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COF - Caderno de Curso - Aulas 1 A 100 PDF
COF - Caderno de Curso - Aulas 1 A 100 PDF
Caderno de Curso
Volume I
Aulas 1 a 100
Mário Chainho
2
Índice
[Aula 1]
2. Duração do curso
O Curso Online de Filosofia tinha uma duração prevista, inicialmente, de 4 ou 5 anos,
depende da apreciação do professor. Mas são necessários muitos mais anos para poder
acompanhar o trabalho de um filósofo. Quem pratica uma arte sabe que é algo que se entra
para o resto vida ou não se entra realmente. Mesmo quando o aluno supera o mestre, ele sabe
de onde veio e a quem “tudo” deve. Querer confrontar o mestre e “cortar o cordão umbilical”
é coisa de quem não superou os desafios da adolescência e depois tenta lança-los no “lugar”
errado. α1
3. Amizade
Idem velle, idem nolle, este é o conceito de amizade segundo São Tomás de Aquino,
que remete para uma comunidade de valores, mas é também importante ter por amigos
aqueles que rejeitam as mesmas coisas. É fácil formar um grupo só com base no “ódio” ou no
“amor”, mas isso é desbalancear a nossa pessoa, que fica ou demasiado amolecida ou
demasiado presa à acção violenta, ainda que apenas mentalmente. Os amigos são para todas
as ocasiões, e jamais são aqueles que vendem a sua afeição à custa da de abandonarmos
aquilo que é mais próprio em nós. Aristóteles já dizia que a sociedade política só era possível
com base nos grupos unidos pela amizade, que começa por ser um dos pilares da nossa
personalidade. α1
4. Exercício do Necrológio
Fazer o Exercício do Necrológio, com sinceridade, é um sinal da nossa disposição em
entrar na vida intelectual, tal como entendida no Curso Online de Filosofia. Continuar a
refazê-lo continuamente atesta a nossa perseverança em nos mantermos nessa via,
remodelando-a ao longo do tempo. Neste exercício contamos a nossa própria vida, que
supomos ter terminado, como se fosse um amigo a fazê-lo. Relatamos a nossa vida ideal a um
terceiro, que não nos conheceu. Não importa os cargos que pensamos um dia ocupar mas
quem realmente queremos ser. Isto não apenas deve corresponder a uma profunda ambição
pessoal mas a algo que é também louvável aos olhos de terceiros. Sem dúvida que este é um
instrumento poderoso para obtermos uma imagem que nos orienta ao longo da vida –
fornecendo também um critério para julgarmos as nossas acções, sem o qual teremos por juiz
o falatório geral ou um complexo de medos e preconceitos –, desde que não seja visto como
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um mero exercício. Apenas a nossa melhor parte, aquela que se expressa no necrológio, pode
falar com Deus. α1
7. O método da confissão
Agostinho faz-nos chegar ao método da confissão. Contamos para Deus a nossa vida,
mas Ele sabe mais do que nós, então, a nossa sinceridade é recompensada e obtemos um
pouco mais de conhecimento. Isto parece a descrição de uma prática mística a que poucos
poderão aceder, mas na realidade é algo quase impossível de não acontecer. Quando falamos
ou escrevemos sobre algo, usando toda a sinceridade, na sequência vem à nossa consciência
algo que antes não sabíamos, pontos se esclarecem, caminhos se abrem. Muitos vivem
escondidos, mesmo se exibidos publicamente, não tendo um lugar onde se expõem sem
restrições e sem condições, por isso não têm esta experiência tão simples quanto profunda,
sempre nova, revigorante. α1
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8. O obscurantismo moderno
O obscurantismo moderno consiste em repetir os ditames do politicamente correcto
com toda a convicção, ainda que se trate de uma cretinice auto-contraditória. O engajamento
nestas coisas, por vezes motivado apenas por oportunismo, tem frequentemente efeitos
irreversíveis. Toda uma cosmovisão pode ter que ser refeita à volta de um absurdo com o qual
nos comprometemos, e se esse absurdo é compartilhado por muitos – especialmente quando
tem o selo de aprovação da universidade – acaba por passar por senso comum. Quando as
instituições estão corrompidas, querer um diploma desta proveniência não é apenas vaidade
fútil, é já querer fazer parte da corrupção. A aprovação deve vir de quem realmente sabe, dos
verdadeiramente qualificados, e também são estes que podem colocar em causa o nosso
trabalho. α1
[Aula 2]
onde a filosofia pode florescer. Para isso, é necessário ir além da linguagem pública e das
frases feitas, que reflectem um universo de crenças, ideias e percepções que podem nada ter a
ver com o que pretendemos. α2
23. A verdade
A verdade é aquilo que pode ser dito e que é confirmado pela realidade da experiência.
A verdade deve ser buscada na realidade e não na busca em sentenças gerais, que traduzem
sobretudo um afã de crença. A filosofia começou precisamente quando as crenças da antiga
religião grega já não eram suficientes para orientar as pessoas. α2
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que o real tem uma primazia extraordinária, dado que ele é a sede da verdade. Obviamente
que isto é importante para a própria objectividade intelectual (respeitante à moralidade da
investigação da verdade), mas também ajuda a definir o sentido do nosso necrológio, porque
acalma os nossos desejos vãos e fará surgir, gradualmente, as nossas ambições mais
profundas, a nossa vocação, que para alguns é um chamado de Deus, mas também podemos
ver como uma vontade que nos quer nela. α2
[Aula 3]
«Há na vida momentos privilegiados nos quais parece que o universo se ilumina, que
a nossa vida nos revela sua significação, que nós queremos mesmo o destino que nos
coube, como se o tivéssemos escolhido. Depois, o universo volta a fechar-se:
tornamo-nos novamente solitários e miseráveis, já não caminhamos senão tacteando
por um caminho obscuro onde tudo se torna obstáculo aos nossos passos. A
sabedoria consiste em conservar a lembrança desses momentos fugidios, em saber
fazê-los reviver, em fazer deles a trama da nossa existência cotidiana e, por assim
dizer, a morada habitual do nosso espírito».
Todos nós temos uma vida individual e concreta, onde caminhamos como cegos, mas
também temos uma dimensão universal, que se revela quando “o universo parece que se
ilumina”. É a partir desta dimensão que temos de conceber o necrológio [4]. A ideia da morte
faz-nos questionar sobre quem somos face ao Absoluto, quando tivermos a nossa forma
acabada, porque sem ideia da morte não pode haver a noção de chegar a ser. A vida filosófica
também consiste no resgate cotidiano desta universalidade pessoal e não abstracta, onde
conseguimos aceitar profundamente o nosso destino. Isto também nos ajuda a fazer a ponte
entre as regras morais universais e abstractas (o mesmo se aplica às virtudes) e as situações
humanas, sempre concretas e particulares. A mediação é feita pela imaginação, em que o
bom ou o louvável são imaginados na nossa pessoa concreta, ainda que estejamos longe de
poder verbalizar isto.
[Aula 4]
35. Continuação do Exercício do Testemunho
Prossegue Lavelle [33]:
«Não há homem que não tenha conhecido tais momentos, mas ele os esquece
depressa como um sonho frágil, pois ele deixa-se capturar quase imediatamente por
preocupações materiais ou egoístas que ele não consegue atravessar ou ultrapassar,
porque ele pensa reencontrar nelas o solo duro e resistente da realidade. Mas aquilo
que é próprio de uma grande filosofia é reter e reunir esses momentos privilegiados,
mostrar como são janelas abertas para um mundo de luz cujo horizonte é infinito, do
qual todas as partes são solidárias e que está sempre oferecido ao nosso pensamento
e que, sem jamais dissipar as sombras da caverna, nos ensina a reconhecer em cada
uma delas o corpo luminoso do qual ela é a sombra».
Existe uma dialéctica entre aqueles momentos em que todos os dados que captamos
da realidade aparecem-nos como plenos de sentido – unificados de algum modo, em que
desaparece o hiato entre realidade e idealidade –, e o momento seguinte, em que tudo se
fragmenta e a nossa consciência deixa de conseguir unificar o mundo dos factos,
especialmente nas situações opressivas, em que apenas o antagonismo nos parece ser o “solo
duro da realidade”. Nestes momentos de obscurecimento deixamo-nos ali guiar pelo medo e
depois justificamos as nossas escolhas a partir dessa nossa covardia não assumida, dizendo
que abandonamos o mundo ilusório dos sonhos para abraçarmos a dura realidade. Mas toda
a situação é externa e passa, não é nenhum “solo duro” a não ser o que se revela naqueles
momentos especiais em que o “universo se ilumina” mas, como não os conseguimos reter
facilmente, parecem-nos uma coisa fugidia e até ilusória, quando é ali que se encontra tudo o
que nos é mais próprio, íntimo e verdadeiro. Fazer o culto da situação externa – opressiva ou
sedutora – afasta-nos do centro da nossa consciência e, logo, da filosofia, que aqui
entendemos como a busca da unidade do conhecimento na unidade da consciência e vice-
versa. Louis Lavelle ensina-nos aqui como devemos perseverar em nós mesmos, não num
ensimesmamento mas numa abertura para o universal concretizado na nossa pessoa, que
deve ser vista à luz da morte, que nos mostra qual é a nossa verdadeira forma. A morte é aqui
encarada como o fim das transformações, quando já não é possível corrigir mais nada. O
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sempre oportuno Georges Bernanos dizia que “o risco que corremos não é o de morrer mas o
de morrer como imbecis”. α4
[Aula 5]
acabou por ter que apelar para Deus. Apenas retroagindo das palavras às experiências
podemos descobrir estes erros ou manipulações. Descartes apresentou uma análise lógica
para camuflar uma experiência e Kant fez algo idêntico. Por este tipo de razões, as filosofias
modernas estão estruturalmente erradas, ainda que apresentem descobertas de pormenor
geniais, ao passo que Platão e Aristóteles têm filosofias com muitos erros de detalhe mas que
mantêm a sua estrutura intacta. α5
humanos e não cair na tentação de apelar a meras tendências gerais. O próprio historiador é
obrigado a articular dramaticamente as acções e as falas dos personagens, assim como tem de
conceber hipóteses para tapar lacunas nos documentos. α5
de grande perigo, onde as nossas ideias não contam para nada. A partir daqui também
conseguiremos perceber intuitivamente a diferença entre uma crença infundada, que só vale
pela repetição, e uma evidência intuitiva. A realidade é enorme e provoca espanto, thambos,
no dizer de Aristóteles, mas não temos de a temer e sim que nos abrirmos a ela. α5
ideologias de massas. Ele via os movimentos de massas como uma espécie de religiões
substitutivas, mas a analogia que logo lhe parece demasiado forçada, embora a ideia tenha se
tornado influente. α6
de uma comunidade que vive na tensão de uma existência histórica perante Deus. Parecia a
Voegelin ser possível construir uma narrativa da sucessão das ordens no ocidente. A
modernidade é caracterizada pela perda da existência diante de Deus, segundo Voegelin, pelo
que se trata de um modelo de ordem que apenas se pode definir negativamente, e que ele
considera ser derivado das seitas gnósticas. Estas trouxeram um alívio para a vivência dentro
dos novos modelos de ordem (hebraico, grego e cristão), em que a existência era demasiado
incerta e problemática, demasiado exigente e enervante no entender de Eric Voegelin. Não é
possível voltar ao modelo cosmológico, que desapareceu, mas as comunidades heréticas
desenvolvidas dentro do próprio cristianismo conservaram um resíduo da civilização
cosmológica. O gnosticismo apareceu em muitas seitas e o que as unifica não é uma doutrina
mas uma experiência de desordem, de terror-pânico, cuja fé se mostra impotente para
ultrapassar; é a perda da recordação de Deus, o que se agravou quando todo o conteúdo da
revelação transferiu-se para a doutrina. Este desespero leva os indivíduos a procurarem um
discurso final que resolva todos os problemas, com a proclamação de uma ordem total
hipotética, o que aumenta ainda mais o desespero. Daqui surgem “saídas” gnósticas, como o
evasionismo ou a projecção revolucionária de uma ordem total no futuro.
Eric Voegelin acabou por perceber que não existe uma sequência temporal das
ordens. Várias ordens distintas aparecem ao mesmo tempo, e ele acabou por dizer que “a
ordem da História é a História da ordem”, ou seja, a única ordem observável na História
humana é uma sequência de buscas de ordem, o que desmoraliza as pretensões de filosofias
da História como as de Comte ou de Marx. As modernas ideologias de massas surgiram de
duas linhas, uma gnóstica e outra messiânica (que Voegelin chamava de apocalíptica),
sobretudo expressa na reforma protestante na forma tomada por Zwínglio e Calvino na Suíça
e por Cromwell na Inglaterra. Não é ideia de Voegelin, mas hoje sabemos que os movimentos
revolucionários surgiram já com uma origem messiânica, e à medida que foram perdendo
substância cristã, foram adquirindo elementos gnósticos. Vogelin começou por identificar o
elemento gnóstico e no fim da vida percebeu que existia também o elemento messiânico, mas
não deixou claro como as duas coisas se relacionavam. Mais importante que conhecer as
“doutrinas” de Eric Voegelin (ou de Aristóteles ou de qualquer outro grande filósofo), é
conhecer o seu programa de estudos e continuá-lo, naturalmente tendo em conta as hipóteses
por ele levantadas, sabendo que não temos de chegar a nenhum resultado definitivo, porque
a verdade é filha do tempo, como dizia São Tomás de Aquino. α6
b) Falta analisar o salto no ser da revelação islâmica, que também incorpora os saltos
anteriores, ou seja, é uma ordem histórica mas também tem um forte elemento cosmológico
(sem esquecer o padre Zacarias Boutros, que contesta a imutabilidade do texto corânico), e
ela tem um potencial de decompor a civilização ocidental mas também tem uma força
organizativa que falta aos movimentos revolucionários, que acreditam que na transformação
total da ordem da realidade mediante um acto de fé (fé metastática, segundo Voegelin);
32
c) Apesar da abertura para a transcendência ser importante nos saltos no ser, ela só ocorre
porque Deus decide intervir, pelo que falta um estudo dos milagres na História humana.
Voegelin foi influenciado por William James, que diz que sujeito e objecto se auto-constituem
e distinguem no processo de relação, o que coloca entre parênteses a questão da existência
objectiva, e assim fica de fora o problema da intervenção de Deus na História, que não pode
ser resolvido segundo a quaternidade que Voegelin define como Deus, o homem, o mundo e a
sociedade. A metodologia de Eric Voegelin, adoptada das ciências modernas, não permite
estudar o milagre, que é uma confluência de factores heterogéneos inseparáveis – o facto
concreto, por excelência –, ao passo que a ciência só estuda recortes da realidade. α6
[Aula 7]
Em suma, o ser humano não vive num universo físico mas num imenso sistema de
virtualidades, que se efectivam a toda a hora na nossa memória e nas nossas expectativas –
que não determinam a nossa conduta mas delimitam as nossas possibilidades de acção –, ao
passo que as situações físicas só se efectivam rarissimamente, pelo que é o mundo físico que
assume realmente para nós um carácter virtual. α7
linguagem – entendida não apenas no sentido verbal mas como o conjunto do imaginário e
dos seus meios de expressão – mais rica, que nos permite entrar em círculos de existência
cada vez mais complexos e compreende-los. A educação é precisamente o processo de
aquisição progressiva dessa linguagem, entendida em sentido lato. A vida em sociedade atira
as pessoas para certos círculos de experiência para os quais elas não possuem uma linguagem
apropriada, e apesar de viverem aquelas coisas, a sua auto-imagem é bastante limitada, mas
os grandes escritores conseguem ainda assim narrar a experiência na sua complexidade. Daí
que o aprendizado literário deve ser o primeiro numa ordem de estudos. Em especial, temos
de procurar o domínio dos meios expressivos, pegando na linguagem comum, a mesma para
todos, e individualizá-la à medida das nossas experiências e expectativas. α7
«Da poesia portuguesa, você deve ler os seguintes nomes: Camões, Bocage — os
sonetos de Bocage são uma beleza! —, Antero de Quental, Fernando Pessoa, Mário
de Sá-Carneiro — esses são os nomes principais, você tem de ler de qualquer jeito.
Na literatura histórica, Portugal tem grandes historiadores, dois dos quais você tem
de ler de qualquer maneira: Alexandre Herculano e Oliveira Martins — este último é
um homem de uma inteligência histórica fora do comum, a História de Portugal dele
é básica, inclusive para entender o Brasil. Na parte da literatura ficcional, também
tem alguns autores que você não pode pular: Eça de Queirós, Camilo Castelo Branco,
Ferreira de Castro — que inclusive escreveu um belíssimo romance sobre o Brasil,
que se chama A Selva, a melhor coisa que já se escreveu sobre a Amazônia —,
Aquilino Ribeiro, Vergílio Ferreira e Lobo Antunes. Tem muito mais coisa, mas isso é
para você ter uma idéia da riqueza só da literatura de Portugal. O Brasil tem grandes
poetas, alguns dos maiores da humanidade, mas você comece por: Gonçalves Dias,
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Cruz e Sousa, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Jorge de Lima, Murilo
Mendes e Bruno Tolentino — não deixe de ler esses. Desses autores, você procure
ter o máximo de livros de cada um deles. Aí, não é pesquisa bibliográfica, é coleção
de livros para começar a ler já! Na arte da ficção você vai ter que ler: Machado de
Assis, Raul Pompéia — que escreveu um livro só, O Ateneu —, José Lins do Rego,
Graciliano Ramos, Marques Rebelo, José Geraldo Vieira, Herberto Sales — se ler
esses, você vai entender a força da literatura brasileira. Aí já tem leitura para mais de
um ano». α7
[Aula 8]
[Aula 9]
compreensão que tem desses factos, cujas condições só se revelam no curso da própria
experiência. A ilusão do “eu transcendental” começou a formar-se com Descartes, que
buscava na consciência da consciência um ponto de apoio universal onde podia ter uma
certeza absoluta, e embora isto seja uma coisa muito frágil, conduziu a um processo cada vez
mais agudo de auto-divinização. Gurdjieff criou a paródia do “eu observador” a ser
desenvolvido ao lado do “eu cotidiano”, sendo este último tido como ilusório (como outros
“eus”, embora na realidade o mais fictício de todos é o “ eu observador”), o que acabava por
tornar as pessoas totalmente amorais e cínicas, podendo cometer as maiores barbaridades
mas continuando a observar tudo com a maior neutralidade a partir do “eu observador”. α9
«Eu sugeriria que você lesse a introdução do Max Weber ao livro Economia e
Sociedade, onde ele discute as condições da ação, e a obra A Ação Humana, do
Ludwig Von Mises, na parte introdutória, e não nos detalhes de economia. Sugiro
ainda que você estude o livro de Paul Diel, Psicologia da Motivação. O Julián Marías,
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no livro La Estrutura Social, escreveu coisas muito boas sobre a estrutura da ação
humana, e espalhada ao longo da obra dele há muita coisa interessante. O próprio
Ortega y Gasset escreveu sobre isso, ao tratar do problema da escolha. Os livros do
Viktor Frankl podem ser muito importantes nesse estudo. O Lipot Szondi também
tem contribuições importantes. A bibliografia desse assunto é imensa. Com o tempo,
eu procurarei dar mais dicas». α9
[Aula 10]
Os livros de Louis Lavelle são bons para este trabalho – ver em [82] a exemplificação
prática do Exercício de Leitura Lenta com uma passagem deste filósofo – e os de Aristóteles,
sendo um conjunto de notas de aula, só podem ser lidos assim. Os grandes leitores sempre
leram assim, e é pela absorção dos seus antecessores que os escritores e filósofos se
incorporam na tradição. α10
«Há uma experiência inicial, que está implícita em todas as outras, e que dá a cada
uma delas a sua gravidade e a sua profundidade: é a experiência da presença do ser.
Reconhecer essa presença, é reconhecer, no mesmo acto, a participação do eu no
ser».
Esta frase servirá para exemplificar a forma de realizar o Exercício de Leitura Lenta
[81], e também fornecerá alguns exercícios a serem posto em prática mesmo por quem realize
o exercício de leitura com outro livro. A presença do ser – de tudo o que existe – é tida aqui
41
por Lavelle como a experiência fundamental, da qual todas as outras dependem. Primeiro,
faremos um exercício imaginário de tentar suprimir a presença do ser, fecharemos os olhos e
imaginamos que não há nada. Iremos falhar mil vezes, mas vamos tentar e, em cada vez, dar-
nos-emos conta de que algo sempre permanece, nem que seja a nossa respiração. Num
segundo nível, iremos tentar imaginar que nós mesmos não existimos.
[Aula 11]
85. Três tipos de educação
Na actual situação em que vivemos não existem postos relativos ao exercício da vida
intelectual a serem ocupados. Por isso, os alunos devem criar novas funções, novas
identidades públicas e papéis, ou seja, é preciso criar a própria vida intelectual que
praticamente deixou de existir. Mas não basta colocar em prática o currículo da educação
liberal, é necessário ir mais atrás. O primeiro tipo de educação é aquele recebido em casa.
Trata-se de uma educação da personalidade, das emoções, das reacções básicas, dos valores,
etc. Caso esta educação moral tenha falhado, temos de a refazer agora, pois este aglomerado
emocional orienta toda a nossa vida, é a nossa personalidade de base. Existe hoje a tendência
de transferir estas coisas para a escola cada vez mais cedo, mas ainda é um tipo de educação
fundamentalmente dada no seio da família.
A escola é o local onde surge um segundo tipo de educação, a educação social, onde
aprendemos as regras formais válidas para toda a comunidade, e que contrastam com as
regras recebidas em casa, que variam enormemente de família para família. A escola dá a
formação para a cidadania e ela funciona como uma sociedade em miniatura; perde-se o lado
emocional (positivo ou negativo) e fica realçado o lado mecânico das relações. Trata-se de
uma educação essencialmente disciplinar.
No Curso Online de Filosofia é necessário tratar, ao mesmo tempo, dos três tipos de
educação: moral, social e intelectual. É necessário fazermos um exame retroactivo da
formação que recebemos ao nível moral – como ela condiciona as nossas reacções de base e
os nossos valores –, assim como ao nível social – que condiciona a identidade social que
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achamos que temos, assim como nos inculcou um medo de certas ameaças vagas (que foram
colocadas em marcha no nosso imaginário e que realmente nunca chegam a se efectivar). A
educação intelectual apenas deve ser desenvolvida quando estas anteriores forem refeitas.
Aristóteles dizia que o homem maduro era aquele indicado para o estudo da filosofia. Em
[86] temos indicações mais precisas sobre a forma de refazermos a educção moral e a
educação social. α11
[Aula 12]
O ambiente pode ser visto como a circunstância de Ortega y Gasset, mas até onde vai
ela em termos espaciais e temporais? Para uma criança pequena, o ambiente é uma coisa
muito limitada, funcionando os pais como um mapa do ambiente externo, sem os quais ela se
perderia em cada esquina. O adulto não apenas pode percorrer espaços muito maiores do que
a criança como ganha autonomia em relação ao espaço. Essa autonomia também aumenta
em relação a outros domínios, como o da linguagem ou o das relações humanas, que
funcionam como chaves de abertura para outras relações (algo análogo também se dá com
algumas ferramentas, que nos podem abrir o ambiente, como o caso do computador). O
ambiente dá-nos uma série de referências – espaciais, temporais, linguísticas, afectivas,
comportamentais, etc. – mas não determina se as vamos apreender ou não. A educação é o
processo que visa ampliar este quadro de referências e ter maior domínio sobre elas. A
influência do ambiente não é directa, é mediada pela nossa capacidade de aprendizado, caso
contrário todos os alunos da mesma turma iriam aprender por igual. O ambiente funciona de
forma limitadora, dado que não podemos aprender aquilo que não está nele, ainda que de
forma mais ou menos oculta. Há também que ter em conta que o ambiente pode nos estar a
pressionar numa direcção e o nosso “karma familiar” (no sentido em que Szondi falava no
peso que exercem em nós os nossos antepassados) estar a indicar outra. Isto implica
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frequentemente uma escolha, o que significa abandonar algo, que pode ou não continuar a
pressionar desde dentro.
Tudo isto fica hoje bastante deturpado quando as pessoas dão mais importância à
“comunidade científica” do momento (que pode ser composta de idiotas presos num
“provincianismo temporal” e prontos a escravizar quem se deparar com eles) do que à
comunidade dos sábios tomada ao longo de toda a História. Claro que Platão, Aristóteles ou
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Leibniz têm mais autoridade do que um chefe de departamento, mas este tem o poder de
boicotar trabalhos, por exemplo. Um verdadeiro letrado, intelectual ou homem de cultura
tem de tomar por autoridade e como horizonte os maiores sábios de todos os tempos, é
destes que se tem de esperar aprovação. Eles não apresentaram soluções para todos os
problemas (as que apresentaram são quase sempre genéricas), e deles depreendemos um
incitamento implícito: só os podemos presentificar através da leitura, e aí só dirão “sim” ou
“não” às nossas questões, ao mesmo tempo que nos abrem milhares de possibilidades. Nos
sábios há sempre um encorajamento para tentarmos descobrir algo que eles não
conseguiram, sabendo que eles estão perto dos limites intransponíveis da inteligência
humana. Já a comunidade científica actual parece ter, em abstracto, uma ambição desmedida
sobre as potencialidades da inteligência humana, como se esta não fosse deixar um mistério
por resolver, mas na prática está sempre pronta a ostracizar quem se discorde um pouco das
suas crenças. São Tomás de Aquino sugeria que tomássemos os grandes sábios como nossos
juízes permanentes. Se não fizermos isto, não teremos entrado na verdadeira educação
intelectual, que para nós permanecerá um adestramento social. Apenas quando já tivermos
tomado contacto com a máxima medida humana, estabelecida pelos sábios, entenderemos o
que lhe está acima, que é a autoridade divina, a que revela a própria estrutura da realidade,
que está acima de qualquer ideia ou doutrina; que acaba com todas as dúvidas, à luz da qual
tudo ganha translucidez. Mas nada disto se impõe como um poder – a busca de Deus sem
uma verdadeira educação pode levar-nos a confundi-Lo com um poder –, é uma autoridade
para a qual apenas nos podemos abrir se abdicarmos das autoridades sucessivas que fomos
abraçando. α12
Facto concreto não é aquele que é apenas tomado na relação lógica que o expressa
mas é o que tem em conta a totalidade dos acidentes necessários para que ele aconteça. A
ciência moderna faz abstracção destes acidentes e concentra-se apenas na definição lógica.
Naturalmente que alguns acidentes têm que ser tomados em conta para a própria experiência
ser realizada, mas apenas na medida em que se mostrem necessários, e uma vez concluída a
experiência pode ser feita nova abstracção destes, que no máximo ficarão escondidos sob
certos passos do manual de operações do laboratório. A natureza real só pode ser conhecida
em si mesma mediante observação contemplativa, onde aceitamos a totalidade do facto e o
seu mistério. É possível articular o método científico moderno, que obriga a natureza a
revelar certas coisas (algo que potencia bastante as aplicações técnicas) com o anterior
método contemplativo, mas se substituímos um por outro saímos fora da realidade,
estaremos a perder o contacto com a presença total. Não é de estranhar que Kant viesse a
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declarar que todo o conhecimento que temos da natureza resulta da projecção dos nossos
esquemas cognitivos sobre o objecto, que em si permaneceria inalcançável, dado que ele se
coloca precisamente numa posição de não conhecer os entes reais. O ponto de vista do
observador, escolhido por Bacon, conduziu à subjectividade moderna (por via do idealismo
racionalista de Descartes e do subjectivismo radical de Kant), e por isso mais tarde Michel
Foucault ou Thomas Kuhn poderiam dizer que as estruturas das teorias científicas mudam de
repente, sem nenhuma razão, o isto desembocou no desconstrucionismo e na descrença da
existência de uma realidade objectiva. Os paladinos da ciência moderna consideram-na o
templo da objectividade porque ela usa a medição e a matemática, mas nada disto pode
reconstituir o objecto e as medições ainda são feitas pelo ser humano, não é a natureza que se
mede a si mesma. α12
[Aula 13]
90. Lista de exercícios e práticas recomendadas
Até esta aula do curso já foram indicados os seguintes exercícios e indicações práticas:
a) Assistência às aulas [1] – ouvir em directo, ouvir gravação e ler transcrição –, transcrições
das mesmas e notas a respeito. As aulas são o centro pedagógico no início do curso e
gradualmente os alunos entrarão numa fase mais activa, e no final deverão ter obtido a sua
autonomia;
b) Exercício no Necrológio [4], onde obtemos uma imagem, ainda que provisória, do nosso
“eu ideal” que irá orientar os nossos esforços;
c) Exercício do Testemunho [33 e 35], baseado no texto do Louis Lavelle, onde usamos a
recordação dos “momentos privilegiados em que o universo se ilumina” para fazer deles a
“trama da nossa existência cotidiana”;
f) Prática da confissão, tal como exemplificada por Santo Agostinho [6] e Adolphe Tanquerey,
que serve, desde logo, para refazer a nossa educação moral;
g) Leitura lenta de um livro de filosofia [81], onde lemos apenas algumas frases por dia, até
elas se transformarem em instrumentos de percepção para nós;
h) Exercícios da presença do ser [82]: imaginar que nada há; colecção de sons; construção
mental de um quadrado;
j) Exercício da aceitação total da realidade [28]: primeiro imaginamos que tudo o que nos
acontece é responsabilidade nossa, depois fazemos o contrário e imaginar que somos vítimas
inermes dos acontecimentos, e a realidade está na tensão entre estas duas coisas;
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k) Audição de peças de música [84], em busca da continuidade ali expressa, que condensa
uma série de experiências sensoriais e emocionais, que depois podem servir de modelo para
perceber outras harmonias na vida. O livro Sound and Symbol, de Victor Zuckerkandl, pode
nos esclarecer mais sobre a experiência musical;
l) Leituras específicas para compreensão do contexto em que nos inserimos: Marques Rebelo
(correcção do português), Orígenes Lessa e Lima Barreto (ódio ao conhecimento, degradação
moral), Machado de Assis (fenomenologia do auto-engano), François Mauriac, Stendhal,
Balzac, Dostoievsky (romances mostrando o indivíduo contra a sociedade, servindo o
romance também para termos modelos para contar a nossa própria vida e a de outros);
O Exercício da Biblioteca Imaginária não será uma coisa tão exaustiva mas segue um
pouco este esquema. O exercício poderá ser até considerado mesmo como um prelúdio a
entrarmos no estudo efectivo de certos assuntos, porque a partir dele podemos ter uma ideia
do nosso repertório de ignorância. De certa forma, neste exercício simulamos que entramos
na vida intelectual em pleno.
Vamos fazer a lista de todos os livros que (idealmente) iremos ler até ao fim das
nossas vidas. Naturalmente que numa primeira tentativa irão ficar muitos títulos fora,
porque nem teremos conhecimentos deles, e há certas áreas de interesse para as quais ainda
não estamos despertos. Primeiro, temos que definir as áreas de nosso interesse real
existencial, que em princípio não coincidirão com as categorias normais das disciplinas
(geografia, História, literatura, ciência, etc.), mas antes irão decretar a mescla de disciplinas
que teremos de emparelhar para ver certas questões esclarecidas, sempre na medida do
desenvolvimento da nossa alma. Depois de definidas as áreas a estudar, iremos procurar
bibliografias essenciais a respeito, usando também a Internet e a biografia final do livro The
Great Ideas, de Mortimer J. Adler. De seguida, iremos procurar os livros que tratam das
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disciplinas em causa, tirar os nomes dos autores e obras para ir completando a lista, tendo
em conta os pontos conflitivos ou em que uns dão grande importância mas outros ignoram,
porque o coração do problema encontra-se justamente ali. Em termos de filosofia, o
dicionário de José Ferrater Mora é uma ferramenta imprescindível, e ele salienta o abismo
que existe na filosofia entre a tradição continental (fenomenologia, existencialismo, etc.), a
filosofia analítica anglo-saxónica e o marxismo. É precisamente este abismo entre tradições
que se tornaram incomunicáveis entre si que constitui um dos aspectos mais relevantes da
filosofia. α13
[Aula 14]
verdade não fica separada da questão da sinceridade, logo, também não aparece desligada da
realidade. A maior parte das pessoas prefere especular sobre a verdade lógica, mas para esta
existir também é necessário que exista a verdade efectiva, onde a veracidade de facto aparece
articulada com a sinceridade, que nada mais é do que a veracidade da acção actual. Quando
confessamos um acto que fizemos estão presentes duas verdades: não apenas afirmamos
verbalmente uma verdade passada como estamos também praticando uma acção que nos
torna verdadeiros naquele instante.
sabiam certas coisas quando realmente são sabiam, por outro lado, abriam-se inúmeras
perspectivas de investigação da verdade, que podem ser exploradas até hoje.
humanas. Então, o estudo da natureza acabou por não ser uma tentativa de a conhecer em si
mesma mas um velado estudo da própria acção humana relacionada com a natureza. Como
isto não é reconhecido, a natureza passou a ser tomada como algo que já é fundamentalmente
acção humana, e a natureza em si tornou-se num enigma imperscrutável.
Tudo isto permanece oculto porque a nossa classe intelectual, que pretendia substituir
a autoridade da Igreja (e conseguiu-o, em grande parte), queria pousar como racional, isenta
de crenças, mas era composta por maçons, ocultistas, magos, alquimistas, astrólogos, etc.
Além disso, os iluministas adoptaram o culto do progresso, que fica colado ao surgimento da
ciência moderna, mas na realidade é um filho do protestantismo que eles adoptaram. O
Iluminismo deles é, na realidade, um obscurantismo, já que os iluministas esforçaram-se por
apagar todas as pistas das suas acções. Eles criaram uma ciência para usar “dentro de
portas”, e uma segunda ciência para o público em geral, mas que também é marcada por uma
certa dose de ocultismo: os verdadeiros objectos ficam ocultos debaixo da sua matematização
e de um conjunto de medições a respeito. O mundo civilizado está dominado por esta
podridão, e os países periféricos anseiam por ela, mas como não estão realmente não foram
atingidos pelo Iluminismo em profundidade aparecem fenómenos notáveis, como o Gilberto
Freyre ou o Mário Ferreira dos Santos. α14
[Aula 15]
dos baralhos (o que dava baixas recompensas mas penalizações também baixas, enquanto o
outro baralho dava altas recompensas mas penalizações ainda maiores). Os psicólogos dizem
que intervém aqui o “inconsciente adaptativo”, mas isto não vai ao fundo do problema,
porque a psicologia não estuda a relação entre o processo cognitivo e o objecto em causa, ou
seja, não se preocupa com a análise da situação real.
Todos nós já tivemos a experiência de tomarmos decisões “por instinto”, onde não
houve tempo para criar uma representação simbólica. Na realidade, não é o instinto que está
em causa mas o facto do raciocínio da “mão” ser feito com o objecto presente: há uma ligação
lógica que está nos próprios objectos e na sequência dos factos. Por outro lado, o raciocínio
lógico, mental, é feito a posteriori, recomposto na memória e no pensamento. Ele não é mais
certo do que o outro (frequentemente é o oposto), mas parece-nos assim porque foi
inteiramente construído por nós, e confundimos a certeza com o domínio que temos dos
elementos do raciocínio, quando até podemos estar a fugir à situação real. Esta fuga não
acontece no primeiro tipo de raciocínio, que é obrigado a se ater aos dados imediatos da
situação. Do ponto de vista da crítica do conhecimento, o primeiro tipo de raciocínio é muito
mais confiável, mas após quatro séculos de subjectivismo filosófico somos induzidos a confiar
apenas no tipo de raciocínio onde os dados são representados, desprezando ou até negando a
existência do raciocínio em que os dados se apresentam.
Este tipo de raciocínio pouco ou nada pode ser aperfeiçoado, porque já temos em nós
a passividade necessária para aceitar e perceber os factos da realidade tais como estes são. O
que podemos fazer é tentar acalmar o raciocínio construtivo, para que não se sobreponha ao
raciocínio intuitivo e possamos ter uma atitude contemplativa e confiante perante os factos.
Temos de aperfeiçoar a nossa personalidade para que não se deixe enganar pelas formas
culturais hipnóticas e que passe a se vergar à própria autoridade do real tal como
experimentado no imediato. O raciocínio construtivo pode entrar depois como verificação.
Eventualmente até podemos tirar conclusões de outra ordem, mas o verdadeiro saber não é
uma coisa criada pela nossa mente, é percepção da realidade, é uma reacção efectiva de um
sujeito vivente, presente e real, a uma situação presente e real.
A primeira percepção é muda, inexpressável, é algo difícil de fixar por mais certa que
seja. Mas ela não pode errar, porque os factos já vêm com a sua conexão auto-evidente, como
mostram as decisões de um motorista. Quando representamos a situação, através de
símbolos, podemos introduzir uma multidão de erros (lógicos, de denominação, de
54
[Aula 16]
98. A alta cultura vista como um círculo de convivência humana
Em sentido amplo, linguagem é todo o conjunto de signos e significados. Nesta óptica,
o desenvolvimento do ser humano consiste na conquista de círculos cada vez mais amplos da
linguagem, que dão acesso a círculos de convivência pessoal cada vez maiores, abrindo para
novas e mais complexas possibilidades de acção. Num primeiro círculo há a comunicação
com a família, que tenta colmatar as deficiências de comunicação da criança. Esta
dependência vai diminuindo até que, perto da idade adulta, supõe-se que o indivíduo já tenha
adquirido autonomia e se ele não conseguir expressar as suas necessidades nos locais e
momentos convenientes, o problema é dele. Na adolescência torna-se premente a
necessidade de aprovação social, de integração num grupo adoptando a sua linguagem
específica. O adolescente até pode ir bem na escola mas, se a inclusão num grupo falhar, as
coisas podem ser desastrosas para ele. Torna-se também importante nesta fase o
reconhecimento das hierarquias, a apreensão do sistema de leis vigentes (tanto as escritas
como as não declaradas), o que já é uma tarefa enorme e, dado o tamanho do edifício
legislativo, impossível de cumprir (pelo que os cidadãos estão obrigados ao impossível).
Entre os 12 e os 21 anos dá-se a integração na sociedade maior, em que se torna fundamental
a capacidade de previsão do que farão os outros e de como reagirão as pessoas em torno às
55
nossas acções e omissões, algo importante mesmo nos grupos mais marginais. Nesta fase, o
nosso umbigo ocupa o centro das preocupações, nós somos o problema, e mesmo os
problemas objectivos são transmutados em preocupações subjectivas nossas.
A alta cultura é a integração num grupo humano especial. Mathew Arnold definia-a
como aquilo que se criou de melhor ao longo dos tempos. Os criadores de alta cultura
reportam-se frequentemente uns aos outros e nós começamos a fazer parte desse diálogo
quando entendemos não apenas o que eles estão falando mas conhecemos o sistema de inter-
referências ali presente (que em grande parte são estilísticas, por exemplo, frases de um
romance podem ser paráfrases de poemas). A alta cultura exige um aprendizado muito mais
exigente, desde logo porque as personagens não estão mais presentes e não podem nos
orientar e corrigir directamente. Não há uma maneira simples de entrar na “grande
conversação”, sempre faremos confusões monstruosas de início, iremos passar ao lado de
referências implícitas, desconheceremos o quadro histórico / literário / cultural subjacente,
não iremos tomar nota da gravidade dos problemas e teremos quase sempre a tendência de
reduzir tudo aos pequenos problemas que já conhecemos. Por isso, Jorge Luis Borges dizia
que para compreender um único livro é preciso já ter lido muitos. Muitas referências pairam
na nossa cabeça, desconexas, contraditórias e um dia as coisas assentam na compreensão
profunda de algo. Mas os equívocos são preciosos e permitem medir a distância entre os
grupos sociais em que nos inserimos e o grupo onde se dá o diálogo entre os grandes espíritos
de todas as épocas. Aos poucos, iremos perceber que é deste círculo que se originam todos os
códigos, valores, critérios, instrumentos descritivos que regram os outros grupos sociais (e aí
podem se degradar imenso), nada foi invenção da “sociedade”. Devemos ter sempre a
preocupação de rastrear a origem das ideias em circulação ou iremos parar longe do fulcro da
discussão, que até pode já ter sido resolvida há muito tempo mas pairar na cultura de massas
como um enigma.
Ingressar na alta cultura significa que aquilo que foi criado de mais valioso ao longo
dos tempos se tornou para nós num conjunto de possibilidades cognitivas e existenciais
actualizáveis. Repetiremos os experimentos interiores e cognitivos feitos por Homero,
Aristóteles, Shakespeare ou São Tomás de Aquino. Naturalmente que não conseguiremos
realizar aquelas coisas como eles, mas temos que nos apropriar das suas experiências de
alguma forma. Assim iremos saber quem somos realmente, conheceremos as nossas
possibilidades reais e teremos também um vislumbre de onde se encontram os limites
humanos. Podemos assim conhecer os nossos méritos e deméritos e tomar decisões com toda
a firmeza e sinceridade. Os alunos do Curso Online de Filosofia não podem contar com a
existência de uma alta cultura da qual se poderiam beneficiar, dado esta ser actualmente
56
inexistente, antes têm de se fortalecer para ocupar a posição dos farsantes que ocupam
nominalmente os lugares reservados à verdadeira intelectualidade. α16
[Aula 17]
100. Os vários sentidos da palavra “ciência”
As potencialidades do ser humano não se tornam evidentes no estudo das ciências
particulares, como a genética, que apenas vê uma diferença de 3% entre o homem e o
chipanzé. A diferença global aparece apenas na experiência real concreta e não pode ser
separada e medida pelos critérios de uma ciência específica para daí tirar uma conclusão
genérica. Também por isso, a ciência cumpre funções sociais mas não pedagógicas, e ela
também não desenvolve a inteligência, antes a pressupõe. A própria palavra “ciência” já tem
em si um conjunto de significados, que exercem várias funções:
2) Existe a tensão entre o ideal de ciência e a ciência efectivamente existente (há quem negue
este distanciamento, apontando as realizações tecnológicas como prova, mas a tecnologia
funciona na direcção oposta da ciência, não buscando um princípio unificador mas servindo-
se de múltiplos princípios para colocar algo em funcionamento);
3) A ciência vista como o conjunto de conhecimentos acumulados, cada um com o seu nível
de validade;
5) A ciência como autoridade social, que emerge face às massas como a entidade capaz de
separar o verdadeiro do falso;
Estes seis sentidos da palavra “ciência” aparecem compactados quando se fala dela,
pelo que se trata de uma figura de linguagem. A autoridade da ciência deriva deste peso
acumulado, embora cheio de contradições. A alta cultura exige que se perca o temor
reverencial ante as ciências. A alta cultura consiste em adquirir uma orientação dentro do
senso da realidade, algo que a própria actividade científica necessita. α17
«Todo o problema das relações entre os seres humanos consiste em saber passar de
um estado de simpatia ou antipatia naturais, que reinam entre os caracteres, àquele
estado de mediação mútua que permite a cada um deles realizar, por intermédio de
um outro, de um indiferente, de um amigo ou de um inimigo, a sua própria vocação
espiritual».
A simpatia ou antipatia naturais que Lavelle fala aqui de forma compacta são coisas
que se tornam espontâneas em nós mas que podem derivar de vários factores culturais, como
a impregnação de certos padrões de beleza, por exemplo. A atracção ou repulsa naturais são
eminentemente antropofágicas, originam-se em algo que queremos obter do outro, algo
puramente animal, não têm qualquer significado moral. No outro extremo está a amizade
segundo Cristo, que é morrer pelos amigos e, mais modestamente, Léon Bloy salienta o
critério do dinheiro. Podemos, então, conceber o outro como um ente espiritual eterno, como
uma imagem de Deus, cuja figura actual naturalmente está muito afastada do seu real
potencial (algo que as pessoas inteligentes entendem, mas os mais burros acham que todos
serão sempre como eles).
Este “algo mais” que as pessoas são apenas pode ser concebido dentro da alta cultura,
que é aquilo que nos permite ter ideia das possibilidades superiores do ser humano. A
própria alta cultura é condição para existência de uma verdadeira vida religiosa e moral: tem
que existir isto na sociedade, não necessariamente em cada pessoa no mais alto grau, ou
torna-se impossível compreender as situações reais e concretas à luz dos princípios morais
universais e vice-versa. Possuir alta cultura significa possuir um imaginário amplo e
organizado o suficiente para ser sensível ao que está acontecendo, não é ter erudição. Frank
Raymond Leavis insistia que a grande literatura não era destinada à contemplação estética
mas à aquisição de uma linguagem que permite conceber a infinidade de situações morais
humanas.
[Aula 18]
remota é uma verdadeira causa efectiva. As causas remotas podem predispor genericamente
a uma acção mas não determiná-la directamente.
Um exemplo serve para mostrar como estas coisas foram esquecidas na modernidade.
Hyppolite Taine mostrou (Origens da França Contemporânea) que foram as sociedades de
pensamento que criaram o clima social que conduziu à Revolução Francesa, tendo para isso
usado a técnica de entender as acções a partir de como os próprios agentes viam a situação, o
que é a própria definição de História. Durkheim fez uma crítica deste método dizendo que
por baixo das acções existiam factos sociais, impessoais e muito mais decisivos, e criou uma
ciência a partir daí. Mas é evidente que Taine falava de causas próximas e Durkheim veio
desconversar, sem perceber, falando de causas remotas, que nunca poderão forçar a
ocorrência de causas próximas. Mas a moda pegou e quando chega a Ferdinand Braudel já
temos uma História sem personagens, feita apenas com médias estatísticas, regras
institucionais, etc. Acresce que as próprias causas remotas – os factos sociais – não existem
em si mesmos, são criados pela acção humana e só mediante esta podem exercer alguma
influência. A busca de causas estruturais e profundas corre sempre estes riscos. As causas
estruturais, remotas, podem funcionar apenas como factores limitantes, operam mais ou
menos como causas formais e finais, que criam um certo estado de coisas e podem sugerir
certos objectivos, mas nunca são causas eficientes, ou seja, nunca podem determinar a acção,
que está sempre a cargo do agente humano concreto.
[Aula 19]
O primeiro exercício consiste em perguntar o que é conhecer alguma coisa, não para
chegarmos uma resposta teorética mas para obtermos uma descrição da nossa experiência de
conhecer algo em oposição a outra coisa que não conhecemos ou conhecemos mal. Trata-se
de uma descrição para nós mesmos, que não conseguiremos colocar por palavras
inicialmente, mas iremos reflectir inúmeras vezes sobre as experiências de conhecer uma
coisa assim como as de não conhecer uma outra. Podemos fazer isto em relações a pessoas,
máquinas ou livros, por exemplo.
Qual a diferença entre um livro que lemos e gostamos e outro que ainda não lemos?
Obviamente que não podemos descrever esta diferença apenas em termos da quantidade de
informação, porque isso é a própria colocação do problema. Desde logo, há um conjunto de
possibilidades que se abre com o conhecimento que temos a mais sobre a coisa conhecida,
mas também há uma diferença ao nível da afeição. Normalmente não associamos elementos
como intimidade ou proximidade ao conhecimento, mas eles estão presentes, ou seja, as
coisas conhecidas já se incorporaram de alguma forma em nós. São elementos da nossa vida,
tornaram-se valores para nós e também assumimos responsabilidade por eles, isto é,
respondemos por eles de uma forma distinta da que respondemos por coisas desconhecidas.
Basta recordar como certas pessoas se sentem ofendidas quando alguém deprecia uma certa
marca de automóveis, por exemplo.
Algo que faz parte da constelação associada às coisas conhecidas são pontos de
ancoragem, compostos de memórias e evocações, ou seja, a “coisa” a descrever funciona
61
como uma mnemónica. Acrescento ainda mais alguns aspectos que penso ter identificado
depois de ter passado algum tempo a conviver com este exercício. As coisas conhecidas não
são apenas auxiliares de memória, são potenciadores de conhecimento em si, ou seja,
contamos que coisas, pessoas ou livros conhecidos nos possibilitam conhecer algo mais do
que eles mesmos. Os entes conhecidos são também novos pontos de vista, novos
instrumentos de percepção que não temos directamente em nós mas que de alguma forma
passam a ser nossos. As coisas conhecidas obrigam-nos a definir melhor os nossos
horizontes: por um lado, um leque de possibilidade abre-se, que desconhecíamos, mas
também outras se fecham, porque percebemos que são inviáveis. Isto tem como corolário que
as nossas decisões tornam-se mais “automáticas”, no sentido em que estabelecemo uma
fidelidade em relação à coisa conhecida obriga às vezes a dizer um claro “não” ou a um claro
“sim”. As coisas desconhecidas trazem em si algum temor associado, mas também
consciência das nossas limitações actuais e estruturais. As decisões que tomamos em relação
às coisas desconhecidas podem ser bem mais difíceis (ficamos paralisados devido à falta de
elementos para decidir) e teremos em relação a elas uma tendência de fuga, mas elas de
alguma forma continuam a perseguir-nos. Além disso, creio que nunca conhecemos ou
desconhecemos elementos puramente individuais, ou seja, temos sempre a tendência em
generalizar a nossa constelação de reacções para a espécie, embora isto varie muito de ente
para ente. Então, há também um reconhecimento, um contínuo evocar da primeira vez que
conhecemos uma coisa daquela espécie, e penso que isto estará de alguma forma implícito no
elemento de cumplicidade. As coisas conhecidas têm associadas a si a noção de um mundo
que se amplia e que nos torna mais seguros mas também potencialmente mais arrogantes, se
não tivermos atenção ao que desconhecemos. Então, as constelações de reacções sobre o
conhecido e desconhecido de alguma forma mesclam-se: sobre o conhecido paira a “nuvem”
do que ainda não conhecemos, da traição até, e o desconhecido tem uma pequena chama do
que pode se tornar num amigo. α19
Desde logo, torna-se evidente que não tem qualquer sentido a pretensão socialista de
alguém poder administrar o conjunto de interacções que engendram os produtos à nossa
disposição. Marx começa O Capital dizendo que usará a abstracção como instrumento e, por
62
isso, não percebeu que a economia é uma trama inabarcável de relações humanas, que se
entrecruzam e sobrepõem, vindas das mais variadas direcções. E quando percebemos que a
nossa vida depende das acções de milhares de outras pessoas, percebemos que Santo
Agostinho tinha razão em dizer que a base da sociedade humana é o amor ao próximo.
Certamente que os elementos de engodo, mentira, cobiça ou de usurpação existem, mas se
eles fossem dominantes não daria nem para começar o empreendimento mais rudimentar. O
elemento de cooperação supera infinitamente a vontade de lucro e de “tomar vantagem”, tal
como as margens de lucro das empresas não são comparáveis àquilo que os produtos que elas
forneceram trouxeram às pessoas, às vezes até em termos de salvamento de vidas. Quando
alguém diz que a base da economia é a exploração do homem pelo homem apenas revela uma
grave deficiência imaginativa. Nós, pelo contrário, vamos usar a imaginação para tentar
conceber como as coisas chegaram até nós, não esquematicamente mas dramaticamente,
como se fosse um filme. α19
[Aula 20]
Para os antigos, esta era a única experiência que tinham, mas nós olhamos
retrospectivamente para as especulações deles e notamos logo a falta de uma preocupação
caracteristicamente moderna.
A crença inconsciente de que existe um mundo objectivo e que pode ser conhecido por
nós era natural aos antigos (como ainda é para nós na nossa vida corrente). Este é um
pressuposto que identificamos como sendo um dogma – uma afirmação de uma crença que
não pode ser contestada – a partir do momento em que surgiu o “problema crítico” e ainda
mais com o idealismo filosófico, que dirá que a substância das coisas é mental ou espiritual,
não é uma presença material objectiva. O realismo filosófico só aparecerá explicitamente
mais tarde em oposição ao idealismo.
A filosofia coloca alguma coisa, não é apenas um questionamento, e dizemos que isso
é afirmar algo. Contudo, para os gregos antigos era apenas um simples crer (na objectividade
do mundo e da possibilidade de o conhecermos) subjacente a algo que se punha. Ao mesmo
tempo, a tendência natural da razão é a unificação da multiplicidade da experiência, com
vista a obter fórmulas fáceis de guardar e repetir.
A razão humana teve então como que um deslumbramento: sem deixar de apoiar o
realismo, ela vacilou, por assim dizer. Pois o “ser” não representava, no objeto do
conhecimento, tanto a multiplicidade cambiante quanto a unidade imutável? O
conflito da unidade e da multiplicidade surgia no coração mesmo da afirmação
necessária. Acreditou-se dever deixar de lado, sacrificar algo do conteúdo do
conhecimento, uns isto, outros aquilo.
O esforço unificador não era problemático enquanto aplicado a partes do ser, mas
quando se começou a especular sobre o ser, as contradições tornaram-se patentes,
especialmente entre Heráclito, com a sua afirmação da multiplicidade, e Parménides, com a
afirmação do ser imóvel e imutável. Vamos ler os fragmentos destes pré-socráticos que
salientam estes pontos em específico. Mais tarde, Sócrates e Platão vão tentar conciliar estas
duas perspectivas, mas não foi isso que aconteceu logo de seguida a Parménides. Heráclito
era bastante incompreendido e Parménides ridicularizado, o que levou o seu discípulo Zenão
a montar os seus famosos paradoxos para tentar abalar a confiança que as pessoas tinham
nos dados dos sentidos, mas na realidade o que ele conseguiu foi criar um desconforto à
própria razão.
«Aliás, esse escândalo da razão era ainda agravado pela impressão nada edificante
criada pela multiplicação excessiva dos sistemas cosmológicos que solicitavam, nos
sentidos mais diversos, a aprovação do filósofo e do pensador.
Não lhes faltava, decerto, nem engenhosidade nem ousadia. Com igual desdém pelas
tradições e pelas aparências comuns, elas decompunham o mundo para reconstrui-lo
em melhor ordenação. E a diversidade, tanto dos materiais analisados quanto dos
edifícios sintéticos, não deixava de ser desconcertante. De Heráclito a Empédocles,
de Empédocles a Anaxágoras, de Anaxágoras a Lêucipo e a Demócrito, a razão dava
voltas, por assim dizer, ao acaso, sem sentir-se em parte alguma como em morada
permanente. – Para compreender a invasão do pensamento grego, não obstante tão
realista, por uma primeira crise da certeza, é preciso levar em conta, ao mesmo
tempo, todas as circunstâncias. O terreno estava preparado para o cepticismo.»
Para além do drama já aqui explicitado, Joseph Maréchal dá a entender que existe
outro mais profundo, quando fala do desafio que a razão reflectida colocou à razão
espontânea. Esta última remete à experiência das cartas [97], é o raciocínio feito com o
material dado na própria experiência. A razão reflectida já vai usar esquemas para
transportar os dados da experiência e depois manipula-os. É na razão reflectida que
aparecem todos os problemas e oposições, já que no plano da razão espontânea sabemos que
todos deviam ter uma vivência bastante semelhante, como o próprio Heráclito diz, que “os
homens despertos estão todos no mesmo mundo, enquanto os homens adormecidos vão cada
um para o seu mundo”. Todos partiram de uma apreensão única da realidade mas que não se
pode expressar directamente em modo verbal, e a passagem para o mundo da razão reflectida
é muito problemática. Com o surgimento do problema crítico (com Descartes, Kant e outros)
o conhecimento espontâneo foi bastante desvalorizado (ao ponto de algumas pessoas
temerem-no, como se fosse um fantasma ou algo horrível) e a aposta foi quase toda para a
razão reflectida, para o mundo dos “homens adormecidos”, pelo que podemos concluir que a
sucessão de doutrinas filosóficas é uma sucessão de sonhos e só podemos realmente
compreendê-los se baixarmos para o plano da razão espontânea. É isso que Sócrates faz com
o processo de anamnese, pressupondo que por trás de todas as ideias e doutrinas já existe
65
algo que o interlocutor sabe, que é inconsciente para a razão reflectida mas não é
inconsciente em si, é apenas algo que funciona muito rápido e de forma muda mas que pode,
de alguma forma, ser regatado e contemplado. A atenção que dermos à razão espontânea vai
criar a nossa cumplicidade com a realidade. α20
Vivemos numa época bastante fragmentada, onde não apenas temos uma separação
entre a cultura de massas e a alta cultura como temos um senso comum fabricado (apenas
possível com a concentração da comunicação social). Mas a fragmentação e a alienação não
são totais e podemos sempre dar mais atenção à razão espontânea, que é o domínio comum a
todos. Também não vamos negar toda a influência cultural, mas não vamos nos restringir
àquilo que se produz no momento, vamos alargar o nosso campo de referências, não só para
outras culturas mas sobretudo para outras épocas, em busca da “crença comum da
humanidade” e daquilo que de melhor foi feito pelos melhores. Para isso, é bastante
recomendável a frequência com a experiência estética (musical, poética, artística, etc., tudo o
que enriqueça o imaginário) do mais alto nível, assim como o contacto com autêntica
experiência moral (ler sobre a vida dos santos e dos grandes heróis, para ter ideias das
possibilidades humanas superiores), não para analisar mas para contemplar e deixar que
estas coisas se impregnem em nós. Desta forma, podemos integrar a própria cultura de
massas, da qual não recebemos apenas lixo – mas não podemos levar nada a sério do que
aparece nos jornais – mas também benefícios materiais. Claro que isso cria uma tensão com
o nosso meio social, que apenas se resolve quando entendermos que a nossa função é ajudar
as pessoas e não receber delas seja o que for para além daquilo que deriva da própria inserção
nossa na sociedade. α20
[Aula 21]
107. O papel e o funcionamento da imaginação
Podemos ter muitos dados sobre a nossa vida em memória mas estes, só por si, não
compõem uma unidade e nem nos dão uma figura de nós mesmos. Esta figura apenas se
apresenta na nossa imaginação, sem a qual não conseguimos contar a nossa história. Iremos
sofrer mudanças ao longo do tempo sem percebermos, mudaremos de opinião sem nos
darmos conta, não teremos consciência das influências que recebemos nem do impacto que
as experiências tiveram em nós ou de como fomos manipulados desde fora. Em lugar de uma
66
imaginação ligada à realidade, colocamos com frequência no seu lugar uma auto-imagem, a
que nos apegamos e passamos a tomar como realidade e como critério de julgamento. Mas
esta auto-imagem não admite as influências que sofremos, logo, torna-nos mais vulneráveis a
elas.
Desde o início do curso que devemos tentar perceber como somos subtilmente
influenciados, positivamente ou negativamente. Nem todas as influências são directas e uma
das mais perniciosas e talvez a mais decisiva dá-se por meio da supressão de dados, uma
“imposição” dos meios de comunicação de massa. Isso quer dizer que em vez de
considerarmos todo o panorama na avaliação das situações, iremos deixar de ter em conta
factores decisivos e, assim, daremos uma importância desmedida a factores secundários.
Ninguém é imune a isto porque todo o nosso vocabulário veio de fora, normalmente da
família, da sociedade próxima ou da cultura de massas, e para além disso só podemos
complementar e transcender através da contaminação da alta cultura, mas ainda assim
aquilo que daqui obtemos dificilmente será usada na nossa comunicação directa com outras
pessoas, daí a importância da verdadeira amizade. O nosso “eu” não é uma coisa isolada
dentro de nós, é algo que também faz parte da cultura e é dentro do diálogo cultural que
adquirimos uma personalidade. Não que o nosso “eu” seja uma ilusão dentro da cultura, nós
temos uma individualidade autêntica, mas temos muitas ilusões a seu respeito e há todo o
fingimento incorporado à cultura moderna.
Vejamos como funciona a imaginação. Qualquer coisa que vemos, só a vemos por um
lado mas sempre sabemos que o outro também está presente. Será esse outro lado oculto
mera criação nossa, como se supôs no início da filosofia moderna? O idealismo moderno
chegou à conclusão de que tudo aquilo que pensamos saber sobre o mundo exterior é
invenção nossa porque os idealistas partiram do facto de que o ser humano retira um número
ínfimo de informações sensíveis sobre qualquer coisa, pelo que concluíram que o resto é, de
alguma forma, completado pela nossa mente. A observação inicial é correcta mas não a
conclusão. Ora, o nosso olhar não tem apenas uma capacidade de visão bidimensional mas
uma expectativa de tridimensionalidade, que não é uma sua característica independente mas
algo que se ajusta perfeitamente às propriedades dos próprios objectos observados. Essa
expectativa é aquilo que se cumpre na imaginação, ou seja, é a imaginação que complementa
a percepção sensível para ajustá-la à estrutura real dos corpos. A imaginação, quando realiza
esta função, não está a inventar nada, nem sequer está a obedecer às regras do nosso
pensamento, simplesmente ela segue as propriedades reais dos corpos que permitem a sua
existência e presença. Na realidade, é a bidimensionalidade que só é concebível por
abstracção mental, porque sabemos imediatamente que mesmo o objecto mais plano e chato
é ainda tridimensional.
que acontecem no nosso corpo. Podemos isolar isto por via abstracta e dizer que é o mundo
real mas é uma ilusão.
uma forma total que nos aproxime da verdade, mas abortaremos o processo se tivermos por
fim a perfeição quantitativa, fazendo a lista de pecados e procurando a agonia, o remorso e a
angústia como penitência (quando a verdadeira penitência é fazer o bem depois de ter feito o
mal). α21
[Aula 22]
A ciência tornou-se no grande árbitro das discussões públicas mas, ao mesmo tempo,
especializou-se e os seus problemas internos já não são comunicáveis na linguagem geral.
Então, supostamente, um conhecimento incomunicável deve arbitrar as questões de ordem
geral, porém, não se exprime nos termos desse debate público mas nos seus,
incompreensíveis para os demais envolvidos, que assim se encontram, à partida, subtraídos
da discussão por não possuírem uma linguagem apropriada. O rei-filósofo de Platão é
caricaturalmente emulado pelos cientistas ideólogos, que se querem estabelecer como um
novo clero. Sobre o homem comum pesam os seguintes factores: a massa do dinheiro; o
empreendimento científico; e ainda os movimentos revolucionários. Todos pretendem
controlar a Natureza, mas esta contínua caprichosa, indomada, ao passo que o cidadão
comum se encontra dominado pelas elites. Todos estes poderes não conseguem cobrir todo o
terreno, existem áreas em que exercem pouca ou nenhuma influência, e o poder que têm é
sobretudo o de causar uma forte impressão. Não apenas não podemos nos deixar
impressionar com estas coisas, como devemos tentar encontrar os nossos próprios meios de
divulgação e de subsistência, mas para isso temos de nos fortalecer psicologicamente e
70
moralmente. O exercício da vida intelectual exige coragem moral e até física, não podemos
nos deixar impressionar pela academia, pelo establishment ou pela cultura de massas. α22
Eles acham que o fim do universo é o fim de tudo, quando é um “momento” que nada
representa na ordem do ser. O ser apenas pode ser compreendido na dimensão de infinitude
e de eternidade: nada do que aconteceu desacontecerá. Mas estes cientistas tomam a
existência do universo em termos espaço-temporais e absolutizam isto, achando que não
existe mais nada. No cristianismo, a vida mais curta já tem um sentido eterno porque ela já se
encontra dentro da eternidade, não depende daquilo que a humanidade venha a fazer no
futuro, como acham certos cientistas modernos, que acreditam que o futuro poderá criar um
émulo da eternidade.
O universo tem uma ordem total, que engloba um elemento de caos (por isso, a
linguagem necessita de ambiguidades, metáforas, figuras de linguagem) mas também
abrange o facto de o homem compreender aspectos dessa ordem, como o de ela ter vários
níveis. Então, o universo não é totalmente administrável mas também não é incompreensível,
e podemos confiar que a nossa mente é ordenada pela própria ordem do universo. Se nos
amoldarmos a esta ordem, novas parcelas irão revelar-se a nós, na medida das nossas
necessidades, mas se seguirmos a pretensão da ciência moderna (ou de Stephen Hawking) de
fazer uma descrição completa do universo existente (o que pressupõe que já teríamos os
conceitos rigorosos de tudo, quando nem sequer temos um conceito rigoroso de matéria), já
estamos a entrar num universo psicótico. Daqui advém as pretensões de um controlo total,
tudo incompatível com a estrutura da existência humana mas é uma ideia que pode ser
vendida como algo alcançável. A verdadeira relação com a ordem universal tem que ser de
confiança, paciência e modéstia, e fora disto iremos nos alienar nas pseudo-ordens da cultura
contemporânea. α22
71
[Aula 23]
Desde logo, isto faz lembrar o exercício de deitamos no chão à noite, em sítio isolado,
onde sentimos a imensidão do cenário material e a noção da nossa pequena dimensão [53].
Isto pode nos aterrorizar se estivermos acostumados a sermos o centro das coisas, mas já o
salmista tinha mostrado a nossa dimensão: materialmente nada somos, mas temos acesso ao
infinito através de Deus. Sem Deus, o tamanho do universo material fica atemorizante (um
espanto que não provoca o desejo de conhecimento mas um desejo de fuga para a
ignorância). Então, a presença do universo é eliminada, ele surge apenas como um cenário ou
como uma fonte de matéria-prima, sempre algo utilitário. O livro As Seis Doenças do
Espírito Contemporâneo, de Constantin Noica, relata seis defesas contra o senso da presença
do ser.
Luis Cencilho mostrou que faz parte da nossa experiência do ser a capacidade de
apreendermos as experiências do ser que outras pessoas tiveram. Quando Dante, Platão ou
Aristóteles apontam para coisas que eles perceberam, isso abre a possibilidades para outras
pessoas terem acesso às mesmas dimensões do ser, assim como para outras destas derivadas.
Qualquer tribo reúne-se à volta do “pajé” para ouvir histórias e isso já é uma abertura para
novas dimensões do ser. A aquisição de alta cultura deve ser feita de forma a nos abrirmos
para mundos que nunca alcançaríamos apenas pelos nossos próprios meios. A interacção
com outras consciências humanas é um elemento fundamental da experiência da realidade.
α23
Vamos analisar algumas características desta força causal que é a psique. A primeira
das características é que a causa psíquica é marcadamente individual. As relações da psique
com o corpo do agente são bastante desconhecidas, ao ponto de nem sabermos se tem
sentido tentar descobrir onde termina o corpo e começa a psique, é uma coisa que talvez se
possa descobrir no final da investigação. A segunda característica da psique é a sua
historicidade. A causa psíquica remete sempre para algo que aconteceu, há sempre um
aporte do passado, a começar pelos elementos linguísticos. Contudo, o passado não
determina directamente a acção psíquica ou deixaria de haver um sujeito agente. Um terceiro
elemento presente na causa psíquica é a expectativa de futuro, remoto ou imediato. Estes
elementos combinados evidenciam desde logo que só podemos falar de uma causa psíquica
quando a acção ou conduta é atribuída ao sujeito agente e não a algo determinado por outra
causa, e isto releva outro elemento da psique, que é a sua irredutibilidade. A psique é, então,
aquilo que permite que sejamos sujeitos agentes, que sejamos causas originárias. Isto nada
tem a ver com a questão da liberdade e do determinismo metafísicos, que deixa intacta a
pergunta sobre o que é a psique. Em resumo, podemos dizer que as duas características
essenciais da psique são a individualidade e a historicidade (que inclui a expectativa de
futuro), e delas tiramos a irredutibilidade, pelo que deixa de ser necessário considerar o
elemento “liberdade”, que já está dado, mas se for colocado explicitamente levanta toda uma
série de problemas. α24
74
Certamente, existem elementos que nos aparecem como inconscientes, mas devem ser
devidamente examinados. Maurice Pradines diz que existe um inconsciente que nasce
connosco e que desconhecemos, e que há outro inconsciente, composto daquilo que
esquecemos. Contudo, esquecer não significa retirar da memória mas encobrir um símbolo
com outros símbolos (e quando voltamos a olhar para a mesma coisa, aquilo já nos aparece
com outro nome). Ora, este processo de esquecimento é activo, complexo e até criativo. Nada
75
disto são forças inconscientes que nos forçam a agir num certo senti. As únicas forças que
agem sobre nós são as forças naturais, externas e as internas (necessidades corporais).
Impulsos conscientes ou mecanismos inconscientes não têm um poder coercível sobre nós.
Quando o bebé começa a absorver elementos, ele não os toma como objectos
singulares mas como símbolos de uma potência extraordinária, ou seja, os primeiros
elementos que captamos têm uma importância tal que já são símbolos de espécies inteiras.
São estas primeiras experiências (mãe, mamadeira, bola, ursinho, etc.) que vão estruturar
todo o pensamento lógico possível. A elaboração dos elementos dá-se por articulação de
diferentes faculdades – termo técnico escolástico que designa facilidades da psique –, coisas
que ela faz naturalmente e sem precisar de ser ensinada, consistindo a psique precisamente
da execução dessas faculdades. A primeira dessas faculdades é a memória e esta consiste em
ter a experiência de um objecto na sua ausência física depois de termos recebido estímulo da
sua presença. Esta capacidade vem com o corpo, outros animais também a têm, e nem é
propriamente psíquica, é antes um pressuposto da sua actividade, que se inicia quando
começamos a elaborar imagens (que captamos não apenas como imagens singulares físicas
mas também como símbolos) e a combiná-las. A abstracção e a capacidade de atenção estão
envolvidas no mecanismo de combinação de imagens, que criam o nosso mundo imaginário,
que é constituído de entes não necessariamente reais mas possíveis de algum modo, com a
função imediata de concebermos outras experiências. α24
Como a psique pressupõe a convivência humana num mundo real entre seres capazes
de gerar causas, apenas o testemunho confirmado por outros testemunhos é um método
admissível para conhecê-la (além de que não existe ciência alguma que possa dispensar o
testemunho). Mas ainda antes do nosso testemunho ser confirmado por outros, ele já tem
outras pessoas incorporadas como personagens, alguns até como símbolos formativos e
estruturadores da psique. Por exemplo, a mãe simboliza todas as satisfações e frustrações no
início da vida, e sem ela não teríamos psique alguma. É sempre essa mãe (ou alguém que
tenha desempenhado o papel mais aproximado) que se transformou em símbolo que pode
nos incomodar e não tanto aquela que está fisicamente presente. Por isso, o mandamento de
honrar pai e mãe é uma condição básica para a saúde psíquica. α24
76
Nenhuma das estabilizações racionais que elaboramos, por mais reconfortantes que
sejam e que possam nos dar uma sensação de poder e controlo, vai nos proteger
efectivamente contra as complexidades da vida. Mal o indivíduo nasce, ele é totalmente
ignorante mas já pesam sobre ele todas as complexidades da existência. Isto quer dizer que
logo desde a nascença pesa a necessidade de usar a razão como orientação, embora esta
esteja longe de estar desenvolvida. Falta a assimilação dos elementos linguísticos, culturais e
simbólicos necessários para elaborações mais complexas. O ser humano precisa
urgentemente da razão porque tem um mundo instintivo muito pobre comparado com outros
animais. Ele nasce num mundo que imediatamente o trata como um animal dotado de razão,
embora esta só esteja preparada décadas mais tarde. Sempre existe esta desfasagem entre o
homem existencial e o homem racional. O trauma da emergência da razão é o descompasso
entre estas duas coisas; é a diferença entre aquilo que somos obrigados a compreender e
aquilo que efectivamente compreendemos. Trata-se da maior fonte de sofrimento humano,
papel que se atribui erradamente aos instintos. Sempre paira sobre nós esta angústia
existencial, porque as situações pesam em nós como se tivéssemos de ter o domínio total
delas. α24
77
[Aula 25]
121. Análise de texto
A análise de texto só pode ser realmente feita por quem já é um leitor qualificado e
que tenha uma ampla cultura literária. Fora disso, o texto sai “coisificado” e se nos atermos
apenas a ele não captamos as suas nuances e as suas várias camadas de significado. Nenhum
autor consegue escrever tudo o que sabe, mas ele conta que o leitor irá descompactar o texto
por meio de evocações. O bom leitor descompacta não apenas aquilo que foi escrito de forma
condensada mas também algo daquilo que não foi escrito mas que devia estar na cabeça do
autor, e ainda irá aperceber-se das referências culturais implícitas. Mas para além disso, há
ainda a referência ao mundo real e, se não chegarmos até este, não teremos verdadeiramente
lido o texto. Este método de leitura é para se usar sobretudo nas leituras formativas.
