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OS SAPOS DE ONTEM
Sumário
OS SAPOS DE ONTEM
I. O PRÓLOGO DE UM EPÍLOGO
A FARSA COMO HISTÓRIA
II. O PRINCÍPIO DO FIM
CRANE ANDA PARA TRÁS FEITO CARANGUEJO
CARTA DO SR. AUGUSTO DE CAMPOS
RÉPLICA CHEGOU TARDE AO EDITOR DA SEÇÃO ( NOTA DO SR. JOÃO
MOURA JR., EDITOR, EM CULTURA DE 16/9/94)
AUTOR SE DIZ VÍTIMA DE ATAQUE ORQUESTRADO
AUGUSTO DE CAMPOS REAGE A ARTIGO DE BRUNO TOLENTINO
COMENTÁRIO DE BRUNO TOLENTINO À REAÇÃO DO SR. AUGUSTO DE
CAMPOS PUBLICADO EM CULTURA, AOS 16/9/94
CARTA DO SR. OLAVO DE CARVALHO AO SR. EDITOR DE CULTURA EM
20/9/94
III. A RETIRADA DA LACUNA
A IRADA FLOR DOS CAMPOS, ou
I. CLUBE DA VITÓRIA RÉGIA 1994
II. O RABO DO NIMBÚ
III. A QUARENTENA
IV. O HOMEM QUE NÃO SABIA JAVANÊS
V. SAPO-BOI & REI LEÃO
VI . O REI MENOS O REINO
AVISO AOS NAVEGANTES
POST-MORTEM
PAULICÉIA DESVALIDA
TOTTENLIEBE
O PASSADO DOS MESTRES
A RETIRADA DA LACUNA
MEA CULPA?
O NOVO PRODUTO
LA VIEILLE GARDE
OS IRMÃOS GONCURTOS
SAPOPPELGÄNGER
ARREBOL NA ILHA FISCAL
O CREPÚSCULO DOS ANJOS
TEMPO DI MIGRARE
IN (FUTURAM) MEMORIAM
A HOMÉRICA GARGALHADA
ASSIM FALOU ZARAUGUSTA
(1.) SOMETHING ROTTEN
(1a) ALGO DE PODRE
(2.) SIMPLE, AIN’T IT?
(2a.) SIMPLES, NÃO ACHAM?
(3.) UNSIGNED, FROM THE BEYOND
(3a.) SEM ASSINATURA, DO ALÉM
(4.) OEDIPUS & THE TOAD
(4a.) ÉDIPO & O SAPO
(5.) “LEAFES OF GRAS”
(5a.) “FÔLIAS DE HERVA”
SITTING DUCKS
CORO DOS CEGOS DE TEBAS
INOCENTE INÚTIL
ATA & MINUTA
BINÓCULO PELA CULATRA
CONVITES À FILOSOFIA
EM RETROSPECTO
MUDEZ DE PEDRA
HOMUNCULUS PAULISTANUS
ET CATERVA
SEGREDOS DE IMPRENSA
JOVENS BÁRBAROS CENSORES?
CARTA ABERTA AO JOÃO
CARTA ABERTA A MARLY
IV. RESPONSABILIDADES
AQUI TERMINA OS SAPOS DE ONTEM
INSIDE THE HOUSE OF USHER
GRITARIA NA TOUCEIRA
NOTAS
“ Os principiantes são bem-vindos. Eu também sou um deles, principalmente
após vários anos de prática das disciplinas implícitas neste livro. Nas palavras
de Thomas Merton: ‘Ninguém quer ser principiante; mas convençamo-nos de
que não passaremos nunca disso’. (...) A superficialidade é a maldição do nosso
tempo. O mais urgente hoje não é um número maior de pessoas inteligentes, ou
talentosas, mas de pessoas profundas. As disciplinas da vida do espírito nos
convidam a passar de uma vida à superfície para o viver em profundidade.
Instam conosco a que sejamos a resposta a um mundo vazio.”
