escreveu:

“República Francesa.
Recebi sua charrete.”

E assinou: “Gavroche”.
Feito isso, meteu o papel no bolso do colete de veludo do camponês,
que continuava a roncar, pegou nos braços da charrete e partiu em direção
aos depósitos, empurrando-a diante dele a galope, com glorioso e triunfal
ruído.
Isso era perigoso. Havia um posto de guarda na Gráfica Real. Gavroche
não se lembrou. Esse posto era ocupado por guardas nacionais do bairro.
Um certo despertar começava a agitar a tropa, e as cabeças se erguiam
sobre as camas de campanha. Dois lampiões quebrados, um após o outro, a
canção, cantada com toda a força, tudo isso era demais para ruas tão
medrosas que, ao pôr do sol, já querem dormir e apagam as velas muito
cedo. Havia uma hora que o moleque fazia o barulho de um mosquito
dentro de uma garrafa naquela região tranquila. O sargento do bairro
escutava. E esperava. Era um homem prudente.
O rodar aloucado da charrete ultrapassou a medida da espera possível e
fez com que o sargento tentasse um reconhecimento.
— É todo um bando que está aí! — disse ele. — Vamos devagar.
Era evidente que a hidra da anarquia havia saído de sua caixa e se
agitava pelo bairro.
E o sargento aventurou-se fora do posto da guarda com passadas
silenciosas.
De repente, Gavroche, empurrando sua charrete, no instante em que ia
desembocar na rua des Vieilles-Haudriettes, achou-se frente a frente com
uma farda, um capacete, um penacho e uma espingarda.
Pela segunda vez, parou imediatamente.
— Ora, é ele — disse Gavroche. — Bom dia, ordem pública.
Os espantos de Gavroche eram curtos e findavam depressa.
— Aonde você vai, vadio? — gritou o sargento.
— Cidadão — disse Gavroche —, eu ainda não o chamei de burguês.
Por que me insulta?
— Para onde você vai, estranho?
— Senhor — continuou Gavroche —, ontem talvez fosse um homem
de espírito, mas hoje cedo o senhor foi destituído.
— Estou perguntando para onde você vai, malandro?
Gavroche respondeu:
— O senhor fala gentilmente. Verdade, ninguém daria a idade que tem.
Deveria vender todos os seus cabelos por cem francos a peça. Isso lhe
renderia quinhentos francos.
— Aonde você vai? Aonde você vai? Aonde você vai, bandido?
Gavroche replicou:
— Que palavras feias. A primeira vez que lhe derem de mamar, devem
limpar melhor sua boca.
O sargento cruzou a baioneta.
— Vai me dizer aonde vai, finalmente, miserável?
— Meu general — disse Gavroche —, vou chamar o médico para
minha mulher, que está dando à luz!
— Às armas! — gritou o sargento.
Salvar-se por meio daquilo que os perdeu, é essa a obra-prima dos
homens fortes; Gavroche, com um olhar, mediu a situação. Fora a charrete
que o comprometera, cabia à charrete protegê-lo.
No instante em que o sargento se arremetia contra Gavroche, a
charrete, transformada em projétil e lançada com toda a força, rolava
sobre ele furiosamente, e o sargento, atingido em cheio na barriga, caía de
costas no riacho, enquanto sua arma ia para os ares.
Ao grito do sargento, os homens do posto haviam saído confusamente;
o tiro do fuzil determinou uma descarga geral ao acaso, após a qual
recarregaram as armas e recomeçaram.
Esse tiroteio ao acaso durou um bom quarto de hora, e quebrou
algumas vidraças.
Enquanto isso, Gavroche, que havia dado meia-volta, parava a cinco ou
seis quadras dali e sentava-se arquejante no marco que forma a esquina de
Enfants-Rouges.
Apurava os ouvidos.
Depois de recuperar o fôlego por alguns instantes, voltou-se para o
lado onde continuava o furioso tiroteio, elevou sua mão esquerda à altura
do nariz, e lançou-a três vezes para a frente enquanto batia atrás da cabeça
com a direita; gesto soberano com o qual os moleques parisienses
condensaram a ironia francesa, e que evidentemente é eficaz, já que vem
durando meio século.
Essa alegria foi perturbada por uma reflexão amarga.
— Sim — disse ele —, arrebento de tanto rir, me torço, me encho de
alegria, mas perco meu caminho, vou ter que fazer um desvio. Tomara que
eu consiga chegar a tempo na barricada!
Dito isso, recomeçou sua corrida.
E enquanto corria:
— Oh, é mesmo, em que ponto eu estava? — disse ele.
E recomeçou a cantar sua canção, embrenhando-se rapidamente nas
ruas, e ela foi diminuindo nas trevas:
Mais il reste encore des bastilles,
Et je vais me metre le holá
Dans l’ordre public que voilá.

Mas ainda restam prisões,


E vou dar um basta
Na ordem pública que aí está.

Où vont les belles filles,


Lon la.

Aonde vão as belas moças,


Lon la.

Quelqu’un veut-il jouer aux quilles?


Tout l’ancien monde s’écroula
Quand la grosse boule roula.

Alguém deseja jogar palitinho?


Todo o antigo mundo desabou

Quando a grande bola rolou.

Où vont les belles filles,


Lon la.

Aonde vão as belas moças,


Lon la.

Vieux bon peuple, à coups de béquilles.


Cassons ce Louvre où s’étala
La monarchie en falbala.

Velho bom povo, a golpes de bengala.


Quebremos esse Louvre onde se instalou
A monarquia em grande gala.

Où vont les belles filles,


Lon la.

Aonde vão as belas moças,


Lon la.

Nous en avons forcé les grilles;


Le roi Charles Dix ce jour-lá
Tenait mal et se décolla.
Forçamos as grades;
O rei Carlos Dez nesse dia
Estava mal pregado e descolou-se.

Où vont les belles filles,


Lon la.

Aonde vão as belas moças,


Lon la.

A tomada de armas no posto da guarda não deixou de ter resultado. A


charrete foi conquistada, o bêbado foi feito prisioneiro. Uma foi colocada
no depósito de lenha; o outro, mais tarde, foi ligeiramente perseguido
diante do conselho de guerra como cúmplice. O ministério público de
então deu provas, nessa circunstância, de seu zelo incansável em defesa da
sociedade.
A aventura de Gavroche, que passou a fazer parte das tradições do
bairro du Temple, é uma das recordações mais terríveis dos velhos
burgueses do Marais, e está intitulada em sua memória como: “Ataque
noturno ao posto da Gráfica Real”.

__________________________
1 “Mata-borrão falador,” em francês, Buvard, bavard formam um interessante jogo de
palavras impossível de manter na tradução.
2 “Eu sou assim; cumpro minha obrigação; o resto não é de minha conta.”
3 Nome de um pássaro, literalmente, “abana a cauda”.
QUINTA PARTE
Jean Valjean
LIVRO I
A GUERRA ENTRE QUATRO PAREDES

I. O CARÍBDIS DO SUBÚRBIO SAINT-ANTOINE E A


CILA DO SUBÚRBIO DU TEMPLE1
AS DUAS barricadas mais memoráveis que o observador das doenças
sociais pode mencionar não pertencem ao período em que a ação deste
livro se desenrola. Essas duas barricadas, ambas símbolos, embora sob
aspectos diferentes, de uma situação temível, saíram da terra por ocasião
da fatal insurreição de junho de 1848, a maior guerra de ruas que a história
já presenciou.
Ocorre às vezes que, mesmo contra os princípios, mesmo contra a
liberdade, a igualdade e a fraternidade, mesmo contra o voto universal,
mesmo contra o governo de todos por todos, do fundo de suas angústias,
de seu desânimo, de seu desenrolar, de sua febre, de sua tristeza, de seus
miasmas, de sua ignorância, de suas trevas, essa grande desesperada, a
canalha, protesta, e a plebe oferece luta ao povo.
Os pobres atacam os direitos comuns; a oclocracia2 se insurge contra o
demos.
Esses são dias lúgubres, pois há sempre uma certa quantidade de
direitos, mesmo nessa demência, há suicídio nesse duelo, e estas palavras,
que pretendem ser injúrias, pobres, canalha, oclocracia, plebe, constatam
— meu Deus! — mais os erros dos que reinam do que os erros de quem
sofre; mais os erros dos privilegiados do que os erros dos deserdados.
Quanto a nós, essas palavras jamais as pronunciamos sem dor e sem
respeito, pois, quando a filosofia sonda os fatos aos quais correspondem,
frequentemente encontra grandezas ao lado das misérias. Atenas era uma
oclocracia; os pobres fizeram a Holanda; a plebe salvou Roma por mais de
uma vez; e a canalha seguia Jesus Cristo.
Não há pensador que não tenha contemplado, algumas vezes, de baixo,
as magnificências.
Era nessa canalha que, sem dúvida, pensava São Jerônimo, e em todas
essas pobres pessoas, e em todos esses vagabundos, em todos esses
miseráveis de onde saíram os apóstolos e os mártires, quando dizia esta
misteriosa frase: Fex urbis, lex orbis.3
As exasperações dessa multidão que sofre e sangra, suas violências
sem sentido sobre os princípios que são sua vida, suas vias de fato contra o
direito, são golpes de estado populares, e devem ser reprimidos. O homem
probo se dedica a essa multidão, e por amor a ela a combate. Mas como a
sente desculpável ao mesmo tempo que a enfrenta! Como a venera ao
mesmo tempo que lhe resiste! É um dos raros momentos em que, fazendo
o que devemos fazer, sentimos algo desconcertante e que quase
desaconselharia ir mais longe; persistimos, é preciso; mas a consciência
satisfeita entristece, e o cumprimento do dever complica-se com um
aperto no coração.
Junho de 1848 foi, apressemo-nos em dizê-lo, um fato à parte, e quase
impossível de classificar na filosofia da história. Todas as palavras que
acabamos de pronunciar devem ser afastadas quando se trata dessa revolta
extraordinária na qual foi sentida a santa ansiedade do trabalho
reclamando seus direitos. Foi preciso combatê-la, e era um dever, porque
ela atacava a República. Mas, no fundo, o que foi junho de 1848? Uma
revolta do povo contra ele mesmo.
Não há digressão quando não se perde de vista o assunto; portanto, que
nos seja permitido chamar a atenção do leitor para as duas barricadas,
absolutamente únicas, das quais acabamos de falar e que caracterizaram
essa insurreição.
Uma abarrotava a entrada do bairro Saint-Antoine; a outra defendia o
acesso ao bairro du Temple; aqueles que viram erguer-se, sob o luminoso
azul do céu de junho, essas duas assustadoras obras-primas da guerra civil
jamais as esquecerão.
A barricada Saint-Antoine era monstruosa; tinha a altura de três
andares e duzentos metros de largura. Obstruía, em toda a sua extensão, a
ampla entrada do bairro, isto é, três ruas; desbarrancada, estraçalhada,
desigual, moída, dividida por uma imensa rachadura, apoiada em montes,
eles mesmos agindo como bastiões, fazendo surgir aqui e ali cabos,
firmemente encostados aos dois grandes promontórios de casas do bairro,
ela surgia como um dique ciclópico no fundo do temeroso local que
presenciou o 14 de julho. Dezenove barricadas se elevavam na
profundidade das ruas atrás dessa barricada mãe. Só de vê-la, sentia-se no
bairro o imenso sofrimento agonizante, atingindo o extremo minuto em
que uma tristeza deseja transformar-se em uma catástrofe. De que era feita
essa barricada? Do desabamento de três casas de seis andares, derrubadas
de propósito para essa finalidade, diziam uns. Do prodígio de todas as
cóleras, diziam outros. Seu aspecto era o de todas as construções do ódio,
a ruína. Era possível dizer: quem construiu isto? E também: quem destruiu
isto? Era o improviso da efervescência. Vejam! Essa porta! Essa grade!
Esse toldo! Esse batente! Esse fogareiro quebrado! Esse caldeirão
rachado! Deem tudo! Joguem tudo! Empurrem, rolem, cavem,
desmantelem, revirem, desmontem tudo! Era a colaboração da rua, das
pedras, da viga, da barra de ferro, do trapo, do ladrilho quebrado, da
cadeira sem palha, do tronco do repolho, do trapo, do farrapo e da
maldição. Era grande e era pequeno. Era o abismo parodiado no próprio
local pelo tumulto. A massa perto do átomo; o pedaço de parede arrancado
e a tigela quebrada; uma confraternização ameaçadora de toda espécie de
destroços. Sísifo jogara ali seu rochedo e Jó sua telha. Em suma, terrível.
Era a acrópole dos andrajosos. As charretes viradas acidentavam os
taludes; uma enorme carroça, colocada de forma atravessada, rodas para
cima, parecia uma cicatriz nessa fachada tumultuada; um ônibus, erguido
alegremente pela força de braços ao topo da pilha, como se os arquitetos
daquela selvajaria quisessem acrescentar a peraltice ao terror, oferecia seu
timão atrelado a não se sabe que cavalos aéreos. Esse amontoado
gigantesco, aluvião da revolta, se mostrava ao espírito como um Ossa
sobre o Pélion de todas as revoluções; 93 sobre 89, o 9 termidor sobre o 10
de agosto, o 18 de brumário sobre o 21 de janeiro, o vindemiário sobre o
prairial,4 1848 sobre 1830. O local valia a pena, e essa barricada era digna
de aparecer no próprio local de onde tinha desaparecido a Bastilha. Se o
oceano fizesse diques, seria daquele modo que os construiria. A fúria da
onda estava impressa naquela aglomeração informe. Que onda? A
multidão.
Tinha-se a impressão de ver o motim petrificado. Tinha-se a impressão
de ouvir, por cima daquela barricada, como se estivessem ali em sua
colmeia, o zumbido de enormes e tenebrosas abelhas do progresso
violento. Era uma mata? Era uma bacanal? Era uma fortaleza? A vertigem
parecia ter construído aquilo a golpes de asas. Havia algo de cloaca nesse
reduto, e algo de olímpico nessa confusão. Viam-se, em desordem
desesperada, pedaços de telhados, pedaços de mansardas com seu papel
pintado, caixilhos de janelas com todos os seus vidros plantados nos
escombros, à espera do canhão, lareiras arrancadas, armários, mesas,
bancos, uma bagunça gritante, e essas mil coisas indigentes, lixo até de um
mendigo, que contém, ao mesmo tempo, o furor e o nada. Dir-se-ia que
eram os andrajos de um povo, andrajo de madeira, de ferro, de bronze, de
pedra, que o bairro Saint-Antoine empurrara ali, à sua porta, com uma
colossal vassourada, convertendo sua própria miséria em barricada. Blocos
semelhantes a bigornas, correntes deslocadas, vigas em formato de forcas,
rodas horizontais saindo do entulho, amalgamavam com esse edifício da
anarquia o sombrio aspecto dos antigos suplícios sofridos pelo povo. A
barricada Saint-Antoine convertia tudo em armas; tudo o que a guerra civil
pode atirar à cabeça da sociedade saía dali; não era combate, era
paroxismo; as carabinas que defendiam aquele reduto, entre as quais havia
alguns bacamartes, enviavam migalhas de louça, ossos, botões e até
rodinhas de criados-mudos, projéteis perigosos devido ao cobre. Era uma
barricada fora de si, que elevava aos ares um clamor inexprimível; em
certos momentos, provocando o exército, cobria-se de multidão e
tempestade; uma turba de cabeças chamejantes coroava-a; um
formigamento a enchia; tinha uma crista espinhosa de espingardas, de
sabres, de paus, de machados, de capacetes e de baionetas, uma vasta
bandeira vermelha estalava ao vento; ouviam-se os gritos de comando, as
canções de ataque, o rufar do tambor, os soluços das mulheres e as risadas
tenebrosas dos famintos. Era uma coisa descomunal e viva, e como que do
lombo de um animal elétrico saía um faiscar de raios. O espírito da
revolução cobria com sua nuvem aquele cume onde rugia a voz do povo,
que parece a voz de Deus; estranha majestade se desprendia daquele
titânico cesto de entulho. Era um monte de lixo e era o Sinai.
Como dissemos acima, ela atacava, em nome da Revolução, o quê? A
Revolução. Ela, essa barricada, o acaso, a desordem, o desvario, o
equívoco, o incógnito, tinha à sua frente a assembleia constituinte, a
soberania do povo, o sufrágio universal, a nação, a república; era a
Carmagnole desafiando a Marselhesa.
Desafio insensato, mas heroico, pois aquele velho subúrbio é um herói.
O subúrbio e seu reduto auxiliavam-se mutuamente. O subúrbio
apoiava-se nos ombros do reduto e este encostava-se nele. A vasta
barricada esparramava-se como uma falésia de encontro à qual ia se
quebrar a estratégia dos generais da África. Suas cavernas, suas
excrescências, suas verrugas, suas corcovas faziam, digamos assim,
trejeitos, e escarneciam sob a fumaça. A metralha esvanecia-se no
informe; ali, os obus se enterravam, eram tragados, se engolfavam; ali, as
balas só conseguiam furar buracos; para que bombardear o caos? E os
regimentos, acostumados às mais ferozes visões da guerra, contemplavam
com olhar inquieto aquela espécie de reduto-fera, javali pelo eriçamento,
montanha pela enormidade.
A um quarto de légua dali, do ângulo da rua du Temple que desemboca
no bulevar próximo ao Château-d’Eau, se aventurássemos ousadamente a
cabeça para fora da ponta formada pela frente da loja Dallemagne,
veríamos, ao longe, além do canal, na rua que sobe as rampas de
Belleville, no ponto culminante da subida, uma estranha muralha
alcançando o segundo andar das fachadas, espécie de traço de união entre
as casas da direita e as da esquerda, como se a rua tivesse por si mesma
dobrado a sua parede mais alta para se fechar bruscamente. Esse muro era
construído com os paralelepípedos. Era reto, correto, frio, perpendicular,
nivelado ao esquadro, puxado pelo cordel, alinhado com fio de chumbo.
Certamente faltava o cimento, mas como em certos muros romanos, sem
perturbar sua rígida arquitetura. Pela altura adivinhava-se sua
profundidade. A cimalha era matematicamente paralela aos alicerces. De
espaço em espaço, viam-se, na sua superfície cinzenta, seteiras quase
invisíveis, que pareciam fios negros. Essas seteiras eram separadas umas
das outras por intervalos do mesmo tamanho. A rua estava deserta a perder
de vista. Todas as portas e janelas fechadas. No fundo, elevava-se aquela
barragem que a transformava em um beco sem saída; muro imóvel e
tranquilo; não se via ninguém, não se ouvia o menor ruído; nenhum grito,
nenhum barulho, nenhum sopro. Um sepulcro.
O deslumbrante sol de junho inundava de luz essa coisa terrível.
Era a barricada do bairro du Temple.
Desde que se chegava ao terreno e que se vislumbrava a barricada, era
impossível, mesmo aos mais intrépidos, não ficar pensativo diante daquela
misteriosa aparição. Era ajustada, encaixada, retilínea, simétrica e fúnebre.
Ali havia ciência e trevas. Sentia-se que o chefe daquela barricada era um
geômetra ou um espectro. Olhava-se para aquilo e falava-se em voz baixa.
De vez em quando, quando alguém, soldado, oficial ou representante
do povo, se aventurava a atravessar a calçada solitária, ouvia-se um
assobio agudo e fraco, e o transeunte caía ferido ou morto, ou, se escapava,
via-se cravar em alguma janela fechada, no entremeio de duas pedras, no
reboque de um muro, uma bala. Algumas vezes uma bala de mosquete.
Pois os homens da barricada haviam feito com dois pedaços de cano de
gás, tampados em uma das extremidades com estopa e barro, dois
pequenos canhões. Nada de gasto inútil de pólvora. Quase nenhum tiro
falhava. Aqui e ali, viam-se alguns cadáveres e poças de sangue sobre os
paralelepípedos. Lembro-me de uma borboleta branca que ia e vinha pela
rua. O verão não abdica.
Nos arredores, o vão dos portões estavam atulhados de feridos.
Todos se sentiam visados por alguém invisível, e parecia que toda a
extensão da rua estava sob pontaria.
Agrupados por trás da curva que faz, à entrada do bairro du Temple, a
ponte em arco do canal, os soldados da coluna de ataque observavam,
graves e recolhidos, aquele lúgubre reduto, essa imobilidade, essa
impassibilidade de onde saía a morte. Alguns rastejavam até o alto da
curva da ponte, tomando cuidado para que seus capacetes não
aparecessem.
O valente coronel Manteynard admirava essa barricada com um
estremecimento. Como está construída! — dizia ele a um representante.
Nem uma só pedra desalinhada! Parece porcelana. Nesse momento, uma
bala quebrou a cruz que levava no peito e ele caiu.
— Os covardes! — diziam. — Mas, que apareçam! Que os vejamos!
Não se atrevem! Se escondem!
A barricada do bairro du Temple, defendida por oitenta homens,
atacada por dez mil, resistiu por três dias. No quarto, fizeram como em
Zaatcha e em Constantine,5 invadiram as casas, subiram pelos telhados e a
barricada foi tomada. Nem um só dos oitenta covardes pensou em fugir;
todos foram mortos, com exceção do chefe, Barthélemy, de quem
falaremos mais adiante.
A barricada Saint-Antoine era o tumulto dos trovões; a barricada du
Temple era o silêncio. Havia entre esses dois redutos a diferença entre o
formidável e o sinistro. Uma parecia uma bocarra; a outra, uma máscara.
Admitindo-se que a gigantesca e tenebrosa insurreição de junho fora
composta de uma cólera e de um enigma, sentia-se na primeira barricada o
dragão, e por trás da segunda a esfinge.
Essas duas fortalezas haviam sido edificadas por dois homens
chamados, um, Cournet, outro, Barthélemy. Cournet fizera a construção da
barricada Saint-Antoine; Barthélemy a da barricada do Temple. Cada uma
delas era a imagem do homem que a construíra.
Cournet era um homem de estatura elevada, ombros largos, rosto
corado, punho de ferro, coração audacioso, alma leal, olhar sincero e
terrível. Intrépido, enérgico, irascível, tempestuoso; o mais cordial dos
homens, o mais temível dos combatentes. A guerra, a luta, a batalha, eram
o ar que respirava e o deixavam de bom humor. Fora oficial da marinha, e
por seus gestos e voz percebia-se que saía do oceano e que vinha da
tempestade; continuava o furacão na batalha. À exceção do gênio, havia
em Cournet alguma coisa de Danton, assim como, à exceção da divindade,
havia em Danton alguma coisa de Hércules.
Barthélemy, magro, de aspecto doentio, pálido, taciturno, era uma
espécie de menino trágico, que, esbofeteado por um guarda, o esperou e
matou, e, aos dezessete anos, foi preso. Saiu e fez essa barricada.
Mais tarde, coisa fatal, em Londres, ambos proscritos, Barthélemy
matou Cournet. Foi um duelo fúnebre. Algum tempo depois, apanhado na
engrenagem de uma dessas misteriosas aventuras onde está envolvida a
paixão, catástrofes em que a justiça francesa vê circunstâncias atenuantes
e onde a justiça inglesa só vê a morte, Barthélemy foi enforcado. A
sombria construção social é feita de tal forma que, graças à miséria
material, graças à obscuridade moral, aquele ser infeliz que possuía uma
inteligência, firme com certeza, grande talvez, começou pela prisão na
França e acabou pela forca na Inglaterra. Barthélemy, quando tinha
oportunidade, levantava apenas uma bandeira, a bandeira negra.
II. QUE FAZER NO ABISMO SENÃO CONVERSAR
Dezesseis anos contam na subterrânea educação da revolta, e junho de
1848 sabia mais que junho de 1832. Também a barricada da rua de la
Chanvrerie era somente um esboço e um embrião em comparação com as
duas colossais barricadas que acabamos de esquadrinhar; mas, para a
época, ela era temível.
Os insurgentes, sob o olhar de Enjolras, pois Marius já não olhava para
nada, aproveitaram-se bem da noite. A barricada não somente fora
consertada, mas ampliada. Fora elevada a mais sessenta centímetros.
Barras de ferro cravadas nos paralelepípedos pareciam lanças em riste.
Todo tipo de escombros acrescentados e trazidos de todas as partes
complicavam a confusão exterior. O reduto fora inteligentemente
reconstruído em muralha por dentro e espinhos por fora.
Refizeram a escada de pedras, o que permitia a subida como se fosse
um muro de cidadela.
Arrumaram a barricada, desobstruíram a sala de baixo, transformaram
a cozinha em ambulância, concluíram o curativo dos feridos, recolheram a
pólvora espalhada pelo chão e por cima das mesas, fundiram balas,
fabricaram cartuchos, fizeram ataduras, distribuíram as armas caídas,
limparam o interior do reduto, apanharam os destroços, levaram os
cadáveres.
Os mortos foram depositados uns sobre os outros na ruazinha
Mondétour, da qual ainda eram senhores. A calçada por muito tempo ficou
vermelha nesse local. Entre os mortos havia quatro guardas nacionais do
município. Enjolras mandou pôr suas fardas de lado.
Enjolras aconselhara duas horas de sono. Um conselho de Enjolras era
uma ordem. Contudo, apenas três ou quatro homens resolveram segui-lo.
Feuilly empregou essas duas horas na gravação desta inscrição na parede
em frente à taverna:

Que vivam os povos!

Essas palavras, gravadas com um prego, liam-se ainda naquela parede


em 1848.
As três mulheres tinham aproveitado a trégua da noite para
desaparecer definitivamente, o que fez com que os revoltosos respirassem
mais livremente.
Tinham encontrado uma maneira de se refugiar em alguma casa
vizinha.
A maior parte dos feridos podia e ainda queria combater. Havia cinco
homens gravemente feridos, dentre os quais dois guardas municipais. Os
guardas municipais foram medicados em primeiro lugar.
Na sala de baixo só ficaram Mabeuf, sob o lençol preto, e Javert
amarrado ao poste.
— Aqui é a sala dos mortos — disse Enjolras.
No interior dessa sala, iluminada apenas por uma vela, tendo ao fundo
a mesa mortuária que ficava por trás do poste como uma barra horizontal,
parecia haver uma espécie de grande cruz vaga formada por Javert em pé e
por Mabeuf deitado.
O timão do ônibus, embora cortado pelas balas, ainda permanecia
suficientemente de pé para que se pudesse içar uma bandeira.
Enjolras, que possuía as qualidades de um chefe, executando sempre o
que dizia, pendurou no resto da lança o casaco furado e ensanguentado do
velho morto.
Era impossível qualquer refeição. Não havia nem pão nem carne. Os
cinquenta homens da barricada achavam-se ali havia dezesseis horas,
acabando com as parcas provisões da taverna. Em algum momento, toda a
barricada que resiste se transforma inevitavelmente em jangada da
Medusa. Foi preciso resignar-se à fome. Eram as primeiras horas desse dia
espartano de 6 de junho em que, na barricada de Saint-Merry, Jeanne,
rodeado de insurgentes que pediam pão, a todos esse combatentes
gritando: “Comida!” respondia: “Por quê? São três horas. Às quatro
estaremos mortos”.
Como não se podia comer, Enjolras proibiu a bebida. Proibiu o vinho e
racionou a aguardente.
Na adega foram encontradas umas quinze garrafas cheias,
hermeticamente lacradas. Enjolras e Combeferre as examinaram. Quando
Combeferre subiu, disse:
— É um velho sortimento do Pai Hucheloup, que começou como
merceeiro.
— Deve ser vinho de verdade — observou Bossuet. — Ainda bem que
Grantaire dorme. Se estivesse de pé, teríamos muito trabalho para salvar
essas garrafas.
Enjolras, apesar dos murmúrios, pôs seu veto sobre as quinze garrafas,
e, para que ninguém as tocasse, como se fossem coisa sagrada, mandou
colocá-las sob a mesa em que jazia Pai Mabeuf.
Por volta das duas da manhã contaram-se. Ainda eram trinta e sete.
O dia começava a raiar. Acabavam de apagar a tocha que fora
recolocada em seu alvéolo de paralelepípedos. O interior da barricada,
essa espécie de pequeno pátio feito na rua, estava mergulhado em trevas e
assemelhava-se, através do vago horror crepuscular, ao convés de um
navio desamparado. Os combatentes, indo e vindo, pareciam vultos
negros. Por cima desse assustador ninho de sombras, os andares das casas
mudas esboçavam-se lividamente; mais acima, as chaminés
empalideciam. O céu apresentava essa encantadora nuance indecisa que
pode ser branca ou azul. Pássaros voavam soltando gritos de felicidade. A
casa alta que formava o fundo da barricada, como era voltada para o
levante, tinha o telhado tingido de rosa. Na claraboia do terceiro andar, o
vento da manhã agitava os cabelos grisalhos da cabeça do homem morto.
— Estou encantado por terem apagado o archote — dizia Courfeyrac a
Feuilly. — Esse archote tremendo ao sopro do vento me aborrecia. Ele
parecia estar com medo. A luz dos archotes parece a prudência dos
covardes; ilumina mal porque treme.
O alvorecer desperta os espíritos assim como as aves; todos
conversavam.
Joly, ao ver um gato andando em cima de um telhado, começou a
filosofar.
— Que é o gato? — exclamou ele. — É um corretivo. Deus, tendo feito
o rato, disse: “Ora! Fiz uma bobagem”. E fez o gato. O gato é a errata do
rato. O gato e o rato são a prova revisada e corrigida da criação.
Combeferre, rodeado de estudantes e operários, falava dos mortos, de
Jean Prouvaire, de Bahorel, de Mabeuf, e até de Cabuc, e da tristeza severa
de Enjolras. Dizia:
—Harmodius e Aristogiton, Brutus, Chéréas, Stephanus, Cromwell,
Charlotte Corday, Sand, todos tiveram, depois do golpe, seu momento de
angústia. O nosso coração é tão agitado, e a vida humana um tal mistério,
que, mesmo em um assassinato cívico, mesmo em um assassinato
libertador, se é que isso existe, o remorso de ter ferido um homem
ultrapassa o prazer de ter sido útil ao gênero humano.
E, assim são os meandros das palavras trocadas, um minuto depois, por
uma transição vinda dos versos de Jean Prouvaire, Combeferre fazia o
paralelo entre os tradutores dos Geórgicos, Raux e Cournand, Cournand e
Delille, indicando alguns trechos traduzidos por Malfilâtre, especialmente
os prodígios da morte de César; e com essa palavra, César, a conversa
retornava a Brutus.
— César — disse Combeferre — caiu justamente. Cícero foi severo
com César, e teve razão. Essa severidade não é a crítica. Quando Zoïle
insulta Homero, quando Maevius insulta Virgílio, quando Visé insulta
Molière, quando Pope insulta Shakespeare, quando Fréron insulta Voltaire,
é uma lei antiga de inveja e ódio que se executa; os gênios atraem a
injúria, os grandes homens são sempre mais ou menos hostilizados. Mas
Zoïle e Cícero são dois. Cícero é um justiceiro pelo pensamento, do
mesmo modo que Brutus é um justiceiro pela espada. Quanto a mim,
censuro esta última forma de fazer justiça, pela espada, porém a
antiguidade a admitia. César, violador do Rubicon, conferindo, como
vindas dele, as dignidades que provinham do povo, não se levantando à
entrada do Senado, fazia, como diz Eutrope, coisas de rei e quase de
tirano, regia ac pene tyrannica. Era um grande homem, feliz ou
infelizmente; a lição é mais elevada. Suas vinte e três feridas me
comovem menos que o cuspe na fronte de Jesus Cristo. César é
apunhalado pelos senadores; Cristo é esbofeteado pelos lacaios. Pela
ofensa maior, sente-se o Deus.
Bossuet, do alto de um monte de pedras, de onde dominava os que
conversavam, gritava, carabina na mão:
— Ó Cydatenaeum, ó Myrrhinus, ó Probalinthe, ó graças do Aeantide!
Oh! Quem me dera pronunciar os versos de Homero como um grego de
Laurium ou de Edaptéon!

III. CLAREAR E ENSOMBRECER


Enjolras saíra para fazer um reconhecimento. Saíra pela ruazinha
Mondétour, serpenteando ao longo das casas.
Os insurgentes, devemos dizer, estavam cheios de esperança. O modo
como haviam repelido o ataque noturno fazia com que quase
desdenhassem antecipadamente o ataque do nascer do dia. Eles o
esperavam e sorriam. Não tinham mais dúvidas quanto a seu sucesso como
não tinham de sua causa. Além disso, evidentemente, um socorro chegaria
a eles. Contavam com isso. Com essa facilidade de profecia triunfal, que é
uma das forças do combatente francês, eles dividiam em três frases certas
o dia que iria começar: às seis horas da manhã, um regimento, “que já fora
trabalhado”, voltaria; ao meio-dia, a insurreição de Paris inteira; ao pôr do
sol, a revolução.
Ouvia-se o sino de Saint-Merry, que desde a véspera não se calara um
instante, prova de que a outra barricada, a grande, a de Jeanne, continuava
a resistir.
Todas essas esperanças passavam de um grupo a outro em espécie de
murmúrio alegre e temível que parecia o zumbir de guerra de uma colmeia
de abelhas.
Enjolras reapareceu. Voltava de seu sombrio passeio de águia na
escuridão exterior. Escutou um instante toda essa alegria com os braços
cruzados, uma mão sobre a boca. Depois, com o frescor e o rosado da
crescente claridade da manhã, disse:
— Toda a tropa de Paris está em movimento. A terça parte dessa tropa
pesa sobre a barricada onde estamos, além da Guarda Nacional. Distingui
os capacetes do quinto batalhão de linha e os estandartes da sexta legião.
Serão atacados dentro de uma hora. Quanto ao povo, estava em
efervescência ontem, mas hoje não se mexe. Nada a esperar, nenhuma
esperança. Não há mais bairro, nem regimento. Foram abandonados.
Essas palavras caíram sobre o burburinho dos grupos com o efeito que
produz a primeira gota de tempestade sobre um enxame. Todos
emudeceram. Seguiu-se um instante de inexprimível silêncio durante o
qual seria possível ouvir o esvoaçar da morte.
Esse instante durou pouco.
Uma voz, do fundo mais obscuro dos grupos, gritou a Enjolras:
— Que seja! Elevemos a barricada a seis metros de altura e fiquemos
nela. Cidadãos, façamos o protesto dos cadáveres. Mostremos que, se o
povo abandona os republicanos, os republicanos não abandonam o povo.
Essas palavras liberavam da penosa nuvem de ansiedades individuais o
pensamento de todos. Uma entusiástica aclamação as acolheu.
Nunca se soube o nome do homem que assim falou; foi talvez algum
ignorado operário, um desconhecido, um esquecido, um herói passageiro,
esse grande anônimo sempre aliado às crises humanas e às gêneses sociais
que, na ocasião oportuna, profere de um modo supremo a frase decisiva e
desaparece nas trevas, depois de representar por um instante, à luz de um
relâmpago, o povo e Deus.
Essa resolução inexorável estava de tal modo espalhada na atmosfera
do dia 6 de junho de 1832 que, quase à mesma hora, na barricada de Saint-
Merry, os insurgentes soltavam o seguinte brado, que se tornou histórico e
inscrito no processo:
— Que venham ou não nos socorrer, não importa! Que nos matem
aqui, até o último de nós.
Como se vê, as duas barricadas comunicavam-se, apesar de
materialmente isoladas.

IV. CINCO A MENOS, UM A MAIS


Depois que o desconhecido que decretara “o protesto dos cadáveres”
acabou de falar, dando a fórmula da alma comum, de todas as bocas saiu
um brado satisfeito e terrível, fúnebre pelo sentido e triunfal pela
entonação:
— Viva a morte! Fiquemos todos aqui!
— Por que todos? — disse Enjolras.
— Todos! Todos!
Enjolras prosseguiu:
— A posição é boa, a barricada é bonita. Trinta homens bastam. Por
que sacrificar quarenta?
Eles replicaram:
— Porque nenhum de nós vai querer sair.
— Cidadãos — gritou Enjolras, e havia em sua voz uma vibração
quase irritada —, a república não é tão rica em homens para efetuar gastos
inúteis. A vanglória é um desperdício. Se, para alguns, o dever é retirar-se,
esse dever deve ser cumprido como qualquer outro.
Enjolras, o homem-princípio, tinha sobre seus correligionários essa
espécie de poder que se desprende do absoluto. Porém, qualquer que fosse
essa onipotência, houve murmúrios.
Chefe até o último fio de cabelo, ao ver que murmuravam, Enjolras
insistiu. Prosseguiu com altivez:
— Os que receiam ser apenas trinta, que o digam.
Os murmúrios redobraram.
— Aliás — observou uma voz no meio de um grupo —, ir embora é
fácil de dizer. A barricada está cercada.
— Não pelos lados dos depósitos — disse Enjolras. — A rua
Mondétour está livre, e pela rua des Prêcheurs pode-se alcançar o mercado
des Innocents.
— E lá — disse outra voz do grupo — seremos presos. Cairemos em
algum piquete de tropa de linha ou do bairro. Verão passar um homem de
blusa e boné. “De onde você vem? Por acaso não seria da barricada?” E
vão olhar suas mãos. “Cheira a pólvora.” Fuzilado.
Enjolras, sem responder, tocou no ombro de Combeferre e ambos
entraram na sala baixa.
Um instante depois, tornaram a sair. Enjolras trazia nas mãos os quatro
uniformes que mandara guardar. Combeferre o seguia, trazendo as correias
e os capacetes.
— Com esses uniformes — disse Enjolras —, nos misturamos com as
fileiras e escapamos. Temos para quatro.
E atirou ao chão os quatro uniformes.
O estoico auditório, porém, ficou imóvel. Combeferre tomou a palavra.
— Vamos — disse ele —, é preciso ter alguma piedade. Sabem de que
se trata? Trata-se das mulheres. Vejamos. Há mulheres, sim ou não? Há
crianças, sim ou não? Há ou não há mães que com o pé embalam o berço
de uma criança e estão rodeadas por muitos outros pequenos? Levante o
braço aquele que ainda não viu o seio de uma mãe. Ah! Querem deixar-se
matar, eu também quero, eu que lhes falo, mas não quero sentir fantasmas
de mulheres torcendo os braços à minha volta! Morram, que seja, mas não
causem a morte! Suicídios como os que aqui ocorrerão são sublimes, mas
o suicídio é estreito e não deseja expansões, e desde que toca seus
próximos, o suicídio chama-se assassinato. Pensem nas cabecinhas louras
e nos cabelos brancos. Escutem, há pouco Enjolras disse-me que viu, na
esquina da rua du Cygne, uma janela no quinto andar iluminada por um
vela, e nos vidros a trêmula sombra de uma cabeça de mulher idosa, que
parecia ter passado a noite esperando. Talvez seja a mãe de algum de
vocês. Pois bem, que esse se retire e se apresse em ir dizer à sua mãe:
“Mãe, aqui estou!” Que ele fique tranquilo, mesmo assim faremos o
trabalho aqui. Quando apoiamos nossos próximos com nosso trabalho, não
temos mais o direito de nos sacrificar. Isso seria desertar da família. E os
que têm filhas, e os que têm irmãs! Pensaram? Deixam-se matar, pronto,
estão mortos, e amanhã? Moças que não têm pão, isso é terrível! O homem
mendiga, a mulher vende! Ah! Esses seres tão graciosos e tão meigos que
possuem gorros de flores, que enchem a casa de castidade, que cantam,
que tagarelam, que são como um perfume vivo, que provam a existência
dos anjos no céu pela pureza das virgens sobre a terra, essa Jeanne, essa
Lise, essa Mimi, essas adoráveis e honestas criaturas que são sua bênção e
seu orgulho, ah, meu Deus, elas terão fome! Que querem que lhes diga?
Existe um mercado de carne humana; e não será com suas mãos de
espectros, trêmulas em volta delas, que as impedirão de ali entrar. Pensem
na rua, pensem na calçada cheias de transeuntes, nas lojas em frente às
quais passam mulheres decotadas e na lama. Essas mulheres também já
foram puras. Pensem em suas irmãs, aqueles que as têm. A miséria, a
prostituição, os guardas da cidade, Saint-Lazare, eis onde cairão essas
delicadas e lindas filhas, essas frágeis maravilhas de pudor, de gentileza e
de beleza, mais frescas que os lilases no mês de maio. Ah! Foram mortos!
Ah! Não estão mais aqui! Muito bem; quiseram subtrair o povo à realeza,
e entregam suas filhas à polícia. Amigos, cuidado, tenham compaixão. As
mulheres, as desventuradas mulheres, não temos o costume de pensar
muito nelas. Como as mulheres não recebem a mesma educação que os
homens, nos baseamos nisso e não as deixamos ler, não as deixamos
pensar, não deixamos que se ocupem da política; também as impedirão de
ir ao necrotério reconhecer seus cadáveres? Vamos; é preciso que os que
têm família sejam bons meninos e nos deem um aperto de mão e vão
embora, nos deixando sós aqui para fazer o que deve ser feito. Bem sei que
é preciso coragem para partir; porém, quanto mais difícil, mais meritório.
Dizemos: “Tenho um fuzil, estou na barricada, não faz mal, fico”. Não faz
mal é fácil dizer. Meus amigos, há um amanhã; vocês não estarão nesse
amanhã, mas suas famílias estarão. E quantos sofrimentos! Vejam, uma
criança saudável com bochechas redondas como uma maçã, que balbucia,
que murmura, que tagarela, que ri, de quem sentimos o frescor quando a
beijamos, vocês sabem no que se transforma quando é abandonada? Eu vi
uma bem pequena, deste tamanho. Seu pai morreu. Por caridade foi
recolhida por pessoas pobres, mas não tinham pão nem para eles mesmos.
A criança estava sempre com fome. Era inverno. A criança não chorava.
Viam-na chegar perto da lareira, onde nunca havia fogo, e cujo cano, vocês
sabem, era coberto com terra amarela. A criança arrancava com os
pequenos dedos alguns pedacinhos dessa terra e os comia. Tinha a
respiração rouca, as faces lívidas, as pernas moles, o ventre inchado. Não
dizia nada. Se alguém lhe falava, não respondia. Morreu. Levaram-na para
morrer no hospital Necker, onde a vi. Eu era interno nesse hospital. Agora,
se entre vocês há pais, pais que têm a felicidade de sair para passear no
domingo segurando em suas mãos robustas a pequenina mão de seus
filhos, que cada um desses pais imagine que este filho é o seu. O pobre
menino, eu me lembro, parece que o vejo quando o puseram nu em cima
da mesa de anatomia, suas costelas formavam uma saliência por baixo da
pele, como as sepulturas por baixo da grama de um cemitério.
Encontraram uma espécie de lama no estômago. Tinha cinza nos dentes.
Vamos, ponhamos a mão na consciência e aconselhemo-nos com o
coração. As estatísticas provam que a mortalidade das crianças
abandonadas é de cinquenta e cinco por cento. Repito, trata-se das
mulheres, das mães, das moças, das crianças. Porventura, falamos de
vocês? Sabemos muito bem quem são; sabemos que são todos bravos, por
Deus! Sabemos muito bem que todos têm na alma a alegria e a glória de
dar a vida pela grande causa; bem sabemos que se sentem eleitos para
morrer utilmente e magnificamente, e que cada um de vocês faz questão
de sua parte no triunfo! Ainda bem! Porém não estão sós neste mundo. Há
outros entes em quem devem pensar. Não se pode ser egoísta!
Todos curvaram a cabeça com ar sombrio.
Estranhas contradições do coração humano nesses momentos mais
sublimes! Combeferre, que falava daquele modo, não era órfão.
Lembrava-se das mães dos outros e esquecia a sua. Seria morto. Ele era
“egoísta”.
Marius, em jejum, febril, perdendo sucessivamente todas as
esperanças, caído na dor, o mais sombrio dos naufrágios, saturado de
emoções violentas e sentindo o fim aproximar-se, embrenhara-se mais e
mais nesse estupor visionário que precede sempre a hora fatal,
voluntariamente aceita.
Um fisiologista teria podido estudar nele os crescentes sintomas dessa
absorção febril conhecida e classificada pela ciência, e que é para o
sofrimento o mesmo que a voluptuosidade é para o prazer. O desespero
também tem seu êxtase. Marius estava nesse ponto. Ele assistia a tudo
como se estivesse de fora; como dissemos, as coisas que se passavam
diante dele pareciam-lhe longínquas; ele distinguia o conjunto mas não
percebia os detalhes. Via as pessoas indo e vindo através de um clarão
flamejante. Ouvia as vozes falando como se fosse do fundo de um abismo.
Porém, isso o comoveu. Havia naquela cena uma ponta que cresceu até
ele e o despertou. Tinha somente uma ideia, morrer, e não desejava
distrair-se dela; mas pensou, em seu sonambulismo fúnebre, que, embora
morrendo, não era proibido salvar alguém.
Elevou a voz:
— Enjolras e Combeferre têm razão — disse ele —; nada de
sacrifícios inúteis. Junto-me a eles, e é preciso se apressar. Combeferre
lhes disse coisas decisivas. Há entre vocês aqueles que têm família, mães,
irmãs, esposas, filhos. Que esses saiam das fileiras.
Ninguém se moveu.
— Os homens casados e os que sustentam a família, fora das fileiras!
— repetiu Marius.
Sua autoridade era grande. Enjolras era certamente o chefe da
barricada, mas Marius era o salvador.
— É uma ordem! — gritou Enjolras.
— Eu lhes suplico — disse Marius.
Então, agitados pelas palavras de Combeferre, abalados pela ordem de
Enjolras, comovidos pela solicitação de Marius, esses homens heroicos
começaram a se denunciar mutuamente.
— É verdade — dizia um jovem a um homem já feito. — Você é pai de
família. Vá embora.
— Você é quem deveria ir — respondia o homem —; você tem duas
irmãs que sustenta.
E uma luta incrível começava. Cada um se esforçava para não ser
posto fora do túmulo.
— Apressem-se — disse Courfeyrac —, dentro de um quarto de hora
será tarde.
— Cidadãos — prosseguiu Enjolras —, é aqui a república, e o sufrágio
universal reina. Designem vocês mesmos aqueles que devem partir.
Obedeceram. Ao cabo de alguns minutos, cinco eram unanimemente
designados e saíam das fileiras.
— São cinco! — exclamou Marius.
Havia somente quatro uniformes.
— Bem — disseram os cinco —, é preciso que um fique.
E a discussão recomeçou para ver quem deveria ficar e quem
encontraria motivos para que os outros não ficassem. A generosa
discussão recomeçou.
— Você tem uma esposa que o ama. — Você tem sua velha mãe. —
Você, já não tem nem pai nem mãe, o que será de seus três irmãos
pequenos? — Você é pai de cinco filhos. — Você tem o direito de viver,
tem dezessete anos, ainda é muito cedo.
Aquelas grandes barricadas revolucionárias eram encontros de
heroísmos. O inverossímil era simples. Esses homens não se surpreendiam
uns aos outros.
— Andem depressa — repetia Courfeyrac.
Dos grupos gritaram dirigindo-se a Marius:
— Designe o senhor quem deve ficar.
— Sim, escolha o senhor — disseram os cinco. — Nós o
obedeceremos.
Marius não acreditava mais que alguma emoção fosse possível. No
entanto, a essa ideia de escolher um homem para a morte, todo o seu
sangue refluiu ao seu coração. Teria empalidecido, se pudesse empalidecer
ainda mais.
Encaminhou-se para os cinco que lhe sorriam, e cada um com os olhos
iluminados por essa grande chama que se avista no fundo da história nas
Thermopyles gritava-lhe:
— Eu! Eu! Eu!
E Marius, estupidamente, os contou; ainda eram cinco! Em seguida
olhou para os quatro uniformes.
Nesse momento caiu sobre os outros quatro, como se fosse do céu, um
quinto uniforme.
O quinto homem estava salvo.
Marius ergueu os olhos e reconheceu o senhor Fauchelevent.
Jean Valjean acabava de entrar na barricada.
Fosse por meio de informação, fosse por instinto, fosse por acaso, ele
chegava pela ruazinha Mondétour. Graças à sua farda de guarda nacional,
passara facilmente.
A sentinela postada pelos insurgentes na rua Mondétour sabia não ser
necessário dar o sinal de alarme por causa de um guarda nacional sozinho.
Deixara-o entrar na rua pensando: provavelmente é um reforço, ou, no pior
dos casos, um prisioneiro. A ocasião era demasiado grave para que a
sentinela pudesse distrair-se de seu dever e de seu posto de observação.
No momento em que Jean Valjean entrara no reduto, ninguém o
percebera, pois todos os olhares se achavam fixos sobre os cinco
escolhidos e sobre os quatro uniformes. Jean Valjean, sim, vira e ouvira, e
silenciosamente tirara sua farda e a jogara sobre as outras.
A emoção foi indescritível.
— Quem é esse homem? — perguntou Bossuet.
— É — respondeu Combeferre — um homem que salva os outros.
Marius acrescentou com voz grave:
— Eu o conheço.
Essa afirmação era suficiente para todos.
Enjolras voltou-se para Jean Valjean.
— Cidadão, seja bem-vindo.
E acrescentou:
— Sabe que iremos morrer.
Jean Valjean, sem responder, ajudou o insurgente que salvava a vestir
seu uniforme.

V. QUE HORIZONTE SE AVISTA DO ALTO DA


BARRICADA
A situação de todos, nessa hora fatal e nesse lugar inexorável, tinha
como resultado e como ápice a melancolia suprema de Enjolras.
Enjolras possuía em si a plenitude da revolução; todavia estava
incompleto, tanto quanto o absoluto pode sê-lo; tinha muito de Saint–Just,
e não o suficiente de Anacharsis Cloots; entretanto, seu espírito, na
sociedade dos Amigos do ABC, acabara por sofrer certa magnetização das
ideias de Combeferre; havia algum tempo, ele saía, devagar, da forma
estreita do dogma e deixava-se levar para os horizontes mais amplos do
progresso, e acabara por aceitar, como evolução definitiva e magnífica, a
transformação da grande república francesa em imensa república humana.
Quanto aos meios imediatos, dada uma situação violenta, ele os desejava
violentos; nisso não havia mudado; permanecera dessa escola épica e
temida resumida nestas palavras: “Noventa e três”.
Enjolras estava de pé nas escadas de paralelepípedos, um de seus
cotovelos sobre o cano de sua carabina. Pensava; estremecia, como à
passagem de sopros; os lugares onde está a morte provocam desses efeitos.
De suas pupilas, cheias de um olhar interior, saía uma espécie de fogo
abafado. De repente ergueu a cabeça, seus cabelos loiros caíram para trás
como os de um anjo sobre o sombrio quadrilátero feito de estrelas; foi
como a juba de um leão sobressaltado em uma auréola flamejante, e
Enjolras gritou:
— Cidadãos, já imaginaram o futuro? As ruas das cidades inundadas
de luz, galhos verdes sobre as soleiras, as nações irmãs, os homens justos,
os idosos abençoando as crianças, o passado amando o presente, os
pensadores livres, os crentes em igualdade, o céu como religião. Deus, o
padre direto; a consciência humana transformada em altar; nada mais de
ódios; fraternidade entre a oficina e a escola; como penalidade e como
recompensa, a notoriedade; para todos o trabalho, para todos o direito,
sobre todos a paz, nada mais de sangue derramado, nada mais de guerras,
as mães felizes! Domar a matéria, é o primeiro passo; realizar o ideal, é o
segundo. Reflitam sobre o que o progresso já fez. Outrora, as primeiras
raças humanas viam com terror passar diante de seus olhos a hidra que
soprava sobre as águas, o dragão que vomitava fogo, o grifo que era um
monstro do ar e que voava com asas de águia e garras de tigre; animais
assustadores que estavam acima do homem. Entretanto, o homem fez
armadilhas, as armadilhas sagradas da inteligência, e acabou pegando os
monstros. Nós domamos a hidra, e ela se chama vapor; domamos o
dragão, e ele se chama locomotiva; estamos a ponto de domar o grifo, já o
temos, e chama-se balão. No dia em que essa obra promissora for
concluída e o homem tiver definitivamente atrelado à sua vontade a tripla
Quimera antiga, a hidra, o dragão e o grifo, ele será o senhor das águas, do
fogo e do ar, e será para o resto da criação animada o que os antigos
deuses eram outrora para ele. Coragem, e avante! Cidadãos, para onde
vamos? Para a ciência transformada em governo, para a força das coisas
transformada em uma única força pública, para a lei natural possuindo sua
sanção e sua penalidade em si própria e promulgando-se pela evidência,
para o nascer da verdade correspondendo ao nascer do dia. Estamos indo
para uma união dos povos; para a unidade do homem. Sem ficções; sem
parasitas. O real governado pelo verdadeiro, esse é o objetivo. A
civilização terá seus tribunais nos cimos da Europa, e mais tarde no centro
dos continentes, em um grande parlamento de inteligências. Já se viu algo
semelhante. Os anfictiões6 faziam duas sessões por ano, uma em Delfos,
sítio dos deuses, a outra em Thermopyles, sítio dos heróis. A Europa terá
seus anfictiões; o globo terá seus anfictiões. A França carrega esse futuro
sublime em seus flancos. É essa a gestação do século XIX, o que foi
esboçado pela Grécia é digno de ser concluído pela França. Ouça-me,
você, Feuilly, valente operário, homem do povo, homem dos povos. Eu o
venero. Sim, você enxerga distintamente os tempos futuros, sim, você tem
razão. Você não tinha nem pai nem mãe, Feuilly; você adotou como mãe a
humanidade e como pai o direito. Você vai morrer aqui, ou melhor,
triunfar. Cidadãos, seja o que for que aconteça hoje, para nossa derrota,
bem como para nossa vitória, é uma revolução que faremos. Assim como
os incêndios iluminam uma cidade inteira, as revoluções iluminam todo o
gênero humano. E que revolução faremos? Acabei de dizer, a revolução da
Verdade. Do ponto de vista político, há somente um princípio, a soberania
do homem sobre si mesmo. Essa soberania de mim sobre mim chama-se
Liberdade. Onde duas ou mais destas soberanias se associam, principia o
Estado. Mas, nessa associação não há nenhuma abdicação. Cada soberania
concede certa quantidade de si mesma para formar o direito comum. Essa
quantidade é igual para todos. Essa identidade de concessão que cada um
faz a todos chama-se Igualdade. O direito comum nada mais é que a
proteção de todos brilhando sobre o direito de cada um. Essa proteção de
todos sobre cada um chama-se Fraternidade. O ponto de interseção de
todas essas soberanias que se agregam chama-se Sociedade. Sendo essa
interseção uma junção, esse ponto é um nó. Daí vem o que chamamos laço
social. Alguns dizem contrato social, o que é a mesma coisa; a palavra
contrato é etimologicamente formada pela a ideia de laço. Vamos nos
entender sobre a igualdade; pois, se a liberdade é o cume, a igualdade é a
base. A igualdade, cidadãos, não é o nivelamento de toda a vegetação; uma
sociedade de grandes punhados de grama e pequenos carvalhos; uma
vizinhança de invejas castrando-se mutuamente; é, civilmente, a
oportunidade por igual de todas as aptidões; politicamente, o mesmo peso
para todos os votos; religiosamente, todas as consciências possuindo os
mesmos direitos. A igualdade tem um órgão; a instrução gratuita e
obrigatória. É preciso começar pelo direito ao alfabeto. A escola primária
imposta a todos, a escola secundária oferecida a todos, assim deve ser a
lei. Da escola idêntica sai a sociedade igual. Sim, ensino! Luz! Luz! Tudo
provém da luz e tudo retorna para a luz. Cidadãos, o século XIX é grande,
mas o século XX será feliz. Então, nada mais de semelhante à história
antiga; não temeremos mais, como hoje, uma conquista, uma invasão, uma
usurpação, uma rivalidade de nações à mão armada, uma interrupção de
civilização dependente de um casamento de reis, um nascimento nas
tiranias hereditárias, uma partilha de povos por meio de um congresso, um
desmembramento por queda de dinastia, um combate entre duas religiões
encontrando-se de frente, como dois bodes da sombra, sobre a ponte do
infinito; não temeremos mais a fome, a exploração, a prostituição em
razão da penúria, a miséria em razão da falta de trabalho, a forca, a espada,
as batalhas e todas as escaramuças do acaso na floresta dos
acontecimentos. Poderíamos quase dizer: não haverá mais acontecimentos.
Seremos felizes. O gênero humano cumprirá sua lei, como o globo
terrestre cumpre a dele; a harmonia entre a alma e o astro será
restabelecida; a alma gravitará em volta da verdade como o astro em volta
da luz. Amigos, a hora em que estamos e em que lhes falo é uma hora
sombria; mas aí estão aquisições incríveis para o futuro. Uma revolução é
um pedágio. Oh! O gênero humano será libertado, reerguido, consolado!
Nós o afirmamos nesta barricada. De onde soltaremos o grito de amor,
senão do alto do sacrifício? Ó meus irmãos, é este o lugar de junção dos
que pensam e dos que padecem; esta barricada não é feita nem de pedras,
nem de vigas, nem de ferragem; é feita de dois feixes, um feixe de ideias e
um feixe de dores. A miséria se encontra com o ideal. O dia abraça a noite
dizendo-lhe: “Eu vou morrer contigo e vais renascer comigo”. Do abraço
de todas as angústias resulta a fé. Os sofrimentos trazem aqui sua agonia, e
as ideias, sua imortalidade. Essa agonia e essa imortalidade vão se
misturar para formar nossa morte. Irmãos, quem aqui morre, morre no
brilho do futuro, e entramos em um túmulo todo iluminado pela aurora.
Enjolras interrompeu-se mais do que calou-se; seus lábios mexiam-se
em silêncio, como se continuasse falando consigo mesmo, o que fez com
que os atentos, para tentar ouvi-lo ainda, olhassem para ele. Não houve
aplausos; mas murmurou-se por muito tempo. A palavra sendo sopro, os
frêmitos de inteligência assemelham-se ao frêmito das folhas.

VI. MARIUS ALHEIO, JAVERT LACÔNICO


Vejamos o que se passava na mente de Marius.
Vamos lembrar seu estado de espírito. Como há pouco recordamos,
para ele tudo era mera visão. Sua avaliação estava indistinta. Marius,
repetimos, achava-se sob a sombra das grandes e tenebrosas asas que se
abrem sobre os agonizantes.
Sentia-se dentro do túmulo, parecia-lhe que já se achava do outro lado
da muralha, e ele já não via a face dos vivos senão com os olhos de um
morto.
Como o senhor Fauchelevent se encontrava ali? Por que estava ali?
Que fazia ali? Marius não se fez todas essas perguntas. Aliás, nosso
desespero tendo a particularidade de envolver os outros como a nós
mesmos, parecia-lhe lógico que todos viessem a morrer.
Só que lembrou-se de Cosette com um aperto no coração.
E, por outro lado, o senhor Fauchelevent não lhe falou, não olhou para
ele e pareceu não ter ouvido quando Marius elevara a voz para dizer: “Eu o
conheço”.
Quanto a Marius, aquela atitude do senhor Fauchelevent o aliviava, e,
se pudéssemos usar esta palavra para tais impressões, diríamos: lhe
agradava. Ele sempre sentira uma impossibilidade absoluta de dirigir a
palavra a esse homem enigmático, que para ele era, ao mesmo tempo,
equívoco e imponente. Por outro lado, fazia muito tempo que não o via; o
que, para a índole tímida e reservada de Marius, aumentava ainda mais
essa impossibilidade.
Os cinco homens designados saíram da barricada pela ruazinha
Mondétour; pareciam realmente guardas nacionais. Um deles foi-se
chorando. Antes de partir abraçaram os que ficavam.
Quando os cinco homens restituídos à vida haviam partido, Enjolras
lembrou-se do condenado à morte. Entrou na sala baixa. Javert, atado ao
poste, meditava.
— Precisa de alguma coisa? — perguntou-lhe Enjolras.
Javert respondeu:
— Quando me matarão?
— Espere. Neste momento, precisamos de todos os nossos cartuchos.
— Então, me dê de beber — disse Javert.
O próprio Enjolras levou-lhe um copo de água, e, como Javert estava
amarrado, ajudou-o a beber.
— É tudo? — continuou Enjolras.
— Estou mal neste poste! — respondeu Javert. — Vocês não foram
gentis obrigando-me a passar a noite aqui! Prendam-me como quiserem,
mas podem perfeitamente deitar-me sobre uma mesa, como o outro.
E com um aceno de cabeça designava o cadáver de Mabeuf.
Havia, como se lembram, uma grande e longa mesa no fundo da sala,
sobre a qual haviam derretido balas e cartuchos. Todos os cartuchos já
prontos e toda a pólvora já utilizada, a mesa estava livre.
Sob as ordens de Enjolras, quatro insurgentes desamarraram Javert do
poste, enquanto um quinto conservava uma baioneta apoiada em seu peito.
Deixaram-lhe as mãos presas atrás das costas, ataram-lhe os pés com uma
corda de chicote, fina e sólida, que lhe permitia dar passos de quinze
polegadas, como os passos dos que vão ao cadafalso, e assim o fizeram
caminhar até a mesa do fundo da sala, onde o deitaram, solidamente
amarrado pelo meio do corpo.
Para maior segurança, por meio de uma corda atada ao pescoço,
acrescentaram ao sistema de ligaduras, que lhe tornava impossível a
menor ideia de evasão, uma espécie de laço, chamado nas prisões de
martingale, que parte da nuca, se bifurca no estômago e vem prender as
mãos, depois de ter passado entre as pernas.
Enquanto amarravam Javert, um homem, na soleira da porta, o olhava
com uma atenção singular. A sombra projetada por esse homem fez com
que Javert virasse a cabeça. Ergueu os olhos e reconheceu Jean Valjean.
Nem mesmo estremeceu, abaixou orgulhosamente as pálpebras e limitou-
se a dizer: “É muito simples”.

VII. A SITUAÇÃO SE AGRAVA


O dia avançava rapidamente. Mas nenhuma janela se abria, nenhuma
porta se entreabria; era a aurora, não o despertar. A extremidade da rua de
la Chanvrerie, oposta à barricada, fora evacuada pelas tropas, como
dissemos; ela parecia livre e abria-se aos passantes com sinistra
tranquilidade. A rua Saint-Denis estava muda como a avenida das Esfinges
em Tebas. Nem um único ser vivo nas esquinas clareadas por um reflexo
do sol. Nada é mais lúgubre do que essa claridade das ruas desertas.
Não se via nada, mas ouvia-se. Fazia-se, a certa distância, um
movimento misterioso. Era evidente que o momento crítico chegava.
Como na véspera ao entardecer, as sentinelas recuaram; mas dessa vez
todas.
A barricada estava mais forte do que por ocasião do primeiro ataque.
Desde a partida dos cinco, elevaram-na ainda mais.
Devido à opinião da sentinela que havia observado a região dos
depósitos, Enjolras, com receio de uma surpresa pela retaguarda, tomou
uma grave resolução. Mandou obstruir a entrada da ruazinha Mondétour,
até então desimpedida. Para isso tiraram os paralelepípedos de mais
alguns lances ao longo das casas. Desse modo, a barricada, murada em três
ruas, pela frente, na rua de la Chanvrerie, à esquerda, na rua du Cygne e
Petite-Truanderie, à direita, na rua Mondétour, ficara verdadeiramente
quase inexpugnável; é verdade que ali fatalmente ficavam presos. Ela
tinha três frentes, mas nenhuma saída. “Fortaleza e ratoeira”, disse
Courfeyrac rindo.
À porta da taverna, Enjolras mandou amontoar uns trinta
paralelepípedos, “arrancados em demasia”, dizia Bossuet.
O silêncio era agora tão profundo na direção de onde deveria vir o
ataque, que Enjolras pediu que cada um retomasse seu posto de combate.
Distribuíram a todos uma ração de aguardente.
Nada mais curioso do que uma barricada preparando-se para um
ataque. Cada qual escolhe seu lugar, como no teatro; acotovelam-se,
empurram-se, encostam-se. Há quem improvise uma poltrona de pedras.
Descobrem um ângulo de parede que incomoda, afastam-se; divisam um
vão que protege, abrigam-se. Os canhotos são preciosos, porque ocupam
os lugares incômodos aos outros. Muitos procuram combater sentados.
Querem estar à vontade para matar e confortáveis para morrer. Na funesta
guerra de junho de 1848, um insurgente, que possuía uma pontaria temível
e que combatia do alto de um terraço em cima de um teto, mandara vir
uma poltrona Voltaire; um tiro de metralhadora o encontrou ali.
Logo que o chefe ordena que ocupem seus postos, cessam todos os
movimentos desordenados; cessam os empurra-empurra; cessam os
acotovelamentos; nada mais de conversas ou grupos à parte; todos os
espíritos convergem e transformam-se em espera ao assaltante. Uma
barricada, antes do perigo, é um caos; no momento do perigo, disciplina. O
perigo produz a ordem.
Logo que Enjolras pegou sua carabina de dois canos e se postou em
uma espécie de seteira que havia reservado para si, todos se calaram. Ao
longo da murada de paralelepípedos ouvia-se confusamente o estalido seco
de pequenos ruídos. Eram os fuzis sendo armados.
De resto, as atitudes eram mais altivas e confiantes do que nunca; o
excesso do sacrifício é uma consolidação; não tinham mais esperança, mas
tinham o desespero. O desespero, última arma que algumas vezes dá a
vitória, como disse Virgílio. Os recursos supremos provêm das resoluções
supremas. Embarcar na morte é, às vezes, o meio de escapar ao naufrágio;
e a tampa do caixão transforma-se em tábua de salvação.
Como na noite da véspera, todas as atenções estavam voltadas, e quase
poderíamos dizer apoiadas, à extremidade da rua, agora iluminada e
visível.
A espera não foi longa. O movimento recomeçou distintamente pelos
lados de Saint-Leu, mas não se assemelhava ao movimento do primeiro
ataque. Um retinir de correntes, o ruído inquietante de uma massa, um
tinido de bronze de encontro aos paralelepípedos, uma espécie de barulho
solene, anunciaram a aproximação de alguma ferragem sinistra. Houve um
estremecimento nas entranhas daquelas velhas ruas pacíficas, construídas
e abertas para a fecunda circulação dos interesses e das ideias, e
impróprias para o monstruoso rodar das rodas da guerra.
O fixar dos olhares de todos os combatentes em direção à extremidade
da rua tornou-se feroz.
Um canhão apareceu.
Os artilheiros o empurravam; estava ajustado para atirar; a parte
frontal fora separada; dois sustentavam a carreta, quatro lidavam com as
rodas; outros seguiam com a caixa de munições. Via-se fumegar a ponta
acesa.
— Fogo! — gritou Enjolras.
Toda a barricada fez fogo, a detonação foi terrível; uma avalanche de
fumaça cobriu e escondeu o canhão e os homens; após alguns segundos a
nuvem se dissipou e o canhão e os homens reapareceram; os soldados
continuavam empurrando a peça até a frente da barricada, lentamente,
corretamente, sem pressa. Nenhum deles fora atingido. Depois, o
artilheiro-chefe, pesando sobre a culatra para elevar o tiro, apontou o
canhão com a gravidade de um astrônomo que ajusta uma luneta.
— Bravo, canhoneiros! — gritou Bossuet.
E toda a barricada bateu palmas.
Um instante depois, bem no meio da rua, a peça estava pronta. Uma
bocarra formidável estava aberta sobre a barricada.
— Vamos, alegria! — disse Courfeyrac. — Eis o brutal. Depois da
palmadinha, o murro. O exército estende contra nós suas pesadas patas. A
barricada será seriamente sacudida. A fuzilaria tateia, o canhão pega.
— É uma peça de oito, modelo novo, de bronze — acrescentou
Combeferre. — Essas peças, por pouco que se exceda a proporção de dez
partes de estanho por cem de cobre, estão sujeitas a explodir. O excesso de
estanho torna-as muito tenras. O resultado é que ficam com cavidades e
câmaras. Para eliminar esse perigo e poder forçar a carga, talvez fosse
necessário recorrer ao processo do século XIV, a cercadura, e cingir
exteriormente a peça com uma série de arcos ou anéis de aço sem
soldadura, desde a culatra até o eixo de sustentação. Enquanto isso,
remedia-se como se pode a irregularidade; pode-se reconhecer onde estão
os buracos e as cavidades do canhão por meio da raspadeira. Porém, existe
outro meio ainda melhor, a estrela móvel de Gribeauval.
— No século XVI — observou Bossuet — os canhões eram estriados.
— Sim — respondeu Combeferre —, isso aumenta a potência
balística, mas diminui a precisão do tiro. No tiro a pequena distância, a
trajetória não tem toda a força desejada, a parábola se exagera, o caminho
do projétil não é tão retilíneo para poder atingir os objetos intermediários,
no entanto, necessidade do combate, e cuja importância aumenta com a
proximidade do inimigo e a precipitação do tiro. Essa falta de tensão na
curva do projétil dos canhões estriados do século XVI provinha da
fraqueza da carga; as cargas fracas, para essa espécie de peças, são
impostas pelas necessidades de balística, como, por exemplo, a
conservação das carretas. Em suma, o canhão, esse déspota, não pode tudo
quanto quer; a força é uma grande fraqueza. Uma bala de canhão não anda
mais que seiscentas léguas por hora; a luz percorre setenta mil léguas por
segundo. Tal é a superioridade de Jesus Cristo sobre Napoleão.
— Recarreguem as armas — disse Enjolras.
De que modo se comportaria o revestimento da barricada sob uma bala
de canhão? O golpe abriria uma brecha? Essa era a questão. Enquanto os
insurgentes recarregavam os fuzis, os artilheiros carregavam o canhão.
A ansiedade era profunda no reduto.
O tiro partiu, a detonação estourou.
— Presente! — exclamou uma voz alegre.
Era Gavroche, caindo na barricada ao mesmo tempo que a bala.
Vinha dos lados da rua du Cygne, e havia saltado ligeiramente por
cima da barricada acessória, que fazia frente ao dédalo da Petite–
Truanderie.
Gavroche produziu mais efeito na barricada do que a bala de canhão.
A bala se perdera no amontoado de escombros.
No máximo, rachara uma roda do ônibus e destruíra a velha charrete
Anceau. Vendo isso, a barricada começou a rir.
— Continuem — gritou Bossuet aos artilheiros.

VIII. OS ARTILHEIROS FAZEM-SE LEVAR A SÉRIO


Rodearam Gavroche.
Mas ele não teve tempo de contar nada. Marius, tremendo, chamou-o
de lado.
— O que você está fazendo aqui?
— Ora! — disse o menino. — E o senhor?
E olhou fixamente Marius com seu descaramento épico. Seus olhos
tornavam-se maiores pela orgulhosa claridade que continham.
Foi com um tom severo que Marius continuou:
— Quem lhe disse para voltar? Pelo menos levou minha carta a seu
destino?
Gavroche sentia certo remorso a respeito da carta. Na pressa de voltar
para a barricada, se desfizera dela mais do que a entregara. Era obrigado a
confessar a si mesmo que a confiara, um tanto levianamente, a esse
desconhecido do qual mal conseguira distinguir o rosto. Verdade é que o
homem estava sem chapéu, mas isso não bastava. Em suma, censurava-se
interiormente e temia as críticas de Marius. Para livrar-se do problema,
tomou a resolução mais simples; mentiu abominavelmente.
— Cidadão, entreguei a carta ao porteiro. A dama dormia. Ela receberá
a carta ao acordar.
Marius, ao enviar essa carta, tinha dois objetivos, dizer adeus a Cosette
e salvar Gavroche. Teve de se contentar com a metade do que desejava.
O envio de sua carta e a presença do senhor Fauchelevent na barricada,
essa coincidência apresentou-se a seu espírito. Mostrou a Gavroche o
senhor Fauchelevent.
— Conhece aquele homem?
— Não — disse Gavroche.
Efetivamente, como acabamos de dizer, Gavroche vira Jean Valjean
somente à noite.
As conjecturas confusas e doentias que se tinham esboçado no espírito
de Marius se dissiparam.
Conhecia as opiniões do senhor Fauchelevent? O senhor Fauchelevent
talvez fosse republicano. Daí, simplesmente, sua presença no combate.
Enquanto isso, Gavroche já estava na outra ponta da barricada
gritando: “Meu fuzil!”
Courfeyrac fez com que o devolvessem.
Gavroche preveniu “os camaradas”, como os chamava, de que a
barricada estava bloqueada. Tivera muitas dificuldades para chegar. Um
batalhão de linha, cujos holofotes estavam na Petite-Truanderie, observava
o lado da rua du Cygne; do lado oposto, a guarda municipal ocupava a rua
des Prêcheurs. Em frente, havia o grosso do exército.
Dada essa informação, Gavroche acrescentou:
— Eu os autorizo a recebê-los como merecem.
Enquanto isso, Enjolras, de seu lugar, ouvidos atentos, espiava.
Os assaltantes, sem dúvida pouco satisfeitos com seu tiro de canhão,
não o haviam repetido.
Uma companhia de infantaria de linha viera ocupar a extremidade da
rua, atrás do canhão. Os soldados arrancavam o calçamento da rua e
construíam com os paralelepípedos uma pequena muralha baixa, uma
espécie de parapeito com somente dezoito polegadas de altura que fazia
frente à barricada. Do lado esquerdo da improvisada muralha, avistava-se
a vanguarda de um batalhão do bairro, formado na rua Saint-Denis.
Enjolras, atento, acreditou distinguir o ruído peculiar que se faz
quando são retiradas as balas das caixas de metralhadoras, e viu o chefe
dos artilheiros mudar a pontaria e inclinar ligeiramente para a esquerda a
boca do canhão. Depois, os canhoneiros puseram-se a carregar o canhão. O
próprio chefe de artilharia pegou a chama e aproximou-a da abertura.
— Abaixem-se e encostem-se à parede! — gritou Enjolras. — E todos
de joelhos ao longo da barricada!
Os insurgentes, espalhados diante da taverna ao deixarem seus postos
de combate com a chegada de Gavroche, precipitaram-se confusamente
para a barricada; mas, antes que a ordem de Enjolras fosse executada, a
descarga fez-se ouvir com o medonho estertor de uma metralha.
Efetivamente era uma.
O tiro fora dirigido contra a abertura do reduto, ricocheteara de
encontro à parede, matando dois homens e ferindo três.
Se isso continuasse, a barricada não se manteria por muito tempo. A
metralha penetrava.
Houve um murmúrio de consternação.
— Impeçamos o segundo tiro — disse Enjolras.
E, abaixando sua carabina, apontou para o chefe de artilharia que,
nesse momento, inclinado sobre a culatra do canhão, retificava e fixava
definitivamente a pontaria.
Esse chefe de artilharia era um belo sargento de canhoneiros, muito
jovem, loiro, rosto meigo, ar inteligente, próprio a essa arma predestinada
e temível que, à força de se aperfeiçoar no horror, acabará por matar a
guerra.
Combeferre, de pé ao lado de Enjolras, contemplava-o:
— Que pena! — disse Combeferre. — Que hedionda coisa são essas
carnificinas! Vamos, quando não houver mais reis, não haverá mais
guerras. Enjolras, você está visando esse sargento, e não olhando para ele.
Veja, é um jovem encantador, é intrépido, percebe-se que pensa, são muito
cultos esses jovens da artilharia; tem pai, mãe, uma família,
provavelmente a ama, no máximo tem vinte e cinco anos, poderia ser seu
irmão.
— Ele é — disse Enjolras.
— Sim — replicou Combeferre —, e meu também. Então, não o
matemos.
— Deixe-me. É preciso o que é preciso.
E uma lágrima deslizou lentamente pelo rosto de mármore de Enjolras.
Ao mesmo tempo, puxou o gatilho de sua carabina. O tiro partiu. O
artilheiro deu duas voltas sobre si mesmo, os braços estendidos diante dele
e a cabeça erguida como para aspirar o ar, depois caiu de lado sobre o
canhão e aí permaneceu sem movimentos. Viam-se suas costas, e do centro
delas espirrava um jorro de sangue. A bala atravessara o peito de um lado
a outro. Estava morto.
Foi preciso levá-lo e substituí-lo. Na verdade, eram alguns minutos
ganhos.
IX. EMPREGO DO VELHO TALENTO DE CAÇADOR
FURTIVO E DA PONTARIA INFALÍVEL QUE INFLUIU
NA CONDENAÇÃO DE 1796
As opiniões se cruzavam na barricada. O tiro de canhão iria recomeçar.
Não resistiriam nem um quarto de hora com essa metralha. Era
absolutamente necessário amortecer os golpes.
Enjolras deu esta ordem:
— É preciso colocar um colchão ali.
— Não temos — disse Combeferre —; os feridos estão em cima deles.
Jean Valjean, afastado e sentado sobre uma baliza no ângulo da
taverna, seu fuzil entre as pernas, até esse momento não tomara parte em
nada do que se passava. Parecia não escutar os combatentes dizerem a sua
volta: “Aí está um fuzil que não faz nada”.
Ao ouvir a ordem dada por Enjolras, levantou-se.
Como vocês devem se lembrar, quando da chegada do grupo na rua de
la Chanvrerie, uma mulher idosa, prevendo as balas, colocara seu colchão
diante de sua janela. Essa janela, janela do sótão, ficava sobre o teto de
uma casa de seis andares, situada um pouco para fora da barricada. O
colchão, colocado de través, apoiado na parte inferior por dois paus de
secar roupa, era preso no alto por duas cordas que, de longe, pareciam dois
barbantes amarrados a pregos cravados nas guarnições da mansarda. Viam-
se distintamente no céu essas duas cordas parecendo cabelos.
— Alguém pode me emprestar uma carabina de dois tiros? — disse
Jean Valjean.
Enjolras, que acabava de recarregar a sua, estendeu-a a ele.
Jean Valjean mirou a mansarda e atirou.
Uma das duas cordas que segurava o colchão estava cortada.
O colchão pendia somente por um fio.
Jean Valjean disparou o segundo tiro. A outra corda bateu na vidraça
da mansarda. O colchão escorregou entre as duas varetas e caiu na rua.
A barricada aplaudiu.
Todas as vozes gritaram:
— Eis um colchão.
— Sim — disse Combeferre —, mas quem irá buscá-lo?
Efetivamente, o colchão tinha caído fora da barricada, entre os sitiados
e os sitiantes. Ora, a morte do sargento de artilharia exasperara a tropa;
havia alguns instantes, os soldados tinham-se deitado de bruços por trás da
linha de paralelepípedos que fora erguida, e, para suprir o silêncio forçado
do canhão, que se calava esperando que seu serviço fosse reorganizado,
abriram fogo contra a barricada. Os insurgentes não respondiam a esse
ataque para poupar as munições. As balas chocavam-se inutilmente na
barricada; mas a rua, que se enchia de balas, era terrível.
Jean Valjean saiu pela abertura, entrou na rua, atravessou a tempestade
de balas, foi até o colchão, pegou-o, colocou-o nas costas e voltou para a
barricada.
Ele mesmo o colocou na abertura. Fixou-o contra a parede de modo
que os artilheiros não o vissem.
Feito isso, esperaram o descarregar da metralha.
Não demorou muito.
O canhão vomitou, rugindo, seu pacote de chumbo. Mas não houve
ricochetear. A metralha abortou sobre o colchão. O efeito previsto fora
obtido. A barricada estava preservada.
— Cidadão — disse Enjolras dirigindo-se a Jean Valjean —, a
República lhe agradece.
Bossuet se admirava e ria. Exclamou:
— É imoral que um simples colchão tenha tanto poder. Triunfo do que
se dobra sobre o que fulmina. Mas não importa, glória ao colchão que
anula um canhão!