Sertillanges definia outros três tipos de leitura: informativa, lúdica e de edificação. Quando
sabemos o que procuramos num livro ou autor não é problema passamos muito tempo só
com uma obra em mãos.
Eric Weil mostra uma competência invulgar na compreensão dos mais diversos
filósofos, porque parte da premissa de que todos eles estão buscando a unidade do ser,
embora não a encontrando mas sempre estão indo nessa direcção. A definição de filosofia
como “busca da unidade do conhecimento na unidade da consciência e vice-versa” vai no
mesmo sentido. A busca da unidade não conduz necessariamente a uma tentativa de
construir um sistema de frases que expresse a estrutura do real, porque isso é impossível. A
única coisa que podemos fazer é nos deixarmos inspirar pelo vislumbre que temos da
unidade do real para daí construirmos a unidade da nossa consciência, não vertida no papel
mas na nossa personalidade, de modo a esta servir, por sua vez, de instrumento
interpretativo.
78
Veremos um exemplo de como deve ser feita a leitura de um texto de Kurt Lewin
(“Algumas diferenças sócio-psicológicas entre os Estados Unidos e a Alemanha”, do livro
Resolvendo Conflitos Sociais):
Grupos pequenos------------
Mãe ------------------
Grupos maiores--------------
Classe-----------------
Comunidade---------
Podemos inicialmente usar uma folha de papel mas com treino até fica mais fácil fazer
uma representação mental, até porque certas formulações tornam-se quase impossíveis de
desenhar. Depois, cruzamos isto com a técnica de ler com a imaginação. “Educação” fará
lembrar-nos do ambiente escolar, mais precisamente, das escolas por onde passamos –
podemos até colocar no esquema lógico, em cima do tracejado, um símbolo (sigla, palavra,
imagem…) ou vários que representem as respectivas evocações das proposições lógicas,
muitas das quais nem sequer teríamos capacidade para as descrever. “Processo social” já
79
envolve a educação dentro convivência em geral, não apenas o processo de aprendizado mas
toda a teia de relações e de convívio com códigos e regras, sejam escritas ou não. Estes são
elementos transversais, que estão presentes em muitos domínios para além da educação, e o
que Lewin está a dizer é que os vários processos de educação ocorrem dentro de um outro
processo. Se continuarmos o “exercício”, outras evocações aparecerão, e podemos imaginar a
leitura de um livro associada à educação, o que extravasa a noção do autor neste texto.
Na educação existe tanto a assimilação como a acomodação, mas Lewin parece estar
preocupado sobretudo com esta última, em conformidade com a sua posição de cientista
social. Na realidade, mais tarde fica nítido, ao ler o livro, a sua posição como engenheiro
social, mas temos que fazer este trabalho evocativo para nos darmos conta disto e perceber o
foco específico dele, que deixa muitos aspectos da educação de fora (e que depois acabaram
realmente por ficar de fora da educação oficial). Mais adiante ele diz que não podemos
entender o tipo de educação, visto como um processo em que um grupo passa a outro certos
traços comportamentais, olhando apenas para as ideias e princípios pedagógicos do primeiro
grupo, sendo também necessário conhecer sociologicamente o grupo, os seus hábitos,
valores, sentido de responsabilidades, etc. Para entendermos isto, vamos recordar aquilo que
os professores nos tentavam passar e que não tinha especificamente a ver com a matéria ou
com aspectos pedagógicos. Basta pensar no tipo de escola, nas suas tradições ou ausências
delas, e como isso dá um carácter distinto à educação ali ministrada. α25
O discurso lógico pode ser usado contra a percepção, e pode mesmo chegar a uma
conclusão imbatível mas que pode estar totalmente desligado do assunto em discussão. A
redução da experiência ao nível do discurso cria a omnipotência do discurso inventado.
Nenhum discurso pode captar a realidade, no máximo será apenas um possível símbolo
desta, mas se acreditarmos que o discurso reflecte a realidade na sua totalidade, então,
podemos dispensa-la. Restará o discurso e este não oporá a mesma resistência que a
realidade. Será possível dizer qualquer coisa, mesmo que não corresponda a algo real ou
sequer pensável, e este vício dá um senso de omnipotência.
cognitiva o individuo já não percebe mais o seu fingimento e acredita que está dizendo as
coisas como as vê. Os cépticos de hoje são quase todos charlatões, fingem confundir realidade
com discurso para defender certas posições que sabem ser fracas. Não é uma coisa altamente
estruturada e engenhosa como a paralaxe cognitiva, que necessita até de um certo génio para
se efectivar. α25
[Aula 26]
Aquilo que é apreendido apenas pela lógica verbal não passa de uma forma vazia, mas
depois conseguimos raciocinar a partir deste material achando que nos referimos à realidade,
quando apenas estamos a navegar no mundo das relações possíveis. Não podemos conhecer o
possível por experiência, porque aquilo que entra na experiência entra também na realidade e
já não é mais possível. Apenas uma parte ínfima da presença do ser chega-nos à experiência,
e a razão é o que nos permite conhecer o restante por especulação, através de uma
estruturação do possível. Podemos até especular sobre o lugar que as partes que conhecemos
têm numa totalidade possível, ou seja, a especulação do possível dá-nos uma medida – exacta
ou não – do lugar que o nosso conhecimento obtido por experiência tem no conjunto. A
imagem que temos do mundo é sobretudo uma estrutura de possibilidades, que demarca o
nosso horizonte de consciência (reflectida). Isto orienta quase toda a nossa conduta, ao ponto
de podermos rejeitar certos factos como irreais porque não se adaptam ao nosso esquema de
possibilidades, quando a única coisa que nos dá a realidade é o mundo das sensações e das
imagens oníricas. A lógica é a unidade do nosso pensamento e não a unidade das coisas.
Então, a medida do nosso conhecimento pode ser bastante errada. A ponte entre a
esquemática lógica e o mundo das sensações e da imaginação é feita pela própria imaginação,
ou seja, o senso da realidade depende da própria actividade imaginativa onírica. α26
[Aula 27]
82
«Todas essas coisas as mais universais são, no seu todo, as mais difíceis para os
homens conhecerem, pois elas são as que estão mais afastadas dos sentidos».
Por outro lado, sabemos também por Aristóteles que junto à forma sensível vem a
forma inteligível, o quid, que irá dar, por sua vez, o conceito universal. Aqui está um
problema que Aristóteles não resolveu e que se pode enunciar assim: tudo o que existe, existe
como individualidade e não como existência colectiva, por outro lado, só existe conhecimento
ao nível do universal. Existe aqui não tanto uma contradição mas uma tensão entre o modo
de ser – sempre individual – e o modo de conhecer, que é sempre geral. A percepção da
forma inteligível é feita pela inteligência mas segue imediatamente os sentidos. Contudo, em
termos de validade do conhecimento, a simples percepção não pode, por si mesma, servir de
premissa a um raciocínio lógico. Ela tem que ser convertida numa forma verbal afirmativa
que segue a forma sensível, e não é fácil mostrar como uma coisa tão descontínua como os
sentidos pode conduzir aos conceitos universais. Os conceitos universais possuem
continuidade, mas nós só percebemos coisas descontínuas, algo onde existe um contraste.
David Hume achava que era impossível conhecer a unidade do real – assim como a
unidade da nossa pessoa – ou sequer saber se ela existe ou não. Apenas por hábito
acreditaríamos nesta unidade. Mas, sendo assim, não se percebe como um “eu” sem unidade
pode adquirir um hábito, muito menos toda uma comunidade. Para Kant, não percebemos a
unidade do real, o que existe é um esquema pré-existente na mente humana – as formas a
priori funcionando de maneira inconsciente – que opera sobre os dados fragmentários do
mundo sensível e lhes dá uma forma unitária, que eles em si não têm. Se assim fosse, nunca
saberíamos se essa unidade é real ou não. Então, Kant repara que todos os homens fazem
uma criação idêntica, o que dá ao processo uma certa validade embora não veracidade:
podemos estar todos enganados em conjunto, como dizem os cépticos. A academia assumiu
este pressuposto kantiano e trocou a veracidade pelo consenso e, assim, o mundo real
objectivo ficou entre parênteses. Outros tentaram encontrar refúgio na ciência, dizendo que
se pode apenas admitir como conhecimento aquilo que é descrito pelas ciências, mas
acrescentam que o ser humano não pode dizer nada de objectivo, tudo o que ele diz apenas
expressa o funcionamento do seu próprio cérebro. Ou seja, pretende-se que homens que são
83
Não podemos confundir a unidade do real concreto, onde existimos, com a unidade
abstracta de um “todo” tomado como objecto de teoria. Fazer teorias é algo que acontece
dentro do todo e não acima e fora dele, pelo que o “todo” abstracto, como o das ciências, só
abrange uma parte e/ou aspecto da totalidade concreta, delimitado pelas necessidades
internas do método e não pela natureza objectiva das coisas, então, é apenas mais um jogo
intersubjectivo entre outros. Mas a ciência não apenas é incapaz de descrever o todo, ela nem
sequer pode descrever um único facto concreto, que é aquele que engloba não apenas a
essência abstracta que o define – que já transcende a definição operacional da ciência – mas
também a totalidade dos acidentes necessários para ele se ter produzido. Qualquer pessoa
pode se abrir para o facto concreto e para a infinidade de acidentes que concorrem para ele,
embora não possamos prestar atenção a todos mas sabemos sempre que eles estão ali. Para
as ciências incluírem isto, teriam de ter alcançado o infinito quantitativo em acto, quando é
algo que só pode ser apreendido em potência. α27
[Aula 28]
128. O exemplo da melhor educação medieval (a inveja dos anjos)
O melhor estudo sociológico consiste na observação que fazemos de nós mesmos a
respeito de uma série de obstáculos interiores que dificultam o aprendizado e que também se
84
encontram presentes em toda a sociedade. Comparemos a nossa situação actual com o que
existia há dez séculos. O florescimento intelectual europeu dos séculos XII e XIII foi uma
coisa fora de comum, com génios como Hugo de São Vítor, São Tomás de Aquino ou Duns
Scot, coincidindo com o tempo das catedrais, construções que de alguma forma sintetizam
todas as outras artes. Tudo isto derivou de um longo processo educacional iniciado no século
IX nas escolas monacais e catedrais, que deixou poucos registos e até recentemente parecia,
por isso, ter sido um período estéril. Acontece que o ensinamento nesta altura não tinha a
preocupação de produzir obras mas pessoas com uma série de virtudes, no sentido de terem
efectivamente poderes a mais. Os documentos mostram o profundo respeito que alunos e
professores tinham uns pelos outros. Afinal, o florescimento dos séculos XII e XIII foi um
testemunho de um apogeu que já tinha passado.
A educação antiga tinha tanto modelos profanos como sacros. Já aqui se admiravam
os grandes oradores greco-romanos, como Cícero, onde a expressão encontra sempre a justa
medida. Hoje perdeu-se o senso da propriedade vocabular e na ausência da palavra certa
tenta-se compensar aumentando a ênfase, o que acaba por provocar um efeito cómico ou,
85
então, mostra um indignação muito desproporcional à ofensa. Devemos ter atenção ao nosso
tom de voz e perceber o que ele está transmitindo, verificar se não estamos a ser enfáticos
apenas para disfarçar uma incerteza profunda. Não há qualquer problema em dizer “não sei”,
porque só dizendo muitas vezes isso, um dia poderemos dizer “sei” com toda a propriedade.
Claro que muitas vezes dizemos “não sei” e isso é também um fingimento, porque até
sabemos mas não queremos assumir a responsabilidade inerente ao conhecimento.
Nos modelos sacros, temos aqueles que deram o exemplo de sacrificar a vida em
nome da verdade, como aconteceu com Cristo e com o próprio Sócrates. Sem este tipo de
exemplos, não entenderemos que a verdade é uma questão mortalmente séria, não é a busca
vazia de abstracções. α28
[Aula 29]
129. A cultura superior como processo de desaculturação
A cultura superior, em qualquer país, é composta por umas poucas centenas de
pessoas, em que apenas cinco ou seis são grandes inteligências criativas. Os indivíduos
restantes deste círculo são os que conseguem acompanhar a produção dos primeiros e, por
sua vez, repassar isto para outros círculos, até, eventualmente, toda a sociedade ser
abrangida. Contudo, pessoas como Mário Ferreira dos Santos ou Gilberto Freyre, ao invés de
terem sido vistos como tesouros nacionais, foram escondidos debaixo de várias camadas de
silêncio (por desdém ou hostilidade invejosa), o que impediu que o papel vitamínico que eles
podiam ter desempenhado se efectivasse. Quanto mais desprovido de alta cultura é um meio,
mais ele fica refém da aprovação colectiva, e quando as pessoas não têm um critério de
sanidade para se julgarem a si mesmas, passam a usar a o critério da maioria. Ora, essa
maioria nunca descobriu nada ou fez algo de notável, foram sempre indivíduos a terem esse
papel, habitualmente hostilizados pela maioria, embora nem sempre.
A cultura moderna está hipnotizada pela ideia de progresso, que diz que as teorias
antigas foram superadas (ou passaram a ser vistas como mitos e lendas), tendo sido
substituídas pelas verdades modernas. Apesar de a imaginação humana ser bastante plástica,
quando a ideia de progresso se impregna no ensino e na cultura geral, os elementos antigos
dificilmente entram no nosso mundo imaginativo. Se Aristóteles ou os escolásticos falavam
que a pedra cai no chão devido ao seu desejo de repouso, que ela encontra realizado junto a
uma massa maior, essa ideia parece-nos estranha depois de estarmos habituados à descrição
de Newton da queda dos graves. Na realidade, a descrição da queda e toda a matematização
envolvida deixa intocada a pergunta do porquê dessa queda ocorrer: o porquê foi trocado por
um como. Não há uma descrição matemática de causa, que é um conceito de ordem
metafísica, que supõe uma visão integral da estrutura da realidade e uma hierarquia de
factores. Em geral, as pessoas nem sequer percebem de que se tratam de dois enfoques
diferentes (o de Aristóteles e o de Newton), presumindo que a formulação mais antiga
simplesmente foi ultrapassada. No máximo, quando há a percepção da mudança de enfoque,
tenta-se compreender o antigo ponto de vista pressupondo que se trata de uma coisa ingénua
ou mesmo de alguma forma de loucura (e a própria noção moderna de ciência admite a
contínua instauração de novos padrões de normalidade, pelo que isso conduz a uma História
do hospício).
Tudo aquilo que não é matematizável passou a ser considerado como fazendo apenas
parte do mundo imaginário, dos produtos culturais, mas esta classificação já é, em si, uma
imagem mítica. A própria Teoria do Caos mostra que muita coisa pode ser matematizável,
que antes se considerava impensável de o ser, o que mostra que a divisão estrita entre o
matematizável e não matematizável não faz sentido e, ela sim, é um produto cultural pronto a
se dissolver com o avanço da matemática. Einstein nunca conseguiu responder à pergunta do
porquê da matemática se aplicar tão bem ao universo estudado pela física, quando,
simplesmente, isso ocorre porque a física só estuda aquelas partes que se consideram ser
matematizáveis.
A forma da cultura moderna sustenta-se em dois pólos: por um lado, temos Newton,
do qual “aprendemos” que o mundo funciona matematicamente (embora ele pudesse nem
concordar com isso); de outra parte, Descartes, “ofereceu-nos” a certeza do eu pensante.
Então, qualquer idiota que raciocine de acordo com as Leis de Newton pode ter a certeza a
respeito de tudo o que ele pensa, sendo tudo o resto duvidoso. Para Hugo de São Vítor era o
oposto: o aluno chega despreparado, humilde, ignorante, e através das leituras das grandes
obras e das Escrituras chegava ao conhecimento da ordem universal. Este era o processo
seguido entre os séculos IX e XI, e Hugo de São Vítor escreveu sobre estas coisas para elas
não se perderem totalmente, dado que na altura já estavam ameaçadas.
A leitura no ensino desta época era feita em voz alta ou, pelo menos, articulando todos
os movimentos bocais, ainda que o som fosse inaudível. Esta era a forma de ler com o corpo,
a única que poderia dar a abertura para a ordem total, dado que as coisas eram absorvidas
87
como realidade e não apenas como imaginação. Parte disto tentou ser recuperado no século
XIX com as escolas de artes liberais. α29
[Aula 30]
Precisamos ler os autores do último período onde ainda existia alta cultura (como
Álvaro Lins ou Otto Maria Carpeaux) e tentar perceber a degradação ocorrida e em que ponto
nós entramos. Entrar no mundo da filosofia exige esta restauração da língua, além de
requerer muita cultura e reflexão sobre a totalidade da experiência humana. Por isso Hegel
dizia que ave da filosofia é a coruja, porque só se levanta ao entardecer. α30
Diz Jean Fourastié (Les Conditions de l’Esprit Scientifique) que uma História da
ciência, para reflectir o movimento histórico real, tem que estar acompanhada de uma
História da ignorância, caso contrário ficaremos com uma ideia de um progresso formidável
se apenas listarmos as descobertas. Livros como o Imbecil Coletivo fazem um recenseamento
da degradação intelectual e da perda de conhecimento entre as pessoas que ocupam
nominalmente os postos das elites, além de evidenciarem também certas “constantes”, como
o surgimento e glorificação de certos giros de linguagem. α30
[Aula 31]
Uma distinção aprimorada entre forma e matéria é condição para descobrir o que
quer que seja. Devemos nos habituar a fazer esta distinção a respeito de tudo o que
percebemos, mas sempre levando em conta a teoria aristotélica das distinções, dado que
existem diferentes distinções. Em primeiro lugar (usaremos a terminologia dos escolásticos),
temos a distinção real-real, que corresponde à separação real entre duas substâncias, dois
entes, por exemplo, quando separamos um elefante de uma hiena. Depois, temos a distinção
real-fornal, que significa distinguir um ente de uma das suas qualidades, e sabemos que um
elefante não é a mesma coisa que a sua cor, mas as duas coisas não estão separadas. Por
último, temos a distinção formal, que é uma distinção entre qualidades, por exemplo, a cor e
o tamanho não se confundem um com o outro. Fazemos estas distinções instintivamente mas
o segredo da filosofia é fazê-las também de forma consciente, mais aprimoradamente e
atentamente do que de forma espontânea. Contudo, devemos nos precaver em relação às
técnicas filosóficas modernas, que tratam de distinções formais entre palavras e conceitos,
que vão contra toda a espontaneidade e nos fazem perder em minudências totalmente
desligadas da realidade. α31
Wilfred Bion aplicou durante anos a psicanálise a pacientes em estado terminal, assim
como a traumatizados de guerra. Freud dizia que o princípio do prazer – o mundo dos
desejos, algo interior e que determina a nossa conduta no sentido da busca de satisfação –
deve gradualmente se adaptar ao princípio da realidade – a adaptação do ser humano às
exigências do ambiente externo, físico e social. Contudo, na psicanálise, o paciente é obrigado
a “engolir” muitas verdades que não gostaria, pelo que não o faz segundo o princípio do
prazer, nem essas verdades lhe são impostas desde fora (existe uma conversa com o
terapeuta em que este tenta que o paciente perceba como a neurose começou e ninguém o
pode obrigar a reconhecer as mentiras que ele contou para si mesmo), pelo que também não
está envolvido o princípio da realidade. Então, Bion descobriu que acima destes dois
princípios existe o drive da verdade, que poderíamos traduzir como impulso, instinto, até
princípio da verdade. Aristóteles já tinha dito que conhecer a verdade é natural no ser
humano, o que não implica que vamos conhecer sempre a verdade mas que temos um
impulso na sua direcção – é um instinto e uma potência humana –, embora até possamos
viver contrariando esta nossa natureza, o que provocará grandes danos mentais. O princípio
da realidade só por si não tem poder de persuasão, dado ser externo. Ele tem de ser
absorvido, transformado e valorizado interiormente, e isso só pode ocorrer porque temos em
nós o impulso para a verdade.
Bion costumava citar o poema do Kipling, que fala dos seis servidores honestos (Quê,
Porquê, Quando, Como, Onde, Quem – que se consagraram como as regras básicas do
jornalismo, de infracção obrigatória). Contudo, Bion falava, a este respeito, de sete pilares da
sabedoria. O sétimo, não citado, é onde Bion colocava o instinto da verdade, que permite
reconhecer os restantes não apenas nas situações externas mas na nossa própria realidade
existencial. Em geral, toda a actividade filosófica necessita deste sétimo pilar, tornando-se
assim numa espécie de prática psicoterapêutica, caso contrário, acaba por ser um convite à
alienação. α31
[Aula 32]
91
a) Relações entre a ciência e a filosofia. Jean Piaget dizia que apenas as ciências
experimentais dão conhecimento, sendo a filosofia apenas uma orientação no mundo dos
valores (incluindo os cognitivos). Isto é uma inversão da realidade, porque algo só se torna
conhecimento quando já se encontra dentro de uma hierarquia de valores cognitivos e, até lá,
é apenas um assunto, tema ou problema. Contudo, Platão e Aristóteles já tinham de alguma
forma dado os princípios para a resolução do problema, porque para eles não havia ruptura
entre o conhecimento científico (ideia) e o facto concreto, havia um círculo. Isto deu origem
aos problemas listados de seguida, nomeadamente à necessidade de ter uma visão mais clara
a respeito do discurso poético-simbólico, de onde surgem todos os outros discursos. A
ciência, tal como a poesia, é um fornecedor de material para a filosofia. Por outro lado, a
ciência não tem em si o padrão da sua própria inteligibilidade, não só porque necessita de
partir de conceitos (elaborações filosóficas), como só através da análise filosófica ela chega a
um conhecimento de pleno direito. A continuação do estudo deste problema acabou por
resultar numa elaboração de uma filosofia da ciência, que se encontra dispersa em vários
escritos e aulas.
b) Relação entre poesia e filosofia. Não é possível trabalhar com os dados dos sentidos, sendo
necessário um segundo grau onde surge um condensado simbólico. Enquanto a poesia busca
os homens, a filosofia apenas se pode comunicar a uns poucos. Contudo, as duas não são
incomunicáveis entre si, porque a poesia tem sempre o germe da filosofia e a filosofia é uma
93
poesia recolhida ao estado da experiência interior. O essencial sobre este tema pode ser
encontrado na apostila “Poesia e filosofia”, disponível em::
http://www.olavodecarvalho.org/apostilas/poefilo.htm.
c) Teoria dos quatro discursos. A exposição central da teoria encontra-se no livro Aristóteles
em Nova Perspetiva, tendo sido mais desenvolvida em várias aulas. Os pontos anteriores são
aqui absorvidos e colocados numa ordem. Os quatro discursos – poético, retórico, dialéctico e
lógico – são quadro modalidades de uma potência única.
http://www.olavodecarvalho.org/traducoes/the%20metaphysical.htm.
http://www.olavodecarvalho.org/apostilas/problema_verdade.html
http://www.olavodecarvalho.org/apostilas/kant3.htm
g) Teoria do sujeito da História. Em geral, os filósofos aceitam como válidas abstrações como
“História do Brasil”, quando o Brasil é apenas um cenário que nunca fez nada. Para
compreendermos a possibilidade histórica de ocorrerem certos acontecimentos e dramas
temos de considerar a História de personagens reais agentes. Qualquer acção é individual,
mas se vários indivíduos agirem de forma articulada, podem chegar a criar linhas de acção ao
longo de séculos, como acontece com certos esforços do papado ou do Partido Comunista.
Apenas se pode considerar histórica a acção que transcende a duração da vida humana. São
as entidades cuja acção permanece no tempo que têm uma acção que dá a forma geral da
História. Os Estados não têm essa continuidade, mas certas entidades que agem através deles
podem ter. Entre os verdadeiros agentes históricos, os mais destacados são o papado, o
Partido Comunista (que é anterior e posterior à União Soviética), a maçonaria e as famílias
dinásticas. O Jardim das Aflições não é um verdadeiro livro sobre uma entidade histórica
mas faz algo nesse sentido, relatando os esforços ocidentais para restaurar o império romano.
http://www.olavodecarvalho.org/apostilas/direito.htm.
m) Conceito de psique. No ponto anterior está implícita a existência de uma causa psíquica,
que não tem origem corporal, genética ou externa. A psique é composta por uma série de
faculdades, em que a razão (impulso para a unificação da experiência) é apenas uma delas.
Desde que nasce, o ser humano é forçado a agir segundo a uma racionalidade que ainda não
tem desenvolvida, e haverá sempre um desnível entre aquilo que a situação racionalmente
exige e o uso efectivo da razão. Então, a autoridade surge como uma unidade simbólica
substitutiva, que começa por ser o pai, símbolo da razão. Sempre haverá um conflito entre
autoridade e razão (trauma da emergência da razão). Ver mais na apostila “O que é a
psique” em:
http://www.seminariodefilosofia.org/system/files/olavodecarvalho_psique.pdf.
[Aula 33]
«Essa sapiência da qual Hugo fala é a mente divina, na qual o mundo e o homem
foram pensados como numa forma, num molde, num arquétipo. Essa sapiência não é
algo, é alguém. É a segunda pessoa da trindade, o Logos e pensamento de Deus. É a
forma perfeita de Deus bom, como, pela criação, a forma boa do mundo e do
homem».
Ivan Ilitch salienta que nós, que vivemos depois de Newton, só conseguimos perceber
causas eficientes, dessa forma, conceitos como o de “desejo natural” parecem-nos um mito.
Então, quando Hugo de São Vítor diz que a Sapiência é a primeira coisa a ser buscada,
entendemos “primeira” como a coisa mais imediata ou a primeira de uma série. A percepção
original do autor tornou-se estanha para nós, e aí entra todo o esforço histórico e filológico
para conseguir evocar algo de originário. Contudo, tudo isto pode ainda nos deslocar mais do
foco se entendemos os produtos de outras épocas como elementos culturais e não como
experiências de realidade. Corremos o risco de achar que estamos hoje na nossa cultura
arraigados na realidade, enquanto no passado as pessoas até podiam ter percebido umas
coisas muito interessantes mas viviam num sonho. Ou seja, o estudo de um produto do
passado é como se fosse apenas uma entrada no campo da fantasia, mas aquilo não diz
realmente respeito à realidade. Este pode não ser o resultado procurado mas deriva quase
que automaticamente da técnica filológica/histórica de rastrear os documentos para captar o
sentido das palavras na época em que foram escritas, junto a uma crítica que procura
averiguar as crenças que embasavam os significados. Isto cria uma tensão em relação àquilo
que acreditamos saber agora.
sob meus olhos as páginas dos Evangelhos e das epístolas paulinas, da epopéia
carolíngea, dos discursos que se faziam na Convenção Nacional, das líricas, dos
dramas e romances que exprimiriam a nostalgia oitocentista pela Idade Média. O
homem é um microcosmo, não no sentido naturalístico, mas no sentido histórico: é
um compêndio da História universal».
Algo só se torna documento quando evoca algo em nós, e pode evocar porque reflecte
possibilidades que já carregamos em nós, ao menos ao nível imaginativo. Entender a
dimensão de eternidade é perceber que não estamos presos a um determinado momento
histórico: podemos vivenciar outras épocas e civilizações como se fossem coisas que nos
tivessem acontecido. De forma compacta, é isto que diz Hugo de São Vítor, que resume assim
o essencial do estudo filosófico. Acrescento que quando perdemos a eternidade de vista, os
nossos próprios actos passados parecerão ter sido cometidos por outra pessoa e só
contrariados assumimos a sua autoria, assim como parece que delegamos a outrem a nossa
vida futura. Daí a extrema dificuldade dos modernos em planear algo para além das próximas
férias, que é uma das poucas coisas que ainda dão algum alívio. A inteligência só funciona
realmente quando encaramos as coisas sob a categoria da eternidade, fora disso as coisas
perdem inteligibilidade. Não se trata de algo inventado pela religião, é o modo natural de
funcionamento da inteligência, que a cultura (religiosa ou profana) pode aprofundar ou
destruir. Não é apenas o relativismo ou o mecanicismo que destroem o senso de eternidade,
porque analisar as coisas à luz da moral religiosa implica transformar os outros em
personagens do nosso imaginário, e isso é também uma actividade mecânica. α33
[Aula 34]
o nosso nível de integração; ficamos cada vez mais próximos de conhecer a nossa forma
inteira, dada na morte mas já conhecida por Deus antes mesmo do nosso nascimento.
A conjunção destes dois movimentos é a filosofia, e daí a sua definição como busca da
unidade do conhecimento na unidade da consciência e vice-versa. Ou seja, buscamos a
unidade do conjunto do que sabemos e, ao mesmo tempo, essa busca aumenta também a
unidade da nossa consciência, que assim se integra a si mesma e parte novamente na busca
do conhecimento a partir de outro patamar, onde vai encontrar mais unidade, integração,
hierarquia, ordem e organicidade. Trata-se de um trajecto que só termina com a morte.
Sem fazermos parte deste trajecto, não podemos encontrar uma forma da nossa
personalidade e não podemos contar a nossa vida, logo, não estaremos aptos para a
confissão. O Exercício do Necrológio [4] é um instrumento para termos a perpectiva
adequada, para não termos de lidar com a nossa vida como um caos em bruto: teremos um
critério, que será refeito várias vezes. Nada disto depende de desempenharmos uma profissão
intelectual ou não, é uma responsabilidade cognitiva inerente a qualquer indivíduo que não
esteja incapacitado. Os alunos do Curso Online de Filosofia não têm o direito de se esconder
atrás de uma profissão, nem podem pedir resguardo na falta de ambição em serem filósofos
ou intelectuais, para assim poderem dirigir as suas vidas segundo os critérios usuais do seu
meio. Se fizerem isso, tudo o que aprenderem aqui será perdido rapidamente. Todas as
decisões da nossa vida têm que ser ponderadas a partir dos instrumentos que aprendemos no
curso, ninguém irá nos fiscalizar e nem sequer dizer exactamente como isso se faz, mas é
nossa obrigação aumentarmos o nosso nível de responsabilidade cognitiva, intelectual, moral
e prática. A desculpa da ignorância nunca pode ser usada, dado que esta não se confunde com
a inocência, que é algo que não sabemos mas também não temos obrigação de saber. A
prática filosófica só pode avançar na medida em que há uma transfiguração dos nossos
critérios de existência, independentemente da nossa profissão ou posto ocupado na
sociedade. α34
contra ela acabaria por pensar do mesmo jeito que toda a gente. Com o aparecimento da
ciência moderna, apesar da maior parte dos cientistas serem cristãos devotos, eles já
começaram a criar modos de pensar destruidores da religião. Descartes, apesar de devoto,
tirou Deus do centro da criação e colocou lá a subjectividade do indivíduo. Kant também era
religioso mas teve de ser o seu criado de quarto a avisar-lhe que os seus escritos levariam ao
fim da religião. A Igreja não soube como reagir à nova intelectualidade, prestou-lhe um
respeito indevido e acabou por raciocinar nos mesmos moldes que ela.
É necessário superar a dualidade burguesa, que separa o estudo da vida prática, o que
já é uma consequência da religião burguesa, que separa o plano do conhecimento do plano da
salvação da alma, estando nos antípodas de Hugo de São Vítor, que dizia que o estudo leva-
nos a Cristo, ou de Clemente de Alexandria, que referia a filosofia é o pedagogo que leva a
Cristo. Muitos querem se fazer de “pobres de espírito”, de almas puras de criança, mas isto é
apenas inocência perversa. Uma nova intelectualidade é como um apostolado, composta de
pessoas que reorganizaram toda a sua vida (mesmo que isso obrigue a deixar de ter negócios
com o Estado) para poder agir com consciência dos acontecimentos, das forças históricas em
movimento e do que é possível fazer para minimizar os efeitos nefastos. α34
101
[Aula 35]
ponto da interpretação que fazemos deste período de transição corresponder à visão dos
novos pensadores. Junto com a apologia de uma liberdade civil e política, veio uma nova
concepção do homem, agora visto como uma máquina (de onde deriva a Declaração dos
Direitos Humanos, da qual Peter Singer retira a conclusão lógica: a vida de um homem vale
menos do que a vida de um frango; o sujeito não é portador direitos, só a humanidade (mas
para isso tinha de haver outra espécie que teria obrigação de providenciar esses direitos). Isto
não aconteceu por acaso, já que algumas das referências da nova intelectualidade – como
Voltaire, Maquiavel, Diderot ou d’Holbach – usavam sistematicamente a mentira. Eles
acusavam os jesuítas se serem um factor de atraso no progresso da ciência, porque
desprezariam as ideias da ciência experimental para usar a velha teologia de sempre,
contudo, também isto é uma falsidade histórica, dado terem sido os jesuítas os maiores
contribuidores para o desenvolvimento científico dos século XVII e XVIII (ver livro Jesuit
Science and the Republic of Letters, de Mordechai Feingold).
[Aula 36]
147. Nova ordem mundial, tipos dominantes de personalidade e democracia
totalitária
Todo um novo conceito de civilização, com toda uma série de símbolos e valores
próprios, está a ser criado por uma elite muito bem amparada em termos políticos e
financeiros, que culmina na tentativa de impor um governo mundial. Os seus planos não são
secretos mas têm uma amplidão e uma complexidade tão grande que escapam do horizonte
da população. Existe uma bibliografia imensa sobre o assunto, mas para começar devemos ler
o livro Tragedy and Hope, de Carrol Quigley. O projecto de governo mundial insere-se num
movimento mais amplo, que tem por fim criar uma religião globalista (ver livro False Dawn,
de Lee Penn). Estão nisto envolvidos os grandes grupos bilionários que controlam a banca, o
sistema farmacêutico, o petróleo, a Internet, etc. Pretendem disseminar o ateísmo por todo o
lado, causando uma vaga de desespero, para depois aparecerem eles com a nova religião
salvadora, que apesar de ser uma aberração espiritual e intelectual, irá aparecer como uma
coisa perfeitamente aceitável e capaz de trazer um período de paz. Seguem a máxima de
Nietzsche, de que não basta derrubar o adversário, é necessário substituí-lo.
Devemos, como alunos do Curso Online de Filosofia, não apenas estudar estes
assuntos mas fazer um trabalho de auto-consciência e auto-crítica, para perceber a nossa
presença nesta cultura e como ela moldou a nossa psique. Um dos traços fundamentais de
qualquer cultura são os tipos de personalidade dominante. David Riesman (A Multidão
Solitária) mostrou que esses tipos mudaram bastante na sociedade americana. No período
colonial, o chamado homem tradicionalista – apegado à religião dos seus antepassados, aos
usos e costumes consagrados – era considerado o melhor representante da sociedade, aquele
que possuía mais autoridade e que obtinha mais vantagens e melhores cargos. Quase todos os
Founding Fathers tinham uma personalidade deste tipo, com excepção de Franklin e
Jefferson, que eram mais extravagantes, mas não provocavam abalo nas estruturas
institucionais. No século XIX deu-se a expansão da fronteira americana (que se confunde
com a história desse período, segundo Frederick Turner, A Fronteira na História
Americana), devido ao aumento de população, que motivava a procura de novas terras de
cultivo, mas a expansão também era uma forma de resolver problemas religiosos, com a
formação de novas comunidades (que eram essencialmente cristãs, mais alguns judeus, ver
livro de Benjamim Morris, Do Carácter Cristão das Instituições Americanas). Neste segundo
período surgiu o self-made man, que já não estava apegado às tradições e costumes e tinha a
iniciativa de fazer o que outros não queriam fazer. Era extravagante mas acabava por ter
posições de preponderância e ganhar a respeitabilidade que antes tinha o homem tradicional.
A partir do New Deal, o Estado americano começou a invadir certos sectores da sociedade e
criou-se o “homem organizacional” (ver Organization Man, de William H. Whyte), que é
104
aquela figura que se molda sem problemas às macro-organizações como uma pequena peça
sem grande iniciativa, adaptando-se às ordens e à burocracia. Este é o tipo de homem
desejado pela nova ordem mundial, fraco e frágil – e com baixos níveis de testosterona, o que
emburrece –, com um infinito cuidado consigo mesmo, querendo todos os benefícios da
economia moderna, todo o sossego e obviamente que não quer ser atormentado pela
perspectiva da própria morte. É um tipo inferior e infantilizado, que tem preocupações
extremas com saúde e beleza e não aguenta que o olhem “feio”, fazendo tudo para ser
aprovado socialmente. Este novo tipo contrasta totalmente com o self-made man, que
mesmo que actualmente ainda acabe por levar a melhor pelas suas características naturais,
tem que viver à margem da sociedade.
formalmente perfeito – mas uma arte do discurso capaz de apreender algo da realidade
efectivamente existente. Ou seja, é a arte de equacionar a experiência em termos de
linguagem de tal maneira de que desta seja sempre possível remontar à experiência.
Para este exercício, partimos do local onde gostamos de estudar e vamos listar todos
os objectos ali presentes. Contudo, não vamos listar os objectos simplesmente na ordem que
nos apercebemos deles mas por espécies: móveis, adornos, ferramentas, cursos, livros, etc.
Quando passarmos para espécies mais complexa, como os livros, vamos subdividir. No
entanto, dificilmente a nossa biblioteca segue a organização de uma biblioteca pública ou
livraria, e podemos ter vários critérios de classificação cruzados (áreas do saber, utilização
actual, inclassificados, etc.). Depois de fazermos esta classificação, vamos esclarecer para nós
mesmos as chaves classificatórias que usamos. Daremos especial atenção à mudança de
chaves, por exemplo, podemos ter colocado dois livros sobre a mesma matéria em estantes
diferentes, porque usamos um critério de busca específico. Podemos depois fazer o exercício
com os objectos da nossa cozinha, mas também com fenómenos de outra ordem, com teorias,
correntes de pensamento ou estilos artísticos.
Husserl chegou a uma definição construtiva do número com exercícios deste género.
Ele definia os enlaces como os critérios pelos quais se agrupam objectos de uma classe, sendo
as classes determinadas por diferentes tipos de enlace, que, por usa vez, terão algo a ver com
aquilo que os objectos são. O número seria o enlaçar de objectos sem qualquer referência ao
que eles são, o que corresponde simplesmente ao “contar coisas”.
[Aula 37]
150. O pólo como símbolo do vice-regente de Deus na Terra (Suhrawardi)
Escreveu Shihab al-Din Suhrawardi (filósofo persa do século XII) no livro A Filosofia
da Iluminação:
«As palavras dos antigos [Platão e Aristóteles] são simbólicas e não abertas a
refutação. As críticas feitas ao sentido literal das suas palavras falham em apreender
as suas reais intenções, pois um símbolo não pode ser refutado. Isso é também a
base da doutrina oriental da luz [oriente aqui visto como o local de onde vem o sol,
por isso ligado à luz]. Isso é também a base da filosofia oriental da luz e das trevas,
que foi o ensinamento dos filósofos persas como Jamasp, Frashostar, Bozorgmehr e
outros antes deles [seus antecessores]. Não é a doutrina dos magos infiéis nem a
heresia de Mani [de onde vem o maniqueísmo], nem aquela que leva a associar
outros com Deus, O qual seja sempre exaltado acima de todo antropomorfismo. Não
imaginem que a filosofia existiu só nestes tempos mais recentes. O mundo jamais
esteve privado de filosofia, ou sem uma pessoa que possuísse as provas e evidências
claras em defesa dela. Essa pessoa é o vice-regente de Deus na Terra. Assim será
enquanto durarem os céus e a terra. Os filósofos antigos e modernos diferem apenas
107
no seu uso da linguagem e nos seus diferentes hábitos de abertura [uns falam no
estilo alusivo e outros em estilo directo] e todos falam dos três mundos
[temporalidade, eternidade e eviternidade ou perenidade], concordando quanto à
unidade de Deus. Não há disputa entre eles nas questões fundamentais. Embora o
primeiro professor, Aristóteles, fosse muito grande, profundo, e cheio de intuições
valiosas, não se deve exagerar o seu valor ao ponto de desprezar o seu mestre,
Platão. Entre eles estão os mensageiros e legisladores como Hermes, Asclépio e
outros. As fileiras dos filósofos são muitas, e eles podem ser divididos nas seguintes
classes: [1] um filósofo divino proficiente na filosofia intuitiva, mas ao qual falta a
filosofia discursiva; [2] um filósofo ao qual falta a filosofia intuitiva; [3] um filósofo
divino proficiente tanto na filosofia intuitiva quanto na discursiva; [4] um filósofo
divino proficiente na filosofia discursiva, mas de habilidade média ou fraca na
filosofia intuitiva; [5] um filósofo proficiente na filosofia discursiva, mas de habilidade
média ou fraca na filosofia intuitiva; [6] um estudante só da filosofia intuitiva; e [7]
um estudante só da filosofia discursiva.
Por essa autoridade eu não quero dizer poder político. O líder dotado de filosofia
intuitiva pode de fato reger abertamente ou pode estar oculto na multidão, e ele é
chamado o Pólo (al-Qutb). Ele terá autoridade mesmo se viver na mais profunda
obscuridade. Quando o governo está nas suas mãos, a era é iluminada; mas quando a
era é sem regência divina, as trevas serão triunfantes. O melhor estudante é o que
estuda tanto a filosofia intuitiva quanto a filosofia discursiva; em seguida o estudante
de filosofia intuitiva; e em terceiro o estudante de filosofia discursiva».
Filosofia intuitiva é aquela que apreende a natureza simbólica dos escritos dos
filósofos antigos. Suhrawardi inclui nos filósofos também os profetas, especialmente os que
também foram legisladores, como Moisés, que tinha um conhecimento intuitivo mas não
discursivo e, devido a isso, servia-se do ser irmão Aarão para dar explicações (que falava bem
mas que não tinha conhecimento intuitivo, e por isso logo sugere voltar aos cultos antigos
quando Moisés demorou muito para voltar do monte Sinai). A noção de pólo é muito
importante, ele é o vice-regente de Deus na Terra. Não importa a autoridade exterior que ele
tenha, as coisas vão passar-se como ele diz, mesmo que ninguém perceba ou todos digam o
contrário. Platão foi um desses pólos, o que ele disse da formação dos reis-filósofos foi
adoptado na formação do clero cristão a partir do século I. Aristóteles foi outro pólo. Tudo na
filosofia anda em redor do que disseram estes dois, mesmo entre os seus opositores. A
obediência que os judeus dão a Moisés até hoje mostra que ele também é um pólo. A obra de
108
Mário Ferreira dos Santos já delimita todas as possibilidades da civilização brasileira, ainda
que ninguém o entenda actualmente.
Suhrawardi diz que os escritos antigos eram simbólicos e, por isso, não abertos a
refutação. Isso não implica que não tenham um aspecto discursivo (exposição literal), que
pode ser levado à discussão mas apenas depois de apreendido o seu sentido simbólico. Já
dizia Susanne Langer que o símbolo é uma matriz de intelecções, e são estas que podem ser
expressas em linguagem discursiva e sujeitas a refutação. As sumas de São Tomás de Aquino
são normalmente lidas de forma convencional, como uma série de teses individuais a serem
discutidas, mas elas foram construídas com a estrutura das catedrais, são obras de arte a
serem contempladas de forma a nos abrirmos para o mundo divino que simbolizam. Platão já
facilita este trabalho porque inicia os diálogos destruindo uma série de ideias correntes e
depois responde com um mito, que alude de forma simbólica à verdade, porque apenas a
linguagem divina pode expressar a verdade. α37
Em primeiro lugar, a forma, como entendida por Aristóteles, é o conjunto inteiro das
estruturas compondo um ser na totalidade da sua existência, estando eminentemente ligada
à causa final e não a causas eficientes (que vão determinando as várias modificações do ente
em cada etapa), ao contrário do que Zubiri tem por pressuposto. Depois, ele está a criar um
dualismo ao descrever duas fases: primeiro tudo depende de factores físico-químicos (causa
eficiente) e, a seguir, as funções assim criadas retroagem sobre o composto físico-químico e
passam a orientá-lo (causa final que, de forma misteriosa, passa a determinar a conduta do
corpo). Aristóteles não faz esta divisão, ele refere-se a uma forma integral, em que as etapas
anteriores só podem ser explicadas em função do resultado último a produzir. Ele dizia que a
finalidade do ser humano era a conquista das faculdades superiores, a vida contemplativa, do
espírito, pelo que toda a formação físico-química tem que ser compatível com isto (tal como
um violino tem que ser compatível com as peças escritas para ele, mas nunca acharemos
nenhuma composição apenas investigando o instrumento). As actividades superiores do
espírito nunca poderão ser explicada pela formação físico-química, nem mesmo pela
109
fisiologia cerebral, que não poderá determinar o conteúdo de um pensamento, embora tenha
que ser compatível com este.
É um erro grosseiro pensar que os filósofos antigos construíram uma série de teses,
que nós podemos pegar e derrubar a nosso bel-prazer. Eles abriram-nos um mundo
simbólico que determinou as possibilidades cognitivas da espécie humana por muitos
séculos, e só a este nível podemos entendê-los. α37
[Aula 38]
152. O perdão como lei constitutiva do universo
Qualquer conteúdo filosófico pode ser transmitido de várias formas. Num primeiro
nível encontra-se a exposição poética, que é um compactado com várias possibilidades
embutidas, exercendo um certo impacto emocional mas fica por aí, já que a maioria das
pessoas não vai escavar as várias possibilidades e pensará que existe apenas aquele primeiro
nível. A terminar a mensagem de Natal de 2009, Olavo de Carvalho escreveu:
Isto pode parecer uma figura de linguagem mas tem uma doutrina rigorosa por trás.
Se considerarmos o universo inteiro, num dado instante, como um sistema fechado, ele está
sujeito à Segunda Lei da Termodinâmica, assim, concluímos que caminha para a extinção.
Contudo, aparecem sempre novas possibilidades (existe expansão, nascem estrelas, etc.) pelo
que algum factor compensa a entropia, e é algo que não pode vir do próprio universo, o que
seria auto-contraditório. Além da existência material, tem que haver o conjunto da
110
possibilidade (limitado apenas pela sua própria estrutura). Existem coisas acontecendo que
são novas e não poderiam ser deduzidas logicamente das propriedades já dadas, que são
injectadas a partir do conjunto da possibilidade universal, da qual a lógica humana e a
metafísica são uma tradução longínqua. O universo não pode ser fechado, existe
continuamente um resgate do finito pelo infinito, e o perdão é a tradução disto na escala
humana. Na nossa vida, vamos esgotando as nossas possibilidades terrestres, mas isso não
corresponde a um esgotamento das nossas possibilidades na esfera da eternidade, e isso é o
perdão. α38
«Entrei cego na prisão (...) e saio com os olhos abertos; entrei mimado, luxento, saio
curado de caprichos, afetações, presunções; entrei insatisfeito, saio conhecendo a
felicidade; entrei nervoso, impaciente, ultra-sensível a bobagens, saio sereno (…)».
«Para sair de um universo cerrado, e não é necessário de modo algum que seja um
campo de concentração, prisão ou uma outra forma de encarceramento, pois a
teoria se aplica a qualquer tipo de produto do totalitarismo (...)
mais insignificante, mais inútil, mais desengajado. Não se mete nem mesmo a pastor
de porcos.
– Vai haver guerra! Pó e pólvora vão ser feitos do Império Britânico, a morte nos
espreita a todos. No entanto, sinto-me rejuvenescer vinte anos. Quanto mais as
coisas vão mal para ti; quanto mais imensas são as dificuldades; quanto mais és
ferido, mais cercado e submisso aos ataques; quanto mais não entrevês nem sequer
uma esperança probabilística racional; quanto mais o cinzento, a escuridão e o
viscoso se intensificam, se inflam e se enredam de modo mais inextricável; quanto
mais o perigo te desdenha mais diretamente – tanto mais tem desejo de lutar e
conhece um sentimento crescente de inexplicável e eminente euforia.
Estas soluções são saídas também para quem vive num meio espiritualmente e
intelectualmente compressivo. O “homem morto” experimenta a vida, como mostrou o
exemplo de Solzhenitsyn, assim como o marginal não tem que se humilhar, porque sabe que
é um aristocrata e que apenas está excluído do meio por excesso de capacidade. Os filmes da
vida do samurai Miyamoto Musashi mostram que ele também passou por estas três fases:
sempre se deu por morto nos duelas; atacou uma academia inteira quando desafiado; e, no
fim, afastou-se da sociedade e de toda a lisonja.
[Aula 39]
protestantes vivem exigindo um moralismo atávico uns dos outros em público; o budismo
tem a triste sombra do Dalai Lama a lisonjear os chineses –, o que apenas intensifica a busca
da confirmação pela autoridade.
Não temos que nos entregar ao guiamento de instituições mas procurar pelos nossos
próprios meios o desenvolvimento intelectual e a formação de carácter, porque a estrutura
humana não foi revogada, as nossas capacidades continuam a existir e só temos que exercê-
las. Pouco importa que ninguém concorde connosco ou sequer perceba o que dizemos,
porque a única autoridade realmente válida é o Logos Divino, Cristo, a razão divina que
governa o mundo. Podemos dizer que esta se reparte em duas. Por um lado, há a tradição
religiosa, que não foi totalmente rompida quando falamos de sacramentos. Por outro lado,
existe a autoridade da evidência, que exige um treinamento para obtermos certeza pessoal
das coisas. Só com esta prática podemos ingressar numa comunidade atemporal e encontrar
os grandes sábios. Não precisamos mais do que dois ou três pontos de certeza para vivermos
com muita segurança e firmeza. α39
[Aula 40]
156. As inversões revolucionárias em Karl Marx
Veremos exemplos de paralaxe cognitiva e de mentalidade revolucionária, tal como
manifestados em Karl Marx. Qualquer leitura de textos filosóficos deve começar por uma
impregnação totalmente ingénua, onde nos deixamos impregnar por aquelas coisas como se
fossem a própria verdade, como se fossem os factos a falarem, e depois logo decidimos de que
modo aquilo pode ser considerado verdade, porque nada pode ser absolutamente falso. Além
disso, há certos conhecimentos que o indivíduo tem de possuir para poder escrever o que
escreveu e que também podemos fazer sobressair na leitura.
Marx tem uma enorme dívida para com Hegel, que fez a transição da paralaxe
cognitiva para a mentalidade revolucionária. Hegel diz que a estrutura da realidade é
composta de espírito, Geist, algo que ninguém sabe muito bem o que é. O espírito manifesta-
se através da criação da Natureza, mas opera isso fazendo uma negação dele mesmo. O ser,
inicialmente compacto e abstracto, vai se tornando concreto através da realização da
natureza, que começa por ser a negação do próprio ser, uma espécie de criação do seu oposto.
O puro espírito criando a Natureza – seu oposto – vai se alienando dela, pelo que existe um
conflito entre espírito e Natureza que perpassa toda a História humana e se manifesta nas
várias formas humanas de alienação. Não adianta perguntar o que é o espírito/ser porque ele
é idêntico ao nada antes da sua manifestação concreta na Natureza, mas se ele fosse
realmente idêntico ao nada não teria poder algum de se determinar. A competência que
Hegel mostra em algumas matérias faz com que este “lapso” pareça ter sido introduzido
deliberadamente. Contudo, ele acerta, ao prosseguir, quando descreve o processo histórico
como a manifestação de um espírito que transcende esse mesmo processo, porque o sentido
de uma coisa nunca se pode esgotar nela mesma. A premissa Hegel é absurda mas também
desnecessária para o conjunto. O acto da negação de si mesmo feito pelo espírito, que cria a
alienação do espírito (do qual o afastamento que os seres humanos vivem de si mesmos é um
sinal), será, por sua vez, negado com a criação do Estado perfeito – o culminar da História
humana, que não era para Hegel um Estado totalitário mas algo como o Estado leigo
democrático moderno –, onde tudo é reintegrado ao espírito e volta a reinar a identidade do
ser consigo mesmo.
Karl Marx ficou muito impressionado com isto e acreditou poder expor o conjunto da
História como uma dialéctica interna aplicada não a uma mera ideia, como o espírito, mas à
esfera dos factos reais de ordem material. Assim, tornou-se natural para ele o estudo da
economia (no livro O Capital), onde Marx analisa a extracção de matérias-primas, a sua
transformação mediante produção e comercialização. Paralelamente, Marx tinha aderido ao
movimento socialista muito novo, acreditava numa imensa transformação político-social, que
criaria um estado paradisíaco, chamado socialismo ou comunismo. De certa forma, Marx não
tinha de descobrir nada mas criar uma justificação para as ideias a que já tinha aderido (o
socialismo e a dialéctica de Hegel), faltando apenas combiná-las. Desde logo, o Estado final
de Hegel, leigo e democrático, é substituído pelo socialismo. O Capital, redigido durante
décadas, é uma tentativa de justificar economicamente as ideias a que Marx tinha aderido na
juventude sem ter qualquer justificação. Marx pode discutir tudo, mas dá por certa a
identificação do socialismo com o fim da História, e aí já está dada a inversão do tempo. A
dialéctica de Hegel é também explorada por ele para encontrar a dinâmica do processo
económico, e é aqui que a atenção de Marx iria estar focada.
Karl Marx é um exemplo muito claro das inversões revolucionárias, que aparecem
quase em cada página d’O Capital. As descrições que ele faz são uma inversão do que ele via,
mas não pode ser sempre mentira consciente, há mesmo uma percepção invertida. A leitura
de Marx é sempre difícil, aqui fica uma parte em que ele fala da mercadoria:
«Se deixarmos fora de exame o valor de uso das mercadorias [existe o valor de uso
para quem compra e o valor de troca para o comerciante] elas só têm uma única
propriedade em comum, que é a de serem produtos do trabalho. Mas mesmo o
produto do trabalho em si mesmo sofreu uma mudança nas nossas mãos. Se fazemos
abstração do seu valor de uso, fazemos abstração ao mesmo tempo dos elementos
materiais e formais que tornam o produto um valor de uso. Já não vemos então uma
115
mesa, uma casa ou qualquer outra coisa útil. A sua existência como coisa material foi
posta fora do nosso horizonte de visão. Ela já não pode ser encarada como produto
do trabalho do pedreiro ou de qualquer outro operário. Junto com as qualidades
úteis dos produtos mesmos colocamos fora do horizonte de visão tanto o caráter útil
dos vários tipos de trabalho incorporados neles. Portanto, nada sobrou senão aquilo
que é comum a todas as mercadorias; todas são reduzidas a uma e única espécie de
trabalho: o trabalho humano em abstrato».
«Um valor de uso ou artigo útil só tem valor porque nele foi incorporado o trabalho
humano em abstrato».
É ao contrário do que ele diz, e contradita até o que ele disse anteriormente. O
trabalho humano abstracto é aquele que não tem em conta as suas diferenças, é apenas um
cálculo hipotético tomando como base as várias modalidades de trabalho irredutíveis entre si
e materialmente irredutíveis a um trabalho comum. O trabalho abstracto realmente não
existe; a relação que existe entre ele e as suas várias modalidade não é a mesma que entre
uma espécie animal e os seus vários exemplares. Por exemplo, a espécie gato só existe
corporizada nos gatos reais. Já as várias modalidades de trabalho não são redutíveis umas às
outras, apenas são unificadas por um mesmo nome porque elas produzem ou ocasionam (o
resultado do trabalho pode não ser um produto, pode ser um serviço) um valor. Ou seja, não
podemos falar de trabalho se ninguém está interessado em pagar pelo seu resultado. Mas
Marx diz que é o contrário, que é o trabalho que produz não apenas o valor de troca mas
também o valor de uso. Isto é a mentalidade revolucionária em acto fazendo a inversão de
sujeito e objecto.
Podemos ainda ir mais longe para ver até que ponto é o valor que dá a medida do
trabalho. Considerando o exemplo de uma mina, na óptica do trabalho em abstracto, quem
escava os minerais deveria ser o dono da mina. Contudo, estes trabalhadores só por si nunca
descobririam a mina. Para isso existe o geólogo, que irá ficar milionário com a descoberta.
Ainda assim, ele vai ter que dar uns 80% do negócio a um banqueiro, para este lhe dar o
capital para montar o negócio. Então, existe um valor associado a cada coisa: ao trabalho
manual de escavação, à investigação do geólogo, ao capital investido e à própria mina em si.
É, de resto, o valor da mina que possibilita as várias modalidades de trabalho ali envolvidas.
Em tudo isto está implícita a figura do consumidor, que é a chave de todo o processo e sem o
qual todo o trabalho é inconsequente.
«Como, portanto, pode ser medida a magnitude desse valor? Claramente pela
quantidade da substância criadora do valor, isto é, o trabalho, contida no artigo,
naquele bem. A quantidade de trabalho, no entanto, é medida pela sua duração, e o
tempo de trabalho encontra o seu padrão em semanas, dias e horas».
Sendo o valor de uso aquilo que o consumidor pretende fazer com o produto ou
serviço, nunca isso pode ser derivado das horas de trabalho que aquilo levou a ser produzido.
Ele estava tentando descrever a origem do valor e chega a uma conclusão inversa do que
estava propondo:
116
«O poder total de trabalho de uma sociedade, que está incorporado na soma total
dos valores de todas as mercadorias produzidas por essa sociedade, conta aqui como
a massa homogénea de poder de trabalho humano».
Isto é esquecer que toda a massa de trabalho humana só foi feita tendo em vista um
valor, que deriva da possibilidade de consumo.
Marx fala também do fetichismo da mercadoria. Para ele, cada mercadoria tem uma
certa quantidade de trabalho incorporada, que determina o seu valor e que será levado em
conta na troca. Assumindo a actividade comercial a figura de um intercâmbio de mercadorias
(coisas) e não de trabalho, entra-se na alienação do trabalho e a mercadoria torna-se num
fetiche, como se ela agisse por si. Então, é como se a relação entre mercadorias substituísse a
relação entre seres humanos que depositaram ali o valor das coisas, mediante o trabalho. Mas
quem troca ouro por petróleo acha que as mercadorias estão trocando-se entre si e perdeu a
consciência do trabalho que deu para extrair cada um? Novamente Karl Marx faz a inversão
de sujeito e objecto, e observa na sociedade aquilo que ele mesmo criou com o seu método.
Foi ele que separou mentalmente a mercadoria do seu valor de uso e da quantidade específica
de trabalho nela depositado, sobrando assim apenas o trabalho abstracto. Só quem faz esta
separação pode ver mercadorias trocando-se entre si, como se fossem dotadas de vida
própria. Ele mesmo começa por dizer que o seu método se baseia na abstracção e depois
parece não querer arcar com as consequências disso. Mais um parágrafo complicado:
«De onde, pois, emerge o caráter enigmático do produto de trabalho tão logo ele
assume a forma de mercadoria? Claramente, é dessa forma mesma».
Enigmático para Marx, que considera fetiche aquilo que não entende, mas depois
passa a acreditar nesse fantasma que ele criou:
«Existe uma relação social definida entre homens, a qual assume aos olhos deles a
fantástica forma de uma relação entre coisas».
Mas não foi Marx que expressou a relação económica como uma relação entre coisas
para fins de cálculo estatístico? Ele vê as coisas assim, porque toma o método pela coisa, não
os trabalhadores, consumidores ou capitalistas. É Marx que confunde o facto com a sua
117
medição. A sua mente está invertida e é a própria inversão que se tornou para ele num
fetiche. Quando entramos dentro da alucinação criada por Marx, é difícil sair, porque não são
apenas ideias erradas, que em si poderiam logo despertar contestação, é a indução de
percepção invertida. Noutro pedaço do livro:
Quer ele dizer que é mais fácil medir entre as várias espécies de trabalho humano,
usando a duração, do que medir uma mercadoria pelo valor de troca de outra. À primeira
vista parece fácil medir a quantidade de trabalho, que seria apenas a soma de uma
quantidades de tempo, mas nunca ninguém usou essa medida como unidade de comércio,
sempre se usou o valor de outra mercadoria (“tantas vacas correspondem a x gr de ouro”, por
exemplo). Contudo, nisto entra o dinheiro como intermediário, que não é uma mercadoria e
tem outras propriedades.
«É claro que as mercadorias não podem ir ao mercado e se trocar umas pelas outras
por si mesmas. Precisamos, portanto, recorrer aos seus proprietários. As mercadorias
são coisas, portanto, sem poder de resistência contra o homem. Se elas são carentes
de docilidade, ele pode usar a força, em outras palavras, ele toma posse delas. Para
que esses objetos possam entrar em relação uns com os outros, enquanto
mercadorias, esses proprietários precisam se colocar em relação uns com os outros
[para que uma mercadoria se troque por outra, os proprietários têm que entrar em
relação um com o outro] enquanto pessoas cuja vontade reside nesses objetos e
devem se comportar de tal modo que cada um não se aproprie da mercadoria do
outro, exceto mediante mútuo consentimento. Eles precisam, portanto,
mutuamente, reconhecer um ao outro os direitos de proprietários privados. Essa
relação jurídica, que assim se expressa em um contrato, quer seja esse contrato
parte de um sistema legal desenvolvido, ou não, é uma relação entre duas vontades
e não é senão o reflexo da relação econômica real entre os dois. É esta relação
econômica que determina o conteúdo compreendido neste acto jurídico».
Marx reconhece a existência do contrato jurídico, mas vai dizer que este é
subordinado à relação económica (expressa-se nela). Contudo, o mero intuito de vender algo
já é um aspecto jurídico, que é definido pela bilateralidade atributiva (Miguel Reale): o
direito que tenho de esperar que se eu fizer certa coisa, o outro faça outra. Então, compra e
venda já é uma relação jurídica, tendo um contrato implícito. Ela não existe apenas na
presença de economia extractivista (extracção e consumo) mas está sempre presente quando
há troca, não é uma superestrutura em cima da relação económica. A relação jurídica, em
suma, é a fórmula lógica da relação económica. Isto levanta a questão sobre o que é o
dinheiro, dizendo uns que é uma unidade de medida, outros (como Marx) que é uma
mercadoria pela qual se avaliam o valor de outras mercadorias, mas isto são, por assim dizer,
propriedades, que só podem existir porque o dinheiro é, acima de tudo, um documento que
atesta um contrato, ou seja, é um fenômeno de ordem jurídica e não económica.
«(…) como vimos, a característica essencial do capitalismo, aos olhos de Marx, era
sua necessidade ilimitada de multiplicar valor de troca, o apetite insaciável pelo
aumento de si mesmo pela exploração do trabalho. O capital é indiferente à natureza
dos bens específicos que ele produz ou vende».
Esta indiferença pode existir apenas para o investidor anónimo, mas não para quem
dirija uma empresa ou seja um acionista maioritário. É o método abstracionista de Karl Marx
que faz com que, no final, reste apenas o capitalismo como regra do jogo, que, como tal, é
indiferente aos vários géneros de mercadorias. Mesmo os banqueiros que, na sua profissão,
podem se alhear bastante das mercadorias por onde passa o seu capital, não podem ter esta
indiferença enquanto consumidores. Marx fala do capitalismo como regra do jogo tal como
podemos falar das regras do xadrez, que são indiferentes a quem ganhe a partida, mas ele
pretende que essa regra também explique os jogadores, como se eles também fossem
indiferentes a quem ganha ou perde.
Marx enuncia ainda a sua Teoria da Mais-valia, que diz que o empresário vende o
produto segundo o valor do trabalho incorporado mas só pagará uma parte àqueles que
realizaram esse trabalho. Ele pressupõe um valor fixo do trabalho que pode medir tudo o
resto, o que já vimos ser absurdo, dado ignorar aquilo que os consumidores estão dispostos a
pagar. α40
[Aula 41]
157. A tradição primordial e a escola tradicionalista
Enquanto a arte religiosa expressa sentimentos ocasionais e concepções
culturalmente localizadas, a arte sacra é uma cristalização de certos princípios ordenadores,
universais e transcendentes a todo o condicionamento histórico e cultural (ver Le
Symbolisme du Temple Chrétien, de Jean Hani). Não só a arte sacra desapareceu no
ocidente, como aquilo que ela veiculava também foi sendo erodido do horizonte de
consciência da modernidade, só tendo sido recuperado, em parte, devido aos trabalhos de
pessoas como Mircea Eliade, Ananda Coomaraswamy, Matila Ghyka, Schwaller de Lubicz,
Mary Hambidge, Louis Charbonneau-Lassay, René Guénon, Frithjof Schuon, Titus
Burkhardt, Seyyed Hossein Nasr ou Martin Lings. Por trás dos símbolos presente em vários
templos (catedrais góticas, templos hindus, templos egípcios, etc.) aparecem certas
“constantes do espírito”, preceitos que condensam todo o saber simbólico sobre a ordem da
realidade geral e sobre a posição do homem nela, que são a moldura da possibilidade de uma
História humana. Os diversos símbolos apareceram de forma historicamente independente,
mas apontam para a mesma realidade. As “constantes do espírito” têm uma acepção
kantiana, como se fossem constantes embutidas no sujeito cognoscente e não na estrutura da
realidade. Elas são supra-históricas, mas a pretensão de nada dizerem sobre a realidade
também é falha, como é particularmente visível no templo de Luxor, onde Lubicz mostrou
que os egípcios já tinham bastantes concepções científicas. Então, estas constantes reflectem
leis objectivas que presidem ao conjunto da realidade, incluindo a História e o espírito
humano.
119
Os intelectuais que vieram restaurar parte da tradição sagrada eram quase todos
exteriores à tradição cristã. Contudo, Jean Borella, apesar de ligado à escola tradicionalista,
mostrou que aquilo que René Guénon apresentava como fonte oriental já estava no
cristianismo, e o próprio Mário Ferreira dos Santos fez isso também. Contudo, durante a
consagração do Iluminismo, muito deste conhecimento se perdeu mesmo, tendo algum
passado para sociedades secretas, ao passo que os intelectuais cristãos não conseguiam
acompanhar o que estava acontecendo. Então, os conhecimentos voltaram para o ocidente,
vindos do oriente, na mão de pessoas como René Guénon, Schwaler de Lubicz, Frithjof
Schuon, Titus Burckhardt, Whitall Perry, etc. Apesar de muitos conhecimentos valiosos que
trouxeram, algumas ideias veiculadas por eles não podem ser aceites de todo. Guénon fala de
um esoterismo cristão, por exemplo, que estaria vivo na maçonaria e na companheiragem.
Mas não há traços efectivos da maçonaria antes do séc. XVI, além de que Cristo disse
explicitamente que não ensinou nada em segredo (Schuon aqui diverge de Guénon e diz que
as iniciações cristãs estão nos próprios sacramentos da Igreja).
Sem a arte sacra não é possível fazer uma ascensão fiel até obter um vislumbre das
realidades espirituais últimas. Dizia Platão que a beleza é a forma da verdade; sem a beleza a
prática religiosa cai numa obediência literal, grosseira, e a arte religiosa torna-se mero
adorno, pouco importando que seja entregue a ateus porque o resultado será idêntico. Apesar
da existência de Deus ser, nomeadamente em São Tomás de Aquino, matéria de
conhecimento e inteligência racional, a arte sacra é o suporte que permite uma visão mais
intuitiva da doutrina sagrada. Além disso, na tradição antiga considerava-se que tudo o que
acontece no mundo físico como sendo símbolo de realidades divinas, ou seja, a compreensão
simbólica da natureza permitia entender o mundo divino por trás: tudo é feito pela mediação
dos símbolos e, perdida essa linguagem, os factos da natureza passam a ser observáveis
apenas de acordo com os critérios das ciências modernas. Nestas, a matemática é apenas
vista como um auxiliar de medição e como uma ferramenta de obter constantes e relações,
enquanto no entendimento antigo o próprio número não designava apenas uma quantidade
mas também uma forma lógica: “1” é a unidade, “2” a dualidade, “3” a forma ternária, etc.
Podemos nos aprofundar neste assunto no livro A Sabedoria das Leis Eternas, de Mário
120
Ferreira dos Santos, onde ele diz que os números não são apenas formas lógicas mas
estruturantes da realidade. Ele criou uma “decadialéctica”, que no fundo já estava nos
escolásticos, e que consiste em enfocar um tema (um ente, um problema, etc.) sob dez formas
lógicas sucessivas: primeiro como unidade; depois como dualidade ou oposição; de forma
ternária ou estrutura silogística-dialéctica; como quaternário, ou seja, como proporção, etc.
Falta aos cristãos não a fé mas uma consciência clara dos seus fundamentos
cognitivos inabaláveis. A doutrina é um primeiro andar para esses fundamentos, e se
estudarmos São Tomás de Aquino ou Santo Agostinho obtemos um suporte intelectual, mas
isto é pouco, havendo num segundo andar o simbolismo das formas sensíveis da arte sacra,
incluindo as sumas medievais, que têm uma estrutura artística que veicula simbolicamente
realidades que a própria doutrina não consegue explicitar por palavras. Para captarmos isto,
temos de contemplar as sumas tal como fazemos com as catedrais. Também a Divina
Comédia tem uma estrutura de versos e acentuações semelhante à estrutura das catedrais. O
ponto de partida deve ser estético, por assim dizer, e uma vez impregnado o símbolo, ele vai
gerar múltiplas intelecções em nós e estas, uma vez articuladas, formarão um objecto de
contemplação, que terá ele mesmo um sentido simbólico.
energias espirituais e criativas que ainda existem nas várias religiões, mantém as estruturas
externas das mesmas e colocam o sheik muçulmano por cima, como se fosse uma espécie de
papa supra religioso.
Se lermos livros como Comprendre l’Islam (Frithjof Schuon) ou Ideals and Realities
of Islam (Seyyes Hossein Nasr) teremos uma visão idílica e mitificada do Islão, nada
condizente com o homem bomba ou com a “teologia da libertação” de Sayyd Qutb. Pode se
argumentar que isso é apenas uma crise do Islão exotérico, mas como quer o Islão esotérico
salvar a cristandade se nem sequer consegue ajudar a sua versão exotérica? Na realidade, a
actuação das tariqas não se opõe ao imperialismo islâmico, até o protege, por exemplo, na
actuação do príncipe Charles, discípulo de Martin Lings (sheik na tariqa de Schuon depois da
morte deste).
[Aula 42]
158. O papel interventor dos alunos do Curso Online de Filosofia na
sociedade
Os alunos do Curso Online de Filosofia devem ter sempre presente o senso da miséria
do ambiente à sua volta, e ter a noção de que é melhor ficar no vazio e sem referências por
algum tempo do que recorrer a alguma referência local para parecer igual aos outros ou para
parecer dotado de comunicabilidade (algo que não existe realmente hoje em dia). Então, não
há que ambicionar ter um papel na cultura brasileira com o intuito de participar na conversa
no nível que ela tem hoje. É preciso criar outras funções, inventar novos meios de actuação;
não temos que nos amoldar em nada ao presente estado de coisas. Não devemos tentar fazer
algo que seja compreendido pelo presente meio académico, mas fazer coisas que só serão
realmente compreendidas por pessoas como nós, que existirão no futuro. Podemos intervir
pontualmente no debate actual, para denunciar certas pessoas, mas a preocupação
fundamental é criar um outro debate acima deste, que irá se sobrepor ao actual e, pelo seu
peso, fará este ceder. Para melhorar substancialmente o presente debate, teria de haver nele
uma raiz do que é bom, mas esta condição não se cumpre. O ambiente em que vivemos não
está apenas corrompido, ele é também corruptor.
O trabalho que os alunos virão a realizar poderá inspirar a futura classe política (esta
é uma das suas funções dos alunos em alguma medida), mas é preciso distinguir a função
intelectual da função política, incluindo a do mero debatedor de ideias. A esquerda sempre
soube disto: os seus intelectuais não procuravam convencer as massas mas preocupavam-se
em gerar as possibilidades de uma política. α42
122
Contudo, não falamos apenas como indivíduos mas também como membros da
espécie humana. Então, pela nossa experiência sabemos identificar aquilo que depende da
nossa individualidade e aquilo que é representativo da estrutura humana geral em nós, ou
seja, conseguimos distinguir no nosso discurso o puramente individual daquilo que é
universal na medida em que vivenciamos a universalidade na nossa condição humana.