( R. J. Foster, Celebration of Discipline )
I. O PRÓLOGO DE UM EPÍLOGO
Marx pode ter sido uma Cassandra que não deu certo, mas num ponto
acertou em cheio: a História que se tenta repetir acaba em farsa. O chamado
Concretismo foi uma delas. A idéia mesma de “vanguarda” talvez já não se
preste a outra coisa. Em todo caso, o certo é que estas últimas décadas, enquanto
se agredia a inteligência brasileira por todos os lados, em poesia pretendeu-se
mascarar indigência de inspiração e inabilidade artesanal mediante um exótico
receituário pretensamente “novo”. Não há, nunca houve novidade alguma nos
maneirismos e ludismos das civilizações em crise, como o atestam, entre tantos
sintomas alhures, os jogos florais de romanos e gregos in extremis. Passado o
ápice de cada projeto civilizatório em via de esgotamento, surgiu sempre ao
longo da História uma pletora de esoterismos próprios a entreter uma ilusão de
liberdade enquanto não chegam os bárbaros. Como na obra-prima de Cavafy
sobre o tema, ou na ode de Ricardo Reis sobre os jogadores de xadrez, o que
todos esses estados de transe têm em comum é invariavelmente um mesmo grau
de vacuidade existencial e idolatria esteticista, nascidas do pânico ante o real e
traduzidas em impotência ante a linguagem. O poeta então, sem fala como o
menino ante a nudez da maja, ato contínuo diviniza-a: mais ainda que do desejo
sem meios, é sempre do sacro pavor que nasce a idolatria. O culto da linguagem
é a coisificação totêmica da deusa nua.
Quando a linguagem de uma tribo deixa de ser instrumento natural de
comunicação para tornar-se objeto de manipulação pelo neófito, é que já foi
entronizada como fim em si mesma. Promovida a assunto, não tarda é
proclamada meta suprema do ofício de dizer. Subitamente já não lhe cabe
significar senão a si mesma, e não mais ao ser, à vida, ao mundo. Este, aliás, é o
primeiro que some, como a insignificância que é ante o totem-em-si, a celebrada
e reverenciada “meta linguagem”: o utensílio vira amuleto, o amuleto é
divinizado e o carro solenemente empurrado para adiante dos bois.
Na antologia de 1982, a cura de Vinícius Dantas e da hoje pentita Sra.
Iumna Maria Simon 1 , o Concretismo era a certa altura descrito como “ totem
para seus criadores e tabu para seus leitores ” e o poema como “ verdadeira
utopia ... sem valor de troca”; quanto a seu “consumo” pelo leitor, apelava-se
mais adiante para uma sua “boa vontade lúdica”. Uma vez mais, a coisificação
idólatra da escrita e o espírito de play-ground . Lia-se ainda que “ o poema
deixa de expressar e representar um universo de sentimentos e emoções
exteriores a ele, para presentificar uma realidade viva e autônoma - a
realidade em si do poema (...) a perda de si na linguagem, o desaparecimento
do eu sujeito lírico em benefício da plenitude gráfica e visual, é o modo como
o poema procura sustentar a linguagem nova.” Anos antes, em Teoria da
Poesia Concreta 2 o Sr. Haroldo de Campos, citando Gomringer, explicava: “ O
poema concreto é uma realidade em si, não um poema sobre... E como não está
ligado à comunicação de conteúdos e usa a palavra como material de
composição e não como veículo de interpretações do mundo objetivo, sua
estrutura é seu verdadeiro conteúdo .”
Desde o Renascimento a ideologia vem substituindo o mundo-como-tal
pelo mundo-como-idéia numa variedade inesgotável de fórmulas, mas esta
particular perversão apresenta a vantagem de combinar cacoetes milenares com
um sotaque de “modernidade” todo especial. Com efeito, a fórmula é imbatível,
pois aparece como um solipsismo que abolisse precisamente o eu, retirando-lhe
a subjetividade em favor de uma cobiçada divindade secular: o relativismo
mascarado em objetividade. Esta última, numa súbita espécie de imanência
iluminativa é então atribuida ao novo totem, a linguagem-em-si; o que só os
deuses possuiriam, a apathea da objetividade, o novo ídolo passa a encarnar
neste pobre mundo de incertezas. Por outro lado, a incerteza do fugaz cabe como
uma luva ao monstrengo: ao indizível divinizado corresponde a sinuosidade dos
fenômenos. São incontáveis ao longo das monotonias da História as instâncias
em que se voltou a constatar embasbacado que a àspide da linguagem pode
dançar tão ou mais rápido que as aparências fugitivas, que delícia!
