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De agrotóxicos a atropelamentos: os riscos à

existência do tamanduá-bandeira no Cerrado


bbc.com/portuguese/articles/c2v193lyxd8o

Crédito, Bettina Ávila

Legenda da foto,
O tamanduá-bandeira, cujo nome científico é Myrmecophaga tridactyla, é uma espécie
considerada em risco de extinção

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Author, Leandro Machado
Role, Da BBC News Brasil em São Paulo
Twitter, @machadoleandro
7 março 2023

Não é fácil ser tamanduá-bandeira no Brasil. Ameaçada de extinção na natureza, a espécie


está enfrentando uma série de riscos à sua existência, como desmatamento do Cerrado,
atropelamentos em massa em estradas e rodovias e até casos de intoxicação por um dos
agrotóxicos mais utilizados em plantações de commodities, como soja e milho.

Essa é a constatação de veterinário e biólogos que há anos pesquisam o animal e atuam na


conservação do mamífero, espécie nativa das Américas e um dos símbolos da rica fauna
do Cerrado brasileiro.

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Não há dados oficiais sobre a população atual de tamanduás, mas um relatório da
International Union for Nature Conservation (IUCN) apontou que ela diminuiu em 30%
entre 2003 e 2013 - esse número, último disponível, é apenas uma estimativa por conta
da dificuldade de calcular a quantidade de animais que existem na natureza.

Além do desmatamento do principal habitat, uma das causas apontadas como explicação
dessa queda são os acidentes com veículos em rodovias de Estados como o Mato Grosso
do Sul e Minas Gerais.

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Ou seja, os tamanduás estão sendo atropelados em um ritmo tão acelerado que isso está
atrapalhando a reprodução da espécie.

Entre 2017 e 2020, pesquisadores do projeto Bandeiras e Rodovias, do Instituto de


Conservação de Animais Silvestres (ICAS), monitoraram 14% das rodovias asfaltadas do
Mato Grosso do Sul.

No período, encontraram 761 carcaças de tamanduás. "Mas esse número é bastante


subestimado", aponta Erica Naomi Saito, bióloga e especialista em ecologia de transportes
do projeto.

"Ele só se refere a uma pequena parte das rodovias do Estado e a apenas tamanduás
encontrados na pista ou no entorno. Muitos se arrastam e morrem em outros locais, ou
são comidos por outros animais antes dos pesquisadores chegarem."

O estudo estimou que os acidentes reduzem em 50% a taxa de crescimento da população


da espécie, sendo uma das principais ameaças ao animal no Mato Grosso do Sul.

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Crédito, Bettina Ávila

Legenda da foto,
Os tamanduás-bandeira comem mais de 10 mil formigas por dia

Embora o foco fosse o tamanduá, milhares de carcaças de outros bichos típicos do


Cerrado e do Pantanal foram encontradas nas estradas, como antas, capivaras e onças.

Nos três anos do monitoramento, foram registrados 12,4 mil animais mortos em
acidentes - 40% deles eram de grande porte.

Segundo especialistas em conservação, como em várias regiões do Estado sobreviveram


apenas pequenos fragmentos de vegetação preservada, os animais costumam atravessar
as estradas em busca de comida e outros recursos.

No caso do tamanduá, que se movimenta lentamente, tem hábitos noturnos e enxerga


mal, os acidentes se tornaram constantes.

"Esse é um problema crítico e crônico. E não só para a fauna, mas também para a
segurança nas estradas. Há casos de famílias que morreram em acidentes como esses. É
um problema que afeta direta ou indiretamente cada um de nós que usa as rodovias, que
têm familiares, amigos ou funcionários usando essas estradas e que diariamente estão
expostos ao risco", explica Saito.

Para a bióloga, se políticas públicas não forem implementadas para diminuir o número de
acidentes, a tendência é que a situação fique pior, para humanos e animais.

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"Por causa do agronegócio, o Mato Grosso do Sul está expandindo sua malha viária nos
últimos anos. O que está acontecendo é uma tragédia, para humanos e animais. Todos
temos direito a estradas mais seguras", diz.

Em uma parceria com o governo do MS, o projeto desenvolveu um manual com ideias de
políticas públicas que poderiam diminuir os acidentes nas 142 rodovias estaduais, que
totalizam 13,3 mil quilômetros - 8,5 mil deles ainda não pavimentados.