Apenas este método assegura a verdade mesmo, embora dificilmente daqui saia uma prova
colectiva. Mas ninguém pode falar com Deus colectivamente, apenas através da confissão
solitária. α42
[Aula 43]
161. A diferença entre ciência e tecnologia
Em ciência tenta reduzir-se a multiplicidade dos fenómenos à unidade de um
princípio. Ainda que esse princípio não seja logo conhecido, tem que haver inicialmente
alguma noção dele, dado que constitui a base do recorte dos fenómenos a observar. Mas
podemos nem ter uma explicação desse princípio, por exemplo, podemos unificar vários
fenómenos debaixo do nome de “electricidade”, embora ninguém saiba o que seja uma carga
eléctrica. Qualquer ciência busca sempre reduzir diferentes aparências, propriedades ou
acidentes a uma substância única; é sempre a redução do múltiplo ao uno, sendo acessórios
os procedimentos e os conceitos usados para isso.
Uma ciência alcança o seu objectivo quando enuncia uma proposição que, idealmente,
explica e unifica o campo inteiro dos fenómenos que estuda. Contudo, a técnica fica
consumada quando produz o efeito, objecto ou processo desejado. A confusão entre ciência e
tecnologia provoca muitos erros, como tentar fazer crer que o avanço da tecnologia valida a
ciência por supostamente ser motivado por esta. Contudo, o movimento ocorre geralmente
no sentido oposto, ou seja, os objecto são produzidos sem ter ainda uma explicação razoável
de todos os seus componentes e é a sua existência que auxilia, mais tarde, a busca dos
princípios científicos que os explicam. α43
Para construir essa concepção do mundo não podemos apenas nos servir de
elementos sobre os quais tenhamos um controlo crítico total, como acontece com os
conhecimentos de uma ciência consolidada. Iremos usar também sugestões metodológicas
destas ciências, elementos da nossa experiência pessoal (que podem ser bastante subjectivos
e incomunicáveis), símbolos extraídos da linguagem cotidiana ou de alguma tradição cultural
ou religiosa, e assim por diante. Estas coisas não podem ter por trás um princípio comum que
as explique ao mesmo tempo, nem poderá a filosofia, quando chegar à sua fase expositiva,
conseguir explicar todos os elementos contidos nela, apenas fornecerá um certo senso de
orientação no conjunto do conhecimento tal como ele chegou ao filósofo. Há muitas coisas
implícitas no texto e há ainda aquilo que o filósofo continuou a experienciar e a reflectir
depois de terminar as suas obras. E existem ainda os casos das grandes filosofias, como as de
Platão e de Aristóteles, que continuaram depois da morte destes, já que eles deixaram
inúmeras sementes de pensamento a serem desenvolvidas.
Contudo, quando o filósofo escreve uma obra, ele não oferece aquilo como um
produto para ser consumido em si, como acontece com um resultado habitual da técnica. O
escrito filosófico é apenas um intermédio entre duas experiências humanas – a que motivou o
filósofo e a que o leitor reconstrói por analogia, tentando-se aproximar da primeira –, que
permanecem largamente inexpressáveis. Os próprios conceitos que o filósofo usa têm
frequentemente muito mais do que um simples conteúdo, que poderia ser evocado mediante
um automatismo memorativo. Podem condensar toda uma tradição de discussões e só
revivendo esse historial podemos entender o que se esconde por trás do texto. Ou seja, o
conteúdo de uma filosofia não é totalmente dizível, e uma filosofia propriamente dita não se
confunde com a obra escrita derivada. Já se considerarmos uma obra de arte, apesar de esta
125
poder evocar inúmeras coisas, em si mesma é somente aquela coisa que se apresenta, seja a
música executada, a pintura na tela ou a escultura, e não podemos dizer que a verdadeira arte
se esconde por trás destas coisas.
O estudo filosófico não visa a construção de uma filosofia mas educar ou construir o
filósofo. As obras de filosofia e o seu ensino almejam transformar os leitores em aprendizes
de filósofos. Se os livros de filosofia forem bem lidos, isto de certa forma torna-se inevitável,
porque a leitura obriga a refazer experiência cognitivas análogas às do autor, e isto já é
exercer filosofia. A filosofia é uma técnica destinada a fazer do estudante um filósofo. Na
realidade, o filósofo nunca escreve para não filósofos. E quem entra na filosofia não pode
escolher problemas mais acessíveis e deixar os mais difíceis para depois, porque mesmo sem
percebermos já estamos metidos no meio dos problemas mais intricados. O mero uso da
palavra “substância” já trás um mar de problemas atrás, por exemplo.
O objectivo da filosofia é criar filósofos, que são as pessoas capacitadas para articular
conhecimento e consciência. Se tomarmos o conhecimento como algo que pode ser registado
de forma fixa, por exemplo, numa equação, falta saber o que isso significa. Podemos começar
por explicitar os termos utilizados, e uma compreensão a este nível chega para passar num
exame e talvez até para desempenhar uma profissão. Contudo, para o filósofo, o sentido da
coisa é a sua fundamentação, a sua razão de ser, as consequências que aquilo tem para o
conhecimento em geral, para a vida humana e para as demais ciências, e até mesmo
averiguar as implicações possíveis para a concepção do mundo em geral. Obviamente que isto
extravasa o âmbito de qualquer ciência. No caso da mecânica quântica, temos uma descrição
muito aperfeiçoada de um conjunto de fenómenos para os quais não encontramos uma
explicação.
Estas questões são básicas para a investigação científica mas transcendem o próprio
conjunto das ciências. Ponderá-las, exige uma articulação entre a consciência, o
conhecimento e o conjunto de propriedade aceites como verdadeiras. Articular tudo isto é a
proposta da filosofia. α43
126
[Aula 44]
163. A acumulação de registos de conhecimento
Existe uma enorme acumulação de registos de conhecimento, mas sendo eles
inacessíveis, no seu conjunto, ao ser humano, não são propriamente conhecimento.
Frequentemente, acabam por ser, para a inteligência humana, tão opacos como o próprio
mundo físico. Este, em si, já constitui um imenso depósito de registos de conhecimento, que
necessitam apenas de ser descodificados, o que muitas vezes é mais fácil de fazer do que
descodificar certos registos humanos sobre o mesmo enfoque. Para além destes registos
naturais – a linguagem embutida nos seres da natureza – existem também os registos
históricos, que não foram criados tendo em vista uma finalidade científica mas para servirem,
essencialmente, propósitos práticos. Existem ainda os registos da vida cognitiva. Os vários
tipos de registo humano são objectos – livros, documentos, micro-filmes e assim por diante –
e não conhecimentos. Não podemos armazenar pensamentos, apenas signos visíveis que,
uma vez decifrados, podem idealmente fornecer conhecimento àquele que os decifrou.
parte que já conhecemos. A inteligência humana faz parte desse campo: ela é a capacidade de
inteligir o inteligível, o que quer dizer que o nosso modo de presença é tal que as coisas se
mostram a nós.
[Aula 45]
ponto de podermos dizer que as nações europeias foram fundadas pela Igreja. Também
vemos que no médio oriente, na Índia e extremo oriente, todas as sociedades têm origem
religiosa, é sempre uma casta de clérigos que funda as civilizações. No sentido medieval,
clérigo não é apenas o sacerdote mas qualquer homem culto imbuído de espírito religioso.
Também eram clérigos os fundadores dos EUA, com a excepção de Jefferson e Franklin. A
base da sociedade americana eram as comunidades independentes protestantes, que se
autogovernavam e tinham apenas o Evangelho como lei, como bem retratou Alexis de
Tocqueville no livro A Democracia na América.
Neste contexto, só poderiam existir dois tipos de intelectual. Por um lado, aqueles
protegidos pela classe dominante, a quem lisonjeiam de forma despudorada de modo a
ocuparem todos os lugares relevantes. Por outro lado, existiam os marginalizados, vivendo de
empregos infames e sempre sofrendo pela “injustiça no mundo”. Existiam talentos em ambos
os grupos (por exemplo, Machado de Assis e Otto Maria Carpeaux nos marginalizados) mas,
a longo prazo, a situação existencial acabaria por corromper uns e outros. Os primeiros
acabaram por fazer uma literatura que é um “sorriso da sociedade”, e os segundos, aos
poucos, foram achando que a produção intelectual era secundária em relação à colaboração
ou adesão a movimentos políticos “empenhados” em corrigir os males do mundo, que era
uma vingança contra a exclusão que eles se viam votados. Assim, gradualmente, os
intelectuais de esquerda abdicaram dos seus deveres e passaram a buscar uma legitimação
existencial na mera aprovação solidária dos seus companheiros de militância, processo que
foi apressado com a expansão da universidade nos anos 40 do séc. XX. Ali criaram-se os
intelectuais em sentido gramsciano, que são activistas políticos sem qualquer obrigação
mental específica, apenas diferenciados pela instrumentalização da sua actividade em prol da
causa esquerdista, como está documentado n’O Imbecil Coletivo. Entretanto, a casta
gramsciana acabou por chegar ao poder, no governo de Fernando Henrique, tendo se
consolidado no tempo de Lula, em que a incultura do presidente passou a ser celebrada como
prova dos seus méritos sublimes ou mesmo como denunciando um carisma profético. Assim,
ficou consagrada a completa destruição da vida intelectual e da educação no Brasil.
Sobreviver afectivamente num meio assim pode parecer difícil, contudo, os problemas
afectivos deviam ficar resolvidos para quem já tem uma família e um cachorro. Depois, temos
130
[Aula 46]
167. As bases do aprendizado
Não podemos expressar a nossa experiência directamente, temos de o fazer com a
mediação da herança cultural que se interpõe entre nós e a experiência, fornecendo
instrumentos para transmutarmos uma coisa na outra. O aprendizado do processo de
verbalização é complexo e exige um mediador, que começa por ser o ambiente familiar, e
depois prolonga-se na escola e na herança cultural. Na situação brasileira, o aporte fornecido
pela herança cultural é muito pobre tanto em termos quantitativos como em termos
qualitativos, com muitos esquemas repetitivos e vinculados aos interesses da elite cultural do
momento. Acresce ainda que os educadores no Brasil foram muito influenciados por Piaget,
que considerava no aprendizado apenas dois elementos: o sujeito e o objecto. Ele é um
educador que parece desconhecer a existência de professores, porque achava que a relação
entre a criança e o mundo era directa. Num contexto assim, a absorção da tradição cultural
sai diminuída, limita-se à aquisição de um série de automatismos lógicos, gramaticais e
semânticos. As pessoas vão utilizar estes automatismos para o resto da vida, pensando que
aquilo é pensar, quando não é, e menos ainda é aprender. Seja qual for assunto em cima da
mesa, a tentação de quase todos é começar logo a montar frases de forma automática, sem
parar para imaginar a experiência real.
Os alunos do Curso Online de Filosofia devem logo começar por ter consciência da
dificuldade em transmutar a experiência em linguagem (a tarefa fundamental dos escritores),
o que pressupõe já alguma consciência da própria experiência. A tradição literária é o
primeiro aporte do aprendizado. Frank Raymond Leavis propunha o estudo do inglês
(porque era a sua língua) como disciplina de pensamento, sendo também uma disciplina de
percepção e de expressão. A língua tem várias camadas, começando pela sonora, que deve ser
exercitada logo desde a tenra infância, como acontece no mundo anglo-saxónico com as
nursery rhymes, género para o qual grandes escritores contribuíram. Não se pode colmatar
as falhas auditivas do período infantil usando a grande literatura, lendo grandes poetas,
Fernando Pessoa ou Carlos Drummond de Andrade, dado que ficaremos com estruturas
complexas em cima de uma base frágil. Como resultado, teremos tendência em apostar num
verbalismo cada vez mais sufocante. Então, é preciso voltar atrás e recitar as fórmulas
infantis. Em termos de verbalização, também é indispensável começar por exercícios de
descrição, como devíamos ter feito na escola. Não podemos ter a ilusão de que conseguimos
falar sobre Platão se nem conseguimos descrever o nosso gato ou o que se passou no último
fim-de-semana. α46
interpessoais. O florescimento destas relações, nos anos 60 do século XX, foi um “resgate”
que durou pouco tempo e logo a intimidade foi explorada como um motor da alienação. A
vivência colectiva, então, passou apenas a existir sob a forma deturpada dos movimentos
ideológicos. Os jornalistas assumem uma postura quase de profetas, já não admitem terem
um papel secundário em relação às fontes de conhecimento mais elevadas. Reagir a isto com
moralismo religioso ainda piora a situação. Todos estes factores tornam a prática do método
da confissão cada vez mais difícil. Exercícios como o do necrológio [4] visam trazer para o
nosso centro os elementos que possibilitam uma prática confessional. α46
[Aula 47]
lugares e situações por que ele passe. Em ambos os casos – ente tomado como representante
da espécie e ente tomado individualmente sob determinado nome – o conceito abstracto não
nos separa da entidade concreta que estamos nomeando mas, pelo contrário, possibilita
observar aquele ente individual com mais acuidade, permitindo ver mais facilmente as
diferenças entre ele e outros membros da espécie, assim como as diferenças entre ele e ele
mesmo tomado em várias situações.
Num segundo tipo de abstracção separamos uma qualidade da sua substância. Por
exemplo, tomamos uma superfície branca, que em si mesma não existe mas podemos abstraí-
la de um muro, de um papel, do pelo de um gato, para na sequência estudar as suas
propriedades. Neste processo, a substância não é tida em conta e nem sequer podemos saber
se a qualidade está realmente presente no ente como qualidade ou como acidente. Em ciência
faz-se abstracção destas qualidades, que passam a ser estudadas em si mesmas, com vista a
delas obter descrições matemáticas. Dificilmente as ciências podem estudar algo de real,
estudam apenas propriedades comuns a vários objectos reais. Todas as propriedades
somadas (que podem ser derivadas da sua definição) não bastam para formar um objecto, já
que este, para existir, tem de estar sujeito a um número infinito de acidentes, e basta faltar
apenas um para se tratar somente um ente pensado. Obviamente que o conhecimento
acumulado pelas ciências diz algo sobre o comportamento da realidade, trata-se de uma
demarcação de uma certa estrutura de possibilidades do mundo externo, ou seja, quaisquer
objectos que possuam tais qualidade não irão transgredir os limites que a sua matematização
descortinou. Por exemplo, sabemos que um muro preto nunca poderá reflectir tanta luz
quanto um muro branco.
A ciência não pode tratar da realidade em si mesma dado que usa um tipo de
abstracção que é indiferente à substância individual, que é a única coisa que realmente existe.
Uma concepção científica que juntasse idealmente os vários conhecimentos e conclusões das
várias ciências, articuladas de forma perfeita, ainda assim seria apenas uma armadura
matemática de um mundo possível, sem conter qualquer objecto real. Trata-se de uma
concepção compatível com um número indefinido de outras, que se obteriam se as ciências
tivessem sido criadas a partir de outros pontos de vista e de outras medições. Todas as
armaduras assim montadas coincidem com a realidade em certos pontos específicos, mas a
articulação do conhecimento científico com a realidade depende da capacidade do ser
humano raciocinar a partir da sua experiência como ser concreto, percebendo quais os
pontos em que ela se articula com as conclusões científicas. Não há nenhuma maneira
científica de fazer isto, só é possível através do bom senso ou da filosofia (um bom senso de
segundo grau). Isto é um esforço individual, mas a ciência moderna faz depender a sua
validade de um consenso grupal, que naturalmente encaminha para a validação apenas da
armadura matemática. Então, não se trata de verdadeiro conhecimento (seria, com mais
propriedade, chamado de “empirismo matematizável”) – conhecimento é algo que versa
sobre a realidade tal como experimentada pelos seres humanos –, é apenas um conhecimento
em potência, pensamento, que mesmo se altamente complexo, elaborado e autocrítico, não
tem ancoragem directa na realidade. α47
[Aula 48]
134
Quididade vem do latim quid (o quê); é a respostar à pergunta “o que é?” É um gato,
um elefante, etc. Prossegue Chenique:
c) Acto sem veracidade, nem falsidade. A simples apreensão não julga, ela não afirma
nem nega nada do objecto apreendido. Por isso, não se pode dizer que o conceito
“homem” seja verdadeiro ou falso; não se trata senão da representação intelectual
da essência de indivíduos designados em outras circunstâncias de uma maneira
particular como Pedro ou João».
O ente e o seu esquema geral aparecem num esquema tensional: ao ente não falta
nenhum atributo da essência e a essência não pode existir apenas como ideia, de resto, não é
dessa forma que a captamos. A simples apreensão na realidade não é um acto simples, é um
acto instantâneo do espírito e, como tal, não pode perfazer imediatamente todas as suas
possibilidades. Aristóteles e Platão não tiveram solução teórica para este problema mas não
se confundiam, e mesmo as “ideias platónicas” sabemos hoje serem uma figura de linguagem.
Em termos de puro raciocínio lógico, apenas lidamos com essências abstraídas das
substâncias concretas, como um computador poderia fazer, apenas lidando com termos que
condensam conceitos, chegando a conclusões válidas para as essências abstraídas mas apenas
indirectamente para os entes concretos. Os seres humanos não conseguem raciocinar de
maneira tão pura e sempre terão a referência implícita aos objectos e aos repectivos círculos
de latência. A simples apreensão não produz uma forma separada, antes dá uma fórmula do
ente (quididade) onde a possibilidade da sua existência já está incluída como potencialidade
da sua forma essencial, portanto, é a captação de uma fórmula interna, aquilo que permite ao
ente ser aquilo que ele é, e que não se pode separar dos elementos concretos e até acidentais
que permitem a sua existência. Na simples apreensão, existe uma antecipação daquilo que
pode acontecer aos entes (círculo de latência), que é tensional porque não totalmente
consciente e surge de modo fragmentário. Mas é a nossa capacidade mais notável, muito mais
certeira do que o raciocínio lógico.
Aristóteles diz que a verdade existe apenas no juízo, na afirmação, e que a simples
apreensão nada afirma ou nega. Mas nesse acto já se afirma a distinção entre aquele ente e
todos os outros possíveis, pelo que ali já se concentra todo o problema filosófico. Temos de
fazer com que todo o nosso raciocínio lógico não apague a nossa consciência do círculo de
latência, como todos os grandes filósofos sempre fizeram. O próprio erro lógico apenas
invalida a prova dada mas não a experiência cognitiva por detrás, que poderá, por vezes, ser
136
recuperada até a partir de uma prova errada. Também fazemos apreensão de ideias nossas,
não abstraídas de coisas percebidas mas dos elos de necessidade entre os nossos
pensamentos, ou seja, de uma estrutura lógica. É da experiência da impossibilidade ideal que
tiramos os conceitos de ordem metafísica, como o de necessidade. Se apenas tivéssemos
experiência da impossibilidade física, não da impossibilidade lógica, iriamos sempre
acreditar que seria possível acontecer algo desde que fosse apenas um pouco diferente
daquilo que atrás se mostrou impossível. Ao lado do círculo de latência captamos também
um círculo de necessidade, que limita o primeiro de modo absoluto, embora o primeiro seja
ilimitado quantitativamente.
Para além da lógica é necessária uma técnica da simples apreensão concreta, que
significa perceber as coisas como elas são, que no fundo é a fenomenologia. Husserl criou
esta técnica para ser quase uma ascese, uma forma de refrear o modo normal de pensamento
que quer sempre tirar conclusões: há que permanecer fiel às coisas. Tem de haver o desejo
das coisas serem como são. Daqui veio a Olavo de Carvalho a ideia da contemplação
amorosa, inspirada também em São Tomás de Aquino, que disse que “o amor é o desejo de
eternidade do ser amado”. Um dos segredos da filosofia não é o recuo cognitivo mas uma
aproximação activa à realidade. Isto é um antídoto contra o fechamento numa concepção
matemática, que corta os laços com uma concepção linguística e simbólica, apesar de se
basear nela. Então, o mundo real é substituído por outro apenas constituído de ideias, mas
que, num acto de feitiçaria, podemos decretar ser mais real do que o primeiro, apenas porque
se nos afigura como mais constante, já que foi ditado pela escolha humana. α48
[Aula 49]
172. Percepção e cepticismo
A primeira apreensão nunca erra porque aquilo que estou vendo é aquilo que estou
vendo, e mesmo sem um nome para a coisa, já tenho um signo mental que corresponde à
forma da sua presença. Logo, ali está uma riqueza tal que todos os demais conteúdos são
apenas comentários à sua volta. A coisa é imediatamente representada por um verbum
mentis, que não precisa de ser palavra proferida – é uma linguagem interior que não dá para
separar da percepção. Mas o que acontece quando alguém parece estar acenando para nós e,
afinal, é para uma pessoa atrás? O erro não está na percepção mas na relação entre o dado
presente e um dado hipotético. Trata-se de um erro na suposição que pressupõe a percepção
exacta. Na realidade, o que acontece nestas circunstâncias é um procedimento científico, há
uma ligação entre um pedaço da percepção real com um pedaço do nosso raciocínio lógico:
(1) existe uma selecção inicial do objecto a estudar, neste caso o aceno; (2) segue-se uma
hipótese para explicar esse sinal (é para mim); (3) faz-se o teste e verifica-se que a hipótese
não se confirmava; (4) formula-se uma nova explicação. A ciência serve, então, para
complementar a nossa percepção (mas não para se substituir a ela) e corrigir o nosso
pensamento à luz de algum fenómeno do mundo exterior, que, por sua vez, depende de uma
escolha inicial, que pode estar errada, daí a necessidade da permanente correcção, feita a
partir de uma ontologia de base tirada da experiência real.
137
A percepção tem uma riqueza enorme, começando logo por dar uma união
indissolúvel entre uma ideia universal e uma presença singular, havendo sempre uma tensão
entre as duas. Sabemos que os caracteres essenciais daquele ente vão estar presentes em
outros entes da mesma espécie, e é por isso que reconhecemos um segundo espécime, porque
apreendemos o esquema geral logo à primeira. Outra forma de expressar esta ideia é dizer
que o ser humano nunca capta entes puramente singulares, embora a apreensão nos dê tanto
a essência da espécie como a integralidade da forma individual do ente. Como este esquema
geral também pode ser construído, de modo a ser fixado e reproduzido, há a ilusão de que o
processo de apreensão também é construtivo.
[Aula 50]
174. A simples apreensão e as percepções adicionais
139
Os estados, propriedade, acidentes, etc., fazem parte do círculo de latência, pelo que
são apreendidos como um conjunto de possibilidades que não estão totalmente conscientes e
nem fazem parte da natureza do ente. A apreensão de estados de facto, por exemplo, já é um
segundo nível que pressupõe a percepção da natureza do ente a que aquele estado se aplica.
Então, não é uma percepção imediata, como no caso da simples apreensão (percepção
principal, que é imediata ou simplesmente não acontece), necessita de uma sequência de
observações e actos cognitivos (percepções adicionais), e é aqui que a competência de cada
ciência se revela imbatível para o campo em que se ocupa. Contudo, na transição para a
modernidade, a noção de substância foi abandonada – ficou implícita – e sobraram apenas
os estados observáveis e matematizáveis. Isto quer dizer que a ciência moderna não pode
estudar acções, que são sempre atribuíveis a sujeitos com formas substanciais, mas apenas
transformações. α50
Ocorrendo o juízo internamente, então, não existem elementos exteriores para nos
apoiarmos decisivamente em matéria de verdade ou falsidade (isto em termos de
conhecimento e não de manifestação do ser). Também pode existir veracidade na percepção
mas que nem chega a ser expressa. Todas as bibliotecas juntas não contém uma única
verdade, apenas são sementes de juízos verdadeiros para quem se disponha a ler os registos.
Isto não se deve às incontornáveis ambiguidades da linguagem, que apenas reflectem a
ambiguidade das próprias coisas, mas porque é imprevisível aquilo que vai sair do círculo de
latência de cada ente no instante seguinte. A capacidade de percebermos a verdade é função
do exercício da nossa liberdade e da nossa responsabilidade pessoal. Nunca teremos uma
garantia externa de possuirmos a verdade, o amor a ela é a nossa única garantia. Não basta
um sentimento momentâneo, tem que ser algo que já não temos como negar, excluindo
taxativamente o seu contrário até mesmo como mera possibilidade. Mas podemos ficar com
medo e apelar a garantias externas, nomeadamente aos dogmas religiosos e ao aparato
lógico/científico, com toda a sua perfeição formal. O apelo à autoridade religiosa é outra falsa
140
segurança, lembrando São Paulo que disse que temos de acreditar no Espírito que vivifica e
não na letra que mata. Por outro lado, a tentativa de criar uma linguagem lógica
absolutamente perfeita (Wittgenstein, Bertrand Russel) falhou totalmente, porque o aumento
da perfeição ia eliminando todo o conteúdo (na linguagem puramente formal cada termo só
remete para si mesmo e é alheio a qualquer objecto de percepção). Contudo, as pessoas que
falam em nome da ciência subentendem que são possuidoras de uma autoridade que se deve
impor a todos obrigatoriamente, independentemente da consciência individual. α50
[Aula 51]
De facto, o mesmo se aplica às ciências, que não lidam com entes reais mas com
essências puras. Toda a ciência consiste em transpor o mundo da realidade para o mundo da
possibilidade. O máximo conhecimento científico é a enunciação de uma lei, que é um elo de
necessidade que diz que quando se verificam certas condições, então, determinadas
conclusões seguem-se necessariamente, como acontece no silogismo. E o ideal moderno de
ciência é criar um procedimento totalmente automático, matematizado e que dispense o
sujeito humano que conhece. Daí não resultaria um conhecimento mas um conjunto de
141
esquemas formais lidando com essências puras, sendo altamente problemática a relação
disto com a realidade. Esta relação só pode ser feita por um ser humano que é capaz de
praticar abstracção a vários níveis mas também tem a possibilidade de ir no sentido inverso,
o da concreção. O único portador do conhecimento é a consciência humana individual.
Mário Ferreira dos Santos definia dois conceitos relacionados com a nossa capacidade
de concreção e de abstracção: actualização é aquilo que ocupa o foco de consciência neste
momento; virtualização é aquilo que é jogado para um pano de fundo mas não é totalmente
esquecido. Os acidentes abstraídos na actualização de uma essência individual são
virtualizados e não apagados. Se não conseguimos, a qualquer momento, recuperar estes
acidentes, então, não sabemos se ainda estamos a lidar com um objecto real. Todo o método
filosófico gira em torno da tensão entre o abstracto e o concreto, e o método da confissão não
é mais do que trabalhar em simultâneo ao nível das essências puras e ao nível da memória e
da imaginação, pois só assim podemos confessar que estávamos realmente presentes no
objecto do qual abstraímos a essência.
Da simples apreensão sai o conceito, que expressa o termo lógico, que é o fim, o limite
da simples apreensão, além de ser o seu conteúdo. Mas conceito implica apreender algo: se
for algo da substância real, temos uma primeira intenção, se for apenas um conteúdo de
pensamento, temos uma segunda intenção, na linguagem dos lógicos antigos. A transição
entre as duas coisas é problemática. A primeira intenção vem acompanhada do círculo de
latência, que também é ele mesmo latente. Então há sempre uma tensão que devemos
cultivar de que nos falta algo quando lemos um filósofo, e tudo isto deriva do respeito que
devemos ter para com a realidade.
acção e paixão. Outras duas categorias são espaço (ou lugar, onde algo se encontra) e tempo
(quando algo ocorreu).
Mais exemplos sobre problemas de substancialidade: 1) Spinoza diz que só Deus tem
substancialidade, mas Feurbach diz que Deus é apenas uma ideia humana; 2) Uma partícula
subatómica é uma substância ou existe apenas como propriedade de outra coisa? 3) Este gato
parece ser substância, segundo o critério aristotélico de que não é parte ou atributo de outra
coisa, mas isso é realmente assim ou este felino é apenas uma aparência temporária da
espécie gato, que seria a verdadeira substância? 4) Em termos de Teoria da Evolução, o
processo evolutivo abrange e transcende as espécies ou, antes, é a evolução uma propriedade
das espécies? (Não deve haver um evolucionista ou anti-evolucionista que tenha percebido a
existência do problema); 5) Nas teorias históricas, sociológicas e políticas quase tudo é
discutido com figuras de linguagem que não expressam nada a não ser expectativas, anseios e
sentimentos grupais, mas que são tidos como coisas substanciais. Pode haver ali muito
conhecimento importante mas é quase tudo discurso poético, que pode até servir de
orientação (tal como a tribo se orienta com os seus mitos) mas que exige um grande trabalho
de transposição para obter algum conhecimento realmente científico, embora numa parcela
ínfima onde o discurso analítico possa se aplicar; 6) Mesmo o pragmatismo que diz não se
importar com a substancialidade das coisas, ainda assim toma as acções como matéria
substantiva, pelo que não dá para fugir do assunto.
Contudo, há algumas certezas que podemos ter, desde logo a da nossa existência. Mas,
para não cairmos no erro de Descartes, a primeira certeza deve vir logo acompanhada de uma
segunda, que é a de existirmos num universo ilimitado. Este universo “boia” dentro de um
campo de possibilidades ainda mais ilimitado, o apeiron de Anaximandro. Se há uma
necessidade absoluta é a da existência do infinito, não tomado quantitativamente, como na
série dos números, mas como aquilo que está para além de todas as limitações possíveis.
Afirmar que o infinito não existe é dizer que a totalidade do que existe é limitada, o que
obrigaria a haver algo “para lá” que a limita-se, e se este “para lá”, não fosse ele ilimitado,
teria de obrigar a existir um outro “para lá” que o limitasse, e assim por diante até ao infinito.
Todo o ser humano tem um senso de infinitude, que é a base da nossa compreensão,
mas apenas temos a experiência de coisas finitas e até mesmo ínfimas. Contudo, tudo o que
conhecemos é como unidade, lembrando Duns Scot que dizia que o ser e a unidade se
convertem mutuamente. Então, em tudo o que conhecemos há uma tensão primária entre o
um e o infinito. Só existe um infinito e, por outro lado, só podemos predicar aquilo que tem
unidade. A razão humana consegue mover-se entre estes dois extremos e é isto que nos
permite classificar, catalogar ou predicar, embora a nossa capacidade racional não precise de
conhecer o seu fundamento para continuar a operar. α51
[Aula 52]
está a dizer. O universo psicopatológico não é totalmente estranho à mente normal ou não
poderíamos penetrar nele. A patologia introduz um elemento de privação, que para
Aristóteles seria a falta de alguma potencialidade que o ente deveria ter. No indivíduo
psicologicamente doente, a primeira capacidade que se constata estar em falta é a percepção
da forma substancial, que ele confunde com outra que ele mesmo atribui. Hoje temos a
ciência moderna ignorando as formas substanciais mas, ainda assim, pretende colocar em
dúvida todas as demais formas de conhecimento.
Arthur Whitehead dizia que o acto de conhecimento não pode ser explicado por nada
fora dele mesmo. Se apelarmos à fisiologia cerebral, por exemplo, eliminamos a distinção
entre ser e conhecer, porque o conhecer irá se reduzir ao ser. O conhecimento pode ter actos
neurofisiológicos concomitantes, mas estes também se poderiam ter dado sem se ter
produzido conhecimento algum. Então, o conhecimento está colocado numa dimensão acima
no universo físico. Apenas no Deus de Aristóteles, o noesis noesios (conhecimento do
conhecimento), ser e conhecer se identificam. A ciência antiga visava essa direcção, tendo por
objectivo a intensificação da consciência do acto de conhecer, através da percepção dos vários
círculos de realidade que compõem cada ente para, idealmente, perceber instantaneamente o
seu encaixe no universo inteiro. O objectivo da filosofia é dar uma percepção enriquecida do
universo.
No fim, o que esta divisão provocou foi reduzir tudo à res cogitans. Mas quando percebemos
algo, não percebemos um aspecto só, percebemos um objecto real com uma série de
propriedades e acidentes, e percebemos também que é um conjunto ilimitado. Contudo, vai
haver uma diferença entre a maneira de perceber e a maneira de conceber o objecto. Nesta
última, o objecto é pensado separadamente de todos os elementos acidentais. α52
[Aula 53]
Então, a água pode ser analisada de formas completamente distintas. Por um lado,
pode ser encarada como uma substância, já que é concebível fundamentalmente como algo
que nem é parte ou atributo de algo. Mas encarada na escala metafísica, a água deixa de ser
substância e passa a ser um símbolo da verdadeira substância, que é a possibilidade
universal. Tudo, incluindo nós, pode ser visto como atributo da possibilidade universal. A
lógica só se torna proveitosa quando articulamos estes dois pontos de vistas contraditórios.
As próprias sentenças do discurso lógico não têm apenas uma dimensão lógica estrita,
trazem também significados dialécticos, retóricos e poéticos. A beleza de uma demonstração
matemática não tem um equivalente matemático, apenas análogos, mas que expressam na
realidade um sentido poético. Por outro lado, quando contemplamos algo extremamente
belo, isso pode provocar em nós um anseio de beleza, que pode tentar ser resolvido a vários
níveis, como o erótico ou o estético, mas em algumas pessoas é despertada uma sugestão de
beleza eterna, que vai confluir numa noção de felicidade eterna e de beatitude, e esta mostra-
se como um aspecto da verdade eterna. Nesse caso, juntam-se os três transcendentais que
Duns Scot diziam serem aspectos da mesma coisa: a beleza, a verdade e o ser. Nesta ascensão
percebemos também que sem a verdade e a beleza infinitas também não existiriam as
correspondentes finitas, e que a única coisa que existe necessariamente é o infinito e o resto
pode ser contingente, o que não quer dizer que só exista o infinito, porque nesse caso ele só
existiria em potência. Isto dá-nos um senso de direcção, que indica para onde se devem
dirigir os nossos esforços, que é para a beleza eterna, para a bondade eterna e para a verdade
eterna.
tal como todo o símbolo tem uma relação ambígua com o seu significado. Isso quer dizer que
não existe uma actividade humana que satisfaça a finalidade última, mas elas servem para
nos recordarmos da experiência de ascensão e da direcção que devemos seguir. O que
distingue fundamentalmente os seres humanos é o esquecimento ou recordação, como na
redondilha de Camões, em que o escravo na Babilónia recorda Sião, sua pátria celeste. O
salmista pedia para ser amaldiçoado se o esquecimento vencer nele, e é isso que atraímos
para nós quando acreditamos nos elementos materiais, singulares e concretos, como se
existissem em si e de per si. Se aplicamos a definição lógica de substância ao mundo da
materialidade, então, reforçamos a ideia de que as coisas existem de per si, por estarmos a
confundir o plano ontológico com o plano das essências. Na realidade, o mundo está numa
relação de interdependência e tudo é símbolo considerado face à possibilidade universal,
tudo é atributo sem qualquer substancialidade.
A inteligência humana vive numa tensão que não pode abolir. Por um lado, vivemos
numa dimensão de inconsistência, irrelevância, infinitude. Mas também temos um vislumbre
da beleza e do ser eternos mas não os alcançamos num estado de beatitude. Quando
percebemos que nunca teremos a sua posse, podemos ter uma reacção de rejeição para aliviar
a tensão, então, vamos dizer que só existem as coisas que podemos medir, aquelas a que
temos acesso directo. Nicolae Steinhardt (O Diário da Felicidade) mostra um caso de
vivência desta tensão a um ponto extremo [153]. Ele contemplava a beleza eterna enquanto
estava na prisão passando fome e sendo torturado. A medida da inteligência humana é a
abertura tanto para o infinito, assim como a abertura para a dimensão da finitude. Estamos
sintonizados com a verdade quando, no estudo de algum objecto, temos consciência destas
duas dimensões em que ele se insere e que também estão em nós. Isto implica que todo o
conhecimento tem de ser considerado dialecticamente, pelo lado opositivo, paradoxal, ou
então sai coisificado.
realidade, esta definição de substância é válida do ponto de vista da essência mas não da
existência, onde as coisas aparecem como dependentes umas das outras e até como atributos.
[Aula 54]
187. Exercício do Necrológio, mortalidade e evolução dos modelos de
conduta
O Exercício do Necrológio [4] visa colocar-nos perante o fenómeno da nossa morte. A
mortalidade é aquilo que dá forma à nossa vida, é o que permite fazer dela uma narrativa
com sentido e que nos dá uma base para julgarmos os nossos actos. O nosso necrológio não é
propriamente um modelo, porque este seria uma coisa imposta desde fora. O modelo clássico
greco-romano era o da personagem ilustre que a população podia imitar. Mas com o advento
do cristianismo, a imitação de Cristo torna-se inalcançável, dado que é um modelo infinito. A
própria noção de modelo desfaz-se e é substituída por uma meta divina. Mas a imitação de
Cristo tem outra diferença relativamente ao modelo clássico: não é mais uma imitação
externa, é um esforço interno que não têm mais um público como juiz mas o próprio Cristo.
Isto torna-se clarividente nas Confissões de Santo Agostinho, onde ele se apresenta diante de
Deus, que é o seu juiz, o seu modelo de conduta e a inspiração da sua busca. Enquanto
Agostinho se apresenta ao interlocutor omnisciente, ele vai se descobrindo a si mesmo num
processo dialéctico.
Sendo a imitação sempre imperfeita, sempre havia um descompasso entre aquilo que
os indivíduos realmente queriam e aquilo que a sociedade esperava deles. Havia uma vaga
consciência de que o novo mundo mediado pela teatralidade era uma farsa. Nos intelectuais
esta percepção era aguçada, e como todos sabiam que estavam mentindo, então,
empenhavam-se ainda mais nisso. Já no séc. XVI Thomas Moore dizia que a mentira mais
eficaz era a que todos sabiam ser mesmo mentira (ver a transcrição desta aula para
acompanhar a análise ao quadro “Os Embaixadores”, pintado por Hans Holbein em 1533,
onde se evidencia toda a falsidade de dois jovens diplomatas de sucesso, ao mesmo tempo
que é ressaltada a perda do senso de hierarquia quando se passa de uma perspectiva vertical
para outra horizontal).
Deus refaz-nos tal como fez o mundo; não foi como uma força que age sobre uma
matéria pré-existente. Para concebermos isto, temos de suprimir mentalmente tudo o que
existe, até a nossa própria consciência, e sobra um nada mas cheio de possibilidades, porque
sabemos que algo aconteceu. Antes dos entes existirem, teve de existir a possibilidade da sua
existência, quer esta venha a se verificar ou não. Esta possibilidade contempla também as
relações possíveis entre entes, incluindo os acidentes. Em termos correntes, o conceito de
possibilidade tem o sentido de uma medida de uma conjectura, algo ao nível dos entes. Mas
no caso da criação falamos da possibilidade considerada em si mesma, acima e anterior aos
entes. Esta possibilidade já não é mais uma relação entre entes mas a constituição destes
como essências (aquilo que os entes são independentemente de existirem ou não). A
possibilidade já contém todas as essências, que são precisamente as formas das
possibilidades respectivas. Não apenas as essências estão presentes previamente na
possibilidade total, também as relações lógicas entre essências estão ali contidas, assim como
as relações acidentais. Admitir o contrário é dizer que algo pode acontecer sem ser possível.
isso, é uma ilusão procurar Deus, que é um intento que já tem a conotação de procurar um
ser, devemos sim buscar a verdade e a realidade, sabendo que todas as instituições têm
limitações humanas e desiludirmo-nos com elas pode ser útil para chegarmos à atitude
própria da confissão, a total rendição perante Deus. A existência é apenas um aspecto da
possibilidade, e esta retira a sua existência de si mesma. Não há razão alguma para os entes
terem vindo à existência e por isso se diz que Deus criou o mundo por amor. Estes dois
últimos parágrafos são uma meditação que procura compreender a afirmação “Deus criou o
mundo”, assim como responder à pergunta “porque que é que existe o ser e não o nada?” São
considerações úteis para compreender o Capítulo I do Livro III da Suma Contra os Gentios,
de São Tomás de Aquino. α54
[Aula 55]
Outra coisa que passou a ocorrer foi uma confusão sobre o plano em que os problemas
se colocam. Thomas Moore ficou bastante intrigado com um problema que lhe colocaram: a
impossibilidade de provar que estamos sonhando ou que estamos acordados. Moore acabou
por concluir que o senso da realidade é garantido pela fé, entendida não como crença
subjectiva mas como participação no corpo da Igreja, ou seja, como um apelo à crença
153
colectiva. Na verdade, trata-se de um falso enigma porque sonho e vigília são estados do
nosso conhecimento e não estados ontológicos, ambas as coisas ocorrem no mundo real.
Thomas Morre acreditava que estava a fazer um elogio à Igreja apelando à fé e ao prestígio da
instituição, mas na realidade ele negava a doutrina cristã, que afirma a existência de um
mundo real cognoscível pelo ser humano, ou seja, cometia uma heresia material (não heresia
formal, porque não era intencional). Alguns séculos depois, Kant iria cometer o mesmo erro
ao dizer que não conhecemos a coisa em si, apenas a sua aparência fenoménica, pelo que
apenas um imperativo categórico nos obriga a acreditar na existência do mundo. Kant
inevitavelmente acabaria por hipertrofiar o elemento fé. A fé tornou-se no fundamento do
conhecimento do mundo objectivo, quando antes se considerava impossível ter fé sem
acreditar no mundo objectivo.
Um mito comum que provoca muita incompreensão em relação aos antigos afirma
que, até ao advento da ciência moderna, acreditava-se que tudo podia ser compreendido pelo
puro pensamento. Na verdade, essa é uma ideia que só surgiu no século XVII com Espinosa,
que afirmava que não era possível retirar conhecimento algum da experiência (este é o
racionalismo moderno, que depois provocou o surgimento do empirismo moderno de
pensadores como Locke). Mas se remontarmos a Aristóteles, a maior parte da sua obra é
sobre ciência natural, é colecta de factos, e foi daqui que ele partiu para a lógica e para a
metafísica. Outro mito moderno diz que a Igreja rejeitou o heliocentrismo porque a Terra
passaria a ser vista como um planeta insignificante, o que iria desvalorizar o homem e o lugar
da Criação e da Queda. Jean Borella mostrou que o centro axiológico do sistema ptolemaico
nunca foi a Terra mas o Sol, que representava Jesus Cristo. A posição central da Terra na
realidade representava uma posição mais baixa. O sistema heliocêntrico, tal como proposto
por Galileu e Copérnico, foi rejeitado pela Igreja simplesmente porque estava errado (Galileu
apresentava o sol como centro do universo).
A cultura de fingimento da corte que Thomas Moore descreve [187] tem raízes mais
profundas, que podemos sondar n’O Livro dos Mártires, de John Foxe. Ele fala dos mártires
protestantes torturados e mortos pela Inquisição. Os suspeitos de heresia eram interrogados
pelo inquisidor com toda a educação e simpatia, num longo debate que pretendia convencer o
interrogado do erro das suas doutrinas. Contudo, por trás da polidez e da idoneidade
académica já estava o espectro do castigo. Então, desde o início que o debate é uma farsa
medonha. Diz Foxe que ia longe o tempo em que Santo Agostinho ou São Jerónimo
conseguiam persuadir as pessoas apenas pela força da inteligência. A Inquisição resultou da
decomposição do imaginário medieval, o que causou enormes dificuldades intelectuais, e aí
criou o teatro dos teatros. O suspeito de heresia que vencesse o debate contra o inquisidor
estava na pior posição de todas. Face à impotência do intelecto, restava a Thomas Moore uma
aposta cega na fé, não como convicção íntima mas como participação no corpo dos crentes.
Isto inaugurou o irracionalismo moderno, tanto de protestantes como de católicos. Na Suíça,
154
Calvino criou depois um reinado de terror muito pior que a Inquisição, em que não eram
apenas as condutas heréticas que eram fiscalizadas mas mesmo a conduta pessoal dentro de
casa. Ele criou o Estado totalitário, onde não há mais a possibilidade de sinceridade: todos
fingem porque estão sempre a ser vigiados. Quase todos os intelectuais modernos –
Descartes, Bacon, Thomas Moore, Galileu, Newton, Maquiavel – entraram neste fingimento e
inauguraram, juntamente com inquisidores e protestantes, a modernidade como uma
fantasia teatral macabra. α55
[Aula 56]
190. A verdadeira identidade do ser humano
155
R. Craig Hogan apresenta, no livro Your Eternal Self, uma série de dados científicos
que mostram que a consciência (assim como a memória) não pode derivar da actividade
neurobiológica. O cérebro não tem a mínima capacidade para processar toda a informação
com que lidamos, parecendo antes funcionar como um órgão que filtra a informação que nos
chega. As experiências de visão remota, assim como as de quase-morte, onde até cegos
conseguem ver embora não exista qualquer actividade cerebral, parecem também indicar que
a mente não está no cérebro, antes tem a capacidade de o activar. O autor retira depois
algumas conclusões teológicas que não temos de seguir, por exemplo, não é necessário tentar
provar a vida após a morte com base nestes factos. A primeira conclusão que devemos tirar é
que não há qualquer prova de uma relação de causa-efeito entre cérebro e consciência. E o
importante é usar este dado para o entendimento do que é a nossa verdadeira identidade.
Mais do que a consciência não depender do cérebro, ela parece não depender de
espaço e tempo. Isto coloca logo um problema, porque quando dizemos “eu” estamos sempre
assumindo uma base espacial e temporal, mas estes dados apresentados por Hogan
evidenciam que temos uma existência extra-corpórea. E esta existência não se assemelha a
um delírio psicótico, porque os relatos das experiências de quase-morte mostram que as
pessoas estavam bastante inteligentes, viam as coisas com muita nitidez, a uma velocidade
impressionante e tudo muito ordenado. Mas fica colocado o problema de saber em que se
apoia a nossa verdadeira identidade. Aristóteles já dizia que a alma é tudo aquilo que ela
conhece, e agora fica mais claro que a substância da nossa identidade é o conhecimento, é
aquilo que sabemos. Mas a consciência de quase-morte tem também o elemento de decisão, a
nossa individualidade é ali conservada.
As exigências de adaptação ao mundo fazem com que as pessoas se apeguem cada vez
mais aos dados sensíveis; elas ficam hipnotizadas pelo mundo corporal, sobretudo pelo medo
e pelo prazer. Na realidade, a cobiça e o prazer acabam por derivar do medo. A condição
terrestre básica é de angústia e de medo. Toda a busca de segurança e prazer provoca apenas
um alívio temporário, mas no fim acaba por reforçar o medo. Todos os meios terrestres,
incluindo alguns religiosos, não aliviam a nossa condição. As práticas religiosas são muito
boas mas só quando sabemos o que estamos a fazer.
“salto no escuro” mas como uma forma de continuarmos a confiar naquilo que sabemos mas
que no momento não conseguimos garantir. Necessitamos de fé quando não conseguimos
reconstituir aquele conhecimento que nos foi revelado nos momentos de abertura, que pode
ser perdido logo de seguida por não termos capacidade para acompanhar toda a sua
grandeza, mas ainda assim sabemos que está lá. A fé implica a aceitação da impotência da
nossa condição material e temporal. O conhecimento torna-se uma perversão quando não
aceitamos o nosso esquecimento e a nossa fraqueza, perdemos a fé e queremos o domínio
completo da situação, o que é impossível. Então, tornamo-nos gnósticos.
[Aula 57]
192. Consciência de imortalidade
É fácil constatar que toda a nossa percepção é fragmentada, assim como é evidente
que os nossos pensamentos são descontínuos. Kant dizia que era a mente que unificava os
fragmentos soltos que nos chegam, mas isto é impossível porque a mente é ainda mais
fragmentada que o mundo das percepções sensíveis, na verdade, é ela que se unifica pelos
dados da percepção. Todos já tivemos a experiência de acordarmos desorientados, sem saber
onde estamos, e a unidade é reconquista pela observação dos dados recebidos do mundo
exterior. O próprio discurso lógico é composto de fragmentos e pressupõe a unidade do real.
Se esta unidade não é dada pelo mundo físico, não é reconstituída espontaneamente pela
mente e nem artificialmente pela lógica, onde se encontra ela?
Por vezes, a questão é recolocada no estudo das relações entre corpo e mente,
tentando responder à pergunta de como pode o puro pensamento mover um corpo no espaço.
Mas tudo isto é perda de tempo enquanto não percebermos o que unifica a mente e corpo.
Estes enigmas surgem quando partimos de uma experiência muito mal observada e criamos
conceitos em cima. Depois, pensamos que tudo se pode resolver por meio da argumentação, o
que obviamente só vai complicar tudo. Então, o que temos de fazer é recuar da discussão até
à apreensão intuitiva do que se está passando, ainda que não obtenhamos uma descrição
persuasiva. Nunca somos encorajados a fazer isto porque achamos que as questões filosóficas
devem ser enfocadas pelos meios das discussões públicas, mas isso obriga a ter, como ponto
de partida, conceitos estabilizados que não podem reflectir a experiência real. As próprias
pessoas que entram nisto já não o fazem enquanto pessoas reais e concretas mas como
representantes de cargos públicos.
determina mesmo a forma da nossa psique. A nossa auto-imagem é formada com elementos
da cultura externa, e esta actualmente só admite dois tipos de realidade: por um lado, temos
as coisas físicas e observáveis de alguma forma; depois, existe o mundo do pensamento, num
certo paralelo com o primeiro. Isto é o mesmo que só admitirmos a existência de corpo e
mente, e desta última saem as criações culturais, as instituições e até mesmo a religião.
Hoje chamamos “eu” a um entidade paradoxal, a uma coisa mental mas com presença
corporal. Um ser composto de mente e corpo não pode ter fé ou arrependimento, porque
todo ele é fragmentário. Se só existir corpo e mente, então, não pode haver “eu” algum, como
mostrou David Hume. Mas para o cristão existe a alma imortal, que nem é corpo nem mente,
mas o crente acredita que é algo que só se revela no momento da morte, e até lá ele fica numa
esperança periclitante. Alguns acreditam que é possível aceder à alma imortal através de
“exercícios espirituais”, que nos desligam do plano corporal e nos colocariam noutra
dimensão. Se isto fosse assim, teríamos duas identidades e não uma, por isso estas práticas
enlouquecem as pessoas. O asceta tenta dominar o corpo e não nega-lo, mas nesse caso
obtém um poder que lhe torna difícil reconhecer a sua nulidade perante Deus, ele sente que a
sua alma é o domador do corpo, pelo que continua dividido. As práticas para abolir o ego
conduzem ao niilismo: não há ninguém para contar o alcançado.
A imagem do “eu” como algo residindo no corpo é uma coisa ilusória e doentia, fruto
de uma percepção mutilada, que impõe à consciência limitações que não são nem naturais e
nem necessárias. As pessoas na Idade Média falavam do “eu” significando a alma imortal não
por uma crença cega mas por terem de alguma forma acesso a esta alma. A coisa não era
adiada para o momento da morte, porque se somos imortais, já o somos desde já. Já vimos
que os “exercícios espirituais”, o ascetismo e as práticas para destruir o ego não resultam
verdadeiramente. As experiências de quase-morte podem nos dar algumas pistas sobre como
podemos ter acesso à consciência de imortalidade.
prévia, de um fundo anímico permanente do nosso ser. Não podemos sondar este fundo
propriamente pelo olhar ou pela audição, que são apenas metáforas para o modo de
apercepção daquilo a que podemos chamar, quase que alegoricamente, de uma melodia ou
ritmo permanente em nós. Por baixo de todos os fragmentos e transformações há uma
melodia ou sentimento permanente, e só quando captamos esta dimensão, da qual corpo e
mente são aspectos, podemos dizer: “Isto sou eu”.
A alma imortal não se confunde com a mente kantiana, que supostamente unificaria o
mundo dos fenómenos. Este é o problema das técnicas da Nova Era, que podem nos
aproximar um pouco da nossa identidade profunda, mas fazem-no com um viés kantiano, o
que tende a negar a realidade a tudo o que não seja a alma imortal. Contudo, é precisamente
a consciência do eu profundo, se devidamente abordada, que nos faz perceber que existe algo
ainda mais profundo – a presença de Deus – sobre o qual não temos qualquer controlo.
Quando Cristo disse “aquilo que tiveres fé obterás de qualquer maneira”, referia-se não à fé
corriqueira, que são apenas uns pensamentos, mas àquilo em que realmente confiamos no
estado de consciência da nossa alma imortal, e o que permitia também Cristo dizer “vós sois
deuses”. Apenas esta fé tem poder sobre a realidade.
Já nascemos com uma alma imortal mas não temos logo acesso a ela. No início
experimentamos o mundo exterior, a cultura, os pensamentos e apenas se alguém nos
chamar a atenção para a alma imortal podemos nos voltar para ela. Aí, podemos deixar
passar pensamentos e sensações corporais, diminuindo a actividade corporal e mental, e
deixar sobressair essa melodia que sempre nos acompanha. Não temos que nos retirar para
sítio algum, nem entrar num estado mental especial, ou fazer exercícios ascéticos: onde quer
que estejamos, sempre nos acompanha o nosso verdadeiro tesouro. Se abordarmos a
consciência de imortalidade pelo lado errado, vamos levar connosco todas a prioridades de
mente e corpo, mas aí já será a alma imortal – a única a tomar decisões fundamentais – a dar
substancialidade a si mesma e aquela que também pode afastar-se da visão de Deus (a
segunda morte). Isto vai dar-nos uma sensação de poder autónomo. Na abordagem correcta
sabemos que esse poder não é realmente nosso, percebemos que a nossa única substância é a
bondade divina e ficamos num júbilo e numa alegria indefinível. Aí podemos pedir perdão
pelos nossos pecados e pedir para estar junto a Deus por toda a eternidade. Podemos pegar
técnicas para chegar à consciência de imortalidade em vários lugares (Nova Era, budismo,
hinduísmo, etc.), mas tudo isto só vai fazer sentido dentro da doutrina da Igreja, que
ironicamente perdeu os meios de acesso. A consciência de imortalidade vai equivaler à
presença do ser, de que falava Louis Lavelle, que é a consciência de uma presença que nos
engloba e que está na base de tudo, sendo ainda, ao mesmo tempo, a consciência da nossa
participação no ser. α57
160
Aquilo que Platão sugeriu fazer, Aristóteles tentou montar como um sistema operante.
Mas enquanto Platão colocava de forma simbólica os “universais” num mundo separado
161
acima da Natureza (mundo das formas ou das ideias), Aristóteles considerava que captamos
os universais na presença imediata dos entes. Imagens, entes de Natureza e formas
matemáticas não são vistas como imitações ou símbolos de uma dimensão superior eterna,
eles passam a ser estudados com uma certa autonomia. Aristóteles admitia uma ciência
suprema, que depois se chamaria metafísica e que ele denominou por filosofia primeira ou
teologia, de onde se obtêm os princípios das outras ciências. Aristóteles não negava a
dimensão simbólica, apenas não a explorou, antes examinava os entes de Natureza como
coisas. Mas isto não basta para constituir a ciência, é necessário articular os elementos
recolhidos da Natureza num discurso lógico, pelo que tem de existir uma ciência própria do
discurso. Então, a ciência passava a ser formulada como a transposição do mundo dos
fenómenos observados para um discurso. O facto é transfigurado num discurso, e este tem de
reflectir princípios universais e ser coerente: tem que representar a unidade do real, porque
se for incoerente vai desmentir a unidade dos princípios que o fundamentam. Ele chamou de
analítica à técnica para fazer isso, o que hoje chamamos de lógica.
Até hoje, o ideal de cada ciência é criar um discurso totalmente coerente, onde as
várias investigações e conclusões se devem articular numa teoria geral. Mas mesmo a física,
que é a ciência que teve um desenvolvimento mais perfeito, não conseguiu chegar a uma
teoria unificada, apesar de todos os esforços nesse sentido. Nos escritos que nos chegaram,
Aristóteles não usa na prática a técnica do discurso coerente (analítica), tudo está organizado
dialecticamente, através da confrontação de hipóteses contraditórias. A elaboração deste
contraditório cria uma certa tensão que pode fazer surgir uma espécie de percepção intuitiva
de uma premissa que articule os vários elementos em disputa (movimento em direcção
oposta ao da lógica). Então, poderá ficar evidente que um elemento está subordinado a outro,
ou que um fica anulado, ou ainda que são ambos verdadeiros mas em planos distintos.
vista tanto pela alquimia como pela teologia escolástica ou pela arte sacra como símbolo de
realidades espirituais, sem a ilusão dela constituir um campo fechado e auto-explicativo.
Acontece que a forma substancial não é uma coisa que se possa matematizar. Ela é
obtida por abstracção, mas de um tipo diferente da realizada na matemática, que nos dá
aspectos que podem ser encarados sob a categoria da quantidade. Apesar disto não ser a
verdadeira Natureza, tornou-se dominante a ideia de que só são verdadeiramente reais os
elementos matematizáveis, sendo tudo o resto impressões subjectivas, incluindo as formas
substanciais. A realidade aparece assim dividida: de um lado existem as entidades físicas, de
outro, o pensamento humano. Contudo, os entes físicos, como são os entes matematizáveis,
só podem ser apreendidos pelo pensamento (dianoia). Só existe medição da coisa extensa
(res extensa) através da medição da mente humana. Só bastante mais tarde Edmund Husserl
vai afirmar explicitamente que a matematização da Natureza criou um objecto que não é
exactamente Natureza. Mas se voltarmos a Platão, ele já afirmava que os objectos da
Natureza não podem ser objectos de conhecimento exacto, apenas de crença, e a tentativa de
obter um conhecimento exacto deles necessariamente os iria transformar em entes
matemáticos, já não captados pelos sentidos.
Contudo, o aparente sucesso da ciência moderna fez surgir correntes culturais com
bastante impacto, como o Iluminismo, que defendem que a ciência matemática da Natureza
inaugurou uma nova era do conhecimento, superando tudo o que havia anteriormente. Na
realidade, nem sequer é possível fazer uma comparação com modalidades anteriores do
conhecimento, que tinham um objecto de estudo diferente.
A ciência moderna acaba por reduzir tudo ao pensamento. Isto parece não ter sido
logo evidente, mas ao longo do tempo criou uma inquietação em alguns pensadores. Berkeley
duvidava de todo o material dos sentidos e teve de se socorrer do pensamento de Deus para
não temer que tudo exista num vazio cósmico. David Hume colocava o pensamento como
validador dos dados dos sentidos, mas percebeu que o pensamento necessita de um eu
pensante. Mas ele apenas via uma série de pensamentos fragmentários, não conseguia
descortinar nenhum eu cognoscente, logo, para ele o pensamento não teria fundamento e
naturalmente que não pode fundamentar nada. Kant percebeu o problema evidenciado por
Hume mas, ao mesmo tempo, acreditava piamente na ciência de Newton. Então, apelou às
formas a priori por baixo do pensamento e que garantiam a unidade deste, assim como
garantiam a unidade do raciocínio e do conhecimento. Não percebemos habitualmente essas
formas, mas analisando o que sabemos e pensamos, percebemos que elas sempre estiveram
lá. Por exemplo, as categorias (que Kant descreve de forma diferente de Aristóteles), sempre
percebemos algo no espaço e no tempo, pelo que estes seriam duas formas ou esquemas que
163
determinariam a nossa percepção sem disso termos consciência. Sendo essas formas
idênticas em todos os seres humanos, isso garantiria a possibilidade da ciência.
A solução de Kant provocou um grande alívio mas teve impactos enormes e não
esperados. Quase todas as ciências humanas desenvolvidas a partir do século XIX dedicaram-
se à busca de formas a priori por baixo dos acontecimentos, na forma de estruturas
permanentes, imperceptíveis em si mesmas mas que tornavam tudo possível. Marx buscava a
forma a priori da História, que ele entrevia numa sequência já dada de antemão
(comunidade primitiva, esclavagismo antigo, feudalismo, capitalismo e socialismo), que não
era produzida pelos acontecimentos mas antes os determinava por meio de uma lógica
interna invisível. Freud – que, como Marx, ninguém associa ao kantismo –, também
apresenta o jogo entre id, ego e superego como a forma a priori de todo o acontecer psíquico
da humanidade. Jung parece que muda a direcção da coisa, mas limita-se à busca de outra
forma a priori com os seus os seus arquétipos do inconsciente colectivo. A sociologia
naturalmente que é kantiana quando diz que a explicação profunda dos factos deve-se a
forças sociais anónimas. Benjamim Whorf vai pelo mesmo caminho quando diz que o
pensamento é apenas uma exteriorização da estrutura da nossa gramática. Chomsky fala
mesmo de uma gramática universal abstracta e permanente, que está por baixo da
diversidade das línguas existentes. Para Hegel, o desenrolar da História é uma dialéctica
baseada em potencialidades indistintas colocadas através dos seus opostos; tudo já está dado
numa lei inicial: o ser, na sua indeterminação é idêntico ao nada, e ao determinar-se põe em
acção o seu oposto. Vemos algo assim ocorrer com muitas ideias e propostas, que surgem
indefinidas e sem significação, e o seu sentido só se revela quando geram uma oposição.
Hegel falava ainda do trabalho do negativo: para criar uma nova situação não é preciso
propor algo, basta apostar nos elementos críticos e destrutivos, e isso fará surgir uma nova
situação positiva. A Escola de Frankfurt conseguiu provocar uma transformação social
considerável apenas através da sua fúria crítico-analítica. Para deixarmos uma pessoa
neurótica, basta a criticarmos por um defeito que ela não tem e isso cria nela um mecanismo
reflexo de defesa.
Kant dizia que o cientista não está colocado perante a Natureza como um observador
mas como um policial (agente de instrução) que a força a dar uma resposta. Isto ia de acordo
com a matematização das ciências vinda desde a Renascença, que forçava a Natureza a
comporta-se de forma matemática, dado que só a questionava dentro desse âmbito. Desta
confluência irão proliferar inúmeras ciências. Husserl também dizia que as ciências deviam
ser criadas a partir de um recorte, contudo, este recorte não devia ser feito a partir da
proposta científica do sujeito mas segundo uma ontologia regional bem definida. α58
Tudo teria sido diferente se o objectivo da ciência fosse criar sábios e não discursos
com autoridade social. Na realidade, o que esperamos de médicos, engenheiros ou estadistas
é que eles sejam sábios, ou seja, que tomem as melhores decisões mesmo se não conseguirem
criar um discurso racional e consensual a respeito. No caso da tecnologia, num único produto
confluem vários conhecimentos heterogéneos, alguns de natureza empírica, que não se
podem reduzir a uma única linha causal. O médico e o estadista tomam decisões baseados em
inúmeros factores, que levariam anos a descrever, correndo o risco da própria descrição criar
uma série de dúvidas que iriam bloquear tudo. Não é necessário reintegrar ciência e filosofia,
mas sim reintegrar elementos de ciência na consciência individual, já que quem tem que
responder pelo conhecimento é o seu portador concreto, não fazendo sentido deixar a
responsabilidade para entidades abstractas. Na realidade, isso fez apenas com que a fraude se
disseminasse e que a massa de registos produzidos ganhasse um poder hipnótico derivado
sobretudo do seu volume, que aparece como um símbolo de poder. α58
165
[Aula 59]
195. Música e alma imortal
A nossa verdadeira identidade é como que uma melodia interior [190], e esta
analogia pode ser levada mais longe. Se tivermos uma boa colecção de melodias em memória,
mais facilmente conseguimos captar a nossa própria melodia interior e assim nos colocarmos
em contacto mais próximo com uma esfera do nosso ser mais duradoura e contínua. Victor
Zuckerkandl (Sound and Symbol) aborda o tema da surdez tonal, de pessoas que conseguem
perceber sons sem reconhecer a melodia associada. Hoje sabemos que estas pessoas não
apresentam, em relação às outras, qualquer diferença em termos de reacções cerebrais, pelo
que o reconhecimento da melodia não é feito pelo cérebro. A melodia é reconhecida pela
nossa pessoa, que tem uma unidade que não é a unidade do eu histórico.
A música clássica, sendo uma elaboração de segundo grau bastante complexa, não
serve para este propósito específico. Ela já nos impõe um roteiro, pelo que é necessário
abordar géneros mais elementares. A música folclórica e a música popular (em sentido
estrito, não as suas versões industriais) já têm certos elementos morais embutidos que são
imprescindíveis para estes fins. A música country original tinha um sentido narrativo muito
forte, que se perdeu na música industrial. Os compositores compunham em primeiro lugar
para si mesmos e para os amigos, muitos deles também compositores, só depois para o
público, que era de certa forma esse círculo social ampliado, pelo que num espectáculo era
muito fácil passar o sentimento pretendido, porque todos se reviam naquilo. Podemos
sempre recorrer à nossa colecção de melodias mediante a recordação e quando a confusão à
volta aumenta, podemos “aumentar o volume”. Trata-se de uma defesa extraordinária contra
a banalidade do ambiente e ajuda-nos a captar o senso da nossa verdadeira continuidade. Os
grandes filósofos, assim como os grandes escritores, conseguiram abrir um espaço interior
dentro de si que conseguia abranger e transcender a experiência externa. α59
Muitas pessoas ficam assustadas em admitir que possuem uma continuidade, como se
fosse uma segurança “saber” que existem apenas na forma de elementos separados (corpo,
alma, memória, linguagem, etc.), que constituiriam de uma forma misteriosa um todo. As
pessoas podem também se identificar apenas com o eu narrativo, que vai reduzir-se a uma
função neuroquímica, embora nunca se tenha descoberto qualquer relação entre esta e a
consciência. Já Santo Agostinho descobriu que na confissão ocorre uma espécie de
166
O princípio do prazer de Freud é um exemplo de uma experiência que não foi bem
expressa, mas depois ficou criado o estereótipo que ganhou uma força explicativa. Contudo, o
prazer é um conceito abstracto que não excita ninguém, só um objecto real (presente ou
imaginário) pode fazer isso. Então, “prazer” acaba por ser um símbolo do objecto desejado e
das sensações que se associam a ele. “Sexo por prazer” é uma expressão metonímica que
toma por substância algo que é apenas um efeito subjectivo remoto. Estas confusões
acontecem devido à ausência de uma descrição exacta da experiência sexual.
Qualquer acto sexual (lícito ou ilícito, normal ou pervertido, bom ou mau) é a busca
de um contacto (ao menos imaginário), caso contrário a excitação não existe. É um contacto
que rompe com a solidão corporal, que pode se tornar insuportável, dando origem à
experiência gnóstica do corpo como uma prisão (as teorias gnósticas são buscas de alívio a
este respeito). Há várias formas de rompermos com a nossa imanência corporal, a começar
pelo colo que o bebé recebe. Na relação sexual aparece um terceiro elemento, que é genético.
O verdadeiro acto sexual é sempre a possibilidade de cruzamento de duas linhas hereditárias,
ambas com início desde o início do mundo. Mesmo se ninguém pensar nisto, no acto sexual é
transcendido o círculo da experiência individual e participa-se na história genética da
espécie.
Então, existe uma transcendência horizontal, no contacto com o outro, e também uma
transcendência vertical, no sentido da linhagem genética. Tratam-se de componentes
substantivos e não psicológicas. Na realidade, a própria consciência sofre um abalo, porque
ela, no acto sexual, tem noção de que não consegue abranger tudo, sabe que existe algo mais
do que aquilo que o indivíduo está sentindo. No acto sexual não temos muitos pensamentos,
a actividade mental está reduzida a um mínimo mas a experiência amplia-se muito, parece
que o acto se torna interminável ou que tempo foi abolido. Ou seja, a percepção aproxima-se
daquela obtida no estado de quase-morte. Ali são duas almas imortais que se comunicam –
daí a expressão bíblica de que Abraão conheceu Sarah –, mas, depois, toda a riqueza nos
escapa e reduzimos a experiência a umas míseras palavras. Os outros elementos que
167
aparecem na relação sexual (condição sexual dos envolvidos, local de encontro, possíveis
consequências) são acidentais e não fazem parte da substancialidade do acto. α59
[Aula 60]
199. Antepredicamentos
A análise de conceito pode ser uma coisa muito complexa mas, no fundo, não passa de
um procedimento mecânico que examina se umas classes estão contidas noutras. Qualquer
pessoa fica rapidamente apta a usar este tipo de raciocínio, que desenvolve apenas a
capacidade lógica inata (mas depois disto, os indivíduos logo se põem a discutir). A análise
da experiência é algo totalmente diferente, não é uma arte da discussão mas é pensar a
realidade, conhecê-la mesmo se nos faltam as palavras. As palavras à nossa disposição têm
apenas uma correspondência analógica ou até poética com os dados da experiência. Por isso,
Aristóteles considerava que a lógica analítica – que ele dizia ser uma lógica da predicação
(algo que se afirma a respeito) – devia ser precedida de considerações sobre os
antepredicamentos. Estes são aquilo que vem antes da predicação, antes do juízo e do
raciocínio, e assinalam a compreensão intuitiva da relação entre os termos e conceitos
empregados, por um lado, e a realidade que lhes corresponde, por outro. Quase todos os
erros inserem-se neste passo.
A relação entre dois termos é o elemento relacionante, que já não é um termo mas o
objecto de experiência correspondente. O primeiro antepredicamento que Aristóteles
reconhece é o denominativo, que assinala uma palavra relacionada com outra por mera
derivação de palavras (ex. “sócio” e “sociedade”). Sabemos imediatamente que entre “sócio” e
“sociedade” existe uma analogia, embora não consigamos dizer imediatamente quais são as
semelhanças e as diferenças, mas contamos que toda a gente vai perceber mais ou menos a
mesma coisa.
b) Predicação equívoca – quando vários seres são classificados dentro da mesma espécie mas
a que não pertencem igualmente;
É na predicação por analogia que se vão introduzir a maior parte dos erros, mas todo
o conhecimento humano começa precisamente pela percepção de analogias, segundo
Susanne Langer (Introdução à Lógica Simbólica). Ela chama de razão de analogia àquilo
que está presente em dois fenómenos que nos aparecem como analogados. No exemplo de
um relâmpago e de um choque que levamos ao roçar no pelo de um gato, os entes estão
analogados por uma força perfeitamente identificável e que é a mesma nos dois fenómenos, e
neste caso chama-se uma analogia de atribuição intrínseca. Já quando falamos no homem
saudável por comparação a uma dieta saudável, ou na fala homérica “a aurora de róseos
dedos”, a semelhança só aparece na nossa mente, e é a isto que se chama de analogia de
atribuição extrínseca ou metáfora. A metáfora entra em acção quando uma palavra é usada
muito para além do seu significado convencional, servindo assim para designar algo que pode
ser visto como semelhante embora não o seja em si mesmo. Contudo, esta figura de
linguagem cria uma estrutura imaginária, quase visual, que pode ter uma força muito grande,
e logo a trocamos pela percepção. Depois, passamos a raciocinar em cima desta nova
estrutura verbal, acreditando que ainda estamos a enfocar o objecto real. Daí a necessidade
de uma etapa narrativa, para podermos começar com a descrição da experiência o mais
directa possível, dado que é muito difícil abordá-la de início a partir de termos e conceitos
filosóficos já estabelecidos. α60
todas as relações, mesmo as familiares, passam a estar determinadas pela relação económica.
O mais correcto seria chamar isto de burocratização da sociedade. A sociedade industrial,
que idealmente funcionaria como um relógio, apenas podia admitir indivíduos com um
comportamento mecanicamente certo e previsível. Então, a sociedade passou a ser muito
mais intolerante. Por exemplo, a fidelidade matrimonial, que antes era vista como um ideal
(por isso havia a confissão, a absolvição e o perdão), passou a ser intolerada e veio o
casamento civil com toda uma série de penalidades. Para a Igreja, a fidelidade matrimonial
não é um direito de todos mas um elemento da perfeição cristã. Só que o casamento civil usa
elementos da moral religiosa e estes passam a ser um sistema de policiamento da conduta
das pessoas. Assim, a possibilidade de expressão pessoal tornou-se bastante limitada quando
era mais necessária. α60
[Aula 61]
Na modernidade, a imortalidade foi discutida apenas como uma doutrina, que se pode
aceitar ou negar intelectualmente, e nunca foi abordada aquela experiência de imortalidade
que era comum anteriormente. Bernard Lonergan (Topics in Education) fala da corrente
actualmente dominante em matéria de educação, que leva a colocar de parte a imensidão de
relatos sobre imortalidade. Diz ele que a tendência modernista em termos de filosofia da
educação pode se resumir a cinco tópicos: 1) nada pode ser aceite com base na fé cega, tudo
se deve questionar; 2) a realidade é um processo e não uma coisa fixa, logo o conhecimento
também não pode ser fixo, é um componente mutável dentro do processo humano; 3) apenas
são válidos os métodos das ciências empíricas (influência de John Dewey), que resolvem
todas as questões das ciências naturais assim como da filosofia, da moral ou da religião; 4)
toda a sabedoria passada tem que ser reformulada como hipóteses científicas, submetidas a
teste e verificadas cientificamente, e só então pode ser chamada de conhecimento (John
Dewey escreveu um livro chamado A Reconstrução em Filosofia); 5) a ciência é um processo
em reavaliação contínua.