X. AURORA
Nesse momento, Cosette acordava.
Seu quarto era estreito, limpo, discreto, com uma grande janela que se
abria para o quintal da casa.
Cosette nada sabia do que ocorria em Paris. Ela não estava ali na
véspera e já havia entrado em seu quarto quando Toussaint dissera:
“Parece que há uma revolta”.
Cosette dormira poucas horas, mas bem. Tivera doces sonhos, talvez
porque sua pequena cama fosse muito branca. Alguém que era Marius
apareceu-lhe como que envolto em luz. Acordou com sol nos olhos, o que,
em princípio, causou-lhe a impressão de continuar sonhando.
Seu primeiro pensamento após sair desse sonho foi risonho. Cosette
sentiu-se completamente segura. Ela atravessava, como Jean Valjean
algumas horas antes, essa reação da alma que absolutamente não deseja a
desgraça. Pôs-se a esperar com todas as suas forças sem saber por quê.
Depois sentiu um aperto no coração. Havia três dias que não via Marius.
Mas disse a si mesma que ele já deveria ter recebido sua carta, que ele
sabia onde ela estava e que ele possuía tanta imaginação que encontraria
uma maneira de chegar até ela. E isso com certeza seria hoje, e talvez
nessa manhã mesmo. O dia já estava bem adiantado, mas como os raios de
luz estavam muito na horizontal ela pensou que fosse bem cedo; mas tinha
de levantar, para receber Marius.
Ela sentia que não poderia viver sem Marius, e que por consequência
aquilo era suficiente, e que Marius viria. Nenhuma objeção era cabível.
Tudo isso era certo. Já era bastante monstruoso haver sofrido três dias.
Marius ausente três dias, era horrível para o bom Deus. Agora, essa cruel
brincadeira lá de cima era uma prova superada, Marius chegaria e traria
uma boa notícia. Assim é feita a juventude; enxuga rapidamente os olhos;
acha a dor inútil e não a aceita. A juventude é o sorriso do futuro diante do
desconhecido que é ele mesmo. Parece-lhe natural ser feliz. Parece que sua
respiração é feita de esperança.
De resto, Cosette não conseguia lembrar-se do que Marius lhe dissera a
respeito dessa ausência que devia durar somente um dia, nem de que
explicação lhe dera. Todos repararam com que eficiência uma moeda que
deixamos cair no chão corre e se esconde, e que dom possui para tornar-se
invisível. Existem pensamentos que agem do mesmo modo; escondem-se
em um canto do cérebro e fim; estão perdidos; impossível fazer com que a
memória os encontre. Cosette sentia-se um tanto desgostosa com o
pequeno esforço inútil que fazia sua memória. Dizia a si mesma que
somente ela era culpada por haver esquecido as palavras ditas por Marius.
Desceu da cama e efetuou as duas limpezas da alma e do corpo, sua
oração e sua toalete.
A rigor, podemos introduzir o leitor em um quarto nupcial, mas não
em um quarto virginal. O verso apenas o ousaria, a prosa não deve fazê-lo.
É o interior de uma flor ainda em botão, é uma brancura na sombra, é a
célula íntima de um lírio fechado que não deve ser visto pelo homem
enquanto não foi visto pelo sol. A mulher em botão é sagrada. Essa cama
inocente que se descobre, essa adorável seminudez que tem medo de si
mesma, esse pé branco que se refugia em um chinelo, esse colo que se
cobre diante de um espelho como se esse espelho fosse um olho, essa
camisola que se apressa em subir e esconder o ombro para um móvel que
estala ou para um carro que passa, esses cordões atados, esses colchetes
fechados, esses cadarços puxados, esses estremecimentos, esses arrepios
de frio e de pudor, esse susto delicioso de todos os movimentos, essa
inquietação quase alada, ali onde nada deve ser temido, as fases sucessivas
do vestir, tão charmosas quanto as nuvens da aurora, não fica bem contar
tudo isso e já é muito indicá-lo.
O olhar do homem deve ser ainda mais religioso diante do despertar de
uma moça que diante do despontar de uma estrela. A possibilidade de
alcançá-la deve converter-se em respeito. A penugem do pêssego, a cinza
da ameixa, o cristal que irradia da neve, a asa da borboleta salpicada de
plumas são coisas grosseiras em comparação com essa castidade que
sequer sabe que é casta. A moça é somente um vislumbre de sonho e ainda
não é uma estátua. Sua alcova fica oculta na parte escura do ideal. O toque
indiscreto do olhar brutaliza essa vaga penumbra. Aqui, contemplar é
profanar.
Portanto, nada mostraremos desse suave tumulto do despertar de
Cosette.
Um conto oriental diz que a rosa foi feita branca por Deus, mas,
quando Adão olhou para ela no instante em que se abria, envergonhou-se e
ficou rosa. Somos daqueles que se sentem interditados diante das moças e
das flores, achando-as vulneráveis.
Cosette vestiu-se rapidamente, penteou-se, arrumou o cabelo, coisa
muito simples naquele tempo em que as mulheres não encorpavam os
cachos e suas faixas com almofadinhas e rolos, nem usavam rolinhos nos
cabelos. Depois, abriu a janela e percorreu com o olhar tudo a sua volta,
esperando descobrir um pouco da rua, um ângulo da casa, um canto de
calçada onde pudesse espreitar Marius. Mas não se via nada do exterior. A
parte de trás do quintal estava rodeada por muros bem altos que deixavam
à vista somente alguns jardins. Cosette achou esses jardins horríveis; pela
primeira vez na sua vida ela achou feias as flores. O menor pedaço de
riacho da encruzilhada seria melhor para ela. Ela resolveu olhar o céu,
como se pensasse que Marius pudesse vir também dali.
Subitamente, debulhou-se em lágrimas. Não por mobilidade de alma,
mas pelas esperanças entrecortadas de desânimo; era esse seu estado. Ela
sentiu confusamente algo de horrível. Com efeito, as coisas passam pelo
ar. Ela pensou que não tinha certeza de nada, que se perder de vista é o
mesmo que se perder; e a ideia de que Marius pudesse retornar-lhe do céu
não mais lhe pareceu charmosa, mas lúgubre.
Depois, assim são essas nuvens, voltou-lhe a calma, e a esperança, e
uma espécie de sorriso inconsciente, mas confiante em Deus.
Todos na casa ainda dormiam. Reinava um silêncio provinciano.
Nenhuma veneziana estava aberta. A guarita do zelador estava fechada.
Toussaint ainda não se levantara e Cosette naturalmente pensou que seu
pai dormia. Era preciso que tivesse sofrido muito, e que sofresse ainda
mais, pois ela pensava que seu pai tinha sido mau; mas ela contava com
Marius. O eclipse de uma tal luz decididamente era impossível. Havia
momentos em que ela escutava, a certa distância, como que abalos surdos,
e dizia: “É estranho que abram e fechem os portões tão cedo”.
Eram os tiros de canhão desfechados contra a barricada.
Havia ali, alguns metros abaixo da janela de Cosette, na antiga e
enegrecida cornija do muro, um ninho de andorinhas; as bordas do ninho
formavam uma saliência para fora da cornija de modo que, de cima, o
interior daquele pequeno paraíso podia ser visto. A mãe lá estava, abrindo
suas asas como um leque sobre a ninhada; o pai voava em volta; ia, depois
vinha, trazendo em seu bico comida e beijos. O dia nascente dourava essa
cena feliz, a grande lei Multiplicai ali estava sorridente e augusta, e esse
doce mistério se expandia na glória da manhã. Cosette, os cabelos ao sol, a
alma nas quimeras, iluminada pelo amor interiormente, e exteriormente
pela aurora, inclinou-se como que maquinalmente e, quase sem ousar
confessar a si mesma que ao mesmo tempo pensava em Marius, pôs-se a
olhar esses pássaros, essa família, esse macho e essa fêmea, essa mãe e
seus pequenos, com a profunda perturbação que um ninho inspira em uma
virgem.

XI. O TIRO DE ESPINGARDA INFALÍVEL MAS QUE


NÃO MATOU NINGUÉM
O fogo dos assaltantes continuava. A artilharia e a metralha
alternavam-se, na verdade sem grandes prejuízos. Somente o alto da
fachada da Corinthe sofria; a janela do primeiro andar e as mansardas do
teto, crivadas de balas e de chumbo, deformavam-se lentamente. Os
combatentes que ali haviam se postado tiveram de se afastar. Além disso,
esta é uma tática de ataque à barricadas, atirar por muito tempo para
esgotar as munições dos insurgentes caso cometam o erro de revidar.
Quando se percebe a diminuição dos tiros, e que já não possuem nem balas
nem pólvora, invadem. Enjolras não caíra nessa armadilha; a barricada não
respondia.
A cada ataque do pelotão, Gavroche enchia a bochecha com sua língua,
sinal de grande desdém.
— Muito bem — dizia —, rasguem pano. Precisamos de ataduras.
Courfeyrac interpelava a fuzilaria sobre seu diminuto efeito e dizia ao
canhão:
— Você está se tornando difuso, meu rapaz!
Na batalha nos intrigamos como em um baile. Era provável que o
silêncio do reduto começasse a preocupar os assaltantes e que os fizesse
temer alguma ação inesperada; e que tivessem sentido a necessidade de
ver claro através desse amontoado de paralelepípedos para saber o que se
passava atrás da muralha impassível que recebia os golpes sem responder.
De repente, os insurgentes avistaram um capacete que brilhava ao sol
sobre um teto vizinho. Um bombeiro estava encostado a uma chaminé alta
e parecia estar ali de sentinela. Seu olhar caía a pique na barricada.
— Ali está uma sentinela incômoda — disse Enjolras.
Jean Valjean havia restituído a carabina de Enjolras, mas conservava
seu fuzil.
Sem proferir uma palavra, mirou o bombeiro e, um instante depois, o
capacete atingido por uma bala caía com estrondo na rua. O soldado,
assustado, apressou-se em fugir.
Um segundo observador tomou seu lugar. Esse era um oficial. Jean
Valjean, que recarregara seu fuzil, mirou o recém-chegado, e enviou seu
capacete ao encontro do capacete do soldado. O oficial não insistiu e
retirou-se rapidamente. Dessa vez entenderam o aviso. Ninguém
reapareceu no teto; e renunciaram a espionar a barricada.
— Por que não matou o homem? — perguntou Bossuet a Jean Valjean.
Jean Valjean não respondeu.
XII. A DESORDEM PARTIDÁRIA DA ORDEM
Bossuet murmurou ao ouvido de Combeferre:
— Ele não respondeu à minha pergunta.
— É um homem que pratica o bem a tiros de fuzil — disse
Combeferre.
Aqueles que conservam alguma lembrança dessa época já remota
sabem que a guarda nacional do subúrbio era valente contra as
insurreições. Ela foi particularmente insistente e intrépida nos dias de
junho de 1832. Tal como um bom taverneiro de Pantin, de Vertus ou de
Cunette, cuja revolta fazia esvaziar o “estabelecimento”, tornava-se
leonino vendo seu salão de danças deserto, e se deixava matar para salvar
a ordem representada pela taverna. Nessa época ao mesmo tempo burguesa
e heroica, em presença de ideias que tinham seus cavaleiros, os interesses
tinham seus paladinos. O prosaísmo do motivo não diminuía em nada a
bravura do movimento. A diminuição de uma pilha de moedas fazia os
banqueiros cantarem a Marselhesa. Vertiam liricamente seu sangue em
prol do caixa, e defendia-se com grande entusiasmo o estabelecimento,
esse imenso diminutivo da pátria.
No fundo, devemos dizer, não havia nisso tudo nada de muito sério.
Eram os elementos sociais que entravam em conflito, esperando o dia em
que entrariam em equilíbrio.
Outra característica daquela época era a anarquia misturada ao
governamentalismo (nome bárbaro do partido correto). Era-se a favor da
ordem com indisciplina. O tambor rufava inopinadamente sob o comando
de um certo coronel da guarda nacional, chamadas caprichosas; certo
capitão ia à luta por inspiração; um guarda nacional combatia porque lhe
dera “na cabeça” e por sua própria conta. Nos instantes de crise, durante as
“jornadas”, aconselhavam-se menos com seus chefes do que com seus
instintos. Havia no exército da ordem verdadeiros guerrilheiros, alguns de
espada, como Fannicot, outros de pluma, como Henri Fonfrède.
A civilização, naquela época infelizmente representada mais por uma
agregação de interesses do que por um grupo de princípios, estava ou
julgava-se em perigo; ela dava o grito de alarme; cada um, fazendo-se de
centro, a defendia, a socorria e a protegia como bem entendia, e o primeiro
que chegasse atribuía a si mesmo o encargo de salvar a sociedade.
Às vezes, o zelo ia até o extermínio. Certo pelotão de guardas
nacionais se constituía, por sua própria autoridade, em conselho de guerra,
julgando e executando em cinco minutos um revolucionário prisioneiro.
Fora uma improvisação desse tipo que matara Jean Prouvaire. É a feroz lei
de Lynch, que nenhum partido tem o direito de reprovar nos outros, pois
ela é aplicada tanto pela república na América como pela monarquia na
Europa. Essa lei de Lynch complicava-se com erros. Em um dia de revolta,
um jovem poeta chamado Paul-Aimé Garnier foi perseguido na praça
Royale, baioneta nas costas, e só escapou refugiando-se sob o portão do
número 6. Gritavam: “Eis aí mais um desses Saint-Simoniens!” e queriam
matá-lo. Ora, ele levava sob o braço um volume das memórias do duque
de Saint-Simon. Um guarda nacional leu sobre o livro a palavra: Saint-
Simon, e gritou: “À morte!”
Em 6 de junho de 1832, uma companhia de guardas nacionais do
subúrbio, comandada pelo capitão Fannicot, acima mencionado, por
simples fantasia e prazer, fez-se dizimar na rua de la Chanvrerie. O fato,
por mais singular que pareça, foi constatado na instrução judiciária
instaurada logo após a insurreição de 1832. O capitão Fannicot, burguês
impaciente e destemido, espécie de condottiere da ordem, como os que
acima acabamos de caracterizar, governamentalista fanático e insubmisso,
não pôde resistir à tentação de atacar antes da hora, e à ambição de tomar a
barricada sozinho, isto é, com sua companhia. Exasperado pela sucessiva
aparição da bandeira vermelha e do velho casaco que tomou por uma
bandeira negra, ele criticava em voz alta os generais e os chefes de
divisão, que se reuniam em conselho, que não julgavam chegado o
momento do ataque decisivo e que deixavam, conforme uma célebre
expressão de um deles, “a insurreição cozinhar em seu próprio caldo”.
Quanto a ele, achava que a barricada já estava madura e, como o que já
está maduro deve cair, tentou.
Ele comandava homens resolutos como ele, “furiosos”, como disse
uma testemunha. Sua companhia, essa mesma que fuzilara o poeta Jean
Prouvaire, era a primeira do batalhão postado na esquina da rua. No
momento em que menos se esperava, o capitão lançou seus homens contra
a barricada. Esse movimento, executado mais com boa vontade do que
com estratégia, custou caro à companhia de Fannicot. Antes que tivesse
chegado a dois terços da rua, viu-se acolhido por uma descarga geral da
barricada. Quatro, os mais audaciosos, que corriam na frente, foram
fulminados à queima-roupa bem aos pés do reduto, e esse corajoso
tumulto dos guardas nacionais, pessoas muito heroicas, mas que não
possuíam a tenacidade militar, teve de recuar após certa hesitação,
deixando quinze cadáveres sobre a calçada. O instante de hesitação deu
aos revoltosos o tempo de recarregar suas armas e uma segunda descarga
mortífera atingiu a companhia antes que ela pudesse alcançar a esquina da
rua, seu abrigo. Por um momento ficou presa entre dois fogos e recebeu a
descarga da bateria de canhão, que, não tendo recebido ordens, não
interrompera o fogo. O intrépido e imprudente Fannicot foi um dos mortos
por essa metralha. Foi morto pelo canhão, isto é, pela ordem.
Esse ataque, mais furioso que sério, irritou Enjolras.
— Imbecis! — disse ele. — Matam seus homens e gastam nossa
munição para nada!
Enjolras falava como verdadeiro general de revolta que era. A
insurreição e a repressão nunca lutam com armas iguais. A insurreição,
com os poucos recursos que possui, tem certo número de tiros para dar e
certo número de combatentes para perder. Uma cartucheira vazia, um
homem morto não têm substituição. A repressão, possuindo o exército,
não conta os homens, e, possuindo Vincennes,7 não conta os tiros. A
repressão tem tantos regimentos quanto a barricada tem homens, e tantos
arsenais quanto a barricada tem cartucheiras. Assim, essas lutas, que são
de um contra cem, sempre terminam pelo total esmagamento das
barricadas; a não ser que a revolução, surgindo bruscamente, venha a jogar
na balança seu flamejante gládio de arcanjo. Essas coisas acontecem.
Então tudo se eleva, as calçadas entram em ebulição, os redutos populares
pululam, Paris estremece soberanamente, o quid divinum se solta, um 10
de agosto está no ar, um 29 de julho está no ar, uma luz prodigiosa surge, a
bocarra aberta da força recua, e o exército, esse leão, vê diante de si, de pé
e tranquilo, esse profeta, a França.

XIII. CLARÕES QUE PASSAM


No caos de sentimentos e paixões que defendem uma barricada, há de
tudo: há bravura, juventude, honra, entusiasmo, ideal, convicção,
obstinação de jogador, e, principalmente, intermitências de esperança.
Uma dessas intermitências, um desses vagos estremecimentos de
esperança, atravessou subitamente, e no momento em que menos se
esperava, a barricada da rua de la Chanvrerie.
— Escutem — exclamou bruscamente Enjolras, sempre à espreita —,
me parece que Paris acorda.
É certo que, na manhã de 6 de junho, a insurreição, durante uma ou
duas horas, experimentou uma certa recrudescência. A obstinação do toque
de alerta de Saint-Merry reanimou algumas veleidades. Rua du Poirier, rua
des Gravilliers, barricadas se esboçaram. Diante da entrada Saint-Martin,
um jovem, armado de carabina, atacou sozinho um esquadrão da cavalaria.
A descoberto, em pleno bulevar, pôs um joelho no chão, empunhou a
arma, atirou, matou o chefe do esquadrão, e virou-se dizendo: Aí está mais
um que não mais nos fará mal. Foi golpeado com um sabre. Na rua Saint-
Denis, uma mulher atirava na guarda municipal por trás de uma veneziana
abaixada. A cada disparo, viam-se as folhas da veneziana estremecerem.
Uma criança de catorze anos foi detida na rua de la Cossonnerie com os
bolsos cheios de cartuchos. Vários postos foram atacados. À entrada da rua
Bertin-Poirée, uma fuzilaria muito intensa e totalmente imprevista
acolheu um regimento de couraçados, à frente do qual marchava o general
Cavaignac de Baragne. Na rua Planche-Mibray, jogaram sobre a tropa, de
cima dos telhados, velhos cacos de louça e utensílios domésticos; mau
sinal. E quando relataram esse fato ao marechal Soult, o antigo tenente de
Napoleão ficou pensativo, lembrando-se das palavras de Suchet em
Saragoza: Estaremos perdidos quando as senhoras idosas despejarem seus
penicos sobre nossas cabeças.
Esses sintomas gerais, que se manifestavam no momento em que se
acreditava em uma revolta localizada, essa febre de cólera que retomava
alento, essas faíscas que voavam aqui e ali acima das profundas massas de
combustível chamadas bairros de Paris, todo esse conjunto preocupou os
chefes militares. Apressaram-se em apagar esses princípios de incêndio.
Retardaram, até que essas fagulhas fossem apagadas, o ataque às
barricadas Maubuée, la Chanvrerie e Saint-Merry, a fim de se ocuparem
exclusivamente delas e poderem terminar com tudo de uma só vez.
Colunas de soldados foram lançadas às ruas em fermentação, varrendo as
grandes, sondando as pequenas, à direita, à esquerda, ora com precaução e
lentamente, ora mais depressa. A tropa arrombava as portas de onde
haviam partido os tiros; ao mesmo tempo, manobras de cavalaria
dispersavam os grupos dos bulevares.
Essa repressão não foi efetuada sem rumor e sem o barulho tumultuoso
próprios dos choques entre povo e exército. Era esse o sussurro que
Enjolras ouvia nos intervalos da metralha e da artilharia. Além disso, no
final da rua, ele vira feridos passarem sobre macas, e disse a Courfeyrac:
“Esses feridos não são daqui”.
A esperança durou pouco; o clarão rapidamente se eclipsou. Em menos
de meia hora, o que estava no ar desvaneceu-se; foi como um relâmpago
sem trovão, e os revolucionários sentiram recair sobre eles essa espécie de
capa de chumbo que a indiferença do povo atira sobre os obstinados
abandonados.
O movimento geral, que vagamente fora esboçado, abortara; e a
atenção do ministro da guerra e a estratégia dos generais podiam agora
concentrar-se sobre as três ou quatro barricadas que haviam permanecido
de pé.
O sol subia no horizonte.
Um dos revoltosos interpelou Enjolras:
— Estamos com fome aqui! Será que realmente morreremos assim,
sem comer?
Enjolras, sempre apoiado à sua seteira, sem tirar os olhos da
extremidade da rua, fez com a cabeça um aceno afirmativo.

XIV. ONDE SERÁ LIDO O NOME DA AMANTE DE


ENJOLRAS
Courfeyrac, sentado sobre uma pedra ao lado de Enjolras, continuava a
insultar o canhão, e cada vez que passava essa sombria nuvem de projéteis
chamada metralha, com seu ruído monstruoso, ele a acolhia com uma
baforada de ironia.
— Você grita, meu pobre velho brutal, tenho pena de você, está se
esgoelando à toa. Isso não é um trovão, é tosse.
E todos riam ao seu redor.
Courfeyrac e Bossuet, cujo valente bom humor aumentava com o
perigo, substituíam, como a senhora Scarron, o alimento pelo gracejo, e,
como faltava vinho, serviam alegria a todos.
— Admiro Enjolras — dizia Bossuet. — Sua temeridade impassível
me encanta. Vive só, o que o torna, talvez, um pouco triste; Enjolras
queixa-se de sua grandeza que o amarra à viuvez. Quanto a nós, temos
todos mais ou menos amantes que nos deixam loucos, isto é, corajosos.
Quando estamos apaixonados como um tigre, o mínimo que podemos
fazer é lutar como um leão. É uma forma de nos vingarmos do tratamento
que nos dão nossas namoradinhas. Orlando deixa-se matar para irritar
Angélica.8 Todos os nossos heroísmos provêm de nossas mulheres. Um
homem sem mulher é como uma pistola sem gatilho; é a mulher que faz o
homem disparar. Pois bem, Enjolras não tem mulher. Não está apaixonado,
e encontra um meio de ser intrépido. É algo inédito, que se possa ser frio
como gelo e ardente como fogo.
Enjolras parecia nada ouvir; mas se alguém estivesse perto dele o teria
ouvido murmurar a meia voz: Pátria.
Bossuet ainda ria quando Courfeyrac exclamou:
— Novidades!
E com voz de bedel anunciando, acrescentou:
— Eu me chamo Peça de Oito!
De fato, um novo personagem acabava de entrar em cena. Era uma
segunda boca de fogo.
Os artilheiros fizeram rapidamente uma manobra de força e puseram
essa segunda peça em posição perto da primeira.
Isso esboçava o desfecho.
Instantes depois, as duas peças, vivamente servidas, atiravam de frente
contra o reduto; os disparos do pelotão de linha e do bairro sustentavam a
artilharia.
A alguma distância, ouviam-se outros disparos de canhão. Ao mesmo
tempo que as duas peças se encarniçavam sobre o reduto da rua de la
Chanvrerie, duas outras bocas de fogo apontadas, uma para a rua Saint-
Denis, outra para a rua Aubry-le-Boucher, crivavam a barricada Saint-
Merry. Os quatro canhões faziam-se um eco lúgubre.
Os latidos dos sombrios cães da guerra respondiam-se.
Das duas peças que agora batiam a barricada da rua de la Chanvrerie,
uma metralhava e a outra atirava balas de canhão.
A peça que atirava balas de canhão estava apontada um pouco para
cima, e o tiro era calculado de forma que a bala batesse na borda da
extremidade superior da barricada, despedaçando-a e lançando as pedras
esmigalhadas sobre os revoltosos como estilhaços de metralha.
Esse tipo de tiro tinha por finalidade afastar os combatentes do alto do
reduto e obrigá-los a juntarem-se em seu interior, ou seja, isso anunciava o
assalto.
Uma vez os combatentes expulsos do alto da barricada pelos tiros de
canhão, e das janelas da taverna pela metralha, as colunas de ataque
poderiam aventurar-se na rua sem serem visadas, talvez mesmo sem serem
percebidas, poderiam escalar bruscamente o reduto, como na noite da
véspera e, quem sabe, tomá-lo de surpresa.
— É absolutamente necessário diminuir o incômodo dessas peças —
disse Enjolras. E gritou: — Fogo sobre os artilheiros!
Todos estavam prontos. A barricada, que havia muito tempo estava
calada, atirou desesperadamente, sete ou oito descargas se sucederam com
uma espécie de raiva e alegria; a rua encheu-se de uma fumaça ofuscante
e, após alguns minutos, através dessa névoa toda estriada de chamas,
puderam distinguir confusamente dois terços dos artilheiros deitados sobre
as rodas do canhão. Os que haviam permanecido de pé continuavam
servindo os canhões com tranquila severidade, mas o fogo diminuíra.
— Isso está indo bem — disse Bossuet a Enjolras. — Sucesso.
Enjolras balançou a cabeça e respondeu:
— Mais um quarto de hora desse sucesso e não haverá nem dez
cartuchos na barricada.
Parece que Gavroche ouviu essas palavras.

XV. GAVROCHE DE FORA


De repente, Courfeyrac percebeu alguém na base da barricada, do lado
de fora, na rua, sob as balas.
Gavroche pegara um cesto para garrafas na taverna, saíra pela brecha e
calmamente esvaziava em seu cesto as cartucheiras cheias dos guardas
nacionais mortos sobre o talude da barricada.
— O que você está fazendo aí? — disse Courfeyrac.
Gavroche ergueu o nariz.
— Cidadão, estou enchendo meu cesto.
— Não está vendo a metralha?
Gavroche respondeu:
— Bem, está chovendo. E daí?
Courfeyrac gritou:
— Volte!
— Daqui a pouco — disse Gavroche.
E de um salto embrenhou-se pela rua.
Como se lembram, a companhia Fannicot, ao retirar-se, deixara atrás
de si um rastro de cadáveres.
Uns vinte mortos jaziam aqui e ali em toda a extensão da rua, sobre a
calçada. Umas vinte cartucheiras para Gavroche, uma provisão de
cartuchos para a barricada.
A fumaça estava na rua como uma neblina. Quem já viu uma nuvem
caída em uma garganta de montanha, entre duas escarpas, pode imaginar
essa fumaça apertada e como que aumentada por duas linhas sombrias de
casas altas. Ela subia lentamente e se renovava sem cessar; daí um
obscurecimento gradual que empalidecia mesmo em pleno dia. Mal os
combatentes podiam ver-se uns aos outros de uma ponta a outra da rua,
embora fosse muito curta.
Esse obscurecimento, provavelmente desejado e calculado pelos chefes
que deviam dirigir o assalto à barricada, foi útil a Gavroche.
Sob as dobras desse véu de fumaça, e graças à sua pequena estatura,
ele pôde avançar bastante na rua sem ser visto. Esvaziou as sete ou oito
primeiras cartucheiras sem grande perigo.
Arrastava-se de bruços, galopava andando de quatro, segurava seu
cesto com dois dentes, retorcia-se, escorregava, ondulava, serpenteava de
um morto a outro, e esvaziava as cartucheiras como um macaco abre uma
noz.
Da barricada, de onde ainda estava perto, não ousavam gritar para que
retornasse com medo de chamar a atenção sobre ele.
Com um cadáver, que era um cabo de infantaria, ele encontrou um
polvorinho.
— Para matar a sede — disse ele, colocando-o em seu bolso.
Como avançava sempre, chegou ao ponto onde a neblina do tiroteio se
tornava transparente.
Tanto que os atiradores da tropa, alinhados e à espera atrás da pequena
muralha que haviam erguido, e os atiradores do bairro, agrupados no canto
da rua, apontaram uns aos outros de repente algo que se movia na fumaça.
No momento em que Gavroche esvaziava os cartuchos de um sargento
que jazia perto de uma pedra, uma bala bateu no cadáver.
— Caramba! — disse Gavroche. — Eis que matam meus mortos.
Uma segunda bala fez faiscar a calçada a seu lado. Uma terceira
derrubou seu cesto.
Gavroche olhou e viu que aquilo vinha da tropa do bairro.
Ergueu-se de repente, os cabelos soltos ao vento, as mãos nos quadris,
os olhos fixos nos homens que atiravam, e cantou:

On est laid à Nanterre,


C’est la faute à Voltaire,
Et bête à Palaiseau,
C’est la faute à Rousseau.

São feios em Nanterre,


A culpa é de Voltaire,
E bobos em Palaiseau,
A culpa é de Rousseau.

Depois pegou seu cesto, recolocou, sem perder um só, os cartuchos que
haviam caído, e avançando em direção aos tiros foi esvaziar outro bolso. A
quarta bala ainda não o acertou. Gavroche cantou:

Je ne suis pas notaire,


C’est la faute à Voltaire,
Je suis petit oiseau,
C’est la faute à Rousseau.

Não sou escrivão,


A culpa é de Voltaire,
Sou um pequeno pássaro,
A culpa é de Rousseau.

Uma quinta bala não conseguiu mais do que arrancar-lhe um terceiro


verso:

Joie est mon caractère,


C’est la faute à Voltaire;
Misère est mon trousseau,
C’est la faute à Rousseau.

Alegria é meu caráter,


A culpa é de Voltaire;
Miséria é meu enxoval,
A culpa é de Rousseau.

Isso continuou por mais algum tempo.


O espetáculo era aterrorizante e encantador. Gavroche, fuzilado,
arreliava os disparos. Parecia estar se divertindo muito. Era o pardal
bicando os caçadores. A cada descarga, respondia com um verso. Visavam-
no sem parar, nunca o atingiam. Os guardas nacionais e os soldados riam
enquanto o visavam. Ele se deitava, depois se erguia e se escondia no
canto de uma porta, depois corria, desaparecia, reaparecia, fugia, voltava,
respondia à metralha com gestos de desdém e ao mesmo tempo pegava os
cartuchos, esvaziava os bolsos e enchia seu cesto. Os insurgentes,
ofegantes de ansiedade, o seguiam com os olhos. A barricada estremecia;
mas ele cantava. Não era uma criança, não era um homem; era um
estranho moleque encantado. Parecia o anão invulnerável das confusões.
As balas corriam atrás dele, ele era mais rápido que elas. Brincava não se
sabe de que assustador esconde-esconde com a morte; cada vez que a face
camarada do espectro se aproximava, o moleque lhe dava uma palmada.
No entanto, uma bala, mais certeira ou mais traiçoeira do que as
outras, acabou alcançando o menino fogo-fátuo. Viram Gavroche oscilar,
depois caiu. Toda a barricada gritou; mas havia algo de Anteu9 nesse
pigmeu; para o garoto, tocar o chão é como, para um gigante, tocar a terra;
Gavroche caíra somente para voltar a erguer-se; permaneceu sentado, um
longo filete de sangue riscava seu rosto, ergueu os dois braços no ar, olhou
para o lado de onde partira o golpe, e pôs-se a cantar:

Je suis tombé par terre,


C’est la faute de Voltaire,
Le nez dans le ruisseau,
C’est la faute à…

Caí no chão,
A culpa é de Voltaire,
O nariz na valeta,
A culpa é de…

Não concluiu. Uma segunda bala do mesmo atirador o interrompeu.


Dessa vez caiu com a face contra o chão e não se mexeu mais. Essa
pequena grande alma acabava de levantar voo.

XVI. COMO DE IRMÃO É POSSÍVEL


TRANSFORMAR-SE EM PAI
Naquele mesmo instante, nos jardins de Luxemburgo — pois o olhar
do drama deve estar presente em toda parte — havia dois meninos de
mãos dadas. Um poderia ter sete anos, o outro cinco. Molhados pela
chuva, caminhavam nas alamedas do lado do sol; o mais velho conduzia o
menor; estavam esfarrapados e pálidos; pareciam dois passarinhos
selvagens. O menor dizia: “Estou com fome”.
O mais velho, já um pouco protetor, com a mão esquerda conduzia seu
irmão, e tinha uma varinha na direita.
Estavam sozinhos no jardim. O jardim estava deserto, as grades
estavam fechadas por ordem da polícia devido à insurreição. As tropas que
ali estavam acampadas haviam saído pela necessidade de combater.
Como essas crianças estavam ali? Talvez tivessem escapado de um
posto de guarda entreaberto; talvez nos arredores da barreira d’Enfer, ou
da esplanada de l’Observatoire, ou do cruzamento vizinho, dominado pelo
frontão onde se lê: invenerunt parvulum pannis involutum,10 houvesse
alguma barraca de saltimbancos de onde teriam fugido; talvez na noite
anterior tivessem enganado a vigilância dos inspetores do jardim na hora
do fechamento, passando a noite em algum desses quiosques onde se leem
os jornais. O fato é que estavam vagando e pareciam livres. Estar vagando
e parecer livre é estar perdido. Na verdade, esses pobres pequenos estavam
perdidos.
Essas duas crianças eram as mesmas pelas quais Gavroche se
compadecera e das quais o leitor deve se lembrar. Filhos dos Thénardier,
de aluguel na casa de Magnon, atribuídos ao senhor Gillenormand, e agora
folhas caídas de todos esses galhos sem raízes, rodopiando no chão,
arrastadas pelo vento.
Suas roupas, limpas na época de Magnon, e que lhe serviam de
prospecto diante do senhor Gillenormand, haviam se transformado em
farrapos.
Esses seres pertenciam agora à estatística das “Crianças Abandonadas”
que a polícia constata, recolhe, perde e reencontra nas calçadas de Paris.
Era necessária toda a perturbação de um dia daqueles para que esses
pequenos miseráveis estivessem nesse jardim. Se os vigilantes os tivessem
visto, teriam expulsado esses farrapos. Os pequenos pobres não entram nos
jardins públicos; contudo deveríamos pensar que, como crianças, eles têm
direito às flores.
Esses dois ali estavam graças às grades fechadas. Estavam em
contravenção. Haviam se introduzido no jardim e ali ficaram. As grades
fechadas não dão folga aos inspetores, a vigilância deveria continuar, mas
ela relaxa e descansa; e os inspetores, comovidos também pela ansiedade
pública e ocupados mais do lado de fora que de dentro, não olhavam mais
o jardim e não viram os dois delinquentes.
Na véspera, havia chovido, e um pouco também pela manhã. Mas em
junho os aguaceiros não contam. Uma hora após uma tempestade, mal se
percebe que esse belo e loiro dia chorou. No verão, a terra seca tão rápido
quanto a face de uma criança.
Nesse momento do solstício, a luz do meio-dia é, por assim dizer,
pungente. Apodera-se de tudo. Ela se aplica e se sobrepõe à terra com uma
espécie de sucção. Parece que o sol tem sede. Um aguaceiro é um copo de
água; uma chuva é imediatamente bebida. De manhã tudo gotejava, à tarde
tudo está empoeirado.
Nada é mais admirável que folhas lavadas pela chuva e enxugadas pelo
raio de sol; é frescor e calor. Os jardins e os prados, tendo água em suas
raízes e sol em suas flores, transformam-se em pequenos recipientes de
incenso e espalham todos os seus perfumes de uma só vez. Tudo ri, canta e
se oferece. Sentimo-nos docemente embriagados. A primavera é um
paraíso provisório; o sol ajuda a dar paciência ao homem.
Há criaturas que não pedem mais do que isso; gente que, possuindo o
azul do céu, diz: é o bastante! Sonhadores absorvidos no prodígio, bebendo
na idolatria da natureza a indiferença do bem e do mal, contempladores do
cosmos radiantemente distraídos do homem, que não compreendem como
alguém ocupa-se com a fome destes, com a sede daqueles, com a nudez do
pobre no inverno, com a curvatura linfática de uma pequena espinha
dorsal, com o catre, com as mansardas, com o cárcere, com os andrajos
das jovens trêmulas, quando se pode sonhar sob as árvores; espíritos
pacíficos e terríveis, impiedosamente satisfeitos.
Coisa estranha, basta-lhes o infinito. Essa grande necessidade do
homem, o finito, que admite o enlaçamento, eles o ignoram. O finito, que
admite o progresso, o trabalho sublime, nisso não pensam. O indefinido,
que nasce da combinação humana e divina do infinito com o finito, lhes
escapa. Contanto que estejam face a face com a imensidão, eles sorriem.
Jamais a alegria, sempre o êxtase. Abismar-se, eis a vida deles. Para eles,
a história da humanidade é apenas um plano fragmentário; o Tudo não
existe; o verdadeiro Tudo fica de fora; para que ocupar-se com esse
detalhe, o homem? O homem sofre, é possível; mas olhem então para
Aldebarã que se levanta! A mãe não tem mais leite, o recém-nascido está
morrendo, não sei de nada, mas contemplem essa rosácea maravilhosa
formada por um pequeno disco da casca de um pinheiro examinado ao
microscópio! Comparem-na às mais belas rendas! Esses pensadores se
esquecem de amar. O zodíaco os influencia a ponto de impedi-los de ver a
criança que chora. Deus eclipsa suas almas. Formam uma família de
espíritos, ao mesmo tempo pequenos e grandes. Horácio, Goethe, e talvez
La Fontaine, eram dessa família; magníficos egoístas do infinito,
espectadores tranquilos da dor, que, se o tempo está bom, não veem Nero,
e para quem o sol esconde as fogueiras, que olhariam guilhotinar
procurando um efeito de luz, que não ouviriam nem o grito, nem o soluço,
nem o estertor, nem o sino, para quem tudo está bem já que o mês de maio
existe; para quem, enquanto houver nuvens de púrpura e de ouro acima de
suas cabeças, haverá contentamento, e que se determinam a ser felizes até
que se esgote o brilho dos astros e o canto dos pássaros.
São os radiantes tenebrosos. Eles nem suspeitam que sejam dignos de
lástima. Certamente o são. Quem não chora não vê. É preciso admirá-los e
lastimá-los, como se lastimaria e admiraria um ser ao mesmo tempo noite
e dia, que não tivesse olhos sob as sobrancelhas mas um astro no meio da
testa.
A indiferença desses pensadores é, segundo dizem alguns, uma
filosofia superior. Pode ser, mas nessa superioridade há enfermidade.
Pode-se ser imortal e coxo; exemplo, Vulcano. Pode-se ser mais que
homem e menos que homem. O incompleto imenso está na natureza.
Quem sabe se o sol não é um cego?
Mas e então? Em quem confiar? Solem quis dicere falsum audeat?11
Assim, os próprios gênios, certos Altíssimos humanos, homens-astros,
poderiam enganar-se? O que está lá em cima, no alto, no ápice, no zênite,
o que envia sobre a terra tanta claridade, enxergaria pouco, enxergaria
mal, não enxergaria? Não é desesperador? Não. Mas então, o que há acima
do sol? Deus.
No dia 6 de junho de 1832, por volta das onze horas da manhã, o
Luxemburgo, solitário e deserto, estava encantador. Os canteiros e as
árvores enviavam-se, através da luz, bálsamos e encantamentos. Os ramos,
enlouquecidos à claridade do meio-dia, pareciam querer abraçar-se. Nas
figueiras havia a algazarra de um bando de pardais, as rolinhas triunfavam,
os pica-paus subiam pelos castanheiros dando bicadas nos buracos da
casca. Os canteiros aceitavam a realeza legítima dos lírios; o mais augusto
dos perfumes é o que se desprende da brancura. Respirava-se o odor
picante do cravo. As velhas gralhas de Maria de Médicis estavam
enamoradas nas grandes árvores. O sol dourava, avermelhava e iluminava
as tulipas, que nada mais são do que todas as variedades de chamas
convertidas em flores. Ao redor dos canteiros de tulipas turbilhonavam as
abelhas, faíscas dessas flores-chamas. Tudo era graça e alegria, até mesmo
a chuva próxima, recidiva da qual as madressilvas e os lírios deveriam se
aproveitar, pois nada tinha de inquietante; as andorinhas faziam a
encantadora ameaça de voar baixo. Quem ali estava aspirava felicidade; a
vida tinha um cheiro bom; toda aquela natureza exalava a candura, o
socorro, a assistência, a paternidade, a carícia, a aurora. Os pensamentos
que vinham do céu eram doces como uma pequena mão de criança que
beijamos.
As estátuas sob as árvores, nuas e brancas, tinham vestidos de sombra
com buracos de luz; essas deusas vestiam farrapos de sol; pendiam-lhes
raios por todos os lados. Ao redor do grande tanque, a terra já estava seca a
ponto de parecer queimada. Ventava suficientemente para provocar aqui e
ali pequenas batalhas de pó. Algumas folhas amareladas caídas no último
outono perseguiam-se alegremente como moleques de rua.
A abundância da claridade tinha um não sei que de tranquilizador.
Vida, seiva, calor, eflúvios trasbordavam; sentia-se sob a criação a
enormidade da fonte; em todos aqueles sopros cheios de amor, naquele
vaivém de brilhos e de reflexos, naquela prodigiosa profusão de raios, no
indefinido derramamento de ouro fluido, sentia-se a prodigalidade do
inesgotável; e por trás desse esplendor, assim como por trás de uma
cortina de chamas, entrevia-se Deus, esse milionário de estrelas.
Graças à areia, não se via uma só mancha de lama; graças à chuva, não
havia um único grão de pó. Os buquês acabavam de lavar-se; todos os
veludos, todos os cetins, todos os vernizes, todos os ouros que saem da
terra em forma de flores estavam impecáveis. Essa magnificência era
limpa. O grande silêncio da natureza feliz enchia o jardim. Silêncio celeste
compatível com mil músicas, arrulhos de ninhos, zunidos de enxames,
palpitações do vento. Toda a harmonia da estação se realizava em um
gracioso conjunto; as entradas e as saídas da primavera aconteciam na
ordem desejada; os lilases feneciam, desabrochavam os jasmins; algumas
flores estavam atrasadas, alguns insetos estavam adiantados; a vanguarda
das borboletas vermelhas de junho fraternizava com a retaguarda das
borboletas brancas de maio. Os plátanos revestiam-se de pele nova. A
brisa cavava ondulações na enormidade magnífica dos castanheiros. Era
esplêndido. Um veterano da caserna vizinha, que olhava através da grade,
dizia: “Aí está a primavera, de armas em punho e uniforme de gala”.
Toda a natureza tomava a primeira refeição; a criação estava à mesa;
era a hora; a grande toalha azul estava posta no céu e a grande toalha verde
sobre a terra; o sol iluminava a giorno. Deus servia a refeição universal.
Cada ser possuía seu pasto ou seu alimento. O pombo achava linhaça, o
tentilhão, alpiste, o pintassilgo, a erva, o pintarroxo, vermes, a abelha
encontrava as flores, a mosca encontrava os infusórios, o verdelhão
encontrava moscas. Comiam-se um pouco uns aos outros, o que é o
mistério do mal misturado ao bem; mas nem um só animal tinha o
estômago vazio.
Os dois pequenos abandonados haviam se aproximado do grande
tanque, e, um pouco confusos com toda aquela luz, procuravam esconder-
se, instinto do pobre e do fraco diante da magnificência, mesmo que
impessoal; e ficaram atrás da casinha dos cisnes.
Aqui e ali, a intervalos, quando o vento soprava, ouviam-se gritos
confusos, um rumor, uma espécie de tumultuosos estertores, que eram a
fuzilaria e certas batidas surdas, que eram tiros de canhão. Havia fumaça
acima dos tetos na direção dos depósitos. Um sino, que parecia chamar,
soava ao longe.
As crianças pareciam não perceber esses ruídos. O menor repetia de
vez em quando, baixinho: “Estou com fome”.
Quase no mesmo instante que as duas crianças, outras duas pessoas
aproximavam-se do grande tanque. Era um homem de uns cinquenta anos
conduzindo pela mão um pequeno de seis anos. Sem dúvida, um pai com
seu filho. O pequeno trazia na mão um grande pão doce.
Naquela época, certas casas nos arredores, na rua Madame e na rua
d’Enfer, possuíam uma chave do Luxemburgo, de que se serviam os
locatários quando as grades estavam fechadas, privilégio suprimido
depois. Sem dúvida, era de uma dessas casas que esse pai e esse filho
haviam saído.
Os dois pequenos pobres viram aproximar-se “esse senhor” e
esconderam-se ainda mais.
Era um burguês. O mesmo talvez que um dia Marius escutara, em sua
febre de amor, perto daquele mesmo tanque, aconselhando seu filho a
“evitar os excessos”. Tinha um ar afável e altivo, e uma boca que, como
não se fechava, sorria sempre. Esse sorriso mecânico, produzido por um
maxilar muito grande e pouca pele, mostrava mais os dentes que a alma. O
pequeno, com seu pão doce mordido que não acabava de comer, parecia
saciado. Estava vestido de guarda nacional, por causa da revolta, enquanto
o pai permanecia vestido de burguês, por prudência.
O pai e o filho haviam parado perto do tanque onde nadavam os dois
cisnes. O homem parecia ter por eles uma admiração especial.
Assemelhava-se aos cisnes no modo de andar.
Naquele momento, os cisnes nadavam, o que é sua principal
habilidade, e estavam magníficos.
Se os dois pequenos pobres tivessem escutado, e tivessem idade
suficiente para entender, poderiam ter ouvido as palavras de um homem
sério. O pai dizia ao filho:
— O sábio vive contente com pouco. Olhe para mim, meu filho. Eu
não gosto de luxo. Ninguém me vê com roupas cobertas de ouro e
pedrarias; deixo esses brilhos falsos às almas mal organizadas.
Nesse ponto, os gritos profundos que vinham do lado dos depósitos
irromperam com um redobrar de sinos e rumores.
— O que é isso? — perguntou a criança.
O pai respondeu:
— São saturnais.12
De repente, avistou os pequenos esfarrapados imóveis atrás da casinha
verde dos cisnes.
— Aí está o começo — disse ele.
E, após uma pausa, acrescentou:
— A anarquia entra neste jardim.
Ao mesmo tempo, o pequeno deu uma dentada no pão, cuspiu e de
repente começou a chorar.
— Por que está chorando? — perguntou-lhe o pai.
— Não tenho mais fome — disse a criança.
O sorriso do pai acentuou-se.
— Não é necessário sentir fome para se comer um pão doce.
— Meu pão me enjoa. Está duro.
— Você não quer mais?
— Não.
O pai mostrou-lhe os cisnes.
— Jogue-o a esses palmípedes.
A criança hesitou. Não querer mais o pão não é uma razão para dá-lo.
O pai prosseguiu:
— Seja humano. Devemos ter compaixão pelos animais.
E, tirando o pão doce do filho, jogou-o no tanque.
O pão caiu bem perto da borda.
Os cisnes estavam longe, no meio do tanque, entretidos com alguma
presa. Não haviam visto nem o burguês nem o pão.
O burguês, sentindo que o pão corria o risco de perder-se e
emocionado com esse naufrágio inútil, entregou-se a uma agitação
telegráfica que acabou atraindo a atenção dos cisnes.
Eles perceberam algo que boiava, mudaram de bordo como navios que
são, e foram lentamente em direção ao pão, com uma majestade beata que
convém aos animais brancos.
— Os cisnes compreendem os sinais13 — disse o burguês, feliz por se
mostrar espirituoso.
Nesse momento, o tumulto longínquo da cidade aumentou
repentinamente. Dessa vez foi sinistro. Há rajadas de vento que falam
mais distintamente do que outras. A que soprava naquele momento trouxe
claramente o rufar de tambores, clamores, tiros de pelotão e as réplicas
lúgubres do sino e do canhão. Isso coincidiu com uma nuvem negra que
cobriu bruscamente o sol.
Os cisnes não haviam ainda chegado até o pão.
— Vamos voltar — disse o pai —; estão atacando as Tulherias.
Tornou a pegar na mão do filho. Depois continuou:
— Das Tulherias ao Luxemburgo não há senão a distância que separa a
realeza do pariato; que não é muito longe. As balas vão chover.
Olhou para a nuvem.
— E talvez a própria chuva chova; o céu está interferindo; o ramo mais
novo está condenado. Vamos para casa depressa.
— Eu queria ver os cisnes comerem o pão — disse a criança.
O pai respondeu:
— Seria uma imprudência.
E levou seu pequeno burguês.
O filho, lamentando deixar os cisnes, continuava a olhar para o grande
tanque até que um grupo de árvores o escondeu de seu olhar.
No entanto, ao mesmo tempo que os cisnes, os dois pequenos errantes
haviam se aproximado do pão. Ele flutuava na água. O menor olhava o pão
doce, o maior olhava o burguês que se afastava.
O pai e o filho entraram no labirinto de alamedas que conduz à grande
escadaria do bosque pelo lado da rua Madame.
Assim que os perdeu de vista, o mais velho deitou-se rapidamente de
barriga para baixo na margem arredondada do tanque e, firmando-se nela
com a mão esquerda, debruçado sobre a água, quase caindo, estendeu com
a mão direita a sua varinha em direção ao pão. Os cisnes, ao verem o
inimigo, se apressaram, e, apressando-se, provocaram nas águas um
movimento que beneficiou o pequeno pescador; a água diante dos cisnes
refluiu e uma das suaves ondulações concêntricas empurrou devagar o pão
em direção à varinha do menino. Quando os cisnes se aproximavam, a
varinha tocou o pão. O menino fez um gesto rápido, assustou os cisnes,
puxou o pão, pegou-o e ergueu-se. O pão estava molhado; mas estavam
com fome e sede. O mais velho cortou o pão em dois pedaços, um maior e
outro menor, pegou o menor e deu o maior a seu irmãozinho, e lhe disse:
— Tire a barriga da miséria.

XVII. MORTUUS PATER FILIUM MORITURUM


EXPECTAT14
Marius correra para fora da barricada. Combeferre o seguira. Mas era
tarde demais. Gavroche estava morto. Combeferre trouxe o cesto dos
cartuchos; Marius trouxe a criança.
Infelizmente, pensava ele, o que o pai fizera por seu pai, ele fazia ao
filho; só que Thénardier trouxera seu pai vivo; ele trazia a criança morta.
Quando Marius entrou no reduto, com Gavroche nos braços, tinha,
como a criança, o rosto coberto de sangue.
No instante em que se agachara para pegar Gavroche, uma bala pegara
sua cabeça de raspão; ele não percebera.
Courfeyrac desmanchou sua gravata e com ela atou a fronte de Marius.
Colocaram Gavroche na mesma mesa que Mabeuf, e estenderam sobre
os dois corpos o xale preto. Era grande o bastante para o velho e a criança.
Combeferre distribuiu os cartuchos contidos no cesto que trouxera.
Isso dava a cada homem quinze balas a mais.
Jean Valjean permanecia sempre no mesmo lugar, imóvel sobre a
pedra. Quando Combeferre entregou os quinze cartuchos que lhe cabiam,
sacudiu a cabeça.
— Eis um raro excêntrico — disse Combeferre baixinho a Enjolras. —
Ele encontra um meio de não lutar nessa barricada.
— O que não o impede de defendê-la — respondeu Enjolras.
— O heroísmo tem os seus originais — retrucou Combeferre.
E Courfeyrac, que ouvira, acrescentou:
— Faz um gênero diferente do Pai Mabeuf.
Algo que é preciso notar, o fogo que atacava a barricada mal a
perturbava interiormente. Aqueles que nunca atravessaram o turbilhão
desse tipo de guerra não têm ideia dos momentos singulares de
tranquilidade misturados a essas convulsões. Vai-se de um lado para o
outro, conversa-se, brinca-se, passeia-se. Uma pessoa que conhecemos
escutou um combatente dizer-lhe no meio da metralha: Estamos aqui como
em um almoço de rapazes. O reduto da rua de la Chanvrerie, repetimos,
parecia muito calmo em seu interior. Todas as peripécias e todas as fases
haviam sido ou seriam esgotadas. A posição, de crítica, tornara-se
ameaçadora e de ameaçadora provavelmente se tornaria desesperadora. À
medida que a situação tornava-se sombria, o clarão heroico purpurizava
cada vez mais a barricada. Enjolras dominava-a gravemente, com atitude
de um jovem espartano dedicando a espada desembainhada ao sombrio
gênio Epidotas.15
Combeferre, avental sobre o ventre, cuidava dos feridos, Bossuet e
Feuilly faziam cartuchos com a pólvora recolhida por Gavroche, e Bossuet
dizia a Feuilly: Logo tomaremos a diligência para um outro planeta;
Courfeyrac colocava e acomodava, em cima do monte de pedras que
reservara para si ao lado de Enjolras, todo um arsenal, sua bengala de
estocar, a espingarda, duas pistolas de arção e um soco, com o esmero de
uma donzela que põe em ordem uma pequena vitrine. Jean Valjean, mudo,
contemplava a parede que ficava à sua frente. Com um barbante, um
operário atava à cabeça um grande chapéu de palha da Mãe Hucheloup,
com medo do ardor do sol, dizia ele. Os rapazes da Cougourde de Aix
conversavam alegremente entre si, como se tivessem pressa para falar a
língua natal uma última vez. Joly, que pegara o espelho da viúva
Hucheloup, examinava nele sua língua. Alguns combatentes, tendo
encontrado umas crostas de pão meio emboloradas dentro de uma gaveta,
comiam-nas avidamente. Marius estava preocupado com o que seu pai lhe
diria.

XVIII. O ABUTRE TRANSFORMADO EM PRESA


Insistamos em um fato psicológico próprio das barricadas. Nada do
que caracteriza essa surpreendente guerra das ruas deve ser omitido.
Seja qual for essa estranha tranquilidade interior da qual acabamos de
falar, a barricada, para os que se encontram dentro dela, nem por isso
deixa de ser uma visão.
Há apocalipse na guerra civil, todas as brumas do desconhecido
misturam-se a esses ardores ferozes, as revoluções são esfinges, e quem
quer que tenha atravessado uma barricada acredita ter atravessado um
sonho.
O que se sente em tais lugares, já o indicamos a respeito de Marius, e
logo veremos as consequências disso, é mais e é menos do que a vida.
Quando se sai de uma barricada, não se sabe mais o que se viu. Fomos
terríveis, mas o ignoramos. Estivemos rodeados de ideias combatentes que
tinham faces humanas; nossa mente estava na luz do futuro; havia
cadáveres deitados e fantasmas de pé. As horas eram colossais e pareciam
horas de eternidade. Vivemos na morte. Sombras passaram. Que era
aquilo? Vimos mãos manchadas de sangue; era um ensurdecimento
assustador, era também um silêncio horrível; havia bocas abertas que se
calavam; estávamos na fumaça, dentro da noite talvez. Acreditamos haver
tocado a destilação sinistra das profundezas desconhecidas; olhamos algo
de vermelho que temos nas unhas. Não nos lembramos mais.
Voltemos à rua de la Chanvrerie.
De repente, entre duas descargas, ouviu-se o soar longínquo das horas.
— É meio-dia — disse Combeferre.
As doze badaladas ainda não haviam soado quando Enjolras se pôs de
pé e bradou do alto da barricada este clamor tonante:
— Levem pedras para dentro da casa. Guarneçam com elas o peitoril
da janela e das mansardas. Metade dos homens aos fuzis, a outra metade
às pedras. Não há um minuto a perder.
Na extremidade da rua, um pelotão de bombeiros, machados ao ombro,
acabava de aparecer em ordem de batalha.
Aquilo só podia ser a vanguarda de alguma coluna; e de qual coluna? A
coluna de ataque evidentemente; os bombeiros encarregados de demolir a
barricada precedem sempre os soldados encarregados de escalá-la.
Evidentemente, aproximava-se o instante que o senhor de Clermont-
Tonerre, em 1822, denominava “le coup de collier”.16
A ordem de Enjolras foi executada com a pressa correta peculiar aos
navios e às barricadas, os dois únicos lugares de combate de onde é
impossível a evasão. Em menos de um minuto, os dois terços de pedras
que Enjolras mandara empilhar à porta da Corinthe foram transportados ao
primeiro andar e ao sótão, e, antes que passasse outro minuto, essas
pedras, artisticamente dispostas umas por cima das outras, muravam, até a
metade da altura, a janela do primeiro andar e do sótão. Alguns intervalos,
cuidadosamente previstos por Feully, principal construtor, permitiam a
passagem dos canos de fuzil. Essa fortificação das janelas fora facilitada
por uma pausa da metralha. Os dois canhões agora atiravam balas sobre o
centro da barragem a fim de fazer um buraco e, se possível, abrir uma
brecha para o assalto.
Quando as pedras, destinadas à suprema defesa, já estavam em seu
devido lugar, Enjolras mandou levar ao primeiro andar as garrafas que ele
pusera sob a mesa onde estava Mabeuf.
— Quem vai beber isto? — perguntou-lhe Bossuet.
— Eles — respondeu Enjolras.
Depois a janela de baixo foi tapada, e deixadas de prontidão as barras
de ferro que serviam para trancar a porta da taverna à noite.
A fortaleza estava completa. A barricada era a muralha, a taverna o
torreão.
Com as pedras que sobraram, tamparam a abertura.
Como os defensores de uma barricada são sempre obrigados a poupar
as munições, e os assaltantes sabem disso, os assaltantes combinam seus
preparativos com uma espécie de sossego irritante, expondo-se ao fogo
antes da hora, mais em aparência do que em realidade, e ficam à vontade.
Os preparativos do ataque sempre são feitos com certa lentidão metódica;
depois disso, o raio.
Essa lentidão permitiu a Enjolras rever e aperfeiçoar tudo. Sentia que,
já que homens como aqueles iam morrer, essa morte deveria ser uma obra-
prima.
Disse a Marius:
— Somos os dois chefes. Darei as últimas ordens lá dentro. Você, fique
aqui fora e observe.
Marius pôs-se em observação no alto da barricada.
Enjolras fez com que pregassem a porta da cozinha, que, como se
lembram, servia de enfermaria.
— Nenhum estilhaço sobre os feridos — disse ele.
Deu suas últimas instruções na sala de baixo, em tom breve mas
profundamente tranquilo; Feuilly escutava e respondia em nome de todos.
— No primeiro andar, fiquem com os machados prontos para cortar a
escada. Estão com eles?
— Sim — disse Feuilly.
— Quantos?
— Dois machados e uma machadinha.
— Certo. Somos vinte e seis combatentes de pé. Quantos fuzis temos?
— Trinta e quatro.
— Oito a mais. Tenham à mão esses oito fuzis, carregados como os
outros. Sabres e pistolas na cintura. Vinte homens na barricada. Seis de
emboscada nas mansardas e na janela do primeiro andar, para atirar sobre
os assaltantes pelas aberturas deixadas entre as pedras. Que nenhum
trabalhador permaneça inútil aqui. Logo mais, quando o tambor tocar
dando o sinal de ataque, que os vinte que estiverem embaixo corram para a
barricada. Os que chegarem primeiro estarão nos melhores lugares.
Feitas essas disposições, voltou-se para Javert e lhe disse:
— Eu não me esqueci de você.
E, pousando sobre a mesa uma pistola, acrescentou:
— O último que sair daqui fará saltar os miolos deste espião.
— Aqui? — perguntou uma voz.
— Não. Não misturemos o cadáver dele com os nossos. Podemos
transpor a pequena barricada sobre a ruazinha Mondétour. Ela só tem um
metro e meio de altura. O homem está bem amarrado. Nós o levaremos
para lá e o executaremos.
Naquele momento, alguém permanecia mais impassível que Enjolras;
era Javert.
Jean Valjean então apareceu.
Misturara-se ao grupo dos revoltosos. Saiu e disse a Enjolras:
— O senhor é o comandante?
— Sim.
— Há pouco o senhor me agradeceu.
— Em nome da República. A barricada possui dois salvadores, Marius
Pontmercy e o senhor.
— O senhor acha que mereço alguma recompensa?
— Certamente.
— Pois então peço uma.
— Qual?
— Queimar eu mesmo os miolos desse homem.
Javert ergueu a cabeça, avistou Jean Valjean, fez um movimento
imperceptível e disse:
— É justo.
Quanto a Enjolras, pusera-se a recarregar sua carabina; olhou em volta
e disse:
— Ninguém se opõe?
E voltando-se para Jean Valjean:
— Leve o espião.
Com efeito, Jean Valjean tomou posse de Javert sentando-se na
extremidade da mesa. Pegou a pistola e ouviu-se um estalido fraco
anunciando que acabara de armá-la.
Quase no mesmo instante, ouviu-se um toque de corneta.
— Alerta! — gritou Marius do alto da barricada.
Javert pôs-se a rir, com esse riso silencioso que lhe era peculiar, e,
olhando fixamente para os insurgentes, lhes disse:
— Vocês não estão melhor do que eu.
— Todos para fora! — gritou Enjolras.
Os insurgentes precipitaram-se em tumulto e, ao sair, receberam pelas
costas, perdoem-nos a expressão, estas palavras de Javert:
— Até já!

XIX. JEAN VALJEAN SE VINGA


Assim que Jean Valjean ficou sozinho com Javert, desatou-lhe a corda
que o prendia pela cintura e cujo nó ficava debaixo da mesa. Em seguida
fez um sinal para que se levantasse.
Javert obedeceu com o indefinível sorriso em que se condensa a
supremacia da autoridade acorrentada.
Jean Valjean pegou Javert pelo martingale, como quem pegaria um
animal de carga pelo cabresto, e, puxando-o atrás de si, saiu da taverna
lentamente, pois Javert, com as pernas amarradas, só podia dar pequenos
passos.
Jean Valjean estava com a pistola na mão.
Transpuseram assim o trapézio interior da barricada. Os insurgentes,
atentos ao ataque iminente, estavam de costas.
Somente Marius, postado na extremidade esquerda da barragem, os viu
passar. Esse grupo de vítima e carrasco iluminou-se com o clarão sepulcral
que tinha na alma.
Jean Valjean, com certo esforço, fez com que Javert escalasse a
pequena barreira da rua Mondétour, mas sem o largar um só instante.
Depois de terem transposto essa barragem, acharam-se sozinhos na
pequena rua. Ninguém os via. O cotovelo formado pelas casas escondia-os
dos insurgentes. Os cadáveres retirados da barricada formavam um monte
terrível a alguns passos dali.
Distinguia-se entre os mortos uma face lívida, uma cabeleira desfeita,
uma mão furada e um seio de mulher seminu. Era Éponine.
Javert contemplou obliquamente essa morta, e, profundamente calmo,
disse baixinho:
— Parece-me que conheço essa moça.
Depois voltou-se para Jean Valjean.
Jean Valjean colocou a pistola debaixo do braço e fixou Javert com um
olhar que não necessitava de palavras para dizer:
— Javert, sou eu.
Javert respondeu:
— Tire sua revanche.
Jean Valjean tirou do bolso uma faca e abriu-a.
— Uma navalha! — exclamou Javert. — Tem razão. Isso lhe convém
mais.
Jean Valjean cortou a corda que lhe prendia o pescoço, em seguida
cortou as cordas que tinha nos pulsos; depois, agachando-se, cortou o
cordão que ele tinha nos pés; e erguendo-se disse-lhe:
— Está livre!
Javert não se espantava facilmente. Entretanto, por mais que fosse
senhor de si, não pôde evitar certa emoção. Ficou boquiaberto e imóvel.
Jean Valjean prosseguiu:
— Não acredito que sairei daqui. Porém, se por acaso eu sair, estou
morando, sob o nome de Fauchelevent, na rua de l’Homme-Armé, número
7.
Javert teve um esgar de tigre que o fez entreabrir um dos cantos da
boca, e murmurou entre os dentes:
— Tome cuidado.
— Vá — disse Jean Valjean.
Javert continuou:
— Você disse Fauchelevent, rua de l’Homme-Armé?
— Número 7.
Javert repetiu a meia voz: “Número 7”.
Reabotoou seu casaco, restituiu aos ombros a habitual rigidez militar,
deu meia-volta, cruzou os braços apoiando o queixo em uma das mãos, e
partiu em direção aos depósitos. Jean Valjean o seguiu com os olhos.
Depois de alguns passos, Javert voltou-se e gritou para Jean Valjean:
— O senhor me aborrece. É melhor que me mate.
Javert nem percebeu que já não tratava Jean Valjean por você.
— Vá embora — disse Jean Valjean.
Javert afastou-se a passos lentos. Depois de um instante virava a
esquina da rua des Prêcheurs.
Quando Javert desapareceu, Jean Valjean deu um tiro para o ar.
Depois entrou na barricada e disse:
— Está feito!
Entretanto, eis o que havia ocorrido:
Marius, mais preocupado com o exterior do que com o interior, até
então não olhara atentamente para o espião amarrado no fundo obscuro da
sala de baixo.
Quando o viu passar em pleno dia, escalando a barricada para ir
morrer, o reconheceu. Uma lembrança súbita passou por sua mente.
Lembrou-se do inspetor da rua Pontoise, e das duas pistolas que lhe
entregara e das quais ele, Marius, se servira, nessa mesma barricada; e não
somente se lembrou do rosto como também do nome.
Contudo, essa lembrança era vaga e confusa como todas as suas ideias.
Não fez a si mesmo uma afirmação, mas uma pergunta: “Este homem não
é o inspetor de polícia que me disse chamar-se Javert?”
Quem sabe ainda daria tempo de intervir em seu favor? Mas primeiro
era preciso saber se se tratava desse Javert.
Marius interpelou Enjolras, que acabava de se postar na outra ponta da
barricada.
— Enjolras!
— Que foi?
— Como se chama aquele homem?
— Quem?
— O agente de polícia. Sabe o nome dele?
— Claro. Ele nos disse.
— Como se chama?
— Javert.
Marius empertigou-se.
Nesse instante ouviu-se o tiro de pistola. Jean Valjean reapareceu e
gritou: “Está feito”. Um frio sombrio atravessou o coração de Marius.

XX. OS MORTOS TÊM RAZÃO E OS VIVOS NÃO


ESTÃO ERRADOS
A agonia da barricada ia começar.
Tudo concorria para a trágica majestade daquele minuto supremo; mil
sussurros misteriosos no ar, o sopro das massas armadas agitando-se nas
ruas que não eram vistas, o galope intermitente da cavalaria, o pesado
rodar da artilharia em andamento, os disparos do pelotão e os tiros de
canhão cruzando-se no labirinto de Paris, a fumaça da batalha elevando-se,
dourada, acima dos telhados, não se sabe que gritos longínquos vagamente
terríveis, clarões ameaçadores por toda parte, o sino de Saint-Merry
tocando agora como se fosse um soluço, a doçura da estação, o esplendor
do céu cheio de sol e de nuvens, a beleza do dia e o aterrorizador silêncio
das casas.
Pois, desde a véspera, as duas fileiras de casas da rua de la Chanvrerie
haviam se tornado duas muralhas corajosas. Portas fechadas, janelas
fechadas, venezianas fechadas.
Naquela época, tão diferente da atual, quando era chegada a hora em
que o povo resolvia acabar com uma situação que durara demais, com uma
carta outorgada ou com um país dentro da lei, quando a cólera universal se
difundia pela atmosfera, quando a cidade consentia o descalçamento de
suas ruas, quando a insurreição fazia a burguesia sorrir, segredando-lhe ao
ouvido a senha de reconhecimento, então, o morador, saturado de revolta,
por assim dizer, tornava-se o auxiliar do combatente, e a casa fraternizava
com a improvisada fortaleza que nela se apoiava. Quando a situação não se
achava madura, quando a insurreição não era decididamente consentida,
quando a massa desaprovava o movimento, infelizes então dos
combatentes, a cidade transformava-se em um deserto ao redor da revolta,
gelavam-se as almas, trancavam-se os asilos e a rua se fazia de desfile de
tropas para ajudar o exército a tomar a barricada.
Não se consegue fazer um povo marchar por surpresa mais depressa do
que ele quer. Infeliz daquele que tenta obrigá-lo a isso. Um povo não se
deixa conduzir. Nesse caso, o povo abandona a insurreição à própria sorte.
Os insurgentes tornam-se pestilentos. Uma casa é uma escarpa, uma porta
uma recusa, uma fachada é um muro. Esse muro vê, ouve e não quer. Ele
poderia entreabrir-se e salvá-lo. Não. Esse muro é um juiz. Ele o fita e o
condena. Que coisa sombria essas casas fechadas! Parecem mortas, mas
estão vivas. A vida, que nelas está como que suspensa, persiste. Ninguém
sai dali há vinte e quatro horas, mas não falta ninguém. No interior dessa
rocha, vão e voltam, deitam-se, levantam-se; estão em família; bebem e
comem; sentem medo, coisa terrível! O medo desculpa essa temível
inospitalidade; mistura a ela o espanto, circunstância atenuante. Algumas
vezes até, isso já se viu, o medo transforma-se em paixão; o temor pode
converter-se em fúria, do mesmo modo que a prudência em raiva; daí esta
expressão tão profunda: Os furiosos moderados. Há cintilações de terror
supremo de onde sai, como uma lúgubre fumaça, a cólera. “O que querem
essas pessoas? Nunca estão satisfeitas. Comprometem os homens
pacíficos. Como se já não houvesse suficientes revoluções! O que vieram
fazer aqui? Que se retirem. Azar deles. A culpa é deles. Têm o que
merecem. Isso não nos diz respeito. Olhem a nossa pobre rua crivada de
balas. Não valem nada. Sobretudo, não abram a porta.” E a casa passa a ter
o aspecto de um túmulo. O insurgente agoniza diante dessa porta; vê a
metralha e os sabres nus chegarem; se grita, sabe que o escutam, mas que
não virão; ali há muros que poderiam protegê-lo, ali há homens que
poderiam salvá-lo, e esses muros têm ouvidos de carne, e esses homens
têm entranhas de pedra.
Quem acusar?
Ninguém e todos.
Os tempos incompletos em que vivemos.
É sempre com esses riscos e perigos que a utopia se transforma em
insurreição, e de protesto filosófico se transforma em protesto armado, e
de Minerva em Palas. A utopia que se impacienta e se torna revolta sabe o
que a espera; quase sempre chega cedo demais. Então resigna-se e aceita
estoicamente a catástrofe, em vez do triunfo. Ela serve, sem se queixar e
até desculpando-os, os que a renegam, e sua magnanimidade está em
consentir o abandono. Ela é indomável contra o obstáculo e meiga com a
ingratidão.
Mas será realmente ingratidão?
Sim, do ponto de vista do gênero humano.
Não, do ponto de vista do indivíduo.
O progresso é a maneira de ser do homem. A vida geral do gênero
humano chama-se Progresso; o passo coletivo da humanidade chama-se
Progresso. O progresso marcha; faz a grande viagem humana e terrestre
em direção ao celeste e ao divino; faz paradas nas quais reúne o rebanho
em atraso; faz pausas durante as quais medita diante de alguma esplêndida
Canaã desvendando de súbito seu horizonte; tem noites em que dorme; e é
uma das pungentes ansiedades do pensador ver a sombra sobre a alma
humana, e tatear nas trevas, sem conseguir despertá-lo, o progresso
adormecido.
— Talvez Deus esteja morto — dizia um dia Gérard de Nerval a quem
escreve estas linhas, confundindo o progresso com Deus e tomando a
interrupção do movimento pela morte do Ser.
Quem se desespera está errado. O progresso desperta infalivelmente, e,
em suma, seria possível dizer que ele marcha, mesmo adormecido, pois
cresceu. Quando novamente o vemos de pé, achamos que está mais alto.
Estar sempre tranquilo, isso não depende mais do progresso que do rio;
não ergam barragens; não joguem pedras; o obstáculo faz espumar a água
e ferver a humanidade. Daí as perturbações; mas após essas perturbações
reconhecemos que foi criado um caminho. Até que a ordem, que nada mais
é do que a paz universal, esteja estabelecida, até que a harmonia e a
unidade reinem, o progresso terá, por etapas, revoluções.
Então, o que é o progresso? Acabamos de dizê-lo. A vida permanente
dos povos.
Mas algumas vezes acontece que a vida momentânea dos indivíduos
oferece resistência à vida eterna do gênero humano.
Confessemos sem amargura, o indivíduo tem seu interesse próprio e
pode, sem delito, estipular normas para esse interesse e defendê-lo; o
presente tem sua quantidade desculpável de egoísmo; a vida momentânea
tem o seu direito e não é obrigada a sacrificar-se continuamente ao futuro.
A geração que tem atualmente seu direito de passagem sobre a terra não é
obrigada a abreviá-lo em favor das gerações que, afinal, são suas iguais, e
que terão sua vez mais tarde. “Eu existo”, murmura esse alguém chamado
Todos. “Sou jovem e estou apaixonado, sou velho e quero descansar; sou
pai de família, trabalho, prospero, faço bons negócios, tenho casas para
alugar, sou credor do estado, sou feliz, tenho mulher e filhos, amo tudo
isso, desejo viver, deixem-me tranquilo.” Por isso, em certas horas, o frio
profundo sobre os magnânimos vanguardistas do gênero humano.
Aliás, convenhamos, a utopia sai de sua esfera radiante guerreando.
Ela, a verdade do amanhã, toma emprestado seu procedimento, a batalha,
da mentira de ontem. Ela, o futuro, comporta-se como o passado. Ela,
ideia pura, torna-se via de fato. Ela complica seu heroísmo com uma
violência pela qual é justo que responda; violência de ocasião e de
expediente, contrária aos princípios e pela qual é fatalmente punida. A
utopia-insurreição combate com o antigo código militar na mão; fuzila os
espiões, executa os traidores, suprime seres vivos e arremessa-os nas
trevas desconhecidas. Serve-se da morte, coisa grave. Parece que a utopia
já não tem fé na luz, sua força irresistível e incorruptível. Fere com a
espada. Porém, nenhuma espada possui um só gume. Toda espada tem dois
gumes; quem fere com um fere-se com o outro.
Feita essa ressalva, e feita com toda a severidade, torna-se impossível
deixar de admirar, quer vençam ou não, os gloriosos combatentes do
futuro, os confessores da utopia. Mesmo quando abortam, são veneráveis,
e talvez seja no fracasso que eles tenham mais majestade. A vitória,
quando é conforme ao progresso, merece os aplausos dos povos, mas uma
derrota heroica merece o seu enternecimento. Uma é magnífica, a outra é
sublime. Para nós, que preferimos o martírio ao triunfo, achamos John
Brown maior que Washington, e Pisacane maior que Garibaldi.17
É preciso que alguém seja a favor dos vencidos.
Somos injustos para com esses grandes empreendedores do futuro
quando malogram.
Acusamos os revolucionários de espalhar o terror. Toda barricada
parece um atentado. Incriminamos suas teorias, suspeitamos de seu
objetivo, tememos seu pensamento, denunciamos sua consciência. São
censurados por levantar, alicerçar e amontoar contra o fato social reinante
um bocado de misérias, de dores, de iniquidades, de agravos, de
desesperos, e por arrancar dos abismos blocos de trevas para neles se
entrincheirar e combater. Gritamo-lhes: “Estão arrancando as pedras do
inferno!” Eles poderiam responder: “É por isso que nossa barricada é feita
de boas intenções”.
O melhor, certamente, é a solução pacífica. Em suma, convenhamos,
quando vemos uma pedra pensamos no urso, boa vontade com a qual a
sociedade se inquieta. Mas a salvação da sociedade depende dela mesma; é
para a sua própria boa vontade que nós apelamos. Nenhum remédio
violento é necessário. Estudar o mal amigavelmente, constatá-lo e depois
o sanar. É para isso que a convocamos.
Seja como for, mesmo caídos, principalmente caídos, são grandiosos
esses homens que, em todos os pontos do universo, e olhos fixos na
França, lutam pela grande obra com a lógica inflexível do ideal; eles dão a
própria vida, como pura doação, pelo progresso; cumprem a vontade da
Providência; praticam um ato religioso. Na hora marcada, com o mesmo
desinteresse de um ator no momento de sua réplica, obedecendo ao cenário
divino, entram no túmulo. E esse combate sem esperança, e esse
desaparecimento estoico, eles o aceitam para levar às esplêndidas e
supremas consequências universais o magnífico movimento humano
irresistivelmente iniciado em 14 de julho de 1789. Esses soldados são
sacerdotes. A Revolução Francesa é um gesto de Deus.
De resto, há, e é conveniente acrescentar esta distinção às distinções já
mencionadas em outro capítulo, há as insurreições aceitas que se chamam
revoluções; há revoluções recusadas que se chamam revoltas. Uma
insurreição que irrompe é uma ideia que faz seu exame perante o povo. Se
o povo deixa cair sua esfera negra, a ideia é fruto seco, a insurreição é
destinada ao fracasso.
A entrada em guerra à menor intimação, e a cada vez que a utopia
desejar, não é própria dos povos. Nem sempre e nem a qualquer hora, as
nações têm o temperamento dos heróis e dos mártires.
Elas são positivas. A priori, a insurreição lhes causa repugnância; em
primeiro lugar porque, frequentemente, ela tem como resultado alguma
catástrofe; em segundo, porque ela sempre tem como ponto de partida uma
abstração.
Pois, e isso é belo, é sempre pelo ideal, e unicamente pelo ideal, a que
se dedicam aqueles que se dedicam. Uma insurreição é um entusiasmo. O
entusiasmo pode encolerizar-se; por isso a tomada de armas. Mas toda
insurreição que mira um governo ou um regime visa mais alto. Assim, por
exemplo, insistimos, o que os chefes da insurreição de 1832 combatiam, e
especialmente os jovens entusiastas da rua de la Chanvrerie, não era
precisamente Luís Filipe. A maioria, falando francamente, fazia justiça às
qualidades desse rei mediano entre a monarquia e a revolução; nenhum
deles o odiava. Mas atacavam o ramo caçula do direito divino em Luís
Filipe, assim como haviam atacado o ramo mais velho em Carlos X; e o
que desejavam derrubar, derrubando a realeza na França, como já
explicamos, era a usurpação do homem sobre o homem, e do privilégio
sobre o direito no universo inteiro. Paris sem rei tem, em contrapartida, o
mundo sem déspotas. Raciocinavam dessa forma. Sem dúvida, seus
objetivos eram longínquos, vagos, talvez, e recuavam diante do esforço;
mas grandes.
Assim são as coisas. Nós nos sacrificamos por essas visões que, para
os sacrificados, são quase sempre ilusões, mas ilusões às quais, em suma,
toda a certeza humana se confunde. O insurgente poetiza e doura a
insurreição. Arremessa-se no meio dessas coisas trágicas embriagando-se
com o que vai fazer. Quem sabe? Talvez tenhamos êxito. Somos a minoria;
temos contra nós todo um exército; mas defendemos o direito, a lei
natural, a soberania de cada um sobre si mesmo, soberania para a qual não
há abdicação possível, a justiça, a verdade e, se necessário, morremos
como os trezentos espartanos. Não pensamos em Dom Quixote, mas em
Leônidas. E vamos sempre adiante, e, uma vez engajados, não recuamos
mais e nos precipitamos, cabeça erguida, tendo como esperança uma
vitória extraordinária, a revolução completada, o progresso recolocado em
liberdade, o engrandecimento do gênero humano, a liberação universal e,
na pior das hipóteses, as termópilas.
Esses movimentos armados em favor do progresso frequentemente
fracassam, e acabamos de dizer o porquê. A multidão é contra o
treinamento dos paladinos. As massas pesadas, as multidões, frágeis
devido a seu próprio peso, temem as aventuras; e no ideal há aventuras.
Aliás, não esqueçamos, os interesses estão ali, pouco amigos do ideal e
do sentimental. Algumas vezes o estômago paralisa o coração.
A grandeza e a beleza da França estão no fato de que ela não tem tanta
barriga quanto os outros povos; amarra a cintura com maior facilidade do
que eles. É a primeira a acordar, a última a adormecer. Ela segue adiante.
Ela é exploradora.
Isso vem do fato de ela ser artista.
O ideal nada mais é do que o ponto culminante da lógica, da mesma
forma que o belo nada mais é do que o ápice da verdade. Os povos artistas
são também os povos consequentes. Amar a beleza é ver a luz. É por isso
que o facho da Europa, isto é, da civilização, foi primeiro hasteado pela
Grécia, que o passou à Itália, que o passou à França. Divinos povos estes,
iluminadores! Vitae lampada tradunt.18
Coisa admirável, a poesia de um povo é o elemento de seu progresso.
A quantidade de civilização se mede pela dose de imaginação. Somente
um povo civilizador deve conservar-se viril. Corinto, sim; Síbaris, não.
Torna-se bastardo quem se efemina. Não se deve ser nem diletante nem
virtuoso, mas sim artista. Em matéria de civilização, convém não
aprimorar, mas sublimar. Sob essa condição, dá-se ao gênero humano o
molde do ideal.
O ideal moderno tem seu tipo na arte, e seu meio na ciência. É pela
ciência que se realizará essa augusta visão dos poetas, o belo social. O
Éden será reconstruído por A + B. No ponto em que a civilização chegou,
o exato é um elemento necessário do esplêndido, e o sentimento artístico
é, não somente servido, mas completado pelo órgão científico; o sonho
deve calcular. A arte, que é o conquistador, deve ter como ponto de apoio a
ciência, que é quem caminha. A solidez do meio de transporte é
importante. O espírito moderno é o gênio da Grécia tendo por veículo o
gênio da Índia; Alexandre sobre o elefante.
As raças petrificadas no dogma ou desmoralizadas pelo lucro são
impróprias para conduzir a civilização. A genuflexão, diante do ídolo ou
diante do escudo, atrofia o músculo que caminha e a vontade que avança.
A absorção, seja hierática ou comercial, diminui o brilho de um povo,
rebaixa-lhe o horizonte rebaixando-lhe o nível, e lhe retira essa
inteligência, simultaneamente humana e divina, do objetivo universal que
gera as nações missionárias. Babilônia não tem ideal; Cartago não tem
ideal. Atenas e Roma têm e guardam, mesmo através de toda a espessura
noturna dos séculos, auréolas de civilização.
A França pertence à mesma qualidade de povo que a Grécia e a Itália.
É ateniense pelo belo, e romana pela grandeza. Além disso, é bondosa. Ela
se entrega. E, com uma frequência maior do que os demais povos, seu
humor tende a dedicar-se e sacrificar-se. Porém, esse humor a toma e a
abandona. E aí está o grande perigo para os que correm quando ela deseja
somente andar, ou que andam quando ela deseja parar. A França tem suas
recaídas de materialismo, e, em alguns momentos, as ideias que obstruem
esse cérebro sublime nada mais têm que possa lembrar a grandeza
francesa, são da dimensão de um Missouri e de uma Carolina do Sul. O
que fazer? A gigante brinca de anã; a imensa França tem suas fantasias de
pequenez. Eis tudo.
Quanto a isso, nada a dizer. Os povos, assim como os astros, têm
direito ao eclipse. Está tudo bem, desde que a luz retorne e que o eclipse
não degenere em noite. Aurora e ressurreição são sinônimos. O
reaparecimento da luz é idêntico à persistência do eu.
Constatemos esses fatos com calma. Para o devotamento, a morte na
barricada, ou a sepultura no exílio, é uma suposição aceitável. O
verdadeiro nome da dedicação é desinteresse. Que os abandonados se
deixam abandonar, que os exilados se deixem exilar, e nos limitemos a
suplicar aos grandes povos que não recuem muito quando recuam. Não se
deve, a pretexto de retornar à razão, descer demasiadamente.
A matéria existe, o minuto existe, os interesses existem, o ventre
existe; porém, o ventre não deve ser a única sabedoria. A vida
momentânea tem seus direitos, nós o admitimos, mas a vida permanente
também tem os seus. Infelizmente, haver subido não impede que se caia.
Na história vemos isso com uma frequência maior do que desejaríamos.
Uma nação é ilustre; experimenta o ideal, depois morde o lodo e o acha
bom; e, se lhe perguntamos por que ela abandona Sócrates por Falstaff, ela
responde: “É porque gosto dos homens de Estado”.
Mais uma palavra antes de voltarmos à batalha.
Uma batalha, como a que estamos narrando neste momento, nada mais
é do que uma convulsão em direção ao ideal. O progresso entravado é
doentio e tem essas trágicas epilepsias. Esta doença do progresso, a guerra
civil, tivemos que encontrá-la em nosso caminho. Essa é uma das fases
fatais, ao mesmo tempo ato e entreato, deste drama cujo eixo é um
condenado social, e cujo verdadeiro título é: o Progresso.
O Progresso!
Esse brado que frequentemente lançamos é todo o nosso pensamento; e
no ponto em que estamos deste drama, e a ideia nele contida tendo ainda
que passar por mais de uma prova, talvez nos seja permitido, se não
levantar o seu véu, pelo menos deixar transparecer nitidamente sua luz.
O livro que o leitor, neste momento, tem diante dos olhos é, do
princípio ao fim, em seu conjunto e em seus detalhes, sejam quais forem
as intermitências, as exceções ou falhas, a caminhada do mal para o bem,
do injusto para o justo, do falso para o verdadeiro, da noite para o dia, do
apetite para a consciência, da podridão para a vida, da bestialidade para o
dever, do inferno para o céu, do nada para Deus. Ponto de partida: a
matéria; ponto de chegada: a alma. Hidra no início; anjo no fim.