Entre as propostas estão o cercamento de rodovias próximas de áreas naturais, melhor


sinalização, redutores de velocidade e até "viadutos de fauna" (estruturas com vegetação
quem atravessam por cima das pistas para que os animais tenham por onde passar com
segurança).

A BBC News Brasil procurou o governo do MS na manhã da última sexta-feira para


comentar o assunto, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.

Crédito, Aurélio Gomes/Divulgação

Legenda da foto,
A população de tamanduás-bandeira diminuiu 30% entre 2003 e 2013

Filhotes órfãos

O cenário é parecido no Triângulo Mineiro, oeste de Minas Gerais. A região com 66


municípios, uma das mais ricas do Estado, passou por forte expansão de plantações de
commodities nas últimas décadas.

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A onda de mortes de animais silvestres nas estradas motivou a criação do TamanduASAS,
uma parceria do Instituto Estadual de Florestas de Minas Gerais (IEF) com o Ibama,
universidades, ONGs e empresários.

Nos últimos sete anos, biólogos e veterinários do projeto estão recolhendo e tratando os
filhotes de tamanduá que sobrevivem aos atropelamentos.

Crédito, Bettina Ávila

Legenda da foto,
Os veterinários e biólogos do projeto TamanduASAS resgatam e reabilitam tamanduás
que sobrevivem aos acidentes nas estradas

"A mãe carrega um único filhote nas costas por vários meses. Alguns conseguem escapar
dos acidentes, mas, como eles dependem muito da presença materna nos primeiros meses
de vida, acabam morrendo depois", explica a veterinária Juliana Magnino, analista
ambiental do IEF e uma das coordenadoras do projeto.

Magnino conta que recebe, em média, 16 filhotes órfãos anualmente, 90% deles
envolvidos em acidentes.

Alguns chegam machucados e com menos de um quilo. Um tamanduá-bandeira adulto


pode pesar até 45, e pode chegar a 2,4 metros de comprimento.

A partir daí, os bichos passam por um processo de recuperação e adaptação ao cativeiro,


com exames, mamadeiras e até travesseiros usados como substitutos do colo materno.

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Eles são novamente inseridos na natureza quando já estão autossuficientes, com cerca de
um ano e meio.

Crédito, Bettina Ávila

Legenda da foto,
Depois da recuperação, eles são soltos em Reservas Particular de Patrimônio Natural
(RPPN)

"Nós apanhamos muito até desenvolver um método de recuperação e readaptação à vida


livre na natureza. Foi preciso entender o comportamento deles. O que fazemos é dar uma
segunda chance de vida", diz a veterinária.

Porém, a vida livre de um tamanduá-bandeira é cheia de desafios em uma região ocupada


por fazendas de produção agropecuária.

Depois da recuperação, eles são soltos em Reservas Particular de Patrimônio Natural


(RPPN), que são áreas privadas de preservação do Cerrado, normalmente mantidas por
empresários.

Esses pequenos fragmentos de vegetação nativa são vizinhos de fazendas de produção de


commodities.

E os animais obviamente não respeitam os limites entre propriedades quando estão


procurando alimento - um tamanduá come por volta de 10 mil formigas por dia, além de
milhares de cupins.

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Crédito, Bettina Ávila

Legenda da foto,
Projeto precisou entender o comportamento dos animais

Por alguns meses, os cientistas do TamanduASAS monitoram os tamanduás soltos por


meio de GPS. E isso ajudou a entender outros riscos aos quais a espécie está atualmente
submetida.

"A gente percebeu que alguns dos nossos filhotes depois morriam por diversos problemas,
como doenças típicas de cachorros e gatos, caçados por cães que vivem nas fazendas e até
por afogamento em uma piscina abandonada", explica.

No ano passado, os biólogos do projeto encontraram um tamanduá morto em uma


fazenda de plantação de soja em Uberlândia.

Ao lado do corpo, "havia galões de agrotóxicos vazios que tinham sido descartados
indevidamente", segundo um relato dos pesquisadores publicado pela Abravas
(Associação Brasileira de Veterinários de Animais Selvagens).

No mesmo ano, outro animal monitorado foi encontrado morto na região.