Podemos também fazer uma outra experiência, que não tem validade científica directa
mas é a que nos dá maior grau de certeza sobre a supra-corporeidade. Começamos por
perceber que os nossos pensamentos, a memória e a imaginação estão em constante fluxo,
nunca param, tal como acontece com as sensações, os sentimentos e as emoções. Em
contraste, temos os conceitos abstractos (como o de quadrado), que são permanentes,
mesmo que o pensamento que o pensa não o seja. Tudo o que pensamos sobre nós mesmos,
tudo o que sentimos a nosso respeito, é transitório e evanescente. Contudo, temos uma firme
convicção da nossa identidade e da sua permanência ao logo dos tempos, o que permite
reconhecermo-nos como autores de actos passados. Que este nosso eu profundo seja fruto de
uma habituação linguística é impossível, porque temos que associar o nome que nos chamam
a nós, mas é precisamente esta identidade pressuposta que se nega à partida. Também não
podemos associar a unidade e permanência do eu a um pensamento abstracto, porque esse
eu seria tão evanescente e abstracto como qualquer outro pensamento, que esquecemos a
toda a hora e frequentemente deixamos de reconhecer como nossos. Pior ainda, esta unidade
e permanência do eu nem sequer pode ser pensada, o que pensamos são actos nossos, a
sensação de identidade corporal, mas tudo isso é transitório e, para ser percebido como tal,
necessita do senso de unidade e permanência do eu.
O exercício aqui sugerido é muito simples, consiste apenas numa mudança do eixo da
atenção. É atentar para o senso de identidade por baixo dos pensamentos e sensações.
Contudo, precisamos usar algo do pensamento para que este senso se torne consciente.
Podemos começar por usar a memória e lembrar que éramos os mesmos quando éramos
crianças, mas não vamos focar a atenção da figura que tínhamos antes ou temos agora e sim
na continuidade entre as duas coisas, e diremos: “isto sou eu”. Entretanto, os pensamentos
continuam a afluir e simplesmente deixamos que eles venham e passem. É natural que nesta
altura nos apareçam pensamentos e sensações que parecem muito impressionantes e
achamos que não podemos deixar de lhes dar atenção (coceiras, imagens de mulheres nuas,
etc.), mas vamos retomar o foco na nossa continuidade as vezes que forem necessárias.
toda a naturalidade a falar a partir do seu eu profundo e não a seguir as práticas ascéticas que
existiam na sua época.
O ser humano tem a capacidade para restringir a sua atenção em detalhes totalmente
insignificantes, por vezes por razões totalmente passionais e irracionais. Isto pode gerar
problemas insolúveis, que se adensam por mais que se pense naquilo. Contudo, quase todos
os problemas desaparecem automaticamente quando o quadro da nossa vida se altera. Girar
o nosso foco de atenção para o senso da nossa continuidade é a melhor forma de alterar o
quadro da nossa vida. Isto é também válido para o caso das neuroses, a quem as pessoas se
apegam e acabam por construir uma série de mentiras, justificações, acusações, rancores, etc.
Por mais que detestem o processo, acreditam que abdicar da neurose significa a perda de algo
substancial, e por vezes foi construído um sistema tão grande à volta daquilo que a pessoa
acaba por valorizar aquilo intelectualmente. Mas acontece que tudo isto pode ser desfeito e
nada se perde, antes se revela algo mais profundo e que estava a ser sufocado.
Já a mente medieval quase só lidava com palavras e, por isso, era cuidadosa na sua
definição. Os filósofos medievais eram cuidadosos a esclarecer a categoria, o nível de
174
predicação, as várias acepções que uma palavra podia ter e assim por diante. Não era
legítimo rebater a posição de alguém apenas a partir de uma vaga impressão, como se faz
hoje. Era necessário repetir a posição do adversário, subdividir os argumentos nas suas várias
acepções possíveis e depois apontar o ponto específico que se ia impugnar (se era na
substância do argumento, na forma como foi demonstrado, no uso de um determinado
conceito). A verdadeira literatura mantém a precisão e claridade do pensamento, não apenas
nos amantes de literatura mas na vida geral do indivíduo e da comunidade. α61
[Aula 62]
205. Preliminares essenciais à lógica
A silogística pega num conceito e deduz as suas propriedades internas, que não são
logo evidentes na definição, embora se tornem claras uma vez explicitadas. Não sendo um
processo totalmente automático, ele pode ser largamente mecanizado, dado que lida apenas
com palavras. Apontar contradições lógicas normalmente resume-se a confrontar
propriedades deduzidas de uma mesma definição. Aristóteles apontou 19 formas legítimas de
silogismo e mais algumas ilegítimas, algo útil porque sempre existirão erros de raciocínio.
Mas tudo isto é irrealizável se não tivermos as definições dos conceitos, que podem se
compactar em determinados termos. Para chegar aos conceitos é necessário entrar nas
relações entre linguagem e realidade. A linguagem é um sistema de regras e conexões que
permitem captar a realidade e referir-se a ela de modo a outras pessoas captarem a mesma
coisa. Mas para isto ocorrer, já se pressupõe que os utilizadores da linguagem estão no
mesmo mundo, têm mais ou menos as mesmas capacidades e recebem, de forma semelhante,
uma infinidade de informações do mundo exterior. Sem estes elementos extra-linguísticos, a
língua teria de ser totalmente circular e fechada, com as palavras sempre a referirem-se a
outras palavras, cortando assim a ligação com a realidade. Como isto é utópico, existe sempre
a mediação entre termos e entes reais. Os erros em lógica são em número limitado e podem
ser catalogados, mas são infindáveis os erros que podem aparecer na transposição do objecto
para a percepção e, a seguir, desta para a linguagem. É necessário um estudo prévio dos
antepredicamentos [199] e das categorias [102], algo sobre o qual se costuma passar
rapidamente, como se fosse apenas um preâmbulo ontológico da lógica.
semelhança com a sociedade como um todo. Não há lógica sem a percepção de analogias, e
cultivamos esta a partir da frequência com a grande literatura. Sem este treino das analogias,
vamos transpor de forma tosca a experiência em formulações lógicas, criando todo o tipo de
problemas, que são insolúveis a partir da própria lógica.
Não apenas existem analogias como existem analogias de analogias. São Tomás de
Aquino dividia a analogia em dois tipos. Primeiro, há a analogia de proporção, como dizer
que “o leão é o rei dos animais”, o que significa que o rei está para os outros animais como o
rei está para os súbditos (como A/B = X/Y). Depois, há a analogia de atribuição, quando se
atribui uma semelhança a duas coisas, que também se subdivide em dois tipos: a) analogia
de atribuição intrínseca, quando a semelhança entre os dois objectos deriva de uma mesma
razão (ex. o raio e o choque ao contacto com o pelo do gato); b) analogia de atribuição
extrínseca, quando não existe uma razão única mas temos uma aparência que deriva de outra
aparência (o famoso exemplo de Homero da “aurora de róseos dedos”). Só conseguimos
distinguir entre os dois tipos de analogia de atribuição se tivermos a capacidade de perceber
diferenças dentro da ordem total do ser. α62
É certo que a maior parte das pessoas não quer realmente conhecimento, quer apenas
adquirir alguns instrumentos de acção social. As duas coisas não são necessariamente
antagónicas, mas a necessidade de inserção em algum grupo social costuma ser mais
premente, especialmente no mundo moderno. A aquisição de verdadeiro conhecimento pode
atrapalhar ou, pior ainda, oferece o perigo terrível de invalidar as nossas conquistas sociais.
Apenas o conhecimento pode nos incluir em grupos sociais mais amplos e universais
(podendo conter várias épocas), mas muitos acham que o pequeno grupo onde se inserem é
tudo o que existe, então, acabam quase que inevitavelmente por desenvolver um ódio ao
conhecimento. Esse ódio pode mesmo ser exigido para entrar em certos grupos. α62
descrição da sua estrutura pode ser poética ou filosófica. No primeiro caso, tratamos de
reproduzir a impressão, e para isso é necessário nos apegarmos o mais estritamente que for
possível aos elementos particulares e concretos, o que é muito difícil. Na descrição filosófica
tratamos de “puxar” os elementos estruturais que definem aquela experiência, não os que a
singularizam.
Toda a literatura é composta por esquemas fácticos, ou seja, por descrições verbais do
esquema fáctico sem necessariamente esclarecer o esquema eidético (o sentido do que se
passou). Também é possível fazer a elaboração filosófica sem ter a capacidade de descrever a
experiência correspondente em termos literários, mas não quer dizer que se salte por cima
desta dimensão poética, ela apenas permanece implícita. Só podemos captar o que há de
universal na experiência se tivermos fidelidade à memória da experiência concreta e se
conseguirmos captar o que ela tem de essencial. Contudo, o essencial não é necessariamente
aquilo que nos chamou a atenção, que pode ser apenas um reflexo dos estereótipos mais
comuns. Qualquer análise filosófica deve começar por um trabalho de anamnese. Precisamos
de lidar com os antepredicamentos [205], saber se estamos a lidar com um análogo, com um
equívoco ou com um denominativo. Precisamos de saber a que experiência real aquilo
remete, não necessariamente a uma experiência pessoal, que é sempre limitada, podemos
sempre remeter para experiência emprestada de terceiros, especialmente aquela que
adquirimos da grande literatura. A literatura tem como função principal trazer à cultura as
experiências singulares dos indivíduos, que serão análogas às de outros. Isto serve para criar
pontos de contacto entre as pessoas, sem os quais não existe alta cultura. Hoje temos uma
série de grupos em que cada um usa uma espécie de linguagem privada, mas eles entram no
debate público pretendendo que aquilo que dizem tenha validade universal. Existe um intuito
deliberado de enganar o público. Por exemplo, socialistas e neoliberais vão falar de
“democracia” sem esclarecer o que entendem por isso, esperando assim que o ouvinte atribua
à palavra as virtudes associadas a ambas as facções. α62
[Aula 63]
Sem a presença do ser humano, não há distinção entre uma proposição hipotética e
uma proposição categórica (que afirma a realidade ou veracidade de algo). As proposições
hipotéticas podem ser de três géneros: a) conjuntivas, quando a verdade da afirmação
condiciona à verdade de cada uma (isto e aquilo); b) disjuntivas (ou isto ou aquilo); c)
condicionais (se isto, então aquilo). Para o computador todas as proposições são hipotéticas.
Já o ser humano pode aceitar ou não as implicações psicológicas e morais de um raciocínio
lógico, nada o obriga a aceitar aquilo. Em última análise, toda a prova depende do juízo ou
julgamento. Se os indivíduos se furtarem a este acto, tudo se torna hipotético, o que tem uma
grave implicação nas proposições modais.
178
Dois quadrados desenhados na lousa são idênticos sob certo aspecto, ou seja, são
iguais enquanto forma geométrica mas não são espacialmente o mesmo. A percepção
intuitiva contém esta margem de erro, mas quando passamos para o conceito podemos errar
e classificar sem atender às diferenças. A análise crítica serve para retificar a margem de erro
resultante das ambiguidades presentes até no discurso lógico maximamente exacto. Contudo,
um juízo não se corrige automaticamente a si mesmo, para isso é necessário um juízo
posterior. Isto é válido tanto para a percepção sensível como para a demonstração lógica. α63
Ele diz que existiram três obstáculos principais ao avanço da ciência moderna. O
primeiro teria sido o hábito de estudar sobretudo as opiniões dos sábios passados. Um
segundo obstáculo, mais importante, era a suposta crença existente de que as ideias das
coisas possuíam alguma realidade transcendental (e analisando esta parte poderíamos
apreender algo ou tudo sobre os atributos das coisas reais). O terceiro obstáculo, talvez o
mais importante, era a moda de interpretar tudo por analogia com a imagem do homem,
surgindo teorias antropomórficas e explicações que faziam emergir a necessidade de uma
mente agente e dotada de intenção. A ciência moderna tentou descartar estas vias e teria
apostado na reconstrução dos conceitos a partir do teste sistemático dos fenómenos e não na
experiência comum. Este seria um caminho de aprendizagem da ordenação e classificação
dos exemplos do mundo externo. O abandono da concepção antropomórfica, no limite, levou
à passagem da explicação para a descrição, como se a explicação apenas se aplicasse às
acções humanas, que subentendem uma intenção, algo ausente dos processos da Natureza.
179
Hayek estava enganado em relação aos três pontos, mas não são apenas erros factuais,
são distorções de pensamento que nos introduzem numa sequência histórica errada.
Relativamente ao segundo obstáculo ressaltado por Hayek (crença das coisas terem
uma realidade transcendental e que analisadas as ideias correspondentes podemos chegar
aos atributos dos seres reais), na realidade isto corresponde ao procedimento da física teórica
moderna. Esta não é uma física inócua, é o ramo que mais progrediu e que impeliu um sem
número de experiências e realizações tecnológicas. Mas já vimos que este não era o único
método usado. A Renanscença não rompeu com Aristóteles, já que foi a descoberta da sua
Física que impulsionou bastante os estudos de alquimia na época, aos quais se dedicavam
também os praticantes da nova ciência. E só no séc. XX se começou a ler a Física de forma
mais correcta, como uma metodologia geral da ciência.
A palavra “coisa” é usada aqui em dois sentidos. Por um lado, significa a essência dos
objectos tal como apreendidos pela percepção sensível, a partir da qual podemos fazer
hipóteses sobre o comportamento em diferentes circunstâncias. Por outro lado, significa o
conceito relativamente estável saído do isolamento de algum aspecto do objecto e que pode
ser alvo de teste sistemático. No limite, a ciência forneceria uma imagem do mundo composta
de coisas que podiam ser expressas apenas matematicamente (não podem ser captadas pelo
pensamento normal), que não têm correspondência com as percepções sensíveis, e nada
haveria que apontar para dizer o que é. Alegadamente, a ciência moderna tentou corrigir o
afastamento dos medievais em relação às coisas sensíveis – que supostamente só lidavam
com coisas abstractas –, mas acabaram por obter uma série de objectos ainda mais abstractos
e afastados da realidade sensível. Isto aconteceu porque a aposta da Renascença não foi num
maior conhecimento dos objectos sensíveis mas na substituição destes por entes mais
estáveis, com um comportamento apenas descrito matematicamente, uma espécie de formas
platónicas, a suposta verdadeira realidade por baixo da realidade sensível.
A física levou isto ao grau mais elevado de perfeição e chegou a resultados paradoxais:
a medição das entidades puramente matemáticas provoca interferência na forma como se
comportam, pelo que deixa de ser uma medição: já não sabemos se o objecto é assim em si
mesmo ou se devido à interferência da medição. Toda a medição tem de usar equipamentos
corporalmente existentes, não é uma construção matemática. Wolfgand Smith diz que a física
não investiga o mundo corporal mas outra faixa de realidade, que ele aponta ser a materia
secunda de São Tomás de Aquino. Não é uma matéria no sentido sensível e espacial, são
certos componentes internos que não correspondem a nada de substantivo, apenas a um
quantum, a uma quantidade (a materia prima é mera potência, sobre a qual se constitui a
materia secunda).
As relações entre a materia secunda e o mundo corporal são bastante complexas. Mas
para o físico estudar as suas partículas, ele tem de ser capaz de perceber factos concretos, ou
seja, ele tem que articular os conhecimentos matemáticos relativos aos seus objectos de
estudo com as condições materiais que permitem realizá-lo. Não é possível, ao contrário do
sugerido por Hayek, abandonar o mundo das percepções sensíveis e substituí-lo por
conceitos científicos. Isto é simplesmente uma crença absurda, mas que muitos cometem por
não terem sido alertados. Uma matematização perfeita de um objecto não incluiria a sua
existência, e esta apenas se dá com uma infinidade de elementos acidentais que não podem se
reduzir à fórmula matemática, que dá apenas um ente meramente possível. Mas mesma a
ciência moderna tem de partir de um facto existente, que ela não pode explicar, pelo que em
última análise o conhecimento científico depende de um julgamento individual de um facto
concreto. Ou seja, tudo acaba por depender do juízo [209] humano, da capacidade de dizer
181
“sim” ou “não” que não é meramente hipotética. Isso quer dizer que têm de existir formas de
racionalidade superiores à ciência, que possam integrar e ordenar imediatamente a
multiplicidade de acidentes que compõem um facto concreto, e esta é uma capacidade que
exercemos continuamente. Os animais não têm a dimensão do facto concreto, vivem na
abstracção do seu próprio mundo, ou seja, não têm a dimensão da realidade objectiva,
segundo Xavier Zubiri (há uma diferença abissal entre o animal sentir calor ou frio e nós
sabermos que o calor é quente e que o frio é frio, e mesmo quando o animal adapta o seu
comportamento como se também soubesse isto, na realidade ele apenas ganhou um
automatismo que remete para a sensação de calor e frio).
[Aula 64]
Esta consciência pode ser de dois tipos. Por um lado, há a visão remota, que não é um
devaneio, porque as pessoas, que têm esta capacidade (de forma inata ou por resultado de
treinamento) vêm com bastante realismo coisas comuns e correntes do espaço-tempo
normal, apenas situadas em outro lugar. O segundo tipo de visão meta-corporal não pode ser
adquirido por meio de treinamento, ocorre em algumas pessoas em estado de morte clínica,
que hoje se classifica pela ausência de actividade cerebral identificável. São inúmeros os
depoimentos a este respeito e atestados por autoridades científicas. As pessoas relatam
eventos que estavam ocorrendo quando estavam mortos com uma enorme riqueza de
detalhes, isto é, não se trata apenas de cognição sem cérebro mas de percepções sensíveis
sem a participação do corpo. Podemos chamar ao primeiro tipo de visão meta-corporal
imanente e ao segundo tipo de visão meta-corporal transcendente, sendo a distinção
referida à vida do sujeito. Na visão meta-corporal, seja imanente ou transcendente, o
indivíduo sabe qual é o seu corpo e onde está, ou seja, o corpo torna-se num dado da
consciência.
O facto de poder haver visão sem o olho corporal vem dar razão a Goethe na disputa
com Newton. Goethe dizia que se o olho capta luz é porque participa na natureza desta,
contudo, a consciência participa ainda mais directamente, de modo que o olho é apenas um
instrumento da consciência, dispensável em certas circunstâncias.
Outro aspecto da consciência é que apenas podemos falar dela se ela estiver presente e
em operante naquele momento, o que não acontece para mais nenhum objecto de
consciência (e isto permite a abstracção). Então, a consciência não pode ser objecto, é sempre
um elemento agente do sujeito. O discurso ou raciocínio sobre a consciência vai intensificá-
la, mas tem que ser um discurso ou raciocínio verdadeiro, ou seja, onde está presente um
sujeito consciente e responsável que se assume presente no mesmo acto, caso contrário, já
não falamos de consciência efectivamente existente mas de algum aspecto ou mecanismo seu,
não existente em si mesmo. Consciência em sentido pleno é auto-consciência actual e
responsável. Em termos cerebrais, não há diferença entre “perceber somente que alguém me
fala” e “entender do que me fala”.
Para tomarmos posse deste conhecimento, temos de dizer alto “sou eu” à pergunta
sobre quem reconhece melodia ou sobre quem entende o sentido daquilo que nos disseram.
Nisto, a palavra “eu” é usada para nos reconhecermos. Nem sempre tal acontece, porque
reconhecermo-nos a nós mesmos não é como reconhecer um objecto acessível à experiência
comum. Por vezes, dizemos coisas como “não estava em mim”, o que significa que estávamos
desprovidos de uma parte essencial das nossas funções que nos tornaria responsáveis pelos
actos. A acção não veio do núcleo pessoal que reconhecemos como sendo nosso, um factor
183
desconhecido tomou controlo. Quando dizemos “eu” com plenitude de sentido, assumimo-
nos como sujeitos conscientes de um acto de conhecimento.
O sentido mais óbvio desse “eu” com conhecimento do que está falando é de natureza
autobiográfica: recordamos algo que aconteceu ou algo que fizemos ou sentimos. Nesta
circunstância, nunca nos confundimos com um outro, excepto em casos de esquizofrenia.
Mesmo em caso de esquecimento, quando voltamos a recordar sensações, acontecimentos e
todo outro tipo de dados, sempre identificamos a nossa presença em relação àquelas coisas.
Recordar é recordar que algo fizemos, sentimos, vimos, etc., e quando mais nos identificamos
com o sujeito das acções recordadas, mais estas ficam nítidas.
não é um elemento intuitivo, é algo só captado por meio de construções intelectuais muito
complexas. A sociedade pode, de certa forma, impor-nos algumas coisas, algum tipo de
desejos, medos, comportamentos, mas tudo isto se esfarela de um momento para o outro se
não for continuamente repetido, e são sempre coisas impessoais, que funcionam
estatisticamente. É um absurdo a ideia da sociedade impor-nos uma identidade permanente,
mesmo que fosse pela continuidade de memória, porque isso já pressupõe um sujeito que
permanece entre dois actos de memória. Algo semelhante se pode dizer para frustrar a crença
de que o “eu” é uma imposição gramatical.
O eu substancial não pode ser pensado (ou logo se torna em eu histórico ou num dos
outros “eus”) mas pode ser conhecido: é este conhecimento que possibilita o pensamento.
Mas a sua modalidade de conhecimento não é “normal”, é o conhecimento por presença, que
se identifica com o assumir a presença. É a instalação na dimensão da realidade (a começar
por nós mesmos), onde coisas como “mental” e “físico” aparecem como distinções operadas
pelo pensamento. Este conhecimento é extremamente banal mas nem nos damos conta disso.
É desta forma que conhecemos as outras pessoas, não pelas recordações do seu aspecto ou do
que fizeram, já que associamos estas recordações sempre a uma mesma pessoa. Se essa
identidade não fosse apreendida, veríamos duas vezes a mesma pessoa e não a iríamos
reconhecer. Também por isso os momentos em que confundimos duas pessoas parecem tão
estranhos, porque quando nos damos conta do engano, percebemos o abismo entre a
semelhança física e a verdadeira identidade de cada uma. Não podemos pensar uma pessoa,
ou ela teria se tornado num dado da nossa consciência, pesamos apenas numa pessoa, ou
seja, em alguns aspectos dela. Pensamos apenas essências, propriedades, mas nunca em
existências. Nem mesmo a percepção nos dá existências, apenas nos dá dados presentes que
se tornam conteúdos de consciência. Se nos limitássemos ao pensamento e à percepção, tudo
teria existência duvidosa, pois haveria apenas de conteúdo de consciência. A existência, nossa
e de outros, apenas nos chega pelo conhecimento por presença. A existência foi esquecida
pela filosofia nos últimos séculos, o que provocou a reacção existencialista, mas que também
não resolveu o assunto e tirou uma data de conclusões erradas. Não é disso que se trata aqui.
[Aula 65]
Para Aristóteles, apenas os juízos analíticos (A=A) são universais e necessários ou,
dito de outra forma, são válidos a priori. Se dissermos que “o homem é mortal”, isto é um
juízo analítico porque apenas necessitamos de analisar o conceito de “homem” para concluir
que é um ser mortal. Este tipo de juízo não implica um novo conhecimento, apenas explicita
algo que estava implícito no conceito. Já se dissermos que “a Terra gira ao redor do Sol”
estamos a dar um novo conhecimento que não é deduzível da definição de “Terra”. Este é um
186
exemplo de um juízo sintético (A=B), de um tipo que se baseia nos dados da experiência e, na
perspectiva aristotélica, não é nem universal e nem necessário.
Para Kant (Crítica da Razão Pura) isto era problemático. Por um lado, ele
considerava que apenas os juízos a priori – aqueles anteriores e independentes da
experiência, obtidos por pura análise lógica ou por meios puramente especulativos – eram
universais e necessários. Nenhum conhecimento por experiência tem a marca da necessidade
mas sempre o selo da contingência, pelo que há validade universal apenas dentro das
condições da experiência. Por outro lado, Kant também acreditava que a física de Newton
produzia conhecimento universal e necessário. Isto não é verdade, mas tendo Kant o
assumido criou um problema cuja saída consistia em encontrar a possibilidade de juízos
sintéticos a priori. Contudo, para ele, dizer que “o caminho mais curto entre dois pontos é
uma recta” é um juízo sintético e, ao mesmo tempo, universalmente válido. Na verdade,
trata-se de um juízo analítico já que se pode deduzir da definição de recta que ela é o caminho
mais curto entre dois pontos. Kant criou uma série de problemas inexistentes, que depois
ficaram como enigmas que determinaram o curso da evolução filosófica.
Um século mais tarde, Gottlob Frege apresentou aquilo que parecia ser uma solução
do problema colocado por Kant. Para ele, o sentido de uma proposição depende das suas
condições de verdade (um enunciado que descreve aquilo que está em causa). Pensando no
Planeta Vénus, a expressão “estrela matutina = estrela vespertina” está na forma “A = B”,
pelo que é um juízo sintético (o B não pode ser deduzido do A). Mas também poderia ter
validade a priori quando a igualdade ou substituição deriva de um referente x que existisse e
fosse idêntico a si mesmo.
Bertrand Russel fez alguns reparos à teoria de Frege, mas esta tornou-se ponto de
partida das Investigação Lógicas, de Edmund Husserl, e do Tractatus Logico-filosofico, de
Ludwig Wittgenstein, que originaram, respectivamente, a fenomenologia e a filosofia
analítica, as duas correntes filosóficas mais influentes no século XX. As condições de Frege
(referente existente e idêntico a si mesmo) são problemáticas. Desde logo, para Russel e para
os positivistas lógicos, “existir” significa que algo pode ser verificado pela experiência
sensível. Estes consideram a ciência fundamentalmente empírica mas, dessa forma, lidam
com os aspectos sensíveis das coisas, sempre mutáveis e que nunca se mantém idênticos a si
mesmos. Se, pelo contrário, partissem de substâncias invariáveis, de modo a cumprir a
segunda condição, iriam cair num discurso metafísico e a verificação pelos sentidos tornava-
se irrelevante, o que para eles era impensável. Assim, fracassava o projecto kantiano de criar
uma ciência com base em juízos sintéticos universalmente válidos, restando apenas a
possibilidade de verificar certas regularidades.
A ciência assim edificada apresenta teorias que podem ser modificadas ou mesmo
refutadas com a verificação de novos factos. Na realidade, neste contexto que não contempla
essências, não tem sentido falar em “verificação de factos”, apenas podemos falar de algo que
aparece ou parece. Uma lei científica passa a ser um enunciado de aparências, enunciado
esse que pode ser alterado com o surgimento de novas aparências. Para Kant e para os
187
filósofos anteriores a ele isto nunca poderia ser chamado de ciência, é apenas um instaurar de
um cepticismo integral. O cientista positivista é apenas um observador ou um
experimentador, com a agravante de não poder dizer quais são as observações ou
experimentações melhores a não ser por meio de critérios convencionais, que não traduzem a
estrutura da realidade. Assim, a crise do pensamento científico é vendida como um grande
progresso da consciência crítica.
para a unidade ser possível, o presente devia reter o passado e anunciar o futuro, o que é o
mesmo que dizer que aquilo que se apresentava devia ser ainda passado e já futuro, como um
nó entrelaçando a recordação e a antecipação. Derrida conclui, então, que “o presente não
coincide consigo mesmo”. A consciência seria assim uma ilusão, promete uma identidade e
fornece uma diferença (não há a coisa presente, apenas algo que já não é e algo que ainda
não é), pelo que não pode ser fundamento para a ciência. Daqui se concluiria que a
consciência é sobretudo falsa consciência, levando-nos ao fetichismo das coisas, pelo que
Marx, Nietzsche e Freud teriam razão contra Husserl e a fenomenologia. Derrida, destruindo
o conceito de presença do ser uno, verdadeiro e bom, inicia a crítica da “ontoteologia”, nome
que ele dava ao discurso (logos) a respeito da coisa (ontos) considerada como Deus (theos).
α65
seria contrariar a dinâmica vital do homem. Descartes criou um método de voltar, de forma
radical, o seu eu cognoscente contra o seu eu existente. A vocação filosófica dele despertou
após três sonhos, que levaram à formulação da hipótese do “génio mau” (nota-se aqui a
influência gnóstica sobre Descartes) e à possibilidade da totalidade do mundo ser uma ilusão,
sendo a dúvida integral uma tradução disto (embora nas Meditações Metafísicas o “génio
mau” não apareça logo de início mas entendemos que ele foi o “motor” de tudo). Descartes
procurava um argumento infalível contra o demónio mas aceitou a premissa deste, além de
esquecer o aviso de Dante: o demónio é um lógico muito melhor do que nós.
Pode alguém que nunca foi objecto ser sujeito? Entendamos por sujeito aquele que
recebe informações e por objecto aquele que as emite. A mesa à minha frente é objecto, tenho
consciência da informação que ela me transmite, mas não estou totalmente passivo, no
mínimo selecciono um foco de atenção do olhar. As coisas só existem para mim na medida
em que exerço alguma acção sobre elas, e elas respondem de algum modo a esta informação
que lhes transmito. Mesmo os entes imaginários não podem se furtar ao processo de troca de
informação, ou não poderíamos saber nada sobre eles e nem interroga-los.
Não existe a pura consciência cognitiva sem algum tipo de existência no espaço-tempo
(ou este par também não existiria para nós). Mesmo no âmbito da alma imortal, a expressão
“consciência fora do corpo” é apenas uma figura de linguagem, porque a referência ao corpo
nunca se perde. Mas o ponto de partida de Descartes é este eu cognoscente, o único suposto
existente, ficando até o corpo entre parênteses. No final, chega Derrida e diz que esta
consciência é auto-engano, e com razão. Mas este auto-engano não se verificava em Platão ou
em Aristóteles, nem nos escolásticos, nem em Xavier Zubiri (que mostrou que a dimensão de
realidade só existe para o ser humano e não para os animais), nem em Eric Voegelin (para o
qual a essência do conhecimento é a participação na estrutura da realidade, não havendo o
abismo entre sujeito e objecto).
No exemplo do edifício dado por Husserl [214], quando damos a volta ao edifício e
conservamos a visão dos lados vistos, a isto junta-se a expectativa dos lados ainda não vistos
(retenção e protensão). Isto só acontece porque a percepção se adequa à estrutura do
objecto, ou seja, retenção e protensão não estão apenas no sujeito mas também no objecto.
Não conseguimos ver todos os lados do edifício de uma vez apenas por limitações nossas, o
edifício também não se pode mostrar de todos os lados a um único ponto de vista. Os entes
que só existem no espaço-tempo só podem ser conhecidos por retenção e protensão porque
eles só existem dessa forma. Olhando para isto, Derrida via o presente apenas como um
limite infinitesimal entre a protensão e a retenção, apenas uma diferença sem nada de
substantivo. Mas tudo isto pressupõe a continuidade do tempo, que não é apenas temporal
(algo que Derrida não contempla). Aquilo que aconteceu não vai para o nada, que seria um
“des-acontecer” impossível. Santo Agostinho dizia que “o tempo é a forma móvel da
eternidade”, ou seja, tudo o que existe no tempo também existe eternamente na eternidade.
190
[Aula 66]
Para Ferdinand de Saussure, o signo linguístico era definido como uma entidade de
dois planos: significante (elemento que significa algo) e significado (aquilo que o elemento
significa). Isto parece semelhante ao que dizia Frege, de que “Vénus” é “a estrela matutina”.
Mas agora com Saussure iríamos procurar no dicionário os sentidos de “estrela” e de
“matutina”, o que remeteria para outros significantes e assim sucessivamente. Do ponto de
vista da linguística, o significado já não se confunde com o referente ou com o objecto
designado mas com uma definição aceite ou convencional. Para Benjamin Lee Whorf cada
língua recorta uma porção específica da realidade, pelo que a tradução se torna muitas vezes
impossível dado que cada língua tem um domínio próprio do expressável.
Na perspectiva hermenêutica, a coisa como tal nunca é conhecida fora dos discursos a
seu respeito, que de alguma forma a criam ou constroem. Mas já Duns Scott dizia que os
juízos sobre as coisas não podem ser comparados com as coisas mesmas, dado que apenas
sabemos algo sobre elas graças aos juízos. A conclusão é niilista, nada há fora das
interpretações, o que é o mesmo que dizer com Nietzsche que “Deus morreu”, porque Ele era
a unidade verdadeira e boa, a aparição da coisa sem atributos, anterior a qualquer juízo a seu
respeito. Mas se isso conduz à renúncia das ideias de verdade objectiva e de discurso
racional, a filosofia e a ciência tornam-se variantes da retórica, dado que apenas podem
apresentar ficções mais ou menos convincentes ou verosímeis. Abandona-se a pretensão da
ciência positiva e da razão iluminista de que “habitamos a natureza”, já que para a
hermenêutica vivemos num “mundo” figurado, como quando dizemos: “O mundo inteiro
sabe o que é a virtude ou a Literatura” ou “Todo mundo reconhece a chuva quando a vê cair”.
Agora voltamos atrás e vamos reenquadrar esta exposição de Dardo Scavino sobre a
filosofia actual. Ele apresenta o processo que vem desde a crença iluminista de uma verdade
objectiva possível de alcançar pela ciência (que reflectia longinquamente a tradição grega do
saber apodíctico, objectivo e comprovado), e como a tentativa de fundamentar essa crença
acabou, pela própria dinâmica interna do exame filosófica, por substituí-la pela ideia de que
não há verdade objectiva alguma, apenas existe uma herança linguística e cultura, na qual
192
vivemos e apenas através da qual o mundo nos chega. Neste processo, os filósofos tomam as
afirmações dos seus antecessores como “território conquistado” e como o único ponto de
partida para o raciocínio a este respeito. Esta auto-referência acaba por ser uma exigência da
profissão académica, que vai impedir que se volte à experiência mesma. Assim, pequenos
erros de percepção iniciais vão se transmitindo e ampliando enormemente no tempo (como
num ângulo com as linhas se estendendo).
Saussure tem razão quando diz que o significado de uma palavra (definição) não é
uma coisa mas um conjunto de outras palavras, e que estas estão definidas no dicionário por
outras palavras e assim por diante. Mas o referente não pode estar no dicionário ou este seria
o próprio mundo. Mas isto acontece apenas quando tomamos a língua como um sistema, que
assim não pode conter coisas, o que não implica que não tenhamos conhecimento das coisas
e só de palavras e das suas significações acumuladas. Se assim fosse, nem mesmo teríamos
acesso ao dicionário enquanto coisa. Ora, Saussure comete um tremendo erro de percepção,
porque quando fala do “diccionário” ele está a mencionar o referente e não o significado.
Além disso, quando ele constituiu a linguística de forma a distinguir o seu objecto de outros
objectos possíveis de outras ciências, ele esqueceu que nenhuma ciência estuda um objecto
real tal como ele aparece na experiência concreta (desde logo são excluídos os acidentes
metafisicamente necessários para que ela ocorra). Como acontece em todas as ciências, a
linguística não estuda um objecto concreto, verdadeiro, mas um objecto ideal, recortado
abstractivamente dentro do campo da experiência. Toda a ciência parte do pressuposto da
existência de certos objectos, existência que ela não explica nem fundamento mas usa para
recortar certos aspectos que irá estudar.
Saussure sabia que a língua só era um sistema desde o ponto de vista do linguista. Do
ponto de vista prático, a língua jamais é um sistema e sempre que falamos estamos nos
apoiando em objectos externos ao sistema da língua. Para Saussure o sistema tem apenas
palavras e as suas definições, e para ele a definição de uma palavra não é constituído por um
objecto mas pela diferença entre essa palavra e todas as outras. Na prática, não podemos usar
esta definição para nada, já que a diferença é infindável. Mas os filósofos continuam a pensar
que a língua vista como sistema é um objecto real. Na realidade, não vivemos dentro de uma
constelação de símbolos que nos abarca e domina cognitivamente. Toda a nossa actividade
cognitiva desenrola-se dentro de um universo real, onde os símbolos ocupam uma parte
insignificante face à nossa experiência efectiva. Se o nosso interlocutor não tiver uma
experiência análoga à nossa, o uso da língua é inviável. Se viajarmos muito, perceberemos
coisas que são difíceis de expressar na nossa cultura. E depois podemos mesmo perceber
coisas que não são formuláveis em língua alguma e que, na realidade, percebemos o tempo
todo.
Quando Saussure diz que o referente – a coisa, o “x” ao qual as palavras se referem –
não está na língua, ele acerta mas apenas está a dizer o óbvio: as palavras não são coisas. Por
isso, o diccionário não contém coisas mas apenas definições constituídas de outras palavras.
Todos sabem que uma definição não é suficiente para compreender uma palavra, pois se
aquilo não nos evoca algum tipo de recordação ou análogo, então, nada apreendemos.
A paralaxe da “linguagem como sistema” evoca frases vazias, tais como: “Somos
homens do nosso tempo / cultura”. Repetidas até à exaustão, parecem obviedades. Mas basta
observar uma pessoa como São Tomás de Aquino para perceber a ilusão do “homem do seu
tempo”, dado que ele era mais influenciado por Aristóteles do que por toda a cultura do seu
tempo. Na nossa experiência podemos comprovar como é possível nos abrirmos para
culturas bem distintas da nossa de origem, assim como aconteceram experiências marcantes
para nós que não vieram de cultura alguma.
Continua Scavino, dizendo que Gianni Vattimo explica que a verdade entendida como
conformidade entre o enunciado (discurso racional no sentido iluminista) e um estado de
coisas depende da abertura originária ao mundo, abertura que se confunde com uma
herança, um movimento histórico, um destino. Hoje existe um “pensamento débil” porque se
perderam os fundamentos fortes, como Deus ou a consciência, que garantiam a adequação
entre os enunciados e os estados. Para Vattimo, o sujeito não é o portador do a priori
kantiano mas é o herdeiro de uma linguagem histórica e finita que condiciona o seu acesso a
si mesmo e ao mundo. Embora falemos no domínio da linguagem, antes seria esta a dominar
os seus falantes, começando logo por lhes impor um nome e documentos de identificação.
Desta forma, não teríamos acesso de modo directo a uma realidade pré-linguística.
algumas sensações agradáveis até que a morte chegue, pelo que lhe resta apenas prolongar ao
máximo o tempo de vida, obter o máximo de bem-estar e tanta segurança quanto possível.
Ela fala de outras civilizações, como a egípcia e a chinesa, que também não depositavam
qualquer esperança no futuro histórico, contudo, nelas a ideia da imortalidade estava sempre
presente, não apenas como um destino post mortem. A situação de que fala Chantal Delsol é
característica da perda de esperança numa mutação histórica, mas essa esperança é
relativamente recente (formou-se nos séculos XVII e XVIII), sendo o resultado de uma
evolução peculiar da civilização cristã, onde uma perspectiva de futuro substituiu a
perspectiva da vida eterna e da salvação (“imanentização do eschaton” – as últimas coisas –,
nas palavras de Eric Voegelin). A acumulação de experiências negativas provocadas por essa
expectativa deixou o cenário apenas com duas possibilidades: ou apostar numa promessa de
futuro, que provocará mais morte, destruição e sofrimento, logo, não se cumprindo; ou viver
como um bichinho, na busca de prazer e segurança e tentando afastar a doença, a morte, etc.
A experiência de todas as outras civilizações vai contra a redução da vida humana a uma
temporalidade terrestre, e sempre esta esfera era vista como estando dentro da esfera de
eternidade que dava a razão de ser ao que acontece aqui.
A ciência actual debruça-se apenas sobre a esfera terrestre, o que traz as suas próprias
contradições internas. O tipo de crítica que Derrida, Heidegger ou Rorty fazem ao
conhecimento objectivo é válido até certo ponto, quando se aplica à ciência tal como
concebida no Iluminismo, embora não invalide todo e qualquer conhecimento objectivo
possível. Assim, o mundo académico criou uma situação paradoxal, começando por declarar
que a metodologia científica é a única capaz de apreender a realidade objectiva, e depois
conclui que as ciências não podem chegar a verdades objectivas mas apenas a descrições
temporariamente apropriadas e que podem ser invalidadas a qualquer momento por alguma
descoberta.
Jean Ladrière (no livro les Enjeux de la Rationalité, também autor de Les Limitations
Internes des Formalismes) ressalta que a ciência moderna nasceu e desenvolveu-se num
ambiente marcado pela ideia de racionalidade, que derivava das bases filosóficas gregas. No
contexto grego, a ideia de um saber especulativo era regrada pelo critério da verdade, e a
verdade era entendida como a correspondência entre a representação do discurso e a
realidade. O saber especulativo pertence à ordem da visão, visa a uma apreensão justa do
mundo, à contemplação da realidade tal como ela é. O conhecimento visa sobretudo
compreender a realidade nos seus princípios, na sua eterna juventude. É a razão
especulativa que dá a sua razão de ser à razão prática. O ideal de ciência tem um aspecto de
contemplação e a ideia clássica de verdade ainda desempenha um papel regulador nos seus
esforços. Ainda quando a ciência se separou da filosofia, o ideal especulativo e contemplativo
está presente na ideia de que as teorias científicas se substituem umas às outras para se
aproximarem assimptoticamente da teoria inteiramente verdadeira, que seria uma
representação adequada da realidade. Daqui também vem a ideia de que a ciência é o único e
verdadeiro caminho para a sabedoria, o que evoca a noção antiga da “salvação pelo
conhecimento”. Esta salvação era entendida como a conquista de uma atitude justa e que
elimina as contradições da existência através da harmonia face a si mesmo e ao mundo. Mas
se na ciência moderna já não existe a noção da verdade científica, apenas uma adequação
provisória, não tem sentido falar de aproximação à verdade, ainda que assimptoticamente.
[Aula 67]
218. A influência da alta cultura na sociedade
Dizia Hugo von Hofmannsthal que nada existe na política de um país sem estar
primeiro na sua literatura, aqui entendida como o conjunto das produções escritas da alta
cultura. Podemos antecipar em muitas décadas o que vai acontecer na política e na sociedade
em geral investigando a alta cultura. Pode parecer uma coisa muito difícil mas na realidade é
bastante elementar, porque ninguém consegue fazer aquilo que não consegue pensar, e só
podemos pensar de acordo com os instrumentos linguísticos, lógicos e técnicos que
adquirimos. E quem forja estes instrumentos são filósofos, intelectuais, escritores, que abrem
um conjunto de possibilidades.
O que Wittgenstein faz com os jogos de linguagem é apontar várias funções, não
somente as três de Karl Bühler, ao mesmo tempo que as torna independentes umas das
outras. Assim, quando saímos da clave denominativa já não temos palavras com referentes de
objectos do mundo exterior, logo, não podemos dizer que as afirmações são verdadeiras ou
falsas. Wittgenstein dá o exemplo do sacerdote que no casamento diz “eu vos declaro marido
e mulher”, dizendo que é uma sentença que escapa ao verdadeiro ou falso. Reconhecemos
que aqui está a ser usada a função apelativa (o sacerdote tenta “convencer” o casal e os
ouvintes a se comportar de certa maneira em relação àquele casamento). Mas a função
apelativa não iria funcionar se as palavras “marido”, “mulher” ou “declarar” não
significassem alguma coisa, pelo que sempre dependemos da função denominativa. Quando
um jornalista acusa um ministro de ser psicótico, este vai acusar o jornalista de tê-lo
insultado e não de ter mentido. A “excepção da verdade”, onde as legislações reflectiam um
critério tradicional, considerava que não podia haver ofensa quando se dizia a verdade. Mas
pela influência cultural dos jogos de linguagem, a ideia de insulto passou a ser considerada
independente da realidade factual.
197
A alta cultura abre uma série de possibilidades, umas promissoras, outras infernais e
abissais, e passadas algumas décadas algumas materializam-se em forma de lei ou em certas
tendências visíveis na sociedade. No caso do ministro que se considera insultado foi realizada
uma possibilidade abissal, em que um crime não é mais considerado pela materialidade do
acto, nem mesmo pela intenção, mas passa a ser visto apenas pela reacção da suposta vítima.
Isto configura uma institucionalização da injustiça, ou seja, aquilo que o grupo de pressão
mais forte disser passa a ser lei.
Depois de Wittgenstein, Richard Rorty veio dizer que não há mesmo critério algum de
julgamento de verdade objectiva, resta apenas a persuasão. Ele define a verdade como a
afirmação que for persuasiva para o maior número e, assim, adquirir mais poder na
sociedade. Isto tem influência hoje no direito, na educação, na psicologia, na política. Mas
começou discretamente, com os filósofos a raciocinar a partir dos pressupostos de Ferdinand
de Saussure, que considerava a linguagem como um sistema, que assim pode ser estudada
em si mesma e sem referência ao mundo exterior, vista apenas como um conjunto de
palavras e regras. Obviamente que esta não é a linguagem que usamos na prática, não
podemos comprar um único produto definindo-o pela diferença que ele tem em relação a
todas as outras coisas, como faz Saussure dentro da linguística (ver livro Mensonge, de
Malcom Bradbury, que parodia Saussure).
Vemos que na França, intelectuais como Derrida, Lacan, Sartre, Saussure têm um
destaque infinitamente maior do que Louis Lavelle, que os supera a todos numas breves
linhas. Os critérios de importância passaram a ser ditados por jornalistas, sendo totalmente
subjectivos. São também os jornalistas que deram destaque a Jean Piaget, que deu origem às
técnicas modernas educacionais (construtivismo, socio-construtivismo, etc.), que partem de
uma analogia muito frágil entre o desenvolvimento do conhecimento e o crescimento do
organismo humano. Daí Piaget concebeu um processo de assimilação e acomodação, coisas
que realmente ocorrem mas que não são o verdadeiro processo de aprendizado.
Supostamente, a criança vai assimilando informações e estas transformam-se nela, por outro
lado, a criança acomoda-se ao ambiente externo e torna-se parte dele. Na realidade, a criança
não começa por ter uma relação activa com o mundo exterior mas sim a relacionar-se com
este através da mediação de outras pessoas, normalmente os pais. Rueven Feurstein
salientou esta função do mediador, ausente em Piaget, que é um educador que não concebe a
existência do professor. O método construtivista nasceu ele mesmo de maneira
construtivista: ignora a observação da realidade e constrói um modelo hipotético, que
prossegue se auto-construindo e tornou-se num sistema de poder organizado quase
impossível de destruir.
Nos últimos duzentos anos a única força causal histórica vem do movimento
revolucionário, e podemos rastrear quase todas as ideias em circulação até este. Pode ver-se
alguma reacção localizada contra alguns aspectos revolucionários, mas que é feita à custa da
cedência em tudo o resto. A abrangência do movimento revolucionário é tão grande e o
controlo que exerce sobre o fluxo de informação mundial (existe a lei histórica que diz que a
difusão dos factos produz novos factos) é tão apertado que geralmente as pessoas ficam
aterrorizadas e recusam ter uma visão integral do movimento.
O controlo da informação – e a sua ocultação – pode criar a ideia de que tudo são
efeitos impremeditados, quando na verdade podem obedecer largamente a um plano. A
União Soviética conseguiu desencadear a Segunda Guerra Mundial, construindo o exército
alemão em segredo para destruir as democracias liberais europeias, ao mesmo tempo que se
198
preparava para derrotar a Alemanha e tomar metade da Europa (ver o livro The Chief
Culprit, de Viktor Suvorov). E isto já era uma obediência ao plano de Lenine, que tinha
apoiado a Alemanha na Primeira Guerra Mundial, mas o resultado tinha ficado curto para as
ambições do movimento comunista. Noutra frente, a propagando soviética dos anos 30, 40 e
50 incorporou-se de tal forma na mentalidade ocidental que passou a ser “sabedoria
comum”. A ideia de que as potências capitalistas têm pretensões imperialistas e almejam a
construção de um Estado mundial foi inculcada pelos soviéticos, que décadas antes de existir
algo como o Grupo Bildeberg já faziam ocupação militar de imensos territórios e tinham
planos de instaurar um governo mundial.
René Guénon acertou quando disse que o segredo é a essência do poder. Toda a
superfície visível da política tem a importância de uma camuflagem. Temos de ganhar o
hábito de ir às fontes mais primárias, aos depoimentos de quem “estava lá”, às memórias dos
políticos que no fim da vida são atingidos pela sinceridade e decidem contar tudo, ir a todo o
tipo de documentos primários. Existe hoje muita coisa disponível mas raramente em
publicações académicas. A produção académica baseia-se nos trabalhos anteriores, pelo que
tende a reproduzir os erros e mentiras colocadas propositadamente (a “criação de coelhos” de
que falava Wilhelm Münzenberg). Pior ainda, como na academia de hoje valem as ideias de
Popper e Richard Rorty, não há mais busca da verdade ou referência ao mundo, pelo que
verdade é aquilo que deixou mais pessoas convencidas. Tudo ainda fica mais agravado com a
ideia de que toda a gente tem direito a uma educação superior, o que apenas cria uma
multidão de imbecis que não conseguem ler um livro mas, ainda assim, querem todo o
prestígio dos postos científicos e académicos. α67
[Aula 68]
renunciar à condição humana e tentar viver como um bichinho. Na realidade, somos autores
dos nossos actos e estes possuem consequências, quer queiramos percebe-las ou não, pelo
que somos inevitavelmente portadores de sofrimento e dor para outras pessoas.
Mas só fica obcecado por viver sem culpas quem tem uma consciência de culpa
sufocada, fruto da repressão da consciência moral, que provoca uma dor que parece
intolerável. Muitas “religiões” e “filosofias” são apenas sistemas de pretextos e subterfúgios
para destruir a consciência moral mas, ainda assim, o indivíduo continuar sentindo que é
“bom”. Igor Caruso mostrou que a grande fonte de neuroses é a repressão do apelo à
consciência moral e não a repressão dos desejos, que o próprio Freud reconhecia como um
processo normal da vida humana.
Muitos alunos sentem uma grande abertura provocada pelas aulas do Curso Online de
Filosofia: abre-se um mar de possibilidades, parece que vêem os acontecimentos da
sociedade com mais clareza que os actuais intervenientes. Isto pode provocar o desejo de
intervir publicamente, mas todo o conhecimento precisa de se consolidar, tal como no
processo de gestação, em que o bebé necessita de tempo para poder ter uma vida
independente do organismo da mãe. O Seminário de Filosofia insere-se num contexto em que
a alta cultura foi destruída após décadas de degradação, e o objectivo da sua restauração
obviamente que apenas pode ser apontado para o longo prazo. Claro que podemos responder
a pontos específicos mas isso deve ser feito nos locais apropriados e não onde possa interferir
com os objectivos de longo prazo. α68
Uma situação como esta permitiu que Wittgenstein tivesse uma posição de destaque
na filosofia do séc. XX. Logo nas primeiras páginas do Tractatus Logico-Philosophicus ele
coloca uma série de axiomas, para depois fazer uma série de deduções em cima, mas há tanta
contradição e confusão nos seus princípios fundamentais que percebemos a esquizofrenia
envolvida, e ele mesmo diz que o livro só será apreciado por quem teve os mesmos
200
pensamentos e gostou deles, e vemos que são pensamentos doentios. As contradições iniciais
não percebidas – e os estudiosos de lógica que são atraídos pelo livro costumam não percebê-
las – vão estar embutidas na cadeia dedutiva adiante, continuando a produzir consequências
de forma meio inconsciente, pelo que a leitura vai ter dois níveis. Então, por um lado
acompanhamos o raciocínio explícito de Wittgenstein, mas noutro nível vamos acumulando
confusões e contradições até chegar a uma espécie de paralisia mental, e depois apenas resta
aceitar automaticamente o que ele está dizendo.
Em O Livro Marrom, Wittgenstein recorda Santo Agostinho, que diz ter aprendido a
falar aprendendo os nomes das coisas. Para Wittgenstein essas palavras seriam algo como
“água”, “casa”, “árvore” e não “mas”, “porque” ou “no entanto”. Isso significaria que a
linguagem concebida por Agostinho era apenas um tipo limitado, existindo outros. Mas seria
possível aprender uma linguagem sem o nome de coisas e ficando apenas com as palavras
que expressam relações entre palavras? Claramente não podemos ensinar uma criança a falar
apenas palavras como “mas”, “porque”, “entretanto” (elas podem repeti-las como sons que
nada significam). Mas já lhes podemos ensinar apenas os nomes de coisas porque as relações
entre palavras aparecem sozinhas nas relações entre coisas. Percebemos que o copo está em
cima da mesa sem termos a palavra que expressa esta relação. Também percebemos as
relações de causa-efeito mesmo sem termos os termos próprios. As observações de
Wittgenstein não são verdadeiramente observações mas expressões da falta de observação.
Isto é, quando dizemos que “tal coisa é o caso” ou “tal coisa não é o caso”. Uma
primeira sub-premissa:
«Qualquer coisa pode ser o caso ou não ser o caso, de tal modo que tudo mais
continue igual”».
Isto é totalmente arbitrário e sabemos perfeitamente que há coisas que acontecem que
afectam as restantes, mas se aceitarmos isto como premissa vamos também aceitar as
consequências e ao fim de algum tempo estamos enredados num labirinto de cretinices, mas
depois não queremos admitir que perdemos tempo com aquilo. Wittgenstein diz:
«O mundo é determinado pelos factos e pelo facto de que estes são todos os factos».
Se assim fosse, mais nenhum facto poderia ocorrer, dado que para ele o mundo se
compõe de todos os factos e só é facto aquilo que já aconteceu. A isto junta-se:
«Uma entidade lógica não pode ser meramente possível, a Lógica trata de todas as
possibilidades, e todas as possibilidades são os seus factos».
Ora, se para ele não existe o meramente possível, apenas factos, e estes são o ocorrido,
então, nada mais pode acontecer: o mundo é um todo fechado.
Isto não é filosofia mas um jogo insensato em que um indivíduo tenta impor a forma
da sua mente a quem seja idiota o suficiente para entrar neste labirinto. É o que Eric Voegelin
chamava de operação de magia, uma tentativa de prender o outro num circuito de
pensamentos sem sentido mas que quando aceite provisoriamente, ainda que a título de jogo,
torna-se muito difícil de voltar atrás. O trabalho que dá em chegar até ao fim do livro faz com
que estas coisas se tornem numa estrutura permanente dos pensamentos do iniciado. No
fundo, é um procedimento de hipnose.
Continua Wittgenstein:
«Em Lógica, nada é acidental. Se uma coisa pode ocorrer num facto atómico, a
possibilidade daquele facto atómico tem de poder ser pré-julgada na coisa».
Isto é a negação da acidentalidade, porque diz que a partir de um facto deve ser
possível deduzir todos os acidentes que lhe podem ocorrer, o que levaria a equivaler os
acidentes às propriedades.
Quando mais tarde, noutros trabalhos, Wittgenstein lança a ideia dos jogos de
linguagem – existem inúmeros jogos de linguagem independentes entre si e nenhum pode
abrangê-los a todos –, ele apenas confunde as possibilidades da linguagem humana com a
possibilidade do conhecimento humano. O universo das linguagens não abrange tudo o que
conhecemos. A linguagem é um aspecto da existência e do conhecimento. Toda a
comunicação verbal depende de uma rede quase ilimitada de sinais não-verbais. Já Karl
Bühler dizia que, na linguagem, as funções expressiva e apelativa dependiam da função
denominativa. Mas Wittgenstein, nos jogos de linguagem, não apenas cria outras funções
como as torna independentes da função denominativa, o que vai flagrantemente contra a
nossa prática da linguagem. α68
sinais físicos que recebemos do mundo não significassem nada para nós. Somente após um
certo grau de desenvolvimento humano pode a cultura se tornar um mediador do universo
físico, até ao ponto de modular algumas respostas que damos a este, mas ainda assim nunca
altera as reacções fisiológicas, apenas a reacção verbal e social é que é diferente. Por outro
lado, podemos questionar o que significa o homem estar limitado à cultura do seu tempo.
Vemos diferenças abissais entre as pessoas, desde aquelas que não têm praticamente
referência alguma a eventos passados ou a outras culturas, até outras cujo horizonte temporal
abarca várias épocas e civilizações. Tudo isto não pode ser mediado pela cultura do nosso
tempo, mesmo se nela existirem algumas referências para “fora”, há também o impacto físico
de ver certas coisas, de ler certos textos, de contactar certas pessoas. Se olharmos este
conjunto com os olhos da nossa cultura, realmente não entenderemos nada, temos de
adaptar a nossa compreensão aos novos elementos e no final chegamos a algo que não tem
equivalente na nossa cultura.
Não reflectimos a cultura do nosso tempo mas, sim, toda e qualquer informação que
recebemos, seja de que cultura for. O quanto conseguimos olhar para diante no futuro ou
para trás no passado depende de nós e não da nossa cultura. Tal como Wittgenstein substitui
a linguagem ao mundo (ele diz que “os limites do mundo são os limites da linguagem”, o que
implicaria aprender a falar antes de nascer), o pessoal da hermenêutica substitui a cultura ao
mundo. Tudo isto apenas revela uma falta de atenção à presença física do mundo à nossa
volta, de alguém que parece nunca se ter apercebido da miríade de sinais do mundo físico que
recebe e a partir dos quais se orienta mas que permanecem alheios à linguagem. Mesmo a
descrição completa de uma simples dor de barriga está para além das possibilidades da
linguagem. Se não tivéssemos captado uma série de relações espaço-temporais e a presença
do mundo físico, com a sua unidade, não poderíamos criar em cima a unidade da nossa
comunicação ou da nossa cultura.
Diz Jacques Derrida que a língua nos fornece um sistema de significantes a partir do
qual compreendemos o mundo, ao mesmo tempo que nos propõe que confiemos neste, dado
que não podemos chegar de modo directo a uma realidade pré-linguística. Se isto fosse
verdade, não poderíamos ouvir as pessoas falar, porque a audição não é linguagem mas uma
sua pré-condição. Rorty dizia que realmente não podemos convencer ninguém a nada, mas
podemos induzir as pessoas a falar como nós. Isto já indicia que o objectivo desta corrente
filosófica é criar uma relação de poder entre os intelectuais e os seus leitores, mas que só se
estabelece se aceitarmos as suas proposições arbitrárias. Ao mesmo tempo que isto cria uma
insensibilidade relativamente às realidades mais óbvias, o foco de atenção é deslocado para
problemas que não existem naturalmente mas que foram criados pelos discursos destes
intelectuais.
Questiona Dardo Scavino se esta linguagem (aquela concebida pela linha filosófica
dominante que ele aborda) não passa a ocupar o lugar de Deus ou do Homem. Este é um
problema artificial que apenas existe dentro do contexto de uma determinada escola de
pensamento, porque uma pessoa normal sabe que a língua chega através dos sentidos e não o
contrário, e que a linguagem só poderia tomar o lugar de Deus se tivesse criado o mundo.
Na revista Time, Wittgenstein questionou até que ponto um falante de uma língua ou
um membro de uma cultura podem compreender a maneira como outra época ou cultura
interpreta uma coisa, isto sem traspassar os preconceitos do seu tempo. Para começar, só
temos acesso a outra cultura porque estamos todos dentro do mesmo universo físico: é este o
elo que nos liga. Sem a unidade do universo físico não teríamos uma base para compreender
203
outras culturas, nem mesmo outras pessoas. Wittgenstein prossegue afirmando que existem
inúmeras discussões sobre o assunto (possibilidade de compreensão de interpretações de
outras culturas ou épocas), sobretudo a respeito da interpretação de textos antigos. A
discussão desta interpretação já é um exame de segundo grau, que pressupõe algum tipo de
compreensão inicial. Podem existir muitas interpretações de uma peça de Shakespeare, mas
todas elas se baseiam na compreensão dos eventos retratados, ou seja, a divergência apenas
se refere a algo que não está presente materialmente no texto. Não há dificuldade em
entender o que Shakespeare disse mas apenas em tentar descobrir o que ele pensou. Mas não
há qualquer problema em não entendermos algo que o autor não disse.
Se colocarmos um leão à frente de vinte pintores, vão sair vinte resultados diferentes,
o que parece argumentar a favor do predomínio do subjectivo sobre o objectivo, mas na
realidade é o oposto. Não foi apresentado aos pintores um desenho do leão mas o animal
mesmo, em relação ao qual cada pintor tem um certo ponto de vista. Espera-se que cada
trabalho seja uma interpretação do leão, mas isso não quer dizer que só existam
interpretações, já que não vai aparecer nenhuma pintura de uma girafa. Só podem existir
diferenças de interpretação se estiverem dirigidas ao mesmo objecto. α68
Diz Scavino que a razão iluminista, que pretendia encarar o objecto sub specie
aeternitatis e anunciar leis gerais e eternamente válidas sobre ele, é incompatível com a
finitude histórica dos seres humanos. Ocupar a posição de Deus, neste sentido de conhecer as
coisas na escala da eternidade, é agora considerada por muitos a principal ilusão da filosofia,
é a chamada ilusão metafísica. Mas são os próprios herdeiros do Iluminismo que estão a
renegar os propósitos deste, só que para fazerem isto aceitaram primeiro os pressupostos
iluministas e a forma como o Iluminismo encarou a tradição filosófica anterior. Contudo, a
concepção iluminista não era a única alternativa possível. Ironicamente, esta linha de
pensamento proclamou que estava a ensinar as pessoas a pensar desde a perspectiva da
relatividade histórica, mas depois escondeu a historicidade do seu próprio processo, não
admitindo “concorrência” de outras linhas de desenvolvimento.
204
Mas assumindo este princípio de que o facto textual não existe fora da interpretação,
então, a conclusão é que leitura cria ou texto, ou como exprimia Stanley Fish em forma de
paradoxo: “Já não há obras, apenas leituras”. Ora, se a leitura cria o texto, este pode ser
interpretado de muitas formas, o que dá origem, por sua vez, a várias leituras, e assim por
diante, dissolvendo a própria leitura. Chegou-se a esta insanidade a partir de uma confusão
inicial entre linguagem e mundo.
205
Esta linha de raciocínio levou a Richard Rorty a concluir que a verdade se faz e não se
descobre, é algo que se constrói ao invés de se achar. Contudo, atendamos ao seguinte: se
desenharmos um modelo, na realidade estamos a imitar um esquema deste na nossa mente,
mas que apenas surge nela a partir do original e a este recorremos para corrigir o desenho.
Então, a verdade que se constrói é uma auto-contradição. A posição de Rorty evoca
Wittgenstein, que disse que a filosofia deveria ser escrita como uma composição poética.
Desta forma, as revoluções científicas seriam redescrições metafóricas da Natureza e não
intelecções da sua natureza intrínseca. Embora exista este aspecto de descrição metafórica
da Natureza nas teorias científicas – nunca existe um translado directo do que foi percebido
–, não pode ser apenas isto: algo tem de ser percebido; tem que haver uma base factual para
depois se fazer uma elaboração em cima.
Seguindo esta ideia das revoluções científicas, já não poderia falar-se de um progresso
científico como uma aproximação gradual a um conhecimento completo e racional da
Natureza (proposta de Laplace). Ou seja, somos novamente colocados entre extremos: ou o
ideal iluminista da ciência perfeita, que iria descobrir a realidade tal como ela é e expressá-la
em leis universais obrigatórias; ou, caída esta ideia em desgraça, restaria a total invenção, a
arbitrariedade, as metáforas poéticas. Na realidade, estas duas hipóteses são impossíveis e o
que existe é uma tensão entre elas.
Rorty conclui que falar de uma verdade objectiva (que anularia as outras) só seria
possível numa sociedade autoritária. Contudo, nunca existiu uma sociedade autoritária
baseada no conhecimento objectivo da Natureza. As sociedades totalitárias são baseadas em
ideologias, ou seja, em misturas indiscerníveis de conhecimento, crença e actos de vontade.
Talvez Rorty acredite na propaganda que as ideologias fazem a si mesmas de serem
científicas e verdadeiras. Alain Besançon (As Origens Intelectuais do Leninismo) mostrou a
tensão em Lenine, que numa hora dizia que as suas ideias são conhecimento científico e logo
a seguir afirmava que aquilo tinha de ser imposto. Ora, uma verdade científica pode ser
demonstrada e não necessita de ser imposta.
Diz Scavino que a “verdade tem a vocação de universalidade” e Rorty sabe disso, mas
daí não conclui que a verdade seja válida para qualquer indivíduo para além da sua cultura.
Mas se pensarmos bem, um regime autoritário não é apenas a expressão de uma determinada
cultura como é o factor que faz com que esta cultura continue existindo e se perpetuando.
Então, para que precisa um regime autoritário de verdades que transcendam a cultura que
ele mesmo impõe e constitui? Aquilo que transcender esta cultura também vai transcender e
colocar em causa a autoridade do regime que domina aquela cultura. Assim, a exigência de
universalidade e o exercício da autoridade vão em sentidos opostos. Por isso, os regimes
autoritários sempre tenderam a proibir a viagem dos cidadãos para o exterior, para estes para
não voltarem com ideias estranhas àquela cultura e que coloquem a autoridade do regime em
discussão. Rorty, que sempre viveu carregado de direitos na democracia americana, não faz a
mínima ideia do que seja um regime autoritário. α68
modificar aquilo. Não opera apenas no caso religioso. O indivíduo que está com a namorada e
naquele momento sabe que ela o ama, depois quando ela sai começa a desconfiar, a criar
falsas dúvidas. Então, ele restaura a sua fé nela. Ora, quando ele faz isso não tem fé em algo
duvidoso, antes restaura a fé em algo que antes já sabia. A fé e o conhecimento não são
espécies diferentes e estão sempre em relação dialéctica. α68
[Aula 69]
224. Notas sobre o movimento revolucionário
O tipo de actuação que se espera dos alunos do Curso Online de Filosofia pode não ser
possível desempenhar no Brasil, caso a situação de complique para além de um certo ponto.
Por isso, os alunos têm de estar preparados para desempenhar as suas actividades no
exterior, onde a mentalidade revolucionária também está bastante activa. Sob certo aspecto,
a penetração da mentalidade revolucionária no Brasil é menor do que em muitos países, já
que a maior parte das pessoas não lê jornais e apanha as coisas filtradas pela Rede Globo.
Assim, a posição conservadora da maior parte dos brasileiros em termos sociais e morais não
foi alterada, embora não existam partidos políticos de expressão conservadora.
O movimento revolucionário não foi criado por políticos de interior mas por
intelectuais de alta craveira, que têm um horizonte de visão muito maior que o dos seus
possíveis adversários na direita. A revolução não é um projecto definido a ser realizado por
certos meios, ela apenas pode existir enquanto promessa de futuro. Se ela fosse algo a ser
alcançado por meios racionalmente controláveis, então, teria um fim e poderia ser julgada
pelos seus actos. O projecto revolucionário nunca está confinado a uma época ou lugar, é
sempre um projecto universal. Mesmo o projecto revolucionário nazi, apesar de ter um
conteúdo alemão, tinha um horizonte mundial. Se a revolução apenas pode ser total,
nenhuma revolução em particular realiza a sua ideia.
Vittorio Matieu (La Speranza nella Rivoluzione) diz que o processo revolucionário
assemelha-se a uma criação artística e não à execução de um projecto técnico ou político de
mudança social. O escritor usa algumas técnicas mas quando começa a escrever um romance
207
não tem ainda o conceito total deste. Ele nunca controla a totalidade do processo porque
existe a inspiração, que é um fenómeno interno do processo de escrita e que, de certa forma,
faz com que as personagens obriguem o romancista a escrever certas coisas. Os liberais não
entendem isto porque raciocinam segundo cânones técnico-científicos e, assim, esperam
apenas encontrar na revolução a ideia da acção racional segundo fins. Já o revolucionário,
por regra, conhece o adversário melhor do que este se conhece a si mesmo, por isso não sofre
qualquer oposição política eficaz.
Dito de outra forma, é absurdo esperar que uma proposta revolucionária tenha os fins
declarados. O único objectivo real é sempre aumentar o momento da revolução. Então,
acontece uma coisa curiosa com a reacção liberal, conservadora ou direitista, que irá sempre
ajudar o processo revolucionário. Se estes aceitarem as propostas revolucionárias, por
distracção ou ingenuidade, obviamente que favorecem os propósitos revolucionários,
credibilizando as propostas e os seus proponentes, dando espaço de actuação, etc. Mas se
fazem oposição e mesmo se conseguirem bloquear as propostas, não deixam de favorecer o
movimento revolucionário, porque irão personificar tudo o que existe de mal no mundo e a
resistência ao bem. Ou seja, é sempre errado tomar posição sobre pontos específicos, porque
estes nunca são o problema: a revolução é uma coisa abrangente e total, e que apenas pode
ser combatida a partir do mesmo horizonte.
tem fim, ou ele se extingue pela auto-destruição da humanidade ou, então, a mentalidade
revolucionária é destruída na base, retirando da vida pública todos os revolucionários,
quaisquer que sejam as suas propostas. O movimento revolucionário não é constituído de
uma ideologia ou de um projecto político. Tudo cabe dentro da revolução, por exemplo,
Lenine era anti-nacionalista e Estaline usou o nacionalismo como grande arma da revolução.
O ponto de coerência não é a ideologia ou a política, é a associação de pessoas irmanadas pela
própria ideia do movimento revolucionário.
Qualquer promessa auto-adiável deve ser rejeitada liminarmente, não porque seja má
– entrar nesta avaliação em público já é cair no engodo – mas porque os seus porta-vozes são
pessoas más. São pessoas que se arrogam a uma autoridade que não têm, que querem usar
toda a gente como instrumentos – coagindo, matando, torturando – para realizar algo que
elas sabem ser impossível de ser alcançado. Combater pontos específicos não resulta, porque
estes podem ter sempre ter alguns aspectos positivos, em teoria. O problema é sempre saber
quem vai ganhar poder com as propostas.
Então, o movimento revolucionário tem que ser rejeitado na totalidade. E isto não é
uma proposta positiva mas negativa. Apenas tentamos impedir que o mal se consuma, não
temos de propor uma alternativa. Qualquer proposta positiva, por mais conservadora e
liberal que seja, pode ser aproveitada pelos revolucionários, que “amanhã” podem encaixá-la
no seu movimento. Além disso, se as propostas de oposição à mentalidade revolucionária são
feitas dentro da escala de tempo do movimento revolucionário, elas estão a servi-lo. Apenas
se tivermos uma escala de tempo apropriada, surgida da consciência de imortalidade,
podemos denunciar a falsa. Temos que ter consciência que não somos um momentum do
sonho revolucionário, somos almas imortais com uma duração que supera tudo isso. O
movimento revolucionário deve ser desprezado porque é mesquinho e nada significa à luz da
eternidade.
mas uma actividade cognitiva e existencial desenvolvida por pessoas reais e que usam todos
os discursos possíveis para comunicar algo do que perceberam e descobriram. Ou seja, o
modo de exposição da filosofia não expressa a natureza desta. Platão usava os quatro
discursos: em geral, começava com um discurso dialéctico, por vezes fazia algumas
demonstrações lógica-matemáticas, em certos momentos apelava às crenças comuns e
frequentemente terminava com um mito. As proposições filosóficas não são a filosofia, esta é
a actividade cognitiva, existencial, moral e pedagógica desenvolvida pelos filósofos. Por isso,
o termo final de uma filosofia não é uma doutrina escrita mas a criação da pessoa do filósofo,
que é capaz de absorver o legado e prossegui-lo. Neste sentido, a filosofia é eminentemente
uma pedagogia, um guiamento de almas, do qual o produto escrito é apenas um fragmento.
Se não existe uma multidão de percepções inexpressáveis, que acompanham o aprendizado
da filosofia, não existe filosofia alguma.
[Aula 70]
226. A filosofia pós-moderna (Dardo Scavino)
Tínhamos ficado na leitura do livro de Dardo Scavino (La Filosofia Actual) na parte
em que ele comentava a convicção de Wittgenstein de os jogos de linguagem serem
autónomos, o que parece insustentável [222]. Se o “jogo” usado para descrever a realidade
dos factos não tiver prioridade em relação aos restantes, não podemos dizer se a própria
descrição dos jogos de linguagem é real ou não.