XXI. OS HERÓIS
De repente, o tambor anunciou o ataque.
O ataque foi um furacão. Na véspera, na escuridão, silenciosamente,
puderam chegar perto da barricada como uma cobra. Presentemente, em
pleno dia, no meio daquela rua deserta, a surpresa era decididamente
impossível, aliás, a violência tirara a máscara, o canhão começara a rugir,
o exército arremeteu-se sobre a barricada. A fúria agora era a habilidade.
Uma possante coluna de infantaria de linha, cortada a intervalos regulares
por guardas nacionais e por guardas municipais a pé, e apoiados por
massas compactas, que eram ouvidas sem serem vistas, desembocou na
rua correndo, tambores rufando, clarim tocando, baionetas cruzadas,
bombeiros à frente, e, imperturbável sob os projéteis, ela caiu direto sobre
a barricada com o peso de um aríete de bronze de encontro a uma muralha.
A muralha resistiu.
Os insurgentes abriram fogo impetuosamente. A barricada, agora
escalada, tinha uma juba de clarões. O ataque foi tão enlouquecido que em
um momento ela estava inundada de assaltantes; mas ela sacudiu os
soldados, como o leão sacode os cães, e apenas cobriu-se de sitiadores
como a falésia se cobre de espuma, para reaparecer, um instante depois,
escarpada, negra e formidável.
A coluna, obrigada a recuar, permaneceu amontoada na rua, a
descoberto, mas terrível, e respondeu ao reduto com uma assustadora
metralha. Quem quer que já tenha visto fogos de artifício se lembra do
feixe formado por um entrecruzamento de raios que chamamos buquê.
Imaginemos esse buquê, não na vertical, mas na horizontal, carregando
uma bala, um chumbo grosso ou uma bala de canhão na ponta de cada um
de seus jatos de fogo, e debulhando a morte nos seus cachos de trovão. Por
baixo estava a barricada.
De ambas as partes, igual resolução. A bravura ali estava, quase
bárbara, misturada a uma certa ferocidade heroica que começava pelo
sacrifício de si mesmo. Era a época em que um guarda nacional combatia
como um zouave.19 A tropa queria pôr um fim àquilo; a insurreição queria
lutar. A aceitação da agonia em plena juventude e em plena saúde faz da
intrepidez um frenesi. Cada um naquela batalha mostrava a grandiosidade
da hora suprema. A rua ficou cheia de cadáveres.
Em uma das extremidades da barricada achava-se Enjolras, na outra
Marius. Enjolras, que tinha em mente toda a barricada, poupava-se e
abrigava-se; três soldados caíram um após o outro, diante da sua seteira,
sem nem mesmo percebê-lo; Marius combatia a descoberto.
Transformara-se em ponto de mira. Mais da metade de seu corpo aparecia
no topo da barricada. Não há pródigo mais violento do que o avarento que
toma o freio nos dentes; não há homem mais assustador na ação que um
sonhador. Marius estava formidável e pensativo. Estava na luta como em
um sonho. Parecia um fantasma dando tiros de fuzil.
Esgotavam-se os cartuchos dos sitiados mas não os seus sarcasmos.
Naquele turbilhão sepulcral em que se achavam, eles riam.
Courfeyrac estava com a cabeça descoberta.
— O que você fez do chapéu? — perguntou-lhe Bossuet.
Courfeyrac respondeu:
— Tiraram-no de minha cabeça a tiros de canhão.
Ou então diziam coisas cheias de altivez.
— Compreendam — gritava amargamente Feuilly — esses homens (e
citava os nomes, nomes conhecidos, até mesmo célebres, alguns do antigo
exército) que haviam prometido juntar-se a nós e juraram que nos
ajudariam empenhando a honra, e que são nossos generais e que nos
abandonam.
E Combeferre limitava-se a responder com um grave sorriso:
— Existem pessoas que observam as leis da honra como observam as
estrelas, de muito longe.
O interior da barricada achava-se tão coberto de cartuchos rasgados
que parecia ter nevado.
Os assaltantes tinham o número; os insurgentes tinham a posição.
Estavam no alto de uma muralha e fulminavam à queima-roupa os
soldados que tropeçavam nos mortos e feridos, e os presos nas escarpas.
Essa barricada, construída como fora e admiravelmente apoiada pelo lado
de dentro, era realmente uma dessas posições em que um punhado de
homens pode manter uma legião em xeque-mate. Contudo, sempre
reforçada e aumentando sob a chuva de balas, a coluna de ataque
aproximava-se inexoravelmente, e agora, pouco a pouco, passo a passo,
mas com convicção, o exército apertava a barricada, como o parafuso
aperta a prensa.
As assaltos sucediam-se. O horror era cada vez maior.
Irrompeu então, sobre aquele amontoado de pedras da rua de la
Chanvrerie, uma luta digna de uma muralha de Troia. Aqueles homens
pálidos, esfarrapados, exaustos, que não comiam havia vinte e quatro
horas, que não haviam dormido, com apenas alguns tiros para dar, que
tateavam seus bolsos vazios sem cartuchos, quase todos feridos, a cabeça
ou o braço envoltos em trapos enegrecidos e enferrujados, tendo em suas
roupas buracos por onde o sangue escorria, armados apenas com fuzis de
má qualidade e velhos sabres lascados, transformaram-se em Titãs. A
barricada por dez vezes foi abordada, assaltada, escalada e jamais tomada.
Para se ter uma ideia dessa luta, seria necessário imaginar o fogo
ateado a um conjunto de coragens terríveis, e que se visualizasse esse
incêndio. Não era um combate, era o interior de uma fornalha; as bocas
respiravam chama; os rostos tornavam-se extraordinários. A forma
humana parecia impossível, os combatentes flamejavam, e era formidável
ver o vaivém daqueles homens naquela fumaça vermelha, aquelas
salamandras do combate. Renunciamos à descrição das cenas sucessivas e
simultâneas dessa grandiosa matança. Só a epopeia tem o direito de
preencher doze mil versos com uma batalha.
Parecia o inferno do bramanismo, o mais terrível dos dezessete
abismos, que o Veda chama de Floresta das Espadas.
Lutavam corpo a corpo, pé com pé, com tiros de pistola, golpes de
sabre, socos, de longe, de perto, de cima, de baixo, de todos os lados, dos
tetos da casa, das janelas da taverna, dos respiradouros dos porões onde
alguns haviam se abrigado. Era um contra sessenta. A fachada da Corinthe,
meio destruída, estava horrível. A janela, tatuada pelos tiros, havia perdido
seus vidros e caixilhos e nada mais era do que um buraco informe,
tumultuadamente tapada com pedras. Bossuet foi morto; Feuilly foi
morto; Courfeyrac foi morto; Joly foi morto; Combeferre, atravessado por
três golpes de baioneta no peito, no instante em que erguia um soldado
ferido, só teve tempo de olhar para o céu, e expirou.
Marius, sempre combatendo, estava tão crivado de feridas,
principalmente na cabeça, que seu rosto se escondia sob o sangue e parecia
ter a face coberta por um lenço vermelho.
Somente Enjolras não fora atingido. Quando não tinha mais armas,
estendia a mão para a direita ou para a esquerda e um insurgente lhe metia
na mão uma arma qualquer. Só lhe restava o toco de quatro espadas; uma a
mais que Francisco I em Marignan.
Homero diz: “Diomedes degola Axiles, filho de Teutranis, que
habitava a feliz Arisba; Euríalo, filho de Macisteia, extermina Dresos, e
Oféltios, Esepo, e esse Pédasus, que a náiade Abarbareia concebeu do
irrepreensível Bucolião; Ulisses derruba Pidites de Percosa; Antíloquo,
Ablero; Polípetes, Astíalo; Polídamas, Oto de Cilene; e Teucro, Arétaon.
Megântios morre sob os golpes de lança de Eurípiles. Agamenon, rei dos
heróis, derruba Élatos, nascido na cidade escarpada banhada pelo sonoro
rio Satnois”.20 Nos nossos antigos poemas de gesta, Esplandiã ataca com
uma machadinha de fogo o marquês gigante Swantibore, que se defende
apedrejando o cavaleiro com as torres que arranca do solo. Nossos antigos
afrescos murais nos mostram os dois duques, de Bretagne e de Bourbon,
armados, com armaduras e timbres de guerra, a cavalo, abordando-se,
bastão de armas em punho, máscaras de ferro, botas de ferro, luvas de
ferro, um com a carapuça de arminho, o outro vestido de azul; Bretagne
com seu leão entre os dois chifres de sua coroa, Bourbon com uma
monstruosa flor-de-lis na viseira do capacete. Mas, para parecer soberbo,
não é preciso carregar, como Yvon, o morrião ducal, nem empunhar, como
Esplandiã, uma chama viva, ou como Filetes, pai de Polidamas, ter trazido
de Éfiro uma boa armadura, presente do rei dos homens, Eufetes; basta dar
a vida por uma convicção ou lealdade. Esse pequeno soldado ingênuo,
ontem camponês da Beauce ou de Limousin, que anda, sabre-baioneta de
lado, ao redor das babás no Luxemburgo, esse jovem estudante pálido,
debruçado sobre uma peça de anatomia ou sobre um livro, loiro
adolescente que faz sua barba com tesoura, peguem os dois, insuflem-lhes
um sopro de dever, coloquem-nos um de frente para o outro na esquina
Boucherat ou no beco Planche-Mibray, e que um combata por sua
bandeira, e o outro combata por seu ideal, e que ambos imaginem que
combatem pela pátria; a luta será colossal; e a sombra que projetarão
nesse grande campo épico onde se debate a humanidade, esse pioupiou e
esse carabin21 lutando, será igual à sombra projetada por Megarion, rei da
Lícia cheia de tigres, abraçando corpo a corpo o imenso Ajax, igual aos
deuses.

XXII. PALMO A PALMO


Quando não havia mais chefes vivos, a não ser Enjolras e Marius, nas
duas extremidades da barricada, o centro, que durante tanto tempo havia
sido defendido por Courfeyrac, Joly, Bossuet e Combeferre, cedeu. O
canhão, sem abrir uma brecha praticável, havia amplamente alargado o
meio do reduto; ali, o topo da muralha desaparecera sob as balas,
desmoronara; os destroços que haviam caído, tanto no interior quanto no
exterior, haviam formado, ao amontoar-se dos dois lados da barragem,
duas espécies de rampa, uma do lado de dentro, outra do lado de fora. A
rampa externa oferecia à abordagem um plano inclinado.
Um último assalto foi tentado por ali, e este foi bem-sucedido. A
massa, eriçada de baionetas, arremessando-se a passos cadenciados,
chegou irresistível, e a espessa frente de batalha da coluna de ataque
apareceu na fumaça, no alto da escarpa. Dessa vez tudo estava acabado. O
grupo de insurgentes que defendia o centro recuou confusamente.
Então, o sombrio amor à vida despertou em alguns. Na mira daquela
floresta de fuzis, vários não queriam mais morrer. Este é um momento em
que o instinto de conservação solta uivos e a besta reaparece no homem.
Estavam encurralados na grande casa de seis andares que constituía o
fundo do reduto. Essa casa podia ser a salvação. Essa casa estava fechada e
como que murada de alto a baixo. Antes que a tropa de linha penetrasse no
interior do reduto, havia tempo para que uma porta se abrisse e se
fechasse, bastaria a duração de um relâmpago para isso, e a porta dessa
casa, entreaberta bruscamente e fechada em seguida, para esses
desesperados era a vida. Atrás dessa casa, havia ruas, a fuga possível, o
espaço. Eles se puseram a bater nessa porta com as coronhas das armas e
com os pés, gritando, suplicando, juntando as mãos.
Ninguém abriu. Da janela do terceiro andar, a cabeça morta os olhava.
Mas Enjolras e Marius, e sete ou oito combatentes, estavam à sua volta
e os protegiam. Enjolras havia gritado aos soldados: “Não avancem!” Mas,
como um oficial não obedecesse, Enjolras matou o oficial. Ele estava
agora no pequeno pátio interior do reduto, apoiado na casa da Corinthe,
espada em uma mão, carabina na outra, mantendo aberta a porta da
taverna, impedindo a invasão dos assaltantes. Ele gritou aos desesperados:
“Só há uma porta aberta. Esta”. E, cobrindo-os com seu corpo, enfrentou
sozinho um batalhão, os fez passar atrás dele. Todos se precipitaram.
Enjolras, executando com a carabina, da qual agora se servia como de uma
bengala, o que chamam de “rosa coberta”, rebateu as baionetas que o
cercavam e entrou por último; foi um instante horrível, os soldados
querendo penetrar, os insurgentes desejando fechar. A porta foi fechada
com tal violência que, ao novamente se encaixar em sua moldura, deixou
ver, cortados e colados em seu batente, os cinco dedos de um soldado que
se agarrara a ele.
Marius ficara de fora. Um tiro de espingarda acabava de quebrar-lhe a
clavícula; sentiu que desmaiava e que caía. Nesse momento, olhos já
fechados, teve a emoção de sentir que uma mão vigorosa o agarrava. Ao
desmaiar mal teve tempo de ter este pensamento misturado à suprema
lembrança de Cosette: “Sou prisioneiro. Serei fuzilado”.
Enjolras, não vendo Marius entre os refugiados da taverna, teve a
mesma ideia. Mas estavam naquele momento em que cada um só tem
tempo para pensar na própria morte. Enjolras colocou a tranca na porta,
fechou os trincos e deu duas voltas na fechadura e no cadeado, enquanto
do lado de fora batiam na porta furiosamente, os soldados com as coronhas
das armas, os bombeiros com os machados. Os assaltantes haviam se
agrupado nessa porta. Começava agora o assédio à taverna.
Os soldados, devemos dizer, estavam furiosos.
A morte do sargento de artilharia os irritara; além disso, coisa mais
funesta, durante as poucas horas que haviam precedido o ataque espalhara-
se entre eles a notícia de que os revoltosos mutilavam os prisioneiros e
que havia na taverna o cadáver de um soldado sem cabeça. Esse tipo de
rumor fatal é o acompanhamento ordinário das guerras civis e foi um
desses boatos que causou, mais tarde, a catástrofe da rua Transnonain.
Quando a porta foi fortificada, Enjolras disse aos outros:
— Vendamo-nos caro.
Em seguida, aproximou-se da mesa em que jaziam Mabeuf e
Gavroche. Via-se sob o lençol negro duas formas retas e rígidas, uma
grande, outra pequena, e os dois rostos desenhavam-se vagamente sob as
pregas frias do sudário. Uma mão saía de sob a mortalha e pendia para a
terra. Era a mão do velho.
Enjolras inclinou-se e beijou aquela veneranda mão, como no dia
anterior lhe beijara a fronte.
Foram os únicos beijos que deu em toda a sua vida.
Abreviemos. A barricada lutara como uma porta de Tebas, a taverna
lutou como uma casa de Saragoza. Essas resistências são rudes. Sem
quartel. Sem possibilidade de negociação. Desejam a morte contanto que
matem. Quando Suchet diz: “Capitulem”, Palafox responde: “Depois da
guerra dos canhões, a guerra dos punhais”. Nada faltou à tomada de assalto
da taverna Hucheloup; nem as pedras chovendo da janela e do teto sobre
os assaltantes e exasperando os soldados com horríveis esmagamentos,
nem os tiros de espingarda dos porões e das mansardas, nem o furor do
ataque, nem a raiva da defesa, nem, enfim, quando a porta cedeu, as
demências frenéticas do extermínio. Os assaltantes, lançando-se dentro da
taverna, os pés embaraçados nos fragmentos da porta arrombada e jogada
no chão, não encontraram um só combatente. A escada em espiral, cortada
com golpes de machado, jazia no meio da sala, alguns feridos acabavam
de expirar, tudo o que não estava morto estava no primeiro andar, e ali,
pelo buraco no teto, que fora a entrada da escada, prorrompeu uma terrível
fuzilaria. Eram os últimos cartuchos. Quando foram queimados, quando
esses agonizantes temíveis não tinham mais nem pólvora nem balas, cada
um pegou duas dessas garrafas reservadas por Enjolras, das quais já
falamos, e enfrentaram a escalada com esses bastões assustadoramente
frágeis. Eram garrafas de aguardente. Relatamos tal como ocorreram esses
sombrios feitos da carnificina. O sitiado transforma tudo em arma. O fogo
gregário não desonrou Arquimedes, a resina fervente não desonrou
Bayard. Toda guerra é horror, e não há nada a escolher. Os disparos dos
assaltantes, embora atrapalhados e de baixo para cima, eram mortais. As
bordas do buraco no teto logo foram rodeadas por cabeças mortas de onde
escorriam longos fios vermelhos e fumegantes. O barulho era
inexprimível; uma fumaça densa e ardente escurecia esse combate. Faltam
palavras para pintar o horror em tal intensidade. Não havia mais homens
nessa luta agora infernal. Não eram mais gigantes contra colossos. Aquilo
se assemelhava mais a Milton e Dante do que a Homero. Demônios
atacavam, espectros resistiam.
Era o heroísmo monstro.

XXIII. ORESTES EM JEJUM E PÍLADES


EMBRIAGADO
Finalmente, subindo uns sobre os outros, servindo-se do esqueleto da
escada, trepando pelas paredes, agarrando-se ao teto, mutilando, à borda
do próprio alçapão, os últimos que resistiam, uns vinte assaltantes,
soldados, guardas nacionais, guardas municipais em confusão, a maioria
desfigurada por ferimentos no rosto nessa ascensão perigosa, cegos pelo
sangue, furiosos, transformados em selvagens, irromperam na sala do
primeiro andar. Não havia ali mais que um único homem de pé, Enjolras.
Sem cartuchos, sem espada, apenas conservava na mão o cano de sua
espingarda cuja coronha havia partido na cabeça dos que entravam.
Interpusera o bilhar entre ele e os assaltantes; recuara para o canto da sala,
e ali, com olhar altivo, de cabeça erguida, com aquele fragmento de arma
na mão, era ainda muito impressionante, de forma que um vazio se fez ao
seu redor. Ouviu-se um grito:
— É o chefe. Foi ele quem matou o artilheiro. Já que se postou ali, está
bem. Que fique ali. Que seja fuzilado ali mesmo.
— Fuzilem-me — disse Enjolras.
E, jogando o cano de sua carabina, cruzou os braços e apresentou o
peito.
A audácia diante da morte sempre comove os homens. Assim que
Enjolras cruzou os braços, aceitando o fim, o barulho do combate cessou
na sala, e esse caos apaziguou-se subitamente em uma espécie de
solenidade sepulcral. Parecia que a ameaçadora majestade de Enjolras,
desarmado e imóvel, pesava sobre aquele tumulto, e que somente com a
autoridade de seu olhar tranquilo aquele jovem, o único sem nenhum
ferimento, soberbo, ensanguentado, encantador, indiferente como alguém
invulnerável, obrigou essa balbúrdia sinistra a matá-lo com respeito. Sua
beleza, aumentada naquele momento por sua altivez, era resplandecente, e,
como se não pudesse estar mais cansado do que ferido, após as
assustadoras vinte e quatro horas que acabavam de se passar, estava
corado e bem disposto. Era talvez dele que, mais tarde, diante de um
conselho de guerra, falava uma testemunha: “Havia um insurgente a quem
ouvi chamarem de Apolo”. Um guarda nacional que visava Enjolras
abaixou sua arma dizendo: “Parece que vou fuzilar uma flor”.
Doze homens formaram um pelotão no ângulo oposto ao de Enjolras e
prepararam seus fuzis em silêncio.
Em seguida um sargento gritou:
— Apontar!
Um oficial interveio.
— Esperem.
E dirigindo-se a Enjolras:
— Quer que lhe vendem os olhos?
— Não.
— Foi realmente você quem matou o sargento de artilharia?
— Sim.
Havia alguns instantes que Grantaire tinha acordado.
Grantaire, como devem lembrar, dormia, desde a véspera, na sala alta
da taverna, sentado em uma cadeira e caído sobre uma mesa.
Realizava, em toda a sua energia, a velha metáfora: mortalmente
embriagado. A hedionda mistura, cerveja, aguardente e absinto, lançara-o
na letargia. Como a mesa sobre a qual adormecera era pequena, e por isso
não servira à barricada, deixaram-na de lado. Permaneceu sempre na
mesma posição, o peito dobrado sobre a mesa, a cabeça apoiada nos
braços, rodeado de copos, canecas e garrafas. Ele dormia com esse
esmagador sono do urso entorpecido e da sanguessuga saciada. Nada
conseguira despertá-lo, nem a fuzilaria, nem o canhão, nem a metralha que
penetrava pela janela da sala onde estava, nem a prodigiosa algazarra do
assalto. Somente, algumas vezes, respondia ao canhão com um ronco.
Parecia esperar ali que uma bala viesse poupar-lhe o trabalho de acordar.
Ao seu redor jaziam vários cadáveres, e, à primeira vista, nada o distinguia
dos que dormiam o profundo sono da morte.
O barulho não acorda um embriagado; o silêncio o desperta. Essa
singularidade mais de uma vez já foi observada. A queda de tudo ao seu
redor aumentava o aniquilamento de Grantaire; o desabamento o
embalava. A espécie de pausa que fez o tumulto diante de Enjolras foi uma
chacoalhada naquele sono pesado. Era como o efeito de uma carruagem a
galope que para de repente. Os que dormem despertam. Grantaire ergueu-
se sobressaltado, estendeu os braços, esfregou os olhos, olhou, bocejou e
compreendeu.
O fim da embriaguez assemelha-se ao rasgar de uma cortina. Vê-se, de
uma só vez e com um só olhar, tudo que ela escondia. Tudo volta
subitamente à memória; e o embriagado, que nada sabe do que se passou
durante vinte e quatro horas, mal abre os olhos e já está a par de tudo. As
ideias lhe retornam com uma lucidez brusca; a embriaguez, espécie de
vapor que cega o cérebro, se dissipa e dá lugar à clara e nítida obsessão
das realidades.
Relegado, como estava, a um canto, e como que abrigado por trás do
bilhar, os soldados, com os olhos fixos em Enjolras, não tinham sequer
percebido Grantaire, e o sargento preparava-se para repetir a ordem:
“Apontar!” quando, de repente, ouviram uma voz forte gritar perto deles:
— Viva a República! Aqui estou.
Grantaire se levantara.
O clarão imenso de todo aquele combate que ele perdera, e do qual não
participara, apareceu no olhar fulgurante do embriagado transfigurado.
Repetiu: “Viva a República!”, atravessou a sala com passo firme e foi
postar-se, diante dos fuzis, de pé ao lado de Enjolras.
— Matem dois de uma vez — disse ele.
E, voltando-se para Enjolras com amabilidade, lhe disse:
— Permite-me?
Enjolras apertou-lhe a mão, sorrindo.
Ainda sorria quando se ouviu a detonação.
Enjolras, atravessado por oito balas, permaneceu encostado à parede
como se as balas o tivessem pregado. Somente inclinou a cabeça.
Grantaire caiu fulminado a seus pés.
Instantes depois, os soldados desalojavam do alto da casa, onde se
tinham refugiado, os últimos insurgentes. Atiravam por entre uma pequena
grade de madeira que havia no sótão. Lutavam na parte superior da casa.
Corpos eram jogados pelas janelas, alguns ainda com vida. Dois
atiradores, que tentavam reerguer o ônibus quebrado, foram mortos com
dois tiros de carabina disparados do sótão. Um homem de camisa foi
atirado dali, um golpe de baioneta no ventre, e agonizava no chão. Um
soldado e um insurgente caíam juntos pelas telhas do teto, e não queriam
largar-se, e caíam, agarrando-se um ao outro, em um abraço feroz. Luta
semelhante no porão. Gritos, tiros, barulho terrível dos pés. Depois o
silêncio. A barricada fora tomada.
Os soldados começaram a revistar as casas vizinhas e a perseguir os
fugitivos.

XXIV. PRISIONEIRO
Marius era, realmente, prisioneiro. Prisioneiro de Jean Valjean. A mão
que o agarrara por trás, no momento em que ia cair, e cujo contato havia
sentido ao desmaiar, era a de Jean Valjean.
Jean Valjean não tomara parte no combate a não ser para expor-se.
Sem ele, nessa fase suprema da agonia, ninguém teria pensado nos feridos.
Graças a ele, sempre presente na carnificina como uma providência, os
que caíam eram erguidos, transportados para a sala da taverna e tratados.
Nos intervalos, ele consertava a barricada. Mas nada que pudesse
assemelhar-se a um golpe, a um ataque ou mesmo a uma defesa pessoal
saiu de suas mãos. Calava-se e socorria. No mais, sofrera só alguns
arranhões. As balas não o quiseram. Se o suicídio fazia parte dos sonhos
que tivera ao vir àquele sepulcro, fora mal-sucedido. Mas nós duvidamos
que ele tivesse pensado em suicídio, ato não religioso.
Jean Valjean, nesse espesso nevoeiro de combate, não parecia ver
Marius; o fato é que ele não o perdia de vista. Quando um tiro derrubou
Marius, Jean Valjean saltou com uma agilidade de tigre, caiu sobre ele
como se fosse uma presa e o levou.
O turbilhão do ataque era naquele momento tão violentamente
concentrado sobre Enjolras e sobre a porta da taverna que ninguém viu
Jean Valjean, carregando Marius desmaiado, atravessar o pátio da
barricada e desaparecer por trás do ângulo da casa da Corinthe.
Como se lembram, esse ângulo fazia uma espécie de cabo na rua;
abrigava das balas e da metralha, assim como dos olhares, alguns metros
quadrados de terreno. Assim, algumas vezes, há em um incêndio um
quarto que não se queima, e nos mares mais furiosos, por trás de um
promontório ou no fundo sem saída de escolhos, há sempre um canto
tranquilo. Foi nessa espécie de dobra do trapézio interior da barricada que
Éponine agonizara.
Ali Jean Valjean parou, colocou Marius no chão, encostou-se à parede
e olhou em volta.
A situação era apavorante.
Naquele momento, durante dois ou três minutos talvez, aquele pedaço
de parede era um abrigo, mas como sair daquele massacre? Jean Valjean
recordava a angústia em que se encontrara, oito anos antes, na rua
Polonceau e o modo pelo qual conseguira escapar; fora difícil então, mas
hoje era impossível. Tinha diante de si essa implacável e surda casa de
seis andares que parecia habitada somente pelo homem morto debruçado à
sua janela; à sua direita, tinha a barricada pouco elevada que fechava a
Petite-Truanderie; saltar esse obstáculo parecia fácil, mas acima da crista
da barreira avistava-se uma fileira de baionetas. Era a tropa de linha,
postada além dessa barricada, em observação. Era evidente que transpor a
barricada era expor-se a um fogo de pelotão, e que qualquer cabeça que se
arriscasse a ultrapassar o alto da muralha de paralelepípedos serviria de
alvo a sessenta tiros de espingarda. À esquerda ficava o campo de
combate. A morte estava atrás do ângulo da parede.
Que fazer?
Somente um pássaro conseguiria sair dali.
E era preciso decidir-se imediatamente, encontrar um expediente,
tomar uma resolução. Combatiam a alguns passos dele; felizmente, todos
se concentravam em um único ponto, a porta da taverna; porém, se um
soldado, um só, se lembrasse de dar a volta à casa ou atacá-la pelos lados,
tudo estaria perdido.
Jean Valjean olhou para a casa à sua frente, olhou para a barricada ao
seu lado, depois olhou para o chão com a violência do supremo desespero,
desorientado e como se quisesse cavar um buraco com os olhos.
De tanto olhar, um não sei que, vagamente perceptível em tal agonia,
desenhou-se e tomou forma a seus pés, como se, com o olhar, tivesse o
poder de fazer aparecer o que desejava. A alguns passos dali, na base da
pequena barricada tão impiedosamente guardada e vigiada do lado de fora,
sob um desmoronamento de pedras que a escondia em parte, ele viu uma
grade de ferro colocada horizontalmente e ao nível do solo. A grade,
formada por fortes barras transversais, tinha quase dois metros quadrados.
O caixilho de pedras que a sustinha fora arrancado e ela estava como que
despregada. Através das barras, entrevia-se uma escura abertura, algo
semelhante ao tubo de uma chaminé ou ao cilindro de uma cisterna. Jean
Valjean correu. Sua antiga experiência de evasões subiu-lhe ao cérebro
como uma luz. Afastar as pedras, levantar a grade, carregar aos ombros o
corpo de Marius, inerte como um cadáver, descer com esse fardo às costas,
ajudando-se com os joelhos e os cotovelos, nessa espécie de poço,
felizmente pouco profundo, deixar cair por cima de si o pesado alçapão de
ferro, sobre o qual tornaram a rolar as pedras arrancadas, tomar pé em uma
superfície lajeada três metros abaixo do solo, tudo isso foi executado
como o que é feito em meio ao delírio, com a força de um gigante e a
rapidez de uma águia; durou apenas alguns minutos.
Jean Valjean viu-se com Marius, sempre desmaiado, em uma espécie
de comprido corredor subterrâneo.
Ali, paz profunda, silêncio absoluto, noite.
A impressão que ele outrora experimentara, caindo da rua no interior
de um convento, retornou-lhe. Mas o que ele hoje carregava não era
Cosette, era Marius.
Acima dele, agora mal ouvia, como se fosse um vago murmúrio, o
incrível tumulto da taverna tomada de assalto.

__________________________
1 Caríbdis e Cila, monstros marinhos da mitologia Grega.
2 Do grego ochlos: plebe.
3 “Lama da cidade, lei do mundo.”
4 Meses do calendário republicano francês: termidor — décimo primeiro mês —, de 19 de
julho a 17 de agosto; vindemiário — primeiro mês —, de 22 de setembro a 21 de outubro;
prairial — nono mês —, de 20 de maio a 18 de junho.
5 Cidades tomadas durante as operações na Argélia, onde se observou que o exército havia
perdido o respeito à honra militar e às leis da guerra.
6 Os anfictiões eram deputados que representavam os doze estados gregos e decidiam sobre
negócios gerais, incluindo festas religiosas.
7 Referência ao castelo de Vincennes, que funcionava como prisão.
8 Referência aos personagens de Orlando Furioso, de Ariosto.
9 Anteu, gigante mitológico, filho da Terra.
10 Inscrição pertencente ao Evangelho da Natividade: “Encontraram um bebê envolto em
faixas”.
11 “Quem ousaria dizer que o sol é falso?” — Virgílio, Geórgicas.
12 Festas dedicadas ao deus Saturno.
13 A frase original, Les cygnes comprennent les signes, comporta um trocadilho que não é
possível manter na tradução, e que justifica o pai julgar-se espirituoso.
14 Do latim, “o pai morto espera o filho morto.”
15 Divindade da mitologia grega.
16 A expressão significa “esforço momentâneo e intenso”, sem equivalente em português.
17 John Brown foi um abolicionista americano; Carlo Pisacane viveu e morreu ao lado dos
patriotas republicanos da Itália.
18 “Eles se transmitem as chamas da vida.”
19 Zouave: nome dado aos soldados da infantaria francesa que serviram no norte da África,
entre 1831 e 1962. A palavra virou sinônimo de homem corajoso.
20 Tradução livre do próprio Victor Hugo para os versos 12-36, canto VI, da Ilíada.
21 Pioupiou — soldado raso de infantaria; carabin — estudante de medicina.
LIVRO II
O INTESTINO DE LEVIATÃ

I. A TERRA EMPOBRECIDA PELO MAR


PARIS LANÇA anualmente vinte e cinco milhões à água. Não é metáfora.
Como e de que modo? Dia e noite. Com que finalidade? Sem finalidade
alguma. Com que pensamento? Sem pensar. Para quê? Para nada. Por meio
de que órgão? Por meio de seu intestino. Qual é seu intestino? É o seu
esgoto.
Vinte e cinco milhões é a mais moderada das cifras aproximativas
apresentadas pelas avaliações da ciência especializada.
A ciência, depois de muito tempo testando, sabe atualmente que o
adubo mais fecundante e eficaz é o adubo humano. Os chineses, devemos
dizê-lo para nossa vergonha, sabiam disso antes de nós. Nenhum
camponês chinês, é Eckeberg quem o diz, vai à cidade sem trazer de lá,
nas duas pontas de seu bambu, dois baldes cheios do que chamamos
imundícies. Graças ao adubo humano, a terra na China atualmente é tão
jovem quanto nos tempos de Abraão. O trigo chinês rende até cento e vinte
vezes a semente. Não há esterco comparável em fertilidade aos detritos de
uma capital. Uma grande cidade é o mais potente dos estercorários.
Empregar a cidade para adubar o campo seria um sucesso certeiro. Se
nosso ouro é esterco, em compensação nosso esterco é ouro.
O que é feito desse ouro-esterco? Varrem-no para o abismo.
Gastam-se grandes somas para enviar comboios de navios a fim de
recolher no polo austral os excrementos dos petréis e dos pinguins,
enquanto que o incalculável elemento de opulência que temos à mão, o
jogamos ao mar. Todo o adubo humano e animal que o mundo perde,
devolvido à terra em vez de ser jogado à água, bastaria para alimentar o
mundo inteiro.
Esses montes de lixo pelos cantos, essas carroças de lama
transportadas à noite pelas ruas, esses horríveis carros de limpeza pública,
esses fétidos escoamentos de lama subterrânea escondidos pela calçada,
sabem o que são? O prado coberto de flores, a grama verdejante, o serpão,
o tomilho, a salva; é a caça, é o gado, o satisfeito mugido dos bois à noite,
é o feno perfumado, é o trigo dourado, é o pão em suas mesas, é o sangue
quente em suas veias, é saúde, é alegria, é vida. Assim o quer essa
misteriosa criação, que é a transformação na terra e a transfiguração no
céu.
Joguem isso no grande cadinho; sua abundância virá dali. A nutrição
dos campos produz o alimento dos homens.
Cada um é mestre em perder essa riqueza, e ainda por cima podem
achar que sou ridículo. Essa seria a obra-prima de sua ignorância.
A estatística calculou que a França, sozinha, joga no Atlântico, pela
boca de seus rios, quinhentos milhões. Notem isto: com esses quinhentos
milhões pagaríamos a quarta parte das despesas do orçamento. A
habilidade do homem é tanta que ele prefere livrar-se desses quinhentos
milhões na sarjeta. É a própria substância do povo que é levada, aqui, gota
a gota, ali, em ondas, pelo miserável vômito dos nossos esgotos nos rios, e
pelo gigantesco vômito dos nossos rios no oceano. Cada golfada das
nossas cloacas custa-nos mil francos. O que produz dois resultados: a terra
empobrecida e a água contaminada. A fome saindo dos sulcos e a doença
saindo do rio.
É notório, por exemplo, como atualmente o Tâmisa está envenenando
Londres.
No que diz respeito a Paris, ultimamente foi necessário mudar a maior
parte das saídas dos esgotos rio abaixo, abaixo da última ponte.
Um duplo aparelho tubular, guarnecido de válvulas e comportas,
aspirando e repelindo, um sistema de drenagem elementar, simples como
o pulmão do homem, e que já está em pleno funcionamento em várias
comunas da Inglaterra, bastaria para levar às nossas cidades a água pura
dos campos, e, para os campos, a rica água das cidades, e esse fácil
vaivém, o mais simples do mundo, conservaria em nosso poder os
quinhentos milhões jogados fora. Mas todos pensam em outra coisa.
O processo atual faz o mal querendo fazer o bem. A intenção é boa, o
resultado é triste. Julga-se purificar a cidade, mas debilita-se a população.
Um esgoto é um mal-entendido. Quando a drenagem, com sua dupla
função, restituindo o que toma, tiver substituído o esgoto, simples
lavagem empobrecedora, então, combinando isso com os dados de uma
nova economia social, o produto da terra será decuplicado, e o problema
da miséria será singularmente atenuado. Acrescentem a isso a supressão
dos parasitismos, e estará resolvido.
Enquanto esperamos, a riqueza pública se vai pelos rios, e as perdas
ocorrem. Perda é a palavra. A Europa se arruína, desse modo, por
desperdício.
Quanto à França, acabamos de mencionar as cifras. Ora, Paris,
contendo a vigésima quinta parte da população total da França, e o esterco
parisiense sendo o mais rico de todos, ficamos aquém da verdade
avaliando em vinte e cinco milhões a parte da perda de Paris nos
quinhentos milhões que a França recusa anualmente. Esses vinte e cinco
milhões, empregados em obras de assistência social e de lazer,
duplicariam o esplendor de Paris. A cidade gasta-os em cloacas. De modo
que se pode dizer que a grande prodigalidade de Paris, sua maravilhosa
festa, sua folie Beaujon,1 sua orgia, seu escoamento de ouro a mãos
abertas, seu fausto, seu luxo, sua magnificência, é seu esgoto.
É dessa forma que, na cegueira de uma péssima economia política,
afoga-se, deixa-se ir por água abaixo e deixa-se perder no abismo o bem-
estar de todos. Deveria haver redes de Saint-Cloud para a fortuna pública.
Economicamente, o fato pode ser resumido assim: Paris, cesto furado.
Paris, essa cidade modelo, padrão das capitais bem construídas da qual
cada povo procura ter uma cópia, essa metrópole do ideal, essa pátria
augusta da iniciativa, do impulso e da tentativa, esse centro e lugar dos
espíritos, essa cidade-nação, colmeia do futuro, composto maravilhoso de
Babilônia e Corinto, faria, do ponto de vista que acabamos de assinalar,
encolher os ombros a um camponês de Fo-Kian.
Imitem Paris, e estarão arruinados.
Quanto ao resto, particularmente no que toca a esse imemorial e
insensato desperdício, a própria Paris imita.
Essas surpreendentes inépcias não são novas; não se trata de uma
tolice jovem. Os antigos agiam como os modernos. “As cloacas de Roma”,
diz Liebig, “absorveram toda a prosperidade do camponês romano”.
Quando os campos de Roma foram arruinados pelo esgoto romano, Roma
esgotou a Itália, e quando colocou a Itália em sua cloaca, ali lançou a
Sicília, depois a Sardenha, depois a África. O esgoto de Roma tragou o
mundo. Essa cloaca mostrava sua voracidade à cidade e ao universo. Urbi
et orbi.2 Cidade eterna, esgoto insondável.
Nessas coisas, assim como em outras, Roma dá o exemplo.
Paris segue esse exemplo com toda a estupidez própria das cidades
inteligentes.
Para as necessidades da operação sobre a qual acabamos de nos
explicar, Paris tem debaixo de si outra Paris: uma Paris de esgotos, que
tem suas ruas, encruzilhadas, praças, largos, becos, artérias e circulação,
que é de lodo, mas subtraída da forma humana.
Pois nada se deve lisonjear, nem mesmo um grande povo; onde há
tudo, há a ignomínia ao lado da sublimidade; e se Paris contém Atenas, a
cidade da luz, Tyr, a cidade do poder, Esparta, a cidade da virtude, Nínive,
a cidade dos prodígios, também contém Lutécia, a cidade da lama.
Aliás, o cunho de seu poder está ali também, e a titânica latrina de
Paris realiza, entre os monumentos, o estranho ideal realizado na
humanidade por alguns homens, tais como Maquiavel, Bacon e Mirabeau;
o grandioso abjeto.
O subsolo de Paris, se o olhar pudesse penetrar sua superfície, teria o
aspecto de uma madrepérola colossal. Uma esponja não tem mais buracos
e sinuosidades do que o torrão de terra de seis léguas de circunferência
sobre a qual repousa a antiga grande cidade. Sem falar nas catacumbas,
que são subterrâneos à parte, sem falar na inextricável rede de canos de
gás, sem contar o vasto sistema tubular de distribuição de água potável,
que vai a todos os chafarizes, só os esgotos formam sob as duas margens
uma prodigiosa rede tenebrosa; labirinto qua tem por fio seu declive.
Ali surge, no úmido nevoeiro, o rato, que parece ser o produto do parto
de Paris.
II. HISTÓRIA ANTIGA DO ESGOTO
Imaginando-se Paris como se uma tampa lhe fosse retirada, a rede
subterrânea dos esgotos, vista de cima, desenhará nas duas margens uma
espécie de grande ramo enxertado no rio. Na margem direita, o esgoto
principal será o tronco desse ramo, os esgotos secundários serão os ramos,
e os becos serão os ramúnculos.
Essa figura é apenas sumária e não de todo exata; o ângulo reto, que é
o habitual nesse gênero de ramificações subterrâneas, é muito raro na
vegetação.
Teremos uma imagem mais aproximada desse estranho plano
geométrico supondo que vemos, estendido em um fundo de trevas, algum
bizarro alfabeto oriental, emaranhado confusamente, e cujas letras
disformes estariam soldadas umas às outras em aparente desordem e como
que ao acaso, ora por seus ângulos, ora por suas extremidades.
Na Idade Média, as latrinas e os esgotos representavam um importante
papel no Baixo Império e no antigo Oriente. Neles nascia a peste, neles
morriam os déspotas. As multidões contemplavam quase com temor
religioso esses leitos de podridão, monstruosos berços da morte. A cova
dos vermes de Benares não é menos vertiginosa do que a cova dos leões da
Babilônia. Teglat-Falasar, no dizer dos livros rabínicos, jurava pelas
latrinas de Nínive. É dos esgotos de Munster que Jean de Leyde fazia
surgir sua falsa lua, e do poço-cloaca de Kekhscheb que seu sósia oriental,
Mokannâ, o profeta velado do Khorassan, fazia surgir seu falso sol.
A história dos homens se reflete na história das cloacas. As gemônias3
contam a história de Roma. O esgoto de Paris foi uma velha coisa
formidável. Foi sepulcro, foi asilo. O crime, a inteligência, o protesto
social, a liberdade de consciência, o pensamento, o roubo, tudo quanto as
leis humanas perseguem ou perseguiram escondeu-se nesse buraco; no
século XIV os maillotins, no século XV os tire-laine, no século XVI os
huguenotes, no século XVII os iluminados de Morin, no século XVIII os
chauffeurs.4 Há cem anos, dali saía a punhalada noturna e ali se refugiava
o assaltante em perigo; o bosque tinha a caverna, Paris tinha o esgoto. A
vadiagem, essa picareria [astúcia] gaulesa, aceitava o esgoto como
sucursal do Pátio dos Milagres,5 e, à noite, astuta e feroz, entrava no
vomitório Maubuée como em uma alcova.
Era muito natural que os que tinham como lugar de trabalho cotidiano
o beco Vide-Gousset ou a rua Coupe-Gorge6 tivessem por domicílio
noturno a pequena ponte do Chemin-Vert ou a marquise Hurepoix. Muitas
lembranças vêm desses lugares. Fantasmas de toda espécie assombram
esses longos corredores solitários; por toda parte, putrefação e miasma;
aqui e ali, um respiradouro onde Villon, do lado de dentro, conversa com
Rabelais, do lado de fora.
Na antiga Paris, o esgoto era o ponto de encontro de todos os
esgotamentos e de todos os experimentos. A economia política vê nele um
simples detrito, a filosofia social vê nele um resíduo.
O esgoto é a consciência da cidade. Tudo para ali converge e ali se
confronta. Naquele lugar lívido, há trevas, mas não há mais segredos. Cada
objeto tem sua forma verdadeira ou, pelo menos, sua forma definitiva. O
monte de lixo tem isso a seu favor, ele não mente. A ingenuidade
refugiou-se ali. A máscara de Basílio ali se encontra, mas dela se veem o
papelão e os cordões, o interior, bem como o exterior, e ela é acentuada
por uma lama honesta. O nariz postiço de Scapin é seu vizinho. Todas as
impurezas da civilização, uma vez fora de serviço, caem nessa cova da
verdade onde desemboca o imenso declive social. Ali desaparecem, porém
dali se espalham. Esse caos é uma confissão. Ali, nada de falsas
aparências, nenhuma maquiagem possível, a imundície tirando sua camisa,
desnudamento absoluto, fim das ilusões e das miragens, nada mais que o
real, fazendo a sinistra figura daquilo que acaba. Realidade e desaparição.
Ali, um fundo de garrafa atesta a embriaguez, a alça de um cesto conta a
vida doméstica; ali, o pedaço de maçã que teve opiniões literárias volta a
ser o pedaço da maçã; a efígie da moeda de cobre reveste-se francamente
de mofo; o escarro de Caifás encontra o vômito de Falstaff; a moeda de
ouro que sai da casa de jogos bate no prego de onde pende o fragmento de
corda do suicida; um feto lívido rola envolto nas lantejoulas que dançaram
na última terça-feira gorda no Ópera, o barrete que julgou os homens acha-
se ao lado de um objeto podre, que foi a saia de Margoton; é mais do que
fraternidade, é intimidade. Tudo o que se maquiava se borra. O ultimo véu
é arrancado. Um esgoto é um cínico. Ele diz tudo.
Essa sinceridade da imundície nos agrada, e repousa a alma. Quando
passamos o tempo sofrendo na Terra o espetáculo de grandes ares que
tomam a razão de Estado, o juramento, a sabedoria política, a justiça
humana, as probidades profissionais, as austeridades circunstanciais, as
togas incorruptíveis, traz alívio entrar em um esgoto e ver a lama que lhe é
própria.
Ao mesmo tempo, isso ensina. Há pouco dissemos, a história passa
pelo esgoto. Os Saint-Barthélemy ali filtram gota a gota entre os
paralelepípedos. Os grandes assassinatos públicos, as carnificinas políticas
e religiosas atravessam esse subterrâneo da civilização e para lá impelem
seus cadáveres. Para o olhar do pensador, todos os assassinos históricos
estão ali, na penumbra hedionda, de joelhos, com um pedaço de sua
mortalha como avental, limpando lugubremente sua obra. Luís XI está ao
lado de Tristan, Francisco I está ao lado de Duprat, Carlos IX ao lado de
sua mãe, Richelieu ao lado de Luís XIII, Louvois ali está, Letellier ali está,
Hébert e Maillard ali estão, raspando as pedras e tentando fazer
desaparecer os vestígios de suas ações. Ouve-se sob essas arcadas a
vassoura desses espectros. Respira-se o fétido enorme das catástrofes
sociais. Veem-se em alguns cantos reflexos avermelhados. Corre ali uma
água terrível onde mãos ensanguentadas foram lavadas.
O observador social deve entrar nessas trevas. Elas fazem parte de seu
laboratório. A filosofia é o microscópio do pensamento. Tudo quer fugir a
ela, mas nada lhe escapa. É inútil tergiversar. Que lado nosso mostraremos
tergiversando? O lado vergonha. A filosofia persegue o mal com seu olhar
probo, não permitindo que se evada no nada. No aniquilamento das coisas
que desaparecem, na diminuição das que se esvaem, ela reconhece tudo.
Reconstrói a púrpura pelos farrapos e a mulher pelos trapos. Com a cloaca
refaz a cidade, com a lama refaz os costumes. Com o caco ela conclui a
ânfora ou o jarro. Reconhece, por uma marca de unha em um pergaminho,
a diferença que separa o judaísmo de Judengasse do judaísmo do Ghetto.
Ela encontra no que resta o que já existiu, o bem, o mal, o falso, o
verdadeiro, a mancha de sangue do palácio, o borrão de tinta da caverna, o
pingo de sebo do lupanar, as provações, as tentações bem acolhidas, as
orgias vomitadas, a dobra que o caráter faz ao se rebaixar, o vestígio da
prostituição nas almas cuja grosseria disso as torna capazes, e sobre as
vestes dos carregadores de Roma a marca da cotovelada de Messalina.7

III. BRUNESEAU
Na Idade Média, o esgoto de Paris era lendário. No século XVI,
Henrique II tentou uma sondagem que abortou. Há menos de cem anos, a
cloaca, como atesta Mercier, era abandonada a si mesma e fazia o que
podia.
Tal era a antiga Paris, entregue às brigas, às indecisões e às tentativas.
Por muito tempo, ela foi bastante estúpida. Mais tarde, 89 mostrou como a
inteligência retorna às cidades. Mas, nos bons velhos tempos, a
inteligência da capital não era grande; não sabia negociar nem moralmente
nem materialmente, nem melhor varrer seu lixo que os abusos. Tudo era
obstáculo, tudo era problema. O esgoto, por exemplo, era refratário a
qualquer itinerário. Não conseguiam orientar-se nos depósitos de lixo mais
do que entender-se na cidade; no alto, o ininteligível, embaixo, o
inextricável; sob a confusão das línguas ficava a confusão dos
subterrâneos; Dédalo superava Babel.
Às vezes, o esgoto de Paris transbordava, como se aquele Nilo
desconhecido subitamente se encolerizasse. Havia, coisa infame,
inundações de esgoto. Em alguns momentos, esse estômago da civilização
digeria mal, a cloaca refluía à garganta da cidade e Paris tinha o ressaibo
de sua lama. Essas semelhanças entre o esgoto e o remorso tinham seu
lado bom; eram avisos, muito mal recebidos, aliás; a cidade indignava-se
com a audácia de seu próprio lodo e não admitia que o lixo voltasse.
Expulsem-no melhor.
A inundação de 1802 é uma das recordações atuais dos parisienses de
oitenta anos. A lama espalhou-se em cruz pela praça des Victoires, onde
está a estátua de Luís XIV; entrou na rua Saint-Honoré pelos dois bueiros
dos Champs-Elysées, na rua Saint-Florentin pelo esgoto Saint-Florentin,
na rua Pierre-à-Poisson pelo esgoto de la Sonnerie, na rua Popincourt pelo
esgoto Chemin-Vert, na rua Roquette pelo esgoto da rua Lappe; cobriu a
sarjeta da rua Champs-Elysées até uma altura de trinta e cinco
centímetros; e ao meio-dia, pela embocadura do Sena, fazendo sua função
em sentido inverso, penetrou na rua Mazarine, na rua de l’Échaudé e na
rua des Marais, onde parou a uma extensão de cento e nove metros,
precisamente a alguns passos da casa onde morara Racine, respeitando, no
século XVII, mais o poeta que o rei. A lama atingiu o máximo de
profundidade na rua Saint-Pierre, onde elevou-se noventa centímetros
acima das lajes do chafariz, e o máximo de extensão na rua Saint-Sabin,
onde espalhou-se pelo comprimento de duzentos e trinta e oito metros.
No começo deste século, o esgoto de Paris era ainda um lugar
misterioso. A lama jamais pode ter boa fama; mas aqui sua má fama ia até
o terror. Paris sabia confusamente que tinha sob si um subterrâneo terrível.
Falava-se dele como desse monstruoso charco de Tebas, onde formigavam
centopeias de quatro metros de comprimento e que poderia servir de
banheira a Beemot.8 As grossas botas dos limpadores não se aventuravam
jamais além de certos pontos conhecidos. Ainda estava-se muito próximo
do tempo em que as carroças de lama, do alto das quais Sainte-Foix
fraternizava com o marquês de Créqui, eram despejadas simplesmente
dentro dos esgotos. Quanto à limpeza, essa função era confiada às
enxurradas, que mais entulhavam do que varriam. Roma ainda deixava
alguma poesia à sua cloaca, chamando-a de Gemônias; Paris insultava a
sua chamando-a de Buraco Fétido. A ciência e a superstição estavam de
acordo em relação ao horror. O Buraco Fétido não repugnava a higiene
mais do que a lenda. O bicho-papão aparecia sob a abóbada fétida do
esgoto Mouffetard; os cadáveres dos Marmousets haviam sido lançados no
esgoto de la Barrillerie; Fagon atribuíra a terrível febre maligna de 1685
ao grande hiato do esgoto du Marais, que permaneceu aberto até 1833 na
rua Saint-Louis, quase defronte ao cartaz do Messager galant. A boca do
esgoto da rua de la Mortellerie era célebre pelas pestes que por ali saíam;
com sua grade de ferro pontiaguda que simulava uma fileira de dentes, ela
era, nessa rua fatal, como uma boca de dragão soprando o inferno sobre os
homens. A imaginação popular condimentava o sombrio ralo parisiense
com alguma hedionda mistura de infinito. O esgoto não tinha fundo. O
esgoto era o barathrum.9 A ideia de explorar essas regiões leprosas não
vinha nem mesmo à polícia. Tentar esse desconhecido, lançar a sonda
nessa sombra, descobrir coisas nesse abismo, quem ousaria? Era
assustador. Contudo, alguém se apresentou. A cloaca teve seu Cristóvão
Colombo.
Um dia, em 1805, em uma das raras aparições do imperador em Paris,
o ministro do interior, um Decrès ou Crétet qualquer, chegou ao despertar
do amo. Ouvia-se no Carroussel o arrastar dos sabres de todos esses
soldados extraordinários da grande república e do grande império; havia
um amontoado de heróis à porta de Napoleão; homens do Reno, de Escaut,
de Adige e do Nilo; companheiros de Joubert, de Desaix, de Marceau, de
Hoche, de Kléber; aeróstatas de Fleurus, granadeiros de Mayence,
pontoneiros de Genes, hussardos já vistos pelas Pirâmides, artilheiros
atingidos pelas balas de Junot, couraçados que haviam tomado de assalto a
frota ancorada no Zuyderzée; alguns haviam seguido Bonaparte na ponte
de Lodi; outros haviam acompanhado Murat na trincheira de Mantoue,
outros ainda haviam antecedido Lannes na estrada de Montebello. Todo o
exército de então ali estava, no pátio das Tulherias, representado por uma
esquadra ou um pelotão, vigiando o sono de Napoleão; e era a época
esplêndida em que o grande exército tinha atrás de si Marengo e diante de
si Austerlitz.
— Sire — disse o ministro do interior a Napoleão —, ontem vi o
homem mais intrépido de vosso império.
— Quem é esse homem? — disse bruscamente o imperador. — E que
fez ele?
— Ele deseja fazer uma coisa, sire.
— Qual?
— Visitar os esgotos de Paris.
Esse homem existia e chamava-se Bruneseau.

IV. DETALHES IGNORADOS


A visita foi realizada. Foi uma campanha temível, uma batalha noturna
contra a peste e a asfixia. Ao mesmo tempo, foi uma viagem de
descobertas. Um dos sobreviventes dessa exploração, trabalhador
inteligente, então muito jovem, contava ainda, há apenas alguns anos, os
curiosos detalhes que Bruneseau achou melhor omitir em seu relatório ao
delegado de polícia, como indignos do estilo administrativo. Os processos
de desinfecção naquela época eram ainda muito rudimentares. Assim que
Bruneseau transpôs as primeiras articulações da rede subterrânea, oito dos
vinte trabalhadores que o acompanhavam se recusaram a ir mais adiante.
A operação era complicada; a visita acarretava a limpeza; portanto, era
necessário limpar e ao mesmo tempo andar; anotar as entradas de água,
contar as grades e os bueiros, especificar as ramificações, indicar as
correntes nos pontos de divisão, reconhecer as circunscrições respectivas
das diversas bacias, sondar os pequenos esgotos ligados ao esgoto
principal, medir a altura de cada corredor, e a largura, tanto no início das
abóbadas quanto na base da plataforma de comportas, enfim, determinar
as ordenadas de nível diretamente em cada entrada de água, seja da base
do esgoto, seja do solo da rua. Avançava-se com dificuldade. Não era raro
que as escadas de acesso mergulhassem em um metro de lodo. As
lanternas agonizavam nos miasmas. De vez em quando, era preciso
carregar um limpador desmaiado. Em certos lugares, precipício. O solo
havia afundado, as lajes haviam desmoronado, o esgoto transformara-se
em poço sem fundo, não se encontrava mais firmeza; um homem
desapareceu bruscamente; tiveram de fazer um grande esforço para retirá-
lo. Seguindo os conselhos de Fourcroy, acendiam, de distância em
distância, em lugares suficientemente desinfetados, grandes caixas cheias
de estopa embebida em resina. Em alguns lugares, a muralha estava
coberta de fungos disformes que pareciam tumores; a própria pedra
parecia doente naquele ambiente irrespirável.
Bruneseau efetuou sua exploração de cima para baixo. No ponto de
divisão dos dois canos de água de Grand-Hurleur, decifrou, em uma pedra
saliente, a data de 1550; essa pedra indicava o limite em que parara
Philibert Delorme, encarregado por Henrique II de visitar os canais
subterrâneos de Paris. Essa pedra era a marca do século XVI no esgoto;
Bruneseau encontrou a mão de obra do século XVII no cano de Ponceau e
no cano da rua Vieille-du-Temple, instalados entre os anos de 1600 e 1650,
e a mão de obra do século XVIII na seção oeste do canal coletor, aberto e
coberto em 1740. Essas duas obras, especialmente a menos antiga, a de
1740, estavam mais arruinadas e decrépitas que a alvenaria do esgoto
central, que datava de 1412, época em que a valeta de água viva de
Ménilmontant foi elevada à dignidade de Grande Esgoto de Paris,
promoção análoga à de um camponês que se tornasse primeiro camareiro
do rei; uma espécie de Gros-Jean transformado em Lebel.10
Julgou-se reconhecer, aqui e ali, principalmente sob o Palácio de
Justiça, alvéolos de antigos cárceres, construídos no próprio esgoto. In
pace vergonhosos. De uma dessas celas pendia uma argola de ferro. Todas
foram muradas. Alguns dos achados eram bizarros; entre outros, o
esqueleto de um orangotango, desaparecido do Jardim Botânico em 1800,
desaparecimento provavelmente ligado à famosa e incontestável aparição
do diabo na rua des Bernardins, no último ano do século XVIII. O pobre
diabo acabou por afogar-se no esgoto.
Sob o longo corredor curvo que chega a Arche-Marion, um cesto de
trapeiro, perfeitamente conservado, fez a admiração dos entendidos. Por
toda parte, o lodo que os limpadores, por fim, manuseavam
intrepidamente, encheu-se de objetos preciosos, joias de ouro e prata,
pedrarias, moedas. Um gigante que tivesse peneirado essa cloaca teria em
sua peneira a riqueza dos séculos. No ponto de divisão das duas
ramificações da rua du Temple e da rua Sainte-Avoye, recolheram uma
singular medalha huguenote de cobre, trazendo de um lado um porco
coberto com um chapéu de cardeal, e, do outro, um lobo de tiara na
cabeça.
A descoberta mais surpreendente foi a que se fez à entrada do Grand
Égout [Grande Esgoto]. Outrora, essa entrada fora fechada por uma grade
da qual só restavam as dobradiças. De uma dessas dobradiças pendia uma
espécie de farrapo informe e sujo que, provavelmente detido ao passar,
flutuava na sombra e acabava de se desfiar. Bruneseau aproximou sua
lanterna e examinou o farrapo. Era um pedaço de finíssima cambraia, e em
uma das pontas menos dilacerada que o resto distinguia-se uma coroa
heráldica bordada por cima destas sete letras: LAVBESP. A coroa era uma
coroa de marquês e as sete letras significavam Laubespine. Reconheceram
que aquele objeto que tinham sob suas vistas era um pedaço da mortalha
de Marat. Marat, na sua juventude, tivera os seus amores. Era a época em
que ele fazia parte da casa do conde de Artois, na qualidade de veterinário.
Desses amores, historicamente comprovados, com uma senhora de elevada
posição, restara-lhe aquele lençol. Destroço ou lembrança. Quando
morreu, como aquele era o único lençol fino que tinha em casa, nele o
enterraram. Mulheres idosas envolveram para ir ao túmulo, nesse lençol
onde houvera voluptuosidade, o trágico Amigo do Povo. Bruneseau passou
adiante. Deixaram o farrapo onde estava, não o destruíram. Por desprezo
ou respeito? Marat merecia ambos. Além disso, o destino estava
claramente impresso ali para que se hesitasse em tocá-lo. Aliás, é preciso
deixar às coisas do sepulcro o lugar que elas escolhem. Em suma, a
relíquia era estranha. Uma marquesa dormira ali; Marat apodrecera ali; ela
atravessara o Panthéon para chegar aos ratos do esgoto. Esse trapo de
alcova, do qual Watteau teria outrora alegremente desenhado todas as
pregas, acabara por ser digno do olhar fixo de Dante.
A visita completa da canalização das imundícies subterrâneas de Paris
durou sete anos, de 1805 a 1812. Enquanto caminhava, Bruneseau
designava, dirigia e concluía um trabalho considerável; em 1808, baixava
a grade de Ponceau, e, criando por toda parte novas linhas, em 1809,
levava o esgoto sob a rua Saint-Denis até a fonte de Innocents; em 1810,
sob a rua Froidmanteau e sob a Salpêtrière; em 1811, sob a rua Neuve-des-
Petits-Pères, sob a rua du Mail, sob a rua de l’Écharpe, sob a praça Royale;
em 1812, sob a rua de la Paix e sob a calçada de Antin. Ao mesmo tempo,
mandava desinfetar e limpar toda a rede. A partir do segundo ano,
Bruneseau teve o auxílio de seu genro Nargaud.
Foi assim que, no princípio deste século, a velha sociedade lavou o
subsolo e fez a limpeza de seu esgoto. Pelo menos alguma coisa foi limpa.
Tortuoso, cheio de fendas, sem calçamento, rachado, cortado por
charcos, dobrado em curvas bizarras, subindo e descendo sem lógica,
fétido, selvagem, cruel, submerso na escuridão, com cicatrizes nas lajes e
feridas nas paredes, horrível, assim era visto retrospectivamente o antigo
esgoto de Paris. Ramificações em todos os sentidos, cruzamentos de
canos, encruzilhadas, rugas, bifurcações, estrelas, como nas sapas, becos,
abóbadas salitrosas, escoadouros infectos, destilações doentias nas
paredes, gotas caindo do teto, trevas; nada igualava o horror dessa velha
cripta em chagas, aparelho digestivo da Babilônia, antro, fossa, abismo
cortado por ruas, covil titânico onde o espírito julga ver vagar, por entre as
sombras, nessa imundície que foi esplendor, essa enorme toupeira cega, o
passado.
Esse, porém, repetimos, era o esgoto de outrora.

V. PROGRESSO ATUAL
Hoje o esgoto é limpo, frio, reto, correto. Realiza quase o ideal do que
na Inglaterra se entende pela palavra “respectable” [respeitável]. É
conveniente e acinzentado; tão distinto que se poderia dizer elegante.
Parece um fornecedor promovido a conselheiro de estado. Dentro dele, vê-
se quase uma claridade. O lodo se comporta decentemente. À primeira
vista, poderia facilmente ser tomado por um desses corredores
subterrâneos tão comuns outrora, e tão úteis às fugas dos monarcas e dos
príncipes, no antigo bom tempo “em que o povo amava seus reis”. O
esgoto atual é um belo esgoto, em que reina o estilo puro; o clássico
alexandrino retilíneo, que, expulso da poesia, parece ter-se refugiado na
arquitetura, parece misturado em todas as pedras dessa extensa abóbada,
tenebrosa e esbranquiçada; cada escoadouro é uma arcada; a rua de Rivoli
faz escola até dentro da cloaca. De resto, se a linha geométrica está de
algum modo em seu lugar, é certamente sobre o fosso estercorário de uma
grande cidade. Ali, tudo deve ser subordinado ao caminho mais curto.
Atualmente o esgoto tomou certo aspecto oficial. Os próprios relatórios da
polícia, dos quais às vezes se torna objeto, não lhe faltam mais ao respeito.
As palavras que o caracterizam na linguagem administrativa são elevadas
e dignas. O que antes era chamado intestino, hoje se chama galeria; o que
era chamado buraco, hoje se chama olho. Villon não reconheceria mais sua
antiga morada. Essa rede de subterrâneos continua tendo sua imemorável
população de roedores, mais pululante do que nunca; de tempos em
tempos, um rato, velhos bigodes, arrisca sua cabeça à janela do esgoto e
examina os parisienses; mas essa própria bicharada infame se aprisiona,
satisfeita com seu palácio subterrâneo. A cloaca já não tem nada de sua
primitiva ferocidade. A chuva, que antes sujava os esgotos, agora os lava.
Todavia, não sejam tão confiantes. Ainda é habitado por miasmas. É mais
hipócrita do que irrepreensível. A delegacia de polícia e a comissão de
salubridade fazem de tudo. Mas, apesar de todos os procedimentos de
desinfecção, exala ainda um vago cheiro suspeito, como Tartufo depois da
confissão.
Convenhamos que, assim como a limpeza é uma homenagem que a
cloaca tributa à civilização, e como, deste ponto de vista, a consciência de
Tartufo é um progresso sobre a cavalariça de Augias, é certo que o esgoto
de Paris melhorou.
É mais que um progresso; é uma transmutação. Entre o esgoto antigo e
o esgoto atual, há uma revolução. Quem fez essa revolução?
O homem que todos esquecem, e que chamamos de Bruneseau.

VI. PROGRESSO FUTURO


Cavar o esgoto de Paris não foi um trabalho pequeno. Os dez últimos
séculos nisso trabalharam sem que se conseguisse terminá-lo, do mesmo
modo que não se conseguiu terminar Paris. Realmente, o esgoto recebe
todos os contragolpes do crescimento de Paris. É uma espécie de pólipo
tenebroso de mil antenas que cresce na parte de baixo, ao mesmo tempo
que a cidade na parte de cima. Todas as vezes que a cidade abre uma rua, o
esgoto estende um braço. A antiga monarquia construíra apenas vinte e
três mil e trezentos metros de esgoto; era essa a situação de Paris em 1º de
janeiro de 1806. A partir dessa época, da qual logo voltaremos a falar, a
obra foi proveitosa e energicamente retomada e continuada; Napoleão
construiu, são curiosos estes números, quatro mil oitocentos e quatro
metros; Luís XVIII, cinco mil setecentos e nove; Carlos X, dez mil
oitocentos e trinta e seis; Luís Filipe, oitenta e nove mil e vinte; a
república de 1848, vinte e três mil trezentos e oitenta e um; o regime atual,
setenta mil e quinhentos; hoje o total é de duzentos e vinte e seis mil
seiscentos e dez; sessenta léguas de esgoto; entranhas enormes de Paris.
Ramificação obscura sempre trabalhando; construção ignorada e imensa.
Como vemos, o dédalo subterrâneo de Paris está atualmente mais que
decuplicado em relação ao que era no princípio deste século. É impossível
imaginar tudo o que foi preciso de esforço e perseverança para levar essa
cloaca ao ponto da perfeição relativa em que atualmente se encontra. Só a
muito custo a velha jurisdição monárquica, e, nos últimos dez anos do
décimo oitavo século, a municipalidade revolucionária conseguiram abrir
as cinco léguas de esgotos que existiam antes de 1806. Todos os tipos de
obstáculos dificultavam essa operação, alguns próprios da natureza do
solo, outros inerentes aos próprios preconceitos da população laboriosa de
Paris. Paris acha-se edificada sobre um terreno estranhamente rebelde à
picareta, à enxada, à sonda, ao trabalho humano. Nada mais difícil de
perfurar e penetrar que essa formação geológica à qual se sobrepõe a
maravilhosa formação histórica chamada Paris; assim que, sob uma forma
qualquer, o trabalho se inicia e se aventura nessa camada de aluviões,
abundam as resistências subterrâneas. São argilas líquidas, fontes vivas,
rochas duras, aquele tipo de lodo mole e profundo que a ciência
especializada chama de mostarda. A picareta avança trabalhosamente nas
lâminas calcáreas alternadas com filetes de greda muito delgados e com
camadas xistosas incrustadas de cascas de ostras contemporâneas dos
oceanos pré-adamitas. Às vezes, um veio de água rompe bruscamente uma
abóbada iniciada e inunda os trabalhadores; ou é uma porção de marga que
aparece precipitando-se com a fúria de uma catarata e quebrando, como se
fosse vidro, as mais grossas vigas de escoramento. Recentemente, em la
Villette, sem interromper a navegação e sem esvaziar o canal, quando foi
necessário fazer passar o esgoto coletor por baixo do canal Saint-Martin,
uma fenda abriu-se no leito do canal, a água surgiu subitamente no
canteiro subterrâneo, e as bombas de esgoto foram insuficientes para dar-
lhe vazão; foi necessário enviar um mergulhador para procurar a fenda,
que se encontrava à entrada da bacia grande, e tapá-la, o que foi feito com
muita dificuldade. Em outros lugares, perto do Sena, e até mesmo longe do
rio, como por exemplo em Belleville, Grande-Rue e passagem Lunière,
encontramos areias movediças, onde um homem pode desaparecer em um
instante. Acrescentem a asfixia pelos miasmas, o soterramento devido aos
desmoronamentos, os desabamentos repentinos. Acrescentem o tifo, que
lentamente impregna os trabalhadores. Atualmente, após ter cavado a
galeria de Clichy, com valeta para receber um coletor principal de água do
Ourcq, trabalho executado a dez metros de profundidade, após ter, por
entre desabamentos, auxiliado por escavações, muitas vezes pútridas, e por
escoramentos, canalizado la Bièvre do bulevar de l’Hopital até o Sena,
após ter, para livrar Paris das águas torrenciais de Montmartre e dar vazão
a essa água fluvial de nove hectares que estagnava perto da barreira de
Martyrs, construído a linha de esgotos que vai da barreira Blanche até a
estrada de Aubervilliers, em quatro meses, dia e noite, a uma profundidade
de onze metros, após ter, algo que não fora visto ainda, executado
subterrâneamente um esgoto na rua Barre-du-Bec, sem abrir fossas, seis
metros abaixo do solo, o condutor Monnot morreu. Após ter canalizado
três mil metros de esgotos em todos os pontos da cidade, da rua
Traversière-Saint-Antoine à rua de l’Ourcine, após ter livrado das
inundações pluviais a esquina Censier-Mouffetard através da ramificação
do Arbalète, após ter construído o esgoto Saint-Georges com alicerces de
cimento em areias movediças, após ter dirigido o difícil rebaixamento de
nível da grade do entroncamento Notre-Dame-de–Nazareth, o engenheiro
Duleau morreu. Não existem relatórios para esses atos heroicos, todavia
mais úteis que a matança estúpida dos campos de batalha.
Em 1832, os esgotos de Paris estavam muito longe de ser o que são
hoje. Bruneseau dera o impulso, mas foi preciso que viesse o cólera para
determinar a vasta reconstrução que foi feita desde então. É surpreendente,
por exemplo, que em 1821 parte do esgoto central chamado Grand Canal,
como em Veneza, ainda permanecesse a céu aberto na rua des Gourdes. Foi
somente em 1823 que a cidade de Paris encontrou em seus bolsos os
duzentos e sessenta e seis mil, oitenta francos e seis cêntimos necessários
para cobrir aquela indecência. Os três poços absorventes, Combat, Cunette
e Saint-Mandé, com seus desaguadouros, seus aparelhos, suas aberturas e
suas ramificações depuratórias, datam apenas de 1836. O depósito de lixo
intestinal de Paris foi totalmente refeito, e, como já dissemos, mais que
decuplicou há um quarto de século.
Há trinta anos, na época da insurreição de 5 e 6 de junho, em muitos
lugares existia ainda praticamente o antigo esgoto. Um grande número de
ruas, hoje niveladas, eram então calçadas com fendas. Frequentemente,
via-se no ponto em declive onde chegavam as vertentes de uma rua ou de
uma encruzilhada grossas grades quadradas, com grossas barras cujo ferro
reluzia polido pelos pés da multidão, escorregadias e perigosas para as
carruagens, e que provocavam a queda dos cavalos. A língua oficial das
pontes e calçadas dava a esses pontos-declives e a essas grades o nome de
cassis. Em 1832, a antiga cloaca gótica ainda mostrava cinicamente sua
bocarra escancarada em diversas ruas: rua de l’Étoile, rua Saint-Louis, rua
du Temple, rua Vieille-du-Temple, rua Notre-Dame-de-Nazareth, rua
Folie-Méricourt, cais des Fleurs, rua du Petit-Musc, rua de Normandie, rua
Pont-aux-Biches, rua des Marais, bairro Saint-Martin, rua Notre-Dame-
des-Victoires, bairro Montmartre, rua Grange-Batelière, Champs Elysées,
rua Jacob, rua de Tournon. Eram enormes hiatos de pedras, algumas vezes
rodeadas por cercas, uma afronta monumental.
Paris, em 1806, ainda tinha quase a mesma cifra de esgotos constatada
em maio de 1663, cinco mil trezentos e vinte e oito metros. Depois de
Bruneseau, em 1º de janeiro de 1832, havia quarenta mil e trezentos
metros. De 1806 a 1831, foram construídos anualmente, em média,
setecentos e cinquenta metros; desde então, todos os anos foram
construídos oito ou até mesmo dez mil metros de galerias, em alvenaria de
pequenos tijolos banhados em cal hidráulico e sobre fundações de
concreto. A duzentos francos cada metro, as sessenta léguas de esgoto da
Paris atual representam quarenta e oito milhões.
Além do progresso econômico que mencionamos no princípio, graves
problemas de higiene pública acham-se ligados a essa imensa questão, o
esgoto de Paris.
Paris está entre dois lençóis, um lençol de água e um lençol de ar. O
lençol de água, situado a uma grande profundidade subterrânea, mas já
explorado por duas perfurações, provém da camada de arenito verde,
situada entre a greda e o calcário jurássico; essa camada pode ser
representada por um disco de vinte e cinco léguas de raio; inúmeros rios e
regatos ali deságuam; em um copo de água do poço de Grenelle bebe-se o
Sena, o Marne, o Yonne, o Oise, o Aisne, o Cher, o Vienne e o Loire. O
lençol de água é salubre; primeiro vem do céu e depois da terra; a camada
de ar é insalubre, ela vem do esgoto. Todos os miasmas da cloaca se
misturam à respiração da cidade; daí o seu mau hálito. O ar respirado
acima de uma estrumeira, isso foi cientificamente constatado, é mais puro
do que o ar que se respira em Paris. Virá o tempo em que, com o auxílio do
progresso, o aperfeiçoamento dos aparelhos e novas ideias, o lençol de
água será usado para purificar a camada de ar. Quer dizer, para lavar os
esgotos. Sabe-se que, por lavagem do esgoto entendemos a restituição da
lama à terra; reenvio do esterco ao solo e do adubo aos campos. Com esse
simples fato, haverá, para toda a comunidade social, a diminuição da
miséria e o aumento da saúde. Nesse momento, a irradiação das doenças
de Paris estende-se a cinquenta léguas em volta do Louvre, tomado como
centro dessa roda pestilenta.
Poderíamos dizer que, há dez séculos, a cloaca é a doença de Paris. O
esgoto é o vício que a cidade tem no sangue. O instinto popular nunca se
enganou. O ofício de limpador de esgotos era outrora quase tão perigoso e
quase tão repugnante ao povo quanto o ofício de esfolador de animais, por
tanto tempo fustigado pelo horror e abandonado aos carrascos. Era
necessário um alto salário para que algum pedreiro se decidisse a
desaparecer nessa fétida sapa; a escada do poceiro hesitava em mergulhar;
dizia-se proverbialmente: descer ao esgoto é descer à sepultura; e todo
tipo de lendas hediondas, já o dissemos, cobriam de terror essa pia
colossal; latrina temida, marcada tanto pelas revoluções do globo como
pelas revoluções dos homens, e onde se encontram vestígios de todos os
cataclismos, da concha diluviana aos farrapos de Marat.