A biópsia constatou que os dois se intoxicaram com organofosforado, um dos agrotóxicos


mais utilizados em lavouras do Brasil.

Ainda não se sabe como os tamanduás se intoxicaram com o pesticida, mas, segundo
Juliana Magnino, eles podem ter comido algo contaminado com o pesticida.

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"Ou eles podem ter aspirado terra contaminada. Quando eles procuram alimentos, fuçam,
cheiram tudo, e acabam ingerindo outras coisas. Eles podem ter ingerido essa terra com
organofosforados", diz.

Para Fábio de Salles Meirelles Filho, presidente da comarca de Minas Gerais da


Associação Brasileira de Produtores de Soja (Aprosoja-MG), a morte dos tamanduás pode
ter sido um acidente.

"O organofosforado não é utilizado para cupins, e sim para lagartos. Eu nunca tinha
ouvido falar de tamanduás morrendo por causa disso. Então, com certeza foi um acidente,
ou um erro no uso do produto", afirma.

Os dois tamanduás, que haviam sido resgatados da estrada e retornado à natureza, se


chamavam Cláudio e Larry.

Crédito, Bettina Ávila

Legenda da foto,
Veterinários e biólogos do projeto TamanduaASAS

Desmatamento do Cerrado

Outro fator apontado como causa do declínio da espécie é o desmatamento do Cerrado,


principal habitat do animal, além de ser considerada a savana mais biodiversa do mundo,
com 14 mil espécies de plantas.

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Com a perda de espaço, vegetação e biodiversidade, o tamanduá tem menos recursos para
se alimentar e se reproduzir. Também há relatos de mortes em queimadas.

Em 2022, o desmatamento do Cerrado cresceu 20% em relação ao ano anterior, segundo


o Sistema de Alerta de Desmatamento do Cerrado, uma ferramenta desenvolvida pelo
Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) em parceria com a Universidade
Federal de Goiás e com o MapBiomas, plataforma que monitora o uso do solo no país.

No total, foram perdidos 815,5 mil hectares de vegetação nativa no ano passado.

De acordo com o MapBiomas, 45,4% do Cerrado já foi destruído para dar lugar à
agropecuária, principalmente o cultivo de soja e milho.

Já Meirelles Filho, da Aprosoja-MG, afirma que o desmatamento ilegal é "combatido e


denunciado" pela entidade. "Nós, como produtores, respeitamos o Código Florestal, que
permite o desmatamento de 50% da área (particular) e a preservação do restante. Se você
abrir mais do que isso você responde criminalmente", diz.

Segundo ele, essas áreas preservadas legalmente em Minas Gerais estão ajudando a
conservar as espécies típicas do Cerrado.

"Temos visto nas nossas fazendas um aumento do número de capivaras, de codornas,


lobos-guarás e tamanduás. Agora, além do atropelamento, um dos maiores problemas
para a fauna é o javali, que se espalhou pelo Brasil e hoje é o predador de várias espécies,
inclusive onças", diz.

Desde os anos 1980, os javalis se tornaram um problema para a biodiversidade, se


reproduzindo rapidamente e invadindo áreas naturais para se alimentar de diversas
espécies - hoje, o javali é único animal cuja caça é permitida no Brasil. Porém, não há
dados científicos robustos sobre como eles afetam a população de tamanduás.

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Crédito, Victor Castro

Legenda da foto,
A veterinária Juliana Magnino com Heather e seu filhote

Boa notícia

Apesar do cenário desanimador, nem todas as notícias são ruins para a população de
tamanduás-bandeira.

No final de dezembro do ano passado, um dos animais resgatados pelo TamanduASAS em


Minas Gerais reapareceu meses depois de ser solta na natureza.

Heather, que ficou órfã depois de sua mãe ser atropelada, chegou ao projeto em julho de
2020. Tinha apenas dois quilos, e poucos meses de vida. Dois anos depois, foi libertada
em uma reserva particular.

"Ela nem estava mais sendo monitorada. Mas um dia ela voltou para a área do projeto, e
estava com um filhote nas costas. Foi nosso primeiro caso de reprodução. É nossa gota de
esperança", diz a veterinária Juliana Magnino.

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Crédito, Bettina Ávila

Legenda da foto,
Heather, que sobreviveu a um acidente, deu à luz a um filhote no ano passado

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