O que aconteceu entre nós com fumos de novidade foi mais uma instância
desse antiquíssimo jogo de aflições adolescentes,3 não passou disto apenas, de
um deslocamento do essencial para o supérfluo, de uma coisificação
divinizatória do meio como fim. Não caberia mais escrever poemas, mas
compor, melhor ainda, propor poéticas. Em vez do bolo pronto, uma infindável
exposição de receitas e ingredientes, todos, aliás, com seu mofo particular
separado do bolor acusatório dos outros em nome de uma suposta superioridade
intrínseca. Foi sempre revelador, de resto, que em tempos de gagueira pânica o
trocadilho vingasse à solta: o “esboço da serpente” ociosa compraz-se em seus
nós mais óbvios. E se o poema, como o todo vivo que é, atreve-se a nada ter a
ver com uma pomposa sugestão de intenções programáticas entre esotéricas e
futuras, é como se não falasse, ou pior ainda, falasse do que, não sendo ele-
mesmo, pertencesse ao odioso reino do real, esse desmantelador incurável de
conjeturas... Passado o susto e expulso o intruso, volta-se à ordem plácida das
prateleiras, o jogo continua. De grão de mostarda de uma fé natural, de ato de
confiança vital no verbo humano, de microcosmo dessa mesma humanidade, o
poema é intimado a tornar-se picadeiro de bolso, tabuleiro de xadrez, tubo de
ensaios de uma ociosidade vazia de sentido. Assim foi, a um certo nível ao
menos, com aquela idolatria paralisante de ordem abstrata e de cunho conceitual-
autoritário que teve incontáveis nomes no crepúsculo da antiguidade clássica e se
chamou por aqui vanguarda, concretismo, praxis, etc.
A um certo nível, digo, porque a um outro nunca passou de vulgar
impostura. Tanto mais óbvia como tal, quanto surgiu paradoxalmente no instante
mesmo em que no Brasil as artes do vernáculo, espécie em poesia, atingiam
enfim a um patamar de universalidade que todas as civilizações em todas as eras
chamaram de clássico. O espantoso, pois, o flagrantemente artificial, não era
apenas que os gaguejos futuristóides de Noigandres nascessem dos ainda
recentes bocejos parnasianísticos e abarrocados de três autores em nada distintos
da pior mediocridade morna da Geração de 45, à qual o trio de fato pertence em
estilo, mentalidade e fôlego; o surpreendente era que erguessem as auto-
excitadas cabeçotas justamente quando Bandeira, Drummond, Cecília, Jorge,
Murilo, e até o jovem Cabral, elevavam nossa lira a cimos que até então
desconhecia.
Tudo isto acontecera e continuaria a acontecer enquanto não havia como
perceber diferença alguma, fosse qualitativa, fosse de dicção, vocabulário,
sintaxe ou sensibilidade, entre a fraternidade de Noigandres e o resto que
fumegava então do pior calibre 45. Atestava-o o estilo penteadeira-de-velha do
Sr. Augusto de Campos por volta de 1953: “em glaromas de amil e penubis /
(...) / com estas mornas flores de oromãs / morigerantes ou cansadas corças”
são, colhidas ao acaso em seus textos pré-“revolucionários”, algumas das
incontáveis pérolas cediças com que se adornava então a musa solteirona do
futuro “ enragé”.. . Cujo ‘salto formal’ (ou gráfico?) não mudaria em nada o teor
do florilégio: “ Ovo novelo / novo no velho (sic) / o filho em folhas / infante em
fonte / feto feito / dentro do centro / (...) / noturna noite (sic) / em torno em
treva sem contorno / morte nó cego / sono do morcego ” e o ideogramicamente
genial: “ entreventres / quando queimando / os seios são / peitos nos dedos” ...
Eram assim todas as erupções salivares e salvativas dos torquemada-
nostradamus da lira “em crise” no Brasil dos anos 50...