__________________________
1 Parque de atrações e diversões localizado em Paris.
2 “À cidade e ao universo”, palavras que iniciam e designam a grande bênção papal.
3 Em Roma, local onde eram expostos e executados os criminosos.
4 Maillotins — revoltosos armados com clavas de ferro; tire-laine — ladrões noturnos de
agasalhos; huguenots — nome injurioso dado aos calvinistas; chauffeurs — bandidos que faziam
tostar os pés de suas vítimas para que dissessem onde escondiam seu dinheiro.
5 Nome do bairro dos malandros, cujas falsas enfermidades, usadas para conseguir caridade
pública, desapareciam “por milagre” quando para lá retornavam.
6 Beco Esvazia-Bolso; rua Corta-Garganta.
7 Esposa do imperador romano Claúdio; famosa por seus costumes deploráveis.
8 Fera enorme e extraordinária descrita no Livro de Jó.
9 Profunda fossa natural onde eram jogados os corpos dos condenados à morte de Atenas.
10 Gros-Jean, um joão-ninguém; Lebel, sobrenome tradicional.
LIVRO III
A LAMA, MAS A ALMA

I. A CLOACA E SUAS SURPRESAS


ERA NO esgoto de Paris que Jean Valjean se encontrava.
Mais uma semelhança de Paris com o mar. Como no oceano, ali o
mergulhador pode desaparecer.
A transição era incrível. Em pleno centro da cidade, Jean Valjean saíra
da cidade, e num piscar de olhos, o tempo de erguer uma tampa e de voltar
a fechá-la, ele passara da luz do dia para a escuridão completa, do meio-
dia para a meia-noite, do barulho para o silêncio, do turbilhão dos trovões
para a estagnação do túmulo, e, por uma peripécia bem mais prodigiosa
ainda que a da rua Polonceau, do mais extremo perigo para a mais absoluta
segurança.
Queda súbita em um subterrâneo; desaparecimento nos alçapões de
Paris; deixar aquela rua, onde a morte estava por toda parte, por essa
espécie de sepulcro onde havia vida, foi um momento estranho. Ele
permaneceu alguns segundos como que atordoado, escutando, estupefato.
O alçapão salvador abrira-se subitamente sob ele. A bondade celeste como
que o apanhara traiçoeiramente. Adoráveis ciladas da Providência!
Só que o ferido não se mexia e Jean Valjean não sabia se o que ele
transportava nessa fossa era um vivo ou um morto.
Sua primeira sensação foi de cegueira. Bruscamente não viu mais
nada. Pareceu-lhe também que, em um minuto, ficara surdo. Não ouvia
mais nada. A frenética tempestade de mortes que se desencadeava alguns
metros acima dele, como já dissemos, chegava até ele diminuída e
indistinta como o rumor em uma grande profundeza, graças à espessura de
terra que o separava dela. Sentia firmeza sob seus pés; eis tudo, mas isso
bastava. Estendeu um braço, depois o outro, tocou a parede dos dois lados,
e percebeu que o corredor era estreito; escorregou e percebeu que a laje
estava molhada. Avançou um pé com precaução, temendo um buraco, um
desaguadouro, um abismo qualquer; constatou que a laje se prolongava.
Uma baforada fétida o advertiu sobre o lugar em que estava.
Ao final de alguns instantes, não estava mais cego. Um pouco de luz
vinha pelo respiradouro por onde ele havia entrado e seus olhos
acostumaram-se àquele porão. Começou a distinguir alguma coisa. O
corredor em que se enterrara, nenhuma outra palavra exprime melhor a
situação, estava murado atrás dele. Era um desses becos sem saída, que a
linguagem especializada chama de ramificações. Diante dele havia outra
parede, uma parede de trevas. A claridade da abertura extinguia-se a dez
ou doze passos do ponto em que Jean Valjean se encontrava, e mal lançava
um pálido clarão sobre alguns metros da parede úmida do esgoto. Mais
adiante, a opacidade era maciça; penetrar ali parecia horrível e a entrada
tinha aspecto devorador. Contudo, era possível penetrar naquela muralha
de bruma, e era necessário. Era, inclusive, preciso apressar-se. Jean
Valjean lembrou-se de que aquela grade, percebida por ele debaixo das
pedras, podia também ser percebida pelos soldados, e que tudo dependia
desse acaso. Eles também podiam descer ao poço e revistá-lo. Não havia,
portanto, um minuto a perder. Tinha colocado Marius no chão, recolheu-o,
essa também é a verdadeira palavra, tornou a colocá-lo sobre os ombros e
começou a andar. Entrou resolutamente naquela escuridão.
A verdade é que eles não estavam tão a salvo quanto Jean Valjean
acreditava. Perigos não menores e de um outro gênero talvez os
aguardassem. Após o turbilhão fulgurante do combate, a caverna dos
miasmas e das armadilhas; após o caos, a cloaca. Jean Valjean caíra de um
dos círculos do inferno em outro.
Depois de dar cinquenta passos, foi preciso parar. Uma pergunta
apresentou-se. O corredor dava para outra passagem transversal. Ali se
ofereciam dois caminhos. Qual deles seguir? Deveria virar à esquerda ou à
direita? Como se orientar naquele labirinto negro? Esse labirinto, como já
mencionamos, tem um fio: é seu declive. Seguir o declive é ir para o rio.
Jean Valjean compreendeu isso imediatamente.
Disse consigo que provavelmente se encontrava no esgoto dos
depósitos; que, se ele escolhesse a esquerda, seguindo o declive, chegaria
em menos de um quarto de hora a algum desaguadouro do Sena entre a
Ponte au Change e a Ponte Neuf, isto é, apareceria em pleno dia no ponto
mais populoso de Paris. Talvez saíssem em algum bueiro de um
cruzamento. Estupor dos transeuntes ao verem surgir da terra, sob seus
pés, dois homens ensanguentados. Chegada dos guardas da cidade, tomada
das armas no posto de guarda mais próximo. Seriam presos antes de sair.
Era melhor embrenhar-se naquele dédalo, confiar naquele negrume, e
entregar-se nas mãos da Providência quanto à saída.
Subiu o declive e tomou a direita.
Quando ultrapassou o ângulo da galeria, o longínquo clarão do bueiro
desapareceu, a cortina de escuridão caiu novamente sobre ele e voltou a
ficar cego. Nem por isso deixou de prosseguir, e tão rapidamente quanto
pôde. Os dois braços de Marius estavam em volta de seu pescoço e os pés
pendiam atrás dele. Segurava os dois braços com uma só mão e com a
outra apalpava a parede. A face de Marius tocava a sua e nela grudava pois
estava ensanguentada. Ele sentia escorrer sobre ele e penetrar em suas
roupas um riacho morno que provinha de Marius. Entretanto, um calor
úmido em sua orelha, que tocava a boca do ferido, indicava respiração e,
consequentemente, vida. O corredor por onde Jean Valjean agora
caminhava era menos estreito do que o primeiro. Jean Valjean avançava
com grande dificuldade. As chuvas do dia anterior não haviam escoado de
todo e formavam uma pequena enxurrada no centro da galeria, e ele era
obrigado a encostar-se na parede para não molhar os pés. Assim
caminhava tenebrosamente. Ele se assemelhava aos seres noturnos que
tateiam o invisível, subterraneamente perdidos nas veias das sombras.
Porém, pouco a pouco, fosse porque alguns respiradouros longínquos
derramassem alguma claridade flutuante no meio daquela cerração opaca,
fosse porque seus olhos já estivessem acostumados à escuridão, começou a
enxergar vagamente, e voltou a distinguir, de forma confusa, ora a parede
em que tocava, ora a abóbada por baixo da qual passava. As pupilas
dilatam-se na escuridão e por fim acabam encontrando claridade, da
mesma forma que a alma se dilata no sofrimento e acaba descobrindo
Deus.
Orientar-se era difícil.
O traçado dos esgotos repercute, por assim dizer, o traçado das ruas
que lhe ficam sobrepostas. Paris, naquele tempo, possuía duas mil e
duzentas ruas. Imagine-se o que era esta floresta de ramos tenebrosos
chamada esgoto. O sistema de esgotos existente nessa época, de ponta a
ponta, daria uma extensão de onze léguas. Dissemos acima que a rede
atual, graças à extrema atividade dos últimos trinta anos, não tinha menos
de sessenta léguas.
Jean Valjean começou por se enganar. Acreditou que estava sob a rua
Saint-Denis, e era uma pena que não estivesse. Há, sob a rua Saint–Denis,
um velho esgoto de pedra, que data de Luís XIII e que vai dar diretamente
no esgoto coletor chamado Grand Égout, tendo apenas uma única curva, à
direita, na altura do antigo Pátio dos Milagres, e uma única ramificação, o
esgoto Saint-Martin, cujos quatro braços se cortam em forma de cruz. Mas
o bueiro da Petite-Truanderie, cuja entrada ficava próxima da taverna
Corinthe, jamais teve comunicação com o subterrâneo da rua Saint-Denis;
ele termina no esgoto de Montmartre, e era ali que Jean Valjean havia
entrado. Ali, as chances de se perder abundavam. O esgoto de Montmartre
é um dos mais emaranhados da antiga rede. Felizmente, Jean Valjean
deixara atrás de si o esgoto dos depósitos, cujo plano geométrico parece
um sem-número de mastros emaranhados; mas tinha pela frente mais de
um ponto embaraçoso e mais de uma esquina — pois são ruas —
oferecendo-se na escuridão como pontos de interrogação; em primeiro
lugar, à sua esquerda, o vasto esgoto Plâtrière, espécie de quebra-cabeça
chinês, impelindo e embaralhando seu caos de T e Z sob a sede dos
Correios e sob a cúpula do mercado de trigo até o Sena, onde termina em
Y; em segundo lugar, à sua direita, o corredor curvo da rua du Cadran com
seus três dentes, que são outros tantos becos sem saída; em terceiro, à sua
esquerda, a ramificação du Mail, complicada, quase já na entrada, por uma
espécie de bifurcação, e indo, de ziguezague em ziguezague, terminar na
grande cripta aberta do Louvre, cheia de entroncamentos e ramificações
em todos os sentidos; finalmente, à direita, o corredor sem saída da rua
des Jeûneurs, sem contar os pequenos redutos aqui e ali, antes de chegar ao
esgoto central, o único que poderia conduzi-lo a alguma saída
suficientemente distante para que fosse segura.
Se Jean Valjean tivesse alguma noção de tudo quanto indicamos aqui,
perceberia rapidamente, simplesmente apalpando a parede, que não se
encontrava na galeria subterrânea da rua Saint-Denis. Em vez da antiga
pedra talhada, em vez da antiga arquitetura, altiva e régia até mesmo
dentro do esgoto, com revestimentos e alicerces de granito e argamassa de
cal grossa, e que custava oitocentas libras o metro, teria sentido sob sua
mão o bom preço contemporâneo, o expediente econômico, a alvenaria
cimentada com argamassa hidráulica sobre camadas de betume, que custa
duzentos francos o metro, a construção burguesa dita de pequenos
materiais; mas ele não sabia de nada disso.
Caminhava para frente, com ansiedade, mas com calma, sem nada ver,
sem nada saber, mergulhado no acaso, isto é, submerso na Providência.
Gradativamente, temos de dizer, um certo horror apoderava-se dele. A
sombra que o envolvia entrava em seu espírito. Caminhava em um
enigma. Esse aqueduto da cloaca é temível; entrecruza-se
vertiginosamente. É uma coisa lúgubre estar preso nessa Paris de trevas.
Jean Valjean era obrigado a achar e quase a inventar seu caminho sem
vê-lo. Nesse desconhecido, cada passo que arriscava podia ser o último.
Como sairia dali? Acharia uma saída? Conseguiria achá-la a tempo? Essa
colossal esponja subterrânea com alvéolos de pedra se deixaria penetrar e
atravessar? Encontraria algum inesperado nó de escuridão? Chegaria ao
inextricável e ao inacessível? Marius morreria ali de hemorragia, e ele de
fome? Acabariam por se perder ali, os dois, e por se tornarem dois
esqueletos em algum canto daquela escuridão? Não sabia. Fazia todas
essas perguntas a si mesmo, e não sabia responder. O intestino de Paris é
um precipício. Como o profeta, ele estava dentro da barriga do monstro.
De repente, teve uma surpresa. No momento menos esperado, e sem
haver cessado de caminhar em linha reta, percebeu que já não subia: a
água da valeta batia-lhe nos calcanhares, ao invés de passar pelas pontas
dos seus pés. O esgoto agora descia. Por quê? Chegaria de súbito ao Sena?
Esse perigo era grande, mas o risco de recuar era ainda maior. Continuou
avançando.
Não era em direção ao Sena que ele estava indo. A lombada que o solo
de Paris apresenta na margem direita escoa uma de suas vertentes no Sena
e a outra no Grand Égout. A crista dessa lombada, que determina a divisão
das águas, desenha uma linha muito caprichosa. O ponto culminante, que é
o lugar de divisão das águas, fica, no esgoto Sainte-Avoye, além da rua
Michelle-Comte, no esgoto do Louvre, perto dos bulevares, e, no esgoto de
Montmartre, próximo aos depósitos. Era nesse ponto culminante que Jean
Valjean havia chegado. Ele se dirigia ao esgoto central; estava no caminho
certo. Mas não sabia disso.
Cada vez que encontrava alguma ramificação, apalpava os ângulos, e
se achasse a abertura que se oferecia mais estreita que o corredor em que
se encontrava, não entrava e continuava seu caminho, julgando, com razão,
que todo caminho mais estreito deveria terminar em um beco sem saída, o
que só serviria para afastá-lo de seu objetivo, isto é, da saída. Evitou assim
a quádrupla armadilha preparada na escuridão pelos quatro dédalos que
enumeramos.
Em certo momento, reconheceu que saía de sob a parte de Paris
petrificada pela revolta, onde as barricadas haviam suprimido a circulação,
e que entrava embaixo da Paris viva e normal. Subitamente, acima de sua
cabeça, ouviu como que um ruído de trovão, longínquo, mas contínuo. Era
o rodar das carruagens.
Ele caminhava aproximadamente havia meia hora, pelo menos
segundo seus cálculos, e não pensara em descansar; somente trocara a mão
com que segurava Marius. A escuridão era mais profunda do que nunca,
mas essa profundidade o tranquilizava.
De repente, viu sua sombra diante de si. Ela se recortava sobre um
fraco clarão, quase indistinto, que avermelhava vagamente o pavimento a
seus pés e a abóbada sobre sua cabeça, e que escorregava, à sua direita e à
sua esquerda, sobre as paredes viscosas do corredor. Estupefato, virou-se.
Atrás dele, na parte do corredor que acabava de ultrapassar, a uma
distância que lhe pareceu imensa, refulgia, riscando a espessa escuridão,
uma espécie de astro horrível que parecia olhá-lo.
Era a sombria estrela da polícia que surgia no esgoto.
Atrás dessa estrela moviam-se, confusamente, oito ou dez vultos
negros, eretos, indistintos, terríveis.

II. EXPLICAÇÃO
No dia 6 de junho, uma batida nos esgotos havia sido ordenada.
Temiam que fossem tomados como refúgio pelos vencidos, e o prefeito
Gisquet teve de vasculhar a Paris oculta enquanto o general Bugeaud
varria a Paris pública; dupla operação conexa exigiu uma dupla estratégia
da força pública, representada na parte de cima pelo exército e na parte de
baixo pela polícia. Três pelotões de agentes e limpadores exploraram a
rede subterrânea de Paris, o primeiro, a margem direita, o segundo, a
margem esquerda, o terceiro, o centro da cidade.
Os agentes estavam armados com carabinas, cassetetes, espadas e
punhais.
Naquele momento, o que estava dirigido a Jean Valjean era a lanterna
da ronda da margem direita.
Essa ronda acabava de visitar a galeria curva e os três becos que ficam
sob a rua du Cadran. Enquanto passeava seu clarão no fundo desses becos,
Jean Valjean encontrara em seu caminho a entrada da galeria, percebera
que era mais estreita que o corredor principal e não entrara. Seguira
adiante. Os policiais, saindo novamente da galeria du Cadran, pensaram
ter ouvido um ruído de passos na direção do esgoto central. De fato, eram
os passos de Jean Valjean. O sargento chefe da ronda erguera sua lanterna,
e a esquadra pusera-se a olhar, na neblina, na direção de onde viera o
barulho.
Para Jean Valjean, esse foi um instante inexprimível.
Felizmente, se ele via bem a lanterna, a lanterna o via mal. Ela era a
luz, ele a escuridão. Ele estava muito longe, e mesclado às trevas do lugar.
Encostou-se à parede e parou.
Aliás, ele não sabia o que era aquilo que se movia atrás dele. A falta de
sono, a falta de alimentação, as emoções, fizeram-no igualmente passar ao
estado visionário. Via um clarão, e, ao redor desse clarão, larvas. O que era
aquilo? Não compreendia.
Como Jean Valjean parara, o barulho havia cessado.
Os homens da ronda escutavam e nada ouviam, olhavam e nada viam.
Consultaram-se.
Nessa época, havia acima desse ponto do esgoto de Montmartre uma
espécie de encruzilhada chamada de serviço, que depois foi suprimida por
causa do pequeno lago interior que ali formava, por ocasião dos grandes
temporais, a torrente de águas pluviais. A ronda pôde esconder-se nessa
encruzilhada.
Jean Valjean viu aquelas larvas formarem uma espécie de círculo.
Aquelas cabeças de cães aproximaram-se umas das outras e cochicharam.
O resultado desse conselho de cães de guarda foi que haviam se
enganado, que não houvera esse ruído, que não havia ninguém ali; que era
inútil embrenhar-se no esgoto central, porque seria tempo perdido, mas
que deviam apressar-se na direção de Saint-Merry, pois se havia algo a
fazer ou algum “bousingot”1 a encontrar, era naquele quarteirão.
De tempos em tempos, os partidos recolocam solas novas nas velhas
injúrias. Em 1832, a palavra bousingot era intermediária entre a palavra
jacobino, já fora de uso, e a palavra demagogo, quase inusitada, mas que
efetuou, desde então, um excelente serviço.
O sargento deu ordem para que virassem à esquerda rumo à vertente do
Sena. Se tivessem tido a ideia de dividir-se em duas esquadras e de ir nos
dois sentidos, Jean Valjean seria preso. Foi por um fio. É provável que as
instruções da delegacia, prevendo algum caso de combate e numerosos
insurgentes, proibisse a ronda de fragmentar-se. A ronda retomou sua
marcha, deixando para trás Jean Valjean. De todo aquele movimento, Jean
Valjean só percebeu o eclipse da lanterna que se virou subitamente.
Antes de se retirar, para desencargo de consciência da polícia, o
sargento disparou sua carabina na direção que abandonavam, na direção de
Jean Valjean. A detonação rolou de eco em eco na cripta como o ruído de
um intestino titânico. Um pedaço de entulho, que caiu na valeta e espirrou
água a alguns passos de Jean Valjean, o advertiu de que a bala batera na
abóbada acima de sua cabeça.
Passos cadenciados e lentos ressoaram por algum tempo nas galerias,
cada vez mais amortecidos à medida que se afastavam, o grupo de formas
negras desapareceu, um clarão oscilou e flutuou, fazendo na abóbada um
arco avermelhado que foi diminuindo até desaparecer, o silêncio voltou a
ser profundo, a escuridão tornou a ser completa, a cegueira e a surdez
retomaram posse das trevas; e Jean Valjean, não ousando mover-se ainda,
permaneceu por muito tempo encostado à parede, ouvidos atentos, pupilas
dilatadas, vendo o desaparecimento daquela patrulha de fantasmas.

III. O HOMEM PERSEGUIDO


Justiça seja feita à polícia daquela época, a qual, mesmo nas mais
graves conjecturas públicas, cumpria imperturbável seu dever de inspeção
e de vigilância. No seu entender, uma revolta não era um pretexto para dar
maior liberdade aos malfeitores, e neglicenciar a sociedade em razão de o
governo estar em perigo. O serviço ordinário era feito corretamente por
meio do serviço extraordinário, e não era prejudicado. Em meio a um
incalculável acontecimento político iniciado, sob a pressão de uma
possível revolução, sem deixar-se distrair pela insurreição e pela
barricada, um agente “perseguia” um ladrão.
Era precisamente algo semelhante que ocorria na tarde de 6 de junho
na beira do Sena, na ribanceira da margem direita, um pouco além da
ponte de Invalides.
Hoje a ribanceira já não existe. O aspecto desses locais mudou.
Em cima dessa ribanceira, dois homens separados por uma certa
distância pareciam observar-se, um evitando o outro. Aquele que ia à
frente procurava afastar-se, aquele que vinha atrás procurava aproximar-
se.
Era como uma partida de xadrez, jogada de longe e em silêncio.
Nenhum deles parecia ter pressa e ambos caminhavam vagarosamente,
como se cada um deles temesse, com a pressa, obrigar o outro a dobrar o
passo.
Parecia um apetite seguindo uma presa, sem demonstrar que o fazia de
propósito. A presa era matreira e permanecia em alerta.
As proporções requeridas entre a fuinha acuada e o mastim que a
persegue eram observadas. Aquele que procurava escapar era pequeno e de
aparência doentia; o que tentava agarrar, rapaz alto e forte, tinha aspecto
rude, e devia ser rude encontrá-lo.
O primeiro, sentindo-se o mais fraco, evitava o segundo; mas evitava-o
de forma profundamente furiosa; quem o observasse veria em seus olhos a
sombria hostilidade da fuga, e toda a ameaça contida no medo.
A margem estava solitária; não passava ninguém; nem mesmo os
remadores, nem os carregadores nas barcaças amarradas aqui e ali.
Apenas do cais fronteiro era possível ver distintamente aqueles dois
homens; e, para quem os tivesse examinado daquela distância, o homem
que ia à frente teria o aspecto de um ser eriçado, oblíquo, inquieto,
olhando desconfiado em torno de si e tremendo de frio debaixo da
esfarrapada blusa que o cobria; e o outro, o aspecto de uma pessoa clássica
e oficial, usando casacão de autoridade, abotoado até o queixo.
O leitor talvez reconhecesse esses dois homens se os visse de perto.
Qual era o objetivo do último?
Provavelmente conseguir agasalhar melhor o primeiro.
Quando um homem vestido pelo Estado persegue um homem
esfarrapado, é a fim de torná-lo também um homem vestido pelo Estado.
A questão toda está na cor. Estar vestido de azul é glorioso; estar vestido
de vermelho é desagradável.
Há uma púrpura por debaixo.
Era provavelmente de algum dissabor e de alguma púrpura desse tipo
que o primeiro queria esquivar-se.
Se o outro o deixava andar na frente e não o prendia ainda, era,
segundo todas as aparências, na esperança de vê-lo chegar a um encontro
significativo e a um grupo que constituísse boa presa. Essa delicada
operação é chamada de “filature”.2
O que torna essa conjectura provável é que o homem abotoado, ao ver
passar pelo cais uma carruagem vazia, fez sinal ao cocheiro; o cocheiro
compreendeu, evidentemente reconheceu com quem estava lidando, deu a
volta e começou a seguir devagar, de cima do cais, os dois homens. Isso
não foi percebido pelo personagem suspeito e esfarrapado que ia à frente.
A carruagem rodava ao longo das árvores de Champs-Elysées. Via-se
passar por cima do parapeito o busto do cocheiro, chicote em punho.
Uma das instruções secretas da polícia aos agentes contém o seguinte
artigo: “Ter sempre à mão uma carruagem, caso necessário”.
Enquanto manobravam, cada um de seu lado, uma estratégia
irrepreensível, esses dois homens aproximavam-se de uma rampa do cais
que descia até a ribanceira, o que permitia aos cocheiros vindos de Passy
irem até o rio para dar de beber a seus cavalos. Essa rampa foi suprimida
posteriormente por uma questão de simetria; os cavalos morrem de sede,
mas os olhos se regalam.
Parecia provável que o homem de blusa subiria por essa rampa
tentando evadir-se pelos Champs-Elysées, local coberto de árvores mas,
em compensação, cheio de agentes de polícia, e onde o outro facilmente
encontraria reforços.
Esse ponto do cais fica pouco distante da casa trazida de Moret a Paris,
em 1824, pelo coronel Brack, e chamada casa de Francisco I. Bem perto
dali há um posto de guarda.
Para grande surpresa de seu observador, o homem acuado não subiu
pela rampa do bebedouro. Continuou avançando sobre a ribanceira ao
longo do cais.
Sua posição tornava-se visivelmente crítica.
A menos que pretendesse jogar-se no Sena, o que ele iria fazer?
Já não havia nenhum meio de subir ao cais; não havia mais rampa nem
escada; e estava muito próximo do local, marcado pela curva do Sena em
direção à ponte d’Iéna, onde a margem, cada vez mais estreita, terminava
em uma lingueta e perdia-se debaixo da água. Ali, inevitavelmente, ele
ficaria bloqueado entre a parede a pique à sua direita, o rio à esquerda e à
frente, e a autoridade atrás.
É verdade que esse fim de ribanceira estava oculto ao olhar por um
amontoado de entulhos, de um metro e meio a dois de altura, proveniente
não se sabe de qual demolição. Mas porventura esse homem esperava
achar um esconderijo seguro ocultando-se atrás daquele monte de entulho,
o qual bastaria contornar? O expediente seria por demais pueril.
Certamente ele não pensava nisso. A inocência dos ladrões não chega a
esse ponto.
O monte de entulho formava, à beira da água, uma espécie de saliência
que se prolongava como um promontório até o muro do cais.
O homem perseguido chegou a essa pequena colina e a contornou, de
forma que deixou de ser visto pelo outro.
Este, não vendo, não era visto; aproveitou para abandonar qualquer
dissimulação e para andar rapidamente. Em alguns instantes chegou ao
promontório de entulho e o contornou. Ali parou estupefato. O homem que
perseguia havia desaparecido.
Total eclipse do homem de blusa.
A margem, a partir desse lugar, não ia além de trinta passos de
comprimento, depois ela mergulhava debaixo da água que vinha bater no
muro do cais.
O fugitivo não poderia lançar-se ao Sena nem escalar o cais sem ser
visto por aquele que o seguia. Onde estava ele?
O homem do casacão abotoado avançou até a extremidade da margem
e permaneceu um momento pensativo, mãos crispadas, olhar perscrutador.
De repente bateu na testa. Acabara de perceber, no ponto onde terminava a
terra e onde a água começava, uma grade de ferro em arco, larga e baixa,
guarnecida por uma espessa fechadura e por três dobradiças maciças. Essa
grade, espécie de porta aberta na base do cais, abria-se tanto para o rio
quanto para a margem. Um riacho de águas negras passava embaixo. Esse
riacho desembocava no Sena.
Além dessas pesadas barras de ferro enferrujadas, distinguia-se uma
espécie de corredor abobadado e escuro.
O homem cruzou os braços e contemplou a grade com ar de
reprovação.
Como esse olhar não bastasse, tentou empurrá-la; sacudiu-a, ela
resistiu solidamente. Era provável que tivesse acabado de ser aberta,
apesar de não ter ouvido barulho algum, coisa estranha para uma grade tão
enferrujada; mas ele tinha certeza de que ela fora fechada. Isso indicava
que aquele na frente da qual a porta se abrira possuía não um simples
gancho, mas uma chave.
Essa evidência veio imediatamente ao espírito do homem que se
esforçava em arrombar a grade, e arrancou-lhe esta frase de indignação:
— Isso é demais! Uma chave do governo!…
Depois, imediatamente se acalmou, exprimiu um mundo de ideias
interiores através desta lufada de monossílabos acentuados quase
ironicamente:
— Ai! Ai! Ai! Ai!
Dito isso, esperando não se sabe o que, ou ver o homem sair, ou ver
entrar outros, ele postou-se à espreita por trás do monte de entulho, com a
raiva paciente de um cão de guarda.
Quanto à carruagem, que se regulava por seus movimentos, parara
acima dele, perto do parapeito. O cocheiro, prevendo uma longa espera,
meteu o focinho de seus cavalos no saco de aveia úmido embaixo, tão
conhecido dos parisienses, nos quais os governos, seja dito entre
parênteses, o metem às vezes.
Os raros transeuntes da ponte d’Iéna, antes de se afastarem, voltavam-
se para olhar, por um instante, esses dois detalhes imóveis da paisagem, o
homem na ribanceira, a carruagem no cais.

IV. ELE TAMBÉM CARREGA SUA CRUZ


Jean Valjean havia retomado seu caminho e não parara mais.
Essa caminhada ficava cada vez mais laboriosa, pois o nível das
abóbadas variava: a altura média era de um metro e setenta centímetros, e
fora calculada para a altura de um homem. Jean Valjean era obrigado a se
curvar para não deixar que Marius batesse no teto; era preciso, a cada
instante, se abaixar, depois se endireitar, apalpar continuamente a parede.
A umidade das pedras e a viscosidade do pavimento eram péssimos pontos
de apoio, tanto para as mãos quanto para os pés. Ele escorregava na
imundície da cidade. Os reflexos intermitentes dos bueiros apareciam
apenas em intervalos muito longos, e tão descorados que o sol a pino mais
parecia a luz da lua; todo o resto era bruma, miasma, opacidade, escuridão.
Jean Valjean sentia fome e sede, sobretudo sede; e ali era, como o mar, um
lugar cheio de água que não se pode beber. Sua força, que, como sabemos,
era prodigiosa e bem pouco diminuída pela idade, graças à sua vida casta e
sóbria, começava, contudo, a ceder. Começava a sentir cansaço, e a força
decrescendo fazia o peso do fardo aumentar. Marius, talvez morto, pesava
o que pesam os corpos inertes. Jean Valjean o carregava de forma que o
peito não fosse pressionado e que assim respirasse o melhor possível.
Sentia entre suas pernas o rápido deslizar dos ratos. Um deles se assustou
a ponto de mordê-lo. De tempos em tempos, algum respiradouro levava-
lhe um sopro de ar fresco que o reanimava.
Podiam ser três horas da tarde quando ele chegou ao esgoto principal.
Inicialmente, ficou admirado com o súbito alargamento. Encontrava-se
de repente em uma galeria onde suas mãos estendidas não alcançavam
mais as duas paredes, e sob uma abóbada que sua cabeça não mais tocava.
De fato, o Grand Égout tem dois metros e meio de largura por dois de
altura.
No ponto onde o esgoto de Montmartre encontra o Grand Égout, há
uma encruzilhada formada por mais duas galerias subterrâneas, a da rua
Provence e a de l’Abattoir. Outra pessoa qualquer teria ficado indecisa
entre aqueles quatro caminhos. Jean Valjean tomou o mais largo, isto é, o
esgoto central. Mas aqui voltava a dúvida: descer ou subir? Ele pensou que
a situação exigia pressa e que era preciso, a qualquer risco, alcançar o
Sena. Em outras palavras, descer. Virou à esquerda.
Escolheu bem; pois seria um erro acreditar que o esgoto principal
tivesse duas saídas, uma para Bercy, outra para Passy, e que seria, como o
nome indica, o cinturão subterrâneo de Paris da margem direita. O Grand
Égout, que, devemos nos lembrar, nada mais é do que o antigo riacho
Ménilmontant, chega, se o subirmos, a um beco sem saída, ou seja, a seu
antigo ponto inicial, que era a fonte na base da colina de Ménilmontant.
Ele não tem comunicação direta com a ramificação que recolhe as águas
de Paris a partir do bairro Popincourt, e que se lança no Sena pelo esgoto
Amelot, acima da antiga ilha Louviers. Essa ramificação, que completa o
esgoto coletor, se separa dele sob a própria rua Ménilmontant por uma
grossa parede que marca o ponto de divisão das águas de um lado e do
outro. Se Jean Valjean tivesse subido a galeria, teria chegado, depois de
muito esforço, exaurido pela fadiga, prestes a expirar, nas trevas, diante de
uma muralha. Estaria perdido.
A rigor, voltando um pouco para trás e seguindo pelo corredor Filles-
du-Calvaire, com a condição de não hesitar na encruzilhada subterrânea do
Boucherat, tomando o corredor Saint-Louis, e depois, à esquerda, seguindo
pelo ramal Saint-Gilles, em seguida, virando à direita e evitando a galeria
Saint-Sébastien, ele poderia chegar ao esgoto Amelot e, de lá, contanto
que não se perdesse na espécie de F que fica sob a Bastilha, alcançar a
saída para o Sena, próxima a l’Arsenal. Mas, para isso, seria necessário
conhecer a fundo, e em todas as suas ramificações e variantes, a enorme
madrépora do esgoto. Porém, devemos insistir nesse ponto, ele não sabia
nada a respeito dessa rede assustadora onde caminhava; e se lhe tivessem
perguntado onde estava, teria respondido: nas trevas.
Seu instinto serviu-lhe bem. Descer era, de fato, a salvação possível.
Deixou à direita os dois corredores que se ramificavam em forma de
garras sob a rua Lafitte e a rua Saint-Georges, e o longo corredor bifurcado
da calçada d’Antin.
Pouco além de um afluente que, provavelmente, era uma ramificação
de la Madeleine, ele parou. Estava exausto. Um respiradouro bastante
largo, provavelmente o da rua d’Anjou, iluminava o local de forma
suficiente. Jean Valjean, movimentando-se com a delicadeza que um
irmão teria pelo irmão ferido, colocou Marius na parte seca ao longo da
parede do esgoto. O rosto ensanguentado do rapaz apareceu iluminado
pelo luar branco do respiradouro como no fundo de uma sepultura. Seus
olhos estavam fechados, os cabelos colados às têmporas como pincéis
secos tingidos de vermelho, as mãos pendentes e mortas, os membros
frios, sangue coagulado nos cantos dos lábios. Uma pasta de sangue
grudara-se no nó da gravata; a camisa penetrava nas feridas, o pano do
casaco roçava os cortes abertos da carne-viva. Jean Valjean, afastando as
roupas com a ponta dos dedos, colocou a mão sobre seu peito; o coração
ainda batia. Jean Valjean rasgou sua camisa, atando as feridas da melhor
maneira possível, impedindo o sangue de correr; depois, inclinando-se
naquela meia-luz sobre Marius ainda inconsciente e quase expirando,
olhou-o com um ódio inexprimível.
Ao desabotoar as roupas de Marius, encontrara nos bolsos duas coisas:
o pão que ele havia esquecido desde a véspera, e a caderneta de Marius.
Comeu o pão e abriu a caderneta. Sobre a primeira página, encontrou as
quatro linhas escritas por Marius que, como lembramos, eram as
seguintes:
“Chamo-me Marius Pontmercy. Peço que levem meu cadáver à casa de
meu avô, o senhor Gillenormand, rua Filles-du-Calvaire, número 6, no
Marais”.
Jean Valjean leu essas quatro linhas sob a claridade do bueiro e ficou
um momento como que profundamente absorto, repetindo a meia voz: rua
Filles-du-Calvaire, número 6, senhor Gillenormand. Recolocou a
caderneta no bolso de Marius. Como comera, suas forças retornaram;
recolocou Marius sobre suas costas, apoiando cuidadosamente a cabeça do
rapaz sobre seu ombro direito, e continuou a descer o esgoto.
O Grand Égout, dirigido segundo a linha sinuosa do vale de
Ménilmontant, tem cerca de duas léguas de comprimento. Uma grande
parte de seu percurso é pavimentada.
O facho de nomes das ruas de Paris, com o qual esclarecemos ao leitor
a marcha subterrânea de Jean Valjean, Jean Valjean não o possuía. Nada
lhe dizia qual zona da cidade estava atravessando, nem qual trajeto havia
feito. Somente a palidez crescente das poças de luz que encontrava de vez
em quando indicava-lhe que o sol se afastava das ruas e que o dia não
tardaria a declinar; e como o contínuo rodar dos carros sobre sua cabeça
havia se tornado intermitente, para depois quase parar, ele concluiu que
não estava mais sob o centro de Paris, e que se aproximava de alguma
região solitária, vizinha dos bulevares afastados ou dos últimos cais. Onde
há menos casas e menos ruas, o esgoto tem menos respiradouros. A
escuridão se espalhava em torno de Jean Valjean. Mas mesmo assim
continuou avançando, tateando na sombra.
Essa sombra tornou-se repentinamente terrível.

V. PARA A AREIA, ASSIM COMO PARA A MULHER,


HÁ UMA FINEZA QUE É PÉRFIDA
Jean Valjean sentiu que estava entrando na água, e que não havia mais
pavimento sob seus pés, mas sim lodo.
Acontece às vezes, em certas praias da Bretanha ou da Escócia, que um
homem, seja viajante ou pescador, caminhando na maré baixa bem longe
da água, percebe de repente que há alguns minutos está andando com
dificuldade. A praia sob seus pés é como resina; a sola fica colada; não é
mais areia, é visco. A praia está perfeitamente seca, mas a cada passo
dado, assim que se levanta o pé, a pegada que fica se enche de água. Os
olhos não se deram conta de nenhuma mudança; a imensa praia está
uniforme e tranquila, toda a areia tem o mesmo aspecto, nada distingue o
solo firme do solo que não mais o é. A pequena nuvem alegre dos pulgões
marinhos continua a saltar tumultuosamente sobre os pés do caminhante.
O homem segue seu caminho, sempre adiante, apoia-se na terra e tenta
reaproximar-se da costa. Não está inquieto. Inquieto por quê? No entanto,
sente como se o peso de seus pés aumentasse a cada passo que dá.
Bruscamente ele afunda. Afunda duas ou três polegadas. Decididamente,
não está no bom caminho; ele para a fim de orientar-se. De repente, olha
para seus pés. Seus pés desapareceram, a areia os cobre. Ele retira seus pés
da areia, tenta retroceder, volta para trás, afunda ainda mais. A areia chega
até seu tornozelo, ele se esforça para sair e se atira para a esquerda; a areia
chega-lhe ao meio da perna, ele se atira para a direita, a areia alcança seus
joelhos. Então percebe com indizível terror que está preso em areia
movediça, lugar terrível onde o homem pode andar tanto quanto o peixe
pode nadar. Se está carregando algum peso, atira-o longe, aliviando-se
como um navio em perigo; já não há mais tempo, a areia chega-lhe às
coxas.
Ele grita, agita seu chapéu ou seu lenço, a areia vence-o mais e mais;
se a praia está deserta, se a terra está muito longe, se o banco de areia tem
má fama, se não há heróis nos arredores, é o fim, está condenado ao
sepultamento. Está condenado a esse terrível e longo sepultamento,
infalível, implacável, impossível de retardar ou parar, que dura horas, que
não termina, que o pega de pé, livre e em plena saúde, que o puxa pelos
pés, que, a cada esforço tentado, a cada grito ecoado, o leva cada vez mais
para baixo, como se o estivesse punindo pela resistência com o dobro da
força, que faz o homem entrar lentamente na terra, deixando-lhe muito
tempo para olhar o horizonte, as árvores, as campinas verdes, a fumaça das
aldeias na planície, as velas dos barcos sobre o mar, os passarinhos que
voam e cantam, o sol, o céu. O naufrágio é o sepulcro que se faz maré, e
que se eleva do fundo da terra em direção a um ser vivo. Cada minuto é
um coveiro inexorável. O miserável tenta se sentar, deitar, escapar; todos
os movimentos que faz o enterram ainda mais; ele se ergue, afunda ainda
mais; sente que é engolido; ele berra, implora, grita para as nuvens, torce
as mãos desesperado. Eis que a areia alcança-lhe a cintura; a areia chega-
lhe ao peito, ele nada mais é do que um busto. Ele ergue as mãos, lança
gemidos furiosos, crispa as unhas na praia, quer firmar-se nas cinzas,
apoia-se nos cotovelos para arrancar-se daquela cinta mole, soluça
freneticamente; a areia sobe. A areia chega aos ombros, a areia chega ao
pescoço; agora somente a face permanece visível. A boca grita, a areia a
preenche; silêncio. Os olhos ainda olham, a areia os fecha; noite. Depois a
fronte desaparece, um punhado de cabelo estremece acima da areia; uma
mão surge ainda, rompe a superfície de areia, se move e se agita, e
desaparece. Sinistro desaparecimento de um homem.
Às vezes, o cavaleiro afunda com o cavalo; às vezes, o carroceiro
afunda com a carroça; tudo escurece na areia. É o naufrágio em outro lugar
que não a água. É a terra afogando o homem. A terra, penetrada pelo
oceano, transforma-se em armadilha. Mostra-se como planície, mas abre-
se como onda. O abismo tem dessas traições.
Essa fúnebre aventura, ainda hoje possível nesta ou naquela praia do
mar, era possível também, há trinta anos, no esgoto de Paris.
Antes dos importantes trabalhos iniciados em 1833, os encanamentos
subterrâneos de Paris estavam sujeitos a repentinos desmoronamentos.
A água se infiltrava em certos terrenos subjacentes, particularmente
inconsistentes; o pavimento, de pedra, como nos antigos esgotos, ou de cal
hidráulica sobre betume, como nas novas galerias, não tendo mais ponto
de apoio, cedia. Uma dobra em um piso desse tipo é uma fenda; uma fenda
é o desabamento. O pavimento afundava em um trecho. Essa brecha, hiato
em um abismo de lama, chamava-se na linguagem especializada fontis. O
que é um fontis? É a areia movediça da beira do mar encontrada de repente
sob a terra; é a praia do monte Saint-Michel em um esgoto. O solo,
encharcado, está como que em fusão; todas as suas moléculas estão em
suspensão em um meio mole; não é terra e não é água. A profundidade é às
vezes muito grande. Nada mais temível do que semelhante encontro. Se a
água predomina, a morte é rápida, ocorre a submersão instantânea; se a
terra predomina, a morte é lenta, há o sepultamento.
Pode-se imaginar semelhante morte? Se o sepultamento é aterrador em
uma praia marítima, como será em uma cloaca? Em vez do ar livre, da luz,
do dia, do horizonte claro, do ruído das ondas, das nuvens livres de onde
chove a vida, dos barcos vistos de longe, dessa esperança sob todas as
formas, dos prováveis transeuntes, da possibilidade de ser socorrido até o
último segundo, em lugar de tudo isso, a surdez, a cegueira, uma galeria
escura, um interior de túmulo já pronto, a morte na lama sob uma tampa!
A lenta sufocação pela imundície, um caixão de pedra onde a asfixia abre
suas garras no lodo e prende pela garganta; o fétido misturado à agonia; o
lodo em vez da areia; o hidrogênio sulfurado em vez do furacão; a sujeira
no lugar do oceano! E chamar, e ranger os dentes, e retorcer-se, e debater-
se, e agonizar, com esta cidade enorme, que não sabe de nada, sobre sua
cabeça!
Inexprimível horror morrer assim! A morte às vezes compensa sua
atrocidade com uma certa dignidade terrível. Na fogueira e no naufrágio,
podemos ser grandes; na chama como na espuma é possível uma atitude
soberba; em um abismo, nos transfiguramos. Mas não neste caso. A morte
é indecente. É humilhante expirar. As últimas visões que flutuam diante de
nós são abjetas. Lama é sinônimo de vergonha. É mesquinho, feio, infame.
Morrer em um tonel de malvasia, como Clarence, que seja; morrer na
fossa do esgoto, como d’Escoubleau, é horrível. Debater-se ali dentro é
medonho; ao mesmo tempo em que agonizamos, chafurdamos. Há trevas
suficientes para que seja o inferno, e lodo suficiente para que seja mais do
que um atoleiro; e o moribundo não sabe se vai se tornar um espectro ou
se vai se tornar um sapo.
Em qualquer lugar, o sepulcro é sinistro, aqui é disforme.
A profundidade do fontis variava, bem como sua extensão e densidade,
devido à melhor ou pior qualidade do subsolo. Às vezes, um fontis tinha
um metro ou um metro e meio de profundidade; às vezes, três ou quatro;
algumas vezes não se encontrava o fundo. Aqui o lodo era quase sólido;
ali, quase líquido. No fontis Lunière, um homem levaria um dia para
desaparecer, enquanto teria sido devorado em cinco minutos pelo atoleiro
Phélippeaux. A lama engole mais ou menos, conforme sua maior ou menor
densidade. Uma criança se salva onde um homem se perde. A primeira lei
de salvação consiste em despojar-se de toda espécie de peso. Jogar o saco
de ferramentas, o cesto ou o balde era o que fazia qualquer operário dos
esgotos ao sentir o chão ceder sob seus pés.
Os fontis tinham causas diversas: inconsistência do solo; algum
desmoronamento em uma profundidade fora do alcance do homem; os
violentos aguaceiros do verão; as torrentes incessantes do inverno; as
longas chuvas finas. Às vezes, o peso das construções mais próximas sobre
um terreno pantanoso ou arenoso fendia os arcos das galerias subterrâneas,
dobrando-os, ou então o pavimento se quebrava sob essa enorme pressão.
Foi assim que os alicerces do Panthéon destruíram, há um século, uma
parte dos subterrâneos da montanha Saint-Geneviève. Quando um esgoto
desmoronava sob a pressão das casas, a desordem, em certas ocasiões,
traduzia-se no calçamento das ruas, por uma espécie de separação das
pedras, como se fossem os dentes de uma serra; essa fenda se estendia em
linha serpenteante ao longo de toda a galeria rachada, e assim, sendo
visível o mal, o remédio podia ser imediato. Acontecia também que
muitas vezes o estrago interior não se revelava por nenhuma rachadura na
parte exterior. E, nesse caso, pobres operários. Entrando sem precaução no
esgoto afundado, corriam o risco de se perder. Os antigos registros fazem
menção a alguns poceiros sepultados desse modo nos lodaçais. Vários
nomes são mencionados; entre outros, aquele do operário que desapareceu
no desmoronamento sob a rua Carême-Prenant, chamado Blaise Poutrain;
este Blaise Poutrain era irmão de Nicolas Poutrain, que foi o último
coveiro do cemitério conhecido como dobradiça de Innocents, em 1785,
época em que esse cemitério morreu.
Houve também o jovem e charmoso visconde d’Escoubleau, de quem
acabamos de falar, um dos heróis do cerco de Lérida, onde atacaram em
meias de seda, encabeçados por violões. D’Escoubleau, surpreendido certa
noite na casa de sua prima, a duquesa de Sourdis, afogou-se em um
lamaçal do esgoto Beautreillis, onde se havia refugiado para escapar ao
duque. Madame de Sourdis, quando lhe contaram a respeito dessa morte,
pediu seu frasco e se esqueceu de chorar de tanto respirar os sais. Em um
caso assim, não há amor que resista; a cloaca o extingue. Hero recusa-se a
lavar o cadáver de Leandro. Tisbe tapa o nariz diante de Príamo e diz:
puff!

VI. O FONTIS
Jean Valjean estava na presença de um fontis.
Esse tipo de desabamento era então frequente no subsolo de Champs-
Elysées, dificilmente manipulável nos trabalhos hidráulicos e pouco
conservador das construções subterrâneas em razão de sua excessiva
fluidez. Essa fluidez ultrapassa a inconsistência das areias, mesmo as do
bairro Saint-Georges, que só puderam ser vencidas por um alicerce de
pedras sobre argamassa, e das camadas argilosas cheias de gás do bairro
des Martyrs, tão líquidas que a passagem sob a galeria des Martyrs só
pôde ser construída por meio de um tubo metálico. Quando, em 1836, sob
o bairro Saint-Honoré, demoliram, para depois reconstruir, o velho esgoto
de pedra onde vemos Jean Valjean neste momento, a areia movediça, que é
o subsolo de Champs-Elysées até o Sena, constituiu tal obstáculo que a
operação durou cerca de seis meses, causando grandes reclamações por
parte dos moradores vizinhos, especialmente dos que tinham palácios e
carruagens. Os trabalhos foram mais do que difíceis; foram perigosos. É
verdade que houve quatro meses e meio de chuva e três enchentes do Sena.
O fontis que Jean Valjean encontrara fora causado pela chuva da
véspera. Uma dobra do pavimento, mal sustentado pela areia subjacente,
havia produzido o acúmulo de água pluvial. Ocorrida a infiltração, seguiu-
se o afundamento. As lajes, deslocadas, afundaram-se na lama. Em que
extensão? Impossível dizer. A escuridão era ali mais densa do que em
qualquer outro lugar. Era um buraco de lama em uma caverna escura.
Jean Valjean sentiu o chão fugir-lhe sob os pés. Entrou nessa lama. Era
água na superfície e lodo no fundo. Era preciso passar. Voltar atrás era
impossível. Marius estava agonizante, e Jean Valjean extenuado. Para onde
mais poderia ir? Jean Valjean avançou. O lodaçal pareceu ser pouco
profundo nos primeiros passos. Porém, à medida que avançava, seus pés
afundavam cada vez mais. O lodo chegou na metade da perna e a água
acima dos joelhos. Caminhava, levantando Marius com seus dois braços o
máximo possível acima da água. O lodo agora passara seus joelhos e a
água estava na cintura. Afundava cada vez mais. Esse lodo, bastante denso
para o peso de um homem, evidentemente não podia sustentar o peso de
dois. Marius e Jean Valjean teriam tido chance de se salvar isoladamente.
Jean Valjean continuou a avançar, carregando um moribundo que talvez já
fosse um cadáver.
A água lhe chegava às axilas; sentia-se enfraquecer; mal podia se
mover na profundidade de lodo em que estava. A densidade que o sustinha
era também um obstáculo. Continuava a erguer Marius, e usando de força
sobre-humana conseguia avançar, mas afundava. Só restava a cabeça fora
da água e seus dois braços levantando Marius. Há, nos antigos quadros do
dilúvio, uma mãe que faz o mesmo com seu filho.
Ele afundou ainda mais, inclinou a cabeça para trás para escapar da
água e poder respirar; quem o tivesse visto naquela escuridão acreditaria
estar enxergando uma máscara flutuante sobre a sombra; ele percebia
vagamente acima de sua cabeça o rosto lívido e a cabeça pendente de
Marius; fez um esforço desesperado e lançou seu pé adiante; seu pé
atingiu algo sólido. Um ponto de apoio. Já era tempo.
Ele se ergueu, e se contorceu, e se enraizou com uma espécie de fúria
sobre esse ponto de apoio. Isso lhe pareceu o mesmo que o primeiro
degrau em uma escada que subia para a vida.
Esse ponto de apoio encontrado na lama, no momento supremo, era o
começo de outra vertente do solo, que se havia dobrado sem se quebrar, e
se curvara sob a água como uma tábua de um só pedaço. Os pavimentos
bem construídos dobram-se, mas continuam firmes. Esse fragmento do
solo, em parte submerso, porém sólido, era uma verdadeira rampa e, uma
vez sobre essa rampa, estariam salvos. Jean Valjean subiu por esse plano
inclinado e chegou ao outro lado do lodaçal.
Ao sair da água, bateu em uma pedra e caiu de joelhos. Achou isso
muito justo, e assim continuou por algum tempo, com a alma absorta em
alguma oração a Deus.
Tornou a ficar de pé, trêmulo, gelado, infecto, curvado sobre esse
moribundo que arrastava, escorrendo lama, e a alma cheia de um estranho
clarão.

VII. ÀS VEZES NAUFRAGAMOS ONDE


ACREDITAMOS DESEMBARCAR
Colocou-se novamente a caminho.
Aliás, se não deixara a própria vida no fontis, parecia ter deixado as
forças ali. Aquele esforço supremo o esgotara. Seu cansaço agora era tal
que, a cada três ou quatro passos, era obrigado a retomar o fôlego e a
apoiar-se nas paredes. Uma vez, precisou sentar-se sobre uma banqueta
para trocar a posição de Marius, e pensou que não conseguiria sair dali.
Mas, se seu vigor estava morto, o mesmo não acontecera com sua energia.
Tornou a se levantar.
Caminhou desesperadamente, quase que depressa, deu uma centena de
passos sem levantar a cabeça, quase sem respirar, e de repente esbarrou
em uma parede. Havia chegado a uma curva do esgoto, e, como estava
com a cabeça abaixada, chocou-se contra a parede. Ergueu os olhos e, na
extremidade do subterrâneo, ali, à sua frente, longe, muito longe, viu uma
luz. Dessa vez, não era a luz terrível; era a luz boa e branca. Era o dia.
Jean Valjean via a saída.
Uma alma condenada, que do meio da fogueira avistasse, de repente, a
saída do inferno, sentiria o que Jean Valjean sentiu. Ela voaria
desesperadamente com os cotos de suas asas queimadas em direção à porta
radiante. Jean Valjean não sentiu mais o cansaço, não sentiu mais o peso
de Marius; reencontrou suas pernas de aço. Correu mais do que andou. À
medida que se aproximava, a saída se desenhava cada vez mais
distintamente. Era um arco central, mais baixo que a abóbada, que
diminuía de altura e de largura gradativamente. O túnel terminava como o
interior de um funil; estreitamento vicioso, imitado das portas das cadeias,
lógico em uma prisão e ilógico em um esgoto, e que depois foi corrigido.
Jean Valjean chegou à saída.
Ali, parou.
Era de fato a saída, mas não era possível sair.
O arco estava fechado por uma grade forte, e essa grade, que, segundo
todas as aparências, raramente girava sobre as dobradiças enferrujadas,
mantinha-se presa à ombreira de pedra por meio de uma grande fechadura,
que, vermelha de ferrugem, parecia um enorme tijolo. Via-se o buraco da
chave e a grossa lingueta profundamente embutida em seu encaixe de
ferro. A fechadura estava visivelmente fechada com dupla volta. Era uma
daquelas fechaduras de bastilhas que a velha Paris prodigalizava com
gosto.
Para lá da grade, o ar livre, o rio, o dia, a margem estreita, mas
suficiente para passar, os cais longínquos, Paris, esse abismo onde é fácil
se ocultar, o amplo horizonte, a liberdade. Distinguia-se, à direita, a ponte
d’Iéna, e à esquerda, subindo, a ponte de Invalides; o local teria sido
propício para aguardar a noite e fugir. Era um dos pontos mais solitários
de Paris, a margem que fica em frente a Gros-Caillou. As moscas
entravam e saíam através das barras de ferro.
Poderiam ser oito horas e meia da noite. O dia declinava.
Jean Valjean colocou Marius ao longo do muro, sobre a parte seca do
pavimento; depois, foi em direção à grade e agarrou-a, sacudindo-a
freneticamente, porém em vão. A grade não se mexeu. Jean Valjean
experimentou as barras, uma por uma, esperando poder arrancar a menos
sólida e usá-la como alavanca para forçar a grade ou quebrar a fechadura.
Nenhuma barra se moveu. Nem os dentes de um tigre, em seus alvéolos,
são mais seguros do que aquilo. Sem a alavanca, não havia nenhum
recurso. O obstáculo era invencível. Não havia nenhum meio de abrir a
porta.
Deveria então terminar ali? Que fazer? Retroceder, recomeçar o trajeto
pavoroso que ele já havia percorrido, não tinha forças para tanto. Além
disso, como atravessar de novo aquele lodaçal do qual escapara apenas por
milagre? E, após o lodaçal, não havia a ronda policial, da qual certamente
não escaparia uma segunda vez? E depois, para onde ir? Que direção
tomar? Seguir o declive não era alcançar o objetivo. Mesmo que chegasse
a outra saída, ela também estaria obstruída por uma tampa ou uma grade.
Todas as saídas estavam, sem dúvida, fechadas dessa maneira. O acaso
havia arrancado a grade por onde entrara, mas evidentemente todas as
outras bocas de esgoto estavam fechadas. Conseguira evadir-se para uma
prisão.
Era o fim. Tudo o que Jean Valjean fizera havia sido inútil. A exaustão
resultava no fracasso.
Ambos estavam na sombria e imensa teia da morte, e Jean Valjean
sentia correr, sobre aqueles fios negros que tremiam em meio às trevas, a
apavorante aranha.
Deu as costas para a grade, e caiu no chão, mais prostrado do que
sentado, ao lado de Marius ainda imóvel, e curvou a cabeça entre os
joelhos. Não havia saída. Era a última gota da angústia.
Em quem ele estava pensando nesse profundo abatimento? Não
pensava em si mesmo, nem em Marius. Pensava em Cosette.

VIII. A ABA DO CASACO RASGADA


Em meio a essa prostração, uma mão pousou em seu ombro e uma voz,
que falava baixinho, lhe disse:
— Meio a meio.
Alguém no meio daquelas trevas? Nada se assemelha tanto ao sonho
como o desespero. Jean Valjean pensou que estivesse sonhando. Não
ouvira passos. Seria possível? Levantou os olhos.
Um homem estava diante dele.
Esse homem vestia uma camisa; estava descalço e segurava os sapatos
na mão esquerda; certamente os tirara para chegar perto de Jean Valjean
sem ser ouvido.
Jean Valjean não hesitou um instante. Apesar do imprevisto daquele
encontro, conhecia esse homem. Esse homem era Thénardier.
Embora acordado, por assim dizer, em sobressalto, Jean Valjean,
acostumado aos alertas e aos golpes inesperados, dos quais é preciso
desviar rapidamente, readquiriu imediatamente toda a sua presença de
espírito. Aliás, a situação não podia piorar; porque a angústia, quando
atinge um certo grau, não pode aumentar mais, e nem Thénardier podia
aumentar o negrume daquela noite.
Seguiu-se um instante de espera.
Thénardier levou a mão direita à testa para proteger os olhos, depois
franziu as sobrancelhas, piscando os olhos, o que, com uma leve contração
de lábios, caracteriza a atenção sagaz de um homem que procura
reconhecer outro. Porém não conseguiu. Jean Valjean, como já dissemos,
dava as costas para a luz e, além disso, achava-se tão desfigurado, tão
enlameado e ensanguentado, que seria impossível reconhecê-lo, mesmo à
luz do meio-dia. Ao contrário, iluminado de frente pela luz da grade,
claridade de subterrâneo, é verdade, lívida, mas precisa em sua lividez,
Thénardier, como o diz a enérgica e banal metáfora, saltou imediatamente
aos olhos de Jean Valjean. Essa desigualdade de condições era suficiente
para assegurar a Jean Valjean certa vantagem no misterioso duelo que se
travaria entre as duas situações e os dois homens. O encontro acontecia
entre Jean Valjean velado e Thénardier desmascarado.
Jean Valjean logo percebeu que Thénardier não o reconhecera.
Ambos contemplaram-se um momento no meio daquela penumbra
como se se medissem. Thénardier foi o primeiro a romper o silêncio.
— Como você fará para sair?
Jean Valjean não respondeu.
Thénardier continuou:
— Forçar a grade é impossível. Porém, é necessário que você saia
daqui.
— É verdade — disse Jean Valjean.
— Nesse caso, parceria.
— Que quer dizer com isso?
— Você matou o homem; muito bem. Eu tenho a chave.
Thénardier apontava para Marius. Ele prosseguiu:
— Não o conheço, mas quero ajudá-lo. Você deve ser um amigo.
Jean Valjean começou a entender. Thénardier tomava-o por um
assassino.
Thénardier recomeçou:
— Escute, camarada. Você não matou esse homem sem ver primeiro o
que ele trazia nos bolsos. Dê-me a metade. Eu lhe abro a porta.
E, tirando uma parte da chave de dentro da camisa toda esburacada,
acrescentou:
— Quer ver como é feita a chave da liberdade? Veja.
Jean Valjean “permaneceu como bobo”, a frase é do velho Corneille, a
ponto de duvidar que o que estava vendo fosse real. Era a Providência
aparecendo horrorosa e o anjo bom saindo da terra sob a forma de
Thénardier.
Thénardier enfiou a mão em um bolso largo escondido embaixo de sua
blusa, tirou dali uma corda e a estendeu a Jean Valjean.
— Tome — disse ele —; ainda por cima lhe dou a corda.
— Uma corda para quê?
— Precisará também de uma pedra, mas você encontrará uma lá fora.
Ali há um monte de entulho.
— Uma pedra para fazer o quê?
— Imbecil, já que você vai jogar o homem no rio, precisa de uma
pedra e de uma corda, senão ele boiará sobre a água.
Jean Valjean pegou a corda. Não há ninguém que não faça dessas
anuências maquinais.
Thénardier estalou os dedos, como se de súbito tivesse tido uma ideia.
— Oh, camarada, como você fez para sair do atoleiro? Eu não me
atrevi a arriscar. Nossa! Você não cheira nada bem.
Após uma pausa, acrescentou:
— Faço perguntas, mas você tem razão em não responder. É um
aprendizado para o malfadado quarto de hora com o juiz de instrução. E
também, não falando, não se corre o risco de falar alto demais. Dá no
mesmo; porque não vejo seu rosto e porque não sei seu nome, você estaria
errado em acreditar que não sei quem você é e o que quer. Está claro. Você
quebrou um pouco esse senhor; agora deseja colocá-lo em algum lugar.
Precisa do rio, o grande esconde-besteira. Vou tirar você do aperto. Ajudar
um bom rapaz em apuros me faz bem.
Ao mesmo tempo em que fingia aprovar o silêncio de Jean Valjean,
visivelmente empenhava-se em fazê-lo falar. Empurrou-lhe o ombro de
forma a poder vê-lo de perfil, e exclamou, sem sair do meio-tom em que
mantinha a voz:
— A propósito do lodaçal, você é mesmo um animal. Por que não
jogou o homem ali?
Jean Valjean permaneceu em silêncio.
Thénardier continuou erguendo até seu pomo de adão o trapo que lhe
servia de gravata, gesto que complementa o ar capaz de um homem sério:
— Na verdade, você talvez tenha agido com prudência. Os
trabalhadores que amanhã virão para tapar o buraco com certeza
encontrariam o cidadão esquecido ali e poderiam, fio a fio, pouco a pouco,
encontrar a pista e chegar até você. Alguém passou pelo esgoto. Quem?
Por onde saiu? Alguém o viu sair? A polícia é muito esperta! O esgoto é
traiçoeiro e o denuncia. Um achado assim é uma raridade, isso chama a
atenção, poucas pessoas se servem do esgoto para seus negócios, enquanto
que o rio é de todos. O rio é a verdadeira fossa. Depois de um mês pescam
o homem nas redes de Saint-Cloud. E que importa? São restos! Quem
matou esse homem? Paris. E a justiça nem sequer informa. Você fez bem.
Quanto mais Thénardier falava, mais calado ficava Jean Valjean.
Novamente Thénardier sacudiu-lhe o ombro.
— Agora, vamos concluir o negócio. Vamos repartir. Você viu minha
chave, mostre-me seu dinheiro.
Thénardier estava desvairado, feroz, obscuro, um tanto ameaçador,
porém amigável.
Havia algo estranho; os modos de Thénardier não pareciam naturais;
não parecia estar totalmente à vontade; embora não querendo mostrar-se
misterioso, falava em voz baixa; de tempos em tempos, punha o dedo na
boca e murmurava: psiu! Era difícil adivinhar por quê. Não havia ninguém
ali além deles. Jean Valjean pensou que talvez outros bandidos estivessem
escondidos em algum canto, não muito longe, e que Thénardier se
preocupava em ter de dividir com eles.
Thénardier continuou:
— Vamos acabar com isso. Quanto o homem tinha nos bolsos?
Jean Valjean revistou os próprios bolsos.
Era, como lembramos, seu costume sempre levar dinheiro consigo. A
triste vida de expedientes à qual estava condenado obrigava-o a isso. Mas,
dessa vez, estava desprevenido. Na véspera, ao vestir seu uniforme de
guarda nacional, lugubremente absorvido como estava, esquecera de levar
sua carteira. Não tinha senão algumas moedas no bolso de seu colete.
Virou seu bolso, todo molhado de lama, e espalhou sobre o chão uma
moeda de ouro, duas moedas de cinco francos e cinco ou seis soldos.
Thénardier estendeu o beiço com uma torção de pescoço significativa.
— Você o matou por muito pouco — disse ele.
Começou a apalpar com toda a familiaridade os bolsos de Jean Valjean
e os de Marius. Jean Valjean, preocupado acima de tudo com a ideia de dar
as costas ao dia, não o impediu. Enquanto apalpava o casaco de Marius,
Thénardier, com uma destreza de escamoteador, sem que Jean Valjean
percebesse, conseguiu arrancar um pedaço da roupa, que escondeu sob a
camisa, provavelmente pensando que esse pedaço de tecido poderia mais
tarde lhe servir para reconhecer o homem assassinado e o assassino. De
resto, não encontrou nada além dos trinta francos.
— É verdade — disse ele —; um carregando o outro, vocês não têm
nada mais que isso.
E, esquecendo sua expressão: meio a meio, pegou tudo.
Hesitou um pouco diante dos soldos. Reflexão feita, pegou-os também,
murmurando:
— Não importa! É muito barato arrancar das pessoas.
Depois, tirou novamente a chave de sob a blusa.
— Agora, amigo, é preciso que você saia. Isso aqui é como no
mercado, paga-se na saída. Você pagou, saia.
E se pôs a rir.
Teria ele, ao ajudar um desconhecido com o auxílio daquela chave e
fazendo sair por aquela porta outra pessoa, que não ele mesmo, a intenção
pura e desinteressada de salvar um assassino? Isso é algo de que se pode
duvidar.
Thénardier ajudou Jean Valjean a recolocar Marius sobre seus ombros,
depois dirigiu-se para a grade, na ponta de seus pés descalços, fazendo
sinal para que Jean Valjean o seguisse, olhou para fora, pôs um dedo na
boca e permaneceu alguns segundos como que em suspenso; feita a
inspeção, colocou a chave na fechadura. A lingueta escorregou e a porta
girou. Sem estalido nem rangido. Isso foi feito muito gentilmente. Era
visível que aquela grade e aquelas dobradiças, cuidadosamente
engraxadas, abriam-se com mais frequência do que se poderia imaginar.
Aquela gentileza era sinistra; sentiam-se as idas e vindas furtivas, as
entradas e saídas silenciosas dos homens noturnos, e os passos cautelosos
do crime. Evidentemente, o esgoto era cúmplice de alguma misteriosa
quadrilha. Aquela grade taciturna era uma receptadora.
Thénardier entreabriu a porta apenas o necessário para dar passagem a
Jean Valjean, tornou a fechar a grade, girou duas vezes a chave na
fechadura e mergulhou novamente na escuridão, sem fazer um ruído maior
que um sopro. Parecia caminhar com as patas de veludo próprias do tigre.
Um instante depois, aquela hedionda providência tornara a entrar no
invisível.
Jean Valjean viu-se do lado de fora.

IX. MARIUS APARENTA ESTAR MORTO PARA


ALGUÉM ENTENDIDO NO ASSUNTO
Deixou Marius escorregar para a margem.
Estavam do lado de fora!
Os miasmas, a escuridão, o horror, ficaram atrás dele. O ar salubre,
puro, vivaz, alegre, livremente respirável, o inundava. Tudo em torno dele
estava silencioso, mas era o silêncio charmoso do sol que se pôs em pleno
azul. Era o crepúsculo; a noite aproximava-se, a grande libertadora, a
amiga de todos os que precisam de um manto de trevas para sair de uma
angústia. O céu se oferecia por toda parte como uma grande calma. O rio
chegava a seus pés com o sussurro de um beijo. Ouvia-se o diálogo aéreo
dos ninhos dando-se boa-noite nos olmos dos Champs-Elysées. Algumas
estrelas, piscando fracamente no azul pálido do zênite, e visíveis apenas
aos olhos do sonhador, cintilavam trêmulas e quase imperceptíveis. A
noite desenrolava por cima da cabeça de Jean Valjean todas as doçuras do
infinito.
Era a hora indecisa e aprazível que não diz sim nem não. A escuridão
já era suficiente para que a distância o escondesse, e a claridade suficiente
para que o reconhecessem de perto.
Por alguns segundos, Jean Valjean sentiu-se dominado por essa
serenidade augusta e acariciante; acontecem esses minutos de
esquecimento; o sofrimento renuncia a torturar o infeliz; tudo se eclipsa
no pensamento; a paz cobre o pensador como uma noite; e, sob o
crepúsculo que resplandece, e à imitação do céu que se ilumina, a alma
fica estrelada. Jean Valjean não pôde deixar de contemplar a vasta sombra
clara que existia acima dele; pensativo, tomava, no majestoso silêncio do
céu eterno, um banho de êxtase e oração. Depois, rapidamente, como se
lhe voltasse a consciência do dever, curvou-se para Marius, e, pegando um
pouco de água na concha da mão, jogou-lhe, devagar, algumas gotas no
rosto. As pálpebras de Marius não se abriram; mas sua boca entreaberta
respirava.
Jean Valjean ia mergulhar novamente a mão na água do rio quando, de
repente, sentiu uma espécie de constrangimento, como quando temos, sem
que vejamos, alguém atrás de nós.
Já mencionamos em outro momento essa impressão que todos
conhecem.
Virou-se.
De fato, como havia pouco, alguém se achava atrás dele.
Era um homem de elevada estatura, vestindo um comprido casacão e
que, de braços cruzados, segurando na mão direita um cassetete do qual se
via o castão de chumbo, permanecia a alguns passos atrás de Jean Valjean
inclinado para Marius.
Era, a sombra ajudando, uma espécie de aparição. Um homem simples
teria sentido medo por causa do crepúsculo; um homem inteligente, por
causa do cassetete.
Jean Valjean reconheceu Javert.
Certamente o leitor adivinhou que o perseguidor de Thénardier não era
outro senão Javert.
Logo após sua inesperada saída da barricada, Javert se dirigira à
delegacia de polícia, fizera um relatório verbal ao delegado em pessoa,
durante uma curta audiência, em seguida, retomara imediatamente seu
serviço, que consistia, lembram-se da nota encontrada em seu poder, em
vigiar a ribanceira da margem direita até Champs-Elysées, que, havia
algum tempo, despertava a atenção da polícia. Ali, percebera Thénardier e
o seguira. O resto já sabemos.
Compreendemos também que essa grade, tão obsequiosamente aberta
diante de Jean Valjean, era uma habilidade de Thénardier. Thénardier
sentia que Javert estava sempre ali; o homem vigiado possui um faro que
nunca se engana; era preciso jogar um osso a esse cão farejador. Um
assassino, que sorte! Era o quinhão do fogo que nunca se deve recusar.
Thénardier, ao deixar Jean Valjean sair em seu lugar, dava uma presa à
polícia, obrigava-a a abandonar sua pista, fazia com que o esquecessem
por uma aventura maior, recompensava Javert pela espera, o que sempre
lisonjeia um espião, ganhava trinta francos e, quanto a ele, esperava
escapar, graças a essa distração.
Jean Valjean passara de um escolho a outro.
Esses dois encontros, um após o outro, cair de Thénardier em Javert,
era cruel.
Javert não reconheceu Jean Valjean, porque, como já dissemos, não
parecia o mesmo. Sem descruzar os braços, segurou melhor o cassetete na
mão com um movimento imperceptível, e disse calmamente:
— Quem é você?
— Sou eu.
— Você quem?
— Jean Valjean.
Javert colocou o cassetete entre os dentes, curvou o corpo, pousou as
robustas mãos nos ombros de Jean Valjean, apertando-os como se fossem
duas tenazes, o examinou e reconheceu. Seus rostos quase se tocavam. O
olhar de Javert era terrível.
Jean Valjean permaneceu inerte sob o aperto de Javert, como um leão
que se deixasse agarrar por um lince.
— Inspetor Javert — disse ele —, estou em seu poder! Aliás, desde
hoje cedo eu me considero como seu prisioneiro. Não lhe deixei meu
endereço para tentar escapar. Prenda-me. Só lhe peço uma coisa.
Javert parecia não escutar. Continuava a olhar fixamente Jean Valjean.
Seu queixo franzido levantava seus lábios até junto do nariz, sinal de feroz
divagação. Finalmente, largou Jean Valjean, endireitou-se de uma só vez,
voltou a segurar o cassetete na mão, como em um sonho, e murmurou,
mais do que pronunciou, a seguinte pergunta:
— O que o senhor está fazendo aqui? Quem é esse homem?
Não tratava mais Jean Valjean por você.
Jean Valjean respondeu, e o som de sua voz pareceu despertar Javert:
—Justamente é a respeito dele que eu queria lhe falar. Disponha de
mim como lhe aprouver, mas primeiro ajude-me a levá-lo até sua casa.
Não lhe peço outra coisa.
O rosto de Javert se contraiu, como sucedia todas as vezes que alguém
o julgava capaz de uma concessão. Contudo, não disse não.
Abaixou-se outra vez, tirou do bolso um lenço que mergulhou na água
e limpou a fronte ensanguentada de Marius.
— Este homem estava na barricada — disse ele a meia voz e como que
falando consigo mesmo. — Chamavam-no de Marius.
Espião de primeira qualidade, que tudo observara, que tudo escutara e
que tudo guardara, acreditando que morreria; que mesmo na agonia
espiava, e que, mesmo debruçado no primeiro degrau do sepulcro, tudo
anotara.
Pegou a mão de Marius e tomou-lhe o pulso.
— É um ferido — disse Jean Valjean.
— É um morto — disse Javert.
— Não. Ainda não.
— Então você o carregou da barricada até aqui? — disse Javert.
Sua preocupação devia ser muito grande para que não insistisse
naquele inquietante salvamento através do esgoto e para que não reparasse
no silêncio de Jean Valjean após sua pergunta.
Quanto a Jean Valjean, parecia dominado por um único pensamento.
Continuou:
— Ele mora no Marais, rua Filles-du-Calvaire, na casa do avô… Já não
lembro do nome.
Jean Valjean revistou o casaco de Marius, tirou a carteira, abriu-a na
página em que Marius escrevera e estendeu-a a Javert.
Havia ainda no ar bastante claridade flutuante para que se pudesse ler.
Além disso, os olhos de Javert possuíam a fosforescência felina das aves
noturnas. Decifrou as poucas linhas escritas por Marius, e murmurou:
— Gillenormand, rua Filles-du-Calvaire, número 6.
Depois gritou: “Cocheiro!”
Vocês se lembram da carruagem que esperava, caso fosse necessário.
Javert guardou a carteira de Marius.
Instantes depois, o carro que descera pela rampa do bebedouro estava
na margem; Marius foi colocado sobre o banco de trás, e Javert sentou-se
perto de Jean Valjean no banco da frente.
Fechada a portinhola, a carruagem afastou-se rapidamente subindo
pelos cais em direção à Bastilha.
Saíram dos cais e entraram nas ruas. O cocheiro, silhueta escura sobre
seu assento, fustigava seus magros cavalos. Dentro da carruagem o
silêncio era glacial. Marius, imóvel, o dorso encostado no canto do fundo,
a cabeça inclinada sobre o peito, os braços caídos, as pernas hirtas, parecia
esperar apenas um caixão; Jean Valjean parecia feito de sombra e Javert de
pedra; e naquele carro cheio de noite, cujo interior, cada vez que passava
por algum lampião, aparecia lividamente iluminado como por um clarão
intermitente, o acaso reunia, e parecia confrontar lugubremente, as três
imobilidades trágicas, o cadáver, o espectro e a estátua.

X. VOLTA DO FILHO PRÓDIGO, NUNCA MAIS


A cada solavanco do caminho, uma gota de sangue caía dos cabelos de
Marius.
Era noite fechada quando a carruagem chegou ao número 6 da rua
Filles-du-Calvaire.
Javert desceu primeiro, conferiu com um olhar o número acima da
porta e, erguendo o pesado martelo de ferro fundido, decorado à moda
antiga com um bode e um sátiro que se afrontavam, bateu-o
violentamente. O batente entreabriu-se e Javert o empurrou. O porteiro
surgiu bocejando, vagamente acordado, uma vela na mão.
Tudo dormia na casa. Deita-se cedo no Marais, principalmente em dias
de tumulto. Esse bom e antigo bairro, assustado com a revolução, refugia-
se no sono, tal como as crianças, quando ouvem Croquemitaine3 chegar,
rapidamente escondem a cabeça debaixo dos cobertores.
Enquanto isso, Jean Valjean e o cocheiro tiravam Marius da
carruagem, Jean Valjean segurando-o pelas axilas e o cocheiro pelas
pernas.
Enquanto carregava Marius assim, Jean Valjean colocou sua mão sob
as roupas, que estavam muito rasgadas, e apalpou-lhe o peito assegurando-
se de que o coração ainda batia. Batia até com mais força, como se os
balanços do carro tivessem determinado uma volta à vida.
Javert dirigiu-se ao porteiro, no tom que convém a uma autoridade do
governo que fala com o porteiro de um faccioso.
— Alguém que se chama Gillenormand?
— É aqui. O que deseja com ele?
— Trazemos seu filho.
— Seu filho? — disse o porteiro espantado.
— Ele morreu.
Jean Valjean, que vinha, esfarrapado e sujo, atrás de Javert, e para
quem o porteiro olhava com certo horror, fez-lhe um sinal negativo com a
cabeça.
O porteiro pareceu não haver compreendido nem as palavras de Javert,
nem o sinal de Jean Valjean.
Javert continuou:
— Foi para a barricada, e aí está.
— Para a barricada! — exclamou o porteiro.
— Deixou-se matar. Vá acordar o pai.
O porteiro não se mexia.
— Vá! — disse novamente Javert.
E acrescentou:
— Amanhã haverá um enterro aqui.
Para Javert, os incidentes habituais da via pública eram classificados
por categoria, o que é o princípio da previdência e da vigilância, e cada
eventualidade possuía seu compartimento; os fatos possíveis achavam-se,
de algum modo, em gavetas, de onde saíam, em quantidades variáveis, no
momento apropriado; na rua, havia barulho, tumulto, carnaval e enterro.
O porteiro limitou-se a acordar Basque. Basque acordou Nicolette;
Nicollete acordou a tia Gillenormand. Quanto ao avô, deixaram-no dormir,
pensando que logo saberia do fato.
Transportaram Marius para o primeiro andar, sem que ninguém nas
outras partes da casa percebesse, e deitaram-no em um velho canapé na
antessala do senhor Gillenormand; e, enquanto Basque saía para procurar
um médico e Nicolette abria os armários de roupa, Jean Valjean sentiu que
Javert lhe tocava o ombro. Compreendeu e desceu, tendo atrás de si os
passos de Javert que o seguia.
O porteiro os viu partir, como os vira chegar, em meio a uma
sonolência assustada.
Subiram na carruagem e o cocheiro tomou seu lugar.
— Inspetor Javert — disse Jean Valjean —, conceda-me outro favor.
— Qual? — perguntou Javert com aspereza.
— Deixe-me entrar em minha casa só por um instante. Depois faça de
mim o que quiser.
Javert permaneceu em silêncio alguns instantes, com a cabeça
encostada ao peito; depois abaixou o vidro da frente.
— Cocheiro — disse ele —, rua de l’Homme-Armé, número 7.

XI. ABALO NO ABSOLUTO


Não abriram a boca pelo resto do caminho.
O que desejava Jean Valjean? Acabar o que havia começado; avisar
Cosette, dizer-lhe onde estava Marius, dar-lhe talvez outra indicação útil
e, caso pudesse, tomar algumas medidas supremas. Quanto a ele, quanto
ao que pessoalmente lhe dizia respeito, estava acabado; fora pego por
Javert e não resistia; em tal situação, outra pessoa talvez tivesse
vagamente pensado na corda que Thénardier lhe dera e nas grades da
primeira prisão onde entraria; mas desde seu encontro com o bispo, diante
de qualquer tipo de atentado, mesmo contra si mesmo, havia em Jean
Valjean, insistimos nisso, uma profunda hesitação religiosa.
O suicídio, esse misterioso caminho aberto para o desconhecido, que
em certa medida pode conter a morte da alma, era impossível para Jean
Valjean.
Na entrada da rua de l’Homme-Armé, a carruagem parou, pois essa rua
era muito estreita para que os carros pudessem entrar. Javert e Jean
Valjean desceram.
O cocheiro declarou humildemente ao “senhor inspetor” que o veludo
de Utrecht de seu carro estava todo manchado pelo sangue do homem
assassinado e pela lama do assassino. Era isso que ele havia
compreendido. Acrescentou que uma indenização lhe era devida. Ao
mesmo tempo, tirando do bolso um pequeno caderno, rogou ao senhor
inspetor que tivesse a bondade de escrever ali “algo como um pequeno
atestado”.
Javert repeliu o caderno que o cocheiro lhe estendia, e disse:
— Quanto lhe devo pela espera e pela corrida?
— São sete horas e um quarto — respondeu o cocheiro —, e meu
veludo era totalmente novo. Oitenta francos, senhor inspetor.
Javert tirou do bolso quatro moedas e despediu a carruagem.
Jean Valjean supôs que a intenção de Javert era conduzi-lo a pé ao
posto des Blancs-Manteaux ou ao posto de Archives, que são bem
próximos.
Entraram na rua; como de costume estava deserta. Javert seguia Jean
Valjean. Chegaram ao número 7. Jean Valjean bateu. A porta se abriu.
— Está bem — disse Javert. — Suba.
E acrescentou com estranha expressão, e como se fizesse um esforço
para falar assim:
— Eu o espero aqui.
Jean Valjean fitou Javert. Esse modo de proceder era pouco habitual
em Javert. Mesmo que Javert tivesse agora uma espécie de confiança
altiva, a confiança do gato, que dá ao rato uma liberdade do tamanho de
suas garras, resolvido como Jean Valjean estava a entregar-se e a acabar
com aquilo de uma vez por todas, não se surpreendia muito com isso.
Empurrou a porta, entrou na casa, gritou ao porteiro, que já estava deitado
e que puxara o cordão de sua cama: “Sou eu!” e subiu a escada.
Chegando ao primeiro andar, fez uma pausa. Todas as vias dolorosas
têm paradas. A janela do patamar, que era uma janela-guilhotina, estava
aberta. Como em muitas casas antigas, a escada recebia luz e dava para a
rua. O lampião da rua, situado exatamente em frente, derramava alguma
claridade sobre os degraus, o que representava uma economia de
iluminação.
Jean Valjean, seja para respirar, seja maquinalmente, colocou a cabeça
nessa janela. Inclinou-se e olhou para a rua. Ela é curta e o lampião a
iluminava de uma extremidade à outra. Jean Valjean ficou espantado; não
havia mais ninguém ali.
Javert partira.