Scavino fala que foi a partir do princípio da autonomia dos jogos de linguagem que
François Lyotard criou o conceito da pós-modernidade. Na Dialéctica do Iluminismo, Marx
Horkheimer e Theodor Adorno afirmaram que a modernidade tinha valorizado o saber
denotativo, científico, racional e, ao mesmo tempo, excluiu os saberes míticos ou narrativos a
partir dos quais se organizaram as culturas tradicionais. Mas Lyotard diz que modernidade
inventou, como forma de legitimação, uns relatos míticos que são as filosofias da História.
Este é precisamente o método concebido por Hegel e que é usado no próprio livro de
Scavino e que ignora outras linhas filosóficas que não se encaixam no mito. Mas Lyotard
também se baseia numa mitologia, porque parte da ilusão de que tudo o que vem depois
absorve ou invalida o que veio antes, ou seja, que toda a filosofia não deixou possibilidades
que não se realizassem na seguinte. Assim, ele diz que há apenas a alternativa entre a
modernidade (concepção do conhecimento objectivo moldada na ideia da ciência iluminista)
211
Mas basta olhar para Duns Scott, o Doutor Subtil, que deixou uma filosofia com
milhares de sementes ainda não germinadas (“as auroras que ainda não se levantaram”,
como falava Nietzsche). É óbvio que cada filósofo não leu e absorveu todos os antecessores,
apenas focou uns quantos – e nos pontos que lhe interessaram – e os outros desprezou ou
deu menos atenção (e há os casos de incompreensão, desconhecimento, etc.) Na realidade,
não existe essa evolução e a pós-modernidade não responde à modernidade e nem esta às
filosofias anteriores. De facto, a pretensão iluminista foi derrubada mas com isso não se
demoliu as outras modalidades de conhecimento objectivo. Isto só parece assim para quem
acredita na narrativa histórica mítica que encaixa a filosofia medieval na renascentista, esta
na iluminista e assim por diante. Uma narrativa histórica não tem que ser necessariamente
mítica, mas para ser objectiva não pode reduzir tudo a uma única linha evolutiva. A crítica
pós-moderna à filosofia moderna e ao Iluminismo baseia-se no mito historiogenético, que diz
que todo o pensamento anterior culmina no tempo e na pessoa do filósofo actual, ou em
quem faz a narrativa, que até lhe pode parecer assim se selecionar os filósofos que se
encaixam na sua visão histórica.
Scavino ressalta que aquilo que se procura transmitir com os relatos míticos
(filosofias da História) é um conjunto de regras pragmáticas que constituem o laço social, ou
seja, a boa maneira de o candidato a intelectual se comportar socialmente. Mas podemos
observar que a pós-modernidade também tem o seu jogo de linguagem, que subentende as
regras de bom comportamento para ser aceite. Apesar de se proclamar que todos os jogos de
linguagem se equivalem, na prática há a presunção de que o jogo mais recente (neste caso, o
da pós-modernidade) já se sobrepôs aos anteriores. Já tínhamos visto que a pretensão de
equivalência entre os jogos de linguagem não era séria [218], ou não seria possível fazer uma
teoria a respeito que tivesse alguma validade. Mas a autonomia dos jogos de linguagem
também não é merecedora de crédito, porque sempre existe alguma referência ao mundo
exterior, há sempre alguma presunção de conhecimento objectivo. Em Maquiavel já é
evidente a paralaxe cognitiva, mas não se nota um deslocamento imediato que nos coloca
directamente em face ao paradoxo do mentiroso.
Diz Scavino que o paradoxo é o feliz herói dos mitos da modernidade, em que se
acredita possuir o conhecimento objectivo, científico, racional. O herói é o homem novo,
racional, livre de preconceitos, o homem eficiente, em suma, o homem moderno. Ressalta
Vincent Descombes (comentando A Condição Pós-Moderna) que “o homem moderno
acreditava profundamente em um sentido da História: podia assim tomar partido, defender
causas, comprometer-se em uma organização política”, já o homem pós-moderno “é o mesmo
homem moderno no qual o espírito crítico superou os últimos restos de credulidade, ele já
não crê nos grandes relatos do liberalismo e do marxismo”. Os grandes relatos são, no fundo,
as grandes filosofias da História. O liberalismo acredita no progresso da humanidade, como
acontece com a pretensão de Benedetto Croce da liberdade crescente ao longo da História; o
marxismo postula uma sucessão histórica racionalmente compreensível, que dará origem à
sociedade sem classes. O homem moderno ainda acreditava nestas fantasias mas o homem
pós-moderno é ainda mais racional, objectivo e implacável, e já não crê em nada disto. Ele
acredita que derrubou os grandes mitos do Iluminismo (o liberalismo e o marxismo),
supondo que derrubou ao mesmo tempo todas as possibilidades de conhecimento. Fica
apenas com o discurso e com os jogos de linguagem, e acha que assim superou a filosofia
212
anterior, ou seja, no fundo acredita na mitologia do desenvolvimento histórico que diz ter
superado.
As condições de Frege para provar algo ou para obter algum conhecimento científico
eram a existência empírica de um referente e que este permanece idêntico a si mesmo. Mas
diz Scavino que agora estas condições já não são “metafísicas”, são “comunicativas” ou
“lúdicas” (terminologia de Habermas), ou seja, são regras às quais responde o “jogo de
linguagem” chamado “ciência”. Então, a arbitragem entre juízos contraditórios já não é feita
por uma substância que existe mas apenas pela fidelidade maior ou menor de cada juízo a
uma regra do jogo de linguagem chamado ciência. Daí que estes já não falem mais de
“condições de verdade”, como acontecia com Frege, que dizia que um juízo é verdadeiro
quando atende às condições de veracidade. Referem-se agora às “condições de
aceitabilidade”, isto é, um enunciado não é científico porque diz algo verdadeiro acerca de um
estado de coisas mas porque respeita certas regras de jogo, incluindo o facto de pretender
dizer algo a respeito deste estado de coisas. Novamente, podemos questionar se esta
descrição é somente mais um jogo de linguagem, perdendo assim toda a objectividade.
Então, diz Scavino, a “verdade” dos enunciados só será aceite como válida até ser
refutada, justamente porque uma das regras do jogo científico é que todas as provas sejam
refutáveis. Mas de que vale uma refutação se não existem verdadeiras condições de provar
algo? Podemos apenas usar artifícios lógicos para simularmos uma prova ou uma refutação,
mas no fundo admitimos que tudo aquilo não significa nada. Tudo isto reduz a ciência a um
jogo mas, paradoxalmente, a ciência ao mesmo tempo que se desmoraliza atinge uma
presunção de autoridade social que nunca teve, quase que obrigando o Estado em tornar lei
tudo o que seja aceite pelo consenso científico, mesmo que no fundo seja apenas um capricho
de um grupo de pressão.
213
Scavino fala depois do princípio da razão suficiente, de Leibniz, que este enunciava
de duas formas. Na primeira, ele dizia que “nada ocorre sem razão”, o que significa que,
desde uma perspectiva científica, todas as coisas tem uma razão de ser. Na segunda, ele
enunciava o princípio como “podemos dar razão de toda a verdade”, o que significa que um
discurso só é científico se prover as razões acerca das coisas afirmadas. Mas Leibniz derivava
o segundo sentido do primeiro, porque tendo as coisas razão de ser, não provamos nada
sobre elas se não dermos a razão suficiente para elas serem de determinada forma. Mas os
filósofos modernos separaram estas duas acepções, adoptando apenas a segunda. Assim, as
coisas deixam de ter razão de ser, nós é que damos alguma razão e, para isso, temos de
justificar retoricamente o que dizemos. A relação privilegiada já não é a do pensador com o
facto preexistente mas a que ocorre com o interlocutor, ao qual tem que se dar razões
aceitáveis para convencê-lo. Isto significa a passagem da prova lógica-científica à prova
retórica. A descoberta científica passa a ser uma jogada não prevista nas regras do jogo
anterior mas que também não entra em conflito com elas.
A partir daqui, continua Scavino, Paul Waltzlawick (um dos teóricos da escola de Palo
Alto, na Califórnia), propõe-se a demonstrar que a nossa imagem da realidade depende em
larga medida da confirmação do testemunho do outro, especialmente se lhe reconhecemos
autoridade. Realmente, a autoridade e a confiabilidade são elementos básicos do
aprendizado, mas estes têm que existir realmente, têm que se manifestar fisicamente de
alguma forma e isto não é cultural. A cultura só pode operar em cima de um conjunto de
experiências directas não mediadas culturalmente. A experiência que temos da nossa
presença directa num universo físico fica em nós como um modelo do conhecimento
objectivo. Por exemplo, quando dizemos que a nossa confiança é firme, nem nos damos conta
de que estamos a usar uma figura de linguagem, dado que a firmeza é um atributo das coisas
físicas. Quando dizemos que uma autoridade é confiável estamos a nos referir a esta firmeza,
que em última análise remonta à experiência física da imobilidade do chão. Para
214
distinguirmos o que é herança cultural do que é a presença objectiva do mundo físico, temos
que nos reportar às experiências da estrutura do mundo físico, que já estão em nós, embora
possam estar algo submergidas pelo falatório geral.
Note-se que estas experiências iniciais não são ainda o conhecimento por presença,
antes subentendem uma presença. Para restaurar o conhecimento por presença só temos que
nos lembrar daquilo que temos de saber sempre para, num dado momento, sabermos alguma
coisa. Num primeiro momento vão se evidenciar elementos adquiridos culturalmente, mas
depois há coisas que sabemos que não são abrangidas pela cultura e que estão mesmo por
baixo das experiências infantis. Estas já pressupunham uma espécie de sentimento do
maravilhoso, do imenso, uma percepção de algo que já se encontra nas coisas e que se revela
quando nos abrimos a elas. α70
Temos aqui aquilo que Bertrand du Jouvenel salientou (Du Pouvoir), que o poder tem
sempre crescido ao longo da História, embora em termos legais pareça que seja a liberdade a
se ter ampliado. Mas não apenas o poder tem crescido ao longo da História como, logo à
partida, a diferença de poder dentro da espécie humana – um elemento constitutivo desta –
não tem paralelo no mundo animal. Em todas as sociedades há uma autoridade que tem o
poder e a autorização para matar outros, mesmo se não existir pena de morte. Apesar de
existirem muitas espécies em que os seus membros se matem entre si, isso ocorre numa
percentagem muito baixa em relação ao total das espécies animais existentes. E a morte
acontece nestes casos muito raramente, e nunca há, dentro da espécie, assassinatos em
massa. Mesmo entre os animais mais agressivos, quase tudo é uma demonstração de
autoridade, a hostilidade é simbolizada e as consequências letais são quase sempre evitadas.
Há todo um conjunto de sinais que mostram o respeito pela hierarquia existente. Não tem
sentido dizer que o “homem é o lobo do homem”, nenhum lobo fez de perto a outros lobos
aquilo que certos tiranos fizeram às suas populações. No entanto, não é o homem como
indivíduo que tem todo este poder, ele tem que ter sempre o apoio estatal, tem que ser
sempre alguma forma de governo. Neste sentido, a diferença entre o poder, letalidade e
crueldade das ditaduras para as democracias é quantitativa mas não profunda o suficiente
para levar a uma diferença de essência. α70
[Aula 71]
A admiração das grandes obras do passado deve seguir o mesmo rumo. Não vamos
apenas tirar proveito delas, também temos que limpar as pequenas imperfeições que elas
contém. Muita gente tenta acusar Shakespeare de racismo, tomando exemplos como o retrato
que ele faz do mouro Iago como brutal e lúbrico. Na verdade, o malvado da história é branco
e nada indica que Shakespeare retrate Iago como o estereótipo do mouro, apenas retrata
aquela personagem. Mas mesmo se fosse um estereótipo, a nossa admiração por Shakespeare
não devia lançar-nos logo em grosseiras acusações de racismo, antes devíamos tentar
compreender as suas razões, neste caso, havia invasão islâmica na Europa, com escravização
e castrações (1400 anos de escravidão islâmica contra 300 anos de escravidão europeia,
quando esta nunca foi totalmente aceite pelo lado dominador), pelo que não podemos exigir
que os mouros tivessem uma imagem boa. E o mouro nessa época nem sequer se enquadrava
numa raça, no sentido moderno, que é uma noção que apareceu quase duzentos anos depois
de Shakespeare. Mouro era quem tinha pele escura em comparação com o europeu, podia ser
africano ou árabe, era uma noção estética e não biológica. Além de que o “mouro lúbrico” não
era apenas estereótipo, porque ele podia ter por lei quatro mulheres e tantas escravas quanto
pudesse.
a) Obtenção de uma essência, na forma de uma definição geral que se aplique a todos os
casos envolvidos;
b) Estudo das condições de existência, ou seja, saber o que é necessário para um ente assim
definido possa existir;
217
Zinoviev tenta demonstrar o abismo que pode existir entre uma afirmação científica e
um juízo de facto. Todas as afirmações científicas são sentenças condicionais, ou seja, têm
validade geral se verificarem-se certas condições. Podemos enunciar a mentalidade
revolucionária em forma de lei universal: “Onde quer que haja um movimento político,
social ou cultural baseado na crença de que a História se dirige a uma determinada
finalidade, a História será contada às avessas, tomando-se o futuro hipotético como premissa
dos factos já confirmados”. Trata-se de uma lei científica, montada de forma condicional, e
não de uma afirmação de facto. Isso quer dizer que a mentalidade revolucionária dificilmente
aparecerá em estado puro, cada indivíduo será afectado apenas num certo grau e continuará
a ser capaz de raciocinar, a ter bom senso, etc. A criação de uma generalidade a partir de um
facto é aquilo que Zinoviev chamava de pensamento filistino. Um único facto, que pode ter
sido escolhido arbitrariamente, ganha assim validade científica universal.
Páginas antes, Wittgenstein tinha afirmado que estava dentro do mundo e era uma
parte da realidade. O que ele faz é deslocar as premissas e as consequências o tempo todo, e
aquilo que antes era premissa passa a ser consequência de outra coisa que disse adiante (são
as famosas leituras circulares). Podemos ler assim, e depois de termos feito o exame das
possibilidades da linguagem humana, a conclusão é que todas se neutralizam, e aí podemos
achar bela a proposta de Wittgenstein de que apenas nos resta uma espécie de silêncio
contemplativo.
Isto decorre de ele ter dito que o sujeito é o limite do mundo e, quando ele morre, o
mundo cessa. Mais especificamente:
«Se houver uma vida eterna, essa vida eterna não será tão enigmática quanto a
nossa vida presente? A solução do enigma da vida no espaço e no tempo reside fora
do espaço e do tempo».
Ora, como podem os enigmas contidos no espaço e no tempo terem uma solução
colocada fora do espaço e do tempo. Estaria certo se ele dissesse acima (que abrange e
transcende) e não fora, caso contrário temos um paradoxo de uma solução que não abrange
em si a formulação do problema. Mas se aceitamos isto, não temos como não aceitar quando
ele diz que Deus não se revela no mundo. Se assim fosse, o mundo era uma entidade auto-
constituída e independente de Deus, que está “para lá”. Isto não passa do gnosticismo mais
vulgar.
Mas quem disse que existe um limite fixável entre o expressável e o inexpressável. É
um limite que tem sido continuamente ultrapassado, essa é a história da literatura desde
Homero, onde os personagens não têm ambiguidades internas e não se transformam ao
219
longo do tempo porque nem existiam recursos linguísticos para exprimir isso. E depois, ao
longo do tempo, o domínio do expressável sempre aumentou, pelo que não temos de aceitar a
imposição de Wittgenstein de que aquilo de que não se pode falar deve se calar, deve é se
tentar melhorar a linguagem para tentar falar.
Wittgenstein diz que “o mundo é o conjunto dos factos, e não das coisas”. Se estamos
numa sala, vemos inúmeros objectos que não estão fazendo nada, não são factos. Então, o
mundo é na realidade uma colecção de objectos, e dentro dela ocorrem alguns factos. Na
realidade, o mundo não se apresenta a nós como uma colecção de coisas mas como a unidade
do nosso campo ilimitado de experiência. A noção de um horizonte que se expande é inerente
à percepção do mundo. Wittgenstein teve a experiência inversa, de que só existem os factos,
mas ao invés de ter parado para perceber se aquilo tinha sido apenas uma impressão poética,
tratou logo de lhe dar uma formulação com suposta validade universal. Então, o Tractatus
Logico Philosophicus é uma obra poética posta em forma lógica. As impressões que
Wittgenstein teve não têm de ser mais válidas do que tantas outras que vão no sentido
contrário. Quando uma obra literária se apresenta como tal, ela convida-nos a entrar nela e
nas suas impressões já com o pressuposto que depois vamos sair e experienciar outras coisas,
até porque o autor pode mais tarde escrever outra coisa com um carácter totalmente
diferente, porque ele não tem que permanecer fiel às suas obras, dado que estas, uma vez
concluídas, valem por si. Mas Wittgenstein criou uma obra para entrarmos nela e não
sairmos mais. Ela apresenta uma série de experiências que se contradizem e não procura
harmonizá-las, como devia fazer se fosse um filósofo, porque a filosofia é precisamente a
busca de unidade, é uma busca pessoal que compromete o indivíduo inteiro em todos os
momentos da sua vida. Sócrates aceitou alegremente a sua morte, o que mostrou que a sua
“doutrina” sobre imortalidade não era apenas uma hipóteses que ele tinha pensado mas algo
no qual ele confiava mesmo. α71
Outro requisito foi expresso por São Tomás de Aquino quando disse: “A verdade é
filha do tempo”. As perguntas podem surgir cedo mas as respostas só aparecerão várias
décadas mais tarde. Não vamos avançar no caminho da filosofia se não conseguirmos
suportar uma quantidade imensa de perguntas sem resposta. O conhecimento vem de Deus e
é Ele quem dirige o processo.
Temos de nos lembrar sempre da finalidade dos nossos estudos. Quem quiser ser um
intelectual académico aceitável, vai ter de operar como os outros, fazer análise de texto,
assumir uma linguagem empostada para ser aceite, etc. Mas o objectivo da filosofia não é
criar textos filosóficos, é criar filósofos, que são aqueles que conseguem vivenciar a unidade
do conhecimento na unidade da consciência e vice-versa. É uma unidade tensional devido à
220
[Aula 72]
231. O predomínio das regras comunais (Zinoviev)
No livro The Reality of Communism, Aleksandr Zinoviev começa por explicar que as
sociedades existentes têm que reunir uma série de condições em simultâneo: criação de um
espaço na Natureza; criação de um espaço terrestre e organizar a exploração dos seus
recursos; convivência com outras sociedades. Ele chama de comuna ao grupo de pessoas com
quem, dentro de uma sociedade, temos contacto mais ou menos directo. As comunas têm
como objecto imediato de convivência as outras comunas, não a sociedade como um todo,
menos ainda as outras sociedades e nem sequer o ambiente físico. E dentro das comunas –
qualquer que seja a sociedade – há uma série de regras práticas que visam não apenas a
defesa do indivíduo contra outros elementos da comuna mas também a defesa daquela
comuna face às outras. Tratam-se de regras mais ou menos universais mas que nada têm a
ver com as leis gerais da sociedade e nem com os princípios que mantém as comunidades
coesas, podendo mesmo entrar em contradição com estes. O objectivo destas regras é sempre
obter a melhor posição possível, seja para o indivíduo em relação aos outros dentro da
comuna ou para a comuna face às outras. Seguem-se algumas dessas regras:
a) Arriscar o mínimo para ganhar o máximo – mesmo as pessoas de alta moralidade seguem
esta regra;
E Zinoviev prossegue com outras regras deste género, que começam por ser uma
questão de sobrevivência e mesmo as pessoas de conduta moral elevada são obrigadas a
seguir de alguma forma. Zinoviev diz que uma civilização constrói-se se a sociedade
conseguir criar princípios e regras – através da moral, da religião, da legislação, etc. – que
controlem e mantenham as regras comunais dentro de limites toleráveis. Mas se os
princípios gerais estruturantes da sociedade começam a dissolver-se ou se perdem
representantes que os façam valer, as regras comunais transformam-se nos princípios gerais
da sociedade. Então, numa empresa, entendida como uma comuna, os chefes e gerentes não
são as pessoas mais bondosas mas aqueles que lutam com mais tenacidade. Já nas
instituições da sociedade maior, se estivessem a funcionar saudavelmente, devia ser o oposto.
Mas se estas instituições estão fracamente desenvolvidas ou se estão em estado de dissolução,
então, as forças comunais vão ganhar força e determinar o carácter destas instituições que
deviam proteger as pessoas das regras comunais. Assim:
221
Zinoviev acrescenta que esta situação pode durar séculos. Este retrato descreve com
bastante exactidão a situação brasileira. As regras práticas comunais são quase instintivas e
não dá para sobreviver sem elas. Por exemplo, estamos sempre a tentar limitar a nossa
responsabilidade pessoal, a diferença é que alguns querem fugir sempre às suas
responsabilidades e outros mantém isso dentro do tolerável. Quando os princípios e regras da
sociedade maior começam a falhar, os princípios de decência e de moralidade desaparecem e
as pessoas já nem conseguem entendê-los, obedecem apenas à regra comunal por questões
de sobrevivência. A isto acresce a distância que a maior parte das pessoas tem do ambiente
terrestre “não humanizado” – não têm, como os agricultores, que contar com as estações do
ano, com as tempestades, com a seca – e apenas conhecem um ambiente de várias comunas,
ou seja, não têm a menor ideia do que seja a sociedade como um todo. Isto é também
favorecido por outros elementos. Um deles é a ausência de um sentimento nacional, que em
outros tempos começou a se formar (Guerra do Paraguai, industrialização do governo de
Getúlio Vargas, construção de Brasília no tempo de Juscelino Kubitschek, progresso
económico no regime militar Médeci), mas depois desapareceram, sendo algo que não pode
ser recuperado tão cedo devido à ausência de intelectuais que possam criar uma imagem do
Brasil que se propague às outras classes como sentimento de nacionalidade. Outra razão é a
ignorância em relação às leis, não só porque estas são confusas mas porque atingiram um
volume inabarcável, então, a lei passa a ser um elemento distante e abstracto para o cidadão,
que naturalmente vai apegar-se à norma comunal, que é precisamente a autoridade imediata
da qual depende a sua sobrevivência. Num ambiente assim não é de admirar a inversão
moral, onde as pessoas se preocupam mais com a corrupção do que com 50 mil homicídios
anuais, dado que o dinheiro adquiriu um atractivo simbólico desmesurado e é algo com que
as pessoas lidam na sua comuna mas, em geral, já não vão conviver com homicidas.
Sem a restauração da alta cultura, não podem existir normas efectivas, não vai haver
integração da sociedade. Pensemos no que é uma Constituição. Segundo Hans Kelsen (não
foi contestado neste ponto), uma Constituição é uma pirâmide, tem um princípio no topo e o
resto deriva daquilo ou tem ali o seu fundamento de alguma forma. Então, os regulamentos,
o Código de Processo Civil, o Código Penal têm de ser coerentes com ela. Hoje já desapareceu
222
a ideia de que as leis devem ser coerentes entre si. Por exemplo, existe uma lei que proíbe o
ultraje ao culto religioso e outra que proíbe colocar um travesti fora da igreja se este a
ultrajar. A lei deixa de ser um princípio que ordena a sociedade e transforma-se num pretexto
para defender certos grupos em certos momentos, ou seja, os legisladores seguem apenas as
regras comunais nas quais vivem (desejo de aumentar o poder, concorrência com colegas,
isentação de responsabilidades, etc.)
Os próprios alunos do Seminário de Filosofia não podem achar que basta assistir a
umas aulas e que, assim, já estarão prontos para intervir na vida pública. Se não estiverem
devidamente preparados em termos intelectuais e morais, rapidamente começarão agindo
em função das regras de defesa pessoal da comunidade e esquecerão de julgar as coisas em
função de valores superiores. α72
Para evitar passar por cima da significação exacta, Guéroult partia de três
pressupostos:
c) A estrutura lógica da demonstração pode não coincidir com a ordem linear do texto mas
deve ser recomposta a partir desta.
temos apenas notas de aula, além de que a Metafísica, sua obra principal, é um conjunto de
textos independentes montados muito depois da sua morte por alguém que não foi seu aluno,
pelo que a aplicação do método de Guéroult é praticamente inviável. Em Descartes funciona
bem porque este compôs a sua obra escrita em coerência com a estrutura do seu pensamento.
O caso de Leibniz é paradoxal, porque ele era um diplomata muito ocupado e deixou
apenas uma série de cartas, rascunhos e escritos de opinião, parecendo muito eclético, mas
ele foi uma das mentes mais organizadas de sempre. Já a obra de Mário Ferreira dos Santos
está muito bem estruturada, o texto é que está defeituoso. Ao passo que a obra de Olavo de
Carvalho é muito caótica e antes de fazer sobre ela uma análise estrutural guéroultiana será
necessário fazer uma estruturação, como acontece em relação a Leibniz. Nas obras que não
estão estruturadas conforme o pensamento do filósofo, a análise estrutural dos textos apenas
fornece peças isoladas de um quebra-cabeças, ainda que cada uma fique muito bem
esclarecida nos seus detalhes internos.
Então, por um lado temos a obra de arte, definida como uma forma acabada mas de
significado em aberto: o escritor nunca conseguirá controlar os significados que serão
extraídos da sua obra. Por outro lado, o filósofo visa chegar a uma significação exacta,
embora muitas vezes não o consiga, mas o texto fica sempre inacabado. Isto acontece porque
apenas podemos compreender o texto apelando a escritos antecedentes e subsequentes, a
224
dados da vida do filósofo, a outros escritos que ele tenha deixado, ou seja, a um conjunto de
elementos externos que revelam muito da interpretação dos escritos e, sobretudo, do peso
existencial e moral que o autor dava a estes. Temos o exemplo de Sócrates que aceitou a
morte serenamente, o que mostra o quanto ele acreditava na imortalidade da alma. E temos o
anti-exemplo de Nietzsche que, no fim da vida, abraçou um burro que estava a ser espancado
sob as ordens de Lou Salomé, o que mostra que ele não falava muito a sério quando dizia que
os mais fortes devem humilhar os mais fracos ou que as mulheres devem ser chicoteadas. Se
a experiência na vida real contradiz as ideias dos filósofos, a realidade deve prevalecer sobre
o texto.
Marcial Guéroult não se pergunta sobre qual é o género literário das Meditações
Metafísicas de Descartes, e acaba por lê-las como se fossem um puro tratado de metafísica,
quando o autor disse explicitamente que se tratava de uma autobiografia espiritual. Assim, a
ideia do “génio mau” parece-lhe apenas um artifício que coloca a dúvida entre a certeza do
cogito e a passagem para o mundo exterior. É nessa parte que Descartes apela a Deus e diz
que Ele é bom e não o iria enganar. De seguida, faz uma demonstração da existência de Deus,
usando-a para fundamentar a existência do conhecimento do mundo exterior. Mas se nas
Meditações o “génio mau” é realmente um artifício retórico, podemos dizer que também o
era na concepção do mundo que tinha o homem René Descartes? Se lermos as Meditações
não como um processo de validação mas como uma narrativa autobiográfica (como
Descartes afirma ser), encontraremos ali experiências interiores reais que podemos refazer
imaginativamente – por exemplo, recorrendo ao método Stanislavski, onde se obtém uma
identificação profunda com o personagem usando a “memória afectiva”. Desde logo,
percebemos que a dúvida universal é impossível de realizar, não porque o ego cogitans quer
afirmar a sua própria existência (algo que só acontece mais tarde) mas porque só podemos
duvidar de uma coisa afirmando simultaneamente muitas outras. Se duvidamos dos dados
dos sentidos é porque distinguimos estes dos pensamentos abstractos, e isto, por sua vez,
supõe uma epistemologia implícita que permite a formulação da pergunta. No diálogo
Ménon, Sócrates interroga um escravo e mostra a este que ele tem inúmeros conhecimentos
de geometria implícitos, e se analisarmos as nossas ideias correntes acabaremos por expor
uma série de pressupostos lógicos, epistemológicos e científicos que estão ali implícitos.
Dessa forma, seremos presas fáceis de ideias como a dos jogos de linguagem, de
Wittgenstein, que pretendia dissolver a modernidade numa pós-modernidade ainda mais
desoladora, onde reina a total arbitrariedade. Quando, no Tractactus, Wittgenstein se propõe
a demolir qualquer presunção de conhecimento objectivo, equivalendo todos os jogos de
linguagem, ele também tira toda a relevância às filosofias grega e cristã. Na realidade, ele
limita-se a seguir o procedimento geral da modernidade, que não rebate as filosofias
anteriores mediante um confronto honesto mas faz um deslocamento oportunístico do eixo
da discussão. Na tese 6.432 do Tractatus, Wittgenstein diz: “Deus não se manifesta no
mundo.” Isto nega formalmente a encarnação e impossibilita uma interpretação cristã da sua
filosofia. Mesmo se depois ele condena as suas próprias afirmações como contra-sensos, é
destes que ele retira a conclusão final do Tractatus (“daquilo que não se pode falar deve se
calar”), condenando a um silêncio universal tudo o que não sejam proposições sobre factos
atómicos.
Sócrates recusou seguir a regra comunal quando não prendeu um cidadão inocente,
como lhe tinham ordenado. Então, ele questionou-se sobre o que é a justiça. Quando o jovem
Platão encontrou Sócrates, ele viu neste último um modelo pronto e acabado de um novo tipo
de ser humano diferente dos intelectuais até aí: o filósofo. Este aparece ante o colapso da
velha ordem social baseada na ordem cósmica, segundo Eric Voegelin. O filósofo é o homem
capaz de buscar, sem ajuda das crenças vigente, um novo padrão de ordem no fundo da sua
alma, tomada como espelho das leis eternas, transcendentes à sociedade e ao cosmos inteiro.
Todo o esforço de Platão visou exteriorizar em linguagem teorética aquilo que tinha vista na
alma de Sócrates num primeiro momento. Mesmo quando se trata de algo descoberto por
Platão, ele coloca aquilo na boca de Sócrates porque, de alguma forma, já estava presente
neste.
O impacto de uma experiência inicial pode determinar o sentido inteiro de uma obra
filosófica. No caso de Descartes tratou-se dos sonhos em que é insinuada a figura do “génio
mau”, que ameaçava destruir na base toda a confiança no poder dos conhecimentos
humanos. Descartes travou desde esse momento uma batalha contra o demónio, que acabou
perdida, no final das contas. Existem evidências que ele era sinceramente cristão – embora,
com tudo apurado, podemos começar a questionar ser ele não era um verdadeiro pensador
demoníaco escondido atrás de uma afectação de cristianismo, ficando a dúvida se o que
motivou os seus esforços não foi uma tentativa de criar um certo impacto a longo prazo –,
mas o cartesianismo deu início a um processo de descristianização avassalador. É óbvio que
um homem sozinho não tem poder suficiente para lutar contra o demónio, muito menos
226
apelando ao raciocínio. Descartes acaba apelando a Deus, mas Ele é objecto de prova a partir
do ego e nunca aparece como elemento constitutivo deste, porque para Descartes o ego tem
uma autonomia cognitiva total. Quanto Santo Agostinho fez a sua descoberta do cogito,
imediatamente percebeu a sua inconsistência ontológica (“eu sei que sou mas não sei por que
sou”), e não será o ego que vai provar a existência de Deus, mas é Deus que prova a existência
do ego. Em Descartes não existe uma relação substantiva entre o ego e Deus, é apenas uma
relação meramente formal.
Descartes teve uma primeira vitória quando se fundamentou na certeza do ego que se
pensa a si mesmo, mas logo percebeu que este ego não tem contacto com o mundo exterior,
dado que está preso dentro de si e é precisamente o ego solipsista que teme o demónio. É
Deus quem aparece como mediador e oferece a certeza do mundo externo. Mas tão logo Deus
cumpre a sua função de prova, pode ser esquecido – até porque foi chamado
extemporaneamente, uma vez que tinha sido excluído à partida pela dúvida metódica –, pelo
que nunca é princípio fundante do ego. Assim, criou-se assim um abismo entre ego e Deus, o
que em termos históricos evoluiu para uma ruptura entre teologia e ciência.
Noutro campo, as obras de Charles Darwin foram usadas para justificar o genocídio,
mas a primeira tentação é dizer que ele não teve culpa disto, porém, se procurarmos um
pouco vemos que a semente já estava lá. Já Karl Marx falava do objectivo final de construir a
sociedade futura de paz e harmonia universal, mas esta é apenas uma finalidade alegada.
Percebemos quais eram realmente os seus objectivos reais pela sua descrição das etapas a
percorrer para chegar à sociedade justa, e a primeira etapa é a conquista do poder. Então,
este é o objectivo imediato e não haverá mais nenhum se este não estiver cumprido. Todos os
planos messiânicos conseguiram, na melhor das hipóteses, não atingir os objectivos
derradeiros mas os objectivos primeiros, e na verdade é nestes que o verdadeiro sentido se
encontra.
enriquecer a experiência originária ou, pelo contrário, pode camuflá-la, no limite até a um
ponto que a torna quase irreconhecível.
A experiência de base do filósofo tanto pode ser o sinal de uma descoberta formidável
como apenas uma prova de um complexo neurótico, de uma ilusão auto-engrandecedora, de
uma incapacidade de viver (o caso de Maquiavel). A partir do conhecimento desta
experiência de base podemos julgar o valor educativo de uma obra filosófica, não pela sua
importância histórica, porque a filosofia não deve satisfações à maioria. Na obra de um
filósofo devemos distinguir aquilo que representa a sua crença sincera daquilo que é
inventado como reforço de validação, artifício, suposição, adorno lógico ou mesmo mero
divertimento intelectual. Por exemplo, em Platão o mito de Atlântida não tem o mesmo peso
que as leis eternas. Sem esta distinção não entendemos nada da sua filosofia. O critério
decisivo é marcado por aquilo em relação ao qual o filósofo encontrava-se existencialmente
comprometido, tomando decisões vitais em conformidade, claramente distinto das
afirmações não comprometidas e apenas avançadas para fins de exposição, de participação
no debate académico ou para tentar brilhar literariamente. Wittgenstein, no Tractatus,
apresenta certas proposições com um carácter diferente daquelas que usa para fazer a sua
construção intelectual. Qual ele diz “na morte o mundo não muda mas cessa”, ou “a morte
não é um acontecimento da vida: ninguém vivencia a sua própria morte”, ou “o sentimento
do mundo como um todo limitado é o sentimento místico”, ele exprimia impressões sinceras
advindas dos seus exercícios místicos-budistas. Mas os académicos e entusiastas geralmente
apenas prestam atenção à parte mais rigorosa e racionalmente fundamentada, ignorando que
se trata apenas de uma derivação destas impressões. E, assim, a filosofia transforma-se numa
leviandade sofisticada e num sistema de defesas elegantes contras as realidades da vida. Não
é de admirar que Franz Rosenzweig tenha dito que a filosofia que aprendeu na universidade
de nada serviu para a situação nas trincheiras que ele enfrentou na I Guerra Mundial.
Hegel já advertia de que uma ideia filosófica só tem sentido quando encaixada no
sistema, ou seja, na ordem inteira das razões que a ela conduzem. Mas podemos acrescentar
que essas razões não têm que estar explícitas no texto. Se isolamos o sistema da mente
humana que o criou, o sistema torna-se como que uma teoria científica moderna, cujo autor
pode ficar anónimo e tudo pode ser verificado por meios experimentais. Ou, então, o sistema
passa a ser uma obra literária e pode ser tomado como símbolo. Nos dois casos perde-se o
sentido específico da filosofia, que é o de um esforço de coerenciação da experiência por uma
consciência individual. Mil análises estruturais de texto não dão uma compreensão das
filosofias (elementos chave e valor desta) que se obtém revivenciando imaginativamente as
suas experiências fundantes. A análise estrutural é muito valiosa para preparar a
investigação ou para confirmar aquilo que se descobriu em relação à experiência fundante,
que podemos reviver e que dá o ponto de vista a adoptar. α72
[Aula 73]
recordou: “Vós sois deuses”. Apesar de todos sermos almas imortais, não quer dizer que
tenhamos o mesmo nível qualitativo e seguramente que estamos abaixo dos santos. Então, a
recusa em admirar degrada o nosso senso de hierarquia, que é algo que está na base da alta
cultura. Disse Nicolás Gómez Dávila: “Aqueles cuja gratidão pelo benefício recebido se
converte em devoção à pessoa que o outorga em vez de degenerar no ódio costumeiro são
aristocratas, mesmo que caminhem em farrapos”.
Só é possível fazer algo pela alta cultura se não estivermos infectados pela
mentalidade comunal [231]. Para isso, é necessária a honestidade estrita, a idoneidade e a
rectidão. Não basta ter outras ideias políticas para sermos melhores: esta é a forma de pensar
dos comunistas, que apenas perpetua o estado de iniquidade. A iniquidade não se confunde
com o pecado, que é apenas fazer algo errado. Iniquidade é o pecado tão banalizado que se
torna não apenas num direito mas também numa obrigação. α73
Por exemplo, nenhuma pessoa mentalmente sã alguma vez negou sinceramente ser
ela mesma. Mas esta confiança inabalável da permanência do nosso ser não é fundamentada
nem nas sensações e nem na actividade cerebral. Por baixo da actividade racional e
perceptiva existe um conhecimento mais profundo e permanente que nos dá a verdadeira
realidade das coisas e que usa as sensações e a razão essencialmente como instrumentos de
comunicação e não tanto de conhecimento. Este é o senso de imortalidade, que é o princípio
da filosofia, a partir do qual Sócrates, Platão e Aristóteles questionavam tudo o resto. A
consciência de imortalidade identifica-se com a consciência de individualidade e apenas
pode ser conhecida por si mesma. No fundo, é algo que sempre soubemos mas o pensamento
pode nos levar para o outro lado.
229
Outro exemplo é a percepção do facto concreto, que toda a gente sabe que pode ser
imitado de alguma forma mas que é irrepetível na sua totalidade. Acontece num determinado
momento do tempo e do espaço e compõe-se da convergência de um número quase ilimitado
de processos causais, uns essenciais e outros acidentais. Podemos saber alguns factos
concretos com certeza absoluta, mas não temos meios de prova-los porque eles são a própria
base de prova. Se não tivéssemos capacidade de perceber factos concretos, apenas
poderíamos fornecer provas hipotéticas. Na faculdade de filosofia, os professores tentam que
os alunos fiquem treinados apenas na discussão de coisas hipotéticas, e assim estes vão
perdendo o senso de imortalidade e da realidade concreta, ou seja, passam a confiar mais na
própria capacidade falante do que naquilo que vêm e podem ter certeza absoluta.
[Aula 74]
236. As influências de Olavo de Carvalho
230
1. Música. Audições guiadas pela Nova História da Música de Otto Maria Carpeaux e pela
ajuda de amigos.
2. Leituras literárias: Machado de Assis inteiro, Eça de Queiroz, Camões, Cruz e Souza,
Fernando Pessoa, Dante, Goethe, Shakespeare, François Mauriac, Hemingway, Kafka,
Pirandello, Bernanos, Camus, Sartre (Les Chemins de la Liberté), Dürrenmatt, Henry Miller.
3. Crítica e História Literária. Otto Maria Carpeaux, Franklin de Oliveira, Augusto Meyer,
Álvaro Lins, Adolfo Casais Monteiro, Fidelino de Figueiredo, Sainte-Beuve, Kenneth Burke,
Northrop Frye, F. R. Leavis, Georg Lukács, Lucien Goldmann, Ernst-Robert Curtius.
4. How to Read a Book, de Mortimer J. Adler; The Classical Tradition, The Art of Teaching e
Man’s Unconquerable Mind, de Gilbert Highet.
6. Marxismo: Georg Lukács, Lucien Goldmann, Manuais da Academia Soviética, Caio Prado
Jr., Pierre Fougeyrollas, Henri Lefebvre, Adam Schaff, Manifesto Comunista, Trechos de O
Capital, Trotsky (História da Revolução Russa e biografia por Isaac Deutscher), periódicos e
circulares do Partido Comunista, Leo Huberman & Paul Szweezy (Monthly Review), Les
Temps Modernes, Esprit (católicos de esquerda), Revista Civilização Brasileira, New Left e
Escola de Frankfurt (Marcuse, Horkheimer, Adorno; Benjamin só li muito mais tarde).
7. Ciências sociais: Max Weber, Durkheim, Marx, Sorokin, Veblen, antropologia (Ruth
Benedict, Malinowski, Frazer).
8. Teatro. Curso com Eugênio Kusnet, leituras de Shakespeare, Górki, Tchécov, Brecht,
Ibsen, Peter Weiss, Jean Genet, Camus, Pirandello, Dürrenmatt.
10. História e teoria das artes. Rudolf Arnheim, Erwin Panofsky, Wilhelm Worringer,
Heinrich Wölfflin.
12. Conferência de Julián Marías em São Paulo. Imersão no pensamento hispânico: José
Ortega y Gasset, Julián Marías, Xavier Zubiri, Manuel Garcia Morente, José Gaos, José
Ferrater Mora, Eugenio d’Ors. Redação do ensaio sobre Ortega y Gasset.
13. Contracultura, sex lib, feminismo, Peter Brown, Luís Carlos Maciel, Aldous Huxley (As
Portas da Percepção e O Céu e o Inferno).
14. New Age. Esalem, O Despertar dos Mágicos, Gurdjieff, Idries Shah, Allan Watts.
17. Encontro com Swami Dayananda Sarasvati. Leitura dos Vedas e do Bahgavad-Gita.
Shankaracharya.
19. Ciências físicas. Einstein & Infeld, Arthur March, Fred Hoyle, George Gamow, Werner
Heisenberg, Jean Piaget (Biologie et Connaissance), Raymond Ruyer (A Gnose de Princeton,
La Genèse des Formes Vivantes) etc.
20. Foi com Éric Weil e Benedetto Croce que aprendi a ler livros de filosofia.
23. Meio ano de Descartes, com a ajuda de Martial Guéroult, Ferdinand Alquié e Lívio
Teixeira.
27. René Guénon, Julius Evola, Seyyed Hossein Nasr, Titus Burckhardt, Frithjof Schuon,
Jean Borella, Henry Montaigu, Études Traditionnelles, Studies in Comparative Religion.
29. Estudos de língua árabe com José Khoury. Islamismo. Corão e Hadith, Seyyed Hossein
Nasr, Louis Massignon, Louis Gardet, Mohhammed Arkhoun. Clássicos: Ibn ‘Arabi,
Shihaboddin Sohrawardi, Avicena. Redação do livro sobre a vida do Profeta Mohammed.
30. Encontro com Martin Lings, Frithjof Schuon, Seyyed Hossein Nasr, Rama
P.Coomaraswamy, Joseph Epes Brown, Huston Smith, Whitall Perry.
31. Trivium e Quadrivium, Sto. Tomás de Aquino, Duns Scot, novamente Platão. Um ano de
Aristóteles, com centenas de estudos e comentários.
33. Estudos de filosofia brasileira e portuguesa: Vicente Ferreira da Silva, Miguel Reale,
Leonardo Coimbra, Pinharanda Gomes, Álvaro Ribeiro.
38. Retorno à história nacional, motivada pela redação do livro O Exército na História do
Brasil.
39. Centenas de livros de história do comunismo, agora contada pelos adversários e vítimas.
À medida que estas influências eram absorvidas, era muito fácil ver o contraste entre
diferentes perspectivas. A ideia não era ficar apenas pelas leituras mas absorver a atmosfera
das várias áreas culturais, conviver com as pessoas, deixar que a imaginação e os sentimentos
fossem impregnados e tentar ver o mundo como aquelas pessoas o viam. A técnica teatral de
Stanislavski foi útil para transitar entre tantas influências contraditórias e heterogéneas.
Nesta técnica procura-se uma identificação profunda do actor com o personagem,
procurando na memória afectiva situações análogas àquelas apresentadas na peça para
também ter uma analogia da emoção do personagem, repercutindo-se em expressões, gestos
e entonações de voz. Então, Olavo de Carvalho absorveu cada influência como se fossem
personagem de teatro, sem julga-las ou exercer actividade crítica, antes tentando se
identificar profundamente com elas mas ao mesmo tempo tendo a noção de que se tratava de
um “sonho”, um vivenciar a realidade única desde muitos pontos de vista e sem ter uma
identificação absoluta com algum deles. Não se tratava apenas de absorver ideias, teorias ou
doutrinas mas tentar captar a experiência profunda por trás delas (actos de imaginação,
sentimentos, julgamentos morais), e que os filósofos podem depois colocar na linguagem
mais abstracta e técnica possível.
Neste processo, é inevitável abordarmos autores com quem nos identificamos muito
pouco, mas não vamos temer nos contaminarmos e vamos tentar ver as coisas da mesma
forma que eles. Lentamente vai se articulando um conflito de ideias, doutrinas e correntes
culturais como se fosse uma imensa peça de teatro onde representamos todos os personagens
em simultâneo. Isto cria um estado de relativa confusão, que não tem de assustar se
mantivermos alguns pólos de referência. No caso de Olavo de Carvalho, ele tinha a liturgia da
missa, que dava uma visão simbólica de todo o universo desde o início até ao fim, e a própria
experiência da realidade, que não era esgotada por nenhuma das perspectivas encarnadas.
α74
Josiah Royce, o maior filósofo americano, dizia que a incompletude é o carácter mais
notável tanto da percepção humana como do pensamento. Percebemos sempre as coisas de
forma parcial, apenas por um lado e por um certo aspecto, mas sabemos que a coisa inteira
está para além daquilo que dela vemos. Também os conceitos são entidades potenciais que
têm a capacidade de serem representados por entidades mas que não se confundem com elas.
O conceito de uma espécie é um mero esquema, é uma forma que abrange todos os membros
de uma espécie naquilo que eles têm em comum, não no que têm de individual. Contudo, a
espécie não existiria se não houvesse nenhum ente individual a representá-la, ou seja, os
conceitos têm a sua realidade garantida por algo que não está neles (a individualidade
concreta).
Josiah Royce conclui que, se tudo o que existe, existe sob a forma de individualidade
(que é aquilo que nem o intelecto e nem as sensações percebem), é porque essa
individualidade é de natureza teleológica, isto é, tem uma finalidade, está se cumprindo, e é
isso que faz dela uma individualidade real. A percepção dá-se num certo momento, não sabe
o que acontecerá amanhã, pelo que não tem um carácter teleológico. Tampouco o conceito o
tem, dado ser uma definição abstracta e estática das propriedades comuns às várias
entidades do mesmo género. Apreendemos a individualidade porque temos o dom da
vontade e estamos caminhando em direcção a alguma meta (que não tem que se completar
em vida). Ou seja, a percepção de incompletude junta-se à percepção da meta que realiza a
completude.
Tomemos o exemplo de uma mala, que pode conter várias coisas, foi feita para ser
carregada e um dia, quando se estragar, é jogada fora porque já não cumpre a sua finalidade.
Esta finalidade está embutida nela e é o que dá o senso da sua continuidade histórica.
Também nós temos esta continuidade assim como um nível de finalidade, por isso
apreendemos estes aspectos, mas não com as sensações ou com a razão. Apreendemos
porque somos criaturas teleológicas, ou seja, somos seres viventes com um passado e
dirigimo-nos a um futuro visando um estado de completação.
Se não podemos captar a individualidade de uma simples folha de uma árvore nem
pelos sentidos e nem pela razão, como sabemos que se trata daquela folha e não de outra? De
alguma forma apreendemos a sua individualidade. A sua presença física e o conceito que
temos a seu respeito simbolizam a existência real da folha no tempo e no espaço, mas a sua
existência real não nos é acessível, dado que não a conhecemos na totalidade. Contudo, de
alguma forma conhecemos a folha na totalidade porque apreendemos a sua individualidade,
que tudo engloba, caso contrário nada teríamos apreendido. Então, é um mistério a forma
com apreendemos a individualidade. Em todo o universo que nos é acessível, não existe ente
que não seja símbolo da sua história inteira, que contempla muitos outros objectos. Isto
reflecte a ideia da mónada de Leibniz: cada singularidade é uma mónada que contém na sua
estrutura tudo aquilo que a aproxima e separa de todas as outras individualidades. Assim,
uma folha tem em si todas as diferenças que a separam de todas as outras folhas, assim como
aquilo que a tornam idêntica às outras dentro da espécie a que pertence. Desta forma, cada
234
ente tem dentro de si um sistema de semelhanças e diferenças, pelo que cada ente simboliza,
ao seu modo, o universo inteiro.
Assim, estamos realmente dentro de um imenso campo discursivo, mas não se trata
de discurso humano, que realmente só é possível porque existe em volta o discurso da
própria Natureza. Vimos antes [112] um trecho de Bernanos, do livro L’Imposture, em que ele
fala da degradação do ser humano que chegou ao ponto dos poetas já não captarem mais o
discurso da Natureza mas passaram a usar os entes desta como símbolos postiços dos
próprios sentimentos ocasionais. Pior que isso é fazer do falatório humano a única realidade,
impondo o império da mediação discursiva. α74
sofrimento, mas se não o fizermos não iremos saber o que eles estão a tramar e, assim,
seremos presas fáceis não apenas das armaduras verbais que eles criam mas também do
esquema de poder que eles impuserem, e nem iremos perceber de onde aquilo surgiu. Isto é
ignorar o conselho de Sun Tzu, da necessidade imperiosa de conhecer o inimigo.
Veremos um exemplo desta literatura ignorada pelos que estão de fora, analisando
alguns excertos do livro Hegemonia e Estratégia Socialista, publicado em 1985 e escrito por
Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, professores de teoria política na Inglaterra mas que, na
verdade, actuam como estrategistas da esquerda. Eles usam uma linguagem abstracta de uma
presunção formidável, que esconde não apenas a banalidade do que dizem mas também a
monstruosidade das suas propostas, servindo isto não apenas para enganar os outros mas
também a si mesmos. Começam por discutir o problema da hegemonia:
«Como tem de ser a relação entre entidades para que uma relação hegemónica
torne-se possível? Esta condição tem de ser aquela em que uma força social
particular assume a representação de uma totalidade que é radicalmente
incomensurável com ela (...). Este é o ponto em que a noção do social concebida
como um espaço discursivo torna-se de importância primordial. (...) As três maiores
correntes intelectuais do século XX — a filosofia analítica, a fenomenologia e o
estruturalismo —, começaram com uma ilusão da imediatez, de um acesso não-
discursivamente mediado às coisas em si mesmas (...) Nas três, no entanto, essa
ilusão da imediatez dissolveu-se e teve de ser substituída por uma forma ou outra de
mediação discursiva. Isto foi o que aconteceu na filosofia analítica com o trabalho de
Wittgenstein, na fenomenologia com a analítica existencial de Heidegger, e no
estruturalismo com a crítica pós-estruturalista do signo. É também, na nossa opinião,
o que aconteceu na epistemologia com o verificacionismo transicional — Popper,
Kuhn e Feyerabend — e no marxismo com o trabalho de Gramsci».
Traduzindo isto para linguagem clara, eles estão a dizer que a hegemonia é o controlo
mental que uma facção exerce sobre o conjunto da sociedade. Esta facção não precisa de ter o
controlo político, basta que consiga pré-moldar o debate e as reacções de todos, incluindo dos
adversários, e assim consegue encaminhar o conjunto na direcção que ela pretende. Um
grupo de poucos milhares de pessoas fala e age como se representasse os interesses uma
totalidade “absolutamente incomensurável com ela”, o que obviamente requer um certo
treino do fingimento. Mas isto não seria possível se o espaço social fosse concebido na óptica
de Marx, como um conjunto de esforços físicos realizados para a apropriação da Natureza,
isto é, como um conjunto de esforços humanos reais onde bens são conquistados e
distribuídos. Então, a sociedade passa a ser vista apenas como um espaço discursivo, não
interessando mais o processo de produção e a relação física entre o homem e a Natureza, em
suma, deixa de ser relevante aquilo que as pessoas realmente fazem.
Quando eles dizem que, como base de criação de uma nova noção de hegemonia, “um
elemento particular [um certo grupo] adquiriu uma significação estruturante universal, sem
que nada nesse grupo ou nesse elemento pré-determine essa função”, simplesmente estão a
dizer que a afirmação do grupo como hegemónico é arbitrária. Esta não era a visão de Marx,
para quem o proletariado só podia ter a hegemonia porque tem nas mãos a força de
produção, enquanto a burguesia tem com a Natureza apenas uma relação simbólica, jurídica
ou administrativa. Mas para Ernesto Laclau e Chantal Mouffe já não é assim e o grupo ou
elemento que se torne hegemónico não tem de ter nada que o pré-determine a tal porque o
processo já não se dá na esfera material mas no plano discursivo.
porque decreta a sua própria hegemonia. Algo assim já acontecia como o Partido Comunista
soviético no tempo de Lenine, que dizia que representava os interesses do proletariado, que
realmente tinha interesses mas não tão reais quanto Lenine imaginava.
O globalismo é imposto da mesma maneira. Não existe um interesse por parte das
nações de serem dissolvidas e serem governadas desde fora por estrangeiros, que falam outra
língua e têm outra cultura. Mas quando se cria um certo número de entidades, organizações e
empresas vinculadas ao “interesse global”, estas começam a criar o interesse que
retroactivamente passa a ser representado pelo detentor da hegemonia discursiva. Quando
uma série de cientistas, empresas e organizações vincula-se ao mito do Aquecimento Global,
toda uma rede de interesses seria destruída se a farsa fosse assumida, pelo que resta apenas a
fuga em frente e a defesa de um interesse que inicialmente não existia. A política, como uma
fabricação retroactiva de interesses inexistentes, torna-se num hospício, em que tudo passa a
ser profecia auto-realizável.
A Estratégia Cloward e Piven foi criada na mesma altura que esta ideia de hegemonia
que estamos a ver e tem algumas semelhanças com ela. Eles viram que a previdência social
tinha uma certa lista de deveres mas que relativamente poucas pessoas os reclamavam os
direitos correspondentes, porque na verdade não precisavam deles, especialmente nos EUA,
onde havia uma tradição de autonomia individual. Então, eles perceberam que bastava que
50% das pessoas que tinham estes direitos (que iam muito além da mera sobrevivência e da
assistência médica) se inscrevessem na previdência social e o resultado seria que não iria
haver dinheiro suficiente e seria criada uma crise. Passadas algumas décadas, as pessoas que
não queriam esses direito passaram a querê-los, criando-se assim retroactivamente uma rede
de interesses que, inicialmente, um certo grupo dizia representar mas tratava-se apenas de
um bando de agitadores. O mundo está cheio de pessoas que se oferecem para resolver
problemas inexistentes, tentando representar categorias sociais inexistentes mas que
retroactivamente criam, pelo discurso, os interesses que as mantém no poder.
existem mais pontos em comum entre as duas versões, mas ainda existem dois, que dizem
respeito à unidade da lógica interna. Primeiro, temos as inversões revolucionárias nos dois
casos. Em segundo lugar, na sua História, o Partido Comunista e outras organizações
revolucionárias já perseguiam o conceito de hegemonia que aqui vemos, apenas não de forma
explícita e não tão bem organizada: ser uma criação retroactiva de um interesse que os
sustenta. Foi precisamente quando o movimento revolucionário parecia estar se
desmantelando, em 1985, que Laclau e Mouffe tornaram explícita esta ideia da hegemonia,
inoculando em muitos a nova estratégia correspondente e dando um novo alento ao
movimento revolucionário. α74
Acontece que se as pessoas que entram num novo campo cultural perdem de vista o
anterior, então, não há um acréscimo mas uma troca, e a alta cultura anterior torna-se
incompreensível, o que quer dizer que há um esquecimento sistemático das origens da
própria situação em que as pessoas vivem.
Dizem Revière e Danchin que para os jovens que notam a sobrevivência de uma
cultura passada, numa linguagem oficial, mas que lhes parece desfasada daquilo a que “tende
a se transformar no novo ambiente”, o que há a fazer é “trabalhar para substituir uma
problemática morta, igual e inadequada à nova realidade por uma problemática cujo critério
239
de validade torna-se a sua adequação ao real”. Mas percebemos que a adequação ao real é
apenas uma adequação à nova situação que nós criamos, e a antiga parece morta porque já
estamos vivendo noutra. Isto é a hegemonia da mediação discursiva: criamos um novo
campo discursivo que se transforma na atmosfera onde vivemos realmente e, então,
concluímos que só têm valor os produtos culturais adequados à nova situação, precisamente
os que permitem expressar que vivemos nesta mesma situação.
Mais do que esquecimento, isto é neurose. Mas diz Thomas Kuhn que – e aplaude em
As Estruturas das Revoluções Científicas – a ciência “progride” desta maneira. Obviamente
que não tem sentido considerar como progresso um esquecimento de uma antiga situação e a
criação de uma nova por meio do discurso, onde as pessoas são forçadas a entrar e criam,
então, novos produtos que a expressam. Mas por que não experimentar olhar o presente com
os olhos do passado? Por exemplo, muitos intérpretes actuais não entendem Platão, mas este
criou conceitos e esquemas que permitem explicar o que estes intérpretes estão fazendo.
Saussure diz que o símbolo é arbitrário, mas Platão já tinha chegado a uma solução muito
mais satisfatória, no Crátilo: alguns signos são arbitrários e outros não. Ao estudar o
simbolismo de várias culturas, constatamos que não existe uma total arbitrariedade, por
exemplo, o sol é normalmente significador da inteligência, do conhecimento e da consciência
(na antiguidade, ainda com um reduzido domínio do fogo, a ausência de sol significava não
ver). Ter consciência que se vê e ter consciência da presença da luz solar são duas coisas que
ocorrem em simultâneo, por isso, o sol é um signo natural. α74
[Aula 75]
Primeiro, temos de conhecer o sistema do filósofo, ou seja, o conjunto das suas ideias
tal como se articulam logicamente e cronologicamente. Marcel Guéroult deu um modelo de
como isso se faz no livro Descartes segundo a Ordem das Razões. Se um indivíduo é um
filósofo, ele não terá apenas um conjunto de ideias soltas mas estará em busca de uma
unidade, de uma coerência, e a primeira providência é tentar captar isto. Para isso, temos que
ler tudo o que o filósofo escreveu, mesmo coisas inéditas e escritos que parecem não ter
muita importância. O ponto de vista cronológico é útil para perceber como se formaram as
ideias, onde apareceram as intuições iniciais que depois o filósofo pode ter passado o resto da
vida tentando expressar. Estes são pontos de articulação difíceis de apreender se não temos
uma noção adequada da cronologia do filósofo. Mas temos de ter atenção de que a ordem de
publicação pode não corresponder à ordem de produção, pelo que por vezes apenas podemos
captar o problema da ordem cronológica.
Quando é feito este primeiro trabalho, que já é bastante moroso, devem surgir várias
questões. A primeira pergunta é saber com quem o filósofo estava dialogando. Começamos
240
assim a sair do estudo interno da filosofia do sujeito e passamos para um estudo da história
das ideias ou de história da filosofia, como vimos nas aulas anteriores acompanhando Dardo
Scavino (La Filosofia Actual). Há uma atmosfera imediata que rodeia o filósofo, que lhe
coloca estímulos e ele responde. Sabemos que Aristóteles “debatia” com Platão, embora até
hoje não há certeza se entre os dois há uma ruptura completa ou uma harmonia de fundo.
Para além deste ambiente imediato, temos de sondar também o ambiente mediato do
filósofo, isto é, o meio social e cultural de onde o filósofo recebeu a linguagem, os exemplos
de que se usa e toda uma série de elementos – símbolos, valores, hábitos, etc. – que formam a
sua mentalidade passivamente (coisas absorvidas sobre as quais, em geral, não procedeu a
um exame crítico). Aquilo que absorvemos torna-se num componente nosso, ainda que não o
tenhamos escolhido. Devemos distinguir no filósofo o seu pensamento destes elementos,
sabendo que há uma parte em que as duas coisas estão misturadas de tal forma que não dá
mais para saber o que era pessoal no indivíduo e o que era impregnação do meio. Se vamos
estudar Platão ou Aristóteles, vamos ter que saber um mínimo de grego clássico – alfabeto e
algo da gramática – porque só assim conseguimos esclarecer satisfatoriamente alguns
pontos.
Numa quarta fase, vamos ainda mais além e tentamos perceber a influência no
filósofo de um ambiente ainda mais remoto, que já não são influências directamente
actuantes no seu meio mas que é uma certa incorporação numa linhagem histórica, recebida
por tradição.
Resta ainda articular o pensamento do filósofo com tudo o que veio depois, ou seja,
saber como ele foi lido, ter uma ideia da história das interpretações a seu respeito. No caso de
Aristóteles, existe uma tradição de estudos a seu respeito com quase 2400 anos, que é
inabarcável e naturalmente nos obriga a fazer alguma selecção, nunca podendo deixar de fora
os comentadores clássicos, a começar por Porfírio e Alexandre de Afrodísias, e depois é
necessário ter uma ideia da continuidade bibliográfica. Obviamente que se vai encontrar
muita coisa repetida, assim como comentadores defrontando-se com problemas que já foram
resolvidos há muito tempo.
estudar alguma coisa de linguística e de lógica matemática. Pode acontecer que o estudo de
algumas disciplinas, onde embarcamos para conhecer um filósofo ou uma escola, se revele
muito estéril, mas ainda assim é necessário para compreender o processo histórico real. α75
Uma ideologia revolucionária é uma promessa de futuro, mas não é possível acreditar
numa religião futura. A religião baseia-se em elementos passados, numa revelação. O
socialismo é uma hipótese futura. Neste aspecto, são duas coisas contraditórias. O
comprometimento pessoal vai ser também distinto. Na religião há a continuação de uma
História passada, o sujeito constitui-se como fiel inserindo-se na tradição. No movimento
revolucionário não há a fidelidade a uma tradição e o indivíduo tem que estar predisposto a
criar uma coisa totalmente nova. Na religião a fé tem de ser profunda e genuína, mas ter fé na
ideologia é algo até difícil de definir. Marx, Lenine e Estaline desprezavam o elemento “fé”,
242
sendo para eles preferível um indivíduo oportunista que fosse útil do que um militante
sincero mas inepto.
[Aula 76]
«Do mesmo modo que os atores prudentes, para que ninguém veja a vergonha que
sobe à sua face, se vestem do seu papel, do mesmo modo, no momento em que vou
subir à cena do mundo da qual até agora não fui senão espectador, eu caminho
mascarado».
Descartes fala da sua aparição pública através da publicação das suas obras (“subir à
cena do mundo”), o que ocorreu já na sua maturidade, tendo levado antes uma vida
relativamente obscura. A decisão de Descartes aparecer mascarado nesta altura costuma ser
atribuída a um temor em relação à Inquisição. Contudo, ele sempre disse que o seu trabalho
visava fazer uma apologia da religião cristã, e na Holanda, onde desempenhou a parte
decisiva do seu trabalho, estava muito bem integrado no meio protestante (apesar de sempre
se dizer católico), chegando mesmo a fazer amizade com a rainha Catarina da Suécia, pelo
que nada tinha a temer do Santo Ofício. A camuflagem não se devia a algum temor mas ao
243
facto da sua obra ter uma finalidade distinta daquela que tinha sido declarada. As pessoas
acreditam espontaneamente que as obras filosóficas estão colocadas predominantemente na
clave denominativa, que são conjuntos de sentenças sobre a realidade das coisas, mas por
baixo disto pode haver uma tentativa de desencadear um certo efeito, assim, podemos
constatar que é a função apelativa que predomina nalguns casos. Por vezes, a acção pode ser
tão subtil que os efeitos só se tornem visíveis ao fim de vários séculos, e só aí compreendemos
do espírito que orientava os esforços do filósofo.
Mas isto não significa que devemos logo partir para uma busca da função apelativa no
texto. Vamos fazer isso quando a leitura na camada denominativa apresenta muitas
contradições e impossibilidades que não podem ser explicadas por inépcia do filósofo. Aí,
podemos começar a suspeitar que ele pretende provocar efeitos de outra ordem, política,
cultural, religiosa, etc. Já vimos anteriormente que os sonhos de Descartes dão uma pista da
origem da ideia do cogito [232], o que também ajuda a explicar a sua máscara. Diz Étienne
Couvert, na continuação:
Então, Descartes teve alguma iniciação e teve uma espécie de iluminação gnóstica. No
dia 10 de Novembro de 1619 sonhou que estava a caminho da capela do colégio La Fleche
(seminário jesuíta onda havia estudado), mas, estranhamente, era um espírito mau que o
encaminhava para a igreja, quando um vento impetuoso o desviou. Esse vento era o “espírito
da verdade” que descia sobre ele para possuí-lo. Surgiu no ar o verso: “quod vitae sectabor
iter?” (que caminho de vida devo seguir?) Depois as palavras “est et non” (“sim e não”), que
Descartes dá uma interpretação pitagórica ou quase parmenídica (existe o caminho da
verdade e o caminho da falsidade). Então, ele sai do caminho e diz que tem “um brusco e
súbito deslumbramento”. Percebemos que aqui estavam condensadas as intuições filosóficas
que iria depois desenvolver.
A primeira estranheza neste relato é que Descartes diz que um espírito mau
encaminhava-o para a igreja, e que era o espírito da verdade, presentificado pelo vento, que o
desviava dela. Isto não faz sentido em alguém que sempre se disse católico e que trabalhou
em prol da fé cristã. O que o vento fez foi desviar a atenção de Descartes em relação àquilo
que ele pretendia fazer, e é também uma acção desde género – desvio de atenção – que ele
fará com os seus leitores. O que aconteceu nesta época não foi uma contestação da tradição
aristotélico-escolástica mas um desvio e um passar a dar atenção a outras coisas. Apareceu
um novo paradigma que obrigava a colocar questões adequadas a ele.
Sob uma aparência de ortodoxia, Descartes lançou ideias que iriam mudar a noção
das relações entre Deus e o mundo criado, cujas consequências se propagam até hoje. Ele
disse explicitamente: “Que me dêem a extensão e o movimento e refarei o mundo”. A
extensão e o movimento são as bases com que Deus fez o mundo, mas se tivermos controlo
destes elementos poderíamos recriar o mundo. Mas ele vai mais longe:
Assim, a diferença entre Deus e o homem fica reduzida ao mínimo, apenas a uma
questão de força física. Mas Deus não criou apenas o mundo físico, criou também todo o
mundo espiritual e Descartes não podia criar um anjo, por exemplo. Para São Tomás de
Aquino, o mundo material só apareceu depois de toda uma estruturação das hierarquias
angélicas, que criaram o campo da possibilidade dentro do qual seria possível a criação do
mundo material. Descartes salta sobre isto e cria um dualismo: de um lado um Deus
puramente espiritual, que tem um misterioso controlo sobre o mundo material, do outro lado
o espírito humano com poderes da mesma ordem. Aparece também aqui uma separação
absoluta entre espírito e matéria, sem mediação, sendo a única função de Deus a criação do
mundo material. Mas este mundo, uma vez constituído, tem as suas próprias leis que
funcionam indefinidamente por si mesmas, pelo que Descartes acaba por eliminar a
Providência.
Diz Étienne Couvert que, para Descartes, Deus ultrapassa o homem apenas pela
criação da matéria, então, o espírito é totalmente reduzido à vontade e esta reduzida “à
indiferença do julgamento em relação aos bens particulares finitos e limitados”. Assim, não
existem mais bens objectivos que determinem a vontade e estamos livres para escolher o que
quisermos. Na concepção tradicional existe uma escala objectiva de bens que não são
determinados pela vontade, e esta não é totalmente livre porque é limitada pelo intelecto, que
percebe na constituição dos entes o que eles têm de bem e de mal. É fácil perceber que as
consequências das nossas escolhas não são determinadas pela nossa vontade. A graduação do
bem objectivo faz parte da criação, mas em Descartes isso desparece e resta apenas, por um
lado, um mundo composto de extensão e movimento e, por outro, uma vontade
absolutamente livre e não determinada por nenhuma escala objectiva de bem e de mal,
porque para ele o mundo não tem um significado moral alheio ao homem. Descartes é neste
aspecto um percursor de Nietzsche, com uma moral de tipo voluntarista, mais baseada na
vontade do que na razão. Prossegue Couvert:
«Descartes não compreendeu aqui a analogia do ser, que é uma similitude e não uma
igualdade nas relações, ao passo que os termos relacionados são radicalmente
heterogéneos».
Realmente existe uma analogia entre Deus e o homem, porque este último também
“cria”, embora o mais certo é dizer que fabrica algo, ele opera sobre elementos recebidos do
mundo externo. O homem está um patamar acima dos animais, que constroem coisas sempre
iguais, não acrescentam realmente algo à Natureza, ao passo que o ser humano procura
sempre novas maneiras de produzir algo que não existe no mundo natural. Mas isto está
muito aquém do que Deus faz: Ele cria a partir do nada. Diz Couvert que a diferença entre
criar e fabricar não é de grau mas de natureza. Acontece que:
«No entanto, a analogia incide sobre a relação que existe entre o criador e sua
criação, por um lado, e entre o obreiro e sua obra, por outro lado».
Embora Descartes até acredite num universo que é criação permanente de Deus, ele já
introduz um elemento que permite o advento da ideia do Deus-relojoeiro, de um universo
que funciona autonomamente segundo um mecanismo newtoniano, como será exposto por
Voltaire. Então:
245
«A partil dali, não é que a luz esclareça a coisa para que ela se torne visível, mas ela
esclarece o interior do nosso espírito, para que ele apreenda em si mesmo as ideias e
as formas das coisas».
Assinala Étienne Couvert que a clareza e a distinção não são qualidades primárias que
possamos apreender desde o início, são antes o resultado de uma elaboração, de uma análise
crítica. Antes disso já temos milhares de percepções nos cercando. A experiência do ser não é
clara e nem distinta, é uma presença multitudinária e muitas vezes confusa, e o mesmo se
aplica a muitos dos nossos sentimentos, frequentemente difíceis de definir devido à mescla
de coisas que envolvem. Sem um aprendizado, não é possível fazer um exame crítico
retroactivo das ideias, e esse aprendizado depende da cultura adquirida e até do estudo da
filosofia, pelo que não estamos claramente em presença de um princípio fundante mas de
uma elaboração altamente complexa.
Espinoza vai levar isto às últimas consequências, dizendo que nada se aprende com a
experiência e que apenas através da pura análise dos conceitos se pode chegar à verdade,
246
O habitus são virtudes e capacidades desenvolvidas pelo exercício, pela atenção, pelo
esforço intelectual, mas Descartes parece acreditar que a capacidade da razão está dada
pronta de uma vez para sempre, desprezando a contribuição de muitas gerações que
precedem sempre qualquer pessoa. Ele percebe que certas relações matemáticas e
geométricas são independentes da mente que as concebe, mas para as ter conhecido isto teve
que aprender com alguém e, assim, apoiar-se num legado passado. Ele quer divinizar o “eu”
cognoscente, mas na prática não é isso que acontece:
«Quando Descartes quer introduzir o cogito como ponto de partida da sua filosofia,
ele deve, antes de tudo, rejeitar todos os conhecimentos anteriores na dúvida
metódica, como ele a chama, isto é, uma dúvida artificial e sistemática. Havia nessa
pretensão uma atitude absurda: não se produz à vontade, por uma decisão arbitrária,
o vazio do espírito».
«Quando começamos a reflectir, a filosofar, temos uma matéria sobre a qual o nosso
espírito trabalha».
«Se podemos duvidar, como pretende Descartes, de todos os objectos reais que nos
rodeiam e que percebemos ao logo dos dias da existência, como poderíamos não
duvidar, com mais forte razão, de um mundo sobrenatural do qual não temos
nenhuma percepção directa?»