Eu sei, parece incrível. Mas veja-se como, pela mesma época, versejava o
irmão mais velho, sempre estravazadamente mais audaz: “Filomela de azul
metamorfoseado / zênite de marfim onde o crispado / anseio se arbitra / (...) /
xadrez de estrelas, salamandras de incêndio / princesa plenilúnio desse reino /
de véus alíseos: o ar. / (...) / astronomia de que são órions de pena / Lusbel
libra-se sobre o abismo...” 4 Nem se imagine que posteriormente o “salto
revolucionário” viria a tornar mais sóbria a ígnea musa sub-45 do savonarola
das Perdizes, pois veja-se como, em Ciropédia: A Educação do Príncipe,
progredira a coisa: “ Ó inferno afélio do langue heliotropo! /(...)/ Núpcias.
Paranúpcias. Pronúpcias. / Congregação de rubís, a puberdade instaura a
missa rubra. / Ele admira as grutas, apalpa as volutas cornucópias, contorna o
maralmíscar das sereias. / A Geometria Plana? Júpiter Tetraedo de quadradas
espáduas? / - Drósera rotundifólia, amálgama de sílabas cardeais. /
Labilíngue ele diz : amor - larva do beijo, ninfa nibelung dum ciclo de
legendas. / Meisterludi: Rigor! / Cobiça as galáxias estrelas, doutora-se em
lânguidas palavras (sic) , licornes libidinosos / e glúteas obsidianas. Luz
purpúrea. / Em Agedor chega-se à idade por uma súbita coloração roxa sob as
unhas...” E, como se vê, o roxo escorre pelos purpúreos versos... Mas notável
mesmo era o decano da banda, Sr. Pignatari, cujo inolvidável refrão: “cansada
cornucópia entre festões de rosas murchas ” efetivamente resumia a tripartite
arte num único verso-emblema. Sim, leitor, os precoces “velhinhos” da caluniada
Geração de 45, bem mais sóbrios, desde então pagam o pato plumoso, mas os
cisneramas de Agedor & Cia. eram pura lantejoula e pailleté. Ninguém parece
haver notado o óbvio, o que é espantoso, mas “ sapos já foram pombos / nas
madrugadas de outrora ”...
Mas enquanto a bruma beletrista espraiava-se rala pelos campos
(sobretudo paulistas...) de 45 e adjacências, aqueles mestres egressos de 22
pairavam cada dia mais longe dela, mais alto. Com a maturidade de cada um
deles nossa Musa ascendia a uma nova medida de grandeza, a par com as mais
altas vozes européias e continentais. Pela primeira vez desde a erupção
romântica (quando alas! corremos atrás de Victor Hugo e Lord Byron,
desdenhosos das lições de Leopardi, Baudelaire e Hoelderlin, para não falar
daquelas, algo mais accessíveis, de Wordsworth ou Keats) tivemos fartamente,
de 1930 a 1960, uma voz poética ao nível do coro universal de nossos
inevitáveis modelos externos. Nada parecia preludiar, menos ainda convidá-lo a
uma “desconstrução”, um abstruso ascetismo no corpus recente - e tão frágil
ainda! - da linguagem de uma raça que se despia enfim de exterioridades e
sentimentalidades para por a nu o próprio estofo da alma. Ao contrário! Com
Claro Enigma (1951) e adjacências, o nervo da interrogação metafísica nos
trópicos abria amplos e profundos espaços para uma verdadeira perquirição do
ser, finalmente possível com a superação da obsessão telúrica e a conquista de
um idioma próprio, a um tempo denso e abrangente, capaz de encasular a
reflexão do universal em suas infinitas possibilidades.
Mestre Bandeira por mais de 30 anos purificara o idioma da modernidade,
universalizara-o e aclimatara-o, interiorizando o olhar que pesa o mundo,
limpando o horizonte emotivo-verbal para que nele se movessem, tanto o gigante
drummundiano da interrogação de Édipo, quanto a reconstituida silhueta de um
Orfeu recobrado à bacante e dado à História. Jorge de Lima emergira dos
telurismos de cromo e vinheta ao gosto do dia, passara pela pia batismal do
versete bíblico e o fora reinventar, ao telúrico que lhe era congênito, nas águas
fundas do mito; Cecília Meireles codificara a tradição mais perene, tornara
límpida sua historicidade e dera-lhe raízes nativas pela primeira vez paralelas às
da metropole da língua, mas enfim livres dela. E Drummond orquestrara tudo
entre o tédio dos fatos e o surto agônico da interrogação metafísica. Tudo se
constelava, surgia de onde não se suspeitara até então andar tão poderosamente a
multiplicidade do real: entre A Rosa do povo (1945), o jorgeano Livro de
Sonetos (1948) e o Romanceiro da Inconfidência (1953) nossa lírica funda
definitivamente a parte da História em solo nosso.