XII. O AVÔ
Basque e o porteiro haviam transportado Marius para o salão, onde
continuava imóvel no canapé em que o haviam deitado ao chegar. O
médico que fora chamado chegara. Tia Gillenormand se levantara.
Tia Gillenormand andava de um lado para o outro, apavorada, juntando
as mãos, incapaz de fazer outra coisa além de dizer: “Será possível,
Deus!” Em alguns momentos, acrescentava: “Tudo vai ficar manchado de
sangue!” Passados os primeiros momentos de horror, uma certa filosofia
iluminou seu espírito e traduziu-se por esta exclamação: “Isso só podia
acabar assim!” Porém, não chegou a dizer: Bem que eu dizia! como se
costuma dizer em ocasiões desse tipo.
Por ordem do médico, uma cama de lona foi colocada junro ao canapé.
O médico examinou Marius, e, depois de ter-se certificado de que o pulso
persistia, de que o ferido não tinha no peito nenhuma ferida muito
profunda e de que o sangue dos cantos da boca provinha das fossas nasais,
pediu que o deitassem na cama, sem travesseiro, com a cabeça no mesmo
plano que o corpo, e até um pouco mais baixa, sem roupa até a cintura para
facilitar a respiração. Ao ver que despiam Marius, a senhorita
Gillenormand retirou-se. Começou a recitar o rosário em seu quarto.
O peito não tinha lesões internas; uma bala, amortecida pela carteira,
se desviara e dera a volta às costas, fazendo um medonho rasgão, mas
pouco profundo, e consequentemente sem perigo. A extensa caminhada
subterrânea acabara de deslocar a clavícula quebrada, havendo ali sérios
problemas. Os braços tinham golpes de sabre. Nenhum golpe desfigurara
seu rosto, embora a cabeça tivesse muitos cortes. De que tipo eram esses
ferimentos na cabeça? Teriam apenas atingido o couro cabeludo? Teriam
penetrado o crânio? Ainda não era possível dizer. Um sintoma grave é que
haviam causado o desmaio, e nem sempre se desperta de desmaios desse
tipo. Além disso, a hemorragia havia extenuado o ferido. Da cintura para
baixo, o corpo ficara protegido pela barricada.
Basque e Nicolette rasgavam lençóis e preparavam ataduras; Nicolette
as costurava, Basque as enrolava. Na falta de panos apropriados, o médico
estancara o sangue provisoriamente com chumaços de algodão. Ao lado da
cama ardiam três velas sobre uma mesa, na qual se via o estojo cirúrgico
aberto. O médico lavou o rosto e os cabelos de Marius com água fria. Um
balde cheio logo ficou vermelho. O porteiro, sua vela na mão, iluminava.
O médico parecia pensar com tristeza. Por vezes fazia com a cabeça
um aceno negativo, como se respondesse a alguma pergunta que tivesse
feito a si mesmo. Mau sinal para o doente esses diálogos misteriosos de
um médico com ele mesmo.
No instante em que o médico enxugava o rosto do ferido e tocava
levemente com o dedo suas pálpebras, que continuavam fechadas, abriu-se
uma porta no fundo da sala e um vulto esguio e pálido apareceu.
Era o avô.
Havia dois dias que os tumultos agitavam, indignavam e preocupavam
o senhor Gillenormand. Não pudera dormir na noite anterior, e o dia todo
tivera febre. À noite, deitara muito cedo, recomendando que fechassem
bem todas as portas, e, de cansaço, adormecera.
Os velhos têm o sono leve. O quarto do senhor Gillenormand ficava
contíguo à sala, de modo que, apesar das precauções tomadas, acordara
com o barulho. Admirado por ver luz por entre as frestas da porta, saíra da
cama e viera até ali tateando.
Estava parado na soleira, com uma mão no trinco da porta entreaberta,
a cabeça um pouco inclinada à frente e trêmula, o corpo envolto em um
roupão branco, reto e sem pregas, como uma mortalha, espantado; e
parecia um fantasma olhando para um túmulo.
Viu a cama, e sobre o colchão esse jovem ensanguentado, branco como
cera, os olhos fechados, a boca aberta, os lábios sem cor, nu até a cintura,
crivado de feridas avermelhadas, imóvel, iluminado por uma luz forte.
O avô sentiu, da cabeça aos pés, o estremecimento que é possível aos
membros ossificados; os olhos, cuja córnea se tornara amarelada devido à
idade avançada, velaram-se com uma espécie de espelhamento vítreo; seu
rosto tomou em um instante os ângulos cadavéricos de uma cabeça de
esqueleto; os braços penderam como se a mola que os sustentava tivesse
quebrado, e seu estupor traduziu-se pelo afastamento dos dedos de suas
duas velhas mãos trêmulas; os joelhos se curvaram, deixando ver pela
abertura do roupão as pobres pernas nuas, eriçadas de pelos brancos, e ele
murmurou:
— Marius!
— Senhor — disse Basque —, acabam de trazê-lo. Ele foi para a
barricada e…
— Morreu! — exclamou o velho com voz terrível. — Ah! O bandido!
Então, uma espécie de transfiguração sepulcral endireitou aquele
centenário como se fosse um jovem.
— O senhor é o médico? — perguntou ele. — Antes de mais nada,
diga-me uma coisa. Ele está morto, não está?
O médico, profundamente ansioso, permaneceu em silêncio.
O senhor Gillenormand torceu as mãos soltando uma gargalhada
assustadora:
— Está morto! Está morto! Deixou-se matar na barricada! Por me
odiar! Foi contra mim que ele fez isso! Ah! Sanguinário! É assim que ele
retorna! Miséria de minha vida, ele está morto!
Foi até uma janela, abriu-a completamente como se estivesse
sufocando e, de pé diante da escuridão, começou a falar na rua para a
noite:
— Trespassado, acutilado, degolado, exterminado, retalhado, cortado
em pedaços! Vejam só, o maldito! Ele sabia que eu o esperava, que havia
mandado prepararem seu quarto e que eu colocara na cabeceira de minha
cama seu retrato de quando era pequeno! Ele sabia que bastava voltar, e
que havia anos eu pedia que voltasse, e que eu passava as noites diante do
fogo com as mãos sobre os joelhos, sem saber o que fazer, e que eu era um
imbecil! Você sabia disso, bastaria voltar e dizer: “Sou eu”, e seria o dono
da casa, e eu obedeceria, e você faria o que bem entendesse de seu velho
avô palerma! Você sabia, e disse: “Não, é um monarquista, não irei!” E foi
para as barricadas, e foi morto por maldade! Para vingar-se do que eu lhe
havia dito a respeito do senhor duque de Berry! Isso é que é infame!
Deitem-se e durmam tranquilamente! Ele está morto. É esse meu
despertar.
O médico, que começava a preocupar-se com os dois lados, deixou
Marius por um instante, dirigiu-se ao senhor Gillenormand e pegou em seu
braço. O avô voltou-se, fitou-o com olhos que pareciam maiores e
ensanguentados e lhe disse calmamente:
— Obrigado, senhor! Estou tranquilo, sou um homem, vi a morte de
Luís XVI, sei aguentar os acontecimentos. Só uma coisa é terrível, é
pensar que são seus jornais que fazem todo o mal. Vocês têm
escrevinhadores, faladores, advogados, oradores, tribunas, discussões,
progressos, luzes, direitos do homem, liberdade de imprensa e vejam só
como trarão seus filhos de volta para suas casas. Ah! Marius! É
abominável! Morto! Morrer antes que eu! Uma barricada! Ah! Bandido!
Doutor, o senhor mora no bairro, creio? Oh! Eu o conheço bem. Vejo de
minha janela passar seu cabriolé. Vou lhe dizer. Engana-se se pensa que
estou furioso. Não se fica furioso contra um morto. Seria estupidez! É uma
criança que eu criei. Eu já era velho e ele era ainda muito pequeno.
Brincava nas Tulherias com sua pazinha e sua cadeirinha, e, para que os
guardas não ralhassem, eu ia tapando com minha bengala os buracos que
ele fazia na terra com sua pá. Um dia ele gritou: “Abaixo Luís XVIII!” e
se foi. Não é minha culpa. Ele era corado e loiro. Sua mãe morreu. Notou
como todas as crianças são loiras? Por que será? É filho de um desses
bandidos do Loire, mas os filhos não têm culpa dos crimes dos pais. Ainda
me lembro de quando era pequenino! Não conseguia pronunciar os d.
Tinha um modo de falar tão doce e tão pouco claro que parecia um
pássaro. Lembro-me que uma vez, diante do Hércules Farnese, foi
rodeado, o admiraram e se maravilhavam, tão linda era essa criança! Tinha
uma cabeça como as que se veem nos quadros. Eu engrossava a voz e o
assustava com minha bengala, mas ele sabia que era brincadeira. De
manhã, quando ele entrava no meu quarto, eu resmungava, mas aquilo
fazia em mim o efeito do sol. A gente não pode resistir a esses
pequerruchos! Eles nos prendem, nos seguram, não nos largam mais. A
verdade é que não havia amor como por essa criança. Agora, que me diz
dos Lafayette, dos Benjamin Constant, dos Tirecuir de Corcelles, que o
mataram? Isso não pode ficar assim.
Aproximou-se de Marius, que continuava lívido e imóvel, e para junto
de quem o médico voltara, e recomeçou a torcer os braços. Os lábios
pálidos do velho mexiam-se como que maquinalmente e deixavam passar,
como sopros no estertor, palavras quase indistintas que mal se ouviam:
“Ah! Desalmado. Ah! Clubista! Ah! Perverso! Ah! Setembrista!” Censuras
em voz baixa de um agonizante a um cadáver.
Pouco a pouco, como é necessário que as erupções interiores sejam
exteriorizadas, voltou-lhe o encadeamento das palavras, mas o avô parecia
já não ter forças para pronunciá-las; sua voz estava tão baixa e apagada
que parecia vir do outro lado de um abismo:
— Isso me é indiferente, vou morrer também. E dizer que não há em
Paris uma única mulher que não ficasse feliz em fazer a felicidade desse
miserável! Um patife, que em vez de se divertir e desfrutar a vida, foi lutar
e deixou-se metralhar como um bruto! E por quem? Para quê? Pela
república! Em vez de ir dançar na Chaumière, como devem fazer todos os
rapazes! Vale a pena ter vinte anos. A república, bela asneira! Pobres
mães, façam meninos bonitos! Vamos, ele está morto. Serão dois enterros
a sair pelo portão. Você ficou nesse estado pelos belos olhos do general
Lamarque! Que lhe fez esse general Lamarque? Um esfaqueador, um
falador! Deixar-se matar por um morto! Não é de endoidecer? Entendam
isso! Aos vinte anos! E sem ao menos olhar para trás e ver se não deixava
algo! Agora, esses pobres velhos que se vejam forçados a morrer sozinhos!
Morra no seu canto, urubu! Enfim, na verdade, melhor assim, era o que eu
esperava, isso logo me matará. Sou muito velho, tenho cem anos, tenho
cem mil anos, faz tempo que tenho o direito de estar morto. Com esse
golpe, está feito. Acabou, que felicidade! De que adianta fazê-lo respirar
amoníaco e todas essas drogas? O senhor perde seu tempo, imbecil de
médico! Ande, ele está morto e bem morto. Disso eu entendo, eu que
também estou morto. Ele não fez a coisa pela metade. Sim, o tempo de
agora é infame, infame, infame, e é isso que eu penso de vocês, de suas
ideias, de seus sistemas, de seus mestres, de seus oráculos, de seus
médicos, de seus escritores patifes, de seus filósofos miseráveis, e de
todas as revoluções que há sessenta anos sobressaltam os bandos de corvos
das Tulherias! E já que não teve pena deixando-se matar assim, não terei
desgosto por sua morte, ouviu, assassino!
Nesse momento, Marius abriu lentamente as pálpebras, e seu olhar,
ainda embaçado pelo pasmo letárgico, parou sobre o senhor Gillenormand.
— Marius! — gritou o ancião. — Marius! Meu pequeno Marius! Meu
menino! Meu filho bem-amado! Você abre os olhos, você me olha, você
está vivo, obrigado!
E caiu desmaiado.

__________________________
1 Nome dado aos jovens cujas ideias democráticas se destacavam.
2 Espécie de gíria, palavra derivada do verbo filer, aqui usada no sentido de seguir alguém a
distância, sem se mostrar.
3 Outro nome que se dá ao Bicho-Papão.
LIVRO IV
JAVERT SEM RUMO

JAVERT se afastara lentamente da rua de l’Homme-Armé.


Caminhava de cabeça baixa pela primeira vez em sua vida, e,
igualmente pela primeira vez em sua vida, com as mãos atrás das costas.
Até aquele dia, Javert apenas imitara Napoleão na atitude que exprime
resolução, os braços cruzados sobre o peito; a que exprime incerteza, as
mãos atrás das costas, era-lhe desconhecida. Agora, uma mudança fora
operada: toda a sua pessoa, lenta e sombria, estava impregnada de
ansiedade.
Embrenhou-se nas ruas silenciosas.
Contudo, seguia uma direção.
Tomou o caminho mais curto para o Sena, chegou ao cais des Ormes,
percorreu o cais, ultrapassou a Grève, e parou, a pouca distância do posto
da praça du Châtelet, na esquina da ponte Notre-Dame. Ali, o Sena forma,
entre a ponte Notre-Dame e a ponte au Change de um lado, e entre o cais
de la Messagerie e o cais aux Fleurs, do outro lado, uma espécie de lago
quadrado, atravessado por uma torrente.
Esse ponto do Sena é temido pelos marinheiros. Nada é mais perigoso
do que aquela torrente, encorpada nessa época e irritada pelos pilares do
moinho da ponte, hoje demolido. As duas pontes, tão próximas uma da
outra, aumentam o perigo; a água corre com formidável velocidade sob os
arcos. Ela forma largas pregas terríveis; ali se acumula e se amontoa; o
fluxo força os pilares das pontes como se tentasse arrancá-los com grossas
cordas líquidas. Os homens que caem ali não reaparecem; os melhores
nadadores se afogam.
Javert apoiou os dois cotovelos no parapeito, seu queixo nas duas
mãos, e, enquanto suas unhas se crispavam maquinalmente na espessura
de suas suíças, refletia.
Uma novidade, uma revolução, uma catástrofe acabava de se operar
em seu interior; por isso era necessário examinar-se.
Javert sofria terrivelmente.
Havia algumas horas Javert deixara de ser simples. Estava perturbado;
aquele cérebro, tão límpido em sua cegueira, perdera sua transparência;
havia uma nuvem naquele cristal. Javert sentia em sua consciência o dever
desdobrar-se e não podia esconder isso de si mesmo. Quando tão
inopinadamente encontrara Jean Valjean na margem do Sena, houvera nele
algo do lobo que torna a se apoderar de sua presa e do cão que reencontra
seu mestre.
Via diante de si dois caminhos, ambos retos, mas via dois; e isso o
apavorava, a ele, que nunca em sua vida conhecera senão uma única linha
reta. E, angústia pungente, esses dois caminhos eram opostos. Qualquer
uma dessas linhas retas excluía a outra. Qual delas era a verdadeira?
Sua situação era inexprimível.
Dever a vida a um malfeitor; aceitar essa dívida e reembolsá-la; achar-
se, contra a própria vontade, no mesmo nível de um foragido da justiça, e
pagar-lhe um favor com outro favor; deixar que lhe dissessem: Vá embora,
e por sua vez dizer: Está livre; sacrificar por motivos pessoais o dever,
essa obrigação geral, e sentir nesses motivos pessoais algo de geral
também, e talvez de superior; trair a sociedade para permanecer fiel à sua
consciência; que todos esses absurdos se realizassem e se acumulassem
sobre ele mesmo, eis com o que estava aterrado.
Uma coisa o deixara admirado, que Jean Valjean o tivesse poupado; e
uma outra coisa o havia petrificado, que ele, Javert, tivesse poupado Jean
Valjean.
Onde estava? Procurava-se e não mais se encontrava.
Que fazer agora? Entregar Jean Valjean era errado; deixar Jean Valjean
livre era errado. No primeiro caso, o homem da autoridade descia abaixo
do homem preso; no segundo, um miserável ia mais alto que a lei e metia-
lhe o pé por cima. Nos dois casos, desonra para ele, Javert. Qualquer que
fosse a resolução que tomasse, haveria uma queda. O destino tem certas
extremidades que vêm a pique sobre o impossível e para além das quais a
vida nada mais é que um precipício. Javert achava-se em uma dessas
extremidades.
Uma de suas ansiedades era ser obrigado a pensar. A própria violência
de todas aquelas emoções contraditórias obrigava-o a isso. Pensar, coisa
inusitada e singularmente dolorosa para ele.
No pensamento há sempre uma certa quantidade de rebelião íntima;
ele se irritava por ter isso em si.
O pensamento, sobre qualquer assunto além do estrito círculo de suas
funções, teria sido para ele, em todos os casos, algo inútil e cansativo; mas
pensar sobre o dia que acabara de passar era uma tortura. Entretanto, após
tais abalos, era necessário olhar sua consciência e dar conta de si mesmo a
si mesmo.
O que acabava de fazer lhe dava arrepios. Ele, Javert, houvera por bem
decidir, contra todos os regulamentos da polícia, contra toda a organização
social e judiciária, contra o código inteiro, pela libertação de alguém; isso
lhe conviera; ele sobrepusera seus negócios aos negócios públicos; isso
não era inqualificável? Cada vez que pensava nesse ato sem nome que
cometera, estremecia da cabeça aos pés. Que resolução deveria tomar?
Restava-lhe apenas um recurso; voltar rapidamente à rua de l’Homme-
Armé, e prender Jean Valjean. Era evidente que era isso o que tinha de
fazer. Mas não podia.
Algo lhe obstruía o caminho por esse lado.
Algo? O quê? Existe no mundo outra coisa além de tribunais, de
sentenças executórias, de polícia e de autoridade? Javert estava
transtornado.
Um bendito forçado! Um miserável inacessível à justiça! E isso por
causa de Javert!
Que Javert e Jean Valjean, o homem feito para castigar e o homem
feito para ser catigado, que esses dois homens, que eram, um e outro,
coisas da lei, tivessem chegado a ponto de se colocarem, os dois, acima da
lei, não era assustador?
E então! Tais barbaridades aconteceriam e ninguém seria punido! Jean
Valjean, mais forte que toda a ordem social, estaria livre, e ele, Javert,
continuaria comendo o pão do governo!
Suas reflexões gradualmente tornavam-se terríveis.
Por meio dessas reflexões ele ainda poderia se repreender um pouco
mais a respeito do insurgente que fora levado à rua Filles-du-Calvaire;
mas não pensava nisso. O erro menor perdia-se no maior. Aliás, esse
insurgente era evidentemente um homem morto e, legalmente, a morte faz
a perseguição terminar.
Jean Valjean, era esse o peso que tinha sobre seu espírito.
Jean Valjean o desconcertava. Todos os axiomas que haviam sido o
ponto de apoio de toda a sua vida desmoronavam diante desse homem. A
generosidade de Jean Valjean para com ele, Javert, o oprimia. Outros fatos,
dos quais se lembrava, e que antes tratara como mentiras e loucuras,
retornavam agora como realidades. O senhor Madeleine surgia por trás de
Jean Valjean, e as duas figuras se sobrepunham de modo a formarem uma
só, que era venerável. Javert sentia que algo horrível penetrava em sua
alma, a admiração por um bandido. Respeitar um bandido, seria possível?
Estremecia e não conseguia esquivar-se. Por mais que se debatesse, em
seu íntimo reconhecia a sublimidade desse miserável. Isso era odioso.
Um malfeitor benfazejo, um miserável compassivo, meigo, prestativo,
clemente, pagando com o bem o mal, perdoando a quem o odiava,
preferindo a compaixão à vingança, preferindo até perder-se a perder seu
inimigo, salvando quem nele batera, ajoelhado no alto da virtude, mais
vizinho do anjo que do homem! Javert era obrigado a confessar a si
mesmo que esse monstro existia!
Isso não podia continuar assim.
É claro, e insistimos nesse ponto, que ele não se rendera sem
resistência àquele monstro, àquele anjo infame, àquele herói medonho,
pelo qual sentia indignação tanto quanto admiração. Vinte vezes, quando
estivera cara a cara com Jean Valjean dentro da carruagem, o tigre da lei
rugira em seu íntimo. Vinte vezes sentira-se tentado a se arremessar sobre
Jean Valjean e devorá-lo, isto é, prendê-lo. Na verdade, nada mais simples.
Bastaria gritar diante do primeiro posto pelo qual passassem: “Aqui está
um condenado que escapou!”, chamar os guardas e dizer: “Este homem é
para vocês!”, e em seguida ir embora, deixar ali aquele réprobo, ignorar o
resto, e não imiscuir-se em nada mais. Esse homem é um prisioneiro da lei
para sempre; a lei fará dele o que lhe aprouver. Que haveria de mais justo?
Javert pensara em tudo isso; quisera ir adiante, agir, prender o homem,
mas então, como agora, não conseguira; e cada vez que sua mão se
levantara convulsivamente para agarrar Jean Valjean pelo pescoço, sua
mão, como se estivesse sob um peso enorme, voltara a cair; e ele ouvira,
no fundo do seu pensamento, uma estranha voz que lhe gritava: “Está bem.
Entregue seu salvador. Depois mande trazer a bacia de Pôncio Pilatos, e
lave suas garras”.
Em seguida, suas reflexões recaíam sobre si mesmo, e, ao lado de Jean
Valjean engrandecido, ele, Javert, se via degradado.
Seu benfeitor era um criminoso!
Mas por que permitira a esse homem que o deixasse viver? Naquela
barricada, tinha o direito de ser morto. Deveria ter usado esse direito.
Chamar os outros insurgentes em seu auxílio contra Jean Valjean, fazer-se
fuzilar à força, teria sido melhor.
Sua suprema angústia era o desaparecimento da certeza. Sentia-se
desenraizado. O código já não era mais que uma coisa inútil em suas
mãos. Tinha de se haver com escrúpulos de natureza desconhecida.
Operava-se nele uma revelação sentimental, inteiramente distinta da
afirmativa legal, sua única norma até então. Permanecer na antiga
honestidade já não era mais o bastante. Surgia toda uma ordem de fatos
inesperados que o subjugava. Surgia em sua alma um mundo inteiramente
novo; o benefício aceito e retribuído, a dedicação, a misericórdia, a
indulgência, as violências feitas por piedade à austeridade, a acepção de
pessoas, não mais a condenação definitiva, não mais as penas, a
possibilidade de uma lágrima nos olhos da lei, certa justiça segundo Deus
indo em sentido inverso à justiça segundo os homens. Ele percebia nas
trevas o assustador despontar de um sol moral desconhecido, que o
horrorizava e deslumbrava. Um mocho forçado a ter olhares de águia.
Dizia a si mesmo que então era verdade, que havia exceções, que a
autoridade podia ser confundida, que a regra podia ser insuficiente perante
um fato, que nem tudo se enquadrava ao texto do código, que era preciso
obedecer ao imprevisto, que a virtude de um criminoso podia preparar
uma armadilha à virtude de um funcionário, que o monstruoso podia ser
divino, que o destino tinha dessas ciladas, e pensava com desespero que
ele mesmo não estivera ao abrigo de uma surpresa.
Era forçado a reconhecer que a bondade existia. Esse criminoso fora
bom. E ele mesmo, coisa incrível, acabara de ser bondoso. Portanto,
depravava-se.
Achava-se covarde. Tinha horror de si mesmo.
Para Javert, o ideal não era ser humano, ser grande, ser sublime; era
ser irrepreensível.
Mas acabara de falhar.
Como chegara a tanto? Como tudo isso havia ocorrido? Nem ele
próprio poderia dizer-se. Tomava a cabeça entre as mãos, e, por mais que
tentasse, não conseguia encontrar uma explicação.
Certamente sempre tivera a intenção de devolver Jean Valjean à lei da
qual Jean Valjean era o cativo, e de quem ele, Javert, era o escravo. Nem
por um momento, enquanto o mantinha em seu poder, pensou em soltá-lo.
De certa forma, fora quase à revelia que sua mão se abrira e o libertara.
Todo tipo de novidades enigmáticas abriam-se diante de seus olhos.
Interrogava-se e respondia a si mesmo, e suas respostas o assustavam.
Perguntava-se: “Esse criminoso, esse desesperado que segui e persegui,
que me teve sob os pés, que podia então vingar-se, que devia vingar-se,
tanto por seu rancor quanto por sua segurança, deixando-me vivo,
concedendo-me o perdão, o que ele fez? Seu dever. Não. Mais que isso. E
eu, ao perdoá-lo, o que fiz? Meu dever? Não. Mais que isso. Existe, então,
algo mais que o dever?” Nesse ponto se espantava; sua balança se
deslocava, um dos pratos caía no abismo, o outro ia até o céu, e Javert não
sentia menos espanto pelo prato que estava em cima do que pelo que
estava embaixo. Sem ser de modo algum o que chamamos de voltairiano,
ou filósofo, ou incrédulo, respeitoso ao contrário, por instinto, para com a
Igreja estabelecida, não a conhecia senão como um fragmento augusto do
conjunto social; a ordem era seu dogma e bastava-lhe; desde que tinha
idade de homem e de funcionário, colocara na polícia toda a sua religião,
sendo espião, e empregamos aqui a palavra sem a menor ironia e em sua
mais séria acepção, sendo, como já dissemos, espião como se é padre.
Tinha um superior, o senhor Gisquet; e até aquele dia nunca havia pensado
no outro superior, Deus.
Esse novo chefe, Deus, ele o sentia inopinadamente, e isso o
perturbava.
Estava desorientado diante dessa presença inesperada; não sabia o que
fazer com esse superior, ele que não ignorava que o subordinado é
obrigado a curvar-se sempre, que não deve nem desobedecer, nem
censurar, nem discutir, e que, perante um superior que lhe cause
demasiado espanto, o único recurso do inferior é demitir-se.
Mas como fazer para pedir demissão a Deus?
Fosse como fosse, e ele sempre retornava ao mesmo ponto, para ele,
um fato dominava tudo. Acabara de cometer uma infração terrível.
Acabara de fechar os olhos sobre um criminoso reincidente que fugira da
prisão. Deixara um condenado em liberdade. Acabava de roubar às leis um
homem que lhes pertencia. Fizera isso. Não se compreendia mais. Não
estava mais seguro de ser ele mesmo. As próprias razões de seu ato lhe
escapavam e isso causava-lhe apenas vertigem. Vivera, até esse momento,
dessa fé cega que produz a probidade tenebrosa. Essa fé o abandonava,
essa probidade lhe faltava. Tudo em que havia acreditado se dissipava.
Verdades que ele não desejava o obcecavam inexoravelmente. A partir de
agora era preciso ser um outro homem. Sofria as estranhas dores de uma
consciência bruscamente operada de catarata. Via o que lhe causava
repugnância ver. Sentia-se vazio, inútil, deslocado de sua vida passada,
destituído, dissolvido. A autoridade morrera nele. Já não tinha razão de
ser.
Terrível situação! Estar comovido.
Ser o granito e duvidar! Ser a estátua do castigo fundida no molde da
lei e, de repente, perceber que se tem sob o peito de bronze uma coisa
absurda e desobediente que quase parece um coração! Chegar a retribuir o
bem com o bem, embora até então se dissesse que aquele bem era o mal!
Ser um cão de guarda e lamber! Ser gelo e derreter! Ser uma tenaz e
tornar-se uma mão! Sentir de repente dedos se abrindo! Soltar a presa,
coisa assustadora!
O homem projétil que não sabe mais seu caminho e recua!
Ser obrigado a confessar-se o seguinte: que a infalibilidade não é
infalível, que pode existir erro no dogma, que um código não prevê tudo,
que a sociedade não é perfeita, que a autoridade se complica por
vacilações, que um abalo no imutável é possível, que os juízes são
homens, que a lei pode enganar-se, que os tribunais podem errar! Que se
pode ver uma fenda na imensa vidraça azul do firmamento!
O que se passava em Javert era o Fampoux1 de uma consciência
retilínea, o extravio de uma alma, o esmagamento de uma probidade
irresistivelmente lançada em linha reta e despedaçando-se em Deus. Sem
dúvida, isto era estranho: que o motorista da ordem, que o mecânico da
autoridade, montado no cego cavalo de ferro de via rígida, pudesse ser
derrubado por um golpe de luz! Que o incomutável, o direto, o correto, o
geométrico, o passivo, o perfeito, pudesse dobrar-se! Que houvesse para a
locomotiva um caminho de Damasco!
Deus, sempre interior ao homem, Ele, a verdadeira consciência,
refratário à falsa, proíbe à faísca de apagar-se, ordena ao raio que se
recorde do sol, intima à alma que reconheça o verdadeiro absoluto quando
confrontado ao silêncio fictício, a humanidade imperdível, o coração
humano inadmissível — acaso Javert compreendia esse esplêndido
fenômeno, o mais belo talvez de nossos prodígios íntimos? Javert o
penetrava? Javert o percebia? Evidentemente não. Mas, sob a pressão
desse incompreensível incontestável, sentia seu crânio entreabrir-se.
Ele era mais a vítima que o transfigurado desse prodígio. Suportava-o,
exasperado. Em tudo isso, nada mais via que uma imensa dificuldade de
ser. Parecia-lhe que desde então sua respiração estava dificultada para
sempre.
Ter o desconhecido sobre a cabeça era algo a que não estava
acostumado.
Até então, tudo o que tivera acima de si fora, a seu modo de ver, uma
superfície clara, simples, límpida; ali nada havia de ignorado, nem de
obscuro; nada que não fosse definido, coordenado, ligado, preciso, exato,
circunscrito, limitado, fechado; totalmente previsto; a autoridade era uma
coisa plana; nenhuma queda, nenhuma vertigem diante dela. Javert nunca
vira o desconhecido senão embaixo. O irregular, o inesperado, a abertura
desordenada do caos, a possibilidade de uma queda em um precipício,
todos esses eram fatos das regiões inferiores, dos rebeldes, dos maus, dos
miseráveis. Agora, Javert caía de costas, e estava bruscamente espantado
com essa aparição inédita: um abismo nas alturas.
Como! Estava completamente desmantelado! Absolutamente
desconcertado! Em que se fiar? Aquilo de que estava convencido
desmoronava!
Como! A falha da couraça da sociedade podia ser encontrada por um
miserável magnânimo! Como! Um honesto servidor da lei podia ver-se, de
repente, preso entre dois crimes, o crime de deixar escapar um homem e o
crime de prendê-lo! Nem tudo era certo nas instruções dadas pelo Estado
ao funcionário! Poderiam existir impasses no dever! Que, então! Tudo isso
era real! Era verdade que um antigo bandido, curvado sob as condenações,
pudesse erguer-se e acabar tendo razão? Isso era possível? Então, havia
casos em que a lei deveria retirar-se diante do crime transfigurado
balbuciando desculpas?
Sim, isso existia! E Javert o constatava! E Javert o tocava! E não só
não podia negar, como tomava parte nisso. Eram realidades. Era
abominável que os fatos reais pudessem chegar a tal deformidade.
Se os fatos cumprissem seu dever, deveriam limitar-se a ser as provas
da lei; os fatos, Deus é quem os envia. Será então que a anarquia desceria
agora lá de cima?
Assim — no crescimento da angústia e na ilusão de óptica da
consternação, tudo o que poderia ter restringido e corrigido sua impressão
se apagava, e a sociedade, e o gênero humano, e o universo a partir
daquele momento resumiam-se, a seus olhos, a um esboço simples e
terrível —, assim a penalidade, a coisa julgada, a força devida à
legislação, as sentenças das cortes soberanas, a magistratura, o governo, a
prevenção e a repressão, a sabedoria oficial, a infalibilidade legal, o
princípio da autoridade, todos os dogmas em que se baseiam a segurança
política e civil, a soberania, a justiça, a lógica que deriva do código, o
absoluto social, a verdade pública, tudo isso não passava de destroços,
amontoados, caos; o próprio Javert, o vigia da ordem, a incorruptibilidade
a serviço da polícia, a providência-mastim da sociedade, vencido e jogado
ao chão; e sobre toda essa ruína um homem de pé, boné verde na cabeça e
auréola na fronte; eis a que ponto seu transtorno chegara; eis a visão
assustadora que tinha na alma.
Isso era suportável? Não.
Estado violento, ao que tudo indicava. Só havia duas maneiras de sair
dele. Uma, ir resolutamente até Jean Valjean e restituir ao cárcere o
homem da prisão. A outra…
Javert deixou o parapeito e, agora de cabeça erguida, dirigiu-se a
passos firmes a um posto indicado por uma lanterna em um dos cantos da
praça du Châtelet.
Ali chegando, viu pela janela um guarda municipal, e entrou.
Simplesmente pelo modo como empurram a porta de uma delegacia, os
homens da polícia se reconhecem. Javert disse seu nome, mostrou sua
carteira ao sargento e sentou-se à mesa do posto, sobre a qual ardia uma
vela. Sobre a mesa havia uma caneta, um tinteiro de chumbo e papel para
eventuais processos-verbais e as consignações das rondas noturnas.
Essa mesa, sempre completada por sua cadeira de palha, é uma
instituição; ela existe em todas as delegacias de polícia; é invariavelmente
ornamentada por um pires de madeira cheio de serragem e por um
recipiente cheio de lacres vermelhos; é o estágio inferior do estilo oficial.
É nela que começa a literatura de Estado.
Javert pegou a pena e uma folha de papel e começou a escrever. Eis o
que ele escreveu:

Algumas observações para o bem do serviço

“Primeiro: peço ao senhor delegado passar os olhos.


Segundo: os presos, voltando do interrogatório, tiram os sapatos e ficam com os pés
descalços sobre os ladrilhos enquanto são revistados. Muitos tossem ao entrar na prisão. Isso
acarreta despesas de enfermaria.
Terceiro: a ‘filature’ é uma coisa boa, com a substituição dos agentes de distância em
distância, mas seria preciso que, nas ocasiões importantes, pelo menos dois agentes nunca se
perdessem de vista, para que, se por qualquer motivo, um deles vier a falhar, o outro o vigie
e substitua.
Quarto: não é explicado por que o regulamento especial da prisão das Madelonnettes
proíbe ao prisioneiro possuir uma cadeira, mesmo pagando por ela.
Quinto: em Madelonnettes só existem duas barras de ferro na cantina, o que permite à
cozinheira deixar que os presos toquem sua mão.
Sexto: os presos chamados gritadores, que chamam os outros presos ao locutório,
cobram dois soldos do prisioneiro para gritar seu nome claramente. É um roubo.
Sétimo: por um fio puxado, cobram dez soldos do prisioneiro na oficina dos tecelões; é
um abuso do empreiteiro, já que o tecido nem por isso é pior.
Oitavo: é inconveniente que os visitantes da Force tenham de atravessar o pátio das
crianças para entrar no locutório Sainte-Marie-l’Egyptienne.
Nono: é certo que todos os dias ouvem-se alguns guardas contando, no pátio da
delegacia, os interrogatórios feitos pelos magistrados aos acusados. Um guarda, que deveria
manter segredo, repetindo o que ouviu no gabinete de instrução, eis um delito grave.
Décimo: a senhora Henry é uma mulher honesta; sua cantina é muito limpa; mas não é
conveniente que uma mulher possua a chave da solitária. Isso não é digno da Conciergerie
de uma grande civilização.”

Javert escreveu essas linhas com a mais serena e a mais correta


caligrafia, não omitindo uma vírgula, e fazendo o papel ranger sob a pena.
Abaixo da última linha assinou:

“Javert.
Inspetor de 1a classe.
Ao posto da praça du Châtelet.
7 de junho de 1832, por volta de uma hora da manhã”.
Javert secou a tinta fresca sobre o papel, dobrou-o como uma carta,
lacrou-o, escreveu no verso: Nota para a administração, deixou-o sobre a
mesa e saiu do posto. A porta de vidro gradeada fechou-se atrás dele.
Atravessou outra vez, diagonalmente, a praça du Châtelet, chegou ao
cais, e voltou com uma precisão automática ao mesmo lugar que deixara
um quarto de hora antes, apoiou-se, e voltou a ficar na mesma atitude
sobre a mesma pedra do parapeito. Parecia não haver se movido.
A escuridão era completa. Era o momento sepulcral que vem após a
meia-noite. Um teto de nuvens escondia as estrelas. O céu apresentava
uma espessura sinistra. Nas casas da cidade não se via uma única luz;
ninguém passava; tudo o que se via das ruas e dos cais estava deserto;
Notre-Dame e as torres do Palácio de Justiça pareciam feições da noite.
Um lampião avermelhava a orla do cais. As silhuetas das pontes
deformavam-se na bruma, umas após as outras. As chuvas haviam
engrossado o rio.
O lugar em que Javert se encontrava ficava, como se lembram,
exatamente acima da corrente do Sena, a prumo sobre a medonha espiral
de turbilhões que se enrosca e desenrosca como um parafuso sem fim.
Javert estendeu a cabeça e olhou. Tudo estava escuro. Não se
distinguia nada. Ouvia-se apenas o barulho da espuma; mas não se via o
rio. Por instantes, nessa profundidade vertiginosa, um clarão aparecia e
serpenteava vagamente, poder que a água tem, mesmo na noite mais
completa, de tirar luz não se sabe de onde e transformá-la em serpente.
Essa luz desaparecia e tudo voltava a ficar indistinto. A imensidão parecia
aberta ali. O que estava ali embaixo não era água, era abismo. O muro do
cais, abrupto, confuso, misturado ao vapor, subitamente escondido, fazia o
efeito de uma escarpa do infinito.
Não se via nada, mas sentia-se a frieza hostil da água e o cheiro das
pedras molhadas. Um hálito feroz elevava-se daquele abismo. A cheia do
rio, mais adivinhada do que avistada, o trágico murmúrio do fluxo, a
lúgubre enormidade dos arcos da ponte, a queda imaginada nesse vazio
sombrio, toda essa sombra estava cheia de horror.
Javert permaneceu alguns minutos imóvel, olhando para aquela
abertura de trevas, contemplando o invisível com uma fixidez que se
assemelhava à atenção. A água rumorejava. De repente, tirou o chapéu e
colocou-o em cima do muro do cais. Um momento depois, um vulto alto e
negro, que, de longe, algum passante tardio tomaria por um fantasma,
apareceu de pé em cima do parapeito, curvou-se em direção ao Sena,
ergueu-se e caiu direto nas trevas; houve um movimento rápido e surdo
das águas; e somente a escuridão presenciou o segredo das convulsões
daquela forma obscura que desapareceu sob a água.

__________________________
1 Referência a uma das primeiras catástrofes ferroviárias da França, em 1846.
LIVRO V
O NETO E O AVÔ

I. EM QUE SE VOLTA A VER A ÁRVORE DA CHAPA


DE ZINCO
POUCO TEMPO depois dos acontecimentos que acabamos de narrar,
Boulatruelle teve uma forte emoção.
Boulatruelle era aquele senhor que trabalhava na manutenção das
estradas de Montfermeil, a quem já entrevimos nas partes tenebrosas deste
livro. Ele era, talvez se lembrem, um homem ocupado com coisas
obscuras e diversas, empregando seu tempo a britar pedras e a assaltar os
viajantes nas estradas.
Encarregado das estradas e ladrão, tinha um sonho, acreditava
existirem tesouros enterrados na floresta de Montfermeil.
Esperava algum dia encontrar dinheiro escondido ao pé de alguma
árvore; e, enquanto esperava, ia procurando com gosto nos bolsos dos
viajantes.
No entanto, estava em um momento de cautela.
Ele acabara de escapar de uma boa. Tinha sido apanhado na espelunca
Jondrette, como se sabe, juntamente com os outros malfeitores. Utilidade
de um vício: sua embriaguez o salvara. Nunca foi possível esclarecer se
ele se encontrava ali como ladrão ou como roubado. Um parecer do
tribunal, fundado em seu estado de embriaguez bem comprovado na noite
da cilada, colocou-o em liberdade. Assim, retomou a chave dos bosques.
Voltou à estrada de Gagny a Lagny, sob vigilância administrativa,
continuando a fazer o calçamento por conta do Estado, cabisbaixo,
pensativo, um tanto desanimado com o roubo, que quase o pôs a perder,
porém cada vez mais afeiçoado ao vinho, que acabava de salvá-lo.
Quanto à forte emoção que experimentou logo depois que se recolheu a
sua choupana, aqui vai:
Uma madrugada, dirigindo-se como de costume a seu trabalho, e
talvez a sua espreita, Boulatruelle avistou, por entre os galhos, um homem
a quem só viu de costas, mas cuja figura, apesar da distância e da pouca
luminosidade, não lhe era inteiramente desconhecida.
Ainda que embriagado, Boulatruelle possuía uma memória correta e
lúcida, arma defensiva indispensável a qualquer um que esteja meio em
luta com a ordem legal.
— Onde diabos eu já vi alguém como aquele homem? — perguntou a
si mesmo.
Porém, a única resposta que encontrou foi que aquele homem se
parecia com alguém cuja imagem tinha confusamente gravada na mente.
Contudo, na impossibilidade de reconhecer a identidade do indivíduo,
fez uma série de cálculos e confrontações; o homem não era da região,
estava chegando de fora. A pé, evidentemente. Nenhuma condução passa a
essas horas em Montfermeil. Havia caminhado a noite inteira. De onde
vinha? Não de muito longe, pois não trazia nem uma mochila, nem um
embrulho. De Paris, provavelmente. Por que se acharia naquele bosque,
em uma hora daquelas? O que viera fazer?
Boulatruelle pensou no tesouro.
À força de investigar em sua memória, lembrou-se vagamente de ter
tido, vários anos atrás, um alerta parecido a respeito de um homem que
bem lhe parecia ser o mesmo que ali estava.
Levado pelo peso de suas meditações, Boulatruelle baixou a cabeça,
coisa natural mas pouco hábil, pois, quando tornou a erguê-la, não havia
mais ninguém. O homem havia sumido na floresta, e naquele crepúsculo.
— Pelo diabo! — disse Boulatruelle. — Vou encontrá-lo. Vou
descobrir de que paróquia é esse aí. Esse visitante da madrugada tem um
porquê, e eu vou saber qual é. Ninguém vai ter um segredo em meu bosque
sem que eu tome parte.
Pegou sua enxada, que estava bem afiada.
— É com isto — resmungou — que a gente revista a terra e um
homem.
E como quem ata um fio no outro, caminhando o mais depressa que
podia na direção que o homem devia ter tomado, partiu através da mata.
Quando já tinha dado uma centena de passos, o dia, que começava a
romper, ajudou-o. Algumas pegadas impressas aqui e ali na areia, o mato
pisado, plantas esmagadas, ramos novos vergados, que se endireitavam
com graciosa lentidão, como os braços de uma bela mulher que se
espreguiça ao acordar, indicavam-lhe uma espécie de pista. Ele a seguiu,
depois a perdeu. O tempo ia passando.
Mais adiante, entrou no bosque e chegou a uma espécie de
proeminência.
Um caçador matinal que passava ao longe, em uma vereda, assobiando
a ária de Guillery, deu-lhe a ideia de subir em uma árvore. Apesar da
idade, ele era ágil. Subiu em uma corpulenta faia que havia ali, digna de
Títiro e de Boulatruelle. Boulatruelle subiu o mais alto que pôde.
A ideia não podia ser melhor.
Espreitando a quietude do lado em que o bosque é mais fechado e
selvagem, de repente avistou o homem. Mal o avistou e logo já o perdeu
de vista.
O homem entrou, ou melhor, deslizou por uma clareira bastante
afastada, encoberta por grandes árvores, mas Boulatruelle a conhecia
muito bem, por já haver reparado ali, junto a um amontoado de pedras, em
um castanheiro doente, atado com uma chapa de zinco que cobria seu
tronco. Essa clareira era a que, antigamente, chamavam campo Blaru. O
monte de pedras, destinado não se sabe a que fim, que ali se via havia
trinta anos, provavelmente ainda está lá. Nada se iguala à longevidade de
um monte de pedras, a não ser a de um tapume de madeira. Estão ali
provisoriamente. Melhor razão para durar!
Boulatruelle, com a velocidade do prazer, mais do que descer, deixou-
se cair da árvore.
Estava descoberto o covil, restava apanhar a presa. O tão sonhado
tesouro provavelmente estava ali.
Mas não era pouca coisa chegar à clareira. Pelos caminhos abertos, que
faziam mil ziguezagues impertinentes, levaria um bom quarto de hora. Em
linha reta, pelo meio do arvoredo que, naquele trecho, era particularmente
cerrado, espinhoso e muito agressivo, levaria mais de meia hora.
Foi isso que Boulatruelle errou em não entender. Seguiu a linha reta;
ilusão de ótica respeitável, mas que perde muitos homens. O bosque, por
mais cerrado que fosse, lhe pareceu o melhor caminho.
— Vamos pela rua de Rivoli dos lobos — pensou.
Acostumado a ir de través, cometeu dessa vez o erro de ir em linha
reta. Embrenhou-se resolutamente no emaranhado do bosque. Viu-se às
voltas com urtigas, silvas, carrascos, cardos, espinheiros afiadíssimos;
ficou muito arranhado.
Na parte inferior do barranco, encontrou um charco que teve de
atravessar.
Afinal chegou à clareira Blaru, depois de quarenta minutos, suado,
molhado, esbaforido, arranhado e furioso.
Não encontrou ninguém.
Correu ao monte de pedras. Estava no lugar. Ninguém o havia levado.
Quanto ao homem, sumira na floresta. Evadira-se. Por onde? Para que
lado? Por qual bosque? Impossível adivinhar.
E, coisa incrível, entre a árvore que tinha a chapa de zinco e o monte
de pedras, a terra estava remexida de fresco, uma pá fora esquecida ou
abandonada, e uma cova aberta.
A cova estava vazia.
— Ladrão! — bradou Boulatruelle, levantando os punhos cerrados.

II. MARIUS, SAINDO DA GUERRA CIVIL, PREPARA-


SE PARA A GUERRA DOMÉSTICA
Por muito tempo, Marius não estava nem morto nem vivo. Durante
várias semanas teve uma febre acompanhada de delírios e de gravíssimos
sintomas cerebrais, causados mais pelas comoções das feridas na cabeça
do que pelas próprias feridas.
Durante noites inteiras, repetiu o nome de Cosette na lúgubre
loquacidade da febre e com a sombria obstinação da agonia. A extensão de
algumas lesões era de grande perigo; a supuração das feridas maiores
correndo o risco de reabsorção poderia, por consequência, matar o doente,
sob certas influências atmosféricas; a cada mudança de tempo, à menor
tempestade, o médico se preocupava. “Acima de tudo, que o doente não
tenha nenhuma emoção”, repetia ele.
Os curativos eram complicados e difíceis; naquela época, ainda não se
sonhava com a fixação de aparelhos e ataduras pelo esparadrapo. Nicolette
desfez em faixas um lençol “grande como o teto de uma casa”, dizia ela.
Não foi sem dificuldade que as loções cloretadas e o nitrato de prata
chegaram a vencer a gangrena. Enquanto houve perigo, o senhor
Gillenormand, desesperado na cabeceira de seu neto, esteve como Marius,
nem morto nem vivo.
Todos os dias, e, em algumas ocasiões, duas vezes ao dia, um senhor de
cabelos brancos, muito bem trajado, como assinalava o porteiro, vinha
saber notícias do enfermo, deixando um grande pacote de faixas para os
curativos.
Finalmente, no dia 7 de setembro, exatamente quatro meses depois da
dolorosa noite em que o trouxeram, à beira da morte, para a casa de seu
avô, o médico declarou que estava salvo. Começava a convalescença.
Marius, porém, ainda teve de passar mais de dois meses estendido em
um sofá, em virtude dos estragos causados pela fratura da clavícula.
Sempre fica, nesses casos, uma última ferida que não quer se fechar,
eternizando os curativos para grande tédio do enfermo.
Essa longa doença, porém, e a demorada convalescença, salvaram-no
das perseguições. Na França, não há cólera, mesmo pública, que não se
apague depois de seis meses. As revoltas, no estado em que se encontra a
sociedade, são de tal forma culpa de todos, que são seguidas por uma certa
necessidade de fechar os olhos.
Acrescentemos que o inqualificável édito Gisquet, que ordenava aos
médicos que denunciassem os feridos, indignou tanto a opinião pública, e
não só a opinião pública, mas antes de tudo o próprio rei, que os feridos
foram encobertos e protegidos por essa indignação; e com exceção dos que
tinham sido apanhados em flagrante combate, os conselhos de guerra não
ousaram inquietar mais ninguém. Deixaram, então, Marius tranquilo.
O senhor Gillenormand primeiro passou por todas as angústias, e
depois por todos os êxtases. Foi bastante difícil impedi-lo de passar todas
as noites ao lado do ferido; ele mandou que trouxessem sua poltrona para
junto da cama de Marius; exigiu que sua filha empregasse o mais belo
tecido que houvesse em casa para fazer as compressas e ataduras.
A senhorita Gillenormand, como pessoa esperta e experiente, deu um
jeito de poupar o tecido fino, fazendo-o crer que fora obedecido.
O senhor Gillenormand não permitiu que lhe explicassem que, para
fazer as faixas, a cambraia não é melhor que um tecido mais grosso, nem o
linho novo melhor que o linho já usado. Ele assistia a todos os curativos a
que a senhorita Gillenormand pudicamente se ausentava. Quando o médico
cortava a carne morta com uma tesoura, ele dizia: “Ai! Ai!”
Nada era mais tocante do que vê-lo estender ao ferido uma xícara de
chá, com seu brando tremor senil. Enchia o médico de perguntas; não
percebia que perguntava sempre as mesmas coisas.
No dia em que o médico anunciou-lhe que Marius estava fora de
perigo, o pobre delirou. Deu três moedas de ouro de gratificação ao
porteiro. À noite, ao recolher-se em seu quarto, até dançou, fazendo
castanholas com o polegar e o indicador, e cantou esta canção:

Jeanne est née à Fougère,


Vrai nid d’une bergère;
J’adore son jupon
Fripon.

Jeanne nasceu em Fougère,


Verdadeiro ninho de uma pastora;
Adoro seu saiote
Brejeiro.

Amour, tu vis en elle;


Car c’est dans sa prunelle
Que tu mets ton carquois
Narquois!

Amor, vives nela;


Pois é em suas pupilas
Que colocas teu olhar
Malicioso!

Moi, je la chante, et j’aime


Plus que Diane même,
Jeanne et ses durs tetons
Bretons.
Eu, eu a canto, e amo
Mais que a própria Diane,
Jeanne e seus firmes seios
Bretões.

Depois, pôs-se de joelhos sobre uma cadeira, e Basque, que o


observava pela porta entreaberta, tinha certeza de que ele rezava.
Até então, o senhor Gillenormand nunca acreditara em Deus.
A cada nova fase de melhora, que se desenhava cada vez mais, o avô
delirava. Fazia inúmeras ações maquinais cheias de alegria, como subir e
descer as escadas sem saber por quê. Uma vizinha, bela, aliás, certa manhã
ficou atônita ao receber um lindo buquê enviado pelo senhor
Gillenormand; o marido fez uma cena de ciúme.
Ele tentava colocar Nicolette sobre seus joelhos. Chamava Marius de
senhor barão. Gritava: “Viva a República!”
A cada instante perguntava ao médico: “Não é verdade que não há
mais perigo?” Olhava para Marius com a ternura de uma avó.
Contemplava-o enquanto comia. Não se importava mais com ele mesmo,
não se levava mais em conta; Marius era o senhor da casa, havia abdicação
em sua alegria, ele era o neto de seu neto.
Na alegria em que estava, era a mais veneranda das crianças. Com
medo de cansar ou importunar o convalescente, colocava-se atrás dele para
lhe sorrir. Estava contente, alegre, encantado, jovial. Seus cabelos brancos
acrescentavam uma serena majestade à luz alegre que mostrava no rosto.
Quando a graça se junta às rugas, ela é adorável. Há um não sei que de
alvorecer na velhice desabrochada.
Quanto a Marius, enquanto se deixava cuidar e tratar, tinha uma ideia
fixa, Cosette.
Desde que a febre e o delírio o abandonaram, não tornara a pronunciar
esse nome, podia-se até acreditar que não lembrava mais dele. Calava-se,
justamente porque sua mente estava ali.
Ele não sabia o que era feito de Cosette; as cenas da rua de la
Chanvrerie eram como uma névoa em suas lembranças, sombras quase
indistintas flutuavam em seu espírito, Éponine, Gavroche, Mabeuf, os
Thénardier, todos os seus amigos lugubremente misturados à fumaça da
barricada; a estranha passagem do senhor Fauchelevent por aquela
sanguinolenta aventura parecia-lhe um enigma no meio de uma
tempestade; não compreendia nada de sua própria vida, não sabia como,
nem por quem tinha sido salvo, e nenhum dos que o rodeavam sabia; tudo
o que puderam dizer-lhe é que havia sido transportado à noite, em uma
carruagem, para a rua Filles-du-Calvaire; passado, presente, futuro, tudo
isso, em seu íntimo, não era mais que a névoa de uma vaga ideia, mas
havia nessa névoa um ponto imóvel, um lineamento claro e preciso, algo
que era de granito, uma resolução, uma vontade: reencontrar Cosette.
Para ele, a ideia da vida não se distinguia da ideia de Cosette; havia
decretado em seu coração que não aceitaria uma sem a outra, e estava
inabalavelmente resolvido a exigir, de quem quer que quisesse forçá-lo a
viver, de seu avô, da sorte, do inferno, a restituição de seu éden perdido.
Os obstáculos, não tentava dissimulá-los.
Um detalhe deve ser sublinhado: não estava seduzido, mas sim pouco
enternecido por todas as solicitudes e todas as amabilidades de seu avô.
Primeiro, porque não estava a par de todas; depois, porque, em meio a seus
devaneios de doente, talvez ainda febris, desconfiava dessas delicadezas
como algo de estranho e novo que tinha por finalidade subjugá-lo. Ficava
frio em relação a isso. Seu avô gastava sem proveito seu pobre velho
sorriso.
Marius achava que tudo estaria bem enquanto ele não falasse nem
opusesse resistência ao que faziam; mas que, quando se tratasse de
Cosette, encontraria outro semblante, que a verdadeira atitude de seu avô
iria se desmascarar. Então recomeçaria a luta; recrudescência das questões
de família, confronto de posições, toda espécie de sarcasmos e objeções de
uma vez; Fauchelevent, Coupelevent, a fortuna, a pobreza, a miséria, a
pedra no pescoço, o futuro. Resistência violenta, conclusão: recusa.
Marius era inflexível por antecipação.
Além disso, à medida que se restabelecia, suas antigas queixas
reapareciam, as velhas feridas de sua memória se reabriam, voltava a
pensar no passado, o coronel Pontmercy se recolocava entre ele e o senhor
Gillenormand. Ele acreditava não haver nenhuma bondade sincera a
esperar de quem tinha sido tão injusto e tão duro para com seu pai. E, com
a saúde, voltava-lhe uma espécie de rispidez contra seu avô; e o velho
sofria mansamente com isso.
O senhor Gillenormand, sem dizer nada, notava que Marius, desde que
fora trazido para casa e desde que havia voltado a si, não o chamara uma
única vez de meu pai. Também não dizia senhor, é verdade, achava meio
de não dizer nem uma coisa nem outra, usando uma certa maneira de
construir as frases.
Era evidente que uma crise se aproximava.
Como quase sempre acontece em casos semelhantes, para se exercitar,
Marius se engajava em pequenas lutas antes de começar a batalha. O que é
chamado de reconhecer o terreno.
Certa manhã ocorreu de o senhor Gillenormand, a propósito de um
jornal que caíra em suas mãos, fazer menção à Convenção, soltando uma
exclamação realista contra Danton, Saint-Just e Robespierre. “Os homens
de 1793 eram gigantes”, disse Marius severamente.
O velho calou-se e não disse mais uma palavra pelo resto do dia.
Marius, que tinha sempre presente no espírito o inflexível avô de seus
primeiros anos, viu nesse silêncio uma profunda concentração de raiva,
vislumbrando uma luta ferrenha, e aumentou, nos recônditos de seu
pensamento, os preparativos para o combate.
Determinou que, em caso de recusa, arrancaria seus aparelhos,
deslocaria sua clavícula, colocaria a nu as chagas que ainda lhe restavam e
recusaria qualquer alimento.
Suas feridas eram suas munições. Ter Cosette ou morrer.
Aguardou o momento favorável com a dissimulada paciência dos
doentes.
Esse momento chegou.

III. MARIUS ATACA


Um dia, enquanto sua filha punha em ordem os frascos e taças sobre o
mármore da cômoda, o senhor Gillenormand inclinou-se para Marius e
disse-lhe com seu jeito mais terno:
— Você vê, meu querido Marius, em seu lugar, agora comeria carne
em vez de peixe. Um linguado frito é excelente para começar uma
convalescença, mas para pôr um doente de pé não há como uma boa
costeleta.
Marius, a quem quase todas as forças já haviam voltado, juntou-as,
sentou-se na cama, apoiou os punhos trêmulos no lençol, encarou seu avô,
fez uma cara terrível e disse:
— Isso me leva a lhe dizer uma coisa.
— O quê?
— Que eu quero me casar.
— Estava previsto — disse o avô, e se pôs a rir.
— Como, estava previsto?
— Isso mesmo, previsto. Você vai ter a sua pequena.
Marius, estupefato e cheio de admiração, tremeu inteiro.
O senhor Gillenormand continuou:
— É isso, você a terá, sua bela pequena. Ela vem todos os dias, sob a
forma de um velho senhor, saber notícias suas. Desde que foi ferido, ela
passa seu tempo chorando e fazendo ataduras. Fui informar-me. Ela mora
na rua de l’Homme-Armé, número 7. Chegamos ao ponto! Você a quer?
Muito bem, você a terá! Pronto. Você tinha feito um pequeno complô e
dito com seus botões: “Vou mostrar isso sem cerimônia ao vovô, aquela
múmia da Regência e do Diretório, àquele velhote que já foi sedutor e
também teve suas inconstâncias, suas namoradinhas, suas amiguinhas,
suas Cosettes; ele já ostentou bastante, já bateu suas asinhas, aproveitou a
mocidade, é bom que ele se lembre. Vamos ver. Batalha”. Ah! Você não
deixa escapar uma oportunidade. Muito bem. Ofereço-lhe uma costeleta e
você me responde: “A propósito, quero me casar”. Não pode haver
transição mais natural! Ora! Estava contando com uma briguinha, não é!
Você não sabia que eu era um velho covarde. O que diz disso? Fica
irritado. Achar seu avô ainda mais tolo do que você, não esperava por essa,
não é? Vai perder o discurso que tinha a me fazer, senhor advogado, que
coisa implicante. Azar seu; fique com raiva. Faço o que você quer e isso
acaba com ela, seu tolo! Escute, tirei informações; também sou sorrateiro.
Ela é encantadora, bem-comportada; o lanceiro não existe, ela fez montes
de ataduras, é uma joia, e adora você. Se você tivesse morrido, nós três
teríamos morrido; o caixão dela acompanharia o meu. Quando você
começou a melhorar, pensei em colocá-la, de boa vontade, em sua
cabeceira, mas só nos romances é que se põem, sem cerimônia, jovens
junto à cama de belos feridos por quem se interessam. Isso não se faz. Que
diria sua tia? A maior parte do tempo você esteve nu, mocinho. Pergunte a
Nicolette, que não descuidou de você um instante, se era possível uma
mulher ficar ali. E também, o que o médico diria? Uma bela moça não
cura a febre! Enfim, está tudo certo; não falemos mais disso, está dito, está
feito e resolvido, fique com ela. É assim que estou feroz. Está vendo,
como eu via que você não gostava de mim, pensei: “O que eu poderia fazer
para esse animal gostar de mim? Ah! Tenho a pequena Cosette na mão,
vou dá-la a ele, e aí ele vai ter de gostar um pouco de mim, ou então vai
ter de se explicar”. Pensou que o velhote fosse esbravejar, vociferar, gritar
um não, ameaçar com a bengala? Nada disso. Cosette? Que seja. Amor?
Que seja. Não peço nada melhor. Senhor, tenha a bondade de se casar. Seja
feliz, meu querido filho!
Dito isso, o velho desatou a soluçar.
E tomou a cabeça de Marius entre as mãos, estreitou-a contra o peito
entre seus braços e os dois puseram-se a chorar. Essa é uma das formas da
suprema felicidade.
— Meu pai! — exclamou Marius.
— Ah! Então você gosta de mim? — disse o velho.
Seguiu-se um momento inefável. Os dois quase sufocavam e não
conseguiam falar.
Enfim, o velho balbuciou:
— Vamos! Pronto, desembuchou; me chamou de meu pai.
Marius soltou-se dos braços do avô e disse ternamente:
— Mas, pai, agora que já estou melhor, acho que já poderia vê-la.
— Também já era previsto, vai vê-la amanhã.
— Meu pai!
— Que é?
— Por que não hoje?
— Está bem, hoje. Que seja hoje. Já me chamou três vezes de “meu
pai”, isso vale a sua vontade. Eu vou tratar disso. Vão trazê-la até você.
Previsto, já lhe disse. Isso já foi posto em versos. É o desenlace da elegia
do Jovem Doente, de André Chénier, que foi estrangulado pelos facín…
pelos gigantes de 1793!
O senhor Gillenormand supôs perceber um leve franzir de
sobrancelhas de Marius, que, na verdade, devemos dizer, já não o
escutava, enlevado como estava em uma espécie de êxtase, e pensando
mais em Cosette do que em 1793.
O avô, amedrontado por ter introduzido de forma tão desastrada o
nome de André Chénier, retomou precipitadamente:
— Estrangulado não é bem a palavra. O fato é que os grandes gênios
revolucionários, que não eram maldosos, isso é incontestável, que eram
heróis, ora, achavam que André Chénier os incomodava um pouco, então o
mandaram para a guilhot… quer dizer, aqueles grandes homens, no dia
sete do termidor, no interesse da salvação pública, rogaram a André
Chénier haver por bem ir…
O senhor Gillenormand, engasgado com sua própria frase, não pôde
continuar; não pôde nem terminá-la, nem recompô-la, enquanto sua filha
arrumava o travesseiro nas costas de Marius; abalado por tanta emoção, o
velho saiu, tão rapidamente quanto sua idade o permitia, quarto afora,
fechou a porta atrás de si e, vermelho, esbaforido, espumando, os olhos
fora das órbitas, deu de cara com o honrado Basque, que engraxava botas
na antecâmara. Segurou Basque pelo colarinho e gritou-lhe com furor:
— Por cem mil diabos! Aqueles bandidos o assassinaram!
— Quem, senhor?
— André Chénier!
— Sim, senhor — disse Basque, assustado.

IV. A SENHORITA GILLENORMAND ACABOU POR


NÃO MAIS ACHAR RUIM QUE O SENHOR
FAUCHELEVENT ENTRASSE COM ALGUMA COISA
EMBAIXO DO BRAÇO
Cosette e Marius tornaram a encontrar-se.
Renunciamos a dizer como foi esse encontro. Há coisas que não se
deve tentar pintar; o sol faz parte delas.
A família toda, inclusive Basque e Nicolette, estava reunida no quarto
de Marius no momento em que Cosette entrou.
Ela apareceu na soleira; parecia envolta em uma auréola.
Justamente nesse instante, o avô ia assoar o nariz, mas estacou,
olhando Cosette por sobre o nariz metido no lenço.
— Adorável! — exclamou ele.
Então assoou o nariz ruidosamente.
Cosette estava embriagada, encantada, amedrontada, no céu. Estava tão
espantada quanto se pode ficar pela felicidade. Apenas balbuciava, ora
muito pálida, ora muito corada, desejando lançar-se nos braços de Marius,
mas não ousando fazê-lo. Envergonhada de amar diante de tanta gente.
Não temos dó dos amantes felizes; ficamos ali quando o que mais querem
é estar a sós; não têm nenhuma necessidade de outras pessoas.
Logo atrás de Cosette, entrou também um homem de cabelos brancos,
sério mas risonho, de um sorriso vago e doloroso. Era o “senhor
Fauchelevent”; era Jean Valjean.
Estava muito bem vestido, como dissera o porteiro, com uma roupa
toda preta e nova, e de gravata branca.
O porteiro estava muito longe de reconhecer nesse burguês de boa
aparência, nesse provável tabelião, o medonho condutor de cadáveres que
surgira em sua porta na noite de 7 de junho, roto, enlameado, horrível,
espantado, com o rosto coberto de sangue e lama, amparando Marius
desfalecido; contudo, seu faro de porteiro despertou.
Quando o senhor Fauchelevent entrou com Cosette, ele não pôde
deixar de dizer para sua mulher em tom confidencial: “Não sei por que
sempre acho que já vi esse rosto”.
No quarto de Marius, o senhor Fauchelevent ficou meio afastado, junto
à porta. Trazia debaixo do braço um pacote bastante semelhante a um
volume no formato in-oitavo, embrulhado em papel de cor esverdeada,
parecendo manchado de bolor.
— Será que esse senhor anda sempre assim, com livros debaixo do
braço? — perguntou em voz baixa para Nicolette a senhorita
Gillenormand, que não gostava de livros.
— O que tem isso? É um sábio — respondeu no mesmo tom o senhor
Gillenormand, que a havia escutado. — E daí? É culpa dele? O senhor
Boulard, que eu conheci, também nunca saía sem um livro, e sempre tinha
um encostado no peito.
E, cumprimentando, disse em voz alta:
— Senhor Tranchelevent…
Ele não fez de propósito; mas a falta de atenção para com os nomes
próprios era nele uma maneira aristocrática.
— Senhor Tranchelevent, tenho a honra de pedir-lhe, em nome de meu
neto, o senhor barão Marius Pontmercy, a mão da senhorita.
O “senhor Tranchelevent” inclinou-se.
— Está dito! — falou o avô.
E, voltando-se para Marius e Cosette, com os braços estendidos como
quem abençoa, exclamou:
— Permissão para se adorarem.
Não esperaram que lhes dissessem duas vezes. Ótimo! O murmúrio
começou. Falavam-se bem baixinho, Marius apoiado no sofá, Cosette de
pé, junto dele.
— Ó meu Deus! — murmurava Cosette. — Tornar a vê-lo! É você,
você! Ter ido lutar daquele jeito! Mas por quê? É horrível! Durante quatro
meses me senti morta. Oh! Como foi ruim ter estado nessa batalha! O que
eu fiz para você? Eu o perdoo, mas você não fará mais isso. Há pouco,
quando nos disseram para virmos, ainda achei que fosse morrer, mas de
alegria! Eu andava tão triste! Devo estar horrenda, nem quis perder tempo
para vestir-me. O que vão dizer seus parentes, vendo-me com esta gola
toda amarrotada! Mas fale também! Está me deixando falar sozinha.
Continuamos na rua de l’Homme-Armé. Parece que seu ombro estava
muito mal. Disseram-me que dava para colocar uma mão dentro. E parece
que cortavam a carne com tesoura. Isso é medonho. Chorei tanto, nem
tenho mais olhos. É incrível que se possa sofrer dessa forma. Seu avô está
com uma aparência muito boa! Não se mexa muito, não se apoie nos
cotovelos, tome cuidado, vai se machucar. Como estou feliz! Acabaram-se
as desgraças! Estou completamente boba. Queria lhe dizer algumas coisas,
mas já nem sei mais o quê. Ainda me ama? Moramos na rua de l’Homme-
Armé. Não tem jardim. Fiz faixas o tempo todo; olhe, meu senhor, está
vendo, é sua culpa, tenho calos nos dedos.
— Anjo! — dizia Marius.
Anjo é a única palavra da língua que não pode se desgastar. Nenhuma
outra resistiria ao emprego impiedoso que dela fazem os amantes.
Em seguida, como havia gente em volta, interromperam a conversa,
não trocaram mais nenhuma palavra e limitaram-se a tocar-se docemente
as mãos.
O senhor Gillenormand voltou-se para os que estavam no quarto e
exclamou:
— Falem alto, todos! Façam barulho nos bastidores! Vamos, um pouco
de tumulto, que diabo! Que essas crianças possam tagarelar à vontade!
E, aproximando-se de Marius e de Cosette, disse-lhes em voz baixa:
— Não fiquem constrangidos, tratem-se sem formalidades.
A tia Gillenormand assistia pasmada a essa manifestação de luz em
seu interior envelhecido. Seu assombro nada tinha de agressivo; não era de
modo algum o olhar escandalizado e invejoso de uma coruja para dois
pombos; era o olhar idiota de uma pobre inocente de cinquenta e sete anos;
era uma vida perdida contemplando esse triunfo, o amor.
— Senhorita Gillenormand primogênita — dizia-lhe seu pai —, bem
que eu lhe disse que isso lhe aconteceria.
Ficou um momento em silêncio e acrescentou:
— Olhar a felicidade dos outros.
Depois voltou-se para Cosette:
— Como é bonita! Como é bonita! Parece um quadro de Greuze. Então
vai ter isso só para você, garoto! Ah! Meu querido, está escapando de boa
comigo, sorte sua, se eu não tivesse uns quinze anos a mais da conta, com
a espada em punho decidiríamos quem a teria. Veja só, estou encantado
com a senhorita. É bem simples. É seu direito. Oh! As lindas, encantadoras
bodas que serão realizadas! Nossa paróquia é Saint-Denis du Saint-
Sacrement, mas obterei uma licença para que se casem em Saint-Paul. A
igreja é melhor, mais bonita; foi construída pelos jesuítas. Fica defronte ao
chafariz do cardeal Birague. A obra-prima da arquitetura jesuíta está em
Namur e se chama Saint-Loup. Precisam ir lá depois de casados, vale a
viagem. Senhorita, eu sou completamente da sua opinião, quero que as
moças se casem; foram feitas para isso. Há uma certa Santa Catherine que
eu gostaria de ver sempre despenteada. Ficar solteira é bonito, mas é frio.
A Bíblia diz: “Multiplicai-vos”. Para salvar o povo é preciso uma Joana
d’Arc; mas, para fazer um povo, é preciso uma mãe Gigogne.1 Então,
casem-se, meninas. Não sei para que serve ficar solteira. Bem sei que
essas tais têm uma capela separada na igreja, e se escondem na confraria
da Virgem; mas, caramba, um belo marido, bravo rapaz e, ao cabo de um
ano, um belo garoto louro, mamando sofregamente, com belas dobrinhas
de gordura nas coxas, que toca no seio da mãe com pancadinhas de suas
mãozinhas rosadas, rindo como a aurora, isso vale muito mais que segurar
um círio nos ofícios litúrgicos e cantar Turris eburnea!2
O avô fez uma pirueta sobre seus calcanhares de noventa anos e
continuou falando, como uma mola que dá outro impulso:

Ainsi, bornant le cours de tes rêvasseries,


Alcippe, il est donc vrai, dans peu tu te maries.

Assim, limitando o curso de tuas quimeras,


Alcippe, então é verdade, em breve te casas.

— A propósito!
— Que é, meu pai?
— Você não tinha um amigo íntimo?
— Sim, Courfeyrac.
— Que é feito dele?
— Morreu.
— Está bem.
Então sentou-se perto deles, fez Cosette sentar-se, e tomou suas quatro
mãos entre suas velhas mãos enrugadas.
— Ela é delicada, esta pequena. Uma obra-prima, esta Cosette! É uma
menina e também uma grande dama! Vai ser apenas baronesa, que falta;
ela nasceu marquesa. Que cílios! Meus queridos, ponham na cabeça que
vocês estão no verdadeiro caminho. Amem-se. Fiquem tolos de amor. O
amor é a tolice dos homens e o espírito de Deus. Adorem-se! Uma única
coisa — acrescentou ele, de súbito entristecido —, que pena! É nisto que
estou pensando, mais da metade dos meus haveres são em rendas
vitalícias; enquanto eu for vivo, será assim, mas após minha morte, daqui
a uns vinte anos, ah, pobres crianças, vocês não terão nem um tostão. Suas
belas mãozinhas brancas, senhora baronesa, darão ao diabo a honra de
puxá-lo pelo rabo.
Nesse instante, ouviu-se uma voz grave e serena dizer:
— A senhorita Euphrasie Fauchelevent possui seiscentos mil francos.
Era a voz de Jean Valjean.
Ele ainda não havia proferido uma só palavra, ninguém sequer parecia
notar sua presença; ele se mantinha de pé e imóvel por trás de todas
aquelas pessoas felizes.
— Quem é senhorita Euphrasie? — perguntou o avô espantado.
— Sou eu! — respondeu Cosette.
— Seiscentos mil francos! — repetiu o senhor Gillenormand.
— Menos uns catorze ou quinze mil francos, talvez — disse Jean
Valjean.
E colocou sobre a mesa o embrulho que tia Gillenormand havia
tomado por um livro.
O próprio Jean Valjean abriu o pacote; era um maço de notas do banco,
que folhearam e contaram. Havia quinhentas notas de mil francos e cento e
sessenta e oito de quinhentos. Ao todo, quinhentos e oitenta e quatro mil
francos.
— Ora, isso é que é um bom livro! — disse o senhor Gillenormand.
— Quinhentos e oitenta e quatro mil francos! — murmurou a tia.
— Isso ajeita bem as coisas, não é, senhorita Gillenormand
primogênita? — retomou o avô. — Esse danado do Marius tirou do ninho
da árvore dos sonhos uma pequena milionária! Agora pode-se esperar isso
dos namoricos dos jovens! Estudantes encontram garotas de seiscentos mil
francos. Querubim está trabalhando melhor que Rothschild!
— Quinhentos e oitenta e quatro mil francos! — repetia a meia voz a
senhorita Gillenormand. — Quinhentos e oitenta e quatro! É o mesmo que
dizer seiscentos mil, ora!
Quanto a Marius e a Cosette, eles se entreolhavam durante esse tempo;
mal prestaram atenção àquele detalhe.

V. DE PREFERÊNCIA, DEPOSITE SEU DINHEIRO EM


UMA FLORESTA E NÃO COM UM TABELIÃO
Sem dúvida já se compreendeu, sem que fosse necessária uma longa
explicação, que Jean Valjean, depois do processo Champmathieu,
conseguiu, graças à sua primeira evasão de alguns dias, vir a Paris e retirar
a tempo, da casa Laffitte, a soma que havia ganho em Montreuil–sur-Mer
com o nome de senhor Madeleine; e que, temendo ser preso novamente, o
que efetivamente ocorreu-lhe pouco tempo depois, enterrara e escondera
aquela quantia na floresta de Montfermeil, no local denominado campo
Blaru. O dinheiro, seiscentos e trinta mil francos, todo em notas do banco,
fazia pouco volume e cabia em uma caixa; e, para preservar a caixa da
umidade, colocou-a dentro de um pequeno cofre de carvalho, cheio de
aparas de castanheiro.
Dentro desse mesmo cofre, colocou também seu outro tesouro, os
castiçais do bispo. Vocês se lembram que ele levara esses castiçais ao
evadir-se de Montreuil-sur-Mer.
O homem que Boulatruelle avistara da primeira vez era Jean Valjean.
Mais tarde, cada vez que Jean Valjean precisava de dinheiro, vinha pegá-lo
na clareira Blaru; daí as ausências das quais falamos. Deixava uma enxada
em algum lugar do bosque, em um esconderijo que só ele conhecia.
Ao ver Marius em convalescença, e sentindo que se aproximava a hora
em que aquele dinheiro seria útil, fora buscá-lo; e era ele novamente o
homem que Boulatruelle vira no bosque, dessa vez pela manhã e não ao
anoitecer. Boulatruelle herdou a enxada.
A quantia real era de quinhentos e oitenta e quatro mil e quinhentos
francos. Jean Valjean guardou para si os quinhentos francos. “Depois
veremos”, pensou.
A diferença entre essa quantia e a de seiscentos e trinta mil francos
retirada da casa Laffitte representava a despesa de dez anos, de 1823 a
1833. Os cinco anos passados no convento não custaram mais que cinco
mil francos.
Jean Valjean colocou os dois castiçais de prata sobre a lareira, onde
resplandeciam para grande admiração de Toussaint.
De resto, Jean Valjean sabia que estava livre de Javert. Ouvira dizer, e
depois verificara o fato no Moniteur, que o publicara, que um inspetor de
polícia chamado Javert havia sido encontrado afogado sob um barco de
lavadeiras entre a ponte au Change e a Pont-Neuf, e que um escrito
deixado por esse homem, aliás irrepreensível e muito estimado por seus
superiores, fazia acreditar em um acesso de alienação mental e em
suicídio.
— De fato — pensou Jean Valjean —, pois, se, tendo-me prendido,
deixou-me em liberdade, é porque já devia mesmo estar louco.

VI. OS DOIS VELHOS FAZEM DE TUDO, CADA UM A


SEU MODO , PARA QUE COSETTE SEJA FELIZ
Tudo foi preparado para o casamento. O médico, consultado, afirmou
que poderia ser realizado em fevereiro. Seria em dezembro. Algumas
semanas de perfeita felicidade se passaram.
O menos feliz não era o avô. Passava longos momentos em
contemplação diante de Cosette.
— Que bela e admirável jovem! — exclamava ele. — Tem uma
aparência tão doce e tão bondosa! Não há o que discutir, é a jovem mais
encantadora que já vi na vida. Mais tarde, terá virtudes com odor de
violeta! É uma graça! Só se pode viver nobremente ao lado de uma
criatura como essa. Marius, você é um barão, é rico, deixe de advogar, lhe
suplico.
Cosette e Marius tinham passado repentinamente do sepulcro ao
paraíso. A transição havia sido pouco preparada, e teriam ficado
atordoados se ela não os tivesse deixado extasiados.
— Compreende alguma coisa de tudo isso? — Marius perguntava a
Cosette.
— Não — ela respondia —, mas me parece que Deus olha por nós.
Jean Valjean fez tudo, aplainou tudo, conciliou tudo, tornou tudo fácil.
Apressava-se em direção à felicidade de Cosette com tanto afã e, na
aparência, com tanta alegria, quanto a própria Cosette.
Como havia sido prefeito, soube resolver um problema difícil, cujo
segredo só ele sabia: a origem de Cosette. Dizer francamente qual era,
quem sabe se isso talvez não pudesse impedir o casamento? Livrou
Cosette de todas as dificuldades arranjando-lhe uma família de mortos,
meio seguro de não ver surgir reclamação alguma. Cosette era o que havia
restado de uma família extinta; não era sua filha, mas filha de um outro
Fauchelevent. Dois irmãos Fauchelevent haviam sido jardineiros no
convento do Petit-Picpus. Foram a esse convento; as melhores
informações e os mais respeitáveis testemunhos abundaram; as boas
religiosas, pouco aptas e pouco propensas a sondar questões de
paternidade, e não percebendo nenhuma malícia, nunca souberam ao certo
de qual dos dois Fauchelevent a pequena Cosette era filha. Disseram o que
se queria e disseram-no com zelo.
Lavrou-se um auto de reconhecimento; Cosette tornou-se perante a lei
a senhorita Euphrasie Fauchelevent, e foi declarada órfã de pai e mãe. Jean
Valjean conseguiu ainda, sob o nome de Fauchelevent, ser nomeado tutor
de Cosette, tendo o senhor Gillenormand como tutor sub-rogado.
Quanto aos quinhentos e oitenta e quatro mil francos, eram um legado
deixado a Cosette por uma pessoa já falecida, que declarara sua vontade de
permanecer incógnita.
A doação primitiva era de quinhentos e noventa e quatro mil francos,
porém dez mil tinham sido aplicados na educação da senhorita Euphrasie,
cinco mil dos quais pagos ao próprio convento. Essa doação, depositada
nas mãos de um terceiro, deveria ser entregue a Cosette quando atingisse a
maioridade, ou por ocasião de seu casamento. Todo esse arranjo era muito
aceitável, como se vê, sobretudo com um aporte de mais de meio milhão.
Bem que existiam, aqui e ali, algumas singularidades, mas não foram
notadas; um dos interessados tinha os olhos vendados pelo amor, os
outros, pelos seiscentos mil francos.
Cosette soube que não era filha do velho homem a quem, havia tanto
tempo, chamava de pai. Ele era apenas um parente; o seu verdadeiro pai
era outro Fauchelevent.
Em qualquer outro momento, isso a teria magoado profundamente.
Mas na situação inefável em que se encontrava, foi apenas um pouco
triste, uma nebulosidade; era tamanha sua alegria que aquela nuvem logo
se dissipou. Ela tinha Marius. O jovem entrava em sua vida, o homem
mais velho se apagava; a vida é assim.
Além disso, havia muitos anos Cosette estava habituada a ver em torno
dela vários enigmas; qualquer pessoa que teve uma infância misteriosa
está sempre pronta a certos desapegos. No entanto, continuou a chamar
Jean Valjean de pai.
Cosette, nas nuvens, andava entusiasmada com o velho Gillenormand.
É verdade que ele a cobria de madrigais e presentes. Enquanto Jean
Valjean lhe construía uma situação normal na sociedade e uma situação
familiar inatacável, o senhor Gillenormand cuidava do enxoval de núpcias.
Nada o divertia mais do que ser pomposo. Deu a Cosette um vestido de
rendas de guipura que pertencera a sua avó.
— Essas modas renascem — dizia ele —, coisas antigas fazem furor, e
as jovens de minha velhice se vestem como as velhas de minha infância!
Ele esvaziava suas respeitáveis e abauladas cômodas de laca de
Coromandel, que não eram abertas havia anos. “Vamos expor essas
matronas”, dizia ele, “vejamos o que elas têm na pança!” Ele violava
ruidosamente as gavetas barrigudas, cheias de roupas de todas as suas
mulheres, de todas as suas amantes e de todas as suas avós. Tecidos de
Pequim, damascos, sedas, forros pintados, vestidos de Tours, lenços da
Índia bordados com um ouro que se pode lavar, tecidos sem avesso, em
peças, luvas de Gênova e Alençon, adereços em antiga ourivesaria,
caixinhas de marfim adornadas com desenhos microscópicos, fitas, todo
tipo de objetos, ele dava tudo a Cosette.
Cosette, maravilhada, perdida de amor por Marius e cheia de gratidão
para com o senhor Gillenormand, sonhava com uma felicidade sem
limites, vestida de cetim e de veludo. Sua grinalda de casamento, a
imaginava sustentada por serafins. Sua alma esvoaçava pelo azul com asas
de renda de Malines.
A embriaguez dos apaixonados, como já dissemos, só se igualava ao
êxtase do avô Gillenormand. Era como se houvesse uma fanfarra na rua
Filles-du-Calvaire.
Toda manhã, uma nova oferenda de coisas antigas do avô a Cosette.
Todos os enfeites possíveis desabrochavam esplendidamente em torno
dela.
Um dia, Marius, que, de bom grado, conversava seriamente através de
sua felicidade, disse a respeito de não sei qual incidente:
— Os homens da revolução são de tal forma grandiosos que já têm o
prestígio dos séculos, como Catão e Fócio, cada um deles parecendo uma
mémoire [memória] antiga.
— É isso — exclamou o avô. — Obrigado, Marius. Era exatamente
essa a ideia que eu procurava.
E, no dia seguinte, um magnífico vestido de moire, fino tecido antigo,
cor de chá, juntava-se ao enxoval de Cosette.
O avô extraía desses enfeites uma lição.
— O amor é ótimo, mas é preciso estar acompanhado dessas coisas. A
felicidade precisa do inútil. A felicidade é apenas o necessário. Tempere-a
com muitos supérfluos. Um palácio e seu coração. Seu coração e o Louvre.
Seu coração e os lagos de Versalhes. Dê-me minha pastora, mas trate de
fazê-la duquesa. Dê-me Fílis coroada de flores, mas com cem mil libras de
renda. Abra-me ao bucólico, a perder de vista, mas sob uma colunata de
mármore. Aceito o bucólico e também a arte em mármore e ouro. A
felicidade sozinha é como o pão seco. Come-se, mas não é um jantar.
Quero o supérfluo, o inútil, o extravagante, o demasiado, o que não serve
para nada. Lembro-me de ter visto na catedral de Strasbourg um relógio da
altura de uma casa de três andares, que marcava as horas, que fazia o favor
de marcar as horas, mas que parecia não ter sido feito para isso, e que,
após soar meio-dia, ou meia-noite, meio-dia, hora do sol, meia-noite, hora
do amor, ou qualquer outra hora que lhe agradasse, mostrava a lua e as
estrelas, a terra e o mar, os pássaros e os peixes, Febo e Febe, e uma
porção de coisas que saíam de um nicho, os doze apóstolos, o imperador
Carlos V, Éponine e Sabino, e muitos homenzinhos dourados tocando
trombeta, além de tudo. Sem contar os encantadores sons que espalhava
pelo ar a qualquer propósito, e sem que se soubesse por quê. Um
mostrador sem graça, completamente liso, que só marca as horas, vale
tanto quanto esse? Eu prefiro o enorme relógio de Strasbourg aos cucos da
Floresta Negra.
O senhor Gillenormand disparatava principalmente a respeito das
bodas, e todas as festanças do século XVIII se misturavam em seus
comentários exagerados.
— Vocês ignoram a arte das festas. Hoje, já não sabem produzir um dia
de alegria — exclamava. — Seu século XIX é sem brilho. Falta excesso.
Ele ignora o que é rico, ele ignora o que é nobre. Em todas as coisas, é
raso. Seu terceiro estado é insípido, incolor, inodoro e informe. O sonho de
suas burguesas que se estabelecem, como elas dizem: um lindo gabinete
recém-decorado, madeira e algodão grosseiro. Um lugar! Um lugar! O
senhor Grigou desposa a senhorita Grippesou. Suntuosidade e esplendor!
Uma moeda de ouro foi atada a uma vela. Assim era aquela época. Ah!
Desde 1787, eu predisse que tudo estava perdido no dia em que vi o duque
de Rohan, príncipe de Léon, duque de Chabot, duque de Montbazon,
marquês de Soubise, visconde de Thouars, par da França, ir a Longchamp
em uma carrocinha! Aquilo deu seus frutos. Neste século, todos fazem
negócios, todos jogam na Bolsa, todos ganham dinheiro, e todos são
avarentos. Envernizam e cuidam da superfície, andam na estica, lavados,
ensaboados, depilados, barbeados, penteados, encerados, alisados,
espanados, escovados, limpos por fora, irrepreensíveis, polidos como um
seixo, discretos e asseadinhos, e, ao mesmo tempo — essa é muito boa! —
têm, no fundo da consciência, uma camada de esterco e cloacas que fariam
recuar qualquer grosseirão que assoa o nariz nos dedos! Outorgo aos
tempos de agora a divisa: “Limpeza suja”. Marius, não se aborreça; dê-me
permissão para falar; não falo mal do povo, está vendo, não paro de falar
dele, mas você devia gostar que eu dê umas pancadas na burguesia. Eu sou
burguês. Quem ama de verdade castiga de verdade. Dito isso, digo
claramente que, hoje em dia, todo o mundo se casa, mas ninguém sabe
mais se casar. Ah! É verdade! Tenho saudade da delicadeza dos antigos
costumes. Tenho saudade de tudo! Daquela elegância, daquele
cavalheirismo, daquelas maneiras corteses e gentis, daquele luxo festivo
que todos ostentavam, música fazendo parte das bodas, sinfonia em cima,
tamborilada embaixo, danças, rostos alegres em volta da mesa, madrigais
apurados, canções, fogos de artifício, francas risadas, fitas, laços, o diabo a
quatro. Tenho saudade da liga da noiva. A liga da noiva é prima do cinto
de Vênus. Qual foi a causa da guerra de Troia? Ora essa, a liga de Helena.
Por que se luta; por que Diomedes, o divino, despedaça na cabeça de
Merioneu aquele grande capacete de bronze de dez pontas? Por que
Aquiles e Heitor se espetam a golpes de lança? Porque Helena deixou que
Páris pegasse sua liga. Com a liga de Cosette, Homero criaria a Ilíada. Ele
colocaria em seu poema um velho tagarela como eu, a quem daria o nome
de Nestor. Caros amigos, antigamente, naquele adorável antigamente,
casava-se sabiamente; fazia-se um bom contrato e, em seguida, um belo
banquete. Mal Cujas saía, entrava Gamache.3 Mas, caramba! É que o
estômago é um animal agradável que pede o que lhe é devido, e também
quer ter suas bodas. Ceava-se muito bem e tinha-se, à mesa, uma bela
vizinha que escondia apenas de forma moderada o colo. Ah! Belas bocas
sorrindo; como se era alegre naqueles tempos! A mocidade era um
ramalhete. Todo jovem terminava por um ramo de lilases ou por um buquê
de rosas. Até os guerreiros eram pastores. E se, por acaso, havia algum
capitão de dragões, dava-se um jeito de chamar-se Florian. Fazia-se
questão de estar bonito. Usavam-se bordados e brilhos. Um burguês
parecia uma flor, um marquês parecia uma pedraria. Não tínhamos
presilhas nem botas. Éramos elegantes, polidos, com reflexos de furta-cor
e castanho, éramos esvoaçantes, delicados, vaidosos, o que não nos
impedia de ter a espada à mão. O beija-flor tem bico e unhas. Era o tempo
das Indes Galantes.4 Uma das características do século era a delicadeza, a
outra, a magnificência, e — minha nossa! — a gente se divertia. Hoje
somos sérios. O burguês é avarento, a burguesa beata. O século de vocês é
desafortunado. Expulsaríamos as Graças por andarem demasiado
decotadas. Que pena! Esconde-se a beleza como se esconde o que é feio.
Desde a Revolução, todo o mundo usa calças, até as dançarinas; uma
bailarina deve ser séria e as danças doutrinárias. É preciso ser majestoso.
Ficaríamos muito entediados por não ter o queixo escondido na gravata. O
ideal de um rapazola de vinte anos que se casa é parecer-se com o senhor
Royer-Collard. E sabem o que conseguem com essa majestade? Tornar-se
pequenos. Aprendam isto: a alegria não é apenas prazerosa, tem de ser
grandiosa. Mas então apaixonem-se alegremente, que diabos! Quando
forem casar, então, casem com a febre e o atordoamento, a algazarra e o
alarido da felicidade! Seriedade na igreja, vá lá. Mas assim que a missa
terminar — caramba! — é preciso fazer um sonho rodopiar em torno da
noiva. Um casamento deve ser real e quimérico. Deve fazer a cerimônia ir
da catedral de Reims ao templo de Chanteloup. Tenho horror de
casamentos sem graça. Vamos! Subam ao Olimpo, pelo menos nesse dia.
Sejam deuses! Ah! Poderiam ser sílfides, Jeux e Ris, argiráspides!5 Mas
não passam de pessoas comuns. Meus amigos, todo recém-casado deve ser
o Príncipe Aldobrandini. Aproveitem esse instante único na vida para
elevarem-se ao empíreo, com os cisnes e as águias, apesar do risco de
tornar a cair, no dia seguinte, na burguesia das rãs. Não economizem as
bodas, não limitem seus esplendores; não sejam mesquinhos com o dia em
que brilharão. O casamento não é a vida doméstica. Oh! Se fosse de acordo
com minhas fantasias, seria lindo. Ouviríamos violinos nas árvores.
Olhem meus planos: azul cor de céu e prata. Eu mesclaria à festa as
divindades agrestes; convocaria as dríades e as nereidas. As núpcias de
Anfitrite, uma nuvem cor-de-rosa, ninfas com belos penteados e nuas, um
acadêmico oferecendo quadras à deusa, um carro puxado por monstros
marinhos.