O que é natural é acreditar que estamos num mundo material e, acima dele, alguns
conseguem antever um mundo sobrenatural, mas Descartes inverte isto já que duvida do
mundo material mas nunca diz duvidar da existência de Deus. Mas mesmo para duvidar do
mundo material é preciso estar nele. Se duvidamos do que vemos, mais facilmente
duvidamos do que não vemos. Descartes diz que quer levar toda a gente para a Igreja, que a
existência de Deus é certa, mas ele criou um método para que as pessoas se afastem da Igreja
e de Deus, tal como no sonho o vento, encarnando o “espírito da verdade”, o afastou da igreja.
Fica a dúvida do porquê destes filósofos não dizerem ao que vêm mas optarem pelo
fingimento, pela encenação destinada a criar uma nova situação cultural, mas empiricamente
constatamos que isto remonta à gnose. Esta é tida como uma fusão de elementos orientais
com elementos gregos, judaicos, mas Étienne Couvert diz que, com a descoberta dos
manuscritos gnósticos em Nag-Hammadi, percebe-se que a gnose era algo completamente
novo, embora enfeitado de elementos de tradições anteriores para se cobrir de prestígio.
Supostamente, a gnose resumiria uma unidade de várias tradições, tendo patriarcas como
Orfeu, Moisés, Pitágoras, Buda, Cristo, etc. Mas isto é apenas um esforço retórico para criar
uma imagem fictícia.
Na Igreja dá-se Simão, o mago, como fundador na gnose, que teria oferecido dinheiro
a São Pedro para este lhe dar acesso aos mistérios de Cristo. Mas Cristo nunca deu acesso
directo ao conhecimento último da verdade, disse apenas que podemos chegar a Deus,
parcialmente, se agirmos de certa maneira. Sempre seremos imperfeitos e sempre viveremos
na insegurança, por isso, é necessária a fé para permanecermos fiéis aos momentos de
inspiração que tivemos e nos quais tivemos percepção da nossa imortalidade, mas que no
momento seguinte tendemos a esquecer. Simão achava que podia adquirir o conhecimento
dos mistérios de uma vez por todas, tendo depois controlo destes. É esta a ideia da gnose, que
René Guénon chamava de identidade suprema. Desde os primeiros séculos do cristianismo
que os gnósticos produziram uma infinidade de escritos, criando uma mitologia dos grandes
iniciados, que supostamente formariam uma cadeia única para transmitir a identidade
suprema.
a presença do ser, de que fala Louis Lavelle, porque nunca tivemos um único instante no
vazio.
Descartes diz que vai entrar no método da dúvida sistemáticas mas, como continua a
viver e a tomar decisões, vai seguir uma moral provisória como se fosse verdadeira até poder
examinar os seus princípios. Repara Couvert nesta passagem de Descartes:
«Não seguir menos constantemente as opiniões mais duvidosas, uma vez que eu
estivesse determinado a isso, do que se elas fossem, ao contrário, muito seguras. E é
então uma verdade muito certa que quando não está em nosso poder discernir as
opiniões verdadeiras, devemos seguir as mais prováveis».
E questiona:
«Mas por que vou eu seguir os princípios da moral provisória? Como é que posso
fazer isto pela razão quando não há nenhuma razão determinante de que essas
regras sejam seguidas? Por que estas regras e não aquelas?»
Não há um motivo racional para orientar a nossa conduta, é outra coisa, e no fundo a
apologia do conhecimento racional tem um fundamento totalmente irracional. Bossuet de
início não via nada de mal em Descartes, mas depois percebeu o perigo:
A presença do ser é a primeira coisa que nos chega e que não temos como negar, no
entanto, não temos nada menos claro e indistinto. Mas Descartes faz uma inversão e coloca
uma simples operação mental em primeiro lugar, como se fosse o fundamento de tudo.
Então, a possibilidade de montar certas teses filosóficas como argumentos torna-se mais
importante do que o reconhecimento daquilo que já sabemos. A argumentação ganha
predomínio sobre a percepção e isso impregnou-se de tal forma na cultura que a prova é tida
como mais importante que o conhecimento. Contudo, não temos o direito de negar uma
verdade incerta em nome da busca da certeza.
No fundo, Descartes quer viver sem culpas, livrar-se completamente não apenas da
possibilidade de culpa mas da própria incerteza, chegar à verdade última e definitiva. Ficar
acima do Bem e do Mal é o sonho gnóstico, e é essa a mensagem real que Descartes
transmite. Ele fez isso de forma mascarada não por temer o Santo Ofício, que não podia
alcança-lo na Holanda, mas porque se dissesse a coisa explícita, esta não iria penetrar tão
facilmente e levantaria uma série de reacções. Passados alguns séculos, o cartesianismo
penetrou em todo o ensino, fazendo submergir a escolástica. Os próprios religiosos ficaram
infectados de cartesianismo e, segundo a dúvida metódica, passaram a tomar Deus apenas
como um objecto de fé cega, criando um abismo entre fé e conhecimento, que são coisas que
realmente não podem existir separadamente. É impossível um sujeito ter fé em algo de que
nunca ouviu falar ou em relação ao qual não teve qualquer experiencia a respeito, assim como
quem busca conhecimento não consegue dar prova a cada momento de todos os
conhecimentos em que se apoia, tendo de confiar neles.
Boussuet falava de ideias gerais confusas encerrando verdades essenciais, e sobre isto
Couvert observa:
Assim, dos objectos percebidos sensivelmente, só teríamos certeza dos seus caracteres
matemáticos, mas:
«O que é conhecido pelo espírito, com certeza, não é o número mas a coisa
numerada».
«Dois nadas mais dois nadas não fazem quatro nadas. Duas árvores mais duas
árvores fazem quatro árvores».
Chegamos ao número por abstracção das árvores ou não teríamos nada. As relações
lógicas são construídas pela mente e possuem apenas certeza na medida em que se afirmam a
si mesmas, no sentido em que Descartes dizia:
prazo. O próprio medo da Inquisição é fingido. Muitas destas coisas vieram da Holanda e da
Inglaterra, onde não existia Inquisição. α76
[Aula 77]
Os brasileiros estão entre os povos menos generosos do mundo e isso está ligado ao
desinteresse pelo conhecimento, pela alta cultura e por tudo aquilo que é do espírito. Os
povos anglo-saxónicos estão entre os mais generosos, e o ensino deles é bastante elementar
ao nível das matemáticas mas bastante mais exigente em relação às letras.
Se voltarmos a nossa atenção para aquilo que nos infunde energia, esperança,
luminosidade, também teremos energia suficiente para resolver os problemas práticos sem
nos envolvermos demasiado por eles. Mas os debates políticos focam-se apenas na economia
e na corrupção, nunca na moralidade ou nas concepções de sociedade. Quando se fala na
educação, apenas é para dizer que é preciso despejar mais dinheiro em cima, como se a
educação fosse uma questão de instalações ou de equipamentos (Sócrates ou Santo Alberto
Magno davam aulas na rua). É uma concepção extremamente materialista e que já denota um
elemento profundamente depressivo. Tudo o que é material é medido e limitado, mas o
espírito implica uma abertura e uma liberdade muito maior.
Não só o brasileiro é um dos povos menos generosos como é um dos mais optimistas,
acreditando que o país vai se tornar numa grande potência. Há meio século que existe a
ilusão de que está para chegar uma riqueza generalizada. É natural que o sujeito deprimido se
apegue a falsas esperanças, como o slogan “Brasil, país do futuro”, que na verdade é apenas a
cenoura frente ao burro.
Então, não temos de buscar a segurança mas a força. Isto não nos defende contra
tudo mas dá-nos capacidade de reagir às situações, dá-nos uma boa capacidade de ataque. Se
começamos a bater, não vamos parar mais ou começamos a apanhar, o que se expressa no
adágio latino: audaces fortuna juvat (a sorte favorece os audazes).
Em termos práticos, se temos uma dívida, o pior que podemos fazer é estar sempre a
pensar nela, o que nos enfraquece, deprime. Devemos, sim, pensar em ganhar dinheiro, ter
ideias, apostar, lutar. E quando tivermos o dinheiro, pagamos a dívida, não vamos ser
levianos e esquecer. Para ter a força para ganhar dinheiro, temos de estar habituados a
pensar nos grandes problemas da humanidade, da filosofia, da teologia, porque é dessa
abertura que vem a iniciativa e a criatividade. Alain dizia que o pior que existe no ser humano
é o estado de espírito rancoroso, que rosna mas não age. Por todo o lado, vemos pessoas que
vivem reclamando mas não fazem nada, apenas gastam energias e trabalham contra si
mesmas. Criou-se uma espécie de preceito moral que obriga todos a estar de mau humor,
como se estar de bom humor fosse uma coisa leviana. Então, vamos rejeitar o mau humor, a
tentação de reclamar, a preocupação passiva com os problemas. E devemos lembrar sempre
que o sucesso do professor é o sucesso dos alunos. α77
246. A emoção
Northrop Frye escreveu A Imaginação Educada, que é um livro admirável, com dicas
valiosas, mas ele parece acreditar na ideia de que o intelecto humano é a nossa parte
objectiva e que as emoções são a parte subjectiva, ainda acrescentando que um oriental
pensaria o contrário, o que parece não ser confirmado pela experiência. Mas o que ressalta
daqui é ele não ter se debruçado o suficiente sobre a questão das emoções, tendo aceitado a
ideia, que remonta a Descartes, de que as emoções são a nossa parte irracional.
Vamos definir a emoção como uma reacção do ser total face a um objecto. Não se
trata de uma reacção localizada, é algo que toma posse da pessoa inteira. Uma emoção é
sempre racional porque é uma repercussão proporcional ao seu estímulo, é como uma
espécie de caixa-de-ressonância. Contudo, o objecto pode ser tanto colocado pela percepção
como pela imaginação. Podemos ter uma “percepção” inadequada e ter uma emoção que lhe
responde proporcionalmente, mas o que falhou neste caso foi a representação da percepção
(a percepção em si não erra, porque está num nível “anterior” à divisão de racional e
irracional). Da mesma forma, podemos conceber algo como perigoso (tomamos um som na
casa como sendo a entrada de um assaltante), porém, o que imaginamos não era real mas
ainda assim provocou uma emoção. Novamente o erro não está nem na emoção e nem na
percepção mas encontra-se no raciocínio que a representa.
Sendo a emoção uma reacção da pessoa inteira, apenas pelo seu conhecimento
podemos saber realmente quem somos, não através dos pensamentos, que podemos nem
sequer acreditar e serem totalmente hipotéticos.
Só pode haver erro no raciocínio e na imaginação, sendo esta última também uma
forma de raciocínio. Aristóteles já falava do silogismo imaginativo, que ocorre quando
juntamos duas imagens e automaticamente surge ou uma terceira ou uma resposta (a técnica
do cineasta Serguei Eisentein baseava-se nisto). Raciocínio e emoção são funções
construtivas e podemos imaginar o que quisermos ou raciocinar sobre premissas totalmente
inventadas, pelo que em nenhum dos casos somos obrigados a seguir o real e, por isso, pode
haver erro. Na emoção e na percepção pura não se pode introduzir o erro, dado que são
funções meramente reactivas e não há uma reacção inadequada ao objecto, que é onde o erro
se introduz. A emoção não pode apresentar o objecto a si mesma, apenas o raciocínio e a
imaginação podem fazer isso. α77
«Deus, que não é invocado senão depois da razão, é encerrado por Descartes nas leis
do peso, da medida e do número que ele criou, condenando-O assim, em nome da
sua perfeição, à monotonia de uma eterna constância. A quantidade de movimentos
é invariável, como a quantidade de matéria».
«Deus, tão imutável nos seus desígnios quanto a Natureza o é na manifestação dos
seus fenómenos, mantêm-se por acaso na sua constância inabalável, como afirma
Descartes, por um acto de omnipotência? De facto, esta vontade não se confundirá
secretamente em Descartes com aquela constância material, ao ponto de ser de
algum modo absorvida por ela, pois que Deus é tido como alguém que, em razão da
sua perfeição, não poderia jamais trazer desordem à sua obra, que Ele criou segundo
as leis fixas do peso, da medida e do número. Descartes proíbe a Deus o impossível e,
portanto, também o milagre?»
«Maurice Blondel escreveu de um ponto de vista católico, com muita perspicácia que
“Descartes retém apenas de Deus aquilo que lhe permite dispensá-Lo, que lhe permite
prescindir Dele”. Com um menor risco ele se teria, portanto, protegido sob o escudo
destas considerações aparentemente conformistas, mas na realidade heréticas,
talvez mesmo ateísticas. Como os testemunhos de sua vida, os pastores protestantes
da Holanda, chegaram a ver encolerizados com uma visão tão clara».
Os pastores protestantes perceberam o lado herético de Descartes, mas não foi esta
imagem que ele veio a ter.
«Se Descartes afirma que Deus é o autor do mundo, que este foi criado
imediatamente por Deus, segundo os ensinamentos da Bíblia, ele descreve de facto,
nos livros Tratado do Mundo e Princípios, aquela criação sem fazer aparecer nos
detalhes dos acontecimentos ou na exposição dos princípios gerais os efeitos dessa
vontade. Ela é afirmada e tudo se passa como se ela não existisse».
Deus passa a ser um pseudónimo da razão, e isto tornou-se a base para todo o
materialismo e ateísmo daí para diante. Uma das coisas mais paradoxais da mente humana é
que tudo o que não percebemos mas de alguma forma entranhamos acaba por se tornar mais
importante e vai dominar o círculo de toda a consciência, naquilo que depois veio a ser
conhecido como influência subliminar (a partir das experiências de Otto Poezl).
Aqui podemos, dando descanso a Maxime Leroy, recorrer a uma passagem do livro de
Adrien Baillet, A Vida de Descartes:
O ciclo moderno criou uma confiança desmedida do “eu” em si mesmo e isto foi
influência de Descartes. Assim, os indivíduos ficam totalmente indefesos contra a influência
demoníaca, porque ninguém consegue sozinho proteger-se contra o demónio. O livro de
Hubert Selbey Jr., The Demon, mostra com mestria o que é a obsessão demoníaca e como a
sociedade moderna é totalmente incapaz de lidar com ela. α77
[Aula 78]
249. Questões essenciais nas ciências sociais
Os comentadores e cientistas políticos estão habituados a falhar redondamente nas
suas previsões. Isto acontece porque eles estão a lidar com um conjunto de instrumentos que
não é adequado para a situação presente, embora pudesse funcionar em outras épocas.
Devemos, então, ir até ao problema do fundamento das ciências sociais e tentar saber o que é
o conhecimento da sociedade humana e quais devem ser os instrumentos perceptivos e
conceptuais que nos permitem apreender o que está acontecendo.
A segunda questão consiste em tentar saber o que é a acção histórica. Uma acção
meramente pessoal, como tomar banho, não tem o mesmo alcance de uma acção como ir
trabalhar, que envolve mais pessoas. E esta, por sua vez, não tem o âmbito de uma acção
histórica, que pode alterar o destino de sociedades inteiras.
Uma terceira questão diz respeito à natureza do poder. Toda a acção eficaz pressupõe
o fenómeno do poder, pelo que devemos começar por aqui – por uma fenomenologia do
poder – e abordar as questões na sequência inversa que nos apareceu atrás. α78
Existem três meios de agir sobre terceiros. A forma mais óbvia é mediante uma
ameaça de agressão ou de castigo, que naturalmente se exerce sobre uma animal doméstico
ou sobre uma criança, e da qual nunca se pode realmente abdicar. O segundo meio de
influência é a promessa de um benefício. O primeiro meio é bastante eficaz e imediato mas
temos de ter força coercitiva suficiente para o exercer. O segundo depende dos interesses e da
livre decisão do subordinado. Um terceiro meio de agir sobre terceiros baseia-se no
convencimento e no fascínio, mais especificamente, no uso da linguagem para modelar a
visão que a outra pessoa tem do mundo de modo a ela agir dentro das linhas prescritas por
nós, dado que não concebe outras. Ao primeiro meio de influência (ameaça) corresponde o
poder político-militar, ao segundo (promessa de benefício) corresponde o poder económico-
financeiro e ao terceiro (convencimento) corresponde o poder intelectual-espiritual.
A estas três modalidades de poder correspondem três camadas ou classe sociais com
diversas encarnações históricas e com diversos graus de influência. No ocidente, a classe
militar foi determinante a partir do desmembramento do Império Romano, criando focos de
resistência às evasões bárbaras e dando, depois, origem ao feudalismo, de onde emergiu a
figura do rei, visto como primus inter pares. Mais tarde, uma parte da nobreza começou a ter
uma actividade distinta da militar, entrando em actividades comerciais, financeiras
(potenciada com a descoberta pelos bancos da possibilidade de alavancagem) e imobiliárias.
Então, na Idade Média começou a influência do poder económico-financeiro, normalmente
atribuído à burguesia mas que realmente começou por ser uma actividade dos nobres. Este
poder acabou por suplantar o poder feudal, mas foi uma evolução que durou muitos séculos.
258
A formação dos exércitos profissionais quer dizer que os militares passaram a ser
funcionários públicos, ou seja, o poder militar deixou de ser um poder em si e tornou-se num
instrumento da burocracia estatal, que é, por sua vez, sustentada pelos capitalistas. Então,
cria-se a apoteose do poder financeiro com a subalternização do poder militar. Mas o poder
financeiro é feminino, é um poder de atracção e não intimida ou destrói ninguém. O dinheiro
não é em si um poder, não tem possibilidades de matar, só tem o poder de atrair através da
promessa de benefícios, funcionando indirectamente por um processo complicado e cheio de
ambiguidades psicológicas.
Podemos ver uma destas ambiguidades, tal como estudada por Aleksandr Zinoviev no
livro The Reality of Comunism, no exemplo de uma empresa. Esta tem de dominar uma
tecnologia correspondente ao produto que oferece, tem de conhecer os mercados e assim por
diante. Mas, no seu interior, as pessoas tentam ascender na hierarquia, e para isso é preciso
também uma tecnologia – podemos chamar de técnica política –, que facilmente entra em
conflito com as outras tecnologias se não existir um factor unificante. Com a ascensão do
poder financeiro, ganhou relevância toda uma linha de acção destina à ascensão na
burocracia, seja privada ou estatal ou mesmo da virtual (aqueles que estão em volta e ainda
não conseguiram entrar). Este elemento de tensão que existe na sociedade capitalista chega à
apoteose na sociedade socialista, onde há uma luta de técnica política contra a técnica
económica. Apenas dentro do Partido é possível subir na escala social. Não tem sentido ver o
processo de conquista de poder como uma derivação do processo económico, que é o
processo de eficiência capitalista, porque o processo de conquista de poder é totalmente
distinto. Muita gente acredita que a economia fraca derruba a classe política, o que pode
ocorrer em democracia, mas num sistema fortemente socialista a estrutura de poder é muito
robusta, uma vez que deriva de um aperfeiçoado jogo político, que pode conviver com uma
economia falhada e até ser fortalecido por isto, dado que o povo fica ainda mais passivo.
progresso consiste em aumentar mais e mais esta classe, que nada produz mas está
qualificada para a actividade política, embora sem ter ainda o poder. Torna-se cada vez mais
constante a luta dos membros desta burocracia virtual pelo poder, cada um falando em nome
da população em geral ou como se fosse representante da humanidade, mas o que eles fazem
é apenas subir pisando em toda a gente. α78
a) As grandes religiões, que ensinam geração após geração as mesmas normas de conduta;
b) As sociedades ocultistas e iniciáticas, que moldam a cabeça dos seus membros geração
atrás de geração, e que tornam possível planear acções de longo prazo;
d) O Partido Comunista, entidade criada no século XIX com o nome de “Liga dos Justos”, que
consegue que as novas gerações se incorporem numa corrente histórica.
A burocracia virtual [250], quando não se incorpora numa religião ou não nasce
numa família dinástica, apenas pode ter uma acção eficaz de uma de duas formas: ou
entrando numa organização revolucionária que tenha continuidade histórica, como o
Partido Comunista; ou fazendo pare de uma sociedade iniciática, como a maçonaria, a
companheiragem ou a Rosa Cruz.
Por exemplo, existem inúmeras campanhas contra a “exclusão”, mas que se referem a
fenómenos totalmente diversos e muitos dos quais nada têm nada a ver com a exclusão.
Também se costuma fazer uma ligação automática entre a criminalidade e a pobreza, mas vai
uma grande distância entre o sujeito dar conta de que é pobre e ele achar que, por isso, tem
260
[Aula 79]
252. Implicações da consciência de imortalidade na compreensão da
História e da sociedade política
A tomada de consciência da imortalidade [192] deve ter algumas consequências para
a visão que temos da História e da sociedade política. Mesmo se não tivermos consciência do
nosso eu substancial, é com ele que nos relacionamos com outras pessoas. Temos um eu
presencial, que é o foco para onde convergem todas as informações sensoriais presentes e
que tem necessariamente uma existência fugaz, também porque a nossa atenção às sensações
é descontínua e há muitas coisa à nossa volta que ignoramos. Depois, temos o eu social, que é
uma figura que aparece quando nos relacionamos com outras pessoas e que corresponde
àquilo que imaginamos que os outros sabem a nosso respeito ou que potencialmente podem
saber, e sem isto ficamos incapacitados socialmente. Também há o eu autobiográfico, que se
revela quando contamos a nossa própria história, seja para um outro ou para nós mesmos.
Então, a nossa existência permanente não é apenas um conhecer mas também um ser.
A nossa realidade permanente não se confunde com a nossa presença corporal, nem com as
nossas ideias ou pensamentos e nem mesmo com as nossas emoções: são tudo coisas
descontínuas e fragmentárias. Vamos chamar de eu substancial à nossa forma de existência
permanente. É fácil de constatar que esta sempre existiu e permanece igual ao que era
quando éramos crianças, e ainda que é a base ontológica para que as outras imagens de “eu”
possam se formar, ainda que não saibamos muito bem do que se trata. Existe um certo
mistério sobre o eu substancial dado que este não pode ser, na sua totalidade, objecto de
apreensão mental ou de um acto de cognição. É um outro campo que apenas pode ser objecto
de admissão, da mesma forma que não podemos apreender o universo inteiro mas apenas
podemos admitir que ele existe. Qualquer pessoa que conhecemos, apenas temos dela
informações parciais, mas automaticamente reconhecemos que ela tem existência
substancial, embora não reconheçamos as implicações disso na sua inteireza.
subjacente, pelo que não pode ser a base de toda a certeza, é algo que uma personagem de
romance totalmente hipotética poderia dizer. Mas a existência do eu substancial não pode ser
captada hipoteticamente, não pode ser pensada como hipótese, apenas podemos pensar nele
em termos categóricos: eu existo efectivamente num mundo que também existe
efectivamente, onde há outras pessoas que também existem assim.
Pelas experiências de visão remota e pelos relatos de estados de morte clínica, sem
actividade cardíaca ou cerebral, conclui-se também que o eu substancial não depende da
presença corporal, sendo este último uma sua manifestação específica.
Depois destas notas, já deve ser óbvio que o método básico em filosofia não deve ser o
da dúvida metódica (ou o método da suspicácia, nos termos de Mário Ferreira dos Santos)
mas o método da confissão, que consiste em admitir a existência de realidades que se
impõem a nós, inclusive o reconhecimento de elementos nossos sobre os quais não temos
domínio. Sabemos que temos uma carga genética e, por mais que consigamos recuar na
árvore genológica, a herança recua sempre mais até chegar às primeiras gerações. No acto
sexual completo estão presentes todos os nossos antepassados. Hoje é possível viver num
mundo de simulacros, o que ameaça de esquizofrenia todos os habitantes da civilização
urbana.
Outra questão que passa a ser vista a outra luz, com a admissão da imortalidade,
relaciona-se com a questão do sujeito da História [251]. Para este “cargo” apenas estão
qualificadas entidades com uma continuidade intencional e que conseguem manter uma
263
continuidade substantiva ao longo das épocas, sendo “a voz dos profetas” o sujeito histórico
por excelência. Neste caso, não se trata apenas da continuidade intencional, que também é
um elemento entrópico, mas da própria presença da fonte (Moisés, Abraão, Cristo, Confúcio,
Lao-Tsé), que se torna num factor histórico permanente e que funciona como uma espécie de
entropia negativa. A profecia é mais do que uma previsão, é uma ordem para fazer certas
coisas, garantindo que assim ocorrerão tais e tais coisas.
Em última análise, o princípio que orienta a filosofia moral é o mesmo que deve
orientar a História, a filosofia política e assim por diante. Trata-se da consciência de
imortalidade, que é o primeiro princípio da filosofia e, se repararmos bem, está sempre
presente em Sócrates, Platão e Aristóteles, embora eles apenas falem explicitamente disto em
alguns momentos. O exemplo mais marcante é a forma alegre como Sócrates aceitou a sua
condenação à morte, que mostra que a sua crença na imortalidade não era apenas uma tese
filosófica mas um princípio que o orientava em todos os momentos. α79
265
[Aula 80]
Vemos que os diálogos de Platão têm personagens com uma presença humana real,
ainda que possam não corresponder à realidade histórica. São pessoas que não se definem
apenas pelas suas ideias mas também pela sua conduta real, sem esconder os seus
sentimentos ou desejos. Os escritos de Aristóteles não possuem isto porque aquilo que restou
do seu trabalho foram notas para serem desenvolvidas em aula. Mas ele disse explicitamente
que os conceitos começam na experiência directa, pelo que é sempre possível remontar a ela
e Aristóteles deixa elementos para fazer isso.
vende o seu tempo de trabalho. Acontece que Marx teve muito pouco contacto com qualquer
uma das classes. Na realidade, o lucro do capitalista é apenas um resultado final de um
processo complexo que envolve muitos factores heterogéneos que ele tem de ter em conta de
alguma forma. Então, Marx não obtém o conceito de capitalista por abstracção de uma
realidade, como ele diz, até porque ele não conhecia essa realidade, ele simplesmente assume
que o capitalista é assim. Depois, ele faz uma descrição do sistema capitalista como se fosse
apenas uma regra de jogo abstracta, uma mecânica onde entra apenas o lucro (ou capital) e
a venda do tempo de trabalho. Estes elementos existem mas estão longe de ser suficientes
para descrever o capitalismo, por isso falharam as previsões de Marx sobre o
desenvolvimento da sociedade capitalista. A própria ideia de que a revolução ia se apoiar no
proletariado não se verificou, foi antes uma base de intelectuais que criou o ímpeto
revolucionário, que depois passaram a falar em nome do interesse do proletariado,
inexistente no início mas criado retroactivamente, no esquema que depois foi explicitado por
Ernesto Laclau e Chantal Mouffe no livro Hegemonia e Estratégia Socialista [239]. A
experiência de onde Marx retirou os seus conceitos era muito pobre e limitada, mas isto
também possibilita que os leitores preencham aquilo de conteúdo com uma enorme riqueza
imaginária, porque quanto mais pobre é o esquema conceptual, mais facilmente ele é
transportável analogicamente para inúmeras situações completamente diferentes.
fundamentar uma teoria com pretensões universalmente explicativas. Daí ser fácil a Teoria
da Evolução mudar de formato para escapar às objecções, como no caso da substituição da
selecção natural, incoercível, pelo acaso, como se fosse uma alteração de nada e não o
surgimento de uma teoria antagónica.
O que há a fazer nestes casos não é discutir as teorias no seu conteúdo mas contar a
história da sua formação, mostrar como são compostas de agregados analógicos que não são
fiéis à teoria inicial, que depois aparece com um significado tão elástico que pode querer dizer
quase qualquer coisa. O objectivo não é provar que a teoria está errada mas mostrar que ela
não tem vínculo à experiência originária. O mundo moderno está cheio de teorias assim, que
podem mudar de identidade indefinidamente e, desta forma, não podem ser
verdadeiramente colocadas em cima da mesa e discutidas.
Existe um factor mais profundo que faz com que muitos se apeguem tão tenazmente a
teorias, não as abandonando por nada, mesmo que seja necessário mudar-lhes
continuamente o conteúdo para manter a “fachada” inicial. Estas teorias apresentam-se
frequentemente como princípios explicativos universais ou que estão associadas a estes. Isto
aconteceu pela primeira vez com Descartes com o seu cogito, que era uma hipótese
desesperada de encontrar um ponto de certeza. É uma aposta de tudo ou nada, torna-se
praticamente impossível voltar atrás e há que defendê-la a todo o custo, sendo que a forma
mais eficaz de o fazer é criar um esquema de subterfúgios que inviabilizem a sua análise
objectiva. Esta ideia de encontrar um princípio explicativo universal, de onde tudo o resto
pode ser deduzido, era desconhecida antes de Descartes, mas depois impregnou-se de tal
forma nas mentalidades que quase todos os filósofos posteriores assumiram que a sua tarefa
principal seria encontrar um tal princípio.
Então, Karl Marx vai ter como princípio explicativo da História a luta de classes, a que
junta a pretensão de ter sido o primeiro a ver a realidade do processo enquanto todos os
esforços intelectuais, literários, artísticos anteriores teriam servido apenas para encobrir a
verdadeira realidade do mesmo. Freud tenta ver o fundamento de toda acção humana no
conflito entre o id e o superego mediado pelo ego, também com a pretensão de ter sido ele o
primeiro a ver a “luz”. Os exemplos multiplicam-se até à náusea, e o que desde logo
impressiona é existirem tantos “princípios únicos” diferentes, que na realidade reflectem
apenas alguns aspectos que têm algo a ver com a realidade mas nenhum deles é realmente
um princípio explicativo.
Desde Platão até à entrada em cena de Descartes, toda a gente acreditava no mundo
como criação do espírito divino, tendo todas as coisas a marca do divino nelas, naturalmente
em maior ou menor grau. Estes graus delimitam aquilo que podemos saber de cada ente.
Além disso, o exercício da inteligência depende do auxílio da providência divina, que dá uma
forma inteligível a cada forma da criação e, por outro lado, auxilia internamente, infundindo
na nossa mente a capacidade de apreender estar formas, distinguindo-as da presença
material dos objectos. O que captamos dos entes é o seu potencial de acção e de paixão, são
propriedade que se deduzem da forma inteligível.
infinito. É aqui que chega Descartes, que também obtém uma certeza da existência dos
objectos exteriores mas através da dedução das propriedades do ego e das propriedades de
Deus. Aquilo que antes qualquer um sabia imediatamente, agora é sabido indirectamente e
de forma artificial. Sabemos que este artifício veio do impacto que alguns sonhos tiveram
para Descartes [244], e ele, ao invés de examinar e aprofundar a sua experiência, colocou-se
dentro do seu mundo onírico e passou a assumir que ele mesmo era aquele que foi sonhado.
A matematização dos entes introduz um carácter artificial, que é útil para fomentar as
transformações técnicas, mas o objecto inicial deixa de ser conhecido. A ideia impregnou-se
na cultura a tal ponto que o conhecer transformou-se num modificar. Naturalmente que isto
tem uma série de implicações profundas em termos sociológicos, políticos e numa série de
outros campos. Vemos que o domínio da Natureza está na mão de apenas uns poucos
homens, que assim obtém domínio sobre os restantes. Mais ainda, vai desaparecendo o
interesse em conhecer o ser humano e o objectivo passa por transformá-lo noutra coisa. Isto
introduz um processo hipnótico, em que o esquecimento da situação anterior é um elemento
integrante, a investigação do passado passa a ser apenas motivada pela tentativa de justificar
o presente. Descartes e Bacon foram bastante inspirados pela ideia do domínio sobre a
Natureza, sem perceber que se tratava de fomentar uma elite que iria desembocar no
controlo da humanidade por umas poucas pessoas. Elites inexpugnáveis possuem tremendos
meios de controlo da população e formas de criação de condutas colectivas. Ironicamente, o
processo veio a ser identificado com o advento da democracia, dos direitos humanos e do
progresso da liberdade. α80
[Aula 81]
255. Filosofia e ortodoxia católica
Nenhuma investigação filosófica pode comprometer-se à partida em seguir a
ortodoxia católica. Esta última constitui-se de dogmas, que são sentenças que interpretam
formalmente o ensinamento de Cristo e fecham a sua interpretação a respeito de
determinados pontos. Ou seja, tratam-se de conclusões, porém, o dogma nunca está
completo, sempre está evoluindo e em acréscimo. Mas aquilo que foi fixado como dogma já
não é mais passível de discussão.
inúmeras direcções diferentes e nem tudo o que se diz a seu respeito pode ser conferido com
a doutrina católica, dado que não têm conteúdo dogmático suficiente para isso.
Para um aluno acompanhar as aulas do Curso Online de Filosofia, ele já deve ter
conhecimento ou pressentimento da existência de géneros literários, de níveis de
predicação, dos quatro discursos. Se ele não conseguir ler e distinguir os vários níveis em
que as coisas estão colocadas, então, ele não está qualificado para receber o material do
curso. Muitas vezes os fiscais da ortodoxia são apenas pessoas muito nervosas e inseguras,
que precisam desesperadamente de uma autoridade para se apegarem. Mas uma verdadeira
vida de estudos obriga precisamente a prescindir dessa autoridade. Claro que alguém pode
dizer que, em última instância, prevalece o ensinamento da Igreja, mas isto é criar outro
problema, porque resta saber quem a representa. Nem mesmo o papa é a última palavra em
todos os assuntos, além de haver toda uma série de discussões sobre se este papa ocupa o
cargo legitimamente.
O filósofo é aquele que continua sempre buscando com sinceridade. Dizia Pascal que
não respeitava nem aqueles que negam e nem aqueles que afirmam mas apenas os que
buscam entre gemidos. O dogma tem apenas uma poucas verdades, das quais não se podem
deduzir conclusões a aplicar a todas as questões filosóficas. O decaimento da Igreja nos
últimos séculos está bastante ligado à falta de coragem em entrar em polémica com
modernistas e iluministas, achando que se podia resolver tudo com um índice de livro
proibidos. Então, os intelectuais católicos achavam que se manteriam puros não lendo certas
obras, o que era apenas entrar na espiral do silêncio, enquanto à volta toda a gente lia as
novas coisas, que iam desencadeando os seus efeitos sem que existisse uma real oposição.
Enta tentativa de proteger a alma da corrupção evitando certas leituras demonstra apenas
falta de confiança na inteligência humana e na providência divina que a sustenta. α81
Para podermos classificar uma opinião de razoável, em primeiro lugar, esta tem de ser
realmente nossa, ou seja, temos de saber o quanto acreditamos nela. Isto remete para os
quatro discursos e para a graduação da opinião segundo uma escala que vai do meramente
possível ao absolutamente certo, passando pelo verosímil e pelo provável.
Em segundo lugar, temos de saber de onde surgiu esta opinião. Podemos ter lido em
algum lugar, ou ela pode ter vindo do meio social de múltiplas fontes e se impregnado em nós
por efeito de repetição, pode ser um ensinamento familiar, pode se tratar de algo que nos
surgiu por geração espontânea. Quase sempre não nos damos conta de que estamos a
inculcar opiniões até lhes darmos uma formulação explícita, e aí acreditamos que elas se
tornaram autónomas da sua origem. Acontece que a opinião continua a ter a mesma carga
270
semântica que tinha na sua origem histórica, estando carregada de imagens, experiências e
sentimentos que se foram acumulando ao longo da sua formação.
Em terceiro lugar, uma opinião só é razoável se soubermos a quê ela tenta responder.
Se não conseguirmos formular a pergunta (dúvida, problema, enigma, etc.) a que opinião
tenta responder, então, não entendemos a própria opinião.
Existe uma quarta condição para uma opinião ser razoável no campo específico da
filosofia: o problema tem de ser realmente um problema. Podemos ter dúvidas e inquietações
que não correspondem a nenhum problema filosófico substantivo, pode tratar-se de uma
dificuldade lógica ou de um problema pessoal que extrapolamos indevidamente para uma
dimensão universal. Então, temos de testar o problema para tentar perceber se ele emana da
realidade da experiência, isto é, ver se ele tem uma substância factual e que não se trata
apenas de uma formulação lógica elegante. A célebre questão da existência do mal num
mundo criado por um Deus bom [257] é um exemplo, parecendo uma questão muito séria e
grave, quando na realidade tem por base um pressuposto absurdo.
senso. Numa escala finita os bens são limitados e aparece necessariamente na fronteira o
mal. A existência do mal não põe em causa da bondade divina mas ressalta apenas as
limitações dos ser finitos, que não podem receber ao mesmo tempo toda a sabedoria, beleza,
felicidade, etc.
Os santos e místicos dizem que devemos agradecer a Deus pelo bem que nos sucede
mas também pelo mal, porque eles sabem que muita coisa que na escala divina é o bem na
sua expressão máxima, na nossa pequena escala apenas pode aparecer sob forma invertida.
Quando encaramos estas coisas desde a perspectiva da alma imortal tudo ainda fica mais
claro, e percebemos imediatamente que todo o sofrimento é limitado e um nada na escala de
imortalidade. Claro que o mundo que sofremos aqui não se desfaz – não se trata de ver
apenas como uma coisa temporária –, mas torna-se apenas num elemento do processo de
significação do bem ilimitado correspondente à alma imortal.
Temos também que Deus criou um universo limitado, não criou outro Deus. No
elemento de limitação introduzido na criação já existe um certo coeficiente de mal e de
absurdidade inerente à limitação do mundo criado. Então, a existência do mal pode afligir o
nosso coração, o nosso estômago, o nosso bolso mas nunca devia afligir a nossa razão. Se a
existência do mal fosse irracional, isso quereria dizer que era desproporcional, quando é essa
existência que reflecte precisamente a proporcionalidade entre o finito e o infinito. α81
[Aula 82]
prosseguiu até à neoescolástica. Aristóteles considerava-se um platónico e era por isso que
tinha legitimidade para acrescentar algo ao platonismo ou mesmo corrigir algum pedaço.
Hoje as pessoas não têm a mínima ideia do que seja um discipulado filosófico e
pensam que podem estudar um ou dois anos com o Olavo de Carvalho e logo podem seguir
“pensando com a própria cabeça”. Obviamente que rapidamente se esterilizam e esquecem o
que aprenderam, ou seja, não chegaram realmente a ser alunos. α82
Podemos ver a ineficiência dos vários sectores do Estado – que também se encontra
em muitas empresas privadas – como um problema político ou social. Por exemplo,
Aleksandr Zinoviev fala das regras comunais [231], e podemos entender que cada repartição,
para além do serviço que presta oficialmente, tem de ter em conta a sobrevivência funcional
dos seus membros, o que os faz entrar em automatismos desumanos quando lidam com o
público. Mas para Olavo de Carvalho estas situações revelavam um problema universalmente
humano. No caso limite, temos o período nazista, em que toda a hierarquia, desde o führer
até ao último moço de recados desumanizou-se e ficou obcecada pelas ordens. Em
comparação, temos o caso de Otto Pötzl, que mesmo sendo membro do partido nazi
conseguiu manter os médicos judeus no seu hospital e salvou a vida de muitos outros. Então,
é sempre possível articular a situação humana concreta com as exigências de uma burocracia
desumana. O burocrata não pode ver o facto concreto, ele não tem atitudes pessoais, está
sempre defendido por uma tipificação abstracta. O paroxismo disto veio com os
computadores, que não querem saber de interesse pessoal algum mas também não são
juridicamente imputáveis. O funcionário da repartição pública limita-se a comunicar a
“decisão” do computador e não há mais discussão.
Mas quem é o “eu” que está por trás destas acções impessoais burocráticas? Quem é o
sujeito agente? Quem está pensando, quem conhece e como conhece? E qual é o processo
cognitivo aqui envolvido? Olavo de Carvalho descobriu, entre outros, três factores produtores
de consciências substitutivas, que dão às pessoas falsas identidades, com as quais elas se
identificam a ponto de desactivar as suas consciências e perder a noção de facto concreto e de
situação individual, tornando apenas compreensível o que já está previamente classificado e
categorizado.
certo ou errado. Para onde foi parar a natureza humana? O que é esse mundo de exigências
fictícias que tomou as pessoas? Ortega y Gasset fala de um fundo insubornável, que é o
“lugar” onde cada um reconhece o que é, o que fez, o que está sentindo e assim por diante.
Mesmo que este fundo apenas se revele muito esporadicamente, ele tem de existir. Onde está
este centro e o que nos impede de chegar a ele? Esta foi a primeira grande pergunta de Olavo
de Carvalho, feita ainda na adolescência, dirigida não apenas aos outros mas também a si
mesmo, e que o levou a leituras de psicologia, mística, esoterismo e também a buscar as
técnicas associadas. Isso desembocou na Nova Era, que criou uma multidão de caricaturas
tão ou mais deploráveis que burocrata ou o militante. Cada uma destas correntes culturais –
Nova Era, esoterismo, metafísica oriental, doutrinas hindus, sex lib, ecologismo, etc. – tinha
algo que se aproveitava, mas tudo era colocado dentro de um quadro ainda mais alienante e
de natureza ideológica, no sentido do realce de um factor único que tenta resolver tudo num
raciocínio unilinear.
Até cerca dos 20 anos, o esforço de Olavo de Carvalho não era propriamente
filosófico, era uma tentativa de obter alguma orientação pessoal dentro de um certo meio
cultural, com a absorção de elementos culturais existentes mas ainda sem pretender buscar
uma solução séria e intelectualmente consistente. Mas no esforço de encontrar a sua própria
voz, a sua personalidade, deu-se conta de que não estava a levar em consideração o elemento
da mediação cultural. Nós pensamos e falamos com uma linguagem que já vem carregada de
conotações, valores, interpretações, pelo que já carregamos uma herança sociológica e
histórica, que tanto nos permite chegar ao nosso próprio centro como também é, noutras
ocasiões e mesmo em simultâneo, uma barreira para chegar a ele. Então, torna-se necessário
personalizar os elementos culturais. Daqui surgiu o primeiro estudo sistemático – e de
carácter realmente filosófico e não apenas biográfico – de Olavo de Carvalho, corporificado
na Teoria dos Quatro Discursos. Isto significou voltar a Platão e Aristóteles, seguindo uma
pista dada por Swami Dayananda, directo da Academia de Estudos Védicos de Bombaim, que
mostrou espanto por ver os ocidentais irem estudar o vedanta para a Índia quando o melhor
do vedanta era ocidental: Platão e Aristóteles.
uma estrutura comunicativa e significativa. Todas as sensações significam algo, tem as suas
formas e, por isso, as distinguimos por “dizerem” diferentes coisas, não é apenas uma
projecção nossa sobre elas. Existe uma linhagem baseada em Kant – que diz que não
alcançamos a coisa em si e tudo é criação das nossas formas a priori – que vai dizer que,
afinal, apenas conhecemos a nossa própria linguagem. Mas se um cachorro nos morde ou se
observamos uma paisagem, tratam-se de coisas significativas em si e que nos transmitem
algo, não são coisas amorfas sobre as quais projectamos algo.
Mas se o mundo exterior, através pela luz, é o mediador entre ele mesmo e a nossa
capacidade cognitiva é porque este mundo é adequado ao nosso conhecimento. Olavo de
Carvalho invertia assim a fórmula escolástica que dizia que a verdade é a adequação entre a
coisa e o intelecto, dizendo que esta adequação está na coisa e não no intelecto. O ponto
subtil é que tentamos nos adequar ao mundo exterior, à objectividade, mas carregamos a
nossa subjectividade, não temos o critério da adequação. Então, é um esforço falhado a não
ser que o mundo se revele a nós, ou seja, ou as coisas são evidentes ou não temos forma de
chegar a elas. A nossa subjectividade não é o garantidor do mundo exterior; o mundo exterior
é que nos garante.
E não apenas temos percepção do que nos é imediatamente visível, como nunca
perdemos a consciência de um círculo que se prolonga para além da nossa visão e que
sustenta a nossa capacidade de percepção. É uma consciência que temos em permanência
embora não pensemos nela deliberadamente. Então, para além da percepção sensível e da
razão, revela-se aqui uma terceira modalidade de conhecimento, que é o conhecimento por
presença. Toda a percepção sensível é a percepção de um limitado cuja forma é definida por
um ilimitado que o circunda e possibilita.
Aquilo que começou com o método da contemplação amorosa, abriu um novo campo
de objectos, e estes, por sua vez, sugeriram um novo método: imersão e extrusão.
uma realidade infinita que se recorta, conforme nos deslocamos, em sucessivos perfis finitos.
Fora desta consciência de imersão temos apenas produtos mentais, que podem representar
ou significar elementos da realidade do mundo, mas também uma dinâmica e uma força de
atracção próprias. Uma das coisas mais corruptoras que existe é querer criar uma filosofia,
porque partimos para uma tentativa de coerenciação dos vários conceitos que usamos e
facilmente voltamos costas à experiência originária para apenas deambularmos no mundo
mental criado por nós. Então, não se trata de construir um sistema filosófico mas de
desenvolver uma atitude filosófica consistente com a nossa presença no mundo ilimitado,
tanto em termos espaciais como na sua consistência interna (cada facto, estado, situação
implica uma infinidade de elementos acidentais).
Só conseguimos conhecer a realidade de também formos reais, pelo que existe uma
co-participação entre a verdade do eu cognoscente e a verdade daquilo que ele conhece. Se
não formos testemunhas fidedignas daquilo que experienciamos do mundo também não
podemos conhecê-lo. Mas onde está o verdadeiro “eu”, por trás de tantos disfarces e
camuflagens? O eu verdadeiro tem de estar aberto à infinidade quantitativa do mundo
acessível, assim como tem de estar aberto ao infinito para além deste mundo ou, então, fica
fechado nos seus próprios pensamentos. Assim, o único interlocutor que garante a
genuinidade do “eu” e, deste modo, a objectividade do seu conhecimento é a própria abertura
desse “eu” para a totalidade do real, imanente e transcendente. Daqui surgiu a ideia do
observador omnisciente, que é o nosso interlocutor por excelência e o que permite a
existência do eu consciente. Então, a confissão que começou com a admissão do facto
concreto culminou com a nossa apresentação perante o observador omnisciente, e à medida
em que lhe contamos algo com toda a sinceridade, ele nos revela um pouco mais, mostrando
ser, como dizia Paul Claudel, “aquele que em mim é mais que eu mesmo”.
Isto abriu a porta para novas constatações. Examinando o conteúdo das percepções, a
conclusão é que todas são fragmentárias. Mas não teríamos percepção alguma sem um senso
278
Qual é a forma de existência do “eu” que está observando e confessando tudo isto?
Não se confunde com a memória, que apenas se limita ao que vimos e fixamos, mas sabemos
que temos uma continuidade existencial para além disto. Não vamos conhecer este “eu” por
exame de memórias, de ideias ou de sensações, mas apenas pelo conhecimento por presença.
Mas todos estes elementos permitem recordar que sempre se manteve o mesmo ser por
detrás, um eu substantivo que permite a existência de um eu cognoscente, de um eu
sensitivo, de um eu autobiográfico, de um eu social. Para efeitos de conveniência, quando
nos relacionamos com alguém damos relevância ao eu social, mas a convivência seria
impossível se não soubéssemos que a outra pessoa existe substancialmente, sendo dessa
fonte que brotam inúmeras possibilidades que não estão presentes no momento. Então,
temos uma espécie de sentimento da presença do eu substantivo, temos consciência de ser
algo realmente e que pensamentos e conhecimentos são apenas aspectos disto.
A partir daqui entendemos que a escala de tempo em que a alma imortal se situa
transcende a duração da História humana inteira. Santo Agostinho falava das Duas Cidades,
por um lado há a História dos impérios, das sociedades, das culturas, que é toda feita de
descontinuidade e escandida pela morte física das personagens; por outro lado, temos as
almas imortais com uma existência contínua. A filosofia da História procura dar unidade a
algo que não a tem, no máximo existem apenas algumas unidades temporais muito relativas.
Torna-se importante compreender de onde surge a necessidade de dar uma unidade à
existência terrestre, que simula a unidade da estrutura real do cosmos e da vida. É uma
transposição da escala metafísica para a escala física. Todas as filosofias da História criam
mundos imaginários que se impregnam na alma das multidões e estas iludem-se de estar a
279
viver numa escala que na realidade é fictícia. Estas tentativas de criar imagens de
continuidade histórica tornam-se elementos da acção humana e do poder. As pessoas
adquirem um senso de participação se acreditarem que estão dentro de um processo
histórico que tem um determinado sentido hipotético. Mas como se trata de uma visão
restrita ao universo físico terrestre, um dia a morte chega e esta participação torna-se nula.
Claro que é uma participação nula desde já, é uma mera participação ilusória numa coisa
ilusória.
[Aula 83]
ironicamente num novo padrão de normalidade que servirá para julgar o resto. A rapidez
com que as pessoas se adaptam às anormalidades é muito impressionante, sobretudo quando
elas tiveram pouco ou nenhum contacto com uma situação anterior ainda permeada pela alta
cultura. Para escapar a isto é necessário uma espécie de génio e uma independência
formidável. Não basta ser inteligente e estar revoltado contra a situação, porque a pessoa
ainda continua indefesa se pensa que aquilo que lhe está a ser imposto é a realidade e que
tentar escapar àquilo é um sonho ou uma ilusão. Na verdade, é o oposto: aquilo que se nos
afigura como a “dura realidade” só nos parece assim porque é apresentado como sendo
compartilhado pelo colectivo, quando não é mais do que uma ilusão grupal da classe falante.
Um bebé, que se encontra na primeira camada, olha para o seu próprio corpo como
uma coisa estranha. Mexe os membros, pega no pé e observa-o durante muito tempo, ou seja,
tenta obter domínio do corpo. Por outro lado, está numa permanente busca de auto-
satisfação. Então, o primeiro centro de interesse é o próprio corpo e o bem-estar corporal. É
um interesse que nunca é abandonado, nem mesmo pelo asceta, sendo a disciplina que impõe
a si mesmo também um esforço de apropriação do corpo. O esforço para dominar o corpo é
também uma tentativa para personalizá-lo e não ficar totalmente à sua mercê.
Embora esta primeira camada nunca se perca, ao fim de algum tempo há uma
passagem para outros centros de interesse, apontando agora para elementos do mundo
exterior. A segunda camada diz respeito a uma personalização dos instintos (que se
prolongam para além do próprio corpo). Todos temos um instinto básico de fome, mas não
gostamos todos de comer as mesmas coisas. As crianças logo desde tenra idade gostam de
diferentes brinquedos e actividades e, assim, tomam posse de um círculo um pouco mais
amplo que o próprio corpo. Seleccionar instintos e desejos e tentar atendê-los já extravasa o
corpo, visando agora coisas, pessoas, situações, objectos. Nesta segunda camada formam-se
impulsos e desejos predominantes. Esta camada – uma personalização dos gostos, desejos e
preferências – vai também permanecer para o resto da vida, pois nunca deixamos de
281
selecionar objectos, situações, sensações que queremos ou não queremos, que toleramos ou
não.
Todas as camadas que são atravessadas permanecem para sempre, só que vão sendo
integradas como aspectos nas camadas seguintes, que as transcendem e abarcam. A
satisfação de uma camada atende à satisfação das camadas anteriores. O corpo, que
inicialmente era como se fosse o mundo para o bebé, passa depois para segundo plano e entra
na segunda camada como uma parte, instrumento ou meio, à semelhança do que ocorrerá
nas integrações seguintes.
A terceira camada começa a surgir quando o indivíduo abre-se ao círculo das relações
sociais, que é algo que transcende instintos corporais e gostos. Um bebé na segunda camada
ainda não faz muita distinção, em termos de conduta, entre pessoas, animais e coisas. Tudo
são objectos de desejo ou de sofrimento, não aparecendo ainda explicitamente como
entidades externas com uma existência independente. Esta nova camada implica perceber
que “os outros não são eu”, que também são centros geradores de acção, de significação, pelo
que não podemos submeter todos ao nosso desejo. A criança faz a descoberta formidável de
saber que não manda no mundo, por isso, tem de aprender a se relacionar com os outros,
aprender uma série de códigos e as “regras do jogo”. Ao mesmo tempo que há uma espécie de
queda da omnipotência, abre-se uma data de possibilidades até aí impensáveis. Um bebé
pequeno conhece apenas a linguagem da força, ele chora, grita, faz força, quebra o brinquedo
que não se comporta como ele quer, bate no irmãozinho. Mas quando passa para a terceira
camada, ele apercebe-se da existência de um imenso tecido de relações, de regras, de signos,
de todo o mundo da linguagem social, que não inclui apenas a linguagem verbal, diz também
respeito a códigos que se podem expressar em gestos ou em olhares.
A terceira camada abre um mundo muito mais vasto e complexo do que aquele que se
tinha revelado nas primeiras etapas, que lidavam com o corpo como portador de desejos e de
instintos e também com o mundo físico em torno. Das experiências acumuladas na terceira
camada vai se formar o círculo de onde desponta a quarta camada, que diz respeito ao
mundo dos sentimentos historicamente consolidados. Tem que haver algum sentido de
história pessoal, uma distinção entre passado, presente e futuro. Assim, as coisas passam a
ter uma significação temporal. A partir da própria história dos sucessos e fracassos
conseguimos delinear esperanças, objectivos, sonhos. É nesta camada que se faz uma
personalização do mundo emocional, que só tem sentido desde uma perspectiva temporal.
Formam-se aqui, pela primeira vez, sonhos e aspirações, o que imediatamente faz surgir a
consciência do abismo entre o imaginário e a situação real. Aparecem inúmeros signos,
aspirações e símbolos que não estão presentes fisicamente e que, de certa, só existem para
nós mas que não deixam de ser reais. Não é muito correcto dizer que são coisas que estão
“dentro” de nós porque estamos a fazer uma metáfora espacial, ao passo que as emoções e os
sentimentos não estão localizados como acontece com as sensações. As emoções espalham-se
por nós inteiros e parece mais que somos nós que estamos contidos nelas, por exemplo, os
estados de tristeza ou de medo abarcam-nos por inteiro. A busca de satisfação que existia nas
duas primeiras camadas volta aqui a ocorrer, mas agora numa modalidade mais subtil, é uma
satisfação emocional que chamamos de felicidade, a que se junta uma fuga à infelicidade.
Nesta camada forma-se uma constelação de símbolos que representarão para nós a
felicidade, o infortúnio, a alegria, a tristeza, etc. Trata-se de um período de intensa busca de
auto-satisfação, há uma busca incessante de sentir certas coisas e de não sentir outras, o que
leva a tentar encontrar coisas estimulantes, certos desportos, aventuras, festas, etc.
282
Mas toda esta busca de auto-satisfação torna-se repetitiva e em alguma altura fica
evidente que está destinada ao fracasso. Afinal, a felicidade é como o prazer, e este, como
dizia São Tomás de Aquino, é o resultado lateral e subjectivo de alguma coisa que deu certo.
O prazer nunca é objectivo, é um termo abstracto que designa uma constelação de
sentimentos que diferem muito de pessoa para pessoa. Em relação à felicidade é a mesma
coisa e na realidade nunca temos a certeza do que nos deixa felizes. Então, chega um
momento em que o indivíduo dá-se conta de que tem de estabilizar certos sentimentos e a
primeira coisa a fazer é sentir-se bem com ele mesmo. Na quarta camada, o jovem que busca
a felicidade está dependente de algo exterior, de algo que lhe acontece, de ter amigos, da
namorada gostar dele. O sujeito entra na quinta camada quando percebe que é o autor dos
seus próprios estados, que não tem de ser dependente do que os outros façam ou deixem de
fazer. Então, ele percebe a necessidade de tomar posse de si mesmo no sentido existencial
total, não no sentido corporal como na primeira camada. Quando tenta ser senhor do seu
destino, o indivíduo já não vê o “jogo” determinado por um critério de felicidade ou
infelicidade mas por outro de vitória ou derrota. Ele tem de vencer e provar para si mesmo
que é alguma coisa. Pode existir algum grau de exibicionismo nesta prova mas será
secundário. Aquilo que antes podia deprimi-lo vai, nesta fase, ser encarado como um desafio
a vencer. O que é natural no adolescente é tentar ter orgulho em si mesmo, e para isso as
camadas anteriores são conservadas mas agora como instrumentos para a conquista de
objectivos que as transcendem. Ele tem de integrar o mundo emocional da quarta camada
mas agora não tem valor em si e é “apenas” um factor de vitória ou derrota, porque se ele não
conseguir reprimir certos sentimentos e apoiar-se noutros não conseguirá lutar na afirmação
do seu próprio valor. O mesmo se pode dizer para a personalização que ele fez anteriormente
da linguagem ou das relações sociais.
Apenas quando chegamos a este estágio de maturidade nos damos conta realmente de
que as outras pessoas também têm os seus próprios objectivos e que ninguém vai ligar muito
para os nossos. Então, entramos numa outra esfera onde se torna fundamental o equilíbrio
283
de direitos e deveres. Já não basta o nosso encaixe numa engrenagem maior que nos rende
alguma coisa, é preciso encaixar o nosso projecto e a nossa organização pessoal numa
infinidade de relações com outras pessoas, cada uma delas com os seus objectivos. Só aqui,
na sétima camada, onde desenvolvemos o senso da cidadania, que implica saber que temos
direitos e deveres assim como os outros também têm. O senso dos direitos e deveres não nos
chega de forma abstracto, por algum código legal ou moral ou por uma filosofia política,
chega-nos na forma de um código de lealdade vigente no local onde nos encontramos. Em
geral, isto envolve alguma ambiguidade. Por exemplo, numa empresa o comportamento que
temos que ter para com as chefias – e que nos podem levar a promoções – entra
frequentemente em choque com a lealdade que devemos aos colegas, no sentido de manter
um certo padrão de relaxamento. É necessária bastante engenhosidade para conseguir
articular estas coisas, porque aquele que subiu na hierarquia de alguma forma afastou-se dos
colegas, mas depois vai chefiá-los e tem que ter um mínimo de lealdade da parte destes, é um
ponto de equilíbrio bastante difícil de alcançar e manter. A camada sete diz respeito em
ganhar um lugar na comunidade, em ser respeitado, amado se possível, seguindo os padrões
de justiça locais.
Estes padrões de justiça locais podem ser bastante condenáveis quando olhados de
uma perspectiva mais ampla. Mas estas considerações ainda não fazem parte da sétima
camada, que diz respeito à apreensão dos códigos e a saber praticá-los. Claro que o indivíduo
pode já ter preocupações a este nível, mas estando na sétima camada não vai poder colocar já
aqui o fulcro da sua atenção, até porque não tem ainda conhecimento suficiente dos
elementos para poder julga-los. Apenas o homem maduro, que já conquistou uma certa
posição social, pode examinar todo o percurso anterior criticamente. Ele vai tentar ver o que
fez da sua vida, se foi justo ou injusto, se realmente quer aquilo por que lutou, se foi bem-
sucedido ou não. Na quarta camada era também feito um auto-exame histórico, mas era na
óptica de delinear o que era para a felicidade e a infelicidade, agora, na oitava camada, trata-
se de ver o que fizemos pela nossa felicidade ou infelicidade. Nesta camada encaramo-nos
pela primeira vez como sujeitos dos nossos actos: só aqui somos verdadeiramente homens
maduros. Isto significa transcender o cidadão e ser capaz de se julgar a si mesmo.
É próprio do ser humano atravessar estas camadas mas muitas pessoas actualmente
ficaram bloqueadas na quarta camada, fugindo ao teste de averiguar as próprias capacidades
(camada cinco) e limitam-se a buscar protecção. Para quem está numa camada, os objectivos
das camadas seguintes são incompreensíveis, então, tudo é interpretado nos termos da
camada em que o sujeito se encontra. Por exemplo, quando se tenta explicar a uma criança
pequena as razões para não fazer determinada coisa, ela vai interpretar aquilo como uma
imposição de força, que a obriga ao tédio de ter de ficar ali quieta a ouvir. Nestas idades, as
crianças obedecem facilmente a ordens quando estas são simples e dadas com energia. Já
quando passa para a terceira camada, a criança fica de tal forma impressionada com as
possibilidades da linguagem (que está tentando conquistar) que nem vai perceber quando as
suas palavras magoam alguém.
aquilo que provoca felicidade ou infelicidade, e na quinta o certo é o que ajuda a vitória
subjectiva, e assim por diante. A oitava camada é de crise. A olha para trás e pode
arrepender-se dos pecados, pode perceber que falhou na busca do sentido da vida. Apenas na
oitava camada o indivíduo pode ter uma voz própria, mas muita gente está na camada quatro
e já quer falar em nome de Jesus, não percebendo estar a violar o mandamento de não
invocar o nome de Deus em vão. Naturalmente que são estes os mais propensos a acusar os
outros de heresia, porque partem do princípio que, à sua semelhança, todo o católico fala em
nome da Igreja. Outros vão falar em nome do país, em nome de uma classe social, em nome
dos oprimidos ou algo assim, mas é a mesma coisa. Na crise da oitava camada damo-nos
conta de que não tínhamos voz nenhuma, apenas repetíamos o que tínhamos ouvido para
conveniência dentro da regra do jogo.
Em geral, os seres adultos normais param na oitava camada. Mas alguns, ao rever a
própria vida e, constatando a existência de contradições, perplexidades, dificuldades,
desenvolvem uma nova camada, onde começam a perceber que estas coisas são componentes
estruturais da vida humana. Através da absorção da cultura o indivíduo percebe que os
problemas e dificuldades que passou são mais ou menos os mesmos por que toda a gente
passa, não só agora mas ao logo dos tempos. Então, o padrão de humanidade amplia-se para
ele formidavelmente através de um esforço de absorção da experiência humana universal. Ele
pode não encontrar solução para os seus dramas pessoais mas encontra uma nova razão de
viver. Apenas aqui, na nona camada, o indivíduo desenvolve uma personalidade intelectual,
em que tudo o que lhe acontece já não é visto como mero problema pessoal mas como
exemplo, símbolo ou sugestão de problemas enormemente mais vastos, para os quais pode
até não existir solução mas pensar neles é uma das grandes finalidades da vida humana.
Para apressar a subida nas camadas é necessário precipitar a crise da passagem. Mas
para isso temos de identificar a camada em que nos encontramos. Quais são os objectivos que
orientam os nossos esforços? Podemos ter muitos objectivos apontando para várias camadas
mas apenas uma é dominante, já que não podemos ocupar mais que uma camada. Podemos
não ter lucidez suficiente para saber qual é o objectivo dominante. Então, um critério de
reconhecimento da nossa camada é saber “onde nos dói”. O que nos ofende e magoa
profundamente? Uma criança pequena fica ofendida quando contrariarmos os seus instintos,
evidenciando estar na segunda camada. No outro extremo temos o padre Pio, que estava na
camada doze e ofendia-se apenas com aquilo que ofendia a Deus. Se estamos sempre
ressentidos com o mal que nos fizeram e não aceitamos a rejeição, isso é o sinal inequívoco
da camada quatro. Se não suportamos a derrota e queremos ser os primeiros em tudo, então,
isso é plena camada cinco, o que é natural nos 16 ou 17 anos, quando a pessoa ainda não está
realmente preparada para a vida em sociedade e participa nela através da mediação da
285
família. Na camada seis ficamos em xeque quando não temos a certeza de ter encontrado
uma função própria em alguma organização ou se a nossa eficiência é questionada. Na sétima
camada dói-nos se não conseguimos ter um papel social reconhecido.
[Aula 84]
Com o cristianismo apareceu pela primeira vez uma ideia vaga do percurso total da
humanidade, que por ter um fim pode ter uma forma. Mas isso não quer dizer que exista uma
unidade substantiva no conteúdo do processo histórico. Este compõe-se de inúmeras linhas
de desenvolvimento independentes. Não existem leis que determinem o processo histórico,
ou, existindo, elas são-nos inacessíveis. Contudo, a partir do séc. XVI o cristianismo começou
a perder a força que tinha para moldar o imaginário das pessoas, assim, o processo histórico
foi perdendo a sua referência à infinitude e à eternidade. Como consequência, este processo,
tornou-se cada vez mais numa ideia substantiva e materializada. Isto conduziu à ideia de que
é possível conhecer a figura substantiva do processo histórico. Hegel avançou com a ideia não
só de poder descrever o processo histórico mas também de o dominar. Na perspectiva bíblica
só Deus conhece o término deste processo e a sua forma substantiva, e o ser humano apenas
pode saber que esta forma existe.
Depois de Hegel, todo o pensador acha que deve ter uma filosofia da História e que
deve tentar encontrar os princípios explicativos do processo histórico. Uns acham que o “fio
da meada” é dado pelas constantes e pelos padrões de mudança do processo, e daí surgiram
coisas como a Lei dos Três Estados, de Comte, ou a Teoria da Luta de Classes, de Marx.
Apareceu também uma reacção céptica, que diz que é impossível o conhecimento do processo
histórico, enfatizando a sua componente de irracionalidade e de inabarcabilidade. Apesar dos
cépticos terem razão neste particular, o impulso para encontrar uma forma da História já se
tornou num dado cultural permanente. Qualquer político é hoje forçado a tomar decisões
levando em conta o impacto destas no quadro geral do processo histórico, caso contrário é
considerado um irresponsável, ou seja, todos são obrigados ao impossível. Se seguirmos
Marx, tentaremos explicar tudo por factores económicos, mas é fácil ver, por exemplo, que os
factores militares podem determinar os económicos mas não o contrário. Outros não ficam
muito convencidos das razões de Marx mas vão tentar encontrar alternativas dentro de uma
mesma forma de pensar.
Até agora, apenas algumas constantes parecem ter sido verificacadas, indicadas por
Ellsworth Huntington: a) O crescimento da população jamais parou de crescer; b) Os
contactos civilizacionais têm aumentado, fruto do crescimento populacional; c) Aumentam as
tentativas de organizar e dar forma ao conjunto. São apenas constantes aproximadas e vemos
que existem hiatos na aproximação dos núcleos civilizacionais, por exemplo. José Guilherme
Merchior, em A Natureza do Processo, sem tentar obter uma filosofia da História no sentido
total, diz que existem algumas constantes empiricamente observáveis: a) Aumento da
mobilidade humana, com a rapidez dos meios de transporte sempre crescente, ampliando as
288
secreto, embora certos indivíduos gostassem de o encarnar. Existe interferência secreta mas é
apenas mais um elemento do conjunto. Ao invés de procurarmos uma explicação para tudo,
devemos buscar o conhecimento, o saber, e admitir os factos que não compreendemos e,
assim ,abrirmo-nos para a realidade. “Não compreender” significa não ter domínio
intelectual sobre o processo, logo, não ter domínio prático, além de que todas as formas de
apreender a forma do processo são ilusórias. O verdadeiro trato do ser humano com a
realidade consiste na sua aceitação e não no no domínio intelectual das situações. α84
[Aula 85]
Ao mesmo tempo, a nossa experiência pessoal passa a ter uma ressonância histórico-
cultural na medida em que conseguimos encaixá-la numa linguagem preparada pela tradição,
e só realmente assim compreendemos a nossa própria experiência. Já dizia Aristóteles que
não existe compreensão do singular absoluto. Aquilo que é totalmente sui generis é
impossível de analogar e permanece incompreensível, sendo impossível raciocinar a respeito.
Em suma, a expressão da impressão é o primeiro requisito da compreensão.
Sem o senso da forma literária não podemos chegar a ter o senso filosófico. É o senso
da forma estética que dá o senso da forma lógica, e este permite saltar para o senso da
forma ontológica dos seres. Basta perdermos o sentido do ouvido literário para que todas as
faculdades superiores da inteligência sejam afectadas. Além disso, apenas com uma longa
290
prática das letras humanas podemos um dia perceber o que há de específico nas letras
divinas. Mas se o indivíduo acha que pode abandonar a literatura humana, por ser coisa
mundana, e ficar apenas com a Bíblia, ele não conseguirá obter o que esta realmente tem
para lhe dar. α85
«Em todo o caso, será preciso constatar que, em muito pouco tempo, o processo de
institucionalização da filosofia iniciado pela academia platónica foi estendendo-se em
ritmo constante. Tudo sucedeu como se o próprio poder político houvesse atendido
à irónica proposta de Sócrates. Em Alexandria, em Roma, no Império do Oriente (sem
prejuízo do parênteses aberto por Justiniano) e, desde logo, no âmbito da Igreja
Católica ou do Islão, a filosofia foi institucionalizando-se em formas cada vez mais
rígidas, como filosofia escolástica. Dito de outro modo: chegou-se à situação de uma
‘filosofia administrada’ pelas instituições privadas, pelas instituições públicas ou
pelas eclesiásticas. Diferentemente da ‘filosofia espontânea’, e, por assim dizer,
arbitrária ou assistemática, forma própria do filosofar mundano (a partir da política,
da ciência, da medicina, do exercício da advocacia etc.) a filosofia foi ‘submetida’ a
uma organização sistemática, a uma ‘programação’, a uma ratio estudiorum, que não
teríamos tampouco porque desqualificar a priori, desde o ponto de vista filosófico.
Pelo contrário, a filosofia administrada, como resultado de uma dialética própria,
terá contribuído decisivamente para que se alcançasse o rigor e a precisão nas
análises das ideias que a História trouxe até nós, e que são inalcançáveis em sua vida
mundana. Mas, simultaneamente, a tendência da filosofia administrada a isolar-se da
filosofia mundana do presente (que é sempre a sua fonte) e a tendência a apegar-se
aos interesses da ‘Administração’, que a incorporou a seus fins próprios, orientará
sua evolução em direção a formas anquilosadas e à converterá em veículo
meramente ideológico (ainda quando tampouco se reduza de modo algum a esse
serviço). Não se pode esquecer que essa série de grandes filósofos que são
considerados atualmente da filosofia moderna (Francis Bacon, Descartes, Spinoza,
Leibniz etc.) actuaram à margem da filosofia administrada, concretamente à margem
da universidade. Nem Bacon, nem Descartes, nem Spinoza, nem Leibniz foram
‘filósofos universitários».
interesses próprios e é a partir da disputa desta nova força política que se inicia a
institucionalização das universidades.
Teve também aqui início o problema da ordem dos estudos (ratio estudiorum), fruto
de uma longa experiência prática, que determinou a divisão entre disciplinas, a sequência dos
estudos, a sequência de exigências e provas para testar conhecimentos, desde os exercícios
escolares às “questões disputadas” (o professor que, no topo da carreira, respondia perante a
corporação a todas as perguntas que lhe fizessem). Talvez Bueno exagere ao dizer que o
fenómeno da filosofia administrada tenha sido um grande avanço porque teria favorecido a
formação da ratio estudiorum, mas sem dúvida que a filosofia escolástica (o primeiro
exemplo de filosofia administrada) foi uma grande contribuição para o esclarecimento crítico
em filosofia. Aristóteles lançou os princípios da técnica filosófica, mas como apenas nos
sobraram as notas para aula, só na escolástica esta aparece desenvolvida.
Mas apenas no séc. XIII a escolástica mostrou uma faceta criadora. À medida que as
universidades se integravam na administração (da Igreja ou dos governos locais), os letrados
passaram a ser eclesiásticos e burocratas privilegiando a necessidade prática, o que provocou
um recuo do senso crítico e uma condensação de todo o ensino em fórmulas de fácil
transmissão, que naturalmente iriam perder todo o sentido com o tempo. A certa altura, os
novos alunos apenas recebiam doutrinas prontas e não faziam mais ideia do trabalho crítico
necessário para chegar até ali, apenas se lhes exigia que repetissem as coisas numa fórmula
aceitável pela corporação. Descartes recebeu este tipo de ensino no colégio de La Flèche e
tudo lhe parecia vazio e que ninguém sabia o que estava dizendo. A escolástica tinha mantido
o seu vigor apenas na Península Ibérica (até ao séc. XVIII), mas aqui tinha sido perdida a
ligação com outros países (declínio político e económico constante da península após a
derrota da “armada invencível”), que iam aderindo ao cartesianismo, ao spinozismo e assim
por diante. As novas filosofias traziam muitos assuntos novos mas haviam perdido o
esclarecimento crítico, com a excepção de Leibniz.
Na Áustria também existiu algo como uma filosofia administrada entre o fim do séc.