Porque o inventor daquela jóia do mais vivo cromo nativo, a Negra Fulô
parente da Irene-preta-Irene-boa manuelina, fora de repente muito mais longe
ainda: como se não bastasse Miraceli, Jorge reinventara, não tanto ao Orfeu
inflado e semiforme como acabara impresso em 1953, mas ao soneto, esse hai-
cai da música conceitual do Ocidente. O surpreendente alagoano, menos artífice
mas tão grande artista quanto o Bandeira e o Drummond sonetistas, não
dispensara o órfico de pensar em quatorze versos, mas o confrontara à lava
candente da metáfora a um tempo barroca e moderna. E eis que tudo isto
estranhamente escapava à retórica iluminódina do Sr.Haroldo de Campos que,
em artigo no Diário de São Paulo de 5/6/1955 o resumia como “o lirismo
anônimo e anódino, o amor às formas fixas do vago (...) a ‘redescoberta’ do
soneto à guisa de ‘dernier cri’ (...) preguiçoso anseio em prol do domingo das
artes, remanso onde a poesia, codificada em pequeninas regras métricas e
ajustada a um sereno bom tom formal (...) pudesse ficar à margem do processo
cultural”.5 Afortunadamente a lição chegava tarde a mestres e discípulos: ao pé
das sempre crescentes alturas de Bandeira, Drummond e Cecília, João Cabral,
nos Poemas Reunidos de 1954, sobretudo da Fábula de Anfíon ao Cão sem
plumas, mineralisava o indizível, dava-lhe corpo e música longe ainda das
monótonas logofonias do conceito; e Murilo Mendes não deixava por menos: de
Poesia Liberdade (1944) a Tempo Espanhol (1959) densidade, ritmo e espaço
davam-se as mãos para dar asas próprias à linguagem arraigada no dia-a-dia,
aquela mesma que Mário de Andrade tanto havia imaginado sem alcançar.6
Súbito, eis que já não era imprescindível importar: amalgamava-se, senão
sempre com água de fonte ao menos com força de torrente viva, as tabatingas
palpitantes da tribo; Peri e o Timbira tinham enfim sua prole madura, nosso
Guararapes poético triunfava de Pernambuco às Minas Gerais, das Alagoas ao
Morro Cara de Cão. Não, nada pedia ou deixava prever um colapsus linguae a
irromper da compulsão auto-biográfica de alguns iluminados. Norte-sul-leste-
oeste da língua madre, revificada pela ascenção interior da Musa, da Musa local,
a uma tão buscada identidade própria ante o desafio da universalidade, os anos
50, nosso meio do caminho, não pediam um pedra de plástico importada, nem
tinham porque passar a campo de pouso de implumes aves exóticas, no instante
mesmo em que eram enxotados de vez os papagaios, jacarés e cererês do
incorrigível Sr. Cassiano.
***
Não obstante, aqui começa a triste história cujo pífio desfecho este ensaio
autopsia e este livro celebra. Porque, face à mais alta plenitude de nosso verso
em quatro séculos, começara a arregimentar-se a legião dos ressentidos. Os
reprovados no vestibular da universalidade contestavam não apenas as regras do
jogo, mas a legitimidade mesma da arte nacional, e isso no instante exato de seu
tão anelado zênite! Os sem papel na História propunham-se refazer a História no
papel, pregavam o golpe de estado que pusesse o mundo-como-idéia no lugar do
real. E a agitação contagiava: arauto da mais recente perversão da sempre
preciosa seita dos cristãos novos do Conceito, Mario Faustino, dos altos de sua
página no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil perdia de vez as
estribeiras.