Triton trottait devant, et tirait de sa conque


Des sons si ravissants qu’il ravissait quiconque!

Tritão trotava adiante e tirava de sua concha


Sons tão encantadores, que encantava todo o mundo!

— Esse é um projeto de festa, isso sim, ou eu, ora bolas, não entendo
nada disso.

Enquanto o avô, em plena efusão lírica, escutava a si mesmo, Cosette e


Marius embriagavam-se só de olhar-se livremente.
Tia Gillenormand contemplava tudo aquilo com sua imperturbável
placidez. Havia cinco ou seis meses que ela passava por uma certa
quantidade de emoções; a volta de Marius, o estado em que Marius
chegara, Marius trazido de uma barricada, Marius morto, depois vivo,
Marius reconciliado, Marius noivo, Marius se casando com uma moça
pobre, Marius se casando com uma milionária. Sua última surpresa foram
os seiscentos mil francos. Depois, voltara à sua primitiva indiferença. Ia
regularmente à missa, rezava seu terço, lia seu livro de preces, murmurava
ave-marias em um canto da casa, enquanto, no outro, cochichavam I love
you, e, vagamente, ela entrevia Marius e Cosette como duas sombras. Mas
sombra era ela.
Há um certo estado de ascetismo inerte em que a alma, neutralizada
pelo torpor, estranha a tudo o que diz respeito à vida, não sente, com
exceção dos tremores de terra e das catástrofes, nenhuma das impressões
humanas, nem impressões aprazíveis, nem impressões sofríveis.
— Essa devoção — dizia o senhor Gillenormand a sua filha —
corresponde a uma coriza. Você não sente nada da vida. Nenhum cheiro
ruim, mas também nenhum cheiro agradável.
De resto, os seiscentos mil francos tinham posto termo às indecisões
da filha. Seu pai já se havia habituado a levá-la tão pouco em conta que
não a consultara sobre seu consentimento ao casamento de Marius. Agiu
por ímpeto, como seu costume, não tendo, déspota transformado em
escravo, outro pensamento que não fosse a satisfação de Marius.
Quanto à tia, nem sequer lembrara que ela existia e que devia ter uma
opinião; e, por mais condescendente que ela fosse, isso a melindrara. Um
tanto revoltada em seu foro íntimo, mas exteriormente impassível, pensou:
“Meu pai resolve a questão do casamento sem mim; eu resolverei a
questão da herança sem ele”. Ela era rica, efetivamente, e seu pai não o
era. Ela, então, tomou sua decisão a esse respeito. É provável que, se fosse
um casamento pobre, o teria deixado pobre. “Azar do senhor meu
sobrinho! Vai casar com uma pobretona, que seja pobretão!” Mas o meio
milhão de Cosette agradou à tia e mudou sua predisposição interior com
relação a esse par de apaixonados.
Deve-se consideração a seiscentos mil francos, e era evidente que ela
não poderia fazer de outra forma, a não ser deixar sua fortuna àqueles
jovens, já que não necessitavam mais dela. Ficou combinado que o casal
moraria na casa do avô. O senhor Gillenormand fez questão de dar-lhes
seu quarto, o mais bonito da casa.
— Remoçarei com isso! — declarava ele. — É um antigo projeto!
Sempre tive vontade de fazer o casamento em meu quarto.
Então, enfeitou o quarto com inúmeros velhos bibelôs delicados.
Mandou forrá-lo com um tecido maravilhoso que tinha em peça, e que
acreditava ser veludo de Utrecht; fundo acetinado, botões de ouro com
flores de veludo.
— Era desse tecido — dizia ele — o cortinado da cama da duquesa de
Anville, em La Roche-Guyon.
Sobre a lareira, colocou uma pequena figura de Saxo, com uma pele
cobrindo seu ventre nu. A biblioteca do senhor Gillenormand transformou-
se no escritório de advogado de que Marius precisava; como se lembram,
um escritório era exigido pelo Conselho da Ordem.
VII. OS EFEITOS DE SONHO ENTREMEADOS À
FELICIDADE
Os apaixonados viam-se todos os dias. Cosette vinha acompanhada do
senhor Fauchelevant.
— As coisas estão de pernas para o ar — dizia a senhorita
Gillenormand —; a noiva é que vem à casa do noivo fazer-se cortejar
dessa forma!
Mas a convalescença de Marius é que criara esse hábito, e as poltronas
da rua Filles-du-Calvaire, melhores para as conversas do que as cadeiras
de palha da rua de l’Homme-Armé, o arraigaram. Marius e o senhor
Fauchelevent viam-se, mas não se falavam. Parecia que aquilo era
combinado. Toda moça precisa de um acompanhante. Cosette não podia
vir sem o senhor Fauchelevent. Para Marius, Fauchelevent era a condição
de Cosette; ele aceitava. Tratando vagamente e sem detalhes assuntos de
política, sob o ponto de vista do melhoramento geral da condição de todos,
eles conseguiam dizer algo mais que sim e não. Certa vez, a respeito do
ensino, que Marius queria gratuito e obrigatório, multiplicado sob todas as
formas, prodigalizado a todos, como o sol e o ar, em uma palavra,
respirável ao povo todo, estavam de acordo, e quase conversaram. Nessa
ocasião, Marius notou que o senhor Fauchelevent falava bem e até com
certa linguagem elevada. Contudo, faltava-lhe alguma coisa. O senhor
Fauchelevent tinha algo a menos que um homem de sociedade, e também
algo a mais.
Interiormente e no fundo do seu pensamento, Marius cercava de todo
tipo de perguntas mudas aquele senhor Fauchelevent que, para ele, era
simplesmente benévolo e frio. Às vezes, como que duvidava de suas
próprias lembranças. Tinha um buraco em sua memória, um lugar negro,
um abismo cavado por quatro meses de agonia; muitas coisas haviam se
perdido ali. Perguntava-se se era verdade que tinha visto o senhor
Fauchelevent, um homem tão calmo e sério, na barricada.
Não era essa, aliás, a única admiração que as aparições e as
desaparições do passado lhe haviam deixado no espírito. Não se deve
pensar que ele estivesse livre de todas essas obsessões da memória que nos
forçam, mesmo felizes, mesmo satisfeitos, a olhar melancolicamente para
trás. A mente que não se volta para os horizontes apagados não contém
pensamento nem amor. Em alguns momentos, Marius apoiava o rosto nas
mãos, e o passado, tumultuado e vago, atravessava o crepúsculo que tinha
no cérebro. Tornava a ver cair Mabeuf, ouvia Gavroche cantar sob a
metralha, sentia nos lábios o frio da fronte de Éponine; Enjolras,
Courfeyrac, Jean Prouvaire, Combeferre, Bossuet, Grantaire, todos os seus
amigos apareciam diante dele, depois se dissipavam. Todos esses entes
queridos, dolorosos, valentes, encantadores ou trágicos, seriam sonhos ou
teriam, de fato, existido?
A revolta envolvera tudo em sua fumaça. Essas grandes febres ensejam
grandes sonhos.
Interrogava-se, apalpava-se; sentia a vertigem de todas essas
realidades desvanecidas. Mas, então, onde estavam todos eles? Era
verdade que haviam morrido? Uma queda nas trevas levara tudo embora,
menos ele. Tudo aquilo lhe parecia ter sumido como por detrás de uma
cortina de teatro. A vida tem dessas cortinas que descem. Deus passa ao
ato seguinte.
E ele, seria realmente o mesmo homem? Ele, o pobre, estava rico; ele,
o abandonado, tinha uma família; ele, o desesperado, ia desposar Cosette.
Parecia-lhe que tinha atravessado um túmulo, no qual entrara negro e
saíra branco. E, dentro desse túmulo, os outros tinham ficado. Às vezes,
todos esses entes do passado, de volta e presentes, cercavam-no e
assombravam-no; então, seu pensamento voltava-se para Cosette e tornava
a ficar sereno; mas só essa felicidade era capaz de afugentar tal catástrofe.
O senhor Fauchelevent quase fazia parte desses seres desaparecidos.
Marius hesitava em acreditar que o Fauchelevent da barricada fosse esse
Fauchelevent em carne e osso, tão seriamente sentado ao lado de Cosette.
O primeiro era, provavelmente, um dos muitos pesadelos que iam e
vinham em suas horas de delírio.
De resto, suas duas naturezas sendo opostas, nenhuma pergunta de
Marius ao senhor Fauchelevent era possível. Nem sequer teve essa ideia.
Já indicamos esse detalhe característico.
Dois homens que têm um segredo comum e que, por uma espécie de
acordo tácito, não trocam uma palavra a tal respeito, é menos raro do que
se pensa.
Uma única vez Marius fez uma tentativa. Trouxe à conversa a rua de la
Chanvrerie e, voltando-se para o senhor Fauchelevent, disse-lhe:
— O senhor conhece bem essa rua?
— Que rua?
— A rua de la Chanvrerie?
— Não tenho ideia nenhuma sobre o nome dessa rua — respondeu o
senhor Fauchelevent, no tom mais natural do mundo.
A resposta, que se referia ao nome da rua e não à própria rua, pareceu a
Marius mais concludente do que na realidade era.
— Decididamente — pensou —, eu sonhei. Tive uma alucinação! Era
alguém que se parecia com ele. O senhor Fauchelevent não estava lá.

VIII. DOIS HOMENS IMPOSSÍVEIS DE ENCONTRAR


O encantamento, por maior que fosse, não apagou outras preocupações
do espírito de Marius. Enquanto se preparava o casamento, e aguardando a
data marcada, ele mandou fazer difíceis e escrupulosas averiguações
retrospectivas. Devia gratidão por vários motivos; devia-a a seu pai, devia-
a a si mesmo.
Havia Thénardier, havia o desconhecido que o transportara, ele,
Marius, à casa do senhor Gillenormand.
Marius fazia questão de encontrar esses dois homens, não querendo
casar-se, ser feliz e esquecê-los; receava que essas dívidas não pagas
viessem a turvar sua vida, tão luminosa agora. Era-lhe impossível deixar
todo esse passado de sofrimento atrás de si, e queria, antes de entrar no
futuro, estar quite com esse passado.
Embora Thénardier fosse um bandido, isso não tirava nada ao fato de
ter salvo o coronel Pontmercy. Para todos era um facínora, menos para
Marius.
E Marius, ignorando a verdadeira cena do campo de batalha de
Waterloo, não sabia de uma particularidade, que seu pai se achava, em
relação a Thénardier, na estranha situação de dever-lhe a vida, mas sem
dever-lhe reconhecimento.
Nenhum dos diversos agentes que Marius empregou conseguiu
encontrar pistas de Thénardier. Por esse lado, o sumiço parecia completo.
A senhora Thénardier morrera na prisão durante a instrução do processo.
Os únicos que restaram desse grupo lamentável, Thénardier e sua filha
Azelma, haviam mergulhado novamente nas trevas. Sobre eles se fechara
silenciosamente o abismo do incógnito social. Não mais se viam na
superfície o tremor, nem os sombrios círculos concêntricos que denunciam
ter caído algo naquele ponto, onde se pode jogar uma sonda.
A senhora Thénardier morta, Boulatruelle estando fora de questão,
Claquesous tendo desaparecido e os principais acusados estando foragidos
da prisão, o processo da cilada do casebre Gorbeau havia praticamente
abortado. O negócio ficara demasiadamente obscuro. O banco dos réus
teve de se contentar com dois subalternos, Panchaud, conhecido como
Printanier ou Brigrenaille, e Demi-Liard, conhecido como Deux-Millards,
que haviam sido contraditoriamente condenados a dez anos de galés. Aos
seus cúmplices evadidos e contumazes foi imposta a pena perpétua de
trabalhos forçados. Thénardier, como chefe da quadrilha, foi também
julgado à revelia e condenado à morte.
A única coisa que se sabia a respeito de Thénardier era essa
condenação, jogando sobre esse nome enterrado seu sinistro clarão, como
uma vela junto de um esquife.
De resto, empurrando Thénardier para as maiores profundezas por
receio de ser agarrado, essa condenação aumentava as espessas trevas que
já cobriam esse homem.
Quanto ao outro, quanto ao homem desconhecido que salvara Marius,
as averiguações, em princípio, deram algum resultado, depois foram
interrompidas. Conseguiu-se descobrir a carruagem em que Marius fora
transportado à rua Filles-du-Calvaire na noite de 6 de junho. O cocheiro
declarou que, naquele dia, por ordem de um agente de polícia, estivera
“estacionado”, das três horas da tarde até a noite, no cais de Champs-
Elysées, acima do desaguadouro do Grand Égout; que, por volta das nove
horas da noite, a grade que dá para a ribanceira abrira-se; que um homem
saiu dali carregando às costas um outro homem, aparentemente morto; que
o agente, que estava de observação naquele ponto, prendera o homem vivo
e retivera o morto; que, por ordem do mesmo agente, ele, cocheiro,
recebera em sua carruagem “toda aquela gente”; que se dirigiram primeiro
para a rua Filles-du-Calvaire, onde deixaram o homem morto; que o
homem morto era o senhor Marius, e que ele, cocheiro, o reconhecia muito
bem, embora “dessa vez” estivesse vivo; que, em seguida, tornaram a
subir na carruagem, e ele chicoteara os cavalos e, a alguns passos da
entrada de Archives, gritaram para que parasse; que aí, na rua, pagaram-
lhe e mandaram-no embora; que o agente levara o outro homem; e que não
sabia mais nada, pois a noite estava muito escura.
Marius, como já dissemos, não se lembrava de nada. Recordava-se
apenas de ter sido agarrado por trás, por uma mão muito forte, no
momento em que ia cair de costas no meio da barricada; depois disso, tudo
se apagara em sua mente. Só recobrara os sentidos na casa do senhor
Gillenormand.
Ele se perdia em conjecturas.
Não podia duvidar de sua própria identidade. Porém, como se
explicava que, tendo caído na rua de la Chanvrerie, tivesse sido recolhido
pelo agente de polícia na ribanceira do Sena, próximo à ponte de
Invalides? Alguém o transportara daquele local até Champs Elysées. Mas
como? Pelo esgoto. Dedicação nunca vista.
E quem seria esse alguém?
Era esse o homem que Marius procurava.
A respeito desse homem, que fora seu salvador, nada; nenhuma pista;
nem o menor indício.
Ainda que obrigado a uma grande reserva, Marius levou suas
investigações até a delegacia de polícia. Lá, não mais que em outros
lugares, as informações não levaram a nenhum esclarecimento. A polícia
sabia menos do que o cocheiro da carruagem. Não tinham conhecimento
de nenhuma prisão efetuada no dia 6 de junho junto ao Grand Égout; não
haviam recebido nenhum relatório dos agentes sobre esse fato, que, na
delegacia, era considerado uma fábula, cuja invenção era atribuída ao
cocheiro. Um cocheiro é capaz de tudo, mesmo de imaginação, quando
quer uma gorjeta. O fato, contudo, era certo, Marius não podia duvidar
dele, a menos que duvidasse de sua própria identidade, como acabamos de
dizer.
Tudo, nesse estranho enigma, era inexplicável.
Esse homem, o misterioso homem que o cocheiro vira sair da grade do
Grand Égout carregando nas costas Marius desfalecido, e que o agente de
polícia, de vigia, prendera em flagrante delito salvando um insurgente, que
fora feito dele? E do próprio agente? Por que esse agente teria guardado
silêncio? O homem teria conseguido evadir-se? Teria subornado o agente?
Por que esse homem não dava sinal de vida a Marius, que lhe devia tudo?
O desinteresse não era menos prodigioso do que sua dedicação. Por que
esse homem não reaparecia? Talvez estivesse acima da recompensa, mas
ninguém está acima do reconhecimento. Acaso estaria morto? Que homem
era aquele? Como seriam as suas feições? Ninguém podia dizer. O
cocheiro respondia: “Aquela noite estava muito escura”.
Basque e Nicolette, assustados, olharam apenas para seu jovem patrão
ensanguentado. O porteiro, que iluminara com sua vela a trágica entrada
de Marius, foi o único a reparar no homem em questão, e eis os sinais que
dava dele: “Aquele homem era assustador”.
Na esperança de tirar proveito delas para suas investigações, Marius
mandou conservar as roupas ensanguentadas que vestia quando o
conduziram à casa de seu avô. Examinando o casaco, reparou que uma
barra se achava estranhamente rasgada. Faltava-lhe um pedaço.
Uma noite, Marius falava em presença de Cosette e de Jean Valjean de
toda essa singular aventura, das inúmeras informações que havia
conseguido e da inutilidade de seus esforços. O semblante frio do “senhor
Fauchelevent” o impacientava, a ponto de exclamar com uma vivacidade
que tinha quase uma vibração de cólera:
— De fato, aquele homem, quem quer que seja, foi sublime! Sabe o
que ele fez, senhor? Interveio como o arcanjo! Teve de arremessar-se no
meio do combate, tirar-me de lá, abrir o esgoto, arrastar-me nele e
carregar-me! Teve de andar mais de légua e meia por essas medonhas
galerias subterrâneas, curvado, vergado, na escuridão, em plena cloaca,
mais de légua e meia, senhor, com um cadáver às costas! E com que
finalidade? Com a única finalidade de salvar esse cadáver! E esse cadáver
era eu! Esse homem pensou: “Talvez ainda exista aí uma centelha de vida;
vou arriscar minha existência por essa miserável centelha!” E arriscou-a,
não uma vez, mas vinte, porque cada passo era um perigo. A prova é que,
ao sair do esgoto, foi preso. Sabe, senhor, que esse homem fez tudo isso
sem esperar recompensa alguma? O que eu era? Um insurgente. O que eu
era? Um vencido! Oh! Se os seiscentos mil francos de Cosette fossem
meus…
— Eles são seus — atalhou Jean Valjean.
— Pois bem — retrucou Marius —, daria todo esse dinheiro para
encontrar esse homem!
Jean Valjean ficou em silêncio.

__________________________
1 Referência à Madame Gigone, personagem muito conhecida no teatro infantil francês e mãe
de muitos filhos.
2 Torre de mármore: uma das invocações das Ladainhas da Virgem.
3 Cujas: grande jurista da Renascença; Gamache: personagem camponês, em Dom Quixote.
Suas bodas são ocasião de um banquete memorável.
4 Les Indes galantes é uma ópera-balé muito famosa, criada por Jean-Philippe Rameau e
encenada no teatro do Palais-Royal em 1735.
5 Jeux e Ris — divindades; argiráspides — soldados de elite do antigo exército macedônio.
LIVRO VI
A NOITE EM CLARO

I. 16 DE FEVEREIRO DE 1833
A NOITE DE 16 para 17 de fevereiro de 1833 foi uma noite abençoada.
Acima de sua escuridão, ela teve o céu aberto.
Foi a noite de núpcias de Marius e Cosette. O dia havia sido delicioso.
Não fora a festa azul sonhada pelo avô, um encantamento feito de
querubins e cupidos pairando sobre a cabeça dos noivos, um casamento
digno de ser pintado como decoração, mas fora suave e risonho.
A moda do casamento em 1833 não era como a de hoje. A França ainda
não havia copiado da Inglaterra a suprema delicadeza de arrebatar a noiva
e fugir com ela ao sair da igreja, de esconder-se com vergonha da própria
felicidade e combinar os modos de um falido com os arroubos do cântico
dos cânticos. Ainda não se compreendia o que há de casto, de delicado e de
decente em sacudir seu paraíso dentro de uma carruagem, em entrecortar
seu mistério com estalos de chicote, em tomar por leito nupcial uma cama
de estalagem, em deixar atrás de si, na alcova banal paga a tanto por noite,
a mais sagrada das recordações da vida, em meio aos comentários trocados
entre o cocheiro da diligência e a criada da estalagem.
Nesta segunda metade do século XIX em que nos encontramos, o
prefeito com sua faixa, o padre com sua estola, a lei e Deus já não são
suficientes; é preciso completá-los com o postillon de Longjumeau1;
jaqueta azul com forro vermelho e botões de guizo, condecoração em
torno do braço, calças de pelica verde, pragas contra os cavalos normandos
de cauda atada, falsos galões, chapéu de oleado, cabeleira empoada,
grande chicote e botas pesadas.
A França não leva ainda a elegância a ponto de, como a nobreza
inglesa, fazer chover, sobre a carruagem dos noivos, uma saraivada de
sapatos e chinelos velhos, em memória de Churchill, desde que
Marlborough ou Malbrouk foi atacado no dia de seu casamento pela cólera
de uma tia, o que lhe trouxe felicidade. Os sapatos e os chinelos velhos
ainda não fazem parte das nossas celebrações nupciais, mas, uma vez que
o bom gosto continue a difundir-se, chegaremos lá.
Em 1833, há cem anos, os casamentos não eram feitos a grande trote.
Nessa época ainda se pensava, coisa estranha, que o casamento era
uma festa íntima e social, que um banquete patriarcal não prejudicava uma
solenidade doméstica, que a alegria, ainda que excessiva, uma vez honesta,
nenhum mal faria à felicidade, e que, finalmente, era venerável e
conveniente que a fusão dos dois destinos, de onde sairia uma família,
tivesse princípio em casa, e o casal tivesse por testemunha, desde aquele
momento, o quarto nupcial.
E tinham a falta de pudor de se casarem em casa!
O casamento foi então realizado segundo essa moda caduca, na casa do
senhor Gillenormand.
Por mais natural e comum que seja esse negócio de casamento, a
publicação das proclamas, o registro dos atos, a prefeitura, a igreja, tudo
isso sempre tem alguma complicação. Não foi possível estar com tudo
pronto antes de 16 de fevereiro.
Bem, apontamos esse detalhe pela pura satisfação de sermos exatos,
ocorreu que 16 de fevereiro era terça-feira de carnaval.
Hesitações, escrúpulos, principalmente da tia Gillenormand.
— Terça-feira gorda! — exclamou o avô. — Melhor ainda. Como diz o
provérbio:

Mariage un mardi gras


N’aura pas d’enfants ingrats.

Casamento na terça de carnaval


Não dará filhos ingratos.
— Vamos em frente. Que seja no dia 16. Ou você quer adiar, Marius?
— Não, claro! — respondeu o apaixonado.
— Então, vamos casar — exclamou o avô.
O casamento realizou-se, então, no dia 16, apesar da alegria pública.
Nesse dia, chovia; porém, no céu sempre há um cantinho azul à disposição
da felicidade, que os amantes são capazes de ver, mesmo quando o resto
da criação se encontra debaixo de um guarda-chuva.
Na véspera, Jean Valjean entregara a Marius, em presença do senhor
Gillenormand, os quinhentos e oitenta e quatro mil francos. O casamento
se fazia em comunhão de bens; assim, os papéis eram simples.
Como Toussaint agora se tornava inútil a Jean Valjean, Cosette a
“herdou”, promovendo-a ao posto de sua criada de quarto.
Quanto a Jean Valjean, havia na casa de Gillenormand um belo quarto
mobiliado especialmente para ele, e Cosette tão irresistivelmente disse-
lhe: “Pai, estou lhe pedindo por favor”, que praticamente o fez prometer
que iria morar ali.
Poucos dias antes da data fixada para o casamento, aconteceu-lhe um
acidente, quase esmagou o polegar da mão direita. Não era nada grave; e
não consentiu que ninguém tratasse dele ou visse o ferimento, nem mesmo
Cosette. Contudo, isso o forçara a enrolar a mão em uma atadura e a
manter o braço na tipoia, ficando impossibilitado de assinar o que quer
que fosse. O senhor Gillenormand, como tutor sub-rogado de Cosette, o
substituiu.
Não conduziremos o leitor nem à prefeitura nem à igreja. Não se deve
seguir dois amantes a esse ponto. O costume é voltar as costas ao drama
assim que o noivo coloca uma flor na lapela. Vamos nos limitar a apontar
um incidente que, embora tenha passado despercebido pela cerimônia,
marcou o trajeto da rua Filles-du-Calvaire à igreja Saint-Paul.
Naquela ocasião, renovavam o calçamento da extremidade norte da rua
Saint-Louis. Ela estava interditada a partir da rua Parc-Royal. Era
impossível às carruagens que acompanhavam as bodas irem diretamente a
Saint-Paul; tinham de mudar de itinerário, e o mais simples era contornar
o bulevar.
Um dos convidados observou que se tratava da terça-feira gorda, e que
ali deveria haver um atulhamento de carruagens.
— Por quê? — perguntou o senhor Gillenormand.
— Por causa das máscaras.
— Maravilha! — disse o avô. — Vamos por lá. Estes jovens estão se
casando; vão entrar no lado sério da vida. Isso vai prepará-los para ver um
pouco de mascarada!
Tomaram o bulevar. A primeira carruagem levava Cosette, tia
Gillenormand, o senhor Gillenormand e Jean Valjean. Marius, ainda
separado da noiva, segundo o costume, vinha na segunda. O cortejo
nupcial, ao sair da rua Filles-du-Calvaire, emaranhou-se na longa
procissão de carruagens que formava uma corrente sem fim, de la
Madeleine até a Bastilha e da Bastilha até la Madeleine.
As máscaras abundavam no bulevar. Apesar dos aguaceiros que caíam
a cada intervalo, Paillasse, Pantalon e Gille2 não desistiam. No bom humor
desse inverno de 1833, Paris se fantasiava de Veneza. Não se veem mais
essas terças gordas hoje em dia. Como tudo o que existe é carnaval, já não
há carnaval.
As calçadas regurgitavam gente, e as janelas, curiosos. Os terraços
acima das galerias dos teatros estavam repletos de espectadores. Além das
máscaras, olhava-se esse desfile, típico da terça de carnaval e de
Longchamp, de veículos de todo tipo, seguindo ordenadamente,
rigorosamente alinhados uns aos outros por regulamentos policiais, e
como que encaixados em trilhos. Quem se acha dentro de um desses
veículos é, ao mesmo tempo, espectador e espetáculo. Agentes municipais
mantinham, ao longo das margens do bulevar, as duas intermináveis
fileiras paralelas movendo-se em sentidos contrários, atentos a que nada
entravasse a dupla corrente dos dois rios de carros, uma descendo em
direção à Chaussée-d’Antin, a outra subindo em direção ao bairro Saint-
Antoine. Os veículos com brasões dos pares de França e dos embaixadores
seguiam pelo meio da rua, indo e vindo livremente. Certos cortejos, mais
ostensivos e alegres, especialmente o Boeuf Gras [Boi Gordo], tinham o
mesmo privilégio. No meio dessa alegria de Paris, a Inglaterra fazia
estalar seu chicote; a carruagem de Lorde Seymour, importunada por um
apelido popular, passava com muito barulho.
Na dupla fileira, ao longo da qual os guardas municipais galopavam
como cães pastores, honestas carruagens de família, cheias de tias e avós,
mostravam, pelas portinholas, alegres grupos de crianças fantasiadas,
pierrôs de sete anos, colombinas de seis anos, encantadoras criaturinhas
sentindo que faziam oficialmente parte do regozijo público, cheias da
dignidade de sua brincadeira e de certa gravidade de funcionários do
Estado.
De quando em quando, sobrevinha algum embaraço no meio daquela
procissão de veículos; uma ou outra das duas fileiras laterais parava até
que se desatasse o nó; um só veículo que parasse era o suficiente para
paralisar toda a linha. Em seguida, voltavam a se mover.
As carruagens do cortejo nupcial estavam na fileira que se dirigia à
Bastilha, rodando pelo lado direito do bulevar. Na altura da rua Pont–aux-
Choux, houve um momento de pausa. Quase ao mesmo tempo, do outro
lado, a fila que ia em direção a la Madeleine também parou. Naquele
ponto da segunda fila, havia uma carruagem de mascarados.
Essas carruagens, ou melhor, esses montes de mascarados, são bem
conhecidos dos parisienses. Se faltassem na terça gorda ou na mi-carême,3
causariam estranheza, e se comentaria: Está acontecendo alguma coisa.
Provavelmente o ministério vai cair. Um amontoado de Cassandras,
Arlequins e Colombinas, aos solavancos por cima dos passantes; toda
espécie de grotescos, desde o turco até o selvagem; Hércules carregando
marquesas; regateiras que fariam Rabelais tapar os ouvidos, assim como
as bacantes faziam Aristófanes baixar os olhos; perucas de estopa, maiôs
cor-de-rosa, chapéus de gala, óculos de palhaço, tricórnios de Janot
atormentados por uma borboleta; gritos lançados aos pedestres, mãos nos
quadris, atitudes despojadas, ombros nus, rostos mascarados, impudores
escancarados; um caos de atrevimentos guiado por um cocheiro coroado
de flores; eis o que é essa instituição.
A Grécia precisava da carruagem de Téspis, a França precisa da
carruagem de Vadé.4 Tudo é suscetível de paródia, até a própria paródia. A
saturnal, careta da beleza antiga, chegou, de exagero em exagero, à terça-
feira gorda; e a bacanal, outrora coroada de folhas de parreira, inundada de
sol, mostrando seios de mármore em uma seminudez divina, hoje
deformada sob os trapos molhados do norte, acabou por se chamar
mascarada.
A tradição dos carros de máscaras remonta aos mais antigos tempos da
monarquia. Nas contas de Luís XI, abonam ao magistrado do palácio
“vinte soldos por três carros de máscaras nas praças”. Atualmente, esses
grupos barulhentos de criaturas fazem-se transportar por qualquer carroça
velha, que eles atulham; ou enchem com seus tumultuosos componentes
uma carruagem da administração com capota rebaixada. São vinte onde
cabem seis; metem-se na traseira, no estribo, na capota, montam até nas
lanternas.
Ficam de pé, sentados, deitados, com as pernas encolhidas, com elas
penduradas. As mulheres vão nos joelhos dos homens. Veem-se de longe,
por cima dessa multidão de cabeças, suas pirâmides enfurecidas. Esses
carros formam montanhas de alegria no meio do tumulto. Collé, Panard e
Piron5 provêm daí, enriquecidos de gíria. Cospe-se lá de cima, sobre o
povo, o catecismo da vulgaridade. Esse carro, que se tornou
desmesuradamente grande por sua carga, tem um ar de conquista.
Barulheira vem à frente, Tumulto vem atrás. Ali vociferam, gritam,
cantam, rugem, contorcem-se de felicidade; a alegria se inflama, o
sarcasmo resplandece, a jovialidade brilha como purpurina; é a farsa
levada em apoteose por dois rocins; é a carruagem triunfal do Riso.
Riso demasiado cínico para ser franco. E, de fato, esse riso é suspeito.
Esse riso tem uma missão. Está encarregado de provar o carnaval aos
parisienses.
Esses carros vulgares, onde se sente algo de tenebroso, fazem meditar
o filósofo. Há um quê de governo ali dentro. Dá para sentir na ponta dos
dedos uma misteriosa afinidade entre os homens públicos e as mulheres
públicas.
Que um amontoado de torpezas produza uma alegria total; que
sobrepondo a ignomínia ao opróbrio se seduza um povo; que a
espionagem, servindo de máscara à prostituição, divirta as turbas,
afrontando-as; que a multidão goste de ver passar sobre as quatro rodas de
uma carruagem esse monstruoso monturo vivo, lantejoula-farrapo, meio
brilho, meio lixo, que ladra e canta; que se aplauda essa glória formada de
todas as vergonhas; que não haja verdadeira festa para as multidões se a
polícia não fizer passear em meio a elas essas espécies de hidras de alegria
com vinte cabeças, claro, isso tudo é triste. Mas, que fazer?
Essas carroças de lama enfeitadas com fitas e flores são insultadas e
anistiadas pelo riso público. O riso de todos é cúmplice da degradação
universal. Certas festas impuras desagregam o povo e fazem dele ralé. E as
ralés, bem como os tiranos, precisam de histriões. O rei tem Roquelaure, o
povo tem Paillasse.6 Paris é a grande cidade louca todas as vezes que não é
a grande cidade sublime. Em Paris, o carnaval faz parte da política. Paris,
vamos confessar, assiste, de bom grado, à comédia levada pela infâmia.
Não pede a seus senhores — quando os tem — senão uma coisa: que
mascarem a lama. Roma tinha a mesma propensão. Gostava de Nero. Nero
era um gigantesco personagem de carnaval.
Como acabamos de dizer, o acaso fez com que um desses disformes
cachos de mulheres e homens mascarados, levados por uma enorme
carruagem, parasse à esquerda do bulevar, ao mesmo tempo que o cortejo
nupcial parava do lado direito. A carruagem dos mascarados avistou, de
longe mas bem em frente à sua, a carruagem onde estava a noiva.
— Vejam! — disse um mascarado. — Um casamento.
— É um casamento falso — retrucou um outro. — Nós é que somos o
verdadeiro.
Muito longe para poder interpelar o cortejo dos noivos, e temendo a
intervenção dos agentes municipais, os dois mascarados olharam para
outros lugares.
Em um instante, a carruagem dos mascarados teve trabalho; a multidão
se pôs a vaiar, o que é seu modo de acariciar os mascarados; e os dois que
haviam acabado de falar precisaram enfrentar todo o mundo juntamente
com seus camaradas, mas nem com todos aqueles projéteis do repertório
dos mercados puderam responder à grande gritaria do povo. Fez-se, entre
os mascarados e a multidão, uma medonha troca de metáforas.
Ao mesmo tempo, outros dois mascarados da mesma carruagem, um
espanhol com um nariz descomunal, aparência envelhecida e enormes
bigodes pretos, e uma moça magra e bem jovem, mascarada de lobo,
tinham reparado no cortejo e, enquanto seus companheiros e os passantes
se insultavam, mantinham um diálogo em voz baixa.
Sua conversa era encoberta e se perdia no tumulto. As pancadas de
chuva haviam molhado completamente a carruagem toda descoberta; o
vento de fevereiro não é quente. Ao mesmo tempo que respondia ao
espanhol, a moça, de ombros à mostra, ria, tiritava e tossia.
Eis o diálogo:
— Veja só.
— O que, daron?
— Está vendo aquele velhote?
— Que velhote?
— Aquele, na primeira roulotte7 do casamento, ao nosso lado.
— O que está com o braço preso em um lenço preto?
— Sim.
— O que tem?
— Tenho certeza de que eu o conheço.
— Ah!
—Je veux qu’on me fauche le colabre et n’avoir de ma vioc dit
vousaille, tonorgue ni mézig, si je ne colombe pas ce pantinois-là.8
— É hoje que Paris é Pantin.
— Abaixando, você consegue ver a noiva?
— Não.
— E o noivo?
— Naquela roulotte não tem noivo nenhum.
— Bah!
— Só se o noivo é o outro velhote.
— Então abaixe bem e trate de ver a noiva.
— Não consigo.
— Não importa; aquele velho com alguma coisa na pata, tenho certeza
que eu o conheço.
— E para que lhe serve conhecê-lo?
— Quem sabe? Às vezes…
— Estou pouco me lixando para os velhos!
— Eu o conheço.
— Conheça à vontade!
— Como diabos ele está no casamento?
— Nós também estamos, nós dois!
— De onde saiu esse casamento?
— Como eu vou saber?
— Escute.
— O quê?
— Você devia fazer uma coisa.
— O quê?
— Descer da nossa roulotte e filer aquele casamento.
— Para quê?
— Para saber que casamento é esse e para onde ele vai. Desça depressa
e corra, minha fée, você que é jovem.
— Não posso sair da carruagem.
— Por quê?
— Fui contratada.
— Ai, diabos!
— Devo meu dia à prefeitura.
— É verdade.
— Se eu sair daqui, o primeiro inspetor que me vir me prende.
— É, eu sei.
— Hoje fui comprada por Pharos.9
— Não importa. Esse velho me incomoda.
— Os velhos o incomodam. No entanto, você não é uma mocinha.
— Ele está na primeira carruagem…
— E daí?
— Na roulotte da noiva…
— E então?
— Então ele é o pai!
— E eu com isso?
— Só estou dizendo que ele é o pai.
— Não tem só esse pai.
— Escute.
— O quê?
— Eu só posso sair mascarado. Assim, estou escondido, ninguém sabe
que estou aqui. Mas, amanhã, não tem mais máscaras. É quarta–feira de
cinzas, me arrisco a ser preso. Preciso voltar para a minha toca. Você é
livre.
— Nem tanto.
— Sempre mais que eu.
— Certo, e depois?
— Você tem que descobrir para onde foi esse casamento.
— Para onde ele está indo?
— É.
— Eu sei.
— Então, para onde?
— Para Cadran Bleu.
— Pra começar, não é desses lados.
— Então, vai para Rapée.
— Ou para outro lugar.
— Eles são livres; o casamento é livre.
— Não é nada disso. Estou dizendo que você trate de saber que
casamento é esse, quem é esse velho, e onde essa gente mora.
— Mas nunca! Muito engraçado! Vai ser fácil saber, oito dias depois,
de um casamento que passou por Paris na terça-feira gorda. Uma agulha
num palheiro! Será possível?
— E daí, trate de saber. Está ouvindo, Azelma?
Os dois cordões retomaram, de ambos os lados do bulevar, seu
movimento em sentido inverso, e o carro dos mascarados perdeu de vista a
carruagem da noiva.

II. JEAN VALJEAN CONTINUA COM O BRAÇO NA


TIPOIA
Realizar seus sonhos. A quem isso é concedido? Para isso deve haver
eleições no céu; mesmo sem saber, somos todos candidatos; os anjos
votam. Cosette e Marius tinham sido eleitos.
Cosette, tanto na prefeitura quanto na igreja, esteve deslumbrante e
comovente. Fora Toussaint, ajudada por Nicolette, quem a vestira.
Por cima de uma saia de tafetá branco, Cosette usava seu vestido de
renda de Binche, um véu de renda da Inglaterra, uma grinalda de flores de
laranjeira, um colar de pérolas finas; tudo isso era branco, e ela brilhava
em meio a essa brancura. Era uma candura delicada dilatando-se e
transfigurando-se naquela claridade. Parecia uma virgem prestes a
converter-se em deusa.
Os belos cabelos de Marius estavam brilhantes e perfumados;
entreviam-se aqui e ali, sob os espessos cachos, umas linhas
esbranquiçadas, que eram as cicatrizes da barricada.
O avô, soberbo, de cabeça erguida, amalgamando como nunca, em seus
trajes e em suas maneiras, todas as elegâncias do tempo de Barras,
conduzia Cosette. Substituía Jean Valjean, que, em virtude de ter o braço
na tipoia, não podia dar a mão à noiva.
Jean Valjean, vestido de preto, os seguia, todo risonho.
— Senhor Fauchelevent — dizia-lhe o avô —, este é um belo dia. Eu
voto pelo fim das aflições e das mágoas. De agora em diante, não deve
haver tristeza em parte alguma. Oras bolas! Eu decreto a alegria! O mal
não tem o direito de existir. Realmente, é uma vergonha para o azul do céu
que haja homens infelizes! O mal não vem do homem, que, no fundo, é
bom. Todas as misérias humanas têm como capital e sede governamental o
inferno, as Tulherias do diabo. Mas, bem, agora estou proferindo palavras
demagógicas! Quanto a mim, não tenho mais opiniões políticas. Meu
único desejo é que todos os homem sejam ricos, quer dizer, felizes!
Quando, concluídas todas as cerimônias, após terem pronunciado todos
os sim possíveis perante o prefeito e perante o padre, após terem assinado
todos os registros da municipalidade e da sacristia, após terem trocado
alianças, após terem ajoelhado lado a lado sob o véu de tecido branco,
envoltos pela fumaça do incensório, eles chegaram de mãos dadas,
admirados e invejados por todos, Marius de preto, Cosette de branco,
precedidos por um guarda suíço com dragonas de coronel, batendo nas
lajotas com sua alabarda entre duas alas de maravilhados espectadores,
sob o portal da igreja aberto de um batente ao outro, prontos a subirem
novamente na carruagem, tendo tudo chegado ao fim, Cosette ainda não
podia acreditar naquilo. Ela olhava para Marius, olhava para a multidão,
olhava para o céu; parecia temer despertar. Seu ar admirado e inquieto
acrescentava-lhe algo de encantador. Na volta, ficaram juntos na mesma
carruagem, Marius ao lado de Cosette; o senhor Gillenormand e Jean
Valjean de frente para eles. Tia Gillenormand recuara, ficando na segunda
carruagem.
— Meus filhos — dizia o avô —, eis o senhor barão e a senhora
baronesa, com trinta mil francos de renda.
E Cosette, inclinando-se para Marius, acariciava-lhe os ouvidos com
este sussurro angelical:
— Então é verdade, me chamo Marius, sou a senhora Você.
As duas criaturas resplandeciam. Estavam no irrevogável e único
instante, no deslumbrante ponto de intersecção de toda a juventude e de
toda a alegria. Eram a realização dos versos de Jean Prouvaire; juntos não
tinham quarenta anos.10 Era o casamento sublimado; essas duas crianças
eram dois lírios. Não se olhavam, contemplavam-se. Cosette via Marius
envolto em glória; Marius via Cosette sobre um altar. E nesse altar e nessa
glória, nas duas apoteoses que se misturavam, no fundo, não se sabe como,
por trás de uma nuvem para Cosette, em uma irradiação para Marius,
havia a coisa ideal, a coisa real, o encontro do beijo e do sonho, o
travesseiro nupcial.
Todo o tormento que haviam suportado voltava-lhes em forma de
embriaguez. Parecia-lhes que as mágoas, as insônias, as lágrimas, as
angústias, os temores, as aflições, transformados em carícias e brilho,
tornavam ainda mais encantador o momento encantador que se
aproximava; e que as tristezas eram como servas que haviam preparado a
alegria. Ter sofrido, que coisa boa! Sua infelicidade criava uma auréola
sobre sua felicidade. A longa agonia de seu amor terminava em uma
ascensão!
Era o mesmo encantamento naquelas duas almas, com nuances de
volúpia em Marius e de pudor em Cosette. Diziam bem baixinho um ao
outro: “Vamos rever nosso pequeno jardim da rua Plumet”. E as dobras do
vestido de Cosette cobriam Marius.
Um dia como esse é uma inefável mistura de sonho e certeza. Há posse
e suposição. Ainda há tempo à frente para se adivinhar. Nesse dia, há uma
indizível emoção de, estando-se ao meio-dia, sonhar com a meia-noite. As
delícias daqueles dois corações transbordavam sobre a multidão e
alegravam quem passava.
Na rua Saint-Antoine, diante de Saint-Paul, paravam para ver, através
dos vidros da carruagem, as flores de laranjeira tremulando sobre a cabeça
de Cosette.
Depois, retornaram à rua Filles-du-Calvaire, para casa. Marius, lado a
lado com Cosette, subiu, triunfante e radiante, aquela mesma escada por
onde tinha sido conduzido moribundo. Os pobres, aglomerados à porta, e
repartindo seus donativos, os abençoavam. Havia flores por toda parte. A
casa não estava menos perfumada do que a igreja; após o incenso, as rosas.
Acreditavam ouvir vozes cantando no infinito; tinham Deus no coração; o
destino lhes aparecia como um firmamento cheio de estrelas; viam acima
de suas cabeças um clarão de aurora. De repente, o relógio soou. Marius
olhou para o lindo braço nu de Cosette e para as rosadas partes que
entrevia pelas rendas de seu vestido, e Cosette, vendo o olhar de Marius,
corou até o branco dos olhos.
Muitos antigos amigos da família Gillenormand haviam sido
convidados; todos solícitos em volta de Cosette, a quem chamariam de
senhora baronesa.
O oficial Théodule Gillenormand, agora capitão, viera de Chartres,
onde tinha sua guarnição, para assistir ao casamento de seu primo
Pontmercy. Cosette não o reconheceu.
De sua parte, costumado a ser considerado belo pelas mulheres, não se
lembrou de Cosette mais do que de qualquer outra.
— Como fiz bem em não acreditar naquela história de lanceiro! —
dizia o velho Gillenormand com os seus botões.
Cosette jamais fora tão terna para com Jean Valjean. Ela estava em
uníssono com o pai Gillenormand; enquanto ele erigia sua alegria com
máximas e aforismos, ela exalava amor e bondade como um perfume. A
felicidade quer que todos estejam felizes.
Ela voltava a usar, ao falar com Jean Valjean, as inflexões de voz do
tempo em que era pequenina. Ela o acariciava com seu sorriso.
Um banquete fora organizado na sala de jantar.
Uma iluminação a giorno é condimento necessário a um grande júbilo.
As brumas e as trevas não são aceitas pelos felizes. Eles não consentem
em ficar no escuro. A noite, sim, a escuridão, não. Se não há sol, é preciso
arranjar um.
A sala de jantar era uma fornalha de coisas alegres. No centro, acima
da branca e cintilante mesa, um lustre de Veneza, com lâminas planas,
com todo tipo de pássaros coloridos, verdes, roxos, azuis, vermelhos,
empoleirados entre as velas; em volta do lustre de muitos braços, espelhos
de três a cinco ramos aplicados às paredes; cristais, vidros, copos,
porcelana, louça, faianças, objetos de ouro e prata, tudo brilhava
prazenteiramente. Os espaços vazios entre os candelabros estavam
preenchidos por buquês, de modo que, onde não havia luz, havia uma flor.
Na antecâmara, três violinos e uma flauta tocavam, em surdina, quartetos
de Haydn.
Jean Valjean sentara-se no salão, junto da porta, de modo que o batente
praticamente o encobria. Momentos antes de se colocarem à mesa,
Cosette, como que por capricho, veio fazer-lhe uma grande reverência,
levantando com as mãos seu vestido de noiva, e perguntou-lhe, com um
olhar graciosamente travesso:
— Pai, o senhor está contente?
— Estou — respondeu Jean Valjean —, estou contente, sim.
— Então, sorria.
Jean Valjean sorriu.
Instantes depois, Basque anunciou que o jantar estava servido. Os
convidados, precedidos pelo senhor Gillenormand, que dava o braço a
Cosette, entraram na sala de jantar, distribuindo-se, segundo a ordem
desejada, em torno da mesa.
Duas grandes poltronas ali estavam, à direita e à esquerda da noiva, a
primeira destinada ao senhor Gillenormand, a segunda a Jean Valjean. O
senhor Gillenormand sentou-se. A outra poltrona ficou vazia.
Procuraram “o senhor Fauchelevent”. Não estava mais lá.
O senhor Gillenormand interpelou Basque.
— Sabe onde está o senhor Fauchelevent?
— Senhor — respondeu Basque —, justamente, o senhor Fauchelevent
recomendou-me dizer-lhe que sua mão machucada o incomodava, e que
não poderia jantar com o senhor barão e a senhora baronesa. Pediu que o
desculpassem. Acaba de sair, dizendo que amanhã pela manhã voltará.
Aquela poltrona vazia arrefeceu por um momento a efusão do banquete
nupcial. Mas, com o senhor Fauchelevent ausente, lá estava o senhor
Gillenormand, brilhando por dois. Ele afirmou que o senhor Fauchelevent
fizera bem em recolher-se cedo, se sentia dor, mas que aquilo não passava
de um dodói. Essa declaração foi o suficiente. Além disso, o que era um
cantinho escuro em meio a tal submersão de alegria? Cosette e Marius
achavam-se em um desses egoístas e abençoados momentos em que não se
tem outra faculdade senão a de perceber a felicidade. E, também, o senhor
Gillenormand teve uma ideia.
— Ora, essa poltrona está vazia, venha para cá, Marius. Embora sua tia
tenha direito a você, ela o permitirá. Essa poltrona é para você. É legal, e é
gentil. Fortunatus ao lado de Fortunata!
Aplausos de toda a mesa.
Marius ocupou, ao lado de Cosette, o lugar de Jean Valjean; e as coisas
se arranjaram de modo que Cosette, em princípio triste com a ausência de
Jean Valjean, acabou por se alegrar com ela. Desde que Marius fosse o
substituto, Cosette não lamentaria nem a falta de Deus.
Cosette apoiou seu pezinho, calçado de cetim branco, sobre o pé de
Marius.
Ocupada a poltrona, o senhor Fauchelevent estava esquecido; e nada
faltou. Cinco minutos depois, a mesa ria, de uma ponta à outra, com toda a
verve do esquecimento.
À sobremesa, o senhor Gillenormand levantou-se, na mão uma taça de
champanhe pelo meio, para que o tremor dos seus noventa e dois anos não
a deixasse transbordar, e brindou à saúde dos noivos.
— Não escaparão de dois sermões — exclamou ele. — Pela manhã foi
o do abade, agora será o do avô! Escutem-me, vou dar-lhes um conselho:
adorem-se. Não vou fazer rodeios, vou direto ao ponto, sejam felizes! Não
há na criação outros sábios além das rolinhas. Os filósofos dizem:
“Moderem seus prazeres”. E eu digo: “Soltem as rédeas de suas alegrias.
Apaixonem-se como dois diabinhos. Sejam impetuosos”. Os filósofos
dizem disparates. Eu gostaria de fazer sua filosofia voltar-lhes goela
abaixo. Será que pode haver excesso de perfumes, de botões de rosa
abertos, de rouxinóis cantando, de folhas verdes, de aurora na vida? Será
que se pode amar em excesso? Será que se pode agradar, em excesso, um
ao outro? Cuidado, Estela, você é bela demais! Cuidado, Nemorino,11 você
é belo demais! Bela estupidez! Será que podemos nos encantar demais,
sermos carinhosos demais, nos agradarmos demais, estarmos vivos
demais? Moderem seus prazeres… que nada! Abaixo os filósofos! A
sabedoria é o júbilo. Rejubilem-se, rejubilemo–nos. Somos felizes porque
somos bons, ou somos bons porque somos felizes? Sancy chama-se Sancy
por ter pertencido a Harlay de Sancy, ou porque pesa cento e seis quilates?
12 Não sei. A vida é cheia desses problemas; o importante é possuir o
Sancy e a felicidade. Sejamos felizes sem trapacear! Obedeçamos
cegamente ao sol. O que é o sol? É o amor. Quem diz amor, diz mulher.
Ah! Ah! Aí está uma onipotência, a mulher! Perguntem a esse demagogo
do Marius se ele não é escravo dessa pequena tirana Cosette! E com que
prazer, covarde! A mulher! Não há Robespierre que resista, a mulher
reina! Sou o mais realista desse tipo de realeza. Que é Adão? O reino de
Eva. Nada de 1789 para Eva. Já houve cetro real com flor-de-lis na ponta,
cetro imperial com um globo na ponta, houve o cetro de ferro de Carlos
Magno, houve o cetro de ouro de Luís, o Grande; a revolução os torceu,
todos, entre o polegar e o indicador, como algo sem importância; e acabou,
quebrou, caiu por terra, não existe mais cetro; mas façam revoluções
contra um lencinho bordado e perfumado de patchuli! Queria ver isso.
Tentem! Por que é sólido? Por ser um pedaço de pano. Ah! Vocês são o
século XIX? E daí? Nós éramos o século XVIII, e tão bobos como vocês!
Não pensem que vocês mudaram grande coisa no universo, só porque
trocaram o nome de algumas coisas. No fundo, sempre teremos de amar as
mulheres. Eu os desafio a sair dessa. Esses pequenos diabinhos são nossos
anjos. Sim, o amor, a mulher, o beijo formam um círculo do qual os
desafio a sair. E quanto a mim, bem que eu gostaria de nele tornar a entrar.
Quem de vocês já viu elevar-se no infinito, apaziguando tudo o que há
abaixo dela, olhando as ondas como uma mulher, a estrela Vênus, a grande
charmosa do abismo, a Celimene do oceano? O oceano, eis aí um rude
Alceste.13 Pois bem, por mais que resmungue, quando Vênus aparece, ele
acaba sorrindo. A besta bruta se submete. Somos todos assim. Ira,
tempestade, raios, espuma até o teto. Uma mulher entra em cena, desponta
uma estrela, todos de joelhos. Há seis meses, Marius estava em luta; hoje
se casa. Fez bem. Sim, Marius, sim, Cosette, vocês têm razão. Vivam
ousadamente um para o outro, façam-se muito carinho, façam-nos morrer
de inveja por não podermos fazer o mesmo; idolatrem-se. Peguem em seus
bicos todos os pequenos fragmentos de felicidade que há sobre a terra e
formem com eles um ninho para viver. Por Deus, amar, ser amado, o belo
milagre de quando se é jovem! Não imaginem que vocês inventaram isso.
Eu também já sonhei, já cismei, já suspirei; eu também já tive uma alma
clara como o luar. O amor é uma criança de seis mil anos. O amor tem
direito a uma longa barba branca. Matusalém é um moleque ao lado de
Cupido. Há sessenta séculos, homem e mulher vencem todos os obstáculos
amando-se. O Diabo, que é esperto, pôs-se a odiar o homem; o homem,
que é mais esperto ainda, pôs-se a amar a mulher. Desse modo, fez-se mais
bem do que o Diabo fez-lhe de mal. Essa sutileza tem sido encontrada
desde os tempos do paraíso terrestre. Meus amigos, a invenção é velha,
mas está sempre nova. Aproveitem-na. Sejam Dafnis e Cloé enquanto
esperam ser Filemon e Baucis.14 Façam de tal forma que, quando
estiverem juntos, nada lhes falte, e que Cosette seja o sol para Marius, e
que Marius seja o universo para Cosette. Cosette, que o bom tempo seja o
sorriso de seu marido; Marius, que a chuva sejam as lágrimas de sua
mulher. E que nunca chova em seu lar! Vocês tiraram o bom número da
loteria, o amor no sacramento; tiraram a sorte grande, guardem-na bem,
fechem-na a sete chaves, não a desperdicem; adorem-se e não se importem
com o resto. Acreditem no que estou dizendo. É o bom senso. E o bom
senso não mente. Sejam um para o outro uma religião. Cada um tem seu
modo de adorar a Deus, mas, oras, a melhor maneira de adorar a Deus é
amar a própria mulher! Eu a amo! Esse é meu catecismo. Quem ama é
ortodoxo. A blasfêmia de Henrique IV coloca a santidade entre a
comilança e a bebedeira. Ventre-saint-gris!15 Eu não sou da religião dessa
blasfêmia em que a mulher foi esquecida. Isso me espanta por parte de
Henrique IV. Meus amigos, viva a mulher! Estou velho, segundo dizem,
mas é incrível, sinto-me como se estivesse ficando jovem! Gostaria de ir
escutar as gaitas de fole pelos bosques. Essas crianças que conseguem ser
belas e contentes me deixam encantado. Eu me casaria tranquilamente se
alguém me quisesse! É impossível acreditar que Deus nos tenha criado
para outra coisa além disto: idolatrar, arrulhar, embelezar, ser pombo, ser
galo, paparicar nosso amor da manhã até a noite; nos mirarmos em nossa
esposa, nos orgulharmos, nos sentirmos triunfantes, importantes; essa é a
finalidade da vida. Era isso, não nos levem a mal, o que pensávamos no
tempo em que éramos jovens! Ah! Como havia, naquela época, mulheres
encantadoras, e carinhas bonitas e belas mocinhas! Fiz com elas meus
estragos. Portanto, amem-se. Se não fosse o amor, não sei para que
realmente serviria existir a primavera; de minha parte, pediria a Deus que
escondesse todas as coisas belas que Ele nos mostra, e as tirasse de nós;
que recolocasse em sua caixa as flores, os pássaros, as belas jovens. Meus
filhos, recebam a bênção de seu velho avô.
A noite foi divertida, alegre e animada.
O bom humor soberano do avô deu o tom à festa toda, e cada um se
afinou a essa cordialidade quase centenária. Dançou-se um pouco, riu-se
muito; foi um belo casamento, ao qual o bom e velho Passado podia ser
convidado, aliás, ele ali estava, na pessoa do avô Gillenormand.
Houve tumulto, e depois silêncio.
Os noivos desapareceram.
Pouco depois da meia-noite, a casa Gillenormand transformou-se em
um templo.
Vamos parar por aqui. No limiar das noites de núpcias há um anjo de
pé, risonho e com um dedo nos lábios.
A alma entra em contemplação diante do santuário onde ocorre a
celebração do amor.
Deve haver uma luz especial brilhando acima dessas casas. A alegria
que elas contêm deve escapar por entre as pedras dos muros, como uma
claridade raiando vagamente pelas trevas. É impossível que essa festa
sagrada e fatal não envie um brilho celeste ao infinito. O amor é o cadinho
sublime onde se faz a fusão do homem e da mulher, da qual resulta o ser
único, o ser tríplice, o ser final, a trindade humana. O nascimento de duas
almas em uma só deve ser de grande emoção para as sombras. O amante é
sacerdote; a virgem extasiada se assusta. Algo dessa alegria chega a Deus.
Onde há um verdadeiro casamento, isto é, onde há amor, há ideal. Um
leito nupcial cria nas trevas um cantinho de aurora. Se fosse dado aos
olhos carnais perceber as temerosas e encantadoras visões da vida
superior, é provável que se descobrissem as formas da noite, os
desconhecidos alados, os azuis caminhantes do invisível, inclinando-se,
multidão de cabeças sombrias, em volta da casa luminosa, satisfeitos,
abençoando, apontando uns aos outros a virgem esposa docemente
sobressaltada, recebendo reflexos da felicidade humana em seus rostos
divinos. Se, nessa hora suprema, os esposos deslumbrados de volúpia,
acreditando-se sós, aplicassem o ouvido, ouviriam em seu quarto um
confuso sussurro de asas. A felicidade perfeita implica a solidariedade dos
anjos. A pequena alcova escura tem como teto o céu inteiro.
Quando duas bocas, feitas sagradas pelo amor, se juntam para criar, é
impossível que por sobre esse beijo inefável não haja um estremecimento
no imenso mistério das estrelas. São essas as verdadeiras felicidades. Não
há alegrias além dessas alegrias. O amor, está nele o único êxtase. Todo o
resto chora.
Amar ou ter amado é o bastante. Não peçam mais nada depois. Não há
outra pérola que se possa encontrar nas dobras obscuras da vida. O amor é
uma realização.

III. A INSEPARÁVEL
Que fora feito de Jean Valjean?
Imediatamente após ter sorrido com a gentil intimação de Cosette,
vendo que ninguém reparava nele, Jean Valjean levantou-se e,
despercebido, penetrou na antessala. Era a mesma sala onde, seis meses
antes, entrara coberto de lama, de sangue e de pólvora, trazendo o neto ao
avô. As velhas paredes revestidas de madeira estavam enfeitadas com
flores e folhagens; os músicos ocupavam o mesmo canapé onde Marius
havia sido colocado.
Basque, vestido de preto, calções curtos, meias e luvas brancas,
dispunha coroas de rosas em volta de cada um dos pratos que seriam
servidos. Jean Valjean apontou-lhe o braço na tipoia, encarregou-o de
explicar sua ausência e retirou-se.
As janelas da sala de jantar davam para a rua. Jean Valjean ali
permaneceu durante alguns instantes, de pé e imóvel, no meio da
escuridão, sob as janelas radiantes. E escutava. O confuso ruído do
banquete chegava até ele. Ouvia a voz alta e magistral do avô, os violinos,
o tinido da louça e dos copos, as risadas; e em meio a todo aquele alegre
rumor, distinguia a doce e alegre voz de Cosette.
Deixou a rua Filles-du-Calvaire e retornou à rua de l’Homme-Armé.
Para isso, seguiu pela rua Saint-Louis, pela rua Culture-Sainte–
Catherine e pela Blancs-Manteaux; era um pouco mais longo, mas era o
caminho que havia três meses tinha o costume de pegar, evitando a
confusão e a lama da rua Vieille-du-Temple, para vir todos os dias, da rua
de l’Homme-Armé à rua Filles-du-Calvaire com Cosette.
Esse caminho, por onde Cosette havia passado, excluía para ele
qualquer outro itinerário.
Jean Valjean chegou a casa, acendeu sua vela e subiu. O apartamento
estava vazio. Nem mesmo Toussaint encontrava-se mais ali. Os passos de
Jean Valjean faziam pelos aposentos mais ruído que de costume. Todos os
armários estavam abertos. Entrou no quarto de Cosette. A cama estava
sem lençóis. O travesseiro, sem fronha e sem rendas, pousava sobre as
cobertas dobradas aos pé do colchão, do qual se via o forro, e onde mais
ninguém iria se deitar. Todos os pequenos objetos femininos a que Cosette
tinha apreço haviam sido levados; só restaram os pesados móveis e as
paredes.
A cama de Toussaint também estava desguarnecida. Uma única cama
estava feita, parecendo esperar por alguém, era a cama de Jean Valjean.
Ele olhou para as paredes, fechou algumas das portas dos armários e se
pôs a andar de um quarto para o outro.
Depois voltou a seu quarto e colocou a vela sobre uma mesa. Tirou o
braço da tipoia e servia-se da mão direita, como se nada tivesse.
Aproximou-se de sua cama, e seus olhos, seja por acaso ou
intencionalmente, fixaram-se sobre a inseparável, da qual Cosette tivera
ciúmes, a pequena valise que ele nunca largava. No dia 4 de junho,
chegando à rua de l’Homme-Armé, pusera-a sobre uma mesinha ao lado
da cabeceira da cama. Dirigiu-se a essa mesinha com vivacidade, tirou
uma chave do bolso, abriu a valise.
Foi retirando lentamente as roupas com as quais, dez anos antes,
Cosette saíra de Montfermeil; primeiro tirou o vestidinho preto, depois o
lenço preto, depois os pesados sapatos de criança, que Cosette talvez ainda
pudesse usar, tão pequenos eram seus pés, depois o casaquinho de fustão
grosso, depois a saia de tricô, depois o aventalzinho com bolso, depois as
meias de lã. Essas meias, ainda marcadas com a forma de uma pequena
perna, não eram maiores que a mão de Jean Valjean. Tudo era de cor preta.
Fora ele quem levara para ela essas roupas até Montfermeil. À medida que
as tirava da valise, colocava-as sobre a cama. Pensava. Relembrava. Era
inverno, um mês de dezembro muito frio, ela tremia, meio nua, vestida
com uns trapos, os pobres pezinhos roxos de frio dentro de tamancos. Ele a
fizera tirar aqueles andrajos para vestir a roupa de luto. A mãe deve ter
ficado contente, em seu túmulo, vendo a filha usar luto por ela, e mais
ainda por vê-la vestida e aquecida. Lembrava da floresta de Montfermeil
que atravessaram juntos, Cosette e ele; lembrava do tempo que fazia, das
árvores sem folhas, dos bosques sem pássaros, do céu sem sol; não
importava, era encantador. Arrumou a roupa sobre a cama, o lenço perto da
saia, as meias junto aos sapatos, o casaco ao lado do vestido, e olhou cada
uma das peças. Ela não era maior que aquilo, trazia sua grande boneca nos
braços, tinha colocado a moeda de ouro no bolso do avental, e ria;
caminhavam os dois de mãos dadas, ela só tinha a ele no mundo.
Então sua venerável cabeça branca tombou sobre a cama, aquele velho
coração estoico se partiu, seu rosto, por assim dizer, enterrou-se nas
roupas de Cosette, e, se alguém passasse pela escada naquele momento,
teria ouvido terríveis soluços.

IV. IMMORTALE JECUR16


A velha luta formidável, da qual já vimos várias fases, recomeçou.
Jacó lutou com o anjo apenas uma noite. Oh! Mas quantas vezes já
vimos Jean Valjean em corpo a corpo com sua consciência, nas trevas,
lutando desesperadamente contra ela!
Luta espantosa! Em certos momentos é o pé que escorrega, em outros é
o solo que desmorona. Quantas vezes essa consciência, inspirada pelo
bem, não o havia enlaçado e deixado sem forças! Quantas vezes a verdade,
inexorável, não lhe encostara o joelho ao peito! Quantas vezes, abatido
pela luz, não lhe tinha dado graças! Quantas vezes essa luz implacável,
acesa dentro dele e sobre ele pelo bispo, o não havia iluminado à força,
quando ele desejaria estar cego! Quantas vezes não se reerguera do
combate agarrado ao rochedo, apoiado ao sofisma, arrastado na poeira, ora
derrubando sua consciência, ora sendo por ela derrubado! Quantas vezes,
após um equívoco, após um raciocínio falso e especioso do egoísmo, não
ouvira sua consciência irritada gritar-lhe ao ouvido: “Trapaça!
Miserável!” Quantas vezes seu pensamento refratário não agonizara
convulsivamente sob a evidência do dever! Resistência a Deus. Suores
fúnebres. Quantas feridas secretas que só ele sentia sangrar! Quantas
arranhões em sua lamentável existência! Quantas vezes não se erguera
ensanguentado, mortificado, despedaçado, esclarecido, o desespero no
coração, a serenidade na alma! E, vencido, sentindo-se vencedor! E depois
de tê-lo desconjuntado, atormentado e aniquilado, sua consciência, de pé
por cima dele, temível, luminosa, tranquila, lhe dizia: “Agora vá em paz!”
Mas, ao sair de tão sombria luta, que paz mais lúgubre!
Naquela noite, porém, Jean Valjean sentiu que iria travar seu último
combate.
Uma pungente questão se apresentava.
As predestinações não são todas direitas. Não se estendem como uma
avenida retilínea ante o predestinado; têm becos, recantos escuros,
encruzilhadas inquietantes oferecendo vários caminhos. Jean Valjean
naquele momento se defrontava com a mais perigosa dessas encruzilhadas.
Ele havia chegado ao supremo cruzamento entre o bem e o mal. Tinha
essa tenebrosa intersecção sob os olhos. Uma vez ainda, como já lhe havia
ocorrido em outras dolorosas peripécias, dois caminhos se abriam diante
dele, um tentador, o outro medonho. Qual deles seguir?
O que amedrontava era apontado pelo misterioso dedo indicador que
avistamos cada vez que fixamos os olhos na escuridão.
Jean Valjean tinha, ainda desta vez, a escolha entre o porto terrível e a
emboscada sorridente.
Isso então é verdade? A alma pode curar-se, a sorte não. Coisa terrível!
Um destino incurável!
A questão que se apresentava era a seguinte:
De que modo Jean Valjean iria se comportar em relação à felicidade de
Cosette e de Marius? Essa felicidade, era ele quem a havia desejado, era
ele quem a havia construído; ele mesmo a cravara nas entranhas; e,
considerando-a naquele momento, podia sentir a mesma satisfação que
experimentaria um armeiro ao reconhecer sua marca de fabricação em um
punhal que acabasse de arrancar, ainda fumegante, do peito.
Cosette tinha Marius, Marius tinha Cosette. Eles tinham tudo,
inclusive a riqueza. E tudo isso era obra sua.
Mas essa felicidade, agora que existia, agora que estava lá, o que faria
com ela, ele, Jean Valjean? Deveria impor-se a essa felicidade? Deveria
tratá-la como se lhe pertencesse? Por certo Cosette era de um outro; mas
deveria ele reter de Cosette tudo quanto pudesse? Continuaria sendo, como
até então, uma espécie de pai apenas entrevisto, mas respeitado? Deveria
introduzir-se tranquilamente na casa de Cosette? Traria, sem dizer uma
palavra, seu passado a esse futuro? Ali se apresentaria como quem tivesse
direito, e viria sentar-se, como que encoberto por um véu, dentro daquele
luminoso lar? Apertaria risonho, em suas mãos trágicas, as mãos daqueles
dois inocentes? Colocaria, na agradável lareira da sala Gillenormand, seus
pés, que arrastavam com eles a sombra infamante da lei? Tomaria parte
nas oportunidades de Marius e de Cosette? Engrossaria a obscuridade
sobre a própria fronte, e a nuvem que pairava sobre a deles? Intrometeria
sua catástrofe na dupla felicidade deles? Continuaria a calar-se? Em uma
palavra, seria, ao lado dessas duas felizes criaturas, o sinistro mudo do
destino?
É preciso estarmos habituados à fatalidade e aos seus encontros para
ousarmos erguer os olhos quando certas questões nos aparecem em toda a
sua horrível nudez. O bem e o mal estão por trás deste severo ponto de
interrogação.
— O que vai fazer? — pergunta a esfinge.
O hábito das provações, Jean Valjean o tinha. Encarou a esfinge
fixamente.
Examinou o impiedoso problema sob todos os ângulos.
Cosette, essa existência encantadora, era a tábua de salvação daquele
náufrago. O que fazer? Agarrar-se a ela ou largá-la?
Agarrando-se a ela, saía do desastre, voltava ao sol, deixava escorrer
de suas vestimentas e de seus cabelos a água amarga, estaria salvo,
viveria.
Se a largasse?
Aí, era o abismo.
Dessa forma dolorosa aconselhava-se com seu pensamento. Ou,
melhor dizendo, combatia, investindo furioso, em seu íntimo, ora contra a
sua vontade, ora contra a sua convicção.
Foi uma fortuna para Jean Valjean conseguir chorar; isso talvez o
tivesse esclarecido. Todavia, o começo foi feroz. Uma tempestade, mais
furiosa do que aquela que outrora o levara a Arras, desencadeou-se nele. O
passado voltava-lhe em confronto com o presente; ele comparava e
soluçava. Uma vez abertas as comportas das lágrimas, o desesperado
contorceu-se.
Sentia-se paralisado.
Ah! Nesse combate sem tréguas entre nosso egoísmo e nosso dever,
quando assim recuamos, passo a passo, ante nosso incomutável ideal,
perturbados, encarniçados, exasperados por ter de ceder, disputando
terreno, esperando a possibilidade de uma fuga, procurando uma saída, que
brusca e sinistra resistência faz o muro às nossas costas!
Sentir a sombra sagrada que faz obstáculo!
O invisível inexorável, que obsessão!
Então, com a consciência, a luta nunca termina. Tome sua resolução,
Brutus; tome sua resolução, Catão. Ela é sem fim, já que é Deus.
Lançamos nesse poço o trabalho de toda uma vida, ali lançamos nossa
sorte, ali lançamos nossa riqueza, ali lançamos nosso sucesso, ali
lançamos nossa liberdade ou nossa pátria, ali lançamos nosso bem-estar,
nosso descanso, nossa alegria. Mais! Mais! Despejem o vaso! Esvaziem a
urna! É preciso acabar ali lançando também o coração.
Em algum lugar, em meio às brumas de velhos infernos, há um tonel
como esse.
Não será a recusa, enfim, perdoável? Acaso o inesgotável pode ter
direitos? Será que as correntes intermináveis não estão acima da força
humana? Quem, então, censuraria Sísifo e Jean Valjean por dizerem:
“Basta!”?
A obediência da matéria é limitada pelo atrito; não haveria então um
limite para a obediência da alma? Se o movimento eterno é impossível, a
eterna dedicação poderia ser exigida?
O primeiro passo não é nada; o último é que é difícil. O que era o
processo Champmathieu em comparação ao casamento de Cosette e a tudo
o que este ensejava? O que pode ser isto: voltar para as galés, em
comparação com isto: voltar ao nada?
Como é sombrio o primeiro degrau a descer! E como é negro o
segundo degrau!
Como não voltar a cabeça desta vez?
O martírio é uma sublimação, sublimação corrosiva. É uma tortura que
consagra e à qual pode-se consentir em um primeiro instante; senta-se no
trono de ferro em brasa, coloca-se na fronte a coroa de ferro em brasa,
aceita-se o globo de ferro em brasa, empunha-se o cetro de ferro em brasa,
mas resta ainda revestir o manto de chamas, e então não há um momento
em que a carne miserável se rebele, e em que se abdique do suplício?
Jean Valjean entrou, enfim, na calma do esgotamento.
Pesou, meditou, considerou as alternativas da misteriosa balança de
luz e trevas.
Impor sua prisão àquelas crianças deslumbradas, ou consumar ele
mesmo sua irremediável perdição. De um lado, o sacrifício de Cosette, de
outro, o seu próprio.
Em qual solução se deteve? Que determinação tomou? Qual foi, em
seu íntimo, sua resposta definitiva ao incorruptível interrogatório da
fatalidade? Qual porta decidiu-se a abrir? Que lado de sua vida resolveu
fechar e condenar? Entre todos os caminhos insondáveis que o rodeavam,
qual foi sua escolha? Que extremidade aceitou? Para qual desses abismos
acenou com a cabeça?
Seu devaneio vertiginoso durou a noite toda.
Continuou ali até amanhecer, na mesma atitude, dobrado em dois sobre
a cama, prosternado sob a enormidade do destino, talvez esmagado — ai!
—, os punhos cerrados, os braços estendidos em ângulo reto, como um
crucificado despregado que tivessem jogado com o rosto no chão. Assim
permaneceu doze horas, as doze horas de uma longa noite de inverno,
gelado, sem levantar a cabeça e sem pronunciar uma palavra. Estava
imóvel como um cadáver, enquanto seu pensamento rolava pelo chão ou
voava, ora como uma hidra, ora como uma águia. Ao vê-lo assim sem
movimento, poderiam julgá-lo morto; de repente, estremecia
convulsivamente, e sua boca, colada às roupas de Cosette, as beijava;
então alguém percebia que ele vivia.
Mas quem? Se Jean Valjean se encontrava completamente só? Se
ninguém mais estava lá?
O Alguém que está nas trevas.