XIX e a Segunda Guerra Mundial. Mas apesar das universidades estarem sobre a proteção do
Estado e os professores serem seus funcionários, este Estado interferia pouco no conteúdo do
que estava sendo produzido. Foi um período fecundo e que influenciou todo o mundo de
língua alemã.
por diante, que tendo origem externa ao marxismo ainda assim incorporam-se perfeitamente
ao espírito revolucionário, embora seja um caos doutrinal. Isto correspondeu a uma mudança
de estratégia do movimento comunista internacional que, pelo menos a partir dos anos 80 do
séc. XX, desistiu da ideia da unidade doutrinal e apostou num caos que fosse criativo e
permanentemente explosivo. A mudança deu-se através de vários processos de absorção de
filosofia mundana no establishment, dissolvendo assim os critérios de esclarecimento crítico
dos conceitos, passando a vigorar o caos total e o amadorismo obrigatório. A impossibilidade
do esclarecimento crítico atingiu um pico com o desconstrucionismo, que aboliu as
referências à realidade e criou a omnipotência do discurso. O processo atingiu o auge com
Ernesto Laclau e Chantal Mouffe no livro Hegemonia e Estratégia Socialista [229], onde
afirmam que o discurso revolucionário cria retroactivamente as classes e os interesses que vai
representar, ou seja, é um processo hipnótico de criação de impressões colectivas.
A filosofia administrada criou o ratio estudiorum mas hoje ela já não tem mais nada
disso. Para absorver a ordem dos estudos é preciso absorver o legado de outras épocas,
quando a filosofia administrada ainda ajudava efectivamente a aprimorar a técnica filosófica,
como aconteceu com os escolásticos (ver Os Intelectuais na Idade Média, de Jacques le Goff,
os volumes do período medieval da História da Educação, de Ruy Afonso da Costa Nunes e
Literatura Europeia e Idade Média Latina, de Ernest Robert Curtius), com o idealismo
alemão, com a escola fenomenológica e, depois, em pequenos círculos inspirados por
pensadores como Bernard Lonergan, Xavier Zubiri ou Eric Voegelin. Há ainda que contar
com a oposição ou com o ruído de uma outra ratio estudiorum, que é aquelas ligada às
ciências e sustentada pelo poder económico e pela indústria. Ela reflecte a ideia absurda de
que apenas podemos conhecer as aparências fenoménicas medidas com exactidão, mas é
difícil vencer esta ideia porque expressa os interesses mais poderosos do momento. Quando a
levamos demasiado a sério, toda a filosofia antiga e medieval torna-se incompreensível,
perdemos a perspectiva histórica e é como se tudo começa-se com Descartes ou Francis
Bacon a partir do nada.
Sempre teremos duas tendências opostas, por um lado, a tendência organizadora, por
outro lado, a tentativa de manter ou conservar a fecundidade da inteligência mediante a
abertura aos factos do mundo e a tudo o que não compreendemos. Não temos que desistir de
nenhuma das coisas. Se nos fechamos num sistema explicativo universal, vamos perder a
capacidade de espanto, que é a própria capacidade filosófica. O próprio curso das coisas
introduz novos elementos e, de repente, todas as nossas explicações caem por terra. O que há
a fazer é continuar o esforço de organização mas permeado pela abertura em relação ao novo
e ao incompreensível. α85
[Aula 86]
Nada disto existia antes do séc. XVIII, nenhum governante teve antes a ideia de remodelar
toda a vida social, desde as suas bases psicológicas aos sentimentos íntimos e das reacções
espontâneas das pessoas. Mas mesmo no séc. XIX a ideia é ainda bastante incipiente e a
acção social dos governantes incidia sobretudo sobre uma elite.
Para que a engenharia social se tenha tornado no factor que tem a maior presença nas
sociedades modernas foi necessária a colaboração de inúmeros change agents, normalmente
traduzidos como “agentes de transformação”, mais raramente como “agentes de mudança”.
Existem inúmeros manuais para treinamento destes agentes, como o The Change Agents
Guide, de Ronald Havelock. O primeiro agente de transformação é o indivíduo ou grupo que
criou um projecto de engenharia social e que dá origem aos primeiros círculos de agentes. Os
agentes no terreno, que actuam directamente sobre os grupos a ser afectados, vão ser os mais
afastados do topo da pirâmide, estando espalhados por uma multidão de entidades. Eles
podem chegar aos mais diversos grupos declarando abertamente o que pretendem fazer ou,
então, agir de forma infiltrada através de acções de dinâmica de grupo, treinamento
profissional, psicoterapia e assim por diante. Para além dos agentes individuais, existem os
295
Hoje assistimos a milhões de pessoas que não estão minimamente convictas do que
estão fazendo mas que agem como tal: querem acreditar que estão convictas para manter a
saúde psicológica. A pessoa está agindo contra as suas convicções e hábitos, o que cria um
estado de dissonância cognitiva, então, tenta pressionar outros a aderir ao movimento e
critica quem não o faz. Quando estas pessoas são chamadas a dar uma justificação das suas
“convicções”, elas não conseguem refazer a história de como o processo se deu mas
conseguem automaticamente inventar todo o tipo de argumentos e justificações que lhes
permitem não reconhecer o estado de divisão e de dilema em que se encontram. Não existe
dilema quando existe consciência de se estar na confusão. A confusão na esfera dos valores
vai aparecer quando julgamos casos particulares usando valores que desmentem a ordem
total de valores em que nos fundamentamos para fazer aqueles julgamentos. Por exemplo,
vemos que os partidários do casamento gay – casamento é uma relação privilegiada entre
duas pessoas – são os mesmos que promovem as passeatas gay, onde existe a apologia
explicita do sexo grupal. Então, o homossexual fica automaticamente dividido, por um lado,
aposta na fidelidade monogâmica mas, ao mesmo tempo, quer o sexo livre.
autoridade externa. Uma das consequências disto foi que todos os sectores da existência
passaram a ter a interferência dos critérios de racionalidade económica. Até ao início do séc.
XIX a sociedade era muito estratificada, pelo que as pessoas ficavam conformadas com o que
tinham e orientavam-se sobretudo pela moral religiosa. Quando surgiu a promessa de
ascensão social para todos, o cálculo económico invadiu tudo e entrou em oposição aos
sentimentos humanos elementares, às normas da moral tradicional, à autenticidade das
relações pessoais e assim por diante. Sem a racionalidade económica é praticamente
impossível sobreviver hoje em dia, mas como a antiga moral não a tinha em conta, criou-se
um novo tipo de moralidade adaptado aos novos tempos. A antiga moral religiosa pode ainda
funcionar como um factor atenuante mas, ao mesmo tempo, ela passou a ser alvo de crítica.
Por exemplo, os casais com muitos filhos são facilmente criticados por gerarem muitas
necessidades em vez de recursos. Ter muitos filhos podia ser adequado a um meio rural mas
num meio urbano torna-se problemático, daí surgirem campanhas para controlo de
natalidade, como aquelas lançadas pela fundação Rockefeller. Ironicamente, estas
campanhas que visavam sobretudo o terceiro mundo não tiveram muito efeito nessas
paragens, dado que não há nestes locais muito acesso aos meios de comunicação social,
então, acabaram por se impor às classes média e alta ocidentais. Isto originou um défice de
mão-de-obra que foi colmatado pela imigração, o que provocou, por sua vez, um problema de
ocupação cultural em vários países.
obrigada a defrontar questões acima da sua capacidade racional, vai busca num símbolo
exterior algo que a tranquilize e a defenda, normalmente o pai ou alguém que represente a
autoridade. Sempre que não conseguimos articular racionalmente as situações com que nos
deparamos, a tentação é a de nos apegarmos a uma autoridade externa que simbolize a razão,
que não vai ser sempre o pai, passa depois a ser a universidade, o Estado, a comunicação
social, a Igreja, etc. Quase nunca é um apego fundamentado, por exemplo, o sujeito acredita
totalmente na Teoria da Evolução porque se apegou à autoridade da ciência, mas ele não
consegue dar nenhum argumento substantivo e nem defender a teoria contra alguma
objecção mais séria, mas também não se preocupa com isso porque já transferiu o centro
decisório do pensamento racional para uma entidade externa que o simbolize.
Qualquer um de nós que se queira tornar num intelectual sério tem de abdicar do
apego simbólico a uma autoridade. Sempre que estamos desorientados só temos de confessar
o nosso estado de facto e dizer “não sei”. Só estamos na realidade se admitirmos um
coeficiente de ignorância muito grande. As pessoas falam boca para fora o dito socrático “só
sei que nada sei”, mas na prática agem como se soubessem tudo: Isto reflecte a crença de que
o Estado, o Partido, a Igreja (ou qualquer outra entidade que simbolize a razão para o
indivíduo) sabe tudo. Temos que desenvolver a capacidade de viver na consciência de
ignorância, não apenas como uma proclamação genérica mas como uma atitude perante as
questões de facto, admitindo que não sabemos a resposta e que, muito provavelmente, as
supostas autoridades também não têm essa resposta. Existem muitas perguntas sem
resposta. Vivemos essencialmente num círculo de ignorância e apenas podemos lançar luz
sobre umas poucas questões, por maior que seja o nosso horizonte de estudos. Apenas com a
admissão do estado de ignorância podemos ter a percepção clara da diferença entre certeza e
dúvida.
factores envolvidos (esperanças, valores, temores, regras morais, linguagem). Assim, no final
a acção humana pode ir contra a racionalidade económica. Então, a situação económica
nunca é, sem si, causa de nada. Mas se acreditarmos nisto vamos achar razoáveis ideias como
a de que o banditismo é causado pela pobreza. Se assim fosse, todos os pobres seriam
automaticamente criminosos, mas sabemos que a maioria nunca chega a sê-lo.
As pessoas acreditam piamente que a economia é uma chave explicativa de quase tudo
– até para justificar o aborto –, quando existem inúmeras evidências a desmentir isto. Elas
têm estas crenças porque foram alvo de projectos de engenharia social, que fazem com que
hoje se passe de uma discussão moral a uma discussão económica com toda a naturalidade. O
resultado de tudo isto é aquilo que Pitirim Sorokin chamou de desmoralização da sociedade,
que é a eliminação da moral como um factor que presidia à conduta humana e à
representação da realidade. Considerações de ordem moral são hoje tidas como
irresponsáveis quando chocam com supostas vantagens económicas e sociais. Tal já é comum
na discussão do aborto, assim como na legitimização do narcotráfico. O princípio que está
aqui activo (primado da economia), apesar de encoberto, permitirá defender o infanticídio ou
mesmo o crime como factor de controlo populacional. Mas se os argumentos de ordem moral
perderam o lugar, o sentimento moral é ainda usado por aqueles que querem sobrepor a
economia à moral. Há um apelo ao sentimento moral daqueles que defendem, por exemplo,
as vantagens económicas e sociais do aborto sobre a vida dos fetos. Isto reflecte o que foi dito
antes sobre a confusão na esfera dos valores, com o uso de argumentos que desmentem os
próprios princípios que os fundamentam. A engenharia social fez com que se tornasse
obrigatório raciocinar contra a própria racionalidade.
Benedetto Croce dizia que havia quatro grandes dimensões do espírito humano: a
ética, a estética, a economia e a lógica. Nestes termos, vemos que tem havido uma
progressiva retirada das esferas da ética e da lógica para uma concentração na esfera
económica, aqui vista como um domínio relacionado com todo o tipo de raciocínio de
utilidade prática. É uma transformação facilitada pelos avanços da ciência e da técnica, o que
introduz uma nuance fundamental. Como estas versam apenas sobre a experiência humana
terrestre e sensível, tudo o resto é relegado para o domínio da crença, da afeição e da
imaginação. Ninguém nega o direito de imaginar a existência de Deus, do céu e do inferno, de
anjos e demónios, conquanto aquele que o fazem se contentem em admitir que tudo isto seja
apenas imaginação e não mais elementos da discussão pública baseada na razão. Ou seja, há
um apelo à razão justamente no momento em que se faz tudo para demolir os seus
fundamentos, e a consequência é que a razão tornou-se apenas num símbolo de prestígio e de
autoridade social. Isto é um óbvio convite à fraude científica, algo que se generalizou nas
últimas décadas. A classe científica perdeu muita credibilidade mas as pessoas continuam a
299
acreditar na ciência como ideal cognitivo. Não sabemos por quanto tempo se manterá esta
situação porque é um se trata de um ideal sem representação terrestre.
[Aula 87]
267.O processo educacional como conquista da transparência
A educação faz parte de um processo mais amplo, que é o da conquista da
maturidade. Tanto a passagem da infância para a adolescência como a passagem desta para a
maturidade são marcadas, em termos de evolução biológica, por uma conquista de certas
possibilidades físicas. O conteúdo interno do processo pode ser explicado de muitas formas e
veremos uma extraída do filósofo Luís Cencilho. Ele explica o processo de desenvolvimento
humano como uma espécie de ascensão da lucidez, em que os indivíduos assumem
progressivamente, de modo cada vez mais consciente e lúcido, o conhecimento e a posse das
suas próprias dimensões, não apenas em relação às suas possibilidades mas também a
respeito das próprias incapacidades e deficiências. Trata-se de uma posse mental de si
mesmo, de uma obtenção cada vez mais clara e lúcida de quem somos, do que podemos ou
não fazer, das nossas limitações, e assim por diante. Uma criança tem pouco controlo da sua
vida, dado que nem conhece os seus verdadeiros impulsos e necessita de alguma experiência
para distinguir um apelo momentâneo de uma necessidade estrutural.
consciência são a luz lançada sobre tudo isto visando passar da obscuridade inicial para
alguma transparência em relação a nós mesmos.
Todo o adolescente teve algum dia a impressão de ser louco. Ele vê-se como um caso
sui generis, dado lhe parecer que aquilo que vivencia dentro de si é diferente do que acontece
com todas as outras pessoas. Na realidade, trata-se de um problema de ignorância, de falta de
linguagem, de símbolos, de modelos, então, ele imagina que aquelas coisas apenas se passam
com ele. Sendo a situação muito difícil, a tentação é buscar experiências opostas e que o
façam sentir-se igual aos outros, assim, também irá se sentir integrado no grupo, aceite,
amado. Na tentativa de obter uma normalidade, tal como entendida naquele momento, esta
busca de integração grupal criará uma cisão entre o seu interior mais profundo e a imagem
exterior. Ou seja, o esforço para se sentir normal é uma das coisas mais neurotizantes que
existem. Negamos o que há de mais próprio em nós e tentamos imitar aquilo que achamos
que os outros são, embora eles possam estar tão perdidos como nós.
Não existe normalidade colectiva, isto é, não podemos medir a nossa normalidade
pelo grau de adaptação a uma conduta padronizada externa. Se o fizermos, corremos o risco
de abandonarmos o processo de desenvolvimento interno e entrarmos num processo de
adaptação, que encobre a nossa realidade profunda. Assim, saímos divididos e ignorantes de
nós mesmos (o tipo de pessoa que São Pedro disse que iria aparecer no fim dos tempos).
Sempre temos alguma necessidade de adaptação social, mas esta coloca-se ao nível de
cada grupo. Já a conquista da auto-transparência é uma necessidade universal que passa por
cima de todos os grupos e das suas vicissitudes. Na realidade, só compreendemos o processo
adaptativo e tornamo-lo eficiente quando estamos centrados no processo real de
desenvolvimento da personalidade. Esta é o centro e os papéis sociais andam em volta. O
centramento na personalidade implica ter por base elementos mais constantes, estruturais e
decisivos, que depois permitem fazer adaptações bem-sucedidas aos diferentes meios onde
301
temos que viver e a respeito do quais temos pouco controlo e, por vezes, nem possibilidades
de escolha.
Existe uma certa universalidade nos elementos que compõem a alma humana. Todos
temos mais ou menos os mesmos instintos, desejos, temores, etc. São elementos de uma
riqueza quase inabarcável. A capacidade de apreensão intelectual que temos sobre eles é
bastante limitada. Podemos nem sequer saber o que esses elementos têm de universal e o que
têm singular. Esta categorização depende de símbolos e modelos que recebemos da cultura,
mas a educação actual não leva nada disto em conta. O sujeito aprende na escola matemática,
geografia, História, etc., mas não aprende a lidar consigo mesmo. Na realidade, na sociedade
actual o indivíduo só tem oportunidade de reflectir sobre ele mesmo num grupo de
psicoterapia (se este funcionar com a intenção de realmente ajudar os outros), onde as
pessoas aprendem a expressar as tensões e contradições que têm dentro si e, assim, podem
manipular estes elementos ou integra-los de alguma forma. Mas o sujeito vai entrar num
destes grupos quando a sua alma já está doente, pelo que não há um aprendizado normal do
desenvolvimento humano, ou seja, não existe atenção para a própria alma, apenas para as
suas doenças. Contudo, a própria paralisação do desenvolvimento da alma já é um elemento
mórbido, mas tal é aceite socialmente porque todos os que pertencem ao mesmo grupo têm o
mesmo tipo de deformidade mental. No fundo, todos desconfiam que os outros são loucos e
duvidam, ao menos em algum momento, da sua própria sanidade mental.
A linguagem serve para expressar os estados da nossa alma, que são fugazes e não se
repetem segundo a nossa vontade. Mediante analogia, a partir da expressão de um estado
vamos descobrir outros mais ricos e complexos. Não se trata de ter um diccionário de
situações humanas, porque não existe um padrão uniforme da conduta humana. Procura-se
uma relação analógica, perceber as semelhanças e as diferenças entre os mundos interiores. A
chave da convivência humana está em nos conhecermos a nós mesmos através das imagens
de outras pessoas, assim como conhecer as outras pessoas mediante a imagem que temos de
nós: é o conhecimento da alma a partir do conhecimento das outras almas. Praticamente não
existe limite para o que podemos descobrir, assim como não há limite para o que
necessitamos de saber para descobrirmos certas coisas.
A maturidade não devia ser associada à normalidade – que é apenas uma coisa
externa – mas à sanidade, precisamente aquilo que é marcado pela transparência e pela
posse que a pessoa tem de si mesma. Isto implica sabermos as nossas limitações, fraquezas e
até identificarmos as situações sobre as quais não temos qualquer domínio. Numa operação
ou numa situação traumática perdemos todo o auto-controlo, que depois tem de ser
reconstruído. Nesse momento, pode parecer que não temos qualquer auto-confiança,
achamos que não voltaremos a conseguir fazer o que fazíamos antes. Contudo, a perda de
confiança é um resultado indirecto, porque o que realmente perdemos foi a transparência, ou
seja, evidenciou-se um elemento novo em nós (devido a uma alteração corporal ou um evento
traumático, por exemplo), e ficamos perturbados por saber da sua existência, o que indica
que em nós existem factores obscuros determinando a nossa conduta. Nas situações em que
nos decepcionamos profundamente connosco mesmos, o problema não é o sentimento
envolvido mas a perda de transparência, ou seja, o termos ficado opacos e estranhos a nós
mesmos.
O impulso para auto-transparência pode surgir dentro de nós ou pode já ser algo
presente na cultura em circulação. Mas hoje não existem mais intelectuais, como nos anos 50
do séc. XX no Brasil, aqueles homens com uma verdadeira transparência, restam apenas
profissões e papéis sociais que nominalmente assinalam posições de cultura, embora não
passando de símbolos coisificados. O verdadeiro homem de cultura é um construtor de
pontes, como dizia Lipot Szondi; ele constrói pontes entre os seus impulsos antagónicos,
entre a luz e as trevas. Ele elabora gradualmente as suas trevas para introduzir nelas alguma
luminosidade, no sentido em que Santo Agostinho dizia que os vícios são feitos da mesma
matéria que as virtudes. Claro que é muito mais fácil fazer de conta que não existem trevas
em nós, apenas nos outros. Mas isto é fugir ao desafio da vida para tentar adquirir um papel
social respeitável. O desafio que realmente se nos coloca é o de trabalhar o mal e a confusão
que existem em nós de forma a adquirirmos a transparência e o domínio mental sobre estas
coisas. Para a nossa luz começar a brilhar não é necessário esconder os pontos obscuros, até
porque não existe um contraste absoluto entre luz e trevas, trata-se sempre de luminosidade
e obscuridade relativas. O importante é que, no conjunto geral, a luminosidade predomine,
ainda que por curta margem. Ainda mais relevante não é aquilo que atingimos mas o nunca
abandonarmos a luta pela transparência. Devemos buscar 24 horas por dia elementos de
cultura com este fim e sem deixar que qualquer outro interesse se sobreponha. Devemos ler
tudo o que existe de melhor nos domínios de conhecimento que nos são acessíveis e tentar
que aquelas coisas se integrem em nós. Fazendo isto, ao fim de algum tempo abrem-se
possibilidades de diálogo e de comunicação que nunca tínhamos imaginado. O nível de
compreensão mútua aumentará de forma vertiginosa.
connosco e, por isso, não a conhecemos; b) depois temos as paixões, que são os impulsos que
se traduzem com mais frequência na nossa conduta (a teoria szondiana das pulsões refere-se
a esta segunda camada, que diz que existem oito impulsos básicos, e estes podem combinar-
se para formar uma enorme variedade de figuras); c) em terceiro lugar temos o ambiente
social, que se divide no ambiente imediato (família, amigos), comunitário (escola, local de
trabalho) e o societário (Estado, leis, economia); d) em quarto lugar, temos o ambiente
cultural e intelectual; e) por último, temos o espírito, que é quem faz as escolhas, em última
análise.
Muita gente acha que pode saltar directamente para esta última camada, sem terem
qualquer noção dos impulsos recebidos do ambiente e que se integram na pessoa na forna de
juízos, valores ou reacções. Então, são pessoas que não se conhecem mas que têm a pretensão
de se confessarem e, para tal, apegam-se a uma lista padronizada de pecados mas sem
passarem pelo exame de consciência, que na realidade elas nem têm condição para fazer
porque lhes faltam os elementos de cultura para narrar para elas mesmas o que se passa no
interior de cada uma delas. São pessoas sem a transparência necessária para fazer uma
confissão, mas acham que podem falar directamente com Deus, embora não consigam nem
mesmo ler um livro. Assim, é como se achassem que Deus deve valorizar a preguiça moral e
intelectual. Deus vai ajudar-nos quando chegarmos ao limite das nossas possibilidades
humanas.
Não podemos nos desculpar por estarmos limitados a uma língua, porque ultrapassar
a limitação da língua é um dos requisitos da vida intelectual. Se tivermos apenas uma língua
nem compreendemos essa língua. Uma língua é um condensado de experiências, e há muita
coisa que não foi condensada na nossa língua mas foi noutra. É também relevante perceber
que há coisas que não se dizem em certas línguas, o que indica certos traços de
personalidade. Podemos mesmo dizer que aprender uma língua estrangeira é como aprender
a ser como outra pessoa, é abrir uma nova dimensão na nossa personalidade. Mas devemos
aprender outras línguas tendo logo de início a intenção de as apreender como instrumentos
de alta cultura, destinadas a ler a grande literatura e ao aprofundamento da alma.
Eventualmente, isso pode nem nos qualificar para uma conversa banal na nova língua, mas o
objectivo não é turístico. Contudo, uma língua estrangeira deve ser aprendida com uma certa
estranheza, não é para nos amoldarmos a ela naturalmente como se fosse a nossa língua
305
nativa. Devemos conservar o sentido da diferença entra a nossa língua e a nova, assim,
estaremos também aprendendo uma terceira língua composta daquilo que não dá para dizer
em nenhuma das duas. α87
[Aula 88]
Os erros de ortografia vão também originar erros de síntese. O sujeito que escreve um
trabalho bem estruturado em termos lógicos mas cheio de erros gramaticais, ele realmente
não completou o trabalho, mostrou apenas que o pode fazer. Os produtos da cultura superior
caracterizam-se sobretudo pela forma acabada. Essa forma só pode se incorporar na cultura
porque está estabilizada. O conteúdo é apenas uma intenção que está indo em direcção a uma
forma mas que ainda não chegou lá. O que sobra das grandes obras da cultura é a forma,
porque o conteúdo é mais ou menos comum a toda a gente. Shakespeare escreveu sobre
coisas que se agitam na alma de toda a gente, a diferença é que ele apreendeu aquilo como
uma forma e conseguiu fazer o seu registo de algum modo.
A diferença do nível de consciência das pessoas não está na sensitividade, que é mais
ou menos igual em toda a gente, mas na capacidade de retenção, que é aquilo que possibilita
criar uma forma. O único mérito literário que existe é o de conseguir dizer o que os outros
também estão percebendo, embora sem conseguir expressar. Eles podem pensar nas coisas
por uma fracção de segundo mas depois tudo se esvai. Então, até é errado falar de “criação
literária”, porque se trata sobretudo de um processo de retenção e de registo. É uma questão
de fixação da atenção mas que também tem uma base fónica, porque sem a distinção e a
retenção da distinção entre milhares de fonemas também não teremos, depois, as distinções
entre as várias percepções. Da mesma forma, alguém que percebe as distinções entre cores
306
não se torna automaticamente num pintor, mas este também não o será se não conseguir
fazer estas distinções.
Na poesia temos uma música de sons, em cima da qual constrói-se uma outra música
de significados, que é inaudível e invisível, tendo as duas correspondência entre si. O sistema
de fonemas, que em si mesmo não tem sentido algum, quando combinado cria uma música,
que não tinha de ter algo a ver com o significado do que é dito, mas na poesia tem, ou seja,
existe na poesia uma ponte entre o aspecto puramente material da língua e a camada de
significações.
inteligível aos olhos do governante. Contudo, a classificação era feita em função dos
interesses práticos e administrativos do Estado, não levando as estatísticas em conta com
aquilo que era relevante para a sociedade. Por exemplo, uma árvore passava apenas a ser
vista como combustível ou como material de construção, quando tinha na realidade inúmeras
outras utilizações. Mas os dados considerados relevantes não serviam apenas de informação,
eles davam origem a decisões que iriam provocar outras realidades que modificaram a
estrutura social real. No nosso exemplo, as árvores passaram a ser plantas “industrialmente”,
todas do mesmo tipo e alinhadas, modificando brutalmente o sistema ecológico inteiro.
Então, começou a criar-se uma segunda realidade, aquela do mundo ideal concebido pela
administração estatal e que se sobrepunha parcialmente à primeira.
O caos social apenas veio a adensar-se ainda mais e ficar ainda menos inteligível. Mas
a vontade organizadora do Estado moderno não pretendia tanto organizar a sociedade
existente mas construir certos símbolos visíveis de ordem, exemplificados nos jardins de
Versailles com a sua geometria, ou pelas cidades desenhas em simetria. Mas a simetria nada
tem a ver com a organização da sociedade. Os conjuntos habitacionais criados pela Bauhaus
são ideais para traficantes, viciados, prostitutas. A promiscuidade é ali estimulada pelo facto
de parte dos serviços serem colectivos, assim como pela fraca qualidade de construção, em
que numa habitação se houve o que fazem os vizinhos. O geometrismo e o simetrismo das
construções tornaram-se símbolos substitutivos da ordem, embora na realidade só gerem o
caos.
Então, diz Scott que a primeira condição para os desastres de planeamento é uma
administração central racionalizada, embora esta condição também possibilite alguns
sucessos. Em segundo lugar, é preciso acrescentar uma ideologia modernista. A terceira
condição é a existência de um Estado autoritário com força para impor estas modificações, já
que numa democracia vão existir discussões infindáveis e a coisa não vai por diante. E uma
quarta condição diz que a sociedade tem de estar debilitada cultural e psicologicamente para
não reagir ao planeamento estatal.
Contudo, a ideia da engenharia social no séc. XX criou a crença de que alguns grupos
humanos estão habilitados para reformar a sociedade inteira sem ter de consultar esta. A
própria ideia da sociedade concreta já se desvaneceu, substituída por um conjunto de
conceitos classificatórios usados pela administração estatal. A sociedade real tornou-se
inapreensível e resta apenas aquilo que está no recenseamento e que pode ser quantificado. A
ideia de planeamento central vem com a ideia de simplificar e unificar. Podemos fazer isto
com critérios racionais mas a sociedade ainda continuará diversificada e confusa, pelo que a
introdução do planeamento racional e organizado ainda vai gerar mais confusão; ou seja, os
planos de engenharia social vão interferir na diversidade local e na discussão democrática.
Mas também pode ocorrer o oposto, e serem as discussões locais democráticas a inviabilizar
os planos centrais.
James Scott diz, como vimos, que uma das condições para o planeamento ruinoso é a
existência de uma ideologia dominante de tipo alto-modernista, nas suas palavras,
significando uma ideologia utópica que acredite na possibilidade da criação mais perfeita a
partir da acção política organizada. É uma ideologia que tenta se legitimar com o discurso
científico, embora Scott diga que nada tenha a ver com a ciência. Mas aqui ele já está a opinar
sobre um campo que não domina.
308
É característico de uma ciência que esta modele o seu objecto a partir dos métodos
que utiliza e não segundo a natureza dos mesmos, que é compatível com uma multiplicidade
de pontos de vista e que não se podem deduzir uns dos outros. Nenhuma ciência é capaz de
articular todos os aspectos do objecto, então, vai apenas optar por um deles. Temos, assim,
na ciência a mesma noção simplificadora e unificadora que se encontramos na administração
central. A ciência moderna excluiu o aspecto essencialista ou substancialista da realidade e
concentrou-se nos aspectos matemáticos. Desta forma, a ciência tornou os objectos alvo
eminentemente da acção tecnológica, não interessando mais o que eles são. Podemos
concluir que a ideia do planeamento estatal centralizado, racionalizado e organizado já estava
embutida na concepção da ciência moderna. Na ciência e no planeamento estatal os enfoques
são feitos à luz do interesse que o ser humano tem em transformar os objectos. Cientistas e
planeadores nunca se perguntam sobre o que a coisa é, quid? Trata-se de uma exclusão do
conhecimento, de facto.
Em ciência podemos perguntar quase tudo a respeito de um objecto, menos o que ele
é. Isso cria um abismo entre ciência e ontologia, então, a ciência moderna não ajudou no
avanço do conhecimento da realidades mas criou outras realidades, o que seria um resultado
expectável dado que as ciências não estudam objectos de realidade mas aspectos que já são
uma segunda camada. Nem mesmo as faculdades de filosofia se questionam mais sobre o que
as coisas são, porque também foram minadas pela ideologia científica e apenas tentam
tornar-se servidoras das ciências, como acontece com a concepção de Bertrand Russel da
filosofia como uma “enciclopédia das ciências”. O fracasso deste projecto levou à
transformação, no mundo anglo-saxónico, da filosofia em pura análise do discurso científico,
ou seja, uma mera redução à lógica.
Assistimos hoje a uma profunda e vasta intervenção do Estado com base no conjunto
das ciências. Como resultado, já todos vivermos numa segunda realidade criada por esta
intervenção e não conseguimos mais imaginar com eram as coisas antes, vivemos numa
espécie de “alienação obrigatória” em relação ao passado. Então, torna-se cada vez mais
difícil o enfoque filosófico originário, que levava às perguntas sobre o ser ou sobre a natureza
da realidade. Nem temos mais um aprendizado elementar que nos leve às coisas mas
somente um aprendizado sintético que embota a nossa capacidade de compreensão [268].
Não existe nenhuma solução geral para este estado de coisas, e mesmo o aluno na faculdade
de filosofia que faz a pergunta sobre a natureza do ser já está dentro de um enquadramento
disciplinar em que não é importante ter um interesse pessoal pela pergunta, o que até o
poderia prejudicar naquele contexto. Mas existe solução à escala pessoal, que temos visto no
309
Nunca podemos esquecer Goethe quando ele dizia que “o talento se fortalece na
solidão; o carácter na agitação do mundo”. Os estudantes num ambiente ordenado, com
informação acessível, têm muito mais possibilidades de desenvolver o talento mas, ainda
assim, podem continuar imaturos e dependentes, também porque confiam nos seus direitos,
porque no contexto onde vivem toda a gente tem oportunidade de opinar e de sustentar as
suas posições. Num ambiente opressivo ou o indivíduo desenvolve rapidamente o carácter ou
ele é “liquidado”. Entre o talento e o carácter, este último predomina e o próprio
desenvolvimento do talento depende também do carácter. Assistimos no século XX ao
310
[Aula 89]
Mas a filosofia vai afigurar-se como uma coisa sistémica porque a própria razão é um
senso da totalidade, mas é apenas um dirigir-se para esta, não é um “chegar lá”, como
pretende a cosmovisão. As noções que a cosmovisão nos dá acerca da realidade, do tempo, da
ordem dos factores e assim por diante aparecem como se fossem uma imagem directa do
cosmos, não como doutrinas. A filosofia surge como uma intermediação mental que pode
corrigir ou aperfeiçoar a cosmovisão, eventualmente até rejeitá-la por completo. Não tendo a
filosofia a abrangência descritiva de uma cosmovisão, ela também não tem que ser
apresentada sistematicamente. As próprias sumas de São Tomás de Aquino não têm a
pretensão de abranger todos s aspectos da realidade, e é sempre necessário examinar outros
pontos.
Tal como não tem sentido apresentar a filosofia de forma sistemática, o que a
colocaria ao nível de uma cosmovisão, também não tem sentido em torna-la numa coisa
apologética. Em geral os cristãos caem no erro de achar que é muito importante a defesa
teórica do cristianismo, o que pressupõe que o importante é a doutrina. Ora, esta foi
desenvolvido muito lentamente ao longo dos séculos, deixando muitos pontos em aberto, e
ela pode nos levar a esquecer o essencial: os factos relativos à passagem de Cristo pela terra,
sendo destas narrativas que se compõem os evangelhos. Os factos do cristianismo
transcendem incomensuravelmente a doutrina cristã, então, não tem sentido reduzi-lo a esta.
A doutrina só se começou a desenvolver por uma necessidade externa, que foi o contacto com
o ambiente greco-romano, num período onde não existia mais a aura do miraculoso e em que
os ouvintes não-cristãos estavam habituados às discussões, então, queriam discutir o
cristianismo como doutrina. Contudo, um indivíduo pode não entender nada de doutrina
mas ter uma confiança directo no poder de Cristo.
311
Em filosofia também devemos partir dos factos, não para chegar a doutrinas mas para
chamar a atenção de outras pessoas para estes factos, mesmo que não cheguemos a nenhuma
conclusão. Para isso, temos de pressupor que os factos têm uma inteligibilidade imediata e
uma luminosidade intrínseca. Já Platão partia dos factos e no final, depois de uma escalada
dialéctica, não apresentava doutrinas acabadas mas propunha uma espécie de contemplação
imaginativa, que ele exprimia através de uma narrativa mítica. Não devemos ter a intenção
de provar o que quer que seja mas criar as condições intelectuais para que as coisas apareçam
como evidências. A prova lógica mais aperfeiçoada não tem a persuasão de um único facto. A
prova prossegue apenas numa direcção, mas é fácil perceber que inúmeras outras abordagens
são possíveis. Então, a prova aparece como algo “vazio”, mas o facto já aparece com a
infinidade de acidentes necessários para que ele mesmo ocorra, é algo “pleno”. α89
Aristóteles já tinha dito que o método matemático não é bom nas ciências físicas,
porque a Natureza não se comporta de maneira constante, ela tem hábitos e não leis. Só Deus
pode ter leis porque só ele é imutável. A constância pressuposta no princípio da
reprodutilidade só existe na esfera metafísica, a respeito das leis internas na possibilidade e
da impossibilidade. Fora disto, apenas temos hábitos, que podem ser muito duráveis e
verificarem-se por milhões de anos, embora alguns possam apenas se verificar por alguns
anos. Raymond Ruyer, no livro A Gnose de Princeton, fala também de “hábitos da Natureza”,
embora não possamos seguir muitas das suas conclusões.
As deficiências nos métodos ou nas práticas científicas não parecem suficientes para explicar
o fenómeno que temos em mãos.
No tempo de Newton e Galileu acreditava-se que Deus tinha escrito a Natureza com
caracteres matemáticos, e como só os cientistas sabiam desvendar estes, apenas eles vivam
na realidade. Então, a ciência moderna construiu-se em cima de um dogma que diz que o
constante se identifica com o real e o mutável com o irreal. Claro que uma coisa que muda
não se torna por isso irreal, mas os cientistas modernos tinham interesse em investir com o
carácter de leis divinas as leis da Natureza descobertas por eles. Assim, era como se eles
tivessem lido a mente divina e descoberto os decretos eternos da providência a respeito da
Natureza. As constantes da Natureza foram divinizadas, e quando as observações põem em
causa o seu estatuto de constância, as pessoas perdem a confiança no método científico, o que
é o ideal para a criação do espírito pós-moderno, onde já não há mais nada a que se ater e a
própria realidade dos sentidos é desmentida pela sua mutabilidade. Trata-se um cepticismo
derivado, em última instância, da confiança cega que foi atribuída ao método científico
matemático.
Para entendermos melhor o que se passou, temos de recuar um pouco e voltar aos
séculos XII a XIV, quando se deu um grande desenvolvimento da técnica lógica por parte dos
escolásticos. Isto teve certos efeitos que na altura ninguém podia ter previsto. O ensino das
escolas catedrais e monacais chegou a uma perfeição no século XII (a “inveja dos anjos”
[128]), e baseava-se na unidade absoluta entre as disciplinas intelectuais e a vida religiosa.
Mais tarde, Hugo de São Vítor tentou registar, no livro Didascalicon, o essencial desse
ensinamento, que no seu tempo já estava em risco de se perder. Para ele, nada estava fora da
devoção religiosa. O ensino começava com a lógica e com a matemática e depois passava não
apenas para a teologia mas para uma série de disciplinas práticas, que serviam para aliviar a
miséria do ser humano. Este é um ser desamparado desde a queda de Adão e Eva, na
verdade, o mais desamparado dos seres, nascendo totalmente indefeso e necessitando de
muitos anos até ter obtido os conhecimentos necessários para sobreviver, enquanto os outros
animais em poucos meses já acompanham os progenitores nas actividades destes de alguma
forma. Os ofícios e técnicas foram criados para colmatar esta fragilidade do ser humano e a
sua prática é um aspecto do amor ao próximo. Mas todo a aprendizagem só era explicável em
função do objectivo final, que era a contemplação espiritual, ainda que muitos parassem
antes.
representando um papel social diante de outros papéis sociais, e o que o rege agora são os
critérios intelectuais da corporação. O domínio técnico da compreensão de textos e da
demonstração lógica começou assim a predominar sobre o objectivo da contemplação
espiritual. Então, não há que idealizar a universidade medieval porque esta servia para criar
bons técnicos e já não homens virtuosos. São Tomás de Aquino ou São Boaventura estiveram
na universidade como professores mas não como alunos, eles vinham das antigas escolas.
Nas disputas medievais já não era necessário que os envolvidos acreditassem realmente nas
suas teses. Temos aqui a origem da paralaxe cognitiva, já não havia mais almas cristãs se
confessando mas apenas indivíduos tentando brilhar pelo domínio da técnica para tentar
ascender na carreira universitária.
Contudo, uma doutrina por si só muito dificilmente pode ter um efeito assim tão
devastador. O facto de ser enunciada logo provoca o surgimento de doutrinas contrárias.
Depois do nominalismo não apenas surgiu o empirismo (que poderíamos admitir como uma
espécie de “filho”) como também apareceu o racionalismo, que diz que a estrutura geral onde
enquadramos os factos não é objecto de experiência mas pré-moda todo o conteúdo desta.
Não existiu apenas um John Locke empirista, houve também um Spinoza que defendia que a
experiência nada ensina. O conteúdo nominalista foi muito contestado e nunca chegou a
dominar de forma absoluta. Mas as doutrinas têm elementos abaixo do conteúdo, são
elementos puramente formais, uma espécie de premissas ocultas que se transmitem de
forma quase inconsciente de geração em geração e que moldam o debate tanto na cabeça dos
defensores da doutrina como na dos adversários. O resultado é uma discussão infrutífera e
paralisante.
Na realidade, Guilherme de Ockam fez uma série de observações correctas que não
dizem propriamente respeito ao seu nominalismo mas ao seu empirismo. Ele fez uma
apologia do primado da experiência e temos que reconhecer que aquilo que acontece tem o
primado sobre aquilo que pensamos. Ele também faz uma distinção entre conhecimento
intuitivo e conhecimento abstractivo. Diz ele que o conhecimento intuitivo é um julgamento
imediato de existência sem mediação do discurso, ou seja, do facto vamos directamente para
a afirmação de que o facto é um facto. Por seu lado, o conhecimento abstractivo é um
julgamento de inerência, e sabemos que não é pelos dados dos sentidos que percebemos que
uma coisa é inerente a outra, temos de fazer um raciocínio para lá chegar. Em relação ao
conhecimento intuitivo, ele diz que esse conhecimento pode ser perfeito, quando se trata da
percepção de uma presença, ou imperfeito, no caso de ser a recordação de uma presença, que
só está presente como um signo na memória mas que tem a confiabilidade do facto
originário. Ele diz ainda que não temos apenas uma intuição dos objectos sensíveis mas
314
também uma intuição intelectiva, na qual o intelecto toma consciência dos seus próprios
actos interiores. Não são apenas os objectos físicos que podem ser recordados num
conhecimento intuitivo imperfeito, os nossos actos interiores também podem sê-lo, e assim,
no fim de contas, Ockham antecipava o cogito ergo sum em três séculos.
Ele está a dizer que usamos termos abstractos que não correspondem realmente a
entidades gerais e universais mas a coisas individuais e concretas.
Ockham fez a defesa radical do empirismo, mas podemos questionar que tipo de
empirismo é este onde se acredita que na experiência apenas temos acesso a entes
individuais. Porque não é ao ente individual que temos acesso na experiência, apenas ao seu
estado naquele momento. A identidade individual de um gato em particular está para os seus
estados tal como a noção geral de gato está para os vários gatos. Então, o ente individual é
também um universal. Só percebemos um ente individual se tivermos noção da sua unidade
ao longo das suas mutações. Ockham, para ter sido um verdadeiro empirista, teria que ter
chegado a este ponto, como salientou Edmund Husserl.
Ockham não errou por ser empirista, errou por não ter descrito a experiência
correctamente. Mas os seus sucessores e contestadores também não voltaram à experiência e
discutiam a teoria pelo seu valor nominal. Só no séc. XX o aprofundamento da experiência foi
feito pela fenomenologia de Husserl.
Ockham usava a palavra “experiência” como um realista, ou seja, ele via a experiência
como uma coisa que existe em si e que é universalmente estável. Mas na realidade só existem
experiências concretas, e eram estas que ele devia ter examinado se fosse um empirista
completo. Na altura, a técnica lógica estava muito desenvolvida e ele conseguia fazer
demonstrações assombrosas. O problema é que ele não estava a referir-se verdadeiramente a
coisa que tinha observado mas a outras que tinha inventado. O problema do nominalismo
não foi ter destruído os conceitos universais mas foi ter fixado a discussão num nível que
impossibilita o acesso à experiência.
Todo o instrumento que é criado com uma finalidade tem uma relação dialéctica com
esta, porque ele tem as suas próprias exigências internas e acaba também por se tornar num
obstáculo. Na Idade Média surgiu a cultura do dinheiro, que possibilitava adquirir
importância social e furar a hierarquia de nascença, abrindo assim a possibilidade de
estabelecer um novo padrão de igualdade. Contudo, o dinheiro rapidamente se tornou num
grande factor diferenciador. As universidades surgiram também para promover a
meritocracia, mas criado o establishment universitário logo se criaram novas hierarquias que
se e tornaram factores de exclusão social. O socialismo promete a igualdade, mas para isso
cria uma burocracia que excluí toda a gente menos quem está no partido. A lógica foi criada
para buscar a verdade, mas como é um intermediário entre nós e esta, também pode ser um
obstáculo.
imperfeição, com a absurdidade, com o antagonismo, aceitarmos que eles estão presentes no
tecido do cosmos e que apenas podemos compensar estes elemento de alguma forma, aliviar
o sofrimento e a confusão sem pretender resolver, porque a solução só existe na eternidade.
Importa entender a figura real que está diante de nós e na qual participamos, e isto é uma
realização intelectual maior do que elaborar uma teoria geral. Se entendermos a verdade
como o universal no singular, então, entender a situação presente e o seu sentido universal é
o conhecimento mais alto que existe. α89
[Aula 90]
Mas a intuição da morte foi removida da cultura ocidental. Hoje as pessoas têm
horror de imaginar a morte ou apenas de mencioná-la. Se alguém fala da morte, logo todos
tentam mudar de assunto. A morte tornou-se apenas numa crença, as pessoas simplesmente
pensam que irão morrer porque todos morrem e o assunto fica encerrado. Meira Penna dizia
que o tabu do sexo tinha sido substituído pelo tabu do morte. Repara Scheller que a noção de
imortalidade ausenta-se quando a noção da morte desparece, dado que a imortalidade era
algo que fazia parte da vivência antecipada da morte. As duas coisas tornaram-se
impensáveis.
Mas este é um processo largamente espontâneo e que não poderia introduzir uma
transformação vasta, profunda, contínua e sem reacções à altura, que foi aquilo que se
passou. A história da cultura apenas pode averiguar a forma como símbolos, atitudes ou
slogans se disseminam, pelo que não é um meio suficiente para acompanhar todas as
mudanças. A “criação de coelhos” é apenas um processo posterior a outro processo onde o
foco é o próprio “criador”. Mas aqui já entramos num outro ramo de estudos, que é o da
micro-história. Trata-se de um trabalho muito moroso mas que, por vezes, já alguém pode tê-
lo feito por nós. Aquilo que hoje são símbolos, atitudes, opiniões e valores da grande mídia
americana nada mais são do que um translado da propaganda soviética dos anos 50 do séc.
XX. O documentário “Agenda” mostra que quase todas as organizações americanas em
funcionamento na actualidade tiveram origem em organizações criadas pela inteligência
soviética nos EUA nos anos 40 e 50, em que uma organização criou outra, e esta pode ter
criado outra, e assim por diante.
Para perceber a situação actual é preciso fazer um certo trabalho “arqueológico”, mas
obviamente que a tendência é entrar logo em debates e tomar posição, o que quase nos obriga
a defender certas atitudes. Ao assumirmos uma certa posição, crença ou ideia, já estamos a
aceitar a existência da questão implícita e de que é preciso fazer uma escolha. A atmosfera
cultural em que vivemos não é apenas composta de crenças, nela também entram atitudes
imediatas perante imagens que temos do mundo. Estas imagens não são discutidas, e quando
o são tornam-se crenças e perdem o seu poder mágico [273]. α90
O poder da ciência parece enorme porque é um elemento que faz parte do ambiente
verbal e imaginário onde estamos emersos. É normal qualquer discussão sobre ciência e
318
tecnologia começar por fazer um reconhecimento do que devemos estas, que trouxeram os
computadores, os antibióticos, etc. Contudo, o produto científico-tecnológico que teve maior
impacto no século XX foi a bomba atómica e o consequente armamento nuclear das grandes
potências, que Paul Valéry resumiu dizendo que civilizações agora sabiam que eram mortais.
Ironicamente, num ambiente em que ninguém mais conseguia encarar a perspectiva da
própria morte [273], isto obrigou as pessoas a olharem para a morte da civilização ou mesmo
para o fim da espécie humana. A primeira descoberta científica que teve um impacto social
considerável no séc. XX foi a dos gases de mostarda, que foram usados na Primeira Guerra
Mundial e que possibilitavam uma capacidade mortífera muito maior do que até aí se
conhecia. Esta guerra teve um impacto tal que já não se poderia classificar da mesma forma
que as outras guerras. A aviação militar foi outro dos avanços científicos, que fez com que,
pela primeira vez, a população civil fosse envolvida de forma sistemática na guerra. Até ao
século XIX existia o campo de batalha, que estava separado das cidades, e mesmo na guerra
civil americana, onde existiram ataques às populações civis, as batalhas ainda foram travadas
em locais pré-determinados fora das cidades.
Mas existem outros efeitos da ciência fora do campo militar que também são
geralmente esquecidos. Dos estudos de Pavlov sobre o controlo da conduta humana
originaram-se os processos de lavagem cerebral e a manipulação social. Estes integraram-se
na engenharia social [266], que é um meio de impor quase tudo o que é adoptado a nível
mundial. A organização burocrática moderna, quase indestrutível, é também resultado do
avanço da economia, das ciências sociais, do direito, etc.
pessoas a agir de uma maneira que não é necessariamente nem do interesse e nem da
vontade delas. É mais uma das contribuições da ciência.
obtidos por pura dedução racional e o mundo exterior. Uma certeza racional subjectiva, como
a do cogito cartesiano, não permite obter nenhuma certeza em relação ao mundo externo.
ciência. Por outro lado, dentro do âmbito da inegável contribuição da ciência para o sucesso
de tecnologia, é habitual considerarem-se apenas os resultados benéficos e atribuir os
malefícios à “pseudociência”. Contudo, foi a ciência efectiva que esteve por trás da bomba
atómica, do gás mostarda ou da engenharia social, e é por isso que estas coisas funcionam.
É também habitual tentar salvar a honra da ciência distinguindo esta das suas
aplicações. Roosevelt decidiu avançar para a construção da bomba atómica e Truman decidiu
lança-la mas eles não decidiram sozinhos, já que os cientistas tiveram que mostrar a
viabilidade e conveniência das decisões com bases científicas. α90
A discussão entre Thomas Hobbes e Robert Boyle [276] surgiu a partir de uma bomba
de ar que este último tinha construído para verificar certos resultados em experimentos
científicos. Só que depois começaram a construir-se outras bombas de ar para vender a
interessados em repetir as experiências, mas nem todas as bombas davam o resultado
esperado e, se fosse o caso, eram retiradas do mercado. Era natural que Hobbes desconfiasse
que os experimentos científicos eram profecias autorrealizáveis. Mas isto nada tem de
estranho, porque as experiências e os equipamentos já são produzidos em vista à obtenção de
certos resultados. O que realmente Hobbes observou mas não conseguiu exprimir foi que o
experimento científico bem-sucedido não representa um avanço do conhecimento sobre as
leis da Natureza mas é uma eficácia da tecnologia humana em produzir o resultado esperado.
Ian Hacking diz a mesma coisa ao afirmar que “os experimentos dão certo quando permitem
a manipulação confiável de objectos”. Alguns dos objectos científicos só existem como
produtos do homem, como os lasers, e tudo o que se prove sobre eles quase nada diz sobre a
Natureza.
322
A ciência não tenta conhecer os processos profundos da Natureza, mas cria uma
segunda natureza em cima da primeira. É a criação de uma segunda realidade, precisamente
aquilo que ideologias de massa criam para que as pessoas passem a raciocinar apenas em
função desta segunda camada. Neste sentido, não há diferença entre a actividade científica e
a actividade ideológica. Diz ainda Ian Hacking:
Então, o que é a Natureza e o que fazemos com ela tornam-se coisas praticamente
indiscerníveis, o que não conduz a um progresso do conhecimento mas a um progresso da
modificação do cenário, indo em direcção a Marx quando ele dizia que “os filósofos
limitaram-se a interpretar o mundo de diversas maneiras; mas o que importa é transformá-
lo”. A ciência realizou o programa de Marx, tornando o mundo ainda mais incompreensível.
Prossegue Hacking:
Até ao séc. XIX discutia-se muito sobre o que era a electricidade. Depois, veio Hertz e
disse que não sabemos o que é a electricidade mas temos uma medida matemática dela. Essa
medida permitiu manipular e criar coisas, o que alterou o panorama físico e a humanidade
passou a viver numa segunda realidade, começando a raciocinar como se esta fosse a própria
Natureza. À medida que se tornava difícil distinguir os objectos naturais dos objectos
323
fabricados pelo homem, esta indistinção era projectada retroactivamente sobre os objectos da
Natureza, mas que antes eram conhecidos e não pareciam confusos às pessoas.
«A unidade das ciências não tem nada a ver com o seu objecto. Elas se baseiam
inteiramente no seu método».
A este respeito, Eric Voegelin escreveu várias páginas sobre o “império do método”.
Kant, apreciador da mecânica de Newton, disse que o método cria o seu objecto e ainda que:
E ele questiona como podem os cientistas terem a certeza de estarem todos “falando a
mesma coisa ou se está cada um falando uma língua, e o outro está entendendo uma coisa
completamente diferente, ou seja, o que é que garante a unidade de percepção entre vários
cientistas?”
liberalismo falam horrores do controlo estatal e do sistema de impostos, sem perceber que os
capitalistas contribuíram para impor aquilo. Obviamente que o próprio poder estatal foi o
maior beneficiário desta uniformização, secundado pelos capitalistas. Num capitalismo
rudimentar, as empresas têm apenas uma acção local e não precisam de uma uniformização
geral, o que até as pode prejudicar. Mas para uma acção mais generalizada, o capitalista
necessita dessa uniformização, que também conduz a um aumento de controlo estatal que
tentará estrangular o capitalismo. Livre empresa e controlo estatal são duas coisas que se
exigem uma à outra mas que também estão em contradição real, não apenas ideológica.
Outra coisa que passou a ser quantificada no séc. XIX foi o tempo. Até então, a
medida de tempo estava muito associada às modificações do panorama físico real, às
estações, à duração relativa de sol e de escuridão, etc. Ao mesmo tempo, as modificações
cíclicas criavam uma série de ritos, instituições, costumes. Com a uniformização do tempo
todo este cenário foi rompido e restaram apenas duas distinções: o tempo do trabalho e o
tempo do lazer. Mas a nova medida de tempo não ofereceu uma imagem da realidade, antes
criou uma nova realidade para confirmar as ideias que a originaram.
Na antiga concepção de ciência, o cientista era visto como um indivíduo isolado, longe
da sociedade e que procurava incansavelmente a verdade. Mas na ciência moderna quase
tudo é obra colectiva, e de uma colectividade com suporte estatal e financiamento
325
monstruoso, com meios de impor a sua autoridade e de excluir os inconvenientes. Claro que
isso é um convite evidente à fraude, por isso vemos coisas como a farsa do aquecimento
global envolvendo grande parte da comunidade científica a nível mundial.
Não é honesto tentar transmitir certos valores ou dores para a chamada comunidade
científica, até porque é bastante duvidoso que esta comunidade exista mesmo. Uma
comunidade verdadeira é composta por pessoas que estão juntas realmente, não de pessoas
espalhadas pelo mundo e que têm alguns contactos ocasionais. Esta comunidade está
fragmentada em inúmeros pequenos grupos, onde o importante é desempenhar um certo
papel social que cumpre certos preceitos. Claro que este papel social é uma amarra, mas é
sempre possível vencê-lo se representarmos efectivamente e pessoalmente valores como o do
conhecimento (e tê-lo, efectivamente), da idoneidade ou da seriedade, porque aí estamos a
falar com autoridade mesmo. Um exemplo disto foi o do doutor Edgar Maffei, que conseguia
se impor à comunidade médica. Por outro lado, nunca podemos nos submeter ao julgamento
de pessoas que não tenham efectiva autoridade pessoal, e se for para desmoraliza-las
devemos fazê-lo da forma mais veemente possível e até cruel.
[Aula 91]
paradoxal. Algo idêntico se passa na estética, cujos princípios gerais não podem dar conta de
todas as formas do belo, sendo antes o sentido estético a capacidade de apreender a unidade
da beleza por trás das formas, mesmo que possam elas estar camufladas do feio, do disforme
e do monstruoso.
Pode acontecer que uma teoria inaceitável seja, ainda assim, válida como crítica a
outra teoria, ainda que involuntariamente. Hume negou a existência de qualquer “eu” (ou a
possibilidade de provar a sua existência), o que é inaceitável, mas se assumirmos a sua teoria
como crítica ao cartesianismo, ela é válida. Descartes pensou que a prova da existência do
pensamento era também a prova da existência de uma “substância pensante”, mas Hume viu
que a experiência aqui envolvida é instantânea e que não era possível deduzir a partir dela a
permanência do “eu”.
É comum a ideia que diz que a investigação filosófica mais elevada é a que se prende
aos problemas genéricos (fundamentos da moral, determinismo e livre arbítrio, materialismo
e idealismo, etc.) Estes problemas alimentam discussões sem fim, sem nunca chegar a
conclusão alguma. Contudo, todos estes problemas surgiram de experiências que suscitaram
uma pergunta inicial, e esta nunca aparece com a fórmula de conceitos claros e definitivos.
Para chegar a uma concepção de um “determinismo”, por exemplo, foi necessário analisar e
depurar muitas experiências, até perceber a existência de um elo de necessidade entre uma
causa inicial e uma série de efeitos que se seguem inapelavelmente. Mas depois, o termo
condensa-se numa definição, que passa a constar dos dicionários filosóficos, e é possível
começar a raciocinar a partir dele sem remeter às experiências que lhe estão subjacentes. Da
mesma forma, é possível conhecermos uma filosofia inteira sem nos questionarmos se aquilo
está certo ou errado. Por isso, tem sentido o conselho de Eric Voegelin para não estudarmos
filosofias particulares e, sim, estudarmos a realidade. Aristóteles não estudou a filosofia de
Aristóteles, estudou a estrutura do Estado, o conhecimento, a estrutura do ser e assim por
diante.
327
Se queremos praticar filosofia e não apenas estudar filosofia no sentido escolar, temos
de encará-la como a busca da sabedoria e da verdade. Utilizamos outras filosofias
precisamente para buscar a verdade no sentido em que os seus autores a procuravam.
Obviamente que com o decorrer dos séculos acumulou-se uma enorme bibliografia sobre os
assuntos, então, formou-se uma disciplina secundária versando sobre o que se escreveu sobre
um assunto mas sem nunca ir ao assunto concretamente. Praticamente esta é a única coisa
que se ensina nas faculdades de filosofia, não apenas hoje, porque já Nietzsche vivia este
estrangulamento que tornava o objecto de estudo pesado e opaco e, em reacção, ele quis jogar
fora toda a tradição filosófica, o que também foi um exagero histérico.
A filosofia já foi feita para ser um objecto de contemplação, abrangendo vários níveis,
desde um puramente estético até ao nível metafísico. O que São Tomás de Aquino escreveu
serve para insinuar realidades que vão muito além do discurso, algumas que jamais ele
poderia ter posto por palavras, por isso ele disse no fim da vida que tudo o que tinha escrito
era palha. As sumas de Aquino têm a estrutura de uma catedral gótica, que não é apenas um
edifício utilitário mas um objecto de contemplação, que começa por ser estética mas
prossegue por patamares sucessivos até levar a uma contemplação espiritual.
328
Não conseguimos pensar um ser humano, por mais próximo que este nos seja, apenas
podemos pensar aspectos dele. No entanto, conhecemos as pessoas, e isso acontece quando
apreendemos a sua unidade, que é uma unidade incompleta, com dimensões infinitas que
não podemos alcançar mas de alguma forma antecipamos nos sentimentos e reacções que
temos em relação aos outros. Obviamente que o universo inteiro também não é pensável. O
pensamento e o discurso não se destinam a dizer a realidade mas a evocar uma expectativa
que não pode ser realizada quantitativamente, que é a possibilidade que cada um tem de
conhecer a realidade nas suas dimensões finitas e infinitas. Um sistema metafísico errado
pode estar simbolicamente certo se o seu discurso despertar o espírito filosófico no leitor,
encaminhando-o para certas experiências. O erro está em tentar que estes sistemas
expressem a realidade literalmente, por isso Leibniz dizia que todo o sistema filosófico está
certo no que afirma e errado no que nega. Um sistema metafísico é negativo quando bloqueia
certas experiências ou percepções. Por exemplo, Kant disse que o espaço é uma forma a
priori, o que sob certo aspecto é verdade, estando o erro em considera-lo apenas isso e não
também uma realidade externa que nos cerca e nos determina fisicamente. Ao fechar a
perspectiva, Kant torna-nos opacas inúmeras dimensões da realidade. α91
Cada ente particular contém em si elementos simbólicos que nos abrem para o
conhecimento da sua dimensão universal assim como para o conhecimento da nossa própria
329
«O homem existe há cerca de um milhão de anos. Ele possui a escrita há certa de seis
mil anos, agricultura há um pouco mais, mas talvez não muito mais tempo. A ciência,
como um fator dominante para determinar as crenças de homens educados, existe
há cerca de trezentos anos. Como uma fonte de técnica económica, há cerca de
cento e cinquenta anos. Nesse breve período a ciência provou ser uma forma
revolucionária incrivelmente poderosa. Quando nós consideramos quão
recentemente ela ascendeu ao poder, nós nos achamos forçados a acreditar que
estamos presentes ao começo mesmo de seu trabalho de transformação da vida
humana. Quais serão seus efeitos futuros, é um problema aberto à conjectura, mas
possivelmente um estudo dos seus efeitos até ao presente momento pode tornar
essa conjectura um pouco menos arriscada. Os efeitos da ciência são vários e de
tipos muito diferentes. Há efeitos intelectuais diretos, por exemplo a dissipação ou o
banimento de muitas crenças tradicionais e a adoção de outras crenças sugeridas
pela adoção do método científico. Em seguida há efeitos na técnica da indústria e da
guerra. Em seguida, principalmente como conseqüência das novas técnicas, há
mudanças profundas na organização social que estão gradualmente produzindo
mudanças políticas correspondentes. Finalmente, como um resultado do novo
controlo sobre o ambiente que o conhecimento científico criou, uma nova filosofia
está crescendo e se desenvolvendo, que envolve uma concepção alterada do lugar
do homem no universo. Eu vou tratar sucessivamente destes aspectos dos efeitos da
ciência na vida humana. Em primeiro lugar, vou contar seu efeito puramente
intelectual, como um dissolvente de crenças tradicionais sem fundamento, tais como
a bruxaria. Em seguida vou considerar a técnica científica especialmente a partir da
revolução industrial. Finalmente, vou apresentar a filosofia que é sugerida pelos
triunfos da ciência, e vou argumentar que essa filosofia, se não for restringida, pode
inspirar uma forma de ignorância a partir da qual conseqüências desastrosas podem
resultar.
330
Qualquer leitura filosófica pode ser feita de duas formas: ou para entender a filosofia
do sujeito ou para verificar se o que ele diz é verdade. Neste último caso, temos que verificar
cada frase, o que cria uma tensão com o tipo de leitura destinada à absorção da filosofia, dado
que esta, numa primeira fase, requer que acompanhemos o raciocínio do autor sem interferir
nele. Nas grandes obras filosóficas esta tensão está reduzida ao mínimo, e podemos
compreender a intenção geral sem ter de engolir muitos erros ou inverdades. Noutros casos o
desconforto criado pela leitura é muito grande, o que é um forte indício de que o valor
intelectual da obra é reduzido, embora ela possa ter um forte impacto histórico. A sua leitura
pode ser importante precisamente para averiguar este impacto mas não se trata de uma
leitura formativa. Neste caso, devemos ter noção de que o autor pode estar a tentar enganar
deliberadamente a plateia, havendo normalmente duas formas de o fazer. Uma delas é
através da camuflagem, que consiste em construir um edifício racional, em que tudo é
verdade excepto uma premissa falsa que está ali escondida no meio. Outra forma é a
intoxicação, em que o autor mente em cada linha de modo a que o leitor não consiga
acompanhar e acabe por engolir tudo. Bertrand Russel usa este segundo método: cada
parágrafo está cheio de erros; ele passa por cima de problemas fingindo que não viu; tira
conclusões peremptórias a partir de um material que apenas permite formular interrogações;
e assim por diante. Se aceitarmos isto, ao fim de poucas páginas já estaremos intoxicados.
Russel dá o exemplo dos eclipses, sobre os quais apareceu uma descrição astronómica
que teria varrido as antigas descrições míticas mas, ao mesmo tempo, também jogou fora as
previsões de factos que eram feitos a partir do surgimento de eclipses. Mas uma descrição
astronómica de um facto celeste não pode impugnar uma conjecturação dos seus efeitos
terrestres. Simplesmente houve um desvio da atenção para a mecânica celeste, abolindo a
conjecturação de causa e efeito, mas este desvio, ao invés de ser uma impugnação lógica-
científica de uma crença, é ele em si mesmo uma crendice e mesmo uma das fundamentais da
cultura contemporânea.
Ele fala dos sacrifícios humanos que eram comuns em civilizações primitivas,
havendo até traços disso no Antigo Testamento, mas depois teriam desaparecido devido ao
humanismo e à ciência. Na realidade, existe ainda hoje um número enorme de sacrifícios
humanos em rituais satânicos e nunca ninguém fez um estudo comparativo em que avalie se
o número aumentou ou diminuiu. Além disso, há muitas matanças modernas que tem um
carácter sacrificial, como no caso dos judeus na Alemanha nazi ou os gulags na União
Soviética. E para isto eram dadas explicações científicas, tal como hoje se dão para justificar o
aborto. Há um pensamento mágico moderno que faz acreditar que matanças em massa são
justificadas em nome de salvar uns poucos. Nunca houve nada chegando a este grau nas
sociedades primitivas.
A visão que Russel tem da história da sociedade é totalmente mítica, mas ele vai
contando as coisas aparentemente de forma equilibrada e é fácil aceitar o que ele diz, mas em
pouco tempo já estaremos intoxicados com tanta mentira. Russel diz que quer advertir para
uma filosofia científica que pode gerar uma anti-sabedoria, mas ele mesmo já está a praticar
essa anti-sabedoria. Então, torna-se muito difícil de acompanhar a sua filosofia porque a cada
página é exigido um acto de fé, além de que nada legitima fazer uma filosofia em cima de
informações factuais falsas. Mas os leitores de autores como este já não querem saber disto,
porque eles já fazem parte de uma atmosfera cultural criada pela ciência, por isso já estão
convencidos que as coisas são de certa forma e nunca irão verificar.
contradições, por exemplo, não admite que o aumento do conhecimento vem junto com o
aumento da ignorância. A ciência é um instrumento fundamental do progresso iluminista,
mas vemos que, tudo somado, ela causou mais prejuízos que benefícios, bastando pensar nas
armas químicas, nas armas biológicas, na bomba atómica, na burocracia estatal, nas técnicas
de manipulação de consciência e até no número assombroso de mortes causadas por actos
médicos. A ideia não é polemizar contra a ciência moderna, porque vamos mesmo ter que
prosseguir com ela, mas temos que assumir os seus efeitos reais e não varrer a porcaria para
debaixo do tapete. α91
[Aula 92]
Mas se a matéria teve origem nestas forças que pré-existiam ao universo, elas não são
um nada, já eram a presença do Ser. Também, se estas forças se encontraram e produziram
um resultado é porque estavam numa quantidade e proporção que as tornavam aptas a
produzir o resultado verificado, ou seja, obedeciam a uma fórmula matemática. Assim, para
além das forças existia a proporção matemática antecedendo a criação da matéria, e as leis da
matemática também não são um nada. Mas estando todas as leis matemáticas de alguma
forma interligadas, todo o conjunto já existia, possibilitando que viessem a se materializar as
333
propriedades dos elementos que constam da tabela periódica, o ADN e até as próprias
possibilidades da espécie humana. Tudo isto já estava contido inicialmente na forma de uma
lógica interna de possibilidades, inclusive a possibilidade de existirem uns seres que iriam
meditar sobre todo o caminho percorrido e pudessem ter consciência do processo. Por outras
palavras, na fórmula inicial já estava contida a possibilidade da visão auto-consciente do
próprio processo. Então, a fórmula inicial incluía absolutamente tudo, até a consciência de si
mesma
Mas a fórmula inicial contém mais do que o universo efectivamente existente, contém
também as possibilidades que não se manifestaram e aquelas que jamais se manifestarão, ou
seja, nela já estavam contidos todos os universos possíveis. A moderna cosmologia estuda
universos meramente possíveis, a consciência destes também fazia parte da possibilidade
inicial. Não se trata aqui de possibilidades no sentido de possibilidades pensadas pelo ser
humano, são mais propriamente potências. O Logos ou Inteligência Divina é precisamente o
conjunto de todas as potências que compõem o universo efectivamente existente assim como
todos os universos possíveis, mesmo aqueles que nunca cheguem a se manifestar.
A conclusão que tiramos daqui é que “no princípio era o Verbo”, ou seja, o Logos. Este
é o item número um da filosofia de Olavo de Carvalho.
O segundo item está relacionado com a constituição do universo. Sendo este formado
a partir de um corpo de possibilidades, e existindo inúmeras possibilidades para além das
efectivadas, então, o universo, tal como existe, não pode ser completo em si mesmo. Para
cada coisa existente existem inúmeras outras possíveis que, de certo modo, a delimitam e
marcam a sua forma. Assim, para além das realidades existentes, o universo é também
composto por uma infinidade de potencialidades não realizadas que cercam cada ser
existente. Isto corresponde ao círculo de latência, que é aquilo que um ente poderia ser mas
não é. As potencialidades delimitam e distinguem o ente justamente por não se terem
realizado. Por exemplo, todos temos a possibilidade de morrer a qualquer momento e mesmo
que essa possibilidade não se tenha realizado, ela define e delimita a nossa presença
enquanto criaturas mortais.
Podemos, então, dizer que o nosso universo nunca é completo, dado que tudo o que
existe tem um círculo de latência que se prolonga até não sabemos onde. Dizia Leibniz que
cada ser traz em si aquilo que o distingue de todos os outros, pelo que a descrição completa
do círculo de latência de um único ser abrangeria o universo inteiro. Um animal é distinto de
todos os outros, mas ele também é distinto de uma equação matemática ou de uma acção da
bolsa de valores, sendo o conjunto destas distinções aquilo que marca a sua forma específica.
Acresce a isto que cada espécie também possui em si o conjunto das diferenças que as
separam de todas as outras espécies, ou existiriam seres mistos pertencentes a mais do que
uma espécie.
Como o universo nunca será completo, nunca iremos poder encontrar nele uma
ordem total e acabada, só podemos encontrar uma mistura de ordem e de caos. Embora a
ordem predomine até certo ponto, sempre haverá um certo coeficiente de caos, porque as
possibilidades que se realizaram não apenas excluem outras possibilidades como podem não
ser as que melhor se combinariam com a totalidade. Existe sempre uma série de relações
complexas e ambíguas entre qualquer ser e a totalidade. Cada ser insere-se na totalidade
através das leis da Natureza, da sua espécie, etc., mas existe sempre um coeficiente de
absurdidade e de imprevisibilidade. Nem mesmo as partículas subatómicas obedecem
334
completamente a uma ordem pré-existente, sempre há em tudo uma tensão entre ordem e
caos.
Para além da historicidade, o ser humano tem um segundo traço eminente, derivado
do primeiro, que está ligado ao princípio de autoria. Cada ser humano sabe que é o autor dos
seus actos e mais ninguém, e tal manifesta-se desde os primeiros dias de existência até ao
resto da vida, em condições normais. Quando o bebé examina o seu corpo, ele já está
identificando aquelas coisas como sendo dele e avalia como pode fazer certas coisas com elas.
A memória das primeiras acções vai integrar-se nas acções seguintes, ou seja, desde início há
uma posse do passado que se articula com o presente e com o futuro, e no processo o passado
vai sendo também trabalhado e integrado até ao dia em que o indivíduo pode dizer “eu” com
conhecimentos de causa. Não que esse eu só tenha passado a existir desde esse momento,
mas esta auto-identificação aumenta bastante as possibilidades de acção da entidade eu.
Apenas o ser humano pode mentir (os animais apenas podem camuflar a sua presença),
apenas ele pode negar o seu próprio passado, e só o faz porque tem algum domínio sobre ele.
Mas o indivíduo não podia ter esta relação com a sua memória se a sua unidade
pessoal apenas existisse fisicamente ou como um dado da consciência. Então, uma tese
fundamental para Olavo de Carvalho é a de que o “eu existe”, isto é, cada um de nós existe e
persevera no tempo. E aquilo que persevera não coincide com o que sabemos de nós ou com
os nossos estados, que vão e vêm, sendo algo que continua quando todas as células do corpo
já foram trocadas. É um centro agente que está por baixo de todos os estados, pensamentos e
acções do sujeito, sendo a consciência e a memória funções dele. Se os estados e pensamentos
impermanentes, e se até as células do corpo mudam o tempo todo, então, será o eu apenas
um pensamento para coerir e dar unidade ao conjunto? Mas o pensamento não pode fazer
isto porque também ele passará. Assim, o eu não é nem um produto da mente e nem uma
criação cultural, é uma condição para que exista o pensamento, os estados a memória e toda
a cultura. Se vasculharmos na nossa memória, por mais que recuemos não há nenhum
momento em que não sejamos nós mesmos, por pior que seja o estado mental associado à
recordação ou nebulosa a memória. Além de que o nosso eu está presente a outros eus, não
imaginamos que as pessoas só existam apenas no estado momentâneo em que as
encontramos, sabemos sempre que elas são alguma coisa, ou seja, que também têm um eu
permanente e substantivo, e sem isto não há convivência humana possível.