Tratava-se de um jovem autor cujo único livro, o recém publicado O
homem e sua hora, em seus cerca de 700 decassílabos regulares (quase todos
brancos, exceto por um rimancete e oito sonetos entre as vinte e uma líricas da
coletânea) enxertava a dicção de Jorge de Lima a um lastro discursivo algo
mármoreo, de cunho conceitual-idealista, embora assaz pessoal. Eivado de
exotismos, mais pungente que pujante, seu verso correto, mas pouco dúctil,
afastava-se tanto da fluência do demótico quanto do léxico contemporâneo,
privilegiando a dicção cultista a serviço de uma visão heróica da História. Esta,
em seu cerne um paganismo apeso menos a uma ideologia que a uma nostalgia,
parecia porejar sobretudo de sexual undertones de um cunho francamente
alternativo. Mais imaturo e audaz que propriamente inventivo, havia ainda assim
no irrequieto piauiense precocemente falecido aos 32 anos uma força original
evidente nos melhores momentos de seu Opus 1 e único. Poeta algo excêntrico,
mas de fôlego, tão impresivisível quanto promissor, tornara-se também um
polemista de verve e ampla influência em sua página semanal do Jornal do
Brasil, Poesia-experiência (1956-58). Desafortunadamente, após canibalisar
sobretudo ao Jorge de Invenção de Orfeu, descobrira o caleidoscópio cubista do
velho Ezra (jovem autor, passara uns meses nos EE.UU.) e o começaria a
decalcar em “textos experimentais” em que pouco mais conseguia além de
neologizar seu flórido lexico e introduzir um frisson de fragmentação arbitrária
em seu irresistível pendor gongórico.
Assim armado (ou “couraçado”, como descrevia os “infantes” helenos na
barriga do Cavalo de Tróia) por ocasião da Primeira Exposição Concreta no Rio
de Janeiro já o sanguineo rapaz se havia tornado uma espécie de homérico farol
da vanguarda local, e saudava a chegada da trindade papal à nova avignon
sismática, como quem “slouches towards Bethelhem to be born”... Não, o
aterrador sarcasmo do célebre verso de Yeats talvez não caiba assim tão mal
aqui: com sua inesperada revigoração do mítico pelo coloquial (slouches:
arrasta-se desengonçadamente) pode servir de contraste instrutivo à retórica de
estandarte e poeira de estante que, em lexico como em sintaxe, de fato unia
subrepticiamente o new look do piauiense ao estilo intrínsico dos paulistanos.
Senão vejamos. Aos 22/10/56 Faustino publicava em sua página do SDJB as
ultimas espigas d’oiro de sua nova e epicizante seara: “Cavossonante escudo
nosso / palavra panacéia / ornado de consolos e compensas / no sabuloso mar
na salsa areia /(...) / a fraga estilhaçamos nus sem pele / estrelorientados
rumo-nós / (...) / e em violetas me violentam - frutos / NÃO!: pois inútilbelo
(sic) tenho sido / e do bembelo hei rido / o feiobom ferido / (...) / Foi-se na
espuma - foice de escuma sega / meu pescoço nodoso e pelágicos deuses /
conspiram contra mim, jogam-me em ilhas / que não são minhas...” Não, não
eram mesmo, eram - na melhor das hipóteses - do mesmo Jorge de Lima a
estragar tudo sob a maquiagem do moço, a intrometer-se nos Piauían Cantos lá
de seu além, sorrindo “à margem do processo cultural”...
Pois em artigo de fevereiro de 1957, esta alma fraterna dos glenubis de
amil e oromãs apresentava encomiasticamente a nova leva dos Jaús a insurgir-se
armados da paulicéia um quarto de século após 32, como se de fato se tratasse
do tão esperado Second Coming: “A poesia no Brasil estava precisando,
desesperadamente, de um acontecimento” escrevia o cavossonante bardo...
Note-se que não decorrera um ano da aparição de Duas Águas e Grande Sertão,
e que a tinta mal secara no Itinerário de Pasárgada... Mas nada disso o
comovera ou instruira, e o rapaz tonitruava que nossa lira andava “urgentemente
necessitada de um shake up...” Pouco antes de exigir a milk shake for her (como
na famosa repartida de Bette Davies em All about Eve), comunicava-nos que:
“...um grupo de três rapazes, dois dos quais irmãos... (sabem que) Mallarmé e
Pound (são) mais importantes para o progresso da poesia que Eliot e
Baudelaire”