__________________________
1 Postillon — homem que conduz os viajantes à diligência; Postillon de Longjumeau, ópera
cômica enfocando esse personagem, que, tendo uma bela voz de tenor, é convencido, na noite
de suas núpcias, a trocar Longjumeau por Paris.
2 Personagens carnavalescos.
3 Dia comemorativo na França: quinta-feira da terceira semana da Quaresma.
4 Téspis: criador da tragédia grega. Vadé: considerado o criador da literatura de cunho chulo.
5 Autores do gênero vaudeville: canções, poemas e comédias populares e satíricas.
6 Roquelaure fazia parte da corte de Luís XIV; Paillasse, personagem bufão dos espetáculos
saltimbancos.
7 Roulotte (carruagem), e, acima, daron (pai).
8 “Quero que cortem meu pescoço, e nunca na vida eu disse senhor, você, nem eu, se não
conheço aquele parisiense ali.”
9 Pharos (governo); acima: fée (filha), filer (seguir, espreitar).
10 Referência aos versos: Lorsqu’en ajoutant votre age à mon age, / Nous ne comptons pas à
deux quarante ans [Ainda que juntando sua idade à minha idade, / Não contamos os dois
quarenta anos].
11 Estela e Nemorino, personagens de uma pastoral.
12 Le Sancy s’appelle-t-il le Sancy parce qu’il a appartenu à Harley de Sancy, ou parce qu’il
pèse cent six carats? Trata-se de célebre diamante, assim chamado por ter pertencido a Nicolas
de Sancy, e pronuncia-se, em francês, do mesmo modo que cento e seis.
13 Celimene e Alceste — personagens da peça O misantropo, de Molière; ela, charmosa e
vaidosa, usa seus atributos para conquistar os homens. Ele, de costumes rigorosos e franqueza
quase brutal.
14 Dafnis e Cloé — protagonistas jovens de romance pastoral; Filemon e Baucis — casal já
idoso, personagens de Ovídio.
15 Ventre-saint-gris — ao pé da letra, santo ventre bêbado; antiga blasfêmia que exprime
cólera ou surpresa.
16 “O indestrutível fígado”: os povos antigos acreditavam que o fígado era sede dos
sentimentos vitais.
LIVRO VII
O ÚLTIMO GOLE DO CÁLICE

I. O SÉTIMO CÍRCULO E O OITAVO CÉU


SÃO SOLITÁRIOS os dias que se seguem aos casamentos. Respeita-se o
recolhimento dos felizes, e um pouco também seu sono atrasado. O
tumulto das visitas e das felicitações só recomeça mais tarde.
Na manhã do dia 17 de fevereiro, passava um pouco de meio-dia
quando Basque, toalha e espanador debaixo do braço, ocupado em
“arrumar a antessala”, ouviu baterem de leve na porta. Não haviam tocado
a campainha, procedimento discreto em um dia como aquele. Basque abriu
e viu o senhor Fauchelevent. Introduziu-o na sala, ainda cheia de coisas e
de pernas para o ar, parecendo o campo de batalha das alegrias da véspera.
— Ai, meu senhor — observou Basque —, hoje acordamos tarde.
— Seu patrão já se levantou? — perguntou Jean Valjean.
— Como está seu braço? — respondeu Basque.
— Melhor. Seu patrão já se levantou?
— Qual deles? O novo ou o velho?
— O senhor Pontmercy.
— O senhor barão? — disse Basque, aprumando-se.
Ser barão é importante sobretudo para os criados; algo disso recai
sobre eles, que têm o que um filósofo chamaria de respingos do título; isso
os envaidece. Marius, diga-se de passagem, republicano militante como já
provara ser, agora era barão contra a sua vontade. Uma pequena revolução
ocorrera na família a propósito desse título. No momento, era o senhor
Gillenormand quem o valorizava e Marius quem se despreendia dele.
Porém, o coronel Pontmercy escrevera: “Meu filho usará meu título”.
Marius obedecia. Além disso, Cosette, em quem a mulher começava a
despontar, estava encantada em ser baronesa.
— O senhor barão? — repetiu Basque. — Vou ver. Vou dizer a ele que
o senhor Fauchelevent está aqui.
— Não. Não lhe diga que sou eu. Diga-lhe que alguém quer falar com
ele em particular, mas não diga o nome.
— Ah! — disse Basque.
— Quero fazer-lhe uma surpresa.
— Ah! — repetiu Basque, dando a si mesmo este segundo “Ah!” como
explicação para o primeiro.
E saiu.
Jean Valjean ficou só.
A sala, acabamos de dizer, estava em completa desordem. Parecia que,
apurando-se os ouvidos, ainda fosse possível ouvir o vago rumor das
bodas. Pelo chão, havia todo tipo de flores, caídas das guirlandas e dos
penteados. As velas, queimadas até o fim, acrescentavam aos cristais dos
lustres estalactites de cera. Nem um único móvel estava em seu devido
lugar. Nos cantos, três ou quatro poltronas, próximas umas das outras e
dispostas em círculo, pareciam continuar uma conversa. O conjunto era
alegre. Existe ainda alguma graça em uma festa morta. Ela fora feliz.
Sobre essas cadeiras desarrumadas, por entre essas flores murchando, sob
essas luzes apagadas, haviam pensado com alegria. O sol sucedia ao lustre,
e entrava alegremente na sala.
Decorreram alguns minutos. Jean Valjean estava imóvel no mesmo
lugar em que Basque o deixara. E estava muito pálido. Os olhos encovados
e de tal forma fundos sob as órbitas, por causa da insônia, quase
desapareciam. Seu traje preto tinha as dobras cansadas de uma roupa com
a qual se passou a noite. Os cotovelos estavam cobertos daquela penugem
branca que o lençol deixa quando em atrito com a roupa.
Jean Valjean olhava a seus pés a janela desenhada pelo sol no assoalho.
Um ruído foi feito na porta e ele levantou o olhar.
Marius entrou, cabeça erguida, sorriso nos lábios, não se sabe que luz
tinha seu semblante, fronte radiante, o olhar triunfante. Também ele não
havia dormido. Ao avistar Jean Valjean exclamou:
— É o senhor, pai! E o bobo do Basque com um ar todo misterioso! O
senhor veio cedo demais. Não passa de meio-dia e meia. Cosette ainda está
dormindo.
As palavras “meu pai”, ditas por Marius ao senhor Fauchelevent
significavam: “felicidade suprema”. Como se sabe, entre eles sempre
houve distanciamento, frieza e constrangimento; gelo a ser rompido ou a
derreter. Marius estava a tal ponto inebriado que o distanciamento
diminuía, o gelo se dissolvia, e o senhor Fauchelevent era para ele, como
era para Cosette, um pai.
Ele continuou; as palavras transbordavam de sua boca, como é próprio
aos divinos paroxismos da alegria:
— Como estou contente em vê-lo! Se soubesse a falta que nos fez
ontem!… Bom dia, pai. Como está sua mão? Melhor, não é?
E, satisfeito com a boa resposta que dava a si mesmo, prosseguiu:
— Nós dois falamos bastante do senhor. Cosette o ama muito! Não se
esqueça de que tem um quarto aqui. Não queremos mais saber da rua de
l’Homme-Armé. De jeito nenhum. Como o senhor pôde ter ido morar em
uma rua como aquela, doentia, triste, feia, com uma barreira na
extremidade, onde faz frio, onde não se pode entrar? Venha instalar-se
aqui. Hoje mesmo! Ou terá de entender-se com Cosette. Ela pretende
mandar em todos nós, já vou lhe prevenindo. O senhor já viu seu quarto,
fica ao lado do nosso, e dá para o jardim; já mandamos consertar a
fechadura; a cama está arrumada, está tudo pronto; só falta o senhor
chegar. Cosette colocou perto de sua cama uma poltrona de veludo de
Utrecht, à qual disse: estenda-lhe os braços. Na primavera, sempre há um
rouxinol na moita de acácias que fica em frente a suas janelas. Estará aqui
em dois meses. O senhor terá o ninho do rouxinol à sua esquerda e o nosso
à sua direita. À noite, ele cantará, e de dia Cosette falará. Seu quarto é
privilegiado. Cosette arrumará seus livros, a viagem do capitão Cook e o
outro, aquele de Vancouver, e todas as suas coisas. Se não me engano, há
uma pequena valise à qual o senhor é muito apegado; já reservei um canto
de honra para ela. O senhor conquistou meu avô, ele simpatizou com o
senhor. Viveremos juntos. Sabe jogar o whist? Se souber, vai dar muita
satisfação a meu avô. É o senhor que vai levar Cosette para passear nos
dias em que eu estiver no tribunal, vai dar o braço a ela, sabe, como
antigamente no Luxemburgo. Estamos absolutamente decididos a sermos
muito felizes. E o senhor vai participar da nossa felicidade, ouviu? Ah, e o
senhor almoça conosco hoje?
— Senhor — disse Jean Valjean —, tenho uma coisa para lhe dizer.
Sou um antigo forçado.
O limite dos sons agudos perceptíveis tanto pode ser ultrapassado em
relação à alma como em relação aos ouvidos. As palavras: “Sou um antigo
forçado”, saindo da boca do senhor Fauchelevent e entrando nos ouvidos
de Marius, iam além do possível. Marius não ouviu. Teve a impressão de
que alguma coisa acabava de ser-lhe dita, mas não sabia o quê. Ficou
boquiaberto.
Reparou então que o homem que lhe falava estava medonho. Entregue
a seu deslumbramento, até aquele momento não notara sua terrível
palidez.
Jean Valjean desatou a tira preta que sustentava seu braço direito,
desenrolou a atadura que tinha em torno da mão, deixou o polegar de fora
e o mostrou a Marius:
— Não tenho nada na mão — disse.
Marius olhou para o polegar.
— Nunca tive nada na mão — acrescentou Jean Valjean.
De fato, não havia vestígio algum de ferida.
Jean Valjean prosseguiu:
— Convinha que eu estivesse ausente de seu casamento, e me ausentei
o mais que pude. Inventei esse ferimento para não fazer uma falsificação,
para não introduzir nada que pudesse anular os registros de casamento, e
para ser dispensado de assinar.
Marius gaguejou.
— O que isso quer dizer?
— Isso quer dizer — respondeu Jean Valjean — que eu estive nas
galés.
— O senhor está me deixando louco! — exclamou Marius assustado.
— Senhor Pontmercy—continuou Jean Valjean —, eu estive dezenove
anos nas galés, por roubo. Depois fui condenado a prisão perpétua, por
reincidência. Presentemente, sou um forçado evadido.
Por mais que Marius tentasse recuar ante a realidade, recusar o fato,
resistir à evidência, teve de se render a ela. Começou a compreender, e,
como sempre sucede em tais casos, foi mais além. Sentiu o tremor de um
medonho raio interior; uma ideia, que o fez estremecer, atravessou seu
espírito. Entreviu no futuro, para ele mesmo, um destino abjeto.
— Diga tudo, diga tudo! — gritou. — O senhor é o pai de Cosette!
Deu dois passos para trás com um gesto de indizível horror.
Jean Valjean ergueu a cabeça com tal majestade de atitude que parecia
ter crescido até o teto.
— É necessário que o senhor acredite em mim, e embora o juramento
entre nós não seja recebido em justiça…
Neste ponto, ficou em silêncio; depois, com uma espécie de autoridade
soberana e sepulcral, acrescentou, articulando e acentuando lentamente as
sílabas:
—… o senhor acreditará em mim. Pai de Cosette, eu! Perante Deus,
não! Senhor barão de Pontmercy, eu sou um aldeão de Faverolles, que
ganhava a vida podando árvores. Meu nome não é Fauchelevent, é Jean
Valjean. Não sou nada de Cosette. Fique tranquilo.
Marius balbuciou:
— Quem me prova?
— Eu. Pois estou lhe dizendo.
Marius olhou bem para aquele homem. Ele estava lúgubre e tranquilo.
Nenhuma mentira poderia sair de tal serenidade. O que é glacial é sincero.
Sentia-se a verdade naquela frieza sepulcral.
— Acredito no senhor — disse Marius.
Jean Valjean inclinou a cabeça, em sinal de ter ouvido, e prosseguiu:
— O que sou para Cosette? Alguém de passagem. Há dez anos sequer
sabia que ela existia. Eu a amo, é verdade! Uma criança que se conhece de
pequena, quando já se está velho, será amada. Quando estamos velhos, nos
sentimos o vovô de todas as criancinhas. O senhor pode supor, assim me
parece, que tenho alguma coisa parecida com um coração. Ela era órfã;
não tinha pai nem mãe. Precisava de mim. Foi por isso que me afeiçoei a
ela. As crianças são tão frágeis que, o primeiro que aparece, mesmo um
homem como eu, pode se tornar seu protetor. Cumpri esse dever para com
Cosette. Não creio que se possa realmente chamar tão pouca coisa de uma
boa ação; mas se for uma boa ação, pois bem, eu a pratiquei. Registre essa
circunstância atenuante. Hoje Cosette sai da minha vida; nossos dois
caminhos se separam. De agora em diante, não posso fazer mais nada por
ela. É a senhora Pontmercy. Sua Providência mudou. E Cosette ganha com
a mudança. Está tudo bem. Quanto aos seiscentos mil francos, o senhor
não me fala deles, mas eu me adianto a seu pensamento, trata-se de um
depósito. Como esse depósito encontrava-se em minhas mãos? Pouco
importa; estou entregando-o. Não há nada mais a me perguntar. Completo
a restituição declarando meu verdadeiro nome. Isso ainda me diz respeito.
Faço questão que o senhor saiba quem eu sou.
E Jean Valjean olhou fixamente para Marius.
Tudo o que Marius sentia era tumultuado e incoerente. Certos
vendavais do destino produzem essas ondas em nossa alma.
Todos já tivemos desses momentos de perturbação em que tudo dentro
de nós se dispersa; dizemos o que primeiro nos vem à cabeça, o que nem
sempre é exatamente o que deveria ser dito. Há revelações súbitas que não
se podem suportar, e que embriagam como um vinho funesto.
Marius estava estupafato com a nova situação que se apresentava, a
ponto de quase falar àquele homem como alguém que estivesse muito
aborrecido com aquela confissão.
— Mas, enfim — exclamou —, para que me diz tudo isso? O que o
força a isso? O senhor bem podia guardar seu segredo para si. Não está
sendo nem denunciado, nem perseguido, nem acuado. Algum motivo tem
para fazer tão espontaneamente uma revelação dessas. Então termine. Há
alguma outra coisa. Com que propósito está fazendo essa confissão? Por
que motivo?
— Por que motivo? — respondeu Jean Valjean em voz tão baixa e
surda que mais parecia falar consigo mesmo do que com Marius. — Por
que motivo, na verdade, esse forçado vem dizer: “Eu sou um forçado?” Na
verdade, o motivo é estranho. É por honestidade. Olhe, minha desgraça é
um fio que aqui tenho no coração e que me mantém preso. Principalmente
quando estamos velhos é que esses fios ficam mais sólidos. Toda a vida se
desfaz em torno de nós, mas eles resistem. Se eu tivesse conseguido
arrancar esse fio, quebrá-lo, desatar seu nó ou cortá-lo, ir para bem longe,
estaria salvo, era só partir; não faltam diligências na rua Bouloy; vocês
estão felizes, e eu vou-me embora. Tentei romper esse fio, arrancá-lo, mas
ele resistiu, não quebrou; eu arrancava meu coração com ele. Então pensei:
“Não posso viver senão aqui; preciso ficar”. Pois bem, certo, o senhor tem
razão, sou um imbecil, por que simplesmente não ficar? O senhor me
oferece um quarto em sua casa, a senhora Pontmercy gosta de mim, até diz
à poltrona: estenda-lhe os braços; seu avô não exige nada, simpatiza
comigo; viveremos todos juntos, as refeições em comum, darei o braço a
Cosette… à senhora Pontmercy, perdão, é o hábito; teremos um só teto,
uma só mesa, o mesmo fogo e o mesmo canto de lareira no inverno; o
mesmo passeio no verão; isso é a alegria, é a felicidade, é tudo! Viveremos
em família. Em família!
A essa palavra, o semblante de Jean Valjean tornou-se esquivo. Cruzou
os braços, olhou o chão a seus pés como se ali quisesse cavar um abismo, e
de repente sua voz soou vibrante:
— Em família! Não! Eu não pertenço a família nenhuma. Não pertenço
nem à sua, nem à dos homens. Nas casas onde se vive em família, eu estou
sobrando. Há muitas famílias, mas não para mim. Sou um infeliz, estou de
fora. Será que tive um pai e uma mãe? Quase chego a duvidar. No dia em
que casei essa menina, acabou; vi que estava feliz, que estava com o
homem a quem ama, que aqui havia um bom avô, um casal de dois anjos,
todas as alegrias dentro desta casa, que tudo estava bem, e então disse a
mim mesmo: “Você, não entre!” Eu podia mentir, é verdade, enganá-los,
todos, continuar sendo o senhor Fauchelevent. Enquanto foi por ela, eu
pude mentir, mas agora seria por mim, e não devo fazê-lo. Bastava calar-
me, é verdade, e tudo continuaria como até agora. O senhor me pergunta o
que me força a falar? Uma bobagem, minha consciência! No entanto,
calar-me seria muito fácil. Passei a noite tentando persuadir-me disso. O
senhor quer que eu fale, e o que acabo de dizer-lhe é tão extraordinário que
lhe dá direito a isso; é o que lhe digo, passei a noite inteira mostrando-me
razões, dei-me ótimas razões, fiz o que pude para isso, acredite. Mas há
duas coisas que não consegui: nem romper o fio que me mantém pelo
coração preso, ligado, fixado aqui; nem fazer calar alguém que me fala
baixinho quando estou só. Foi por isso que vim confessar-lhe tudo esta
manhã. Tudo ou quase tudo. Há coisas inúteis que só dizem respeito a
mim, e por isso as guardo comigo. O essencial o senhor ficou sabendo.
Peguei meu mistério e o trouxe ao senhor. Desvendei meu segredo a seus
olhos. Não foi uma resolução fácil de ser tomada. Passei a noite me
debatendo. Ah! O senhor pensa que eu não me disse que esse não era o
caso Champmathieu, que escondendo meu nome não faria mal a ninguém;
que o nome Fauchelevent me fora dado pelo próprio Fauchelevent em
reconhecimento a um favor que eu lhe prestara, e, sendo assim, eu bem
podia mantê-lo, e viveria feliz neste quarto que me oferecem, que eu não
atrapalharia nada, que eu ficaria no meu cantinho; e, enquanto o senhor
teria Cosette, eu teria o consolo de estar na mesma casa que ela. Cada um
teria sua felicidade proporcionada. Continuar sendo o senhor Fauchelevent
arranjaria tudo. Tudo, menos minha alma. Tudo em torno de mim seria
alegria, mas o fundo de minha alma continuaria escuro. Não basta estar
feliz, é preciso ficar contente. Assim, permanecendo como senhor
Fauchelevent, meu verdadeiro rosto, eu o teria escondido; assim, em
presença de sua satisfação, eu seria um enigma; assim, em meio à plena
luz de seu dia, eu seria as trevas; assim, sem prevenir, simplesmente, eu
introduziria as galés em seu lar; sentaria à sua mesa pensando que, se
soubesse quem eu era, me expulsaria, e seria servido por criados que, se
soubessem, diriam: “Que horror!” Eu o tocaria com meu cotovelo, contato
que o senhor teria o direito de não querer, iria roubar-lhe apertos de mão!
Em sua casa, haveria uma partilha de respeito entre veneráveis cabelos
brancos e cabelos brancos desonrados; em suas horas mais íntimas,
quando todos os corações se julgassem plenamente abertos uns para os
outros, quando nós quatro estivéssemos juntos, seu avô, vocês dois e eu,
ali haveria um desconhecido! Eu teria ficado lado a lado com vocês, em
sua existência, tendo o único cuidado de não derrubar a tampa de meu
terrível poço. Desse modo, eu, um morto, estaria impondo-me a vocês, que
estão vivos. Cosette, eu a estaria condenando a mim para toda a vida. O
senhor, ela e eu seríamos três cabeças cobertas pelo boné verde! O senhor
não se arrepia? Sou agora o mais atormentado dos homens, ou então seria
o mais monstruoso. E esse crime, estaria cometendo-o todos os dias! E
essa mentira, estaria repetindo-a todos os dias! E esse semblante obscuro,
estaria estampado em meu rosto todos os dias! E minha desonra, todos os
dias teriam dela sua parte, todos os dias! Meus queridos, minhas inocentes
crianças! Calar-se não é nada? Ficar em silêncio é simples? Não, não é
simples! Há um silêncio que mente. E minha mentira, minha fraude,
minha indignidade, minha covardia, minha traição, meu crime, teria de
bebê-los gota a gota, teria de cuspi-los e tornar a bebê-los; acabaria à
meia-noite e recomeçaria ao meio-dia; e meu bom-dia mentiria, e meu
boa-noite mentiria, e eu dormiria sobre a mentira, e a comeria com meu
pão; olharia Cosette de frente, e responderia ao sorriso do anjo com um
sorriso de condenado, e seria um velhaco abominável! Por que falar? Para
ser feliz! Para ser feliz, eu! Acaso tenho o direito de ser feliz? Estou fora
da vida, senhor.
Jean Valjean parou. Marius escutava. Tais encadeamentos de ideias e
de angústias não podem ser interrompidos.
Jean Valjean baixou a voz outra vez, mas não era mais a voz surda e
sim a sinistra.
— O senhor me pergunta por que eu falo? Já que não estou sendo
denunciado, nem perseguido, nem acuado, como disse. Mas, sim, estou
sendo perseguido, sim, estou sendo acuado. Por quem? Por mim! Sou eu
quem barro a mim mesmo a passagem, e me arrasto e me empurro, e me
prendo, e me executo, e, quando se está preso por si mesmo, se está bem
seguro.
E agarrando na lapela do próprio casaco e puxando-a em direção a
Marius:
— Vê este punho — continuou —, não acha que ele segura esta gola de
modo a não soltá-la? Pois bem, a consciência é um outro punho! É preciso,
se quisermos ser felizes, senhor, jamais compreendermos o dever, pois,
uma vez compreendido, ele é implacável. Parece que nos pune porque o
compreendemos, mas não, nos recompensa por isso; porque nos coloca em
um inferno onde sentimos Deus ao nosso lado! Tão logo tenhamos rasgado
as entranhas, ficamos em paz.
E acrescentou em tom pungente:
— Senhor Pontmercy, pode parecer absurdo, mas sou um homem de
bem! Só degradando-me a seus olhos é que elevo-me aos meus. Isso já me
aconteceu uma vez, mas foi menos doloroso, não foi nada. Sim, um
homem de bem! Não o seria se o senhor, por culpa minha, continuasse a
estimar-me; mas agora que me despreza, o sou. Trago esta fatalidade
comigo, como não posso jamais ter senão uma consideração roubada, tal
consideração deve humilhar-me e oprimir-me interiormente, e, para que
eu me respeite, é preciso que me desprezem. Só então me elevo. Sou um
forçado que obedece à consciência. Bem sei que isso não é verossímil.
Mas que quer que eu faça? É assim. Tenho compromissos comigo mesmo;
faço questão de mantê-los. Há encontros que nos unem, há acasos que nos
arrastam ao cumprimento do dever! Veja, senhor Pontmercy, aconteceram
muitas coisas em minha vida!
Jean Valjean fez nova pausa, engolindo a saliva com esforço, como se
suas palavras tivessem um gosto amargo; e prosseguiu:
— Quando se tem algo horrível sobre os ombros, não se tem o direito
de partilhá-lo com os outros sem que saibam, não se tem o direito de lhes
comunicar sua peste, não se tem o direito de fazê-los escorregar em seu
precipício sem que percebam, não se tem o direito de deixar que sua
vestimenta vermelha paire sobre eles, não se tem o direito de atulhar com
sua miséria a felicidade alheia! Aproximar-se dos sãos e tocá-los nas
sombras com sua úlcera invisível é horrendo. Por mais que Fauchelevent
quisesse ceder-me seu nome, eu não tinha o direito de servir-me dele; ele
podia oferecê-lo a mim, mas eu não podia aceitá-lo. Um nome é um “eu”.
Sabe, senhor, eu tenho pensado, tenho lido um pouco, embora seja um
camponês, me dou conta das coisas. O senhor vê que me exprimo
convenientemente. Construí uma educação para mim mesmo. E, bem,
subtrair um nome e colocar-se debaixo dele é desonesto. As letras do
alfabeto podem ser roubadas, como uma bolsa ou como um relógio. Ser
uma assinatura falsa em carne e osso, uma viva chave falsa, entrar na casa
de gente de bem forçando a fechadura, jamais olhar diretamente, sempre
de través, ser infame em meu íntimo, não, não, não! Antes sofrer, sangrar,
chorar, dilacerar a própria pele com as unhas, passar as noites
contorcendo-me em angústias, roer as entranhas e a alma! É por isso que
venho contar-lhe tudo. Espontaneamente, como o senhor diz.
Respirou com dificuldade e disse estas últimas palavras:
— Há muito tempo, roubei um pão para viver; hoje, para viver, não
quero roubar um nome.
— Para viver! — interrompeu Marius. — O senhor não precisa desse
nome para viver!
— Ah! Eu sei o que digo — respondeu Jean Valjean, levantando e
abaixando a cabeça vagarosamente várias vezes em seguida.
Fez-se silêncio. Os dois se calaram, cada um em um abismo de
pensamentos. Marius sentara-se junto a uma mesa, e apoiava o canto da
boca em um dedo dobrado. Jean Valjean andava de um lado para o outro.
Parou diante de um espelho e permaneceu imóvel. Depois, como se
respondesse a uma reflexão interior, disse, olhando para o espelho onde
não se enxergava:
— Ao passo que agora sinto-me aliviado!
Recomeçou a andar e foi até o outro lado da sala. Ao voltar-se, reparou
que Marius observava o modo como ele andava; então disse-lhe com
inexprimível inflexão de voz:
— Arrasto um pouco a perna. Agora o senhor já sabe por quê!
Depois voltou-se completamente para Marius:
— Agora, senhor, imagine o seguinte: eu não disse nada, continuei
sendo o senhor Fauchelevent, ocupei meu lugar em sua casa, entre os seus,
tenho meu quarto, venho para o café da manhã de chinelos, à noite vamos
os três ao teatro, acompanho a senhora Pontmercy às Tulherias e à praça
Royal, vivemos juntos, o senhor me supõe seu igual; um belo dia, eu e o
senhor estamos conversando, rindo, e de repente, o senhor ouve uma voz
gritar este nome: “Jean Valjean!”, e eis que a temerosa mão da polícia
surge das trevas e arranca bruscamente minha máscara!
Calou-se novamente. Marius levantou-se com um tremor. Jean Valjean
continuou:
— O que o senhor diz?
O silêncio de Marius respondia.
Jean Valjean retomou:
— Como bem vê, tenho razão em não me calar. Olhe, seja feliz, esteja
nos céus, seja o anjo de um anjo, que o sol o ilumine e que viva contente
com tudo isso; não se preocupe com o modo pelo qual um pobre
condenado procedeu para abrir seu coração e cumprir seu dever; o senhor
tem um miserável diante de si.
Marius atravessou a sala lentamente, e, quando estava perto de Jean
Valjean, estendeu-lhe a mão. Mas Marius teve de buscar essa mão que não
lhe foi estendida; Jean Valjean não se opôs, mas pareceu a Marius que
apertava uma mão de mármore.
— Meu avô tem amigos — disse Marius —; posso conseguir seu
perdão.
— É inútil — respondeu Jean Valjean. — Acreditam-me morto, isso já
basta. Os mortos não estão sujeitos à vigilância. Consideram que possam
apodrecer tranquilamente! A morte equivale ao perdão!
E, soltando a mão que Marius segurava, acrescentou com uma espécie
de dignidade inexorável:
— Aliás, cumprir meu dever é o amigo a que recorro; só necessito de
um perdão, o da minha consciência.
Nesse instante, na outra extremidade da sala, a porta entreabriu-se de
mansinho, e o rosto de Cosette apareceu na abertura. Só se divisava seu
suave rosto, e ela tinha os cabelos em gracioso desalinho, as pálpebras
ainda inchadas de dormir. Ela fez o movimento de um pássaro que coloca a
cabeça fora do ninho, olhou primeiro seu marido, depois Jean Valjean, e
gritou-lhes sorrindo; dava-se a impressão de se ver um sorriso no fundo de
uma rosa:
— Aposto que estão falando de política! Que bobagem, em vez de
ficarem comigo!
Jean Valjean estremeceu.
— Cosette!… — balbuciou Marius. E calou-se. Pareciam dois
culpados.
Cosette, radiante, continuava a olhar para ambos seguidamente. Havia
em seus olhos como que reflexos de paraíso.
— Apanhei-os em flagrante delito — disse Cosette. — Acabo de ouvir
através da porta, meu pai Fauchelevent dizendo: “A consciência…
Cumprir meu dever…” Isso é política. Não quero. Não se deve falar de
política já no dia seguinte. Não é justo.
— Está enganada, Cosette — respondeu Marius. — Estávamos falando
de negócios. Falávamos sobre o melhor modo de empregar seus seiscentos
mil francos…
— Não é nada disso — interrompeu Cosette. — Estou indo. Querem
minha presença?
E, passando resolutamente pela porta, entrou na sala. Estava vestida
com um largo roupão branco, com muitas pregas e grandes mangas, que ia
do pescoço aos pés. Nos céus dourados dos antigos quadros góticos,
encontram-se esses graciosos sacos para colocar anjos.
Ela olhou-se da cabeça aos pés no grande espelho, em seguida
exclamou com uma explosão de inefável êxtase:
— Era uma vez um rei e uma rainha. Oh! Como estou contente!
Disse isso e fez reverência a Marius e a Jean Valjean.
— Pronto — disse ela —, vou instalar-me em uma poltrona perto dos
senhores; vamos almoçar em meia hora. Podem dizer o que quiserem, eu
bem sei que os homens precisam conversar; ficarei bem comportada.
Marius pegou em seu braço e disse-lhe amorosamente:
— Estamos falando de negócios.
— A propósito — respondeu Cosette —, abri minha janela e um bando
de pierrots1 acabava de chegar ao jardim. Os pássaros, não os mascarados.
Hoje é quarta-feira de cinzas, mas não para os passarinhos.
—Já lhe disse que falamos de negócios, vá, minha querida Cosette,
deixe-nos por um momento. Estamos falando de números; isso vai
aborrecê-la.
— Esta manhã você colocou uma bela gravata, Marius. Você está
muito elegante, meu senhor. Não, isso não vai me aborrecer.
— Tenho certeza que vai.
— Não. Pois são vocês. Não vou entender o que dizem, mas escutarei.
Quando se ouve a voz de quem se ama, não é preciso entender as palavras
que dizem. Tudo o que quero é estar com vocês. Vou ficar aqui.
— Você é minha querida Cosette! Mas é impossível.
— Impossível!
— Sim!
— Está bem! — replicou Cosette. — Ia contar-lhes as novidades. Ia
dizer que o avô ainda está dormindo, que sua tia foi à missa, que a lareira
do quarto de meu pai Fauchelevent está fazendo fumaça e Nicolette
mandou chamar o limpador, que Toussaint e Nicolette já começaram a
discutir, que Nicolette zomba quando Toussaint gagueja. Pois bem, não
saberão de nada. Ah! Impossível? Eu também, na minha vez, vou dizer ao
senhor: é impossível. E quem é que vai perder? Eu lhe peço, querido
Marius, deixe-me ficar com vocês.
— Juro que precisamos ficar sozinhos.
— E então, será que sou alguém?
Jean Valjean não dizia uma palavra. Cosette voltou-se para ele:
— Antes de mais nada, meu pai, quero que me dê um abraço. Que está
fazendo aí sem dizer nada, em vez de tomar meu partido? Quem me deu
um pai como este? Está vendo que sou infeliz no casamento. Meu marido
bate em mim. Vamos, me abrace imediatamente.
Jean Valjean aproximou-se. Cosette voltou-se para Marius.
— Para você, faço uma careta.
E deu o rosto a Jean Valjean.
Jean Valjean deu um passo em direção a ela. Cosette recuou.
— Pai, o senhor está pálido. Seu braço está doendo?
— Já sarou — respondeu Jean Valjean.
— O senhor dormiu mal?
— Não.
— Está triste?
— Não.
— Então me abrace. Se o senhor está bem, se dormiu bem, se está
contente, não vou ralhar com o senhor.
E tornou a dar-lhe o rosto.
Jean Valjean deu um beijo naquela fronte que tinha um reflexo celeste.
— Sorria.
Jean Valjean obedeceu. Parecia o sorriso de um espectro.
— Agora defenda-me de meu marido.
— Cosette!… — disse Marius.
— Fique bravo, pai! Diga-lhe que eu devo ficar! Podem muito bem
conversar na minha frente. Pensam então que sou tola. É mesmo muito
espantoso o que dizem! Negócios, aplicar dinheiro em um banco, grande
coisa. Os homens se fazem de misteriosos por qualquer coisa. Quero ficar.
Estou muito bonita esta manhã. Olhe para mim, Marius.
E, com um adorável levantar de ombros e um delicado ar amuado, ela
encarou Marius.
Houve como uma faísca entre os dois. Pouco importava que alguém
estivesse ali.
— Eu a amo! — disse Marius.
— Eu o adoro! — disse Cosette.
E caíram irresistivelmente um nos braços do outro.
— Agora — retomou Cosette ajeitando uma prega do roupão com
carinha de triunfo — eu fico.
— Isso não! — respondeu Marius em tom suplicante. — Ainda temos
algo a terminar.
— Outra vez não?
Marius assumiu uma grave inflexão de voz:
— Cosette, asseguro-lhe que é impossível.
— Ah! Está fazendo sua voz de homem, senhor. Está bem! Vou
embora. O senhor, pai, não me deu apoio. Senhor meu marido, senhor meu
pai, vocês são uns tiranos. Vou dizer isso ao avô! Se pensam que vou
voltar e fazer alguma grosseria, estão enganados. Sou orgulhosa. Estou à
espera de vocês. Vão ver que são vocês que se aborrecerão sem mim. Vou
embora, bem feito.
E saiu.
Dois segundos depois, a porta se abriu, seu rosto rosado passou outra
vez entre os dois batentes e ela gritou-lhes:
— Estou com muita raiva.
A porta voltou a fechar-se e a escuridão se refez.
Era como um raio de sol perdido que, sem suspeitar, tivesse
atravessado bruscamente a noite.
Marius certificou-se de que a porta estava bem fechada.
— Pobre Cosette! — murmurou ele. — Quando ela vier a saber…
A essas palavras, Jean Valjean estremeceu inteiro. Fixou Marius com
um olhar perturbado.
— Cosette! Oh! Sim! É verdade, o senhor vai contar tudo isso a
Cosette. É justo. Eu não havia pensado nisso. A gente tem força para uma
coisa, e não tem para outra. Senhor, peço-lhe, suplico-lhe, dê-me sua
palavra mais sagrada, não lhe diga nada. Já não basta que o senhor saiba?
Eu pude falar sem ser obrigado; teria dito ao universo, a todo o mundo,
pouco me importaria. Mas a ela, ela não sabe o que é isso, ficaria
assustada. Um forçado! Seriam obrigados a explicar-lhe, dizer-lhe: “É um
homem que esteve na prisão”. Um dia ela viu passar uma leva de forçados.
Ai meu Deus!
E prostrou-se em uma poltrona, escondendo o rosto entre as mãos. Não
dava para ouvi-lo, mas, pelos movimentos de seus ombros, via-se que
chorava. Um choro silencioso, um choro terrível.
Há algo de sufocante nos soluços.
Jean Valjean foi tomado por uma espécie de convulsão, virou-se para o
encosto da poltrona como para tomar fôlego, deixando cair os braços e
mostrando a Marius seu rosto inundado de lágrimas; e Marius ouviu-o
murmurar tão baixo que sua voz parecia vir de uma profundidade sem fim:
— Oh! Quem me dera morrer!
— Fique tranquilo — disse Marius —, guardarei seu segredo para
mim.
E, menos enternecido, talvez, do que deveria estar, mas obrigado,
havia uma hora, a familiarizar-se com um inesperado tão terrível, vendo
um forçado sobrepor-se gradualmente a Fauchelevent, ali mesmo à sua
vista, dominado, pouco a pouco, por essa lúgubre realidade e levado pela
inclinação natural da situação a reconhecer a distância que acabava de se
interpor entre aquele homem e ele, acrescentou:
— Não posso deixar de dizer-lhe uma palavra a respeito do depósito
que o senhor, tão fiel e honestamente, fez. Foi um ato de probidade. É
justo que uma recompensa lhe seja dada. Fixe o senhor mesmo a soma, ela
lhe será entregue. Não receie em fixar um valor bem alto.
— Eu lhe agradeço, senhor — respondeu Jean Valjean de modo afável.
E ficou um momento pensativo, passando maquinalmente a ponta do
indicador sobre a unha do polegar; depois elevou a voz:
— Tudo está praticamente concluído. Só me falta uma coisa…
— Qual?
Jean Valjean teve um momento de suprema hesitação e, sem voz, quase
sem fôlego, mais balbuciou do que disse:
— Agora que o senhor sabe, o senhor, que é o dono da casa, acha que
não devo mais ver Cosette?
— Acho que seria melhor — respondeu Marius friamente.
— Não tornarei a vê-la — disse Jean Valjean.
E dirigiu-se à porta.
Pôs a mão na maçaneta, a lingueta cedeu, a porta entreabriu-se; Jean
Valjean abriu-a apenas o suficiente para poder passar, permaneceu imóvel
por um segundo, tornou a fechar a porta e voltou-se para Marius. Não
estava mais pálido, estava lívido. Não havia mais lágrimas em seus olhos,
mas uma espécie de trágica chama. Sua voz voltara a ficar estranhamente
calma.
— Olhe, se o senhor quiser, virei vê-la. Asseguro-lhe que desejo muito
fazê-lo. Se eu não fizesse questão de ver Cosette, não lhe teria feito a
confissão que lhe fiz, teria partido. Foi por querer ficar no mesmo lugar
em que Cosette está, para continuar a vê-la, que precisei honestamente
dizer-lhe tudo. O senhor entende meu raciocínio, não é? É algo
compreensível. O senhor sabe, há nove anos a tenho perto de mim.
Primeiro moramos no casarão do bulevar, depois no convento, depois nas
proximidades do Luxemburgo. Foi lá que o senhor a viu pela primeira vez.
Deve lembrar do chapéu de pelúcia azul que ela usava. Depois fomos para
o bairro de Invalides, para uma casa da rua Plumet, com grade e jardim.
Eu ocupava um pequeno quarto de fundo de onde ouvia seu piano. Essa é
minha vida. Nunca nos separamos. Isso durou nove anos e alguns meses.
Era como se eu fosse o pai dela e ela minha filha. Não sei se me
compreende, senhor Pontmercy, mas ir embora agora, nunca mais tornar a
vê-la, nem falar com ela, não ter mais nada, seria muito difícil. Se não
achar ruim, virei de tempos em tempos ver Cosette. Não virei com
frequência, nem ficarei muito tempo. Diga para me receberem na salinha
de baixo. Posso entrar pela porta de trás, que é para os criados, mas talvez
isso chame a atenção. É melhor, me parece, que eu entre por onde entram
todos. Senhor, é verdade, eu gostaria muito de ainda poder ver Cosette.
Tão raramente quanto lhe agrade. Ponha-se em meu lugar, não tenho mais
nada. Além disso, é preciso ter cuidado. Se eu parasse completamente de
vir, causaria má impressão, achariam estranho. O que posso fazer, por
exemplo, é vir à noite, quando começar a anoitecer.
— Venha todas as noites — disse Marius —; Cosette o esperará.
— O senhor é bondoso — disse Valjean.
Marius despediu-se de Jean Valjean, a felicidade reconduziu o
desespero até a porta; e os dois homens se afastaram.

II. AS OBSCURIDADES QUE UMA REVELAÇÃO


PODE CONTER
Marius estava transtornado.
A impressão de distanciamento que sempre tivera em relação ao
homem que via ao lado de Cosette estava-lhe agora explicada. Existia
naquele personagem qualquer coisa de enigmático, para a qual seu instinto
o advertia. Esse enigma era a mais horrível das vergonhas, a prisão. O tal
senhor Fauchelevent era o forçado Jean Valjean.
Encontrar inesperadamente um segredo como esse no meio de sua
felicidade é semelhante a descobrir um escorpião em um ninho de
rolinhas.
A felicidade de Marius e de Cosette estaria de agora em diante
condenada a esse contato? Esse seria um fato consumado? A aceitação
desse homem fazia parte integrante do casamento? Não havia mais nada a
fazer?
Marius também desposara aquele forçado?
Por mais que se esteja coroado de luz e de alegria, por mais que se
saboreie a grande hora púrpura da vida, o amor feliz, tais abalos forçariam
a estremecer até um arcanjo em seu êxtase, até um semideus em sua
glória.
Como sempre acontece nesse tipo de mudança evidente, Marius se
perguntava se não tinha algo a recriminar-se. Faltara-lhe instinto? Faltara-
lhe prudência? Aturdira-se involuntariamente? Um pouco, talvez.
Engajara-se, sem suficiente precaução para avaliar as circunstâncias, nessa
aventura de amor que havia terminado em seu casamento com Cosette?
Ele constatava — é assim, por uma série de constatações sucessivas,
de nós mesmos sobre nós mesmos, que a vida nos corrige pouco a pouco
—, ele constatava o lado quimérico e visionário de sua natureza, espécie
de nuvem interior peculiar a muitas organizações, e que, nos paroxismos
da paixão e da dor, se dilata com a mudança de temperatura da alma e
invade inteiramente o homem, a ponto de fazer dele não mais que uma
consciência envolta em brumas. Mais de uma vez apontamos esse
elemento característico da individualidade de Marius. Lembrava-se que,
na embriaguês de seu amor, durante aquelas seis ou sete semanas
extasiantes na rua Plumet, nem pensara em falar com Cosette sobre o
drama do casebre Gorbeau, em que a vítima tomara a estranha decisão de
ficar em silêncio durante a luta, e de se evadir depois. Como acontecera,
ele não ter falado a respeito disso com Cosette? E, no entanto, era tão
recente e tão horrível! Como acontecera, ele não ter tocado no nome dos
Thénardier, e, particularmente, não ter falado do dia em que encontrara
Éponine? Tinha dificuldade em explicar-se agora sobre seu silêncio de
então. Contudo, o compreendia. Lembrava-se de seu atordoamento, de sua
embriaguez por Cosette, o amor absorvendo tudo, daquele enlevo de um
pelo outro em um ideal, e talvez também de uma quantidade imperceptível
de razão em meio a esse violento e aprazível estado da alma, um vago e
surdo instinto de esconder e abolir de sua memória aquela temerosa
aventura cujo contato receava, e na qual não queria representar papel
algum, à qual se esquivava, não podendo ser narrador nem testemunha sem
ser acusador. Além disso, aquelas poucas semanas tinham passado como
um relâmpago, não tinham tido tempo para mais nada além de se amarem.
Enfim, tudo pesado, tudo revirado, tudo examinado, se tivesse contado a
Cosette a cilada do casebre Gorbeau, se tivesse falado dos Thénardier,
quaisquer que tivessem sido as consequências, mesmo que tivesse
descoberto que Jean Valjean era um forçado, isso o teria transformado, a
ele, Marius? Ou a ela, Cosette? Ele teria recuado, ou a adorado menos?
Teria deixado de esposá-la? Não. Isso teria mudado algo do que estava
feito? Não. Então, nada a lamentar, nada a se recriminar. Estava tudo bem.
Há um Deus para esses bêbados que chamamos de apaixonados.
Cego, Marius seguira o caminho que teria escolhido se visse. O amor
vendou-lhe os olhos para conduzi-lo aonde? Ao paraíso.
Mas esse paraíso estava agora complicado por uma aproximação
infernal.
O antigo distanciamento de Marius em relação àquele homem, àquele
Fauchelevent que se convertera em Jean Valjean, estava agora entremeado
de horror. Nesse horror, devemos dizer, havia um pouco de piedade e até
uma certa surpresa.
Esse ladrão, esse ladrão reincidente, restituíra um depósito. E que
depósito! Seiscentos mil francos. Sendo o único a saber desse segredo,
poderia ter ficado com tudo, mas restituiu tudo. Além disso, havia
revelado espontaneamente sua situação. Nada o obrigava. Se agora se
sabia quem era, devia-se a ele mesmo. Nessa confissão havia mais que a
aceitação da humilhação, havia a aceitação do perigo. Para um condenado,
uma máscara não é só uma máscara, é um abrigo. E ele renunciara a esse
abrigo. Um nome falso é a segurança, e ele rejeitara esse nome falso.
Podia, se quisesse, esconder-se para sempre em uma família honesta, mas
resistira a essa tentação. E por qual motivo? Por escrúpulo de consciência.
Ele próprio o explicara com o irresistível acento da realidade. Em suma,
fosse quem fosse esse Jean Valjean, era incontestavelmente uma
consciência que despertava. Ali havia não se sabe que misteriosa
reabilitação iniciada; e, segundo todas as aparências, havia muito tempo o
escrúpulo era mestre daquele homem. Tais acessos do justo e do bem não
são próprios de naturezas vulgares. Despertar de consciência é grandeza de
alma.
Jean Valjean fora sincero. Essa sinceridade, visível, palpável,
irrefutável, evidente pela própria dor que lhe infligia, tornava as
informações inúteis e dava autoridade a tudo o que aquele homem havia
dito.
Neste ponto, Marius via uma singular confusão de situações.
O que inspirava o senhor Fauchelevent? A desconfiança. O que
inspirava Jean Valjean? A confiança.
No misterioso balanço de Jean Valjean que Marius, pensativo, fazia,
examinava o ativo e o passivo, e tentava chegar a um equilíbrio. Mas tudo
isso parecia ocorrer dentro de uma tempestade.
Marius, esforçando-se para fazer uma ideia clara desse homem, e
seguindo Jean Valjean, por assim dizer, ao fundo de seu pensamento,
perdia-o e reencontrava-o em meio a uma névoa fatal.
A honesta restituição do depósito, a probidade da revelação, muito
bem, isso tinha o efeito de um clarão através da nuvem; mas logo a nuvem
voltava a escurecer.
Por mais confusas que fossem as lembranças de Marius, elas tinham
alguma sombra.
Que significava aquela aventura passada na espelunca Jondrette? Por
que, com a chegada da polícia, aquele homem evadiu-se em vez de
queixar-se? Agora Marius encontrava a resposta. Porque aquele homem
era procurado pela justiça, um forçado fugido das galés.
Outra pergunta: “Por que aquele homem fora à barricada?” Pois nesse
momento essa lembrança voltava distintamente à memória de Marius,
reaparecendo-lhe no meio das emoções como tinta simpática ao fogo. Esse
homem estivera na barricada, embora não combatesse. Que fora fazer?
Diante dessa questão, um espectro se erguia e fornecia a resposta. Javert.
Marius lembrava agora perfeitamente da fúnebre visão de Jean Valjean
arrastando Javert amarrado para fora da barricada, e ouvia ainda, por trás
da esquina da viela Mondétour, o medonho tiro de pistola. Havia,
verdadeiramente, ódio entre o espião e o forçado. Um incomodava o outro.
Jean Valjean tinha ido à barricada para vingar-se. Chegou tarde.
Provavelmente sabia que Javert se achava ali prisioneiro. A vendetta corsa
havia penetrado certas classes inferiores da sociedade, onde faz a lei; ela é
tão simples que não surpreende as almas um pouco voltadas para o bem; e
de tal modo tais corações se portam, que um criminoso, em vias de se
arrepender, pode ter escrúpulos em relação ao roubo e não em relação à
vingança. Jean Valjean matara Javert. Ao menos isso parecia evidente.
Última pergunta, enfim, mas à qual não tinha resposta. Essa pergunta,
Marius a sentia como uma tenaz. Como se explicava que a existência de
Jean Valjean tivesse acompanhado por tanto tempo a de Cosette? Que
sombrio jogo da Providência havia colocado aquela criança em contato
com aquele homem? Então também existem correntes duplas lá em cima,
e Deus se compraz em acorrentar o anjo ao demônio? Um crime e uma
inocência podem então ser camaradas de quarto nas misteriosas galés da
miséria? Nesse desfile de condenados chamado destino humano, duas
frontes podem passar, uma ao lado da outra, uma ingênua, a outra terrível,
uma inundada pela divina brancura da alvorada, outra para sempre
empalecida pela lívida luz de um relâmpago eterno? Quem pode ter
determinado tão inexplicável associação? De que modo, em virtude de que
prodígio, fora possível estabelecer-se uma existência comum entre aquela
celeste menina e aquele homem condenado? Quem conseguira ligar o
cordeiro ao lobo e, coisa mais extraordinária ainda, ligar o lobo ao
cordeiro? Pois o lobo amava o cordeiro, o ser feroz adorava o ser frágil;
pois, durante nove anos, o anjo tivera o monstro como ponto de apoio. A
infância e a adolescência de Cosette, seus primeiros passos no mundo, seu
virginal crescimento para a vida e para a luz tiveram abrigo naquela
dedicação disforme. Nesse ponto, as perguntas ramificavam-se, por assim
dizer, em inumeráveis enigmas; abismos abriam-se no fundo de outros
abismos, e Marius não podia debruçar-se sobre Jean Valjean sem vertigem.
Que era então aquele homem-precipício?
Os velhos símbolos genesíacos são eternos; na sociedade humana, tal
qual existe, até o dia em que uma claridade maior possa mudá-la, sempre
haverá dois homens, um superior, outro subterrâneo; o que existe segundo
o bem é Abel, o que existe segundo o mal é Caim.
Quem era esse terno Caim? Quem era esse bandido religiosamente
absorvido na adoração de uma virgem, velando por ela, criando-a,
preservando-a, dignificando-a, envolvendo-a, ele, tão impuro, em pureza?
Quem era esse monstro que venerara aquela inocência a ponto de não lhe
deixar uma mancha? Quem era esse Jean Valjean que cuidara da educação
de Cosette? Quem era essa figura das trevas cujo único cuidado era
preservar da menor sombra, da menor nuvem, o despontar de um astro?
Esse era o segredo de Jean Valjean; e esse era também o segredo de
Deus.
Diante desse duplo segredo, Marius recuava. De certa forma, um o
tranquilizava a respeito do outro. Naquela aventura, Deus era tão visível
quanto Jean Valjean. Deus tem seus instrumentos; e serve-se da ferramenta
que lhe aprouver. Ele não tem de prestar contas ao homem. Sabemos lá
como Deus faz as coisas? Jean Valjean ocupara-se de Cosette. De certo
modo, havia formado aquela alma. Era incontestável. Muito bem, e então?
O artista era horrível, mas a obra era admirável. Deus produz seus
milagres como melhor lhe parece. Ele construíra a encantadora Cosette, e
para isso empregara Jean Valjean. Agradou-lhe escolher esse estranho
colaborador. Que contas temos a pedir-lhe? Seria essa a primeira vez que o
esterco ajuda a primavera a produzir uma rosa?
Marius dava-se essas respostas e afirmava a si mesmo que eram boas.
Sobre todos os pontos que acabamos de indicar, não ousara pressionar Jean
Valjean, não admitia a si mesmo que não ousava fazê-lo. Adorava Cosette,
possuía Cosette, Cosette era esplendidamente pura. Isso lhe bastava. Que
esclarecimento lhe faltava? Tinha tudo, que mais poderia desejar? Tudo,
será que já não é o bastante? Os negócios pessoais de Jean Valjean não lhe
diziam respeito. Inclinando-se sobre a sombra fatal desse homem,
agarrava-se à declaração solene do miserável: “Não sou nada para Cosette.
Há dez anos sequer sabia que ela existia”.
Jean Valjean era alguém de passagem. Ele próprio o dissera. Pois bem,
ele passava. Fosse ele quem fosse, seu papel havia terminado. De agora em
diante, havia Marius para desempenhar as funções da Providência junto a
Cosette. Cosette viera encontrar no azul seu igual, seu amante, seu esposo,
seu homem celeste. Ao voar, Cosette, alada e transfigurada, deixava atrás
dela, na terra, vazia e medonha, sua crisálida, Jean Valjean.
Em qualquer círculo de ideias que Marius girasse, sempre voltava-lhe
um certo horror a Jean Valjean. Horror sagrado, talvez, pois, acabamos de
apontar, ele sentia um quid divinum naquele homem. Mas, por mais que
fizesse, por mais que procurasse atenuantes, acabava sempre voltando ao
mesmo ponto: era um forçado, quer dizer, uma criatura que, na escala
social, não tem sequer lugar, ficando abaixo do último degrau. Após o
último dos homens, vem o forçado. O forçado já não é, por assim dizer,
um semelhante dos vivos. A lei o destituiu de toda quantia de humanidade
que ela pode tirar de um homem.
Apesar de democrata, com relação a questões penais, Marius seguia
ainda o sistema inexorável, e tinha, sobre aqueles a quem a lei toca, todas
as ideias da lei. Devemos dizer, ele ainda não havia alcançado todos os
progressos. Ainda não estava pronto para distinguir entre o que é escrito
pelo homem e o que é escrito por Deus, entre a lei e o direito. Ainda não
havia examinado e ponderado o direito que o homem se arroga de dispor
do irrevogável e do irreparável. Não se revoltava com a palavra vindicta.
Achava simples que certas infrações à lei escrita fossem seguidas de penas
eternas, e aceitava, como procedimento de civilização, a danação social.
Era nesse estágio que ainda se encontrava, mais tarde sujeito,
infalivelmente, a avançar, tendo uma índole boa e, no fundo, feita de
progresso latente.
Em meio a essas ideias, Jean Valjean aparecia-lhe disforme e
repulsivo. Era o réprobo, o forçado. Essa palavra era para ele como o som
da trombeta do juízo final; e seu último gesto, após haver considerado
Jean Valjean por bastante tempo, era desviar a cabeça. Vade retro.
Marius, é preciso reconhecer e mesmo insistir, apesar de haver
interrogado Jean Valjean a ponto de este lhe dizer: o senhor quer que eu
fale, não lhe fizera, contudo, duas ou três perguntas decisivas. Não porque
elas não lhe tivessem vindo à mente, mas porque tivera medo de fazê-las.
A espelunca Jondrette? A barricada? Javert? Quem sabe onde iriam
parar essas revelações? Jean Valjean não parecia homem de recuar, e quem
sabe se Marius, após tê-lo instigado, não teria desejado detê-lo? Em
determinadas circunstâncias supremas, já não aconteceu a todos nós de,
após fazer uma pergunta, tapar os ouvidos para não ouvir a resposta?
É principalmente quando amamos que temos dessas covardias. Não é
sábio interrogar mais que o devido as situações sinistras, principalmente
quando o lado indissolúvel de nossa própria vida está fatalmente ligado a
elas.
Das explicações desesperadas de Jean Valjean, alguma assustadora luz
poderia emergir, e quem sabe se essa claridade vergonhosa não atingiria
Cosette? Quem sabe se uma espécie de clarão infernal não ficaria sobre a
fronte daquele anjo?
Os reflexos de um relâmpago ainda são parte do raio.
A fatalidade tem dessas solidariedades, em que a própria inocência
fica impressa pelo crime por meio da sombria lei dos reflexos colorantes.
As mais puras frontes podem guardar para sempre a reverberação de um
contato nocivo.
Com ou sem razão, Marius tivera medo. Já sabia demasiado a tal
respeito. Terminava mais por atordoar-se do que por esclarecer-se.
Comovido, levava Cosette nos braços, fechando os olhos para Jean
Valjean.
Aquele homem era da escuridão, mas uma animada e terrível
escuridão. Como ousar sondar-lhe o fundo? É uma temeridade questionar
as sombras. Quem sabe o que elas irão responder?
A luz da aurora poderia enegrecer-se para sempre.
Nesse estado de espírito, era para Marius uma perplexidade pungente
pensar que aquele homem ainda manteria qualquer contato com Cosette.
Essas perguntas terríveis, diante das quais recuara, e de onde poderia
resultar uma decisão implacável e definitiva, agora praticamente se
reprovava por não tê-las feito. Achava-se bom demais, dócil demais, e,
digamos a palavra, fraco demais. Essa fraqueza levara-o a uma concessão
imprudente. Deixara-se comover. Errara. Devia, pura e simplesmente, ter
repelido Jean Valjean. Jean Valjean era a parte a ser sacrificada para
conservar o resto. Era o que devia ter feito, desvencilhar sua casa daquele
homem. Tinha raiva de si mesmo, tinha raiva daquele turbilhão de
emoções que o ensurdecera, cegara, arrastara. Estava descontente com ele
mesmo.
Que fazer agora?
As visitas de Jean Valjean o repugnavam profundamente. Que vinha
fazer um homem daqueles em sua casa? Nesse ponto, ficava atordoado,
não queria cavar, não queria aprofundar, não queria sondar mais dentro de
si mesmo. Prometera, deixara-se levar a prometer; Jean Valjean tinha sua
promessa. E mesmo a um forçado, principalmente a um forçado, deve-se
manter a palavra. No entanto, seu primeiro dever era para com Cosette.
Em suma, uma repulsa, que dominava tudo, tomava conta dele.
Marius revolvia confusamente todo esse complexo de ideias em sua
mente, passando de uma a outra, e abalando-se com todas. Daí provinha-
lhe uma profunda perturbação. Não lhe custou pouco esconder essa
perturbação de Cosette. Mas o amor é um talento, e Marius o conseguiu.
De resto, sem um objetivo aparente, fez algumas perguntas a Cosette, que,
com a candura de uma pomba, de nada desconfiou; perguntou-lhe sobre
sua infância e juventude, e convenceu-se cada vez mais de que tudo o que
um homem pode ser de bom, paternal e respeitável, aquele forçado havia
sido para Cosette. Tudo o que Marius entrevira e imaginara era real. A
sinistra urtiga amara e protegera o lírio.

__________________________
1 Pierrots — essa palavra designa também um tipo de pássaro, os pardais.
LIVRO VIII
A DIMINUIÇÃO CREPUSCULAR

I. A SALA DE BAIXO
NO DIA SEGUINTE, ao anoitecer, Jean Valjean batia à porta da casa
Gillenormand. Foi Basque quem o recebeu. Basque achava-se no portal,
naquele exato momento, como se tivesse recebido ordens. Ocorre algumas
vezes dizer-se a um criado: “Fique atento para a chegada do senhor
fulano”.
Sem esperar que Jean Valjean viesse até ele, Basque dirigiu-lhe a
palavra:
— O senhor barão recomendou-me que lhe perguntasse se prefere
subir ou ficar aqui embaixo.
— Fico aqui embaixo — respondeu Jean Valjean.
Basque, por sinal absolutamente respeitoso, abriu a porta da sala de
baixo e disse: “Vou avisar a senhora”.
A sala onde Jean Valjean entrou era abobadada e úmida, servindo às
vezes de despensa, tinha ladrilhos vermelhos, era mal iluminada por uma
janela com grades de ferro, e dava para a rua.
Esse cômodo não era daqueles que importunam o espanador, a escova
e a vassoura.
O pó ali ficava em sossego. A perseguição das aranhas não fora
organizada. Uma bela teia, amplamente estendida, bem escura, enfeitada
com moscas mortas, era ostentada sobre um dos vidros da janela.
A sala, pequena e baixa, estava mobiliada com inúmeras garrafas
amontoadas em um canto. As paredes, pintadas de ocre amarelo,
descascavam-se em grandes placas. Ao fundo, havia uma lareira com
acabamento de madeira, estreita e pintada de preto. O fogo estava aceso, o
que indicava que já contavam com a escolha de Jean Valjean: ficar
embaixo.
Duas poltronas estavam colocadas dos dois lados da lareira; entre elas
fora estendido, à guisa de tapete, um velho tecido que mostrava mais corda
do que lã.
O cômodo tinha como iluminação o fogo da lareira e a claridade que
entrava pela janela.
Jean Valjean estava cansado. Havia vários dias não comia nem dormia.
Deixou-se cair sobre uma das poltronas.
Basque retornou, colocou uma vela sobre a lareira e retirou-se. Jean
Valjean, cabeça inclinada e queixo apoiado sobre o peito, não se deu conta
nem de Basque, nem da vela.
De repente, ele se recompôs como que sobressaltado. Cosette estava
atrás dele.
Não a vira entrar, mas sentiu que ela entrava.
Voltou-se e contemplou-a. Ela estava adoravelmente bela. Mas o que
ele via com esse profundo olhar não era sua beleza, era sua alma.
— Muito bem, pai — exclamou Cosette —, eu sabia que o senhor era
estranho, mas nunca poderia esperar por isso. Que ideia! Marius me disse
que foi o senhor quem quis que eu o recebesse aqui.
— Sim, fui eu.
— Eu esperava essa resposta. Bem, previno-o de que vou fazer-lhe
uma cena. Vamos começar pelo começo. Pai, me dê um beijo.
Ela estendeu-lhe o rosto.
Jean Valjean permaneceu imóvel.
— Constato que o senhor não se mexe. Atitude de culpa. Não faz mal,
eu o perdoo. Jesus Cristo disse: “Apresente a outra face”. Aí está ela.
E estendeu a outra face.
Jean Valjean não se moveu. Parecia que seus pés estavam pregados ao
chão.
— Isso está ficando sério — disse Cosette. — O que foi que eu lhe fiz?
Declaro-me zangada. Me deve a reconciliação. Jante conosco.
— Já jantei.
— Não é verdade. Vou pedir ao senhor Gillenormand que lhe dê uma
bronca. Os avôs são feitos para repreender os pais. Vamos. Suba comigo
para a sala. Agora mesmo.
— Impossível.
Cosette perdia um pouco de terreno. Parou de dar ordens e passou a
fazer perguntas.
— Mas por quê? E ainda escolhe o quarto mais feio da casa para me
ver. É horrível aqui.
— Você sabe…
Jean Valjean corrigiu-se.
— A senhora sabe, sou esquisito, tenho minhas manias.
Cosette bateu as pequenas mãos uma contra a outra.
— Senhora!… A senhora sabe!… Mais novidades! O que quer dizer
isso?
Jean Valjean lançou-lhe aquele sorriso de cortar o coração, ao qual às
vezes recorria.
— Você quis ser senhora. E agora é.
— Não para o senhor, pai.
— Não me chame mais de pai.
— Como assim?
— Me chame de senhor Jean, ou Jean, se quiser.
— O senhor não é mais pai? Eu não sou mais Cosette? Senhor Jean? O
que tudo isso significa? É alguma revolução? O que está se passando?
Olhe bem para mim. O senhor não quer vir morar conosco, não quer o
quarto que arrumei! O que eu lhe fiz? O que eu lhe fiz? Aconteceu então
alguma coisa?
— Nada!
— Mas e então?
— Tudo fica como antes.
— Por que mudou de nome?
— A senhora também mudou!
Tornou a sorrir com o mesmo sorriso de antes e acrescentou:
— Como agora é a senhora Pontmercy, também posso ser o senhor
Jean.
— Não estou entendendo nada. Tudo isso é uma besteira. Vou pedir a
meu marido permissão para que seja então o senhor Jean, mas espero que
ele não consinta. O senhor está me dando aflição. Tem suas esquisitices,
mas não pode magoar sua pequena Cosette. Não tem o direito de ser
malvado, o senhor que é tão bom.
Ele não respondeu.
Ela pegou com entusiasmo suas duas mãos e, com um movimento
irresistível, elevando-as à altura do rosto, pressionou-as contra seu
pescoço e seu queixo, o que é um profundo gesto de ternura.
— Oh! — disse ela. — Seja bom!
E prosseguiu:
— Sabe o que eu chamo ser bom? É ser gentil, vir morar aqui, aqui
também tem passarinhos como na rua Plumet, viver conosco, sair daquele
buraco da rua de l’Homme-Armé, não nos dar charadas para adivinhar,
portar-se como todo o mundo, jantar conosco, almoçar conosco, ser meu
pai.
Ele soltou suas mãos.
— A senhora não necessita mais de um pai, agora tem um marido.
Cosette ficou furiosa.
— Não necessito mais de pai! Coisas assim, sem nenhum sentido,
realmente não se sabe o que dizer delas!
— Se Toussaint estivesse aqui — tornou Jean Valjean, como quem
procura testemunhas e se agarra a todos os galhos —, ela seria a primeira a
convir que eu sempre tive as minhas esquisitices. Não é nenhuma
novidade. Sempre gostei do meu canto escuro.
— Mas faz frio aqui. Não se enxerga direito. É abominável essa
história de querer ser senhor Jean. Não quero que me trate por senhora!
— Há pouco, vindo para cá — respondeu Jean Valjean —, eu vi um
móvel em uma marcenaria da rua Saint-Louis. Se eu fosse uma bela
mulher, daria esse móvel a mim mesmo. Um belo toucador no estilo do
momento, de madeira que chamam pau-rosa, creio eu, todo entalhado.
Com um grande espelho e gavetas. Bonito.
— Oh! O urso malvado! — replicou Cosette.
E com extrema delicadeza, serrando os dentes e entreabrindo os lábios,
soprou contra Jean Valjean. Era uma Graça imitando uma gata.
— Estou furiosa — prosseguiu ela. — Desde ontem todos vocês me
dão raiva. Estou muito irritada. Não estou entendendo nada. O senhor não
me defende contra Marius, Marius não me dá apoio contra o senhor. Estou
sozinha. Arrumei um quarto com todo o capricho. Se pudesse colocar Deus
dentro dele, teria colocado. Mas deixaram meu quarto de lado. Meu
inquilino não veio. Digo a Nicolette para fazer um jantarzinho bem feito.
“Não queremos seu jantar, senhora.” E meu pai Fauchelevent quer que o
chame de senhor Jean; e que eu o receba em um horrível, velho e feio
porão embolorado, onde as paredes têm barba, e onde há, no lugar de
cristais, garrafas vazias, e, no lugar de cortinas, teias de aranha! O senhor
é esquisito, concordo, é o seu jeito, mas dê uma trégua para quem se
casou. O senhor não devia ter voltado a ser esquisito logo em seguida. O
senhor, então, vai ficar bem contente na sua abominável rua de l’Homme-
Armé. Ali eu vivia bem desesperada! O que o senhor tem contra mim? O
senhor me deixa muito triste. Ora!
E, repentinamente séria, olhou fixamente para Jean Valjean,
acrescentando:
— Está chateado comigo porque estou feliz?
A ingenuidade, sem que perceba, algumas vezes penetra fundo. Essa
pergunta, simples para Cosette, era profunda para Jean Valjean. Cosette
queria apenas arranhar, mas dilacerou. Jean Valjean empalideceu.
Permaneceu um momento sem resposta; depois, com um tom inexprimível
e falando a si próprio, murmurou:
— Sua felicidade é o objetivo da minha vida. Agora Deus pode assinar
minha saída! Cosette, você é feliz; meu tempo findou.
— Ah! Chamou-me de você! — exclamou Cosette. E lançou-se em um
abraço.
Jean Valjean, enternecido, estreitou-a contra o peito com exaltação.
Pareceu-lhe, por um instante, que a teria de volta.
— Obrigada, meu pai! — disse-lhe Cosette.
Essa impressão tornou-se pungente para Jean Valjean. Desvencilhou-se
suavemente dos braços de Cosette e pegou o chapéu.
— E então? — disse Cosette.
Jean Valjean respondeu:
— Vou deixá-la, senhora, estão à sua espera.
E, já no limiar da porta, acrescentou:
— Chamei-a de você; perdoe-me e diga a seu marido que isso não
tornará a acontecer.
E saiu, deixando Cosette assombrada com essa enigmática despedida.
II. OUTROS PASSOS PARA TRÁS
No dia seguinte, à mesma hora, Jean Valjean voltou.
Cosette não lhe fez perguntas, não se mostrou admirada, não se
queixou de frio, não o convidou a subir, evitou chamá-lo de pai e de
senhor Jean e deixou-se chamar de senhora. Apenas dava mostras de uma
diminuição de alegria. Teria ficado triste se a tristeza lhe fosse possível.
É provável que ela tivesse tido com Marius uma dessas conversas em
que o homem amado diz o que quer, não explicando nada e satisfazendo a
mulher amada. A curiosidade dos amantes não vai muito além de seu
amor.
A sala de baixo passara por uma arrumação. Basque fizera desaparecer
as garrafas, e Nicolette as aranhas.
Os dias que se seguiram trouxeram Jean Valjean de volta à mesma
hora. Veio todos os dias, não tendo forças para tomar as palavras de
Marius a não ser ao pé da letra. Marius fazia sempre por não estar em casa
à hora em que Jean Valjean chegava.
A família acostumou-se às novas singularidades do senhor
Fauchelevent. Toussaint contribuiu para isso: “Ele sempre foi assim”,
repetia ela. O avô decretou: “É um extravagante!” E não se falou mais
nisso. Aliás, aos noventa anos já não há mais ligação que seja possível;
tudo é justaposição; um recém-chegado é um incômodo. Não há mais
lugar, todos os hábitos já se instalaram.
Senhor Fauchelevent, ou Tranchelevent, o avô Gillenormand não
queria outra coisa a não ser estar dispensado “daquele senhor”. E
acrescentou: “Nada é mais comum que esses extravagantes. Fazem todo
tipo de esquisitices sem nenhum motivo. O marquês de Canaples, esse era
ainda pior. Comprou um palácio e foi instalar-se no sótão. São aparências
fantasiosas que as pessoas têm”.
Ninguém entrevê a sinistra parte de baixo. Além disso, quem poderia
adivinhar uma coisa desse tipo? Na Índia, há pântanos assim; a água
parece extraordinária, inexplicável, trêmula, sem que haja vento; agitada
onde deveria estar calma. Vê-se na superfície uma agitação sem causa,
pois não se percebe a hidra arrastando-se no fundo.
Muitos homens têm também um monstro secreto, um mal que
alimentam, um dragão que os dilacera, um desespero que habita suas
noites. Esses homens se parecem com todos os outros, vão e vêm. Não se
sabe que dentro desses miseráveis há uma medonha dor parasita, com mil
dentes, da qual chegam a morrer. Não se sabe que esses homens são
abismos. Estagnados, mas profundos. De tempos em tempos, uma agitação
incompreensível se faz à sua superfície. Forma-se uma misteriosa dobra,
que desaparece e torna a aparecer; uma bolha de ar sobe e arrebenta. É
pouca coisa, mas é terrível. É a respiração da besta desconhecida.
Certos hábitos estranhos, chegar quando os outros se retiram,
esconder-se quando os outros se mostram, manter em todas as ocasiões o
que se poderia chamar de capa cor de parede, procurar os lugares
solitários, preferir a rua deserta, não tomar parte nas conversas, evitar as
multidões e as festas, parecer abastado e viver pobremente, trazer, por
mais rico que se seja, sua chave no bolso e sua própria vela para a portaria,
entrar pela porta dos fundos, subir pela escada oculta, todas essas
singularidades insignificantes, rugas, bolhas de ar, dobras fugazes na
superfície, provêm muitas vezes de um fundo formidável.
Assim decorreram várias semanas. Uma nova vida pouco a pouco
tomou conta de Cosette; relações originadas pelo casamento, visitas,
cuidados com a casa, divertimentos, enfim, esses negócios importantes. Os
divertimentos de Cosette eram pouco dispendiosos. Consistiam em um
único: estar com Marius. Sair com ele, ficar com ele em casa, essas eram
as grandes ocupações de sua vida.
Era para eles um prazer sempre novo saírem de braços dados, sob o
sol, em plena rua, sem se esconderem, diante de todo o mundo, os dois
sozinhos.
Cosette teve uma contrariedade. Toussaint, não conseguindo entender-
se com Nicolette, sendo impossível a união das duas mulheres, foi embora.
O avô passava bem; Marius defendia uma ou outra causa; tia
Gillenormand levava tranquilamente, ao lado do novo casal, uma vida
lateral que lhe bastava. Jean Valjean vinha todos os dias.
O tratamento você desapareceu, o senhora, o senhor Jean, tudo isso fez
com que ele parecesse outra pessoa aos olhos de Cosette. O cuidado que
ele próprio tomara para afastá-la dele dera resultado. Ela estava cada vez
mais alegre e cada vez menos terna. Mas continuava gostando muito dele,
e ele o sentia.
Certo dia, ela lhe disse abruptamente: “O senhor era meu pai, mas não
é mais; o senhor era meu tio, mas não é mais; era o senhor Fauchelevent,
agora é Jean. Afinal de contas, quem é o senhor? Não gosto nada disso. Se
não soubesse o quanto é bom, teria medo do senhor”.
Ele continuava morando na rua de l’Homme-Armé, porque não
conseguia afastar-se do local habitado por Cosette.
Nos primeiros tempos, demorava-se apenas alguns minutos junto de
Cosette, e logo ia embora.
Pouco a pouco foi-se acostumando a prolongar suas visitas. Parecia
aproveitar-se da autorização dos dias que se tornavam mais longos;
chegava mais cedo e retirava-se mais tarde.
Um dia, sem querer, Cosette o chamou de pai. Um raio de alegria
iluminou o velho semblante sombrio de Jean Valjean. Ele a corrigiu: “Diga
Jean”.
— Ah! É verdade, senhor Jean — respondeu ela soltando uma risada.
— Muito bem — disse ele.
E voltou o rosto para que ela não o visse enxugar as lágrimas.

III. ELES SE RECORDAM DO JARDIM DA RUA


PLUMET
Foi a última vez. Após esse derradeiro clarão, a extinção tornou-se
completa. Não houve mais familiaridade, não houve mais bom-dia
acompanhado de um beijo, nunca mais foram ditas as palavras tão
profundamente doces: “Meu pai!” Jean Valjean vinha sendo, a seu pedido
e com sua própria cumplicidade, sucessivamente apartado de todas as suas
felicidades; e teve a desgraça de, após perder Cosette completamente em
um só dia, precisar, em seguida, tornar a perdê-la aos poucos.
Os olhos acabam por habituar-se à claridade dos porões. Em suma, ter
todos os dias uma aparição de Cosette, isso lhe bastava. Toda a sua vida se
concentrava naqueles momentos. Sentava-se perto dela, a olhava em
silêncio, ou lhe falava dos anos passados, de sua infância, do convento, de
suas amiguinhas de então.
Uma tarde — era um dos primeiros dias de abril, já quente, ainda
fresco, no momento da grande alegria do sol; os jardins que cercavam as
janelas de Marius e Cosette tinham a emoção do despertar, as roseiras
começavam a desabrochar, os goivos cobriam os velhos muros, as bocas-
de-leão cor-de-rosa bocejavam por entre as fendas das pedras, a relva
começava a matizar-se graciosamente de margaridas e botões–de-ouro, as
primeiras borboletas brancas do ano apareciam, o vento, esse menestrel de
eternas núpcias, ensaiava nas árvores as primeiras notas da grande sinfonia
da aurora, que os velhos poetas chamavam de primavera —, naquela tarde,
Marius disse a Cosette:
— Nós dissemos que iríamos rever nosso jardim da rua Plumet.
Vamos. Não devemos ser ingratos.
E voaram, como duas andorinhas, em direção à primavera.
Aquele jardim da rua Plumet tinha para eles o efeito da aurora. Já
tinham atrás de suas vidas algo que era como a primavera de seu amor. A
casa da rua Plumet, embora já arrendada, ainda pertencia a Cosette. Foram
então ao jardim e à casa; ali se reencontraram e ali se esqueceram.
Ao anoitecer, na hora de costume, Jean Valjean foi à rua Filles-du–
Calvaire.
— A senhora Cosette saiu com o senhor Marius, e ainda não voltaram
— disse-lhe Basque.
Jean Valjean sentou-se em silêncio e esperou uma hora. Cosette não
chegou. Ele baixou a cabeça e foi-se embora.
Cosette ficara tão encantada com o passeio ao “seu jardim”, e tão
contente por ter “vivido todo um dia em seu passado”, que não falou de
outra coisa no dia seguinte, e nem deu-se conta de não ter visto Jean
Valjean.
— Como foram para lá? — perguntou-lhe Jean Valjean.
— A pé.
— E como voltaram?
— De carruagem.
Havia algum tempo que Jean Valjean notava a vida comedida que o
jovem casal levava. Isso o incomodava. A economia de Marius era severa,
e para Jean Valjean essa palavra tinha um sentido absoluto. Ele arriscou
uma pergunta:
— Por que vocês não têm uma carruagem própria? Um belo cupê não
lhes custaria mais do que quinhentos francos por mês. Vocês são ricos.
— Não sei — respondeu Cosette.
— É como com Toussaint — prosseguiu Jean Valjean. — Ela partiu e
não foi substituída. Por quê?
— Nicolette já é suficiente.
— Mas a senhora necessita de uma criada de quarto.
— Mas já não tenho Marius?
— Deviam ter uma casa para vocês, criados para vocês, um carro, um
camarote no teatro. Não há nada que seja demais para vocês. Por que não
aproveitam a riqueza que têm? A riqueza só acrescenta à felicidade.
Cosette não respondeu nada.
As visitas de Jean Valjean não se abreviaram; longe disso. Quando é o
coração que escorrega, não é possível deter-se na ladeira.
Quando Jean Valjean queria prolongar sua visita e fazer esquecer a
hora, elogiava Marius; achava-o bonito, nobre, corajoso, espirituoso,
eloquente, bom. Cosette ia ainda mais longe. Jean Valjean recomeçava.
Eles não paravam. Marius era uma palavra inesgotável; havia volume
naquelas seis letras. Dessa forma Jean Valjean conseguia demorar-se
bastante tempo.
Ver Cosette, esquecer-se perto dela, isso lhe era tão caro! Era o
bálsamo de sua ferida.
Ocorreu várias vezes de Basque precisar repetir:
— O senhor Gillenormand me pede para lembrar à senhora baronesa
que o jantar está servido.
Em tais dias, Jean Valjean voltava para casa muito pensativo. Será que
tinha algo de verdadeiro na comparação da crisálida imaginada por
Marius? Será que Jean Valjean era efetivamente uma crisálida obstinada
que vinha visitar sua borboleta?
Certa vez ele demorou-se ainda mais que de costume. No dia seguinte,
reparou que não havia fogo na lareira.
— Oh! O fogo não foi aceso — pensou.
E deu a ele mesmo a seguinte explicação: “É simples. Estamos em
abril. O frio já passou”.
— Santo Deus, que frio está aqui! — exclamou Cosette ao entrar.
— Não — respondeu Jean Valjean.
— Então foi o senhor quem disse a Basque para não acender o fogo?
— Sim. Logo estaremos em maio.
— Mas o fogo é aceso até o mês de junho. Nesse porão, então, precisa
ser aceso o ano todo.
— Achei que o fogo fosse inútil.
— Essa é uma de suas ideias! — replicou Cosette.
No outro dia havia fogo, mas as duas poltronas achavam-se do outro
lado da sala, junto à porta. “O que isso quer dizer?”, pensou Jean Valjean.
Foi buscar as cadeiras e tornou a colocá-las no lugar de sempre, perto
da lareira.
Aquele fogo novamente aceso o encorajou; prolongou a conversa ainda
por mais tempo que de costume. Quando se levantava para ir embora,
Cosette lhe disse:
— Ontem meu marido me disse uma coisa estranha.
— O quê?
— Disse-me: “Cosette, nós temos trinta mil francos de renda. Vinte e
sete que são seus e três que meu avô me deu”. Eu respondi: “Isso, trinta
mil”. Ele replicou: “Você teria coragem de viver com os três mil?” Eu
respondi: “Teria, até sem nada, desde que fosse com você”. E depois eu
perguntei: “Por que está me dizendo isso?” Ele respondeu: “Só para
saber”.
Jean Valjean não achou nada para dizer. Cosette decerto esperava
alguma explicação dele, mas Jean Valjean escutou-a em profundo silêncio.
Voltou para a rua de l’Homme-Armé tão profundamente absorto que
enganou-se de porta, e, em vez de entrar em sua casa, entrou na casa
vizinha. Só depois de já ter subido quase dois andares é que percebeu seu
engano e desceu.
Seu espírito estava atormentado por conjecturas. Era evidente que
Marius tinha dúvidas a respeito da origem dos seiscentos mil francos, que
temia procederem de alguma fonte não confiável, quem sabe? Que talvez
tivesse até descoberto que o dinheiro provinha dele, Jean Valjean, que
hesitava diante daquela fortuna suspeita e se opunha a tomá-la como sua,
preferindo que ele e Cosette ficassem pobres a terem uma riqueza
duvidosa.
Além disso, Jean Valjean começava, vagamente, a sentir-se repelido.
No dia seguinte, ao entrar na sala de baixo, sentiu uma espécie de
abalo. As poltronas tinham desaparecido. Não havia sequer uma cadeira.
— Ora essa — exclamou Cosette ao entrar —, as poltronas sumiram!
Onde é que estão as poltronas?
— Não estão mais aqui — respondeu Jean Valjean.
— Essa é boa!
— Fui eu quem disse a Basque para retirá-las — balbuciou Jean
Valjean.
— E por quê?
— Só vou ficar alguns minutos hoje.
— Ficar só um pouco, isso não é motivo para ficar de pé.
— Creio que Basque precisava das poltronas na sala.
— Para quê?
— Certamente terão visitas hoje.
— Não esperamos ninguém.
Jean Valjean não sabia mais o que dizer. Cosette deu de ombros.
— Mandar tirar as poltronas! Outro dia mandou apagar o fogo. Como o
senhor é estranho!
— Adeus — murmurou Jean Valjean.
Ele não disse: “Adeus, Cosette”, mas também não teve forças para
dizer: “Adeus, senhora”.
Saiu abatido.
Dessa vez compreendeu. No dia seguinte não apareceu. Cosette só
reparou nisso à noite.
— Oh! — disse ela. — O senhor Jean não veio hoje!
Sentiu um leve aperto no coração, porém mal se deu conta dele, porque
logo foi distraída por um beijo de Marius.
No outro dia, ele também não apareceu.
Cosette nem prestou atenção; passou sua noite e dormiu como de
costume. Só pensou nisso ao acordar. Estava tão feliz!
Mandou Nicolette imediatamente à casa do senhor Jean para saber se
ele estava doente e por que não tinha vindo na véspera. Nicolette voltou
com a resposta do senhor Jean. Ele não estava doente; estava ocupado, mas
brevemente viria. O mais rápido que pudesse. Além disso, faria uma
pequena viagem. Que a senhora devia lembrar-se de como ele costumava
fazer algumas viagens de tempos em tempos. Que não se preocupassem
com ele.
Nicolette, ao entrar na casa do senhor Jean, repetira-lhe exatamente as
palavras de sua patroa. Que a senhora mandava perguntar “por que razão o
senhor Jean não fora lá na véspera”.
— Há dois dias não vou lá — respondeu Jean Valjean de modo afável.
Mas a observação passou despercebida por Nicolette, que não disse
nada a Cosette.