335
O eu tem uma certa existência paradoxal, é uma coisa permanente que está imersa no
tempo. Uma das constantes do ser humano é a tensão entre permanência e mudança, e
apenas porque existem estes dois aspectos em nós podemos entender o que é a eternidade e o
que é o tempo.
A filosofia que está delineada nos itens acima só começou a ser esboçada por Olavo de
Carvalho a partir dos seus quarenta anos de idade. Antes disso, ele passou por um longo
aprendizado, que não consistiu apenas em ler livros de filosofia e no contacto com pessoas
capacitadas. Houve também uma busca de conhecimento através da experiência (religiosa,
esotérica, política, jornalística).
a) O método nas ciências sociais. Para que as ciências humanas se tornem efectivamente
humanas, os seus porta-vozes não podem ser alheios aos processos que descrevem mas
devem saber que posição ocupam no conjunto e qual o papel que desempenham. Nesse
sentido, esta investigação de Olavo de Carvalho fez um esforço de articular, na medida do
possível, a autoconsciência que o indivíduo tem da sua continuidade ao longo do tempo com
o conhecimento da sociedade humana, da cultura, e da História. Karl Marx, que foi um dos
pioneiros das ciências sociais, insistia na praxis (unidade de teoria e prática) nunca analisou
a sua própria posição social. Ele arrogava-se de ser o primeiro a ter percebido que era o
proletariado a ter uma visão objectiva do processo histórico, embora ele não fosse um
proletário, mas não se preocupou em dar uma explicação para isto e parece nem mesmo se
ter dado conta da existência do problema. Então, a ciência social que ele criou é apenas um
fingimento, como se a sociedade fosse um laboratório com uns ratinhos e o investigador está
fora e acima de tudo. Em geral, esta é uma ilusão constitutiva das ciências sociais. Apostila
sobre esta investigação:
De uma fenomenologia do poder sai uma tipificação das modalidades de poder, que
são três. O primeiro tipo de poder com a possibilidade de convencer alguém a fazer algo
mediante ameaça de lhe causar um dano intolerável, e corporifica-se no poder político-
militar. A segunda modalidade não actua mediante a ameaça mas através da promessa de um
benefício, e vai dar no poder económico-financeiro. E a terceira forma actua através da
persuasão, correspondendo ao poder intelectual-espiritual. Contudo, estas três modalidades
337
raramente aparecem de forma pura, quase sempre estão mescladas, embora cada uma delas
predomine nos três grandes blocos que disputam actualmente o poder mundial. O esquema
russo-chinês é essencialmente baseado no poder político-militar; o esquema islâmico apoia-
se sobretudo no poder intelectual-espiritual; e o esquema globalista ocidental (CFR, Grupo
Bildeberg, etc.) tem sobretudo um poder económico-religioso. Conforme o esquema de poder
dominante, vão existir certas classes sociais com maior realce. Quando domina o poder
político militar, como na Rússia e na China, todos os poderes “intermédios” são eliminados e
sobra apenas a burocracia estatal, que é ainda dirigida por oficiais militares e pelos serviços
secretos. Nos outros esquemas, os poderes intermédios não são propriamente eliminados
mas passam a agir quase que exclusivamente em função dos interesses das classes superiores,
que no caso da elite ocidental é composta eminentemente de banqueiros e financistas, e no
Islão por líderes religiosos.
Embora cada bloco que disputa o poder no mundo expresse essencialmente uma das
três modalidades fundamentais de poder, obviamente que cada um usa todos os recursos
possíveis, mesmo os característicos de outras modalidades de poder, mas na concepção que
eles têm das coisas cada um explica tudo “à sua maneira”. Por exemplo, o esquema russo-
chinês explica tudo em termos geopolítico-militares, já a elite ocidental explica tudo em
termos económicos e elite islâmica em termos espirituais. Isto não corresponde apenas a uma
deformação intelectual derivada do poder que se representa, é uma expressão mesma desse
poder. Porque a elite russa-chinesa parte precisamente das próprias soberanias nacionais,
enquanto o globalismo ocidental não tem base geográfica (querendo mesmo acabar com as
soberanias nacionais) mas tem instrumentos económicos e financeiros, e a elite islâmica não
tem nenhum dos dois mas possui um tremendo poder de influência por via espiritual. Todos
os blocos visam obter um domínio mundial mas só o bloco russo-chinês actua de forma mais
linear e “convencional”.
realizados, umas poucas pessoas ditariam o que o resto da humanidade tem que fazer. Na
realidade, o projecto já está parcialmente em funcionamento através de instituições como a
ONU ou a OMS, que já nos obrigam a seguir muitas directrizes sem perceber sequer o que se
passa. Já ninguém tem ideia de onde surgiram as leis.
Da contemplação amorosa
que nos pareciam importantes apareçam desvalorizadas e outras que não tínhamos prestado
atenção ganhem realce.
[Aula 93]
283. O testamento filosófico de Ravaisson
Félix Ravaisson é um modelo de análise filosófica, que evidenciou sobretudo em dois
volumes sobre Aristóteles (Ensaio Sobre a Metafísica de Aristóteles). Para além disso,
escreveu pouco, sendo de referir dois pequenos livros, Do Hábito e o Testemunho Filosófico,
que veremos aqui. Para a compreensão do que vem a seguir, deve ser lida a seguinte tradução
parcial do Testemunho Filosófico.
http://www.seminariodefilosofia.org/system/files/ravaisson+-+testamento+filosofico.pdf
Este texto é um dos mais densos que existe a respeito da filosofia antiga, contendo
vários níveis que se encaixam ou entremesclam. Ravaisson começa por evocar algumas
personagens mitológicas e históricas. A distinção entre História e mitologia não era muito
clara no ambiente greco-latino. Júlio César, por exemplo, considerava-se descendente carnal
da deusa Vénus. Daqui ele tira algumas conclusões de ordem moral, de onde também saem
algumas distinções psicológicas.
Havia os filhos dos deuses (Hércules, Teseu, Aquiles), que eram chamados de heróis
porque se acreditavam nascidos para o mundo inteiro, eram tocados pela sorte dos demais e
dispunham-se a ir em socorro dos mais fracos. Estes são aqueles que eram tocados pelo
“impulso originário”, que Bossuet dizia ser aquela bondade que Deus colocou nas entranhas
humanas em primeiro lugar. A mitologia antiga também exprime isto de alguma forma, dado
que nela está sempre presente a crença na beneficência divina. Entre os homens e as famílias,
mais do que desconfiança e ódio, era a hospitalidade que era considerada uma coisa sagrada.
Mas é também preciso reconhecer que a maioria dos homens sempre cedeu às
“tentações do egoísmo”, algo que apenas reforça a tendência natural de cada um cuidar de si
em primeiro lugar. Mas esta tendência pode ser contrariada voluntariamente, porque todos
temos a capacidade de sacrifício em prol de algo maior, o que invalida a tese hobbesiana.
340
Hobbes ignorava a existência do “impulso original” de bondade no ser humano (que até se
assiste em quase todas as guerras entre os lados adversários, porque na guerra o que
prevalece é o medo), e achava que apenas uma agressão maior do que todas as outras podia
acabar com o estado “natural” de agressividade generalizada e trazer a bondade. A grandeza
de alma é algo que o homem do vulgo não consegue vislumbrar, porque ele não tem força
para ajudar os outros e nem sequer tem capacidade para resolver os seus próprios problemas,
assim, vive em função do medo e sempre buscando segurança. Então, o homem vulgar
projecta em tudo o que vê a sua própria fraqueza e pequenez.
Os homens pequenos reduzem a filosofia à sua própria pequenez, criam filosofias que
podiam ser ditas niilistas porque eles, sendo eles “homens de nada”, facilmente admitem que
tudo se formou a partir do nada. Contentam-se em prolongar as suas existências precárias,
preocupando-se apenas em adquirir, e se admitem a existência de potências invisíveis que os
influenciam, desconfiam que destas apenas se pode esperar “pouco de bom e muito de mau”.
Para eles, o mundo compõe-se essencialmente de corpos inertes e esparsos, sendo esta a
marca das filosofias materialistas que reconhecemos na antiguidade em Demócritos e
Epicuros, as filosofias ditas pobres, pequenas ou plebeias, baseadas nos sentidos e no
entendimento. Estas filosofias buscam os seus princípios nas coisas inferiores, que são os
materiais para as formas superiores onde aparece a ordem e a beleza. Para o epicurismo,
assumindo que apenas pode ser conhecido aquilo que é dado pelo testemunho dos sentidos –
que revelam apenas corpos e seus acidentes –, a consequência é o encerramento do homem
em si mesmo, o que já ecoava a proclamação sofista das sensações serem a medida de todas
as coisas. Cada indivíduo considera-se como que um todo fechado, como uma realidade em si
mesma que não se comunica realmente com os outros. Então, como pode acreditar este
homem na existência do mundo exterior? A questão colocada por Descartes parece um
341
problema filosófico real depois de já existirem muitas pessoas com uma concepção
corporalista da realidade, acreditando elas mesmas serem reais mas que o mundo talvez não
o seja, o que é evidente psicose de quem já esqueceu que não é eterno, que veio de outro
corpo e assim por diante. Nunca o mundo esteve fora de nós e nem nós fora do mundo, que
são apenas hipóteses que só existem no pensamento mas que depois são colocadas como se
fossem a realidade. Mas as filosofias pequenas ainda permanecem e induzem questões de
todo o género, por exemplo, na física pergunta-se do que são feitas as coisas ou do que são
compostas. A resposta pode ser “de átomos” ou qualquer outra, mas a resposta não diz nada,
porque na pergunta já solicita a noção de forma, no fim de contas é a questão sobre a causa
formal de Aristóteles, e responder com uma base material é claramente insuficiente.
Os homens de elite, aqueles ditos “generosos” por Descartes e Leibniz, têm “uma alma
cujo carácter é ser simpática a todas as outras”, cada um deles é consciente de “portar em si
uma força pela qual ele é senhor de si mesmo, que constitui a sua dignidade e constitui
igualmente a dignidade de todos os outros”. Os indivíduos grandes criam imagens do
universo que expressam não a sua própria grandeza mas a grandeza do universo, do qual se
reconhecem apenas receptores. Custa a crer que estes homens não acompanhem Tales na
crença de que tudo está cheio de almas, cada uma com raiz divina. De homens como Sócrates,
Platão e Aristóteles saíram as filosofias ditas reais ou aristocráticas, mas também apelidadas
espirituais ou espiritualistas dado que viam deuses ou potências ocultas dirigindo o mundo.
Ravaisson faz depois, num única e densa página, um resumo histórico da evolução
fundamental da ontologia desde Sócrates a Aristóteles, de onde vai tirando centos princípios
do método filosófico.
Diz ele que Sócrates percebeu que as sociedades não podiam subsistir apenas com
doutrinas materialistas, estando persuadido de que as coisas sensíveis dependiam de outras
que apenas se podiam conhecer pela inteligência. Viu que havia regras para discernir o justo
do injusto, o bem do mal, e provou que havia uma ciência acima das conveniências, baseada
nas generalidades comuns aos indivíduos. Platão, indo mais além, disse que as coisas
sensíveis são modelos inteligíveis das suas qualidades, as famosas formas ou ideias
imutáveis. Mas se as coisas da Natureza revestem-se passageiramente destas formas, estas
tornam-se causas, embora sejam extractos tirados das coisas pelo entendimento – que tem a
faculdade da abstracção de destacar coisas que estão juntas, mas que depois podemos
esquecer do ponto de partida e tomar cada coisa como existente por si mesma – e que apenas
têm existência real nos indivíduos (são actos de inteligência), é o “forjamos e ao mesmo
tempo cremos”, erro apontado por Tácito. Aristóteles observou que o geral não existe em si
mas é criado pelo pensamento, pelo que só o indivíduo pode ser um princípio e uma causa de
existência. As abstracções são apenas causa de imobilidade, não podem explicar o movimento
e a vida. Então, Aristóteles substituiu as ideias puras pelas almas como “fontes de movimento
e de vida”. Platão podia ser desculpado por não ter ainda à sua disposição uma dialéctica
suficiente para distinguir os diversos sentidos da palavra “ser”. O entendimento busca uma
razão de ser para tudo, mas as coisas mais altas conhecem-se imediatamente por intuição e
por analogia, o que Aristóteles traduziu numa distinção entre as diferentes categorias, ele
que, perceptor do último herói grego (Alexandre, o grande), avançou na via do antigo
heroísmo, que deseja o ser e “não se contenta com sombras, ídolos ou fantasmas”. α93
342
[Aula 94]
Recuando um pouco, Platão encontrou o mundo das ideias na sua busca da realidade
suprema por trás das aparências mutáveis da Natureza, que seria composto de esquemas
fixos dos quais as coisas moventes da Natureza são imitações imperfeitas. Aristóteles diria
depois que estas ideias são obtidas por abstracção das similaridades entre os entes
individuais, reflectindo, então, a definição das espécies, que apenas tem realidade mental.
Já dizia Cícero que aquilo que não faz nada parece ser um nada, e até uma pedra tem
nela algo activo e movente. Assim, ser é agir, e “a acção é a existência mesma”. Além disso,
aquilo que é não só age como naturalmente se comunica. A consciência tende a se reconhecer
a si mesma no pensamento, sendo como todo o ser vivente que busca uma posse mais plena
do seu ser. Nada pensa sem pensar-se mas apenas em Deus a “consciência perfeita do objecto
é inteiramente idêntica ao sujeito”. Todas as espécies tendem a imitar isto, cada uma num
diferente grau. Por exemplo, um mineral tem um grau de unidade inferior ao de um vegetal, e
este é menos íntegro que um animal, que facilmente perece se amputado de uma das suas
partes. Também o pensamento se reconhece nos seus objectos, disperso pelas ideias até
encontrar a sua unidade. A Natureza aparece como diferenciação até ser finalmente
integrada, mas pode sê-lo porque é um esboço mais ou menos bem-sucedido da suprema
343
Uma obra filosófica tem de ter alguma chave que lhe dê unidade. No caso de Olavo de
Carvalho, a sua preocupação fundamental é encontrar a condição fundamental para que a
consciência humana individual possa alcançar a verdade e desfrutar do dom do
conhecimento objectivo. Zubiri e Schuon insistem que o próprio da inteligência humana é a
objectividade, e se não a buscamos estamos abaixo da condição humana. Um segundo
interesse prende-se com a relação entre a consciência humana e a divindade, ou seja, a
consciência perante o absoluto. Para René Guénon a consciência faz parte da Maya (ilusão
que constitui o universo, existente mas espiritualmente irreal dado estar em constante
mudança). Para o iniciado, a consciência pode se converter em conhecimento, este
transforma-se no ser, que é depois absorvido no absoluto mediante o processo da
divinização. Ora, a existência das almas imortais, que duram mais do que todos os cosmos
existentes e possíveis, contradiz isso. Além disso, podemos lembrar o catecismo, que diz que
Deus fez o mundo para o ser humano, logo, o homem está acima do cosmos e é, de certo
modo, a chave de abóboda de toda a criação. O início de Génesis – com os conflitos de
interesses entre Adão e Eva, depois entre Caim e Abel – já mostra que se trata ali do homem
enquanto indivíduo, não do homem considerado abstratamente enquanto espécie. Daqui
podemos concluir que a consciência humana ou a alma individual humana é um elemento
estruturante do cosmos. Na hierarquia de realidade, o mundo das almas humanas
obviamente que está abaixo de Deus, mas de certo modo encontra-se acima do mundo dos
anjos, porque estes possuem conhecimento divino mas não liberdade divina, sendo o livre
arbítrio humano expressão directa do poder divino.
A consciência humana é geralmente tida em muito baixa conta, não só por seitas
iniciáticas, que aspiram a estados “superiores”, mas também por materialistas e
behavioristas, que dizem que a consciência nem sequer existe, é apenas uma ilusão nascida
de mecanismos físico-químicos. Mas se a consciência humana é um quase nada, qual a razão
de se terem feito tantos esforços no século XX para policia-la, controla-la, oprimi-la e
neutraliza-la? Todas as perguntas políticas que Olavo de Carvalho fez originaram-se daqui, o
que remete para as preocupações de primeira ordem de carácter eminentemente filosófico.
Reflectindo a liberdade humana o poder do próprio Deus Pai, a consciência humana é
imprevisível, criativa, não obedece a leis, logo, ela possibilita a desobediência e a rebelião,
inclusive a possibilidade de nos revoltarmos contra Deus.
344
Diz Dugin, no livro A Grande Guerra dos Continentes, que já na antiguidade se via
esta clivagem, havendo uma “civilização marítima” encabeçada pela Fenícia e por Cartago, a
que se opunha o império terrestre romano, tendo depois o embate chegado a um desfecho
nas Guerras Púnicas. Na modernidade, a “civilização marítima” foi primeiro encabeçada pela
Inglaterra, a “senhora dos mares”, e depois pela América. Daqui se teria originado um tipo
particular de civilização de mercado capitalista-mercantil, fundada sobre interesses
económicos e materiais e sobre os princípios do liberalismo económico. Para Dugin, o que
carateriza a civilização marítima é sobretudo o primado do económico sobre o político.
Roma, por seu lado, tinha uma “estrutura autoritária-guerreira fundada numa dominação
administrativa e numa religião civil”, então, seria o primado do político sobre o económico. A
sua colonização teria sido terrestre e feita com a assimilação dos povos submetidos, que
depois teriam ficado “romanizados”. Na História moderna, as potências terrestres foram
sobretudo os impérios russo, alemão e austro-húngaro. Acrescenta Dugin que Mackinder
demonstrou que, nos últimos séculos, a “atitude marítima” equivale ao atlantismo, e as
“potências marítimas” são sobretudo os países anglo-saxónicos. A atitude eurasiana é
expressa, antes de tudo, pela Rússia e pela Alemanha, as mais fortes potências continentais,
com preocupações geopolíticas, económicas e, acima de tudo, com uma visão de mundo
completamente opostas às da Inglaterra e dos Estados Unidos da América.
Para começar a analisar esta visão de Dugin, basta notar que a União Soviética teve a
sua zona de influência em quase todos os continentes. Como pode ter tido uma potência
terrestre uma influência tão grande na américa latina? A noção de “potência terrestre” não
faz sentido nos termos em que é posta. Historicamente é também inegável que a concepção
de liberdade económica é católica, mas concretamente ibérica, só não se tendo realizado
nestas paragens em grande escala devido a várias contingências históricas, incluindo os
conflitos com os ingleses. Isto antecedeu muito o iluminismo e as iniciativas anglo-saxónicas.
Mas há logo uma outra confusão montada aqui em cima, porque a concepção da liberdade
política não tem nada a ver com o individualismo, entendido como pura busca do interesse
individual, é antes uma decorrência da própria letra dos evangelhos.
Alemanha cristianizou-se tardiamente e logo explodiu na Reforma, sendo dela a pátria das
doutrinas mais anti-cristãs que existem, as de Hegel, Marx ou Nietzsche. Também foi criação
alemã a tentativa de dissolver o texto bíblico em considerações historiográficas, quase sempre
imaginárias. Em contrapartida, a evangelização feita por seitas protestantes na américa
trouxe ao mundo algo bem diferente do individualismo.
Dugin diz, noutro escrito, que é preciso ler o livro A Sociedade Aberta e seus
Inimigos, de Karl Popper, para compreender o conflito entre atlantismo e eurasianismo.
Popper diz que a sociedade aberta é aquela na qual não há absolutos, assim, não há nenhuma
verdade acima dos interesses e preferências dos indivíduos. A esta noção de sociedade aberta
sem transcendência Dugin contrapõe a sociedade tradicional, que para ele é representada
pela Rússia, pela Alemanha ou pela China. Na realidade, a ideia de sociedade aberta é algo
que os globalistas deram importância e querem impor ao resto das pessoas contra vontade
delas. Foram necessárias muitas décadas de campanhas de propaganda, de alteração de
mentalidades e de destruição de consciências para fazer passar a ideia de que o Estado mais
que laico deve ser anti-cristão, porque essa ideia não tem qualquer raiz na tradição
americana, antes são os inimigos dos EUA que lhe querem impor tal coisa. O efeito foi
sobretudo notório na política externa americana, que basicamente se limitou a trocar
ditadores amigos por ditadores inimigos (Fulgência Batista por Fidel Castro, Shiang Kai-
Sheck por Mao Tse Tung, Lon Nol por Pol Pot e assim por diante), além do esforço também
exercido para quebrar o poder das potências colonias como a Inglaterra, França, Portugal ou
a Espanha, entregando as antigas possessões a poderes comunistas. Toda a elite globalista
tem feito esforços num sentido claramente anti-americano, favorecendo ao mesmo tempo o
movimento comunista internacional, que faz parte do esquema eurasiano de Dugin. Os livros
de Anthony Sutton mostram como os banqueiros americanos ajudaram bastante o
comunismo e o nazismo. Portugal e Espanha foram as primeiras potências marítimas da era
moderna, mas elas não fazem parte do esquema anglo-saxónico, antes foram destruídas por
ele.
[Aula 95]
286. A importância do elemento biográfico na compreensão da obra
filosófica
A definição da filosofia como busca da unidade do conhecimento na unidade da
consciência e vice-versa tem extensas aplicações. Desde logo, é um apelo a que procuremos
dar coerência aos nossos conhecimentos mais elevados de ordem científica, histórica ou
filosófica, estendendo essa coerência às atitudes da nossa vida real. O comum é não ter em
conta as ideias “superiores” como apoio para as decisões da vida concreta, o que mostra que
estas ideias são apenas parte de um fingimento, usadas quando der jeito e apagadas quando
não interessa. Nunca foi feita uma história da idoneidade da classe científica e intelectual,
mas olhando para o estudo de Paul Johnson, vertido no livro Os Intelectuais, percebemos
que a situação é assustadora, já que os mentores da idade moderna eram sujeitos de uma
mendacidade extrema ou mesmo personalidades verdadeiramente perturbadas.
Mas no caso das obras filosóficas já não é assim. Desde logo, nem podemos falar de
obra no mesmo sentido que o utilizado na literatura ou na arte, que é um livro, um quadro,
uma peça. O livro de filosofia não pode ser considerado obra no mesmo sentido por duas
razões. Em primeiro lugar, porque nunca é uma obra acabada. Mesmo que se trate da última
coisa que o sujeito fez, aquilo não é um ponto final definitivo, e logo outros poderão retomar
as investigações. Platão ficou a vida toda retirando conclusões da sua teoria das ideias, mas
ainda deixou o seu famoso ensinamento oral, onde estariam as partes mais importantes do
seu sistema, e após a sua morte os seus discípulos continuaram a trabalhar sobre este
material. Não se pode dizer que os diálogos de Platão sejam formas acabadas e alguns
parecem terminar propositadamente de forma inconclusiva. Nenhuma investigação sobre
qualquer facto da realidade pode alguma vez terminar, e mesmo que seja enunciada uma
teoria, há sempre novos dados que a podem confirma-la, relativiza-la ou impugna-la. Então,
as obras filosóficas não são formas acabadas como as obras literárias, são apenas etapas de
uma investigação e de uma vida em busca de conhecimento. Uma obra filosófica pode iniciar
uma investigação ou continuá-la, mas não vai termina-la e outras se seguirão, ainda que se
passe muito tempo. Já a obra de um artista não é continuada por outras (obra entendida no
sentido estrito, não como um conjunto de esforços numa certa direcção, que obviamente
347
podem ser retomados por outros). Mesmo a famosa sinfonia incompleta de Schuberth teve
várias tentativas de fechamento, para se concluir que a forma inacabada é a mais perfeita. Em
ciência ainda é mais patente que não pode haver obra acabada. Os estudantes já se inserem
numa longa linha de esforços e raramente conhecem as obras originais.
Depois, a “obra” filosófica não existe para ser contemplada em si, como acontece com
os produtos artísticos, é sempre algo que remete para uma realidade externa. E não é apenas
uma impressão pessoal, porque aquilo que o cientista ou o filósofo dizem tem sempre a
pretensão de validade universal, tal como todas as propostas políticas têm pretensões
universais, como salientou Eric Weil. Então, não apenas os autores não podem se colocar fora
do alcance delas como já estão assumindo, implicitamente ou explicitamente, a posição de
que estão tentando convencer os outros daquelas coisas. Isto é próprio da natureza do pensar
– pensar é pensar que estamos certos –, que é um afirmar de que aquilo que se diz é a coisa
mais certa. E mesmo que o pensamento seja um confronto de hipóteses, é também pensar
que fazer esse processo é a coisa mais certa, não só para si mas para todos os outros, porque
se soubéssemos de alguém que já sabe da resposta, então íamos atrás dessa pessoa.
Para perceber o sentido dos esforços de um filósofo, uma informação que ele deixou
de passagem pode ser tão importante como os livros que ele escreveu. Cioran escreveu livros
muito depressivos, que parecem que tentam acabar com qualquer esperança de viver. Numa
entrevista ele disse: “Quem me compreende sabe que eu sou um palhaço”. Então, o que ele
faz é assumir um traço da mentalidade romena, que é falar em nome do diabo, como se fosse
um exorcismo. Mas claro que nem tudo o que consta da biografia de um filósofo importa para
a interpretação das suas obras. Por vezes, ele está seguro de ter alcançado algumas certezas
teoréticas mas não consegue acompanhar ao mesmo nível na vida pessoal, como no caso de
Scheler, que escreveu obras importantes de filosofia católica mas não conseguia deixar de ser
mulherengo. Havia uma tensão na sua vida pessoal, de que ele estava consciente, mas que
não invalidava a sua obras, mas noutros casos pode invalidar ou relativizar ou tornar a
interpretação mais complexa.
O caso de Rousseau é bem diferente do de Scheler. Ele dizia que a sociedade se origina
de um contrato social, mas um contrato pressupõe já a existência da sociedade. Então, o
contrato social é apenas uma figura de linguagem, mas isto não está claro para Rousseau. No
exame da vida dele vemos que ele desconhecia bastante a sua própria alma apesar de escrever
muito sobre si mesmo. Ele dizia que era incompreendido, que era muito bondoso, mas ao
mesmo tempo cometeu uma série de maldades e abandonou os próprios filhos. Estas
contradições na sua vida pessoal, que ele se impedia de ver, reflectiam-se na impossibilidade
de ele ver a diferença entre uma figura de linguagem e uma descrição de realidade. O caso de
Rousseau é tal que o conteúdo do que ele dizia não tinha autonomia filosófica suficiente, é
mais um sintoma que pode ser julgado a partir de uma compreensão psicológica ou
psicopatológica.
Existe sempre algum resíduo psicológico nas filosofias, pelo que temos que perguntar
o significado deste resíduo para o filósofo no conjunto da sua vida. O filósofo pode dizer
certas coisas porque acredita nelas ou porque quer que nós acreditemos. Leo Strauss estudou
este fenómeno da camuflagem, mas não podemos usar esta abordagem como regra geral
interpretativa porque não é um elemento que explique o sentido da obra inteira para todos os
filósofos. Em Descartes a camuflagem é um elemento essencial [244], tal como em Galileu.
Na ciência moderna é assombroso o número de ideias conscientemente falsas que foram
introduzidas, e que se impregnaram por toda a humanidade nos últimos séculos, já se
348
[Aula 96]
287. A poesia lírica e a transição do discurso poético para o discurso
filosófico
O próprio da poesia lírica é expressar e fixar determinadas vivências da maneira mais
fiel e expressiva possível. Remete para certos momentos, dos quais em geral não é legítimo
retirar conclusões teológicas ou filosóficas. Cristo disse para nós arrancarmos o nosso olho
direito quando algo nos escandaliza, e podemos fazer uns versos sobre isto para expressar o
como este “preceito” é insuficiente para nós, mas sem que isso signifique que estamos
realmente discordando de Cristo. O olho direito significa tradicionalmente a inteligência, a
consciência reflectida, o pensamento lógico, assim, o que Cristo disse (que é um óbvia figura
de linguagem) pode ser entendido como um apelo para não ficar a racionalizar sobre
determinadas coisas que nos pareceram escandalosas. Mas Ele não disse que isso era fácil de
fazer, nem que nos iria alhear do foco problemático, que continua a entrar por outras vias. A
poesia lírica pode exprimir estas dificuldades e a Bíblia tem vários momentos líricos, como o
349
Hoje parece que a função do filósofo é produzir obra escrita, mas isso é uma exigência
da profissão filosófica quando enquadrada na universidade, em que o sujeito se vê obrigado a
mostrar resultados, tal como fazem os professores de física ou de biologia. Mas é sintomático
que Sócrates não tenha deixado nada escrito e que ainda no século XX o filósofo Petre Țuțea
também se tenha resumido quase inteiramente ao ensinamento oral. A própria realização de
livros é muito lenta, sendo a exposição oral muito mais rápida. Alguns dos trabalhos mais
importantes de Hegel, Husserl ou Bernard Lonergan têm por base transcrições de aulas. α96
O hiato entre pensamento e realidade já vinha de Descartes, que com a sua dúvida
sistemática punha tudo em dúvida menos o eu que fazia tal operação. Assim, criava-se o
abismo entre esse eu e a realidade. David Hume foi mais além e disse mesmo que não
encontrou forma de provar a existência de um eu que se pensa, apesar de acreditar na sua
existência. Ele levou a sério o eu cartesiano mas percebeu que o eu que se pensa não prova,
só por isso, a sua própria substancialidade. Podem ser apenas estados momentâneos que
estão aqui envolvidos. Então, em Hume já é mais do que um hiato entre pensamento e
realidade, é um fosso entre o homem enquanto sujeito pensante e o homem enquanto sujeito
existente. Mais tarde a psicanálise veio dizer que a verdadeira substância é inconsciente, é o
id. Mas tudo ainda ficou mais etéreo com a linguística moderna, para a qual todos os
pensamentos são como se fossem meras convenções linguísticas que devem prevalecer sobre
a percepção de realidade. A separação entre pensamento e realidade ficou radicalmente
afirmada no desconstrucionismo, que diz que aquilo que pensamos saber não passa de uma
combinação de palavras que montamos mentalmente e que realmente só sabemos o que diz o
dicionário e a gramática, sendo tudo o resto suposição ou imaginação.
350
Toda esta linha de pensamento não apenas tem um evidente carácter patológico como
devia logo suscitar a questão de saber se todos estes filósofos acreditaram no que diziam ao
ponto de ajustarem em conformidade as suas acções na vida real.
Kant dizia que apenas temos conhecimento nos fenómenos e não da coisa em si, mas
percebemos que escreveu livros para compreendermos a sua filosofia em si e não apenas o
seu aspecto fenoménico.
David Hume dizia não ver uma causa quando uma bola de bilhar se move e embate
noutra, via apenas dois momentos. Na realidade, ele viu um facto único, mas depois
seccionou abstrativamente os pedaços, porque não é verdadeiramente possível dizer onde
termina o movimento da primeira bola e começa o da segunda. A continuidade do processo é
o que chamamos de causa, mas como Hume operou abstractivamente um corte, ele não
conseguia ver causa alguma. Obviamente que o que ele fez foi inverter a história do evento.
Vemos a linguística moderna afirmar que a estrutura da linguagem nada tem a ver
com o mundo exterior. Mas se observarmos com alguma atenção, vemos que quase todas as
línguas ocidentais têm uma estrutura de sujeito, verbo e objecto, e que corresponde
precisamente à estrutura de qualquer facto ocorrido, mesmo no caso de uma acção reflexiva,
em que o mesmo indivíduo é sujeito e objecto, embora sejam papéis distintos na acção (a
diferença fica brutalmente evidenciada no caso do suicídio). Para certos linguistas isto é
apenas uma projecção, mas se não conseguíssemos fazer uma distinção de sujeito, acção e
verbo numa situação física também não iríamos conseguir distinguir estes termos na
gramática pura. E também sabemos distinguir perfeitamente o que é fazer uma coisa do que é
dizer fazer essa coisa. A linguagem só ganha autonomia enquanto objecto depois de um
grande esforço de abstracção, porque naturalmente sempre esteve junta à realidade. Se
percebemos algo da realidade é porque ao mesmo tempo já percebemos ali implícita uma
estrutura gramatical e lógica. Podemos também fazer uma reflexão posterior sobre o que
fizemos e considerar apenas os nossos actos mentais separados do facto, mas é uma
separação que não existe em si mesma. O que a linguística faz é inverter isto: começa por
considerar que a separação é real e depois conclui que a junção é uma projecção.
O físico David Bohm, no livro Totalidade e Ordem Implícita, diz que o único tempo
verbal admissível seria o gerúndio, porque só vemos processos. Se assim fosse, não haveriam
acções terminadas. Tudo o que conhecemos tem uma estrutura temporal, e ela mesma exige
uma diferenciação entre substância e acção: o agente é uma substância que permanece a
mesma durante a acção. Esta diferenciação implica a necessidade de uma diferenciação
gramatical de sujeito e verbo. Então, as estruturas fundamentais da gramática e da lógica
estão imbricadas na própria estrutura da realidade.
ou nada teria ocorrido. Sendo a percepção a recepção de uma informação, então, ela já é
inerente à estrutura da acção.
Dizia Heráclito que “tudo flui”, e isso implica que apenas podemos fazer afirmações
literais sobre a estrutura da realidade na forma de narrativas. Somente de forma analógica
podemos expressar dados constantes e permanentes. O sujeito tem uma certa permanência
em relação à acção ou nem conseguíamos perceber o que aconteceu. Numa frase, o sujeito é
tomado como se fosse permanente, mas é uma constância relativa, dado também ele estar
continuamente se transformando. Podemos, então, descrever o mundo de duas formas: pela
narrativa, imitando a estrutura temporal da acção; ou de maneira descritiva, em que todo o
transcurso temporal é colocado numa moldura eterna. Mas a moldura eterna não é invenção
nossa, na realidade só podemos ver as coisas pelo aspecto temporal porque as conseguimos
ver na eternidade. Por mais ampla que seja a narrativa, ela é sempre incompleta e apenas a
sua visão na escala de eternidade garante o seu encaixe na realidade, o que também dispensa
as narrativas de terem de ser completas. A eternidade é o “lugar” em comum que temos com
outras pessoas e que possibilita que elas confrontem a nossa narrativa com outras narrativas
e com a escala de eternidade.
Deus não apenas faz esta narrativa total como também criou uma sua forma verbal
com a Revelação. Diz Cristo que os céus e as terras passarão mas as palavras d’Ele não. O
guiamento fundamental para compreender a realidade é o texto da Revelação, que é uma
versão abreviada da narrativa divina. O texto revelado é verdadeiro quando se prolonga em
acontecimentos que não estão no texto mas encontram-se na narrativa divina. Então, o que
garante a veracidade do texto não é a avaliação dos teólogos mas a acção divina no mundo
observável. Se existe uma sequência de milagres inteiramente coerentes com o texto da
Revelação, isso atesta que esta veio de Deus. O milagre não pode ser entendido como uma
ruptura das leis naturais ou como um acontecimento extraordinário. Ele tem uma coerência
total com o texto da Revelação, e tem de ser considerado na sua totalidade, sem deixar algum
aspecto de fora. Logo, não tem sentido isolar os aspectos correspondentes às várias ciências e
estudá-los isoladamente, porque o carácter miraculoso revela-se precisamente na conjunção
inseparável dos vários aspectos. Sem o senso do facto concreto não é possível compreender
um milagre, que é uma conjunção de factores essenciais e acidentais absolutamente
inseparáveis.
A narrativa tradicional cristã foi substituída por outra narrativa na modernidade, que
diz que os factos de ordem material acontecem por si sem que exista alguma causa
transcendente. Assim, o mundo material à nossa volta já não tem mais nada a ver com o que
352
pensemos dele. Os produtos culturais (mitos, lendas, obras literárias, etc.) passam a ser
vistos apenas como processos interiores alheios à realidade do mundo externo. Só a ciência
moderna, através de Newton, teria dito pela primeira vez algo a respeito do mundo exterior.
Obviamente que esta narrativa moderna é falsa. Não teria sido possível aos seres humanos
viverem durante milénios se o pensamento deles não tivesse ligação nenhuma à Natureza e se
esta nada comunicasse.
[Aula 97]
meticulosa. Alguns destes livros serão lidos por nós dezenas de vezes ao longo da vida,
porque sempre vamos retirar coisas deles.
Por outro lado, existem autores que podem ter dito algumas coisas importantes, como
Giambattista Vico, mas cujos livros não são primores de técnica filosófica, pelo que a leitura
atentas das suas obras não faz parte da formação filosófica.
Uma obra modelar em filosofia é aquela em que o filósofo colocou questões e fez com
que a clareza do conhecimento prevalecesse sobre a nebulosidade do real. Trata-se de um
briho fugaz. Platão dizia que o homem capaz de apreender o todo merece o nome de
dialéctico, sendo a dialéctica o método essencial da filosofia. Quem não percebe o todo não
entende as dificuldades mas realmente apenas Deus é dialéctico. A existência da filosofia
prova que os seres humanos são capazes de apreender algo do todo e que a filosofia é uma
actividade inspirada por Deus de certo modo. Existem momentos de inspiração em que os
homens percebem muito mais do que aquilo que poderiam dizer, mas podem transmitir algo
daquilo para que outros possam refazer a mesma experiência, ou seja, o que começou como
uma inspiração deve completar-se com outra inspiração. Dificilmente a nossa inspiração
coincidirá com a do filósofo, porque veremos as coisas noutra escala, noutra época, sob
ângulos diferentes, mas não teremos realmente feito a leitura se não nos abrirmos para a
inspiração original.
Primeiro, temos de ultrapassar a malha do texto e não nos deixarmos atrapalhar por
dificuldades linguísticas. Mas a filosofia não está realmente no texto, ela é aquilo que o
filósofo percebeu, a busca em que se empenhou, os actos cognitivos reais praticados por ele e
que nós também podemos repetir em certas condições. O texto pode nos abrir para esta
354
experiência mas também pode dificultar, porque o filósofo pode não ter grandes habilidades
verbais.
De seguida temos uma lista mínima de obras de filosofia com uma função modelar. Se
queremos aprender a filosofar, temos de o fazer como os filósofos expressam de algum modo
nestes livros. As leituras devem ser feitas como se tivéssemos romances em mãos, pelo que
temos de operar a “suspenção da descrença”. Estamos assistindo a um drama intelectual
relacionado com a busca da verdade em relação a determinados pontos, tendo nós um
envolvimento não directo mas imaginário, tal como a pessoa que assiste a uma peça de
teatro. Antes de tentar saber se as ideias correspondem à verdade ou não, temos de nos
impregnar delas como possibilidades, tal como nos impregnamos das emoções das
personagens de ficção sem que aquilo faça parte da nossa vida real. É uma experiência
estética que depois permite uma compreensão analítica muito mais apurada. Claro que a
abstenção total de julgamento é impossível, até por ser algo quase automático, mas temos de
tomar estes julgamentos como provisórios e apenas como elementos da composição da
experiência de leitura.
b) Leis, de Platão. Trata-se de um livro longo e com análises minuciosas de questões cuja
importância pode nos escapar. A importância real do livro só se revela no final. Existem
outros diálogos platónicos com muita importância mas com A República e as Leis já obtemos
muita coisa, sobretudo a respeito do jogo dialéctico. Noutra aula, Olavo de Carvalho,
seguindo a sugestão de um aluno, disse para começarmos as nossas leituras formativas por
outros diálogos de Platão: Apologia de Sócrates e Fédon [294]. São leituras que nos dão uma
boa imagem do projecto socrático.
d) Confissões, de Santo Agostinho. Aqui temos um indivíduo contando a sua história, não
apenas apenas as suas ideias mas remontando ao fundo existencial e quase irracional de onde
elas se foram formando. É um livro de memórias de onde surgem alguns momentos
brilhantes da filosofia universal, e que são tratados dentro do tecido existencial do autor, pelo
que não é muito difícil fazer o trabalho de imaginação.
outra, vendo as consequências na nossa conduta, nos julgamentos que fazemos de nós
mesmo ou da vida, e assim por diante. O fim de cada “drama” serve de fundação para a
pergunta seguinte e aquilo que fica de fora do drama é o que o fundamenta. Enquanto a
Suma Teológica é dirigida aos fiéis católicos e pode apelar à autoridade da Bíblia e da
tradição católica, a Suma Contra os Gentios é dirigida a outro público (judeus e
muçulmanos), pelo que a argumentação é mais puramente filosófica.
f) De Primo Principio, de John Duns Scot. É uma das grandes obras da metafísica universal e
também muito difícil de ler, devendo a leitura ser muito lenta. Neste livro está sempre
presente a tensão entre o filósofo enquanto pensador humano e o filósofo como receptor de
uma inspiração divina, e é isto que nunca devemos perder de vista.
Longe vão os tempos em que o intelectual era tido como aquele que buscava a verdade
e como aquele que desse a conhecer ao público algo que este não sabia, porque agora trata-se
apenas de repetir as mesmas opiniões de sempre, mas dando ares de estar a dizendo grandes
novidades. Cada um toma a sua própria ignorância como padrão obrigatório de
conhecimento. As camadas mais educadas vivem num circuito fechado, não se abrindo a
mais nada que não seja o que elas mesmas repetem. Face a este panorama, no futuro pode ser
mais eficaz aos alunos do Curso Online de Filosofia eleger como público os mais pobres, para
começar a educa-los desde o início, porque os universitários já adquiriram um conjunto de
incapacidades invencível. William Hazlitt já tinha falado das desvantagens da superioridade
intelectual: se nós entendemos o argumento do adversário mas ele é incapaz de entender o
nosso, então, ele já ganhou. A única coisa que podemos fazer é bater no sujeito, e se não
tivermos recursos para isso temos de voltar costas e ir para casa. α97
Uma coisa má que fizemos, vergonhosa, pode ser importante para esta investigação,
porque não contamos aquilo a ninguém e, assim, somos o único critério de veracidade
daquilo: ao mesmo tempo somos o sujeito da acção, o sujeito da narrativa e aquele que está a
meditar sobre o ocorrido. Temos que distinguir o sucedido de interpretações a respeito e de
acréscimos auto-justificadores, que até podem ter sentido mas não podemos deixar que
modifiquem a história. A vergonha que temos deve ser apenas perante nós mesmos e perante
Deus, por isso devemos averiguar se não é uma vergonha que subentende um certo público
imaginário que tem um determinado critério. Isto é um demónio acusador que nos força a
nos defendermos. Este tribunal interior não busca a verdade, apenas a culpa e a inocência, e
nunca termina, sempre oscilando entre acusação e defesa, e ele mesmo é o caminho da
falsidade.
357
Para contarmos a história com sinceridade temos de nos afastar deste tribunal
interior e, sem medo, confessarmo-nos perante Deus, que não está ali como um juiz mas mais
na posição do médico a quem contamos os nossos sintomas e, assim, Ele nos cura. A
discussão moral interior pode atrapalhar bastante a busca da verdade, mas temos de lembrar
que o nosso ouvinte é justo, bondoso e que nos compreende melhor do que nós mesmos.
Perante Deus apenas temos uma vergonha esperançosa, não é aquela vergonha perante uma
plateia de escarneadores, porque Deus realmente não nos julga, perdoa-nos e saímos limpos.
Podemos verificar experimentalmente que só conseguimos contar a história verdadeira se
passarmos do tribunal humano (os “pensamentos ociosos” de que fala a Bíblia) para o
julgamento divino, porque sem inspiração divina não conseguimos.
O mais importante que vamos descobrir sobre a verdade encontra-se neste processo
de auto-descoberta, em que passamos de um nível de discurso para outro nível de discurso.
Nenhum tratado de metodologia científica pode nos ensinar isto, e eles mesmos têm a sua
validade condicionada a esta verdade prévia, que envolve a sinceridade e a idoneidade do
testemunho. No fundo, trata-se do método da confissão descoberto por Santo Agostinho, mas
que Sócrates já usava a seu modo e que vemos que é ainda a base da fenomenologia de
Husserl, que pretende descrever um objecto tal qual ele se apresenta, sem os acréscimos e
interpretações. Sem o método da confissão a fenomenologia também não vai resultar.
No fundo, todos os grandes filósofos acabam por usar o método da confissão, a que
dão os seus próprios acréscimos. Só avançamos para saber o desconhecido tendo noção do
que sabemos, e já Aristóteles dizia que o conhecimento vai do mais conhecido para o menos
conhecido. O sujeito do conhecimento é como uma lente, que tem que ser limpa ou vão
aparecer as suas manchas. Esta limpeza corresponde à distinção que Husserl fazia entre o
que aconteceu, o que é a nossa realidade e quais são as nossas interpretações. Estas últimas
até podem ser legítimas mas já é uma deformidade confundi-las com o facto. O facto é aquilo
que já não pode ser mudado, pelo que alguma coisa que ainda está decorrendo e é
modificável não é um facto ainda, é a sua produção, que pode tomar várias direcções até ele
ficar fechado. Temos também de meditar sobre as situações que se fecham para sempre, não
temos como voltar a elas mas fazem um destino. Elas estão para nós como a natureza física,
já não fazem mais parte do nosso processo interior, materializaram-se e fazem parte do
quadro imutável da nossa vida. Isto permite-nos ter uma ideia do coeficiente de liberdade e
de determinismo na nossa vida, e depois disso é leviano discutir a questão apenas
teoricamente. α97
[Aula 98]
292. Clubismo intelectual e cultura verbal (“gostosão intelectual”)
Existem algumas filosofias prontas às quais basta aderir da boca para fora (o
Facebook é um excelente meio para tal) e logo o sujeito começa a julgar as filosofias alheias,
sentindo-se um “gostosão intelectual”. Uma destas correntes é o marxismo, entendido em
sentido lato, ao qual se pode aderir mesmo sem alguma vez ter lido uma obra de Marx, mas
que dá um reconforto de pertencer à parte mais progressista e iluminada da humanidade.
Outra linha é a do aristotelismo-tomismo, que também dispensa contacto com os mestres,
358
basta frequentar a paróquia e logo se tem uma autoridade para condenar os hereges. Uma
escola com alguma importância pública é o liberalismo iluminista-materialista-cientifista,
que para ser um expoente do mesmo basta ter lido o Dicionário Filosófico, de Voltaire, a
Sociedade Aberta e Seus Inimigos, de Popper, e ter acompanhado algumas polémicas de
Richard Dawkins. Podemos dizer que o positivismo perdeu a sua força autónoma e foi
absorvido por esta terceira corrente. Existe uma quarta corrente de ideias, a dos
tradicionalistas guenonianos, evolianos e duguininianos, mas que ela mesma se vota ao
elitismo por submeter os seus membros à prática do segredo iniciático.
Quem não tenha dissolvido a sua individualidade num destes quatro grupos e, pior
ainda, ainda teime em estar apegado a práticas como a filosofia, a teologia, a ciência ou a
sabedoria esotérica será chamado pelo primeiro grupo de “fascista”, pelo segundo de
“herético, pelo terceiro de “fanático religioso” e pelo último de “profano”. Todos os membros
destes grupos concordam com a superioridade da solidariedade grupal sobre a pretensão
individual de investigar a verdade da situação concreta. Fora deste quatro “clubes” considera-
se que não existe vida intelectual, que passou a resumir-se a uma actividade classificatória
das ideias consoante a proximidade ou afastamento daquilo que diz o grupo de referência.
A identidade grupal que estamos a ver deriva de uma identidade verbal, isto é, não
passa de uma capacidade de repetir as mesmas frases e de fazer certas variações em torno
para obter um reforço social e psicológico. O tipo que diz “eu sou marxista” ou “eu sou
liberal” apenas tenta proferir uma profecia auto-realizável. Isto é um sintoma psicótico e nem
se confunde com o antigo defeito de possuir apenas cultura livresca, hoje é apenas uma
cultura verbal, mas que é muito atractiva porque é uma forma de fazer amigos, reunir
influência, ter um grupo de referência e até um sentimento e uma segurança associados.
Contudo, quase tudo na nossa experiência chega-nos sob a forma de coisas e não de palavras.
Se os elementos do mundo exterior não entrarem forçando a linguagem a se ampliar, a se
modificar e aprofundar, então, a linguagem estabiliza-se e as pessoas vão dizer sempre a
mesma coisa.
Nas quatro correntes listadas, nota-se que há pouco interesse em conhecer a própria
tradição e um grande desejo de julgar as tradições alheias. Um verdadeiro aristotélico-
tomista levaria pelo menos 10 anos a absorver esta tradição. De forma idêntica, há
pouquíssimas pessoas que estão nominalmente dentro do marxismo e que estudem Karl
Marx, mas todos condenam enfaticamente qualquer um que ponha em causa qualquer ideia
marxista. São escolas de pensamento que se divorciaram definitivamente do conhecimento, é
359
tudo uma actividade teatral, histriónica, algo que decorre do desaparecimento da cultura
superior, o que possibilita todo o tipo de perversões. α98
Depois ocorreu na Grécia uma mutação, e a expressão da realidade última já não foi
cristalizada numa narrativa mas em afirmações sobre o ser. Passou-se do tempo passado,
usado nas narrativas, para o tempo presente, mas o presente eterno. Quando Parménides diz
que “o ser é, o não-ser não é” isto não se refere a um momento do tempo, é uma fórmula
metafísica permanente e imutável; é o contrário do acontecer, porque aquilo que acontece
começa e termina, mas o ser nunca cessa. Então, por trás das narrativas era agora
vislumbrada uma realidade mais permanente, transcendendo tempo e espaço.
Contudo, o que se acontece quando se passa das coisas para os entes vivos? Nunca
confundimos uma pessoa com uma coisa. Podemos escrever um poema em que uma árvore
fala mas sabemos que se trata de uma alegoria, ou então temos alguma patologia. Os animais
são seres intermediários, com algo de coisa e algo de gente. E eles distribuem-se numa escala,
havendo alguns mais parecidos com coisas e outros mais parecidos com os seres humanos,
como os macacos e os cachorros. Contudo, já temos uma descrição genética de algumas
espécies animais, que assim podem ser cruzadas e gerar novos seres. Então, passou também
a ser próprio da natureza animal estar sob domínio humano, não apenas intelectual mas já
tecnológico.
O que o estudo das narrativas míticas nos diz é que o mito é o quadro supremo de
todo o pensamento humano, incluindo o pensamento científico. O pensamento mítico não
pode ser superado simplesmente porque não existe algum outro que seja mais amplo que ele.
A ciência pode recuar até à origem da matéria, mas chega à conclusão que havia um conjunto
de forças e não tem como lidar com isso, porque estas forças não são um nada. Então, temos
de recuar e usar outros meios que não são os científicos. No final chegamos a um mundo
mitológico e ao início da própria Bíblia, que diz que no início era o Logos. O pensamento
mitológico conta tudo sob a forma de narrativas, que não se dão entre coisas mas entre forças
dotas de identidade, liberdade de acção e consciência de si mesmas, ou seja, de forças que
agem como seres humanos. Não há forma de superar a concepção antropomórfica do
universo. A realidade não pode ser reduzida a fórmulas matemáticas ou metafísicas, nem
sequer a leis, porque a realidade não é uma coisa. Deus transcende as suas próprias leis.
[Aula 99]
Fédon. Devemos ler estas obras antes de entrar na lista de leituras formativas indicada
anteriormente [289].
Sócrates nunca aparece nos diálogos como portador de uma doutrina, mas sempre
mostra um esforço de investigação, e no fim termina com uma dúvida. No Fédon, Sócrates
evidencia uma grande confiança na imortalidade da alma, mas também tem consciência de
estar indo em direcção a um grande ponto de interrogação. Sócrates não é um pregador de
uma doutrina pronta mas o inaugurador de um esforço de investigação a ser prosseguido por
um prazo indeterminado. Esta atitude interrogativa é o projecto socrático, e não é apenas
algo próprio ao filósofo mas aquilo que o define. Ao mesmo tempo, é uma atitude que
expressa algo da condição humana, situada por Platão entre o anjo e o animal, o ser que vive
em perpétua tensão entre o conhecimento e a ignorância.
Indo de Sócrates para Platão e deste para Aristóteles, vemos que o modo de exposição
filosófico vai passando gradualmente do narrativo para o doutrinal. Contudo, a parte mais
362
Os pré-socráticos buscavam uma resposta definitiva sobre a lei fundamental que rege
o universo, cada um olhando numa direcção específica. Mas a filosofia toma consciência de si
mesma com Sócrates quando este percebe que não há uma resposta definitiva. A Apologia de
Sócrates e o Fédon devem ser lidos com estas coisas em mente.
O esforço filosófico está sempre, de algum modo, relacionado com a busca da verdade.
Ironicamente, Pilatos questionou “Quid est Veritas?” precisamente diante de Cristo, que é a
própria Verdade. Pilatos substituiu a Verdade efectiva, existencial, diante dele para substitui-
la por uma pergunta. Devemos sempre questionar se realmente buscamos a verdade ou se
fugimos dela e se já partimos em busca de uma formulação verbal, de um conjunto de
proposições. A ciência moderna quer nos vender a ideia de que as leis científicas são verdades
sobre a Natureza, mas na realidade são construções mentais que, no caso da física quântica,
versam sobre a materia secunda, uma faixa com existência virtual, intermediária entre o ser
o não-ser (ver o livro O Enigma Quântico, de Wolfgang Smith).
bichinho, mas este não entende a situação, então, busca prazer e encontra dor e depois foge
desta e ainda encontra mais dor.
Existem apenas algumas entidades que podem ser classificadas como sujeitos da
acção histórica. Desde logo, as grandes religiões universais, que conseguem ensinar geração
após geração a prosseguir fielmente certas acções, nomeadamente pela actuação dos
sacerdotes. As religiões criam e desfazem nações, continuando imperturbavelmente. Em
segundo lugar, temos as sociedade esotéricas e iniciáticas, como a maçonaria, que
conseguem agir com os mesmos fins durante séculos através de disciplina, ritos e
compromisso de segredo. Vemos a maçonaria nos EUA continuando como se nada fosse ao
longo das mudanças ocorridas na estrutura política. As dinastias familiares são um terceiro
tipo de agente histórico, que podem ser tanto nobiliárquicas como plebeias, importando que
consigam inculcar em cada nova geração uma série de deveres. Vemos esta continuidade em
dinastias como os Bourbon, os Tudor, os Rockefeller ou os Rothschild, com um acção
continua ao longo dos tempos e passando por vários Estados. Também podemos considerar
as entidades espirituais (Deus, os anjos e os demónios) como agentes históricos, porque têm
objectivos permanentes e continuam agindo. Pode-se considerar um quinto tipo de agentes
históricos, que engloba os movimentos e os partidos revolucionários, mas que constituem
uma variação das sociedades iniciáticas, dado usarem as mesmas técnicas de reprodução
destas, incluindo o comprometimento, juramentos, segredos, ameaças de morte, etc.
Dugin fala, erradamente, das entidades geopolíticas como agentes históricos, mas ele
mesmo não percebe que é um instrumento de um verdadeiro agente histórico, dado que o seu
projecto eurasiano nasce de uma dialéctica interna da Igreja Ortodoxa. Para ele, a grande
heresia ocidental foi a separação entre Igreja e império, algo que não aconteceu na Rússia,
em que o Czar (Tzar) é o chefe da Igreja. Imediatamente, o limite geográfico da expansão da
religião é o próprio limite do império, ao passo que no ocidente a Igreja Católica pode se
expandir para qualquer parte sem ter de esperar por um imperador. Já a Igreja Ortodoxa ou
se contenta em ser uma igreja nacional ou aposta numa expansão coincidente com a
expansão do império. O plano de Dugin é precisamente criar um império mundial sob
hegemonia da Igreja Ortodoxa, pelo que ele não é apenas um agente de uma força geopolítica
(nacional ou imperial) mas um agente da própria Igreja Ortodoxa, embora ele fale em nome
de uma entidade vaga chamada “império eurasiano”. A Igreja Ortodoxa passou pelos
impérios de Kiev e de Moscovo e sobreviveu à Revolução Russa, continuando agora dando
forma ao novo projecto imperial, pelo que é ela o verdadeiro agente histórico.
Império eurasiano é apenas uma metáfora, que pode ser tão elástica que faz estender
o império das “potências terrestres” da Rússia à América Latina. Dugin também faz uma
distinção entre a ideologia individualista, para ele intrinsecamente ligada aos impérios
marítimos, e a ideologia holista, que seria própria dos impérios terrestres. Mas pela extensão
do império eurasiano, este abrangeria várias regiões, uma com um “holismo ortodoxo”, outra
com um “holismo islâmico”, que teriam ainda de conviver com um “holismo comunista”, que
acredita na História como força transcendente. São holismos incompatíveis entre si, cada um
com o seu “absoluto”, e a mera concorrência entre eles desmente imediatamente este
estatuto, pelo seria necessário criar um supra-holismo com uma autoridade superior ao
365
comunismo, ao Islão e à Igreja Ortodoxa, algo que o próprio Dugin não deve imaginar ser
possível. α99
A essência ou a natureza é o algo que o ente é. Alguns autores usam os termos como
sinónimos, o que é aceitável fazendo uma distinção. A natureza de um ente é o que faz ele ser
o que é, ao passo que a essência designa a nossa apreensão desta natureza. É uma diferença
funcional, de acentuação. Podemos também chamar a natureza de algo de arquétipo, o que é
apenas outra acentuação: é a natureza compreendida como origem remota e primeira, é o
modelo da possibilidade do ente anterior à existência do mesmo, ou ainda, é a natureza
considerada na escala das causas. Podemos chamar esta definição de arquétipo ontológico, e
o arquétipo junguiano é uma imagem muito antiga sobre ele que a humanidade carrega
desde o seu início. α99
[Aula 100]
297. A constância da tradição pitagórica na História ocidental
A ideia de perfeição extra-humana, como concebida pelos filósofos, remonta a
Pitágoras, que disse que tudo é feito por números. Mas os números não existem na Natureza
e nem aparecem na experiência sensível. Também não podemos dizer que são apenas uma
coisa da nossa mente, porque sempre 2 + 2 vão ser igual a 4, por mais que refaçamos a conta
e a apliquemos a qualquer tipo de objecto material. Assim, os números funcionam da mesma
maneira no sujeito e no objecto e ligam os dois de uma forma quase mágica. Desde cedo que
os números fascinaram as pessoas, porque nas sociedades primitivas o mundo abstracto
funciona como um refúgio contra o caos do mundo físico. Isto ainda tem ressonância na
filosofia pitagórica-platónica.
Se, atendendo a Pitágoras, tudo é feito de números, e sendo estes algo que dominamos
intelectualmente, então, o mundo afigura-se menos ameaçador, porque mediante cálculos
podemos de alguma forma manejar o conjunto. Claro que isto é uma ilusão que visa combater
uma sensação de terror-pânico, mas, ao mesmo tempo, transforma-se numa ambição de
poder. Em geral, as pessoas evitam meditar sobre o infinito, não confessando como Pascal
que “a solidão dos espaços infinitos me apavora”. Contudo, o infinito é a própria condição
onde vivemos. Sempre existiram duas tendências no homem. Por um lado, há a tendência de
nos abrirmos para o infinito e reconhecermos o nosso desamparo e que dependemos da
366
protecção de uma força que nos transcende, sendo esta tão incompreensível quanto o nosso
terror. Por outro lado, há a tendência de refúgio na abstracção e na ilusão de domínio.
Em Pitágoras aparece pela primeira vez com máxima clareza a busca de refúgio no
abstracto. Diz-se que o sujeito que descobriu os números irracionais foi executado pela escola
pitagórica, porque vinha destabilizar a ordem encontrada, dado ter voltado a inserir o
mistério e o terror do infinito de que se estava a tentar escapar em primeiro lugar. Os
números irracionais ameaçavam todo o universo matemático de ser tão indefinido e
incontrolável como o universo físico. Mesmo se a história não for verídica, ela é simbólica a
respeito desta tensão em que vive o homem.
A partir dos séculos XVI e XVII ocorreu o florescimento da ciência moderna, muito
devido à aplicação de princípios matemáticos. Ao mesmo tempo impôs-se a característica
tipicamente moderna de confiar mais nos números do que nos factos. Galileu inverteu os
termos quando disse que ia usar-se de demonstrações provantes e de experiências apenas
sensatas, subalternizando assim os factos. Facilmente percebemos que a melhor
demonstração apenas prova a sua própria exactidão, nada garantindo sobre o mundo
exterior, para o qual apenas se pode fazer a ligação através da experiência, pelo que esta é que
tem que ser perfeitamente exacta. Surgiram também nesta altura, ligadas ao advento da
ciência moderna, teorias como o heliocentrismo e a gravitação universal. Nestas, uma
multidão de factos do mundo físico é reduzida a uma fórmula que os explicam teoricamente.
A experiência para mostrar que as duas coisas estão ligadas mostrou que não era bem assim,
que a teoria é apenas válida em certas condições (caso da gravitação universal) ou só é válida
enquanto considerada como mais um ponto de vista, como no caso do heliocentrismo.
Galileu ofereceu uma data de experiências mentais para apoiar a teoria heliocêntrica, mas
hoje sabemos que o examinador inquisidor, São Roberto Belarmino, tinha razão quando
disse que a teoria não batia com a experiência.
A física tal como vista por Newton, Galileu ou Einstein é sobretudo uma
matematização da física, onde a dedução puramente abstracta predomina sobre a experiência
367
e, por isso, é frequentemente considerada uma coisa superior. Já no séc. XX Husserl alertou,
no livro A Crise das Ciências Europeias, que a matematização da Natureza sobrepôs a esta
um outro ente que não sabemos o que é, e que Wolfgang Smith (O Enigma Quântico) diz que
é, para o campo da física quântica, a materia secunda, uma espécie de matéria virtual, algo
que aponta para o mundo das relações matemáticas que, supostamente, transcende, abrange,
domina e explica o mundo físico. Claramente, isto é um retomo a Pitágoras e é como estar a
dizer que “tudo é feito de números”. α100
A medida é a comparação de uma coisa com outra, e é alheia à natureza dos entes,
não sendo necessário levar em conta com as noções de substância ou de forma substancial.
Francis Bacon disse mesmo que a noção de forma substancial é uma fantasmagoria do
intelecto, e que devíamos apenas levar em conta os factos. Só que para ele os factos eram
constituídos de medições, o que não é aceitável. Facto é aquilo que nos chega através dos
sentidos, ao passo que uma medição é uma comparação matemática que impomos ao mundo.
Qualquer objecto pode ser medido de infinitas formas, pelo que o sistema de medições é
arbitrário em relação ao facto medido.
Esta arbitrariedade foi tornada num método por Kant, que disse que o observador
força a Natureza a responder a certas perguntas, que são as que ele mesmo faz e que podem
nada ter a ver com aquelas que o próprio facto sugere. Kant tinha consciência deste
problema, mas ele encontrou uma saída dizendo que o desejo humano de responder a certas
perguntas tem predomínio sobre a estrutura do facto. Como para ele as formas a priori do
entendimento eram idênticas em todos os homens, elas teriam validade universal, ainda que
não coincidissem com a estrutura da realidade externa. Esta coincidência já não importava
mais, agora só tinha relevância a exactidão e a formalidade tanto dos cálculos matemáticos
como de todas as formas culturais.
A ideia de Kant penetrou tanto nas ciências físicas como nas ciências humanas, que
podem não levar em conta para nada a noção de veracidade entendida como “coincidência
com o facto”, usando apenas noções como “estrutura”, “ordem interna”, “funcionalidade”,
etc. Isto desembocou no estruturalismo e no desconstrucionismo, em que as formas culturais
(textos, obras de arte, etc.) são consideradas entidades em si mesmas, já sem referência a
algo fora delas. Supostamente um texto apenas se refere a outro texto e assim por diante, mas
basta reparar que a mediação entre os autores é feita por objectos físicos, seja pelo papel dos
livros ou através de um computador. A suposição da independência do texto é válida apenas
como hipótese trabalho, para averiguar certas relações, mas não é uma descrição da
realidade. Devemos ter sempre em conta que todas as selecções abstractivas são feitas a
partir de um mundo natural que não foi criado por nós.
368
Mário Ferreira dos Santos distinguiu os números no sentido exotérico, vistos apenas
em termos quantitativos, dos números considerados em sentido esotérico, ou seja, visto como
formas. Estas formas ou fórmulas expressam relações que podem ser observadas tanto
externamente, entre os entes, quanto internamente, na constituição destes, ou seja, na forma
substancial. Então, uma única forma substancial de um ente contem um conjunto de formas
que podem ser expressas numericamente, e cada uma delas é um conjunto de relações
internas com uma estrutura numérica.
Vemos que tudo o que existe tem alguma unidade, mas é uma unidade problemática,
não é a unidade total. Assim, não existe nada no mundo natural que seja indecomponível, ou
seria eterno e indestrutível. Em termos de simbologia numérica, podemos dizer que todos os
entes têm algo do número 1, mas também algo do número 2, que representa a divisão e a
contradição. Mas como estes dois aspectos existem em relação, não se resumindo nenhum ao
outro, então, temos uma estrutura ternária. Dentro desta estrutura temos uma relação de
proporcionalidade entre os elementos, de onde identificamos o número 4. Expressando o
quaternário a totalidade dos elementos antagónicos do ente, vemos uma nova unidade, que
não é simples mas complexa, e que é simbolizada pelo número 5. E isto pode prosseguir
indefinidamente, e vamos descobrimos novas categorias das quais o objecto participa
necessariamente, pelo que idealmente cada ente tem um número.
Mário Ferreira dos Santos mostrou que a sequência dos números contém, de forma
compacta, as categorias inteiras pelas quais o objecto pode ser examinado e que têm que
estar nele para que possa existir. Os números já não são aqui encarados como unidades de
medida, como coisas externas que são projectados sobre os entes, mas passam a ser uma
linguagem para exprimir a própria fórmula substancial. Mário Ferreira dos Santos diz que o
número 5 é a lei de proporcionalidade intrínseca daquele objecto em particular, ou seja, o
conjunto de proporções que definem e fazem com que o objecto seja o que ele é.
Podemos dizer que Pitágoras tem razão ao dizer que os entes são números se
entendermos o número como a fórmula da lei de proporcionalidade intrínseca e como a lei
constitutiva de todas as relações que o ente pode ter com todos os demais entes do ponto de
vista das possibilidades reais de relação entre aquela substância e as demais. Mas não
conseguimos descobrir o número de um ente, porque podemos sempre descobrir novas
coisas sobre ele e recompor a sua unidade com níveis de abrangência cada vez maiores, e isto
nunca termina porque para chegar “ao fim” seria necessário ter todas as possibilidades de
relação entre o ente e todos os outros existentes ou por existir. O conhecimento de um único
ente seria indefinido ou inalcançável mas, ao mesmo tempo, finito, dado se tratar de um
número. Se quisermos encarar o mundo dos factos como sendo composto por números, o
369
conhecimento destes não é uma questão de medição conferível por experiência mas de
penetração na estrutura numérica de cada forma substancial, o que apenas pode ser feito de
forma analógica ou simbólica. O ente já é um símbolo e o número dele só pode ser outro
símbolo que remete para algo que não vemos, apenas entrevemos.
Apesar de apenas termos uma abertura para a apreensão da essência dos entes – e
esta apreensão é sempre será incompleta, analógica e simbólica –, de alguma forma podemos
conhecer a lei de proporcionalidade intrínseca dos entes. Percebemos que é assim porque
conseguimos distinguir um objecto de um outro, o que só é possível porque captamos tanto a
forma substancial como algo das condições da sua existência individual presente (que
também tem idealmente uma expressão numérica), e podemos nos referir a esta unidade
mediante um símbolo numérico desconhecido.
Mas se tudo pode ser expresso idealmente por números, as coisas são algo mais do
que números, dado também terem existência. A lei de proporcionalidade intrínseca expressa-
se por números, seja o objecto existente ou não. Se quisermos expressar a passagem do nada
ao ser, o mundo dos números envolvido vai ser tão vasto e inabarcável quanto o mundo
físico, pelo que, em última análise, o resultado só tem valor analógico ou poético. Para Mário
Ferreira dos Santos, isto é a culminação do saber humano e não tem fim. Ainda assim, não
podemos dizer que estes números sejam a linguagem de Deus, dado que esta contém não
apenas números mas também coisas existentes, ou seja, Deus tem a linguagem da presença
dos seres. Na realidade, Deus fala com uma multiplicidade ilimitada de linguagens, e a dos
números é apenas a mais fácil para nós, porque simplifica e cria uma barreira defensiva entre
nós e a complexidade do mundo real.
Mesmo tendo Mário Ferreira dos Santos feito uma majestosa explicação do mundo
dos números (talvez a mais alta realização intelectual já alguma produzida), ele não tinha a
pretensão de ter conhecido a “explicação última”, mas Newton teve essa pretensão com a sua
matematização grosseira e puramente quantitativa da Natureza. A cultura moderna baseia-se
na presunção de decifrar a linguagem de Deus, mas apenas a “visão de Deus” oferece uma
resposta final, que não aparece como uma explicação doutrinal mas como uma narrativa do
conhecimento de uma pessoa infinita e inabarcável mas, ainda assim, apreensível [294]. Na
realidade, se não existisse experiência do infinito não haveria experiência de nada. Enquanto
na experiência do finito captamos a explicação deste, na experiência do infinito é este que nos
explica a nós, que nos alarga e amplia indefinidamente, embora não infinitamente. A
explicação está na totalidade infinita, e todo o esforço intelectual ou criativo apenas pode
abrir a perspectiva do saber infinito, que é o saber divino que se mostra como a
intencionalidade de um pessoa, e essa intencionalidade é o amor divino. A experiência do
amor divino é a experiência final, e ela contém todas as outras (o mundo divino abarca e
transcende o universo inteiro), que são apenas seus símbolos muito remotos. α100
embora o sujeito que tenha mais poder possa não ter obtido domínio algum sobre si mesmo.
A ciência e a tecnologia modernas tornaram possível a falsificação do mundo inteiro. Durante
séculos os filósofos imaginaram viver num mundo newtoniano, que afinal não existe. E era
também a isto que Cristo se referia quando disse que “o demónio é mentiroso e pai da
mentira”. Por isso, também se diz que o demónio é o pai deste mundo, dado ele ter o poder
de substituir a realidade efectiva (que é a realidade do amor divino) por um conjunto de
fórmulas doutrinais, que alguns se iludem de serem o segredo último da realidade e aquilo
que tem o poder sobre todas as coisas.
Então, a cultura moderna é uma alucinação, que finalmente começa a ruir por todos
os lados. Contudo, há o risco de vir algo ainda pior, uma mentira ainda mais gigantesca e
maravilhosa que não deixe realmente ninguém de fora. A mentira newtoniana enganou
apenas aqueles que receberam uma educação escolar, mas a nova mentira pode vir sob a
forma de uma religião, e aí não serão necessários estudos para inoculá-la, basta participar em
alguns ritos. Existem dois projectos nesta direcção. Um deles está relatada por Lee Penn no
livro False Dawn, e é o projecto da “religião unificada”, que tem a ONU como instrumento e é
financiada por Rockefellers, Rothschilds e outros. O outro projecto é a “religião eurasiana”,
que supostamente irá substituir o materialismo-individualista ocidental por uma noção
holística. Na realidade, a versão da ONU também propõe um “holismo universal”, pelo que
existe apenas uma luta de personagens e não uma confrontação propostas de tipos diferentes.
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Mas as grandes obras não são decalques dos códigos morais, porque estes são
genéricos e não oferecem soluções prontas para as situações concretas, sobre as quais o
artista versa. Os verdadeiros artistas sabem que o ser humano é um mistério quase infinito, e
sabem que os dramas morais implicam muitos sofrimento, e que são complexos e que não
podem resumir-se a uma lista de violações das regras morais, porque fazer isto já é quebrar o
mandamento de amar o próximo. O artista pode ter elaborado a sua obra sem fazer
julgamentos segundo um certo código moral, mas isso não quer dizer que ele tenha feito
abstracção da moralidade, porque se tivesse feito teria neutralizado a sua obra. α100