IV. A ATRAÇÃO E A EXTINÇÃO


Durante os últimos meses da primavera e os primeiros meses do verão
de 1833, os raros transeuntes do Marais, os lojistas, os ociosos encostados
aos batentes das portas notavam um velho decentemente vestido de preto
que, todos os dias, mais ou menos à mesma hora, ao anoitecer, saía da rua
de l’Homme-Armé pelo lado da rua Sainte-Croix–de-la-Bretonnerie,
passava diante de Blancs-Manteaux, ganhava a rua Culture-Sainte-
Catherine e, chegando à rua de l’Écharpe, dobrava à esquerda e entrava na
rua Saint-Louis.
Lá, caminhava a passos lentos, cabeça estendida para frente, sem ver
nem ouvir nada, os olhos imutavelmente fixos sempre no mesmo ponto,
como se nele visse uma estrela, e que era nada mais que a esquina da rua
Filles-du-Calvaire.
Quanto mais se aproximava dessa esquina, mais seus olhos brilhavam;
uma espécie de alegria iluminava suas pupilas como uma aurora interior,
tomava um ar fascinado e enternecido, seus lábios faziam estranhos
movimentos, como se falasse com alguém que não via, sorria vagamente,
e avançava o mais vagarosamente que podia. Parecia que, ao mesmo
tempo que desejava chegar, temia o momento em que já estivesse muito
perto.
Quando não havia mais que algumas casas entre ele e aquela rua que
parecia atraí-lo, seus passos tornavam-se lentos a ponto de, por instantes,
poder-se pensar que ele não caminhava mais. O movimento trêmulo da
cabeça e o olhar fixo faziam lembrar a agulha da bússola procurando o
polo. Mas, por mais que prolongasse o instante da chegada, uma hora tinha
de chegar; atingindo a rua Filles-du-Calvaire, parava, estremecia, passava
a cabeça com uma espécie de melancólica timidez pela canto da última
casa e olhava para essa rua. Nesse trágico olhar havia algo que se
assemelhava ao deslumbramento do impossível, ao brilho de um paraíso
fechado. Em seguida, uma lágrima, que pouco a pouco se formara no canto
dos olhos, tornando-se bastante pesada para cair, deslizava pelo seu rosto
e, algumas vezes, parava em sua boca. O velho sentia-lhe o sabor amargo.
Assim permanecia alguns minutos, como se fosse de pedra; depois voltava
pelo mesmo caminho e no mesmo ritmo, e, à medida que se afastava, seus
olhos perdiam o brilho.
Pouco a pouco, ele deixou de ir até a esquina da rua Filles-du-Calvaire;
parava a meio caminho, na rua Saint-Louis, ora mais próximo, ora mais
afastado. Um dia, parou na esquina da rua Culture-Sainte-Catherine e
ficou olhando de longe para a rua Filles-du-Calvaire. Depois balançou
silenciosamente a cabeça da direita para a esquerda, como se recusasse
algo a si mesmo, e deu meia-volta.
Em pouco tempo já não ia nem até a rua Saint-Louis. Caminhava até a
rua Pavée, balançava a cabeça e retrocedia; em seguida, não passava da rua
Trois-Pavillons; por último, já não passava mais por Blancs–Manteaux.
Era como um pêndulo ao qual não se desse mais corda e cujas oscilações
fossem diminuindo até parar.
Todos os dias ele saía de casa à mesma hora, fazia o mesmo trajeto,
mas não o terminava; e, talvez, sem ter consciência disso, o encurtava
constantemente. Todo o seu rosto exprimia esta única ideia: “Para quê?”
Seus olhos estavam apagados, não tinham mais brilho; aquela lágrima
também estancara, já não se formava no canto dos olhos; aquele olhar
pensativo secara. A cabeça daquele homem continuava estendida para
diante, e seu queixo às vezes se remexia; as rugas de seu magro pescoço
davam pena. Algumas vezes, quando o tempo estava ruim, levava debaixo
do braço um guarda-chuva que nunca abria. As boas senhoras do bairro
diziam: “É um coitado”.
As crianças o seguiam rindo.
LIVRO IX
SUPREMA SOMBRA, SUPREMA
AURORA

I. COMPAIXÃO PARA OS DESGRAÇADOS, MAS


INDULGÊNCIA PARA OS FELIZES
É ALGO INCRÍVEL, ser feliz! Que contentamento! Como parece que isso
é o bastante! Como, estando de posse do falso objetivo da vida, a
felicidade, se esquece o verdadeiro objetivo, o dever!
Vamos, no entanto, dizer, estaríamos errados em acusar Marius.
Marius, como já explicamos, antes de seu casamento não questionara o
senhor Fauchelevent, e, depois, teve medo de questionar Jean Valjean.
Arrependera-se de ter feito a promessa à qual se deixara levar. Repetiu-se
muitas vezes que errara ao fazer semelhante concessão ao desespero.
Limitara-se a afastar Jean Valjean, pouco a pouco, de sua casa e a apagá-lo
o máximo possível da mente de Cosette. De certa forma, sempre
interpusera-se entre Cosette e Jean Valjean, certo que dessa maneira ela
nada perceberia e em nada pensaria.
Seria mais do que esquecimento, seria um eclipse.
Marius fazia o que julgava necessário e justo. Acreditava ter, para
afastar Jean Valjean, sem dureza, mas também sem fraqueza, sérias razões,
que já vimos, e outras mais que veremos adiante. O acaso fizera com que
encontrasse, em um processo que conduzira, um antigo empregado do
banco Laffitte, vindo a obter, sem procurar, misteriosos esclarecimentos
que, na verdade, não pudera aprofundar em respeito ao segredo que
prometera guardar, e por cuidado em relação à arriscada situação de Jean
Valjean. Acreditava, naquele momento, ter um grande dever a cumprir: a
restituição dos seiscentos mil francos a alguém que procurava o mais
discretamente possível.
Quanto a Cosette, ela não conhecia nenhum desses segredos; mas
também seria injusto condená-la.
De Marius para ela havia um magnetismo todo-poderoso, que a
forçava a fazer, instintiva e quase maquinalmente, o que ele desejava. Ela
sentia, a respeito do “senhor Jean”, uma vontade de Marius, e a ela
resignava-se. Seu marido não precisou dizer-lhe nada; ela sofria uma vaga,
mas clara, pressão de suas intenções tácitas, e obedecia cegamente. Sua
obediência, no caso, consistia em não se lembrar daquilo que Marius
esquecia. E não precisava fazer nenhum esforço para isso. Sem que ela
mesma soubesse por que, e sem que se pudesse acusá-la por isso, sua alma
havia de tal forma se tornado a alma de seu marido, que aquilo que se
cobria de sombras no pensamento de Marius obscurecia-se no pensamento
dela.
No entanto, não devemos ir longe demais; no que diz respeito a Jean
Valjean, aquele esquecimento e aquele afastamento eram meramente
superficiais. Ela estava mais aturdida do que esquecida. No fundo, gostava
muito daquele a quem, por tanto tempo, chamara de pai. Porém, gostava
ainda mais de seu marido. Foi o que desequilibrou um pouco a balança
daquele coração, que pendia de um só lado.
Ocorria, às vezes, de Cosette falar de Jean Valjean e admirar-se. Então,
Marius a acalmava:
— Creio que está ausente. Ele não disse que saía para uma viagem?
— É verdade—pensava Cosette. — Ele costumava desaparecer assim,
mas não por tanto tempo.
Duas ou três vezes mandou Nicolette à rua de l’Homme-Armé
perguntar se o senhor Jean já havia voltado de sua viagem. Jean Valjean
mandava responder que não.
Cosette não perguntou mais nada; sua única necessidade na terra era
Marius.
Devemos ainda acrescentar que, de sua parte, Marius e Cosette
também estiveram ausentes. Foram a Vernon. Marius levou Cosette ao
túmulo de seu pai.
Pouco a pouco, Marius havia tirado Cosette de Jean Valjean. E ela
deixou-se levar.
De resto, aquilo que, em certos casos e de forma dura demais,
chamamos de ingratidão dos filhos, nem sempre é uma coisa tão digna de
censura como se acredita. É a ingratidão da natureza. A natureza, como já
dissemos de outra feita, “olha para frente”; divide os seres vivos em
criaturas que chegam e em criaturas que partem. As que partem viram-se
para a sombra, as que chegam voltam-se para a luz. Vem daí um
afastamento que, por parte dos velhos, é fatal, e, por parte dos jovens, é
involuntário. Esse afastamento, em princípio insensível, aumenta
lentamente, como toda separação de ramos. Os ramos, sem se
desprenderem do tronco, afastam-se dele. Mas não é sua culpa. A
juventude vai para onde há alegria, para as festas, para os amores, para a
viva luminosidade. A velhice caminha para o fim. Não se perdem de vista,
mas não há mais união. Os jovens sentem o resfriamento da vida, os
velhos, o resfriamento do túmulo. Não devemos acusar essas pobres
crianças.

II. ÚLTIMAS PALPITAÇÕES DA LÂMPADA SEM


ÓLEO 1
Um dia, Jean Valjean desceu a escada, deu três passos na rua, sentou-se
no mesmo local onde Gavroche, na noite de 5 para 6 de junho, o
encontrara pensativo, ali ficou por alguns minutos, e tornou a subir. Foi a
última oscilação do pêndulo. No dia seguinte, não saiu de casa. No outro,
não saiu da cama.
A zeladora, que lhe preparava sua magra refeição, um pouco de couve
ou algumas batatas com toucinho, olhou para o prato de cerâmica e
exclamou:
— Mas o senhor não comeu nada ontem, pobre homem!
— Comi! — respondeu Jean Valjean.
— O prato está cheio.
— Olhe o jarro de água. Está vazio.
— Isso prova que o senhor bebeu, mas não prova que comeu.
— O que fazer — respondeu Jean Valjean —, se eu só tive fome de
água?
— Isso é chamado de sede, e, quando não se come ao mesmo tempo,
isso é chamado de febre.
— Amanhã eu como!
— Ou sabe-se lá quando! Por que não hoje? Será que mais alguém diz:
“Amanhã eu como!”? Deixar toda a minha comida, sem nem a tocar!
Minhas batatas, que estavam tão boas!
Jean Valjean pegou na mão da velha senhora:
— Prometo-lhe que vou comê-las — disse ele com voz amável.
— Não estou contente com o senhor — respondeu a zeladora.
Jean Valjean não via outra criatura humana a não ser essa boa senhora.
Em Paris, há ruas por onde ninguém passa e casas aonde ninguém vai. Ele
morava em uma dessas ruas e em uma dessas casas.
No tempo em que ainda saía, comprara de um caldeireiro, por alguns
tostões, um pequeno crucifixo de cobre que pendurara em um prego em
frente a sua cama. Sempre é bom olhar para esses objetos.
Uma semana se passou sem que Jean Valjean desse um só passo em
seu quarto. Permaneceu o tempo todo deitado. A zeladora dizia para o
marido:
— O pobre senhor lá de cima já não se levanta, já não come, assim não
vai muito longe. Deve ser de desgosto, isso. Ninguém me tira da cabeça
que a filha está mal casada.
O marido replicou em tom de soberania marital:
— Se é rico, que mande chamar um médico. Se não é rico, que fique
sem médico. Mas, sem médico, é capaz de morrer.
— E se vier um médico?
— Também vai morrer — disse o homem.
A mulher pôs-se a arrancar com uma faca velha o mato que crescia no
que ela chamava de sua calçada, e enquanto arrancava o mato resmungava:
— É uma pena. Um velho com tanta limpeza! Branco como um
franguinho.
Viu na extremidade da rua um médico da vizinhança que passava, e
resolveu pedir-lhe para subir.
— É no segundo andar — disse ela. — É só entrar. Como o pobre
homem não se mexe mais da cama, a chave está sempre na porta.
O médico viu Jean Valjean e falou com ele.
Ao descer, a zeladora o interpelou:
— E então, doutor?
— Seu doente está muito doente.
— O que ele tem?
—Tudo e nada. É um homem que, ao que parece, perdeu uma pessoa
muito querida. Disso também se morre.
— O que ele lhe disse?
— Disse-me que estava bem.
— O senhor vai voltar, doutor?
— Voltarei — respondeu o médico. — Mas é preciso que venha outra
pessoa além de mim.

III. UMA PLUMA É PESADA PARA QUEM JÁ


LEVANTOU A CARROÇA DE FAUCHELEVENT
Uma noite, Jean Valjean teve dificuldade para levantar-se apoiando-se
nos cotovelos; segurou o próprio pulso, mas não o sentiu; sua respiração
estava curta e, por instantes, chegava a parar; ele reconheceu que estava
mais fraco do que jamais estivera. Então, sem dúvida sob pressão de
alguma preocupação suprema, fez um esforço, sentou-se na cama e vestiu-
se. Colocou sua velha roupa de trabalho. Como já não saía, voltou a usá-la,
era a roupa que preferia. Precisou interromper-se várias vezes enquanto se
vestia; só o esforço de enfiar as mangas da blusa já fazia o suor escorrer-
lhe pela testa.
Desde que estava sozinho, colocara sua cama na sala de entrada, a fim
de usar o menos possível aquele aposento deserto.
Abriu a valise e tirou o enxoval de Cosette; estendeu-o sobre a cama.
Os castiçais do bispo estavam em seu lugar, sobre a lareira. Tirou de
uma gaveta duas velas de cera e colocou-as nos castiçais. Em seguida,
embora ainda dia claro, pois era verão, acendeu-as. Às vezes, velas assim,
acesas em pleno dia, são vistas em aposentos onde há gente morta.
Cada passo que dava, indo de um móvel a outro, o extenuava, e via-se
obrigado a sentar-se. Não era o cansaço normal que gasta as forças para
depois renová-las; era o resto dos movimentos possíveis; era a vida
esgotada, esvaindo-se em esforços terríveis que não serão recomeçados.
Deixou-se cair em uma das cadeiras que ficava em frente àquele
espelho, tão fatal para ele, tão providencial para Marius, em que lera,
invertida, a carta de Cosette. Viu-se nesse espelho e não se reconheceu.
Parecia ter oitenta anos. Antes do casamento de Marius, não lhe davam
mais que cinquenta; aquele ano valera por trinta. O que trazia na fronte
não era mais a ruga da idade, era a marca misteriosa da morte. Via-se ali o
escavar da unha impiedosa. As faces estavam caídas; a pele do rosto tinha
aquela cor que faria acreditar já estar coberta de terra; os dois cantos da
boca, voltados para baixo, eram como os das máscaras que os antigos
esculpiam nos túmulos; ele olhava para o nada com ar de reprovação;
parecia uma dessas grandes e trágicas criaturas que têm razão para se
queixar de alguém.
Ele se encontrava naquela situação, última fase do abatimento, em que
a dor já não circula, mas está, por assim dizer, coagulada; sobre a alma
existe como que um coágulo de desespero.
A noite caíra. Arrastou laboriosamente uma mesa e sua velha poltrona
para perto da lareira, e colocou sobre a mesa uma pena, tinta e papel.
Após fazer isso, teve um desmaio. Quando recobrou os sentidos, teve
sede. Não conseguindo levantar a jarra de água, inclinou-a com muita
dificuldade para a boca e bebeu alguns goles.
Depois, voltou-se para a cama, ainda sentado, porque não conseguia
ficar de pé, e pôs-se a contemplar o vestidinho preto de Cosette e todos
aqueles objetos queridos.
Essas contemplações duram horas que parecem minutos. De repente,
estremeceu, sentiu um calafrio; apoiou os cotovelos sobre a mesa
iluminada pelos castiçais do bispo, e pegou na pena.
Como nem a pena nem a tinta havia muito não eram usadas, o bico da
pena estava recurvado e a tinta seca; foi preciso que se levantasse para
colocar algumas gotas de água no tinteiro, o que não pôde fazer sem ter de
parar e se sentar duas ou três vezes, e viu-se forçado a escrever com as
costas da pena. De tempos em tempos tinha de enxugar a fronte.
Sua mão tremia. Ele escreveu lentamente as linhas que seguem:

“Cosette, eu a abençoo. Vou lhe explicar. Seu marido estava certo em fazer-me
compreender que eu devia me afastar; todavia, há um pequeno erro naquilo que ele supôs,
embora estivesse certo. Ele é excelente. Ame-o sempre e muito, quando eu já estiver morto.
Senhor Pontmercy, ame sempre minha filha querida. Cosette, encontrarão este papel, eis o
que quero dizer–lhe, você verá as cifras, se eu tiver forças para me lembrar delas; escute
bem, aquele dinheiro é seu, sim. Aí está toda a história. O azeviche branco vem da Noruega,
o preto da Inglaterra e os vidrilhos pretos da Alemanha. O azeviche é mais leve, mais
precioso, mais caro. Na França, podem ser feitas imitações como na Alemanha. São
necessárias uma pequena bigorna, de duas polegadas quadradas, e uma espiriteira a álcool
para amolecer a cera. Antigamente, a cera era feita com resina e pó de carvão, custando
quatro francos a libra. Imaginei fazê-la de goma-laca e terebentina. Assim não custava mais
que trinta soldos, e ficava muito melhor. Os fechos são feitos com um vidro roxo, e são
colados por meio dessa cera sobre uma pequena armação de ferro preto. O vidro deve ser
roxo para a bijuteria de ferro e preto para a de ouro. A Espanha compra bastante desses
artigos. É o país do azeviche…”

Nesse ponto, interrompeu-se, a pena caiu de sua mão; começou com


aqueles soluços desesperados que às vezes vinham das profundezas de seu
ser; o pobre homem pôs a cabeça entre as mãos e pensou.
— Oh! — exclamava ele interiormente (gritos lamentosos, ouvidos só
por Deus). — Acabou-se. Não tornarei a vê-la. Foi um sorriso que passou
por mim. Vou entrar para a escuridão sem ao menos revê-la. Oh! Só um
minuto, um instante, ouvir sua voz, tocar seu vestido, olhar para ela, meu
anjo, e depois morrer! Morrer não é nada, horrível é morrer sem vê-la.
Sorriria para mim, me diria alguma coisa. Que mal isso faria a alguém?
Mas não! Acabou-se para sempre. Aqui estou sozinho. Meu Deus! Meu
Deus! Nunca mais a verei.
Nesse momento, bateram à porta.

IV. TINTEIRO QUE CONSEGUE APENAS


EMBRANQUECER
Nesse mesmo dia, ou, melhor dizendo, nessa mesma noite, quando
Marius saía da mesa e acabava de entrar em seu gabinete para estudar um
processo, Basque entregou-lhe uma carta, dizendo: “A pessoa que escreveu
a carta está na sala de espera”.
Cosette saíra de braços com o avô e passeava pelo jardim.
Uma carta pode, bem como um homem, ter mau aspecto. Papel
grosseiro, dobras grosseiras, certas missivas desagradam só de olhar. A
carta que Basque trouxera era desse tipo.
Marius a pegou. Ela cheirava a tabaco. Nada desperta mais uma
lembrança que um cheiro. Marius reconheceu aquele tabaco. Leu o
sobrescrito: “Ao senhor barão Pommerci. Em seu palácio”. Reconhecer o
tabaco levou-o a reconhecer a letra. Poderíamos dizer que a admiração tem
seus lampejos. Marius foi como que iluminado por um deles.
O olfato, misterioso auxiliar da memória, acabava de reavivar nele um
mundo de coisas. Naquele papel, no modo de dobrar, na tinta desbotada,
naquela letra conhecida, e principalmente naquele cheiro de tabaco, a
espelunca Jondrette lhe reaparecia.
Assim — estranho capricho do acaso! —, uma das duas pistas que ele
tanto havia procurado, aquela para cuja descoberta ainda recentemente
empregara tantos esforços, e que supunha perdida para sempre, vinha por
si mesma oferecer-se a ele.
Abriu avidamente a carta, e leu:

“Senhor barão,
Se o Ser Supremo me houvesse dotado de talentos, eu poderia ter sido o barão de
Thénard, membro do Instituto (Academia das siências), porém não o sou. Tenho apenas o
mesmo nome que ele, e me dou por feliz se essa lembrança me recomendar à excelência de
sua bondade. O benefício com o qual o senhor poderá honrar-me será recíproco. Possuo um
segredo que diz respeito a um serto indivíduo. Esse indivíduo diz respeito ao senhor.
Conservo meu segredo à sua disposição, desejando ter a honra de lhe ser hutil. Vou lhe dar o
meio simples de espulsar de sua respeitavel família esse indivíduo que não tem direito,
sendo a senhora baronesa bem-nascida. O santuário da virtude não poderia coabitar por
muito mais tempo com o crime sem abdicar.
Aguardo na sala de espera as ordens do senhor barão.
Com respeito”.

A carta estava assinada “THÉNARD”.


Essa assinatura não era falsa. Estava apenas um pouco abreviada.
De resto, o estilo burlesco e a ortografia completavam a revelação. O
certificado de origem estava completo. Nenhuma dúvida era possível.
A emoção de Marius foi profunda. Após uma sensação de surpresa,
teve uma sensação de felicidade. Restava-lhe agora encontrar o outro
homem que procurava, aquele que o salvara, a ele, Marius, e nada mais
teria a desejar.
Ele abriu uma gaveta de sua escrivaninha, tirou algumas notas de
dinheiro, colocou-as no bolso, tornou a fechar a gaveta e tocou a
campainha. Basque entreabriu a porta.
— Faça-o entrar — disse Marius.
Basque anunciou:
— O senhor Thénard.
Um homem entrou.
Nova surpresa para Marius. O homem que entrou era-lhe totalmente
desconhecido.
Esse homem, já velho, aliás, tinha o nariz grande, o queixo enterrado
na gravata, óculos verdes com dupla viseira de tafetá verde sobre os olhos,
os cabelos, escorridos e achatados sobre a testa, encostando nas
sobrancelhas como uma peruca de cocheiros ingleses da high life, estavam
grisalhos. Vestia-se de preto da cabeça aos pés, um preto bem surrado, mas
limpo; um molho de berloques saindo de seu bolso fazia supor que ali
houvesse um relógio. Segurava na mão um velho chapéu. Caminhava
curvado, e a curvatura de suas costas aumentava com a profundidade da
inclinação de suas saudações.
O que logo chamava a atenção era que a roupa desse personagem, larga
demais, embora cuidadosamente abotoada, não parecia ter sido feita para
ele. Aqui, uma rápida digressão se faz necessária.
Naquele tempo, havia em Paris, em um estabelecimento de péssima
aparência na rua Beautreillis, próximo a l’Arsenal, um engenhoso judeu
cuja profissão consistia em transformar qualquer tratante em homem de
bem. Não por muito tempo, o que poderia ser constrangedor para o
tratante. A transformação era feita à vista, por um ou dois dias, à razão de
trinta soldos por dia, por meio de um traje o mais semelhante possível à
honestidade de todo o mundo. Esse homem que alugava roupas era
chamado de O Transformador. Era o nome que lhe haviam dado os gatunos
parisienses, e não o conheciam por outro. Ele possuía um guarda-roupa
bem completo. Os andrajos com que transfigurava as pessoas eram até
convincentes. Tinha especialidades e categorias; de cada prego de sua loja
pendia, gasta e amarrotada, uma condição social; aqui uma toga de
magistrado, ali uma batina de padre, acolá uma roupa de banqueiro, em
outro canto uma farda de militar reformado, em outra parte um casaco de
homem literato, mais adiante um terno de estadista. Esse homem era o
figurinista do imenso drama representado pela gatunice de Paris. Sua
espelunca era como bastidores de onde saía o roubo e para onde a
velhacaria retornava. Um vagabundo esfarrapado chegava ali, entregava
trinta soldos e escolhia, segundo o papel que desejava representar naquele
dia, o traje que lhe conviesse, e, ao descer as escadas, o vagabundo parecia
ser alguém. No dia seguinte, todos os objetos eram fielmente devolvidos, e
o Transformador, que confiava tudo aos ladrões, nunca era roubado. Esses
trajes tinham um inconveniente, nem sempre “caíam bem”; como não
eram feitos para quem os alugava, eram apertados para uns e largos para
outros, não se ajustando a ninguém. Todo gatuno que ultrapassasse a média
humana, para maior ou para menor, ficava pouco à vontade nas roupas do
Transformador. Não se podia ser nem muito gordo nem muito magro. O
Transformador não previra senão os homens comuns. Tomara como
medida da espécie a do primeiro tratante que apareceu, o qual não era nem
gordo nem magro, nem alto nem baixo. Daí as adaptações às vezes
difíceis, com as quais os fregueses do Transformador se saíam como
podiam. Azar das exceções! O terno de estadista, por exemplo, todo preto,
e por consequência conveniente, teria ficado muito largo para Pitt, e muito
justo para Castelcicala.2 No catálogo do Transformador, a vestimenta de
estadista estava descrita como transcrevemos a seguir: “Casaca de tecido
preto, calças de casimira preta, colete de seda, botas, camisa branca”. À
margem lia-se: “Antigo embaixador”, e uma nota que também
transcrevemos: “Em uma caixa separada, uma peruca devidamente
encrespada, óculos verdes, berloques e dois pequenos canudos de pena, de
uma polegada de comprimento, enrolados em algodão”. Toda essa
vestimenta estava, se assim podemos dizer, extenuada; as costuras
esbranquiçadas, em um dos cotovelos começava a se abrir um rasgo; além
disso, faltava um botão no paletó, na altura do peito, mas isso era apenas
um detalhe; a mão do estadista devendo estar sempre sobre o coração,
tinha como função esconder o botão ausente.
Se Marius estivesse familiarizado com as instituições ocultas de Paris,
teria imediatamente reconhecido, sobre as costas do visitante que Basque
acabava de introduzir, o terno de estadista alugado na loja de disfarces do
Transformador.
O desapontamento de Marius, vendo entrar um homem diferente
daquele que esperava, foi a desgraça do recém-chegado. Examinou-o dos
pés à cabeça, enquanto o personagem inclinava-se desmesuradamente, e
perguntou-lhe em tom seco:
— O que o senhor quer?
O homem respondeu com uma careta amável, da qual o sorriso afável
de um crocodilo daria alguma ideia:
— Parece-me impossível que eu já não tenha tido a honra de ver o
senhor barão na sociedade. Creio tê-lo encontrado, há alguns anos, em casa
da princesa Bagration e nos salões do excelentíssimo visconde Dambray,
par de França.
É sempre uma boa tática de malandragem fingir reconhecer alguém
que nunca se viu.
Marius estava atento ao modo de falar do homem. Observava seu tom
e seus gestos, e seu desapontamento aumentava; era uma pronúncia
fanhosa, inteiramente diferente do tom de voz seco e áspero que esperava.
Estava completamente desnorteado.
— Não conheço — disse — nem a senhora Bragation nem o senhor
Dambray. Nunca, em minha vida, pus os pés em casa de nenhuma dessas
pessoas!
A resposta era ríspida. Todavia, o personagem, afável apesar de tudo,
insistiu.
— Então deve ter sido na casa de Chateaubriand que vi o senhor!
Conheço Chateaubriand muito bem. É muito amável. Às vezes, diz-me:
“Thénard, meu amigo, tome alguma coisa em minha companhia”.
O semblante de Marius tornava-se cada vez mais severo.
— Nunca tive a honra de ser recebido na casa do senhor
Chateaubriand. Vamos abreviar a conversa. O que quer?
O homem, diante da voz mais dura, saudou-o com mais reverência.
— Senhor barão, queira escutar-me. Existe na América, em um país
que fica próximo ao Panamá, uma aldeia chamada Joya. Essa aldeia se
compõe de uma só casa. Uma grande construção quadrada de três andares,
de tijolos cozidos ao sol. Cada lado do quadrado tem cento e cinquenta
metros de comprimento, cada andar recua três metros e meio em relação
ao andar inferior, de modo a formar terraços que rodeiam todo o edifício.
No centro, há um pátio interno, onde ficam as provisões e as munições;
não há janelas, mas seteiras; não há portas, mas escadas. Escadas para
subir do chão ao primeiro terraço, e do primeiro terraço ao segundo, e do
segundo ao terceiro. Escadas para descer ao pátio interno. Nos quartos, não
há portas, mas alçapões, não há escadas fixas, mas escadas removíveis. À
noite, fecham-se os alçapões, retiram-se as escadas, preparam-se os
bacamartes e as carabinas nas seteiras. Não há meios de entrar-se ali. Uma
casa de dia, uma fortaleza de noite; oitocentos habitantes, assim é essa
aldeia. Por que tantas precauções? Porque o lugar é perigoso; está cheio de
antropófagos. Então, por que vão para lá? Porque é um lugar maravilhoso,
ali se encontra ouro.
— Onde o senhor quer chegar? — interrompeu Marius, que do
desapontamento passava à impaciência.
— Ao seguinte, senhor barão. Sou um antigo diplomata cansado. A
velha civilização me venceu. Quero experimentar os selvagens.
— E daí?
— Senhor barão, o egoísmo é a lei do mundo. A aldeã proletária, que
trabalha por dia, volta-se quando passa a diligência. A aldeã proprietária,
que trabalha em suas terras, não se volta. O cão do pobre ladra ao rico, o
cão do rico ladra ao pobre. Cada um por si. O interesse, eis o objetivo dos
homens. O ouro, eis o ímã.
— E então? Conclua.
— Eu gostaria de ir estabelecer-me em Joya. Somos três. Tenho minha
esposa e minha filha, uma moça muito bonita. A viagem é longa e cara;
portanto, preciso de algum dinheiro.
— E o que eu tenho com isso? — perguntou Marius.
O desconhecido esticou o pescoço para fora da gravata, gesto peculiar
dos abutres, e replicou com redobrado sorriso:
— Então o senhor barão não leu minha carta.
Isso era quase verdade. O fato era que o conteúdo da missiva escapara
a Marius. Ele mais havia prestado atenção na letra do que propriamente
lido a carta. Mal se lembrava dela. Havia alguns instantes, outra coisa
acabara de despertar sua atenção. Notara este detalhe: minha esposa e
minha filha. Marius fixava sobre o desconhecido um olhar penetrante.
Nem um juiz de instrução teria feito melhor. Praticamente o espreitava. E
limitou-se a responder-lhe:
— Seja mais preciso.
O desconhecido colocou as mãos nos bolsos, levantou a cabeça sem
endireitar a espinha dorsal, mas também fitando Marius com o olhar verde
de seus óculos.
— Bem, senhor barão, serei mais preciso. Tenho um segredo para
vender-lhe.
— Um segredo?
— Um segredo.
— Que me diz respeito?
— Um pouco.
— Que segredo é esse?
Marius examinava cada vez mais o homem enquanto o escutava.
— O começo é grátis — disse o desconhecido. — O senhor vai ver que
sou interessante.
— Fale.
— Barão, o senhor tem em sua casa um ladrão e um assassino.
Marius estremeceu.
— Em minha casa? Não — disse ele.
O desconhecido, imperturbável, esfregou seu chapéu com o cotovelo e
prosseguiu:
— Assassino e ladrão. Note, senhor barão, que não falo aqui de fatos
antigos, passados, caducos, que podem achar-se apagados pela prescrição
perante a lei, e pelo arrependimento perante Deus. Falo de fatos recentes,
fatos atuais, fatos ainda ignorados da justiça no momento. Continuo. Esse
homem infiltrou-se em sua confiança, e quase em sua família, com um
nome falso. Vou dizer seu verdadeiro nome, sem pedir nada em troca.
— Estou ouvindo.
— Chama-se Jean Valjean.
— Isso eu já sei.
— Vou dizer-lhe, também sem pedir nada em troca, quem é ele.
— Diga.
— É um antigo forçado!
— Também já sei.
— Ficou sabendo depois que tive a honra de dizer-lhe.
— Não. Já sabia antes.
O tom frio de Marius, a dupla réplica “já sei”, seu laconismo refratário
ao diálogo excitaram uma surda cólera no desconhecido. Lançou,
disfarçadamente, um olhar furioso sobre Marius, rapidamente extinto. Por
mais rápido que tenha sido, aquele olhar era dos que se reconhecem
mesmo quando só tenham sido vistos uma vez; e não escapou a Marius.
Certas faíscas não podem vir senão de certas almas; as pupilas,
respiradouros do pensamento, tranformam-se em brasas, e óculos não
escondem nada. É como colocar uma vidraça no inferno.
O desconhecido retomou sorrindo:
— Não pretendo desmentir o senhor barão. Em todo caso, o senhor vê
que estou bem informado. Agora, o que tenho a contar-lhe é de meu
exclusivo conhecimento. Interessa à fortuna da senhora baronesa. É um
segredo extraordinário. Está à venda. É ao senhor que o ofereço em
primeiro lugar. Não há nada mais barato. Vinte mil francos!
— Conheço esse segredo tão bem como os outros — disse Marius.
O homem sentiu que devia baixar um pouco seu preço:
— Senhor barão, dê-me dez mil francos, e contarei.
— Repito que o senhor não tem nada para contar-me. Eu sei o que o
senhor quer falar.
Uma nova faísca apareceu no olhar do homem; ele exclamou:
— No entanto, eu preciso jantar hoje. Estou dizendo que é um segredo
extraordinário. Senhor barão, vou falar. Eu falo. Dê-me vinte francos.
Marius olhou-o fixamente:
— Conheço seu segredo extraordinário, do mesmo modo que conheço
o nome de Jean Valjean, do mesmo modo que conheço seu nome.
— Meu nome?
— Sim.
— Não é difícil, senhor barão. Tive a honra de escrevê-lo e de dizê-lo
ao senhor. Thénard.
— Dier.
— Como?
— Thénardier.
— Quem?
Em perigo, o porco-espinho eriça-se, o escaravelho finge-se de morto,
a velha-guarda forma em quadrado; o homem desatou a rir.
Depois, sacudiu com uma palmadinha um grão de poeira da manga de
sua roupa.
Marius continuou:
— O senhor também é o operário Jondrette, o comediante Fabantou, o
poeta Genflot, o espanhol D. Alvarez e dona Balizard!
— Dona o quê?
— Teve uma taverna em Montfermeil.
— Uma taverna? Nunca!
— Afirmo que é Thénardier.
— Eu nego!
— E que é um tratante. Tome.
Marius tirou do bolso uma nota de dinheiro, arremessando-a em seu
rosto.
— Muito obrigado! Perdão! Quinhentos francos! Senhor barão!
E o homem, transtornado, fazendo reverências, pegou o dinheiro e pôs-
se a examiná-lo.
— Quinhentos francos! — repetiu ele, deslumbrado. E balbuciou a
meia voz: — Uma nota verdadeira!
Depois exclamou bruscamente:
— Muito bem. Fiquemos à vontade.
E, com a presteza de um macaco, empurrou os cabelos para trás,
arrancou os óculos, tirou do nariz e escondeu ligeiramente os dois canudos
de pena, dos quais falamos há pouco, e que já foram vistos em outra
página deste livro, tirou a cara postiça como quem tira um chapéu.
Os olhos iluminaram-se, a fronte desigual, sulcada, cheia de saliências,
horrivelmente enrugada liberou-se; o nariz voltou a ser pontiagudo como
um bico, o perfil feroz e sagaz do homem de rapina reapareceu.
— O senhor barão é infalível — disse ele em voz clara, que já nada
tinha de fanhosa. — Eu sou Thénardier.
E endireitou as costas recurvadas.
Thénardier, pois era ele mesmo, estava estranhamente surpreso, e teria
ficado perturbado, se isso fosse possível. Tinha vindo para causar
admiração, mas foi ele quem ficou admirado. Essa humilhação fora-lhe
paga com quinhentos francos, e, no fim das contas, a aceitava; mas nem
por isso estava menos abalado.
Ele via pela primeira vez esse barão Pontmercy e, apesar do disfarce, o
barão Pontmercy o reconheceu, e o reconheceu a fundo. E o barão não só
estava a par de Thénardier, mas também parecia estar a par de Jean
Valjean. Quem era esse jovem quase imberbe, tão glacial e tão generoso,
que sabia o nome das pessoas, que sabia todos os seus nomes, e que lhes
abria sua bolsa, e que maltratava os gatunos como um juiz, e que os
pagava como um logrado?
Thénardier, como se lembram, embora tenha sido vizinho de Marius,
nunca o vira, coisa frequente em Paris; havia muito tempo, ouvira
vagamente suas filhas falarem de um jovem muito pobre, chamado
Marius, que morava na mesma casa. Escrevera-lhe, sem o conhecer, a
carta que conhecemos. Nenhuma relação poderia ser feita em sua mente
entre o tal Marius e o barão Pontmercy.
Quanto ao nome de Pontmercy, estão lembrados que, no campo de
batalha de Waterloo, ele só ouvira as duas últimas sílabas, pelas quais
sempre tivera o legítimo desprezo que se deve ao que nada mais é que um
agradecimento.
De resto, por sua filha Azelma, que ele pusera na pista dos noivos no
dia 16 de fevereiro, e por suas próprias investigações, conseguiu saber
muitas coisas e, do fundo das trevas em que se encontrava, conseguiu
seguir mais de um fio misterioso.
Por suas habilidades, tinha descoberto, ou, pelo menos, à força de
induções tinha adivinhado quem era o homem que certo dia encontrara no
Grand Égout. Do homem facilmente chegara ao nome. Sabia que a senhora
baronesa Pontmercy era Cosette. Porém, a esse respeito, estava resolvido a
ser discreto. Quem era Cosette? Nem ele mesmo sabia muito bem.
Entrevia um caso de descendência bastarda, a história de Fantine
sempre lhe parecera mal contada; mas de que serviria falar disso? Para que
o recompensassem por seu silêncio? Ele tinha, ou acreditava ter, algo
melhor para vender. E, segundo todas as aparências, vir fazer, sem provas,
esta revelação ao barão Pontmercy: “Sua mulher é uma bastarda” não teria
outro resultado senão atrair as botinas do marido para o traseiro revelador.
No entender de Thénardier, a conversa com Marius nem havia
começado. Tivera de recuar, modificar sua estratégia, abandonar uma
posição, mudar a frente de combate; mas nada de essencial fora
comprometido, e já tinha quinhentos francos no bolso. Além disso, tinha
algo de decisivo a dizer, e mesmo contra esse barão Pontmercy, tão bem
informado e tão bem armado, sentia-se forte. Para os homens com a
natureza de Thénardier, todo diálogo é um combate. Neste que ia travar,
qual era sua situação? Não sabia a quem falava, mas sabia do que falava.
Fez rapidamente uma revista interior de suas forças e, depois de dizer:
“Sou Thénardier”, esperou.
Marius ficara pensativo. Enfim, tinha ali Thénardier. O homem que
tanto desejara encontrar estava lá. Poderia, finalmente, fazer honra à
recomendação do coronel Pontmercy. Sentia-se humilhado pelo fato de
que aquele herói devesse alguma coisa a esse bandido, e de que a letra de
câmbio, sacada do fundo do túmulo por seu pai, sobre ele, Marius,
estivesse protestada até aquele dia. Parecia-lhe também, na complexa
situação em que se encontrava seu espírito em presença de Thénardier, que
tinha uma oportunidade de vingar o coronel da infelicidade de ter sido
salvo por um velhaco daqueles. Fosse lá como fosse, estava contente. Ia,
então, libertar desse credor indigno a sombra do coronel, e tinha a
impressão de que tiraria da prisão, por dívidas, a memória de seu pai.
Além desse dever, havia um outro, esclarecer, se fosse possível, a
origem da fortuna de Cosette. A ocasião parecia apresentar-se. Talvez
Thénardier soubesse alguma coisa. Poderia ser útil sondar o homem.
Começou por aí.
Thénardier fizera desaparecer a “nota verdadeira” dentro de seu bolso,
e olhava para Marius com uma afabilidade quase terna.
Marius rompeu o silêncio.
— Thénardier, já lhe disse o seu nome. Agora, quanto ao segredo que
vinha contar-me, quer que lhe diga também? Também tenho minhas
informações. Vai ver que sei mais do que o senhor. Jean Valjean, como o
senhor disse, é assassino e ladrão. Ladrão porque roubou o rico
manufatureiro senhor Madeleine, cuja ruína causou. Assassino porque
matou o agente de polícia Javert.
— Não estou entendendo, senhor barão — disse Thénardier.
— Vou fazer-me entender. Ouça. Havia em um distrito de Pas–de-
Calais, por volta de 1822, um homem que tivera antigas questões com a
justiça e que, sob o nome de senhor Madeleine, reergueu-se e reabilitou-
se. Esse homem transformou-se, com toda a força do termo, em um justo.
Com uma indústria, a fábrica dos vidrilhos pretos, fez a fortuna de uma
cidade inteira. Quanto a sua fortuna pessoal, também a fez, mas de forma
secundária, e até certo ponto pelas circunstâncias. Era o pai que
alimentava os pobres. Fundava hospitais, abria escolas, visitava os
enfermos, dotava as moças, sustentava as viúvas, adotava os órfãos; era
como que um tutor da cidade. Recusou a cruz da Legião de Honra, mas foi
nomeado prefeito. Um forçado liberto conhecia o segredo de uma pena
outrora imputada a esse homem; denunciou-o e conseguiu que o
prendessem, aproveitando-se de sua prisão para vir a Paris e obter a
entrega, pelo banqueiro Laffitte — eu soube desse fato pelo próprio
tesoureiro —, por meio de uma falsa assinatura, de uma soma superior a
meio milhão de francos, pertencente ao senhor Madeleine. O forçado que
roubou o senhor Madeleine foi Jean Valjean. Quanto ao outro fato, o
senhor também não tem nada mais a informar-me. Jean Valjean matou o
agente Javert com um tiro de pistola. Eu, que estou lhe falando, estava
presente.
Thénardier lançou sobre Marius o soberano olhar do homem derrotado
que volta a ter a vitória nas mãos, e que retoma, em um minuto, todo o
terreno que havia perdido. E aquele seu sorriso logo reapareceu; o inferior,
diante do superior, deve ter um triunfo ponderado, e Thénardier limitou-se
a dizer a Marius:
— Senhor barão, vejo que estamos no caminho errado.
E sublinhou a frase girando nos dedos seu molho de berloques.
— Como — replicou Marius — está contestando isso? São os fatos!
— São quimeras. A confiança com a qual o senhor barão me honra
coloca-me no dever de contar-lhe. Acima de tudo, a verdade e a justiça.
Não gosto de ver ninguém ser acusado injustamente. Senhor barão, Jean
Valjean não roubou o senhor Madeleine nem matou Javert.
— Essa é boa! Como assim?
— Há duas razões.
— Quais? Fale.
— Esta é a primeira: não roubou o senhor Madeleine, porque ele
próprio, Jean Valjean, é o senhor Madeleine.
— O que o senhor está me dizendo?
— E esta é a segunda: não assassinou Javert, pois que quem matou
Javert foi Javert.
— O que quer dizer?
— Que Javert se suicidou.
— Prove! Prove! — exclamou Marius fora de si.
Thénardier prosseguiu, escandindo a frase à moda de um alexandrino
antigo:
— O-agente-de-polícia-Javert-foi-encontrado-afogado-debaixo–de-
um-barco-na-Pont-au-Change.
— Então prove!
Thénardier tirou do bolso lateral um grande envelope de papel pardo
que parecia conter folhas dobradas de diversos tamanhos.
— Tenho um dossiê — disse ele com calma.
E acrescentou:
— Senhor barão, em seu interesse, eu quis conhecer Jean Valjean a
fundo. Disse que Jean Valjean e o senhor Madeleine eram o mesmo
homem, e disse que Javert não teve outro assassino senão o próprio Javert,
e quando digo isso é porque tenho provas. Não provas manuscritas, uma
letra pode ser suspeita, complacente, mas provas impressas.
Enquanto falava, Thénardier tirava do envelope dois números de
jornais, amarelados, desbotados e fortemente impregnados de tabaco. Um
desses jornais, rasgado em todas as dobras e caindo em pedaços
quadrados, parecia bem mais antigo do que o outro.
— Dois fatos, duas provas — disse Thénardier. E estendeu a Marius os
dois jornais desdobrados.
O leitor conhece esses dois jornais. O mais antigo, um número do
Drapeau Blanc do dia 25 de julho de 1823, cujo texto já foi visto
anteriormente, estabelecia a identidade do senhor Madeleine e de Jean
Valjean. O outro, um número do Moniteur de 15 de julho de 1832,
constatava o suicídio de Javert, acrescentando que fora o resultado de um
relatório verbal de Javert ao delegado; havendo ficado prisioneiro na
barricada da rua de la Chanvrerie, devia a vida à magnanimidade de um
rebelde que, mantendo-o sob sua pistola, em vez de “queimar-lhe o
cérebro”, disparara para o ar.
Marius leu. Havia ali evidência, data certa, prova irrecusável; aqueles
dois jornais não haviam sido impressos para dar apoio às palavras de
Thénardier. A nota publicada no Moniteur era comunicada oficialmente
pela delegacia de polícia. Marius não podia duvidar. As informações do
tesoureiro eram falsas, e ele próprio enganara-se. Jean Valjean
engrandeceu repentinamente, e saía da névoa. Marius não pôde conter um
grito de satisfação.
— Então, esse infeliz é um homem admirável! Toda essa fortuna
pertencia realmente a ele! É Madeleine, a providência de uma cidade
inteira! É Jean Valjean, o salvador de Javert! É um herói! É um santo!
— Não é um santo, e não é um herói — disse Thénardier. — É um
assassino e um ladrão.
E acrescentou em tom de quem começa a sentir que tem alguma
autoridade:
— Vamos com calma.
Ladrão, assassino, essas palavras que Marius supunha desaparecidas e
que voltavam, caíram sobre ele como um balde de água fria.
— Ainda! — disse ele.
— Sempre — respondeu Thénardier. — Jean Valjean não roubou
Madeleine, mas é um ladrão. Não matou Javert, mas é um assassino.
— O senhor quer falar — tornou Marius — desse miserável roubo de
quarenta anos atrás, expiado, como se depreende dos próprios jornais que
me mostrou, por uma vida inteira de arrependimento, de abnegação e de
virtude?
— Digo assassinato e roubo, senhor barão. E repito que falo de fatos
atuais. O que tenho a revelar-lhe é absolutamente desconhecido. É coisa
inédita. E talvez o senhor encontre aí a origem da fortuna tão habilmente
oferecida por Jean Valjean à senhora baronesa. Digo habilmente, pois,
mediante uma doação dessa natureza, infiltrar-se em uma família
respeitável, partilhando de sua condição e, ao mesmo tempo, ocultar seu
crime, gozar de seu roubo, esconder seu verdadeiro nome e arranjar uma
família para si, não é falta de habilidade.
— Poderia interrompê-lo aqui — observou Marius —, porém continue.
— Senhor barão, vou dizer-lhe tudo, deixando a recompensa por conta
de sua generosidade. Este segredo vale ouro maciço. O senhor vai me
dizer: “Por que não se dirigiu a Jean Valjean?” Por uma razão muito
simples, sei que ele renunciou ao que tinha em seu favor, e acho a
combinação engenhosa; mas ele não tem mais um tostão e mostraria as
mãos vazias e, posto que preciso de algum dinheiro para minha viagem a
Joya, prefiro o senhor, que tem tudo, a ele, que não tem nada. Estou um
pouco cansado, permita-me pegar uma cadeira.
Marius sentou-se e fez-lhe sinal que sentasse.
Thénardier puxou uma cadeira estofada, pegou os dois jornais,
recolocou-os no envelope e murmurou, marcando com a unha o Drapeau
Blanc: “Este aqui, deu-me trabalho consegui-lo”.
Depois, cruzou os braços e recostou-se, atitude própria de pessoas
seguras do que dizem, e então entrou no assunto, de forma grave e
acentuando as palavras:
— Senhor barão, no dia 6 de junho de 1832, aproximadamente há um
ano, no dia da revolta, um homem encontrava-se no Grand Égout de Paris,
do lado em que o esgoto vem encontrar o Sena, entre a ponte de Invalides
e a ponte d’Iéna.
Marius aproximou bruscamente sua cadeira à de Thénardier.
Thénardier reparou naquele movimento e prosseguiu com a lentidão de um
orador que prende seu interlocutor e que sente a palpitação do adversário
ao ouvir suas palavras:
— Esse homem, forçado a esconder-se, por motivos completamente
estranhos à política, adotara o esgoto como domicílio e possuía uma chave
dali. Repito, era dia 6 de junho, por volta das oito da noite. O homem
ouviu barulho no esgoto; muito surpreso, escondeu-se e ficou à espreita.
Era um ruído de passos, andavam no escuro, vinham em sua direção. Coisa
estranha, havia no esgoto outro homem além dele. A grade de saída do
esgoto não ficava longe. O pouco de claridade que vinha dali permitiu-lhe
reconhecer o recém-chegado e ver que o homem trazia alguma coisa às
costas, porque caminhava curvado. O homem que andava curvado era um
antigo forçado, e o que ele trazia às costas era um cadáver. Seria um
flagrante delito de assassinato. Quanto ao roubo, era evidente; não se mata
um homem gratuitamente. O forçado ia jogar o cadáver no rio. Um fato a
ser notado é que, antes de chegar à grade de saída, o tal forçado, que vinha
de longe dentro do esgoto, havia necessariamente passado por um
medonho atoleiro, onde parece que poderia ter deixado o cadáver; mas, já
no dia seguinte, os homens que ali trabalhavam encontrariam o corpo do
assassinado, o que não convinha ao assassino. Ele preferiu atravessar o
atoleiro com seu fardo às costas, e seus esforços devem ter sido enormes;
é impossível arriscar mais completamente a própria vida. Não sei como
ele saiu vivo de lá.
A cadeira de Marius aproximou-se mais um pouco. Thénardier
aproveitou para respirar longamente. E prosseguiu:
— Senhor barão, um esgoto não é o Champ-de-Mars. Ali falta de tudo,
até mesmo espaço. Quando dois homens estão lá dentro, forçosamente
terão de se encontrar. Foi o que aconteceu. O domiciliado e o que estava de
passagem foram forçados a se cumprimentar, mesmo a contragosto. O que
passava disse ao domiciliado: “Está vendo o que tenho nas costas, preciso
sair, e você tem a chave, entregue-a a mim”. O tal forçado era um homem
de uma força extraordinária. Não havia como recusar. No entanto, o que
tinha a chave argumentou, unicamente para ganhar tempo. Examinou o
morto, mas não pôde ver nada, a não ser que era jovem, bem trajado,
parecia rico e desfigurado pelo sangue. Enquanto conversava, conseguiu
um meio de rasgar e arrancar por trás, sem que o assassino percebesse, um
pedaço da roupa do homem assassinado. Prova material do crime, entende;
um meio de recuperar a pista das coisas e de provar o crime ao criminoso.
Depois de guardar no bolso a prova do crime, abriu a grade, fez o homem
sair com o fardo que levava às costas, tornou a fechar a grade e safou-se,
não querendo ver-se envolvido no resto da aventura e, principalmente, não
querendo estar ali quando o assassino lançasse o assassinado no rio. Agora
o senhor entende. O homem que carregava o cadáver era Jean Valjean; o
que tinha a chave é quem lhe fala neste momento; e o pedaço da roupa…
Thénardier concluiu a frase tirando do bolso e segurando, à altura dos
olhos, entre seus indicadores e seus polegares, um pedaço de tecido preto
rasgado, todo coberto de manchas escuras.
Marius levantou-se, pálido, arquejante, olhos fixos no pedaço de pano
preto e, sem dizer uma palavra, nem tirar os olhos daquele trapo, recuou
até a parede, tateando com a mão direita estendida para trás, à procura de
uma chave que se encontrava na fechadura de um armário próximo à
lareira. Encontrou-a, abriu o armário, colocou seu braço lá dentro sem
olhar e sem que suas pupilas espantadas se desviassem daquele pano que
Thénardier mantinha estendido.
Ao mesmo tempo, Thénardier continuava:
— Senhor barão, tenho as mais fortes razões para acreditar que o
jovem assassinado era um opulento estrangeiro portador de uma enorme
soma, atraído para uma cilada por Jean Valjean.
— O jovem era eu, e o casaco está aqui! — bradou Marius,
arremessando ao chão um velho casaco preto todo ensanguentado.
Depois, arrancando o trapo das mãos de Thénardier, agachou-se sobre
o casaco e aproximou da barra rasgada o pedaço arrancado. O trapo
ajustava-se perfeitamente, completando o casaco.
Thénardier ficou petrificado. Pensou o seguinte: “Estou arrasado!”
Marius ergueu-se trêmulo, desesperado, radiante.
Remexeu em seu bolso e caminhou, furioso, em direção a Thénardier,
mostrando-lhe, e quase esfregando-lhe na cara, seu punho cheio de notas
de quinhentos e de mil francos:
— Você é um infame, um mentiroso, um caluniador, um facínora.
Vinha acusar esse homem mas acabou fazendo-lhe justiça; queria perdê-lo
mas o que conseguiu foi glorificá-lo. Você é que é um ladrão! Você é que é
um assassino! Eu o vi, Thénardier Jondrette, naquela espelunca do bulevar
de l’Hôpital. Sei a seu respeito o suficiente para mandá-lo para as galés, e
até para mais longe, se eu quisesse. Tome, aí tem mil francos, seu patife!
E atirou uma nota de mil francos sobre Thénardier.
— Ah! Jondrette Thénardier, vil tratante! Que isso lhe sirva de lição,
seu vendedor de segredos, mercador de mistérios, escavador das trevas,
miserável! Pegue esses quinhentos francos e saia daqui! Waterloo o
protege.
— Waterloo — resmungou Thénardier, embolsando as notas de
quinhentos e de mil francos.
— Sim, assassino! Lá você salvou a vida de um coronel…
— De um general — disse Thénardier, erguendo a cabeça.
— De um coronel! — repetiu Marius com arrebatamento. — Eu não
daria um tostão por um general. E você vem aqui com essas infâmias!
Afirmo que você cometeu todos os crimes. Vá embora! Desapareça! Seja
feliz, é tudo que lhe desejo. Seu monstro! Tome mais três mil francos!
Pegue-os. Parta amanhã mesmo para a América, com sua filha, porque sua
mulher já morreu, abominável mentiroso. Cuidarei de sua partida,
bandido, e nesse momento terá vinte mil francos. Faça com que o
enforquem em outro lugar!
— Senhor barão — respondeu Thénardier, inclinando-se até o chão —,
gratidão eterna.
E Thénardier saiu, sem compreender nada daquilo, estupefato e
encantado com o suave esmagamento sob sacos de ouro, e com aquele raio
fulminando sua cabeça em forma de dinheiro. Fulminado havia ficado,
mas contente também; e teria se aborrecido se tivesse um para-raio contra
esse tipo de descarga.
Terminemos imediatamente com esse homem. Dois dias depois dos
acontecimentos que acabamos de relatar, Thénardier, ajudado por Marius,
partiu para a América com um falso nome e com sua filha Azelma,
munido de uma letra de vinte mil francos, a ser sacada em Nova York. A
miséria moral de Thénardier, o burguês fracassado, era irremediável; ele
foi na América o que havia sido na Europa. O contato de um homem ruim
às vezes é o suficiente para corromper uma boa ação e fazê-la produzir um
mau resultado. Com o dinheiro de Marius, Thénardier tornou-se traficante
da escravos.
Mal Thénardier retirou-se, Marius correu ao jardim, onde Cosette
ainda passeava.
— Cosette! Cosette! Venha, venha depressa! Vamos. Basque, uma
carruagem! Venha, Cosette! Oh! Meu Deus! Foi ele quem salvou-me a
vida! Não percamos um minuto! Coloque seu xale!
Cosette julgou-o louco, e obedeceu.
Ele não respirava, punha a mão sobre o coração para comprimir-lhe os
batimentos. Ia de um lado para o outro a passos largos, beijava Cosette e
dizia:
— Ah! Cosette! Sou um infeliz!
Marius estava transtornado. Começava a entrever nesse Jean Valjean
não se sabe que grande e sombrio vulto. Uma rara virtude se apresentava,
suprema e suave, humilde em sua imensidão. O forçado transfigurava-se
em Cristo. Marius sentia o deslumbramento desse prodígio. Não sabia bem
o que via, mas era algo grandioso.
Em um instante, uma carruagem estava em frente à porta.
Marius ajudou Cosette a subir e entrou.
— Cocheiro — disse ele —, para a rua de l’Homme-Armé, número 7.
A carruagem partiu.
— Oh! Que felicidade! — disse Cosette.—Rua de l’Homme-Armé. Eu
não ousava mais falar-lhe a esse respeito! Vamos visitar o senhor Jean?
— Seu pai, Cosette, seu pai mais do que nunca! Agora adivinho,
Cosette! Você me disse que nunca recebeu a carta que eu lhe mandara por
Gavroche. É porque deve ter caído nas mãos dele. Cosette, ele foi à
barricada para me salvar. Como é de seu feitio ser um anjo, ao passar
salvou outros, salvou Javert! Tirou-me daquele abismo para entregar-me a
você. Carregou-me nas costas por aquele medonho esgoto. Ah! Sou um
monstruoso ingrato. Cosette, depois de ser a sua Providência, ele foi a
minha também. Imagine que havia no esgoto um medonho lamaçal, onde
cem vezes era possível afogar-se, afogar-se em lama, Cosette! E ele o
atravessou comigo. Eu estava desmaiado, não via nem ouvia nada, eu não
podia tomar conhecimento da minha própria aventura. Vamos buscá-lo,
trazê-lo conosco, quer ele queira quer não, e nunca mais sairá da nossa
companhia. Tomara que esteja em casa! Tomara que o encontremos! Vou
passar o resto da minha vida a venerá-lo. É, deve ter sido isso, Cosette. Foi
a ele que Gavroche entregou minha carta. Está tudo explicado. Você
compreende?
Cosette não compreendia uma única palavra.
— Você tem razão — disse-lhe ela.
Enquanto isso, a carruagem rodava.

V. NOITE, APÓS A QUAL VEM O DIA


Ao ouvir baterem à sua porta, Jean Valjean voltou-se.
— Entre — disse ele com uma voz fraca.
A porta foi aberta. Marius e Cosette apareceram.
Cosette entrou precipitadamente no quarto.
Marius ficou parado, de pé e encostado no batente da porta.
— Cosette! — exclamou Jean Valjean, erguendo-se em sua cadeira,
braços abertos e trêmulos, espantado, lívido, sinistro, mas com imensa
alegria no olhar.
Cosette, sufocada de emoção, caiu sobre o peito de Jean Valjean.
— Pai! — disse ela.
— Cosette! É ela! Senhora, é você? Ah! Meu Deus!
E, estreitado nos braços de Cosette, exclamou:
— É você! Você está aqui! Então me perdoa?
Marius, abaixando os olhos para impedir que as lágrimas corressem,
deu um passo e murmurou por entre os lábios convulsivamente contraídos
para abafar os soluços:
— Meu pai!
— Você também me perdoa? — disse Jean Valjean.
Marius não conseguiu encontrar uma só palavra, e Jean Valjean
acrescentou:
— Obrigado!
Cosette tirou o xale e jogou o chapéu sobre a cama.
— Isso me incomoda — disse ela.
E, sentando-se nos joelhos do velho, afastou seus cabelos brancos com
um gesto amável e beijou sua testa.
Jean Valjean deixava-se levar, encantado.
Cosette, que compreendia apenas confusamente o que se passava,
redobrava suas carícias, como se quisesse pagar a dívida de Marius.
Jean Valjean balbuciava:
— Como sou tolo! Pensei que não a veria mais. Imagine, senhor
Pontmercy, que no momento em que entraram eu pensava: “Está tudo
acabado. Ali está o vestidinho dela, sou um homem miserável, nunca mais
verei Cosette!” Eu pensava isso enquanto subiam as escadas. Que idiota!
Vejam como a gente é idiota! É com o que se conta sem o bom Deus. O
bom Deus diz: “Pensa que vão abandoná-lo, seu bobo! Não, não, as coisas
não se passarão assim. Vamos, ali há um pobre homem que precisa de um
anjo!” E o anjo vem; e eu torno a ver minha Cosette, minha pequena
Cosette! Ah! Eu estava muito infeliz!
Ficou um momento sem poder falar, mas então prosseguiu:
— Eu precisava realmente ver Cosette, um pouquinho, de tempos em
tempos. O coração, ele quer um osso para roer. Mas eu bem percebia que
eu era demais ali, e me dava várias razões: “Eles não precisam de você,
fique no seu canto, não temos o direito de nos eternizar”. Oh! Graças a
Deus torno a vê-la! Sabe, Cosette, que seu marido é muito bonito? Ah!
Você está com uma bela gola bordada, perfeita. Gosto desse desenho. Foi
seu marido que o escolheu, não foi? E você também vai precisar de xales
de lã. Senhor Pontmercy, deixe-me chamá-la de você. Não será por muito
tempo.
E Cosette retorquia:
— Que maldade, ter-nos abandonado assim! Por onde andou? Por que
demorou tanto? Antes suas viagens não duravam mais que três ou quatro
dias. Mandei que Nicolette viesse, e sempre respondiam: “Ele está
ausente”. Há quanto tempo voltou? Por que não mandou avisar? Sabe que
está muito mudado? Oh! Que pai danado! Ficou doente e nem soubemos!
Veja, Marius, como está com as mãos frias!
— Então está aí, senhor Pontmercy, então me perdoa! — repetiu Jean
Valjean.
A essas palavras, que Jean Valjean acabava de repetir, tudo o que
estava represado no coração de Marius encontrava uma saída; ele
exclamou:
— Está ouvindo, Cosette? Ele me pede perdão. E você sabe o que ele
me fez, Cosette? Salvou-me a vida! Fez mais do que isso, deu-me você. E
depois de salvar-me, e depois de dar-me você, Cosette, o que fez dele
mesmo? Sacrificou-se. Eis o homem. E a mim, o ingrato, a mim, o
esquecido, a mim, o impiedoso, a mim, o culpado ele diz: “Obrigado”.
Cosette, toda a minha vida passada aos pés desse homem será muito
pouco. Aquela barricada, aquele esgoto, aquela fornalha, aquela cloaca,
tudo aquilo ele atravessou por mim, por você, Cosette! Carregou-me
através de todas as mortes que afastava de mim e que aceitava para ele
mesmo. Esse homem encerra todas as coragens, todas as virtudes, todos os
heroísmos, todas as santidades! Cosette, este homem é um anjo!…
— Psiu! Psiu! — disse bem baixinho Jean Valjean. — Para que dizer
tudo isso?
— Mas o senhor também! — exclamou Marius em uma reprimenda
cheia de veneração. — Por que o senhor não disse nada? Também é sua
culpa. Salva a vida das pessoas e esconde isso delas! Ainda faz pior! Sob
pretexto de se desmascarar, calunia a si mesmo! Isso é atroz!
— Eu disse a verdade — respondeu Jean Valjean.
— Não — replicou Marius —, a verdade é a verdade inteira, e o senhor
não a disse. Por que não disse que era o senhor Madeleine? Por que não
disse que salvou Javert? Eu lhe devia minha vida, por que não disse?
— Porque pensava como o senhor. Achava que o senhor tinha razão. Eu
tinha de afastar-me. Se o senhor soubesse a história do esgoto, teria feito
com que eu ficasse perto de vocês. Então tive de calar-me. Se eu tivesse
falado, teria atrapalhado tudo.
— Atrapalhado o quê? Atrapalhado quem? — replicou Marius. — Está
pensando que vai permanecer aqui? Vamos levá-lo. Oh! Meu Deus!
Quando penso que foi por acaso que eu soube de tudo isso! Vamos levá-lo.
O senhor faz parte de nós mesmos. É o pai de Cosette e meu também. Não
passará nem mais um dia nesta casa horrível. Nem pense que amanhã
ainda estará aqui.
— Amanhã — disse Jean Valjean —, não estarei aqui, mas também
não estarei em sua casa.
— O que quer dizer? — replicou Marius. — Ah! É isso, não
permitiremos mais nenhuma viagem. O senhor não nos deixará mais. O
senhor nos pertence. Não o largaremos.
— Dessa vez é de verdade — acrescentou Cosette. — Temos uma
carruagem lá embaixo. Vou raptá-lo, e se for preciso usarei de força.
E, rindo, fez um gesto de levantar o velho nos braços.
— Seu quarto continua arrumado — prosseguiu ela. — Se soubesse
como o jardim está bonito agora! As azaleias estão indo muito bem lá. As
alamedas estão cobertas com areia de rio, e há também pequenas conchas
cor de violeta. Vai comer meus morangos. Sou eu quem os tem regado. E
nada de senhora, nada de senhor Jean, vivemos em uma república, todo o
mundo se trata por você, não é, Marius? O programa mudou. Se soubesse o
desgosto que eu tive, pai, um pintassilgo tinha feito seu ninho em um
buraco do muro, mas um gato malvado o comeu. Meu pobre pintassilgo,
que colocava a cabeça na janela e olhava para mim. Chorei tanto. Queria
matar aquele gato! Mas agora ninguém chora mais. Todos riem, todos
estão felizes. O senhor vem conosco; como o avô vai ficar contente! Terá
seu canteiro no jardim para cultivar, e veremos se seus morangos serão
melhores que os meus. E também vou fazer tudo o que o senhor quiser,
mas o senhor vai ter de me obedecer.
Jean Valjean a escutava, mas não entendia. Ouvia mais a música de sua
voz do que o sentido de suas palavras. Uma dessas grandes lágrimas, que
são as sombrias pérolas da alma, crescia lentamente em seus olhos. Ele
murmurou:
— A prova de que Deus é bom é que você está aqui.
— Meu pai! — disse Cosette.
Jean Valjean continuou:
— É verdade que seria maravilhoso vivermos juntos! Com as árvores
cheias de passarinhos. Eu passearia com Cosette. Sermos pessoas que
vivem, que se cumprimentam, que se chamam para o jardim, seria uma
delícia. Podermos nos ver já pela manhã. Cultivarmos cada qual seu
canteirinho. Ela me faria comer seus morangos e eu pediria a ela que
colhesse das minhas rosas. Seria encantador, só que…
Ele interrompeu-se e disse docemente:
— É pena.
A lágrima não caiu, voltou para dentro, e Jean Valjean a substituiu por
um sorriso.
Cosette tomou as mãos de seu pai entre as suas.
— Meu Deus! — disse ela. — Suas mãos estão mais frias ainda. O
senhor está doente? Sente alguma coisa?
— Eu? Não — respondeu Jean Valjean —, estou muito bem. Só que…
Ele parou.
— O quê?
— Vou morrer logo.
Cosette e Marius estremeceram.
— Morrer? — exclamou Marius.
— Sim, mas isso não é nada — disse Jean Valjean.
Ele respirou, sorriu e continuou:
— Cosette, você estava falando, continue, fale mais; então seu
pintassilgo morreu? Fale, quero ouvir sua voz!
Marius olhava petrificado para o velho.
Cosette soltou um grito penetrante.
— Pai! Meu pai! O senhor vai viver! Vai sim. Quero que o senhor viva,
está ouvindo?
Jean Valjean levantou a cabeça com adoração em direção a Cosette.
— Oh! Sim! Proíba-me de morrer. Quem sabe? Talvez eu obedeça.
Quando vocês chegaram, eu estava morrendo, mas então cessou, pareceu-
me que eu renascia.
— O senhor é cheio de força e de vida — exclamou Marius. — O
senhor pensa que se pode morrer assim? Teve desgostos, mas não os terá
mais. Sou eu que lhe peço perdão, até mesmo de joelhos! O senhor vai
viver, e viver conosco, e viver muito ainda. Vamos levá-lo conosco. De
agora em diante, somos dois aqui a ter um único pensamento, sua
felicidade!
— Está vendo — tornou Cosette em lágrimas —, Marius está dizendo
que o senhor não vai morrer!
Jean Valjean continuava a sorrir.
— Se vocês me levassem, senhor Pontmercy, isso faria com que
deixasse de ser quem eu sou? Não. Deus pensou como o senhor e eu, e ele
não muda de ideia. É conveniente que eu me vá. A morte é uma boa forma
de arranjar as coisas. Deus sabe melhor do que nós o que nos convém. Que
vocês sejam felizes, que o senhor Pontmercy sempre tenha Cosette, que a
juventude despose a manhã, que haja em torno de vocês, meus filhos,
lilases e rouxinóis, que sua existência seja um belo gramado cheio de sol,
que todos os encantamentos celestes preencham suas almas, e agora, eu,
que não sirvo para nada, que eu morra; é certo que tudo isso está bem.
Vejam, sejamos razoáveis, agora nada mais é possível, sinto perfeitamente
que tudo se acabou. Há uma hora tive um desmaio. Essa noite bebi toda a
água que tinha naquele jarro. Como seu marido é bom, Cosette! Você está
muito melhor com ele.
Um ruído se fez à porta. Era o médico que entrava.
— Bom dia e adeus, doutor — disse Jean Valjean. — Aqui estão
minhas pobres crianças!
Marius acercou-se do médico e dirigiu-lhe esta única palavra:
“Senhor?…”, mas em sua maneira de pronunciá-la havia uma pergunta
completa.
O médico respondeu a pergunta com um olhar expressivo.
— Não é porque certas coisas desagradam — disse Jean Valjean — que
há motivo para sermos injustos com Deus.
Fez-se silêncio. Todos os corações estavam oprimidos.
Jean Valjean voltou-se para Cosette e pôs-se a contemplá-la, como se
quisesse levar sua imagem para a eternidade.
Na profundidade das sombras para onde já havia descido, o êxtase
ainda lhe era possível contemplando Cosette. A luz daquele doce
semblante iluminava seu rosto pálido.
O sepulcro também pode ter o seu deslumbramento.
O médico tomou-lhe o pulso.
— Ah! Era de vocês que ele sentia falta! — murmurou, olhando para
Cosette e Marius.
E, inclinando-se em direção a Marius, acrescentou em voz bem baixa:
— Tarde demais.
Jean Valjean, quase sem deixar de olhar para Cosette, observou Marius
e o médico com serenidade. Ouviram sair de sua boca estas palavras
articuladas com dificuldade:
— Morrer não é nada; horrível é não viver.
De repente, levantou-se. O retornar das forças é às vezes o próprio
sinal da agonia. Caminhou com passos firmes até a parede, afastou Marius
e o médico, que queriam ajudá-lo, tirou do prego o pequeno crucifixo de
cobre que estava pendurado ali, voltou a sentar-se com toda a liberdade de
movimentos, como se estivesse em plena saúde, e disse em voz alta,
colocando o crucifixo em cima da mesa:
— Aqui está o grande mártir.
Então, seu tronco curvou-se, sua cabeça vacilou, como se a embriaguez
do túmulo o acometesse, e suas duas mãos colocadas sobre os joelhos
começaram a raspar com as unhas o tecido de suas calças.
Cosette amparava-o pelas costas, soluçando, e tentava falar com ele,
mas não conseguia.
Distinguiam-se, entre as palavras envoltas naquela saliva lúgubre que
acompanha as lágrimas, frases como estas: “Pai! Não nos deixe. Será
possível que o tenhamos reencontrado só para perdê-lo?”
Poderíamos dizer que a agonia serpenteia. Ela vai e vem, avança em
direção ao sepulcro e retrocede para a vida. Existe um certo apalpar na
ação de morrer.
Após essa meia síncope, Jean Valjean firmou-se, balançou a cabeça
como para sacudir as trevas, e readquiriu quase plenamente a lucidez.
Pegou uma dobra da manga de Cosette e beijou-a.
— Voltou a si, doutor, voltou a si! — bradou Marius.
— Vocês dois são muito bons — disse Jean Valjean. — Vou dizer-lhes
o que me fez sofrer. O que me fez sofrer, senhor Pontmercy, foi ver que
não quiseram tocar naquele dinheiro. Aquele dinheiro realmente pertence
à sua mulher. Vou explicar-lhes tudo, meus filhos; é por isso também que
estou contente em vê-los. O azeviche preto vem da Inglaterra, o branco da
Noruega. Tudo isso está nesse papel aqui, que vocês devem ler. Para os
braceletes, tive a ideia de substituir os fechos de metal soldados por fechos
com encaixes. São mais bonitos, melhores e mais baratos. Podem imaginar
quanto dinheiro é possível ganhar. Assim, a fortuna de Cosette é, de fato,
dela. Estou contando esses detalhes para que fiquem com o espírito
tranquilo.
A zeladora havia subido e espreitava pela porta entreaberta. O médico
a afastou, mas não pôde impedir que, antes de desaparecer, a boa mulher
gritasse ao moribundo:
— O senhor quer um padre?
— Já tenho um — respondeu Jean Valjean.
E, com o dedo, mostrou um ponto acima de sua cabeça, onde parecia
ver alguém.
É provável, efetivamente, que o bispo assistisse àquela agonia.
Cosette carinhosamente colocou um travesseiro sob suas costas.
Jean Valjean prosseguiu:
— Senhor Pontmercy, não tema, eu lhe peço. Os seiscentos mil francos
são de Cosette. Eu terei perdido minha vida se vocês não os aproveitarem.
Conseguimos trabalhar muito bem com os vidrilhos. Rivalizamos com as
chamadas bijuterias de Berlim. Por exemplo, não se pode igualar com os
preços dos vidrilhos pretos da Alemanha. Uma grosa, que contém mil e
duzentas contas muito bem talhadas, custa apenas três francos.
Quando algum ente que nos é muito querido está para morrer,
lançamos um olhar que nele se agarra e que gostaria de retê-lo. Os dois,
mudos de tanta angústia, não sabendo o que dizer à morte, desesperados e
trêmulos, permaneciam de pé e de mãos dadas diante dele.
De instante em instante, Jean Valjean declinava e se aproximava do
sombrio horizonte. Sua respiração tornara-se intermitente, entrecortada
por ruídos. Já lhe custava mover os braços, seus pés haviam perdido todo o
movimento; e, ao mesmo tempo que a miséria dos membros e a fraqueza
do corpo aumentavam, toda a majestade da alma expandia-se acima de sua
fronte. A luminosidade do mundo desconhecido já era visível em suas
pupilas.
Seu rosto empalidecia e mostrava um sorriso. A vida já não estava ali,
mas sim outra coisa. Sua respiração diminuía, seu olhar engrandecia. Era
um cadáver no qual percebiam-se asas.
Fez sinal para Cosette aproximar-se, depois para Marius; era,
evidentemente, o último minuto da última hora; ele começou a falar-lhes
com uma voz tão fraca que parecia vir de longe, e como se entre ele e os
dois já se interpusesse uma muralha.
— Aproxime-se, aproximem-se os dois. Eu os amo muito. Oh! Como é
bom morrer assim! Você também gosta de mim, não é, minha Cosette? Eu
bem sabia que você sempre tinha amizade por este velho homem. Você foi
muito gentil em colocar essa almofada em minhas costas! Vai chorar um
pouco por mim, não vai? Mas não muito. Não quero que você sofra.
Devem se divertir muito, meus filhos. Esqueci de dizer que nas fivelas
sem ponta ganhava-se ainda mais do que em todo o resto. A grosa, de doze
dúzias, ficava em dez francos, e era vendida por sessenta. Era mesmo um
bom negócio. Por isso, não precisa se assustar com os seiscentos mil
francos, senhor Pontmercy. É um dinheiro honesto. Podem ser ricos com
tranquilidade. Devem ter uma carruagem, ir de vez em quando ao teatro,
comprar lindos vestidos de baile, minha Cosette, e também oferecer bons
jantares a seus amigos, e viver muito felizes. Há pouco eu escrevia a
Cosette. Ela vai encontrar minha carta. É para ela que deixo os dois
castiçais que estão sobre a lareira. São de prata, mas para mim era como se
fossem de ouro, de diamantes; convertem as velas que neles colocamos em
círios. Não sei se quem os deu a mim está contente, lá do alto, comigo. Fiz
o que pude! Meus filhos, não esqueçam que sou pobre, mandem enterrar-
me no primeiro canto de terra que aparecer, apenas com uma pedra
marcando o local. Essa é minha vontade. Nada de nomes escritos na pedra.
Se Cosette quiser vir um pouquinho, de vez em quando, isso me fará gosto.
E o senhor também, senhor Pontmercy. Devo lhe confessar que nem
sempre gostei do senhor, pelo que lhe peço perdão. Agora, o senhor e ela,
para mim, é como se fossem uma só pessoa. Sou-lhe muito reconhecido.
Vejo que faz Cosette feliz. Se o senhor soubesse como ela tinha as faces
rosadas, senhor Pontmercy, era minha alegria; quando a via um pouco
pálida, eu ficava triste. Ali na cômoda há uma nota de quinhentos francos;
nem toquei nela. É para os pobres. Cosette, está vendo seu vestidinho ali
na cama? Você o reconhece? Já se passaram dez anos. Como o tempo
passa depressa! Fomos muito felizes, mas acabou-se. Meus filhos, não
chorem, eu não vou para muito longe. Verei vocês de lá! Quando for noite,
basta olhar e verão que sorrio. Cosette, você ainda lembra de
Montfermeil? Você estava no bosque, com muito medo, lembra quando
peguei na alça do balde de água? Foi a primeira vez que toquei em suas
pobres mãozinhas. Estavam tão frias! Ah! Você tinha as mãos vermelhas
naquela época, senhorita, agora elas estão bem branquinhas. E aquela
boneca imensa! Lembra? Você a chamava de Catherine. Você lamentava
não tê-la levado para o convento! Como me fez rir muitas vezes, meu doce
anjo! Quando chovia, você colocava pedaços de palha na enxurrada para
vê-los ir embora. Um dia, dei-lhe uma raquete de vime e uma peteca com
plumas amarelas, verdes e azuis; esqueceu delas? Quando pequena, você
era muito travessa! Gostava de brincar. Colocava cerejas nas orelhas.
Essas são coisas do passado. As florestas pelas quais passei com você, as
árvores sob as quais passeamos, o convento onde nos escondemos, as
brincadeiras, as boas risadas da infância, são sombras. Eu imaginei que
tudo isso me pertencesse. Foi essa minha bobagem. Aqueles Thénardier
foram muito maus, mas é preciso perdoá-los. Cosette, esse é o momento
de dizer o nome de sua mãe, ela se chamava Fantine. Guarde este nome:
Fantine; e coloque-se de joelhos todas as vezes que o pronunciar. Ela
sofreu muito, e a amava muito. Teve de infelicidade tudo o que você tem
de felicidade. Deus é que reparte as coisas. Ele está lá em cima, nos vê a
todos, e sabe o que faz no meio de suas grandes estrelas. Estou partindo,
meus filhos! Amem-se sempre muito. Não há nada melhor que isso no
mundo: amar-se. Lembrem-se algumas vezes do pobre velho que morreu
aqui! Ó minha Cosette, não foi minha culpa não tê-la visto nos últimos
tempos, isso me cortava o coração; eu ia até a esquina, devia causar má
impressão às pessoas que me viam passar, eu parecia um louco, certa vez
saí até sem chapéu. Meus filhos, já não estou vendo claramente, ainda
tinha muitas coisas para dizer, mas não faz mal. Pensem em mim, uma vez
ou outra. Vocês são criaturas abençoadas. Não sei o que eu tenho, estou
vendo uma luz. Cheguem mais perto. Morro feliz. Deixem que eu coloque
minhas mãos sobre essas cabeças tão queridas.
Cosette e Marius caíram de joelhos, amargurados, sufocados em
lágrimas, cada um segurando uma das mãos de Jean Valjean. Essas mãos
augustas não mais se moviam.
Ele tombara para trás, o brilho dos dois castiçais o iluminou; seu rosto
branco estava voltado para o céu, ele deixava Cosette e Marius cobrirem
suas mãos de beijos.
Estava morto.
A noite não tinha estrelas e estava profundamente escura.
Sem dúvida, na escuridão, algum imenso anjo estava de pé, asas
abertas esperando sua alma.

VI. A RELVA ESCONDE E A CHUVA APAGA


Existe, no Cemitério Père-Lachaise, próximo à vala comum, longe do
bairro elegante dessa cidade de sepulcros, longe de todos aqueles túmulos
de fantasia que ostentam, em presença da eternidade, as horríveis modas
da morte, em um canto deserto, junto a um velho muro, sob uma árvore na
qual se entrelaçam trepadeiras, em meio à relva e ao musgo, uma lápide.
Essa lápide não é menos isenta que as outras das lepras do tempo, do
mofo, do líquen e do excremento dos pássaros. A água a torna verde, o ar a
torna escura. Não está próxima de nenhum caminho, e ninguém gosta de ir
àqueles lados, pois o mato está grande e porque rapidamente os pés ficam
molhados. Quando há um pouco de sol, os lagartos passeiam por lá. Ao
redor, há um tremular de loucas hastes de aveia. Na primavera, os pássaros
cantam nos galhos da árvore.
Essa lápide é completamente nua. Ao talhá-la, só pensaram no que
seria essencial ao túmulo, e não houve outro cuidado além de fazê-la
suficientemente longa e estreita para cobrir um homem.
Nenhum nome se lê sobre ela.
A única coisa, e isso já faz muitos anos, que uma mão escreveu sobre
ela, a lápis, são estes quatro versos que, pouco a pouco, foram se tornando
ilegíveis, e hoje, provavelmente, já estão apagados:

Il dort. Quoique que le sort fût pour lui bien étrange,


Il vivait. Il mourut quand il n’eut plus son ange.
La chose simplemente d’elle-même arriva,
Comme la nuit se fait lorsque le jour s’en va.

Ele dorme. Embora a sorte tenha-lhe sido bem estranha,


Ele vivia. Morreu quando não teve mais seu anjo.
A coisa simplesmente veio por ela mesma,
Assim como a noite chega quando o dia se vai.
__________________________
1 Referente à expressão “Il n’y a plus d’huile dans la lampe” [Não há mais óleo na lâmpada],
que se diz a respeito de pessoa sem energia vital, fraca.
2 Referência a William Pitt, estadista inglês, e a Fabrício Ruffo, Príncipe de Castelcicala,
diplomata napolitano.
SOBRE A TRADUTORA

Regina Célia de Oliveira é formada em Ciências Sociais pela


Universidade Estadual de Campinas. Na Aliança Francesa de São Paulo,
aprofundou-se no idioma francês e iniciou sua trajetória rumo à tradução.
Hoje é tradutora juramentada. Amante da leitura, dedica-se à tradução
literária desde 2003, tendo traduzido outros títulos para a Editora Martin
Claret como: Cyrano de Bergerac, A dama das camélias e Manon Lescaut.
Também traduziu pequenas coleções infantojuvenis como Enciclopédia da
Natureza e Vamos salvar o Planeta?, da Editora Girassol Brasil.
© Copyright desta tradução: Editora Martin Claret Ltda., 2007.
Título original francês: Les Misérables (1862). Tradução feita a partir da edição Le Livre de
Poche - Classique (Libraire Générale Française, 1998). Volume I

Direção
MARTIN CLARET

Produção editorial
CAROLINA MARANI LIMA / FLÁVIA P. SILVA

Projeto gráfico e direção de arte


JOSÉ DUARTE T. DE CASTRO

Diagramação
GIOVANA GATTI LEONARDO

Ilustração de capa e guarda


JULIO CARVALHO

Ilustração de miolo
AZ, HISUNNYSKY, LOSW / SHUTTERSTOCK

Tradução e notas
REGINA CÉLIA DE OLIVEIRA

Revisão
GABRIEL F. RODRIGUES

A ORTOGRAFIA DESTE LIVRO SEGUE O ACORDO ORTOGRÁFICO DA LÍNGUA


PORTUGUESA DE 1990, QUE PASSOU A VIGORAR EM 2009.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Hugo, Victor, 1802-1885.


Os miseráveis [livro eletrônico] / Victor Hugo; tradução e notas Regina Célia
de Oliveira. — São Paulo: Martin Claret, 2020.
6.570 Kb; ePub.
Título original: Les misérables. “Tradução feita a partir da edição le livre
depoche-classique – librairie générale”
ISBN: 978-65-86014-04-4
1. Romance francês I. Oliveira, Regina Célia de. II. Título.
20-33755 CDD-843

Índices para catálogo sistemático:


1. Romances: Literatura francesa 843
Cibele Maria Dias – Bibliotecária – CRB-8/9427

EDITORA MARTIN CLARET LTDA.


Rua Alegrete, 62 — Bairro Sumaré — CEP: 01254-010 — São Paulo — SP
Tel.: (11) 3672-8144 — Fax: (11) 3673-7146
www.martinclaret.com.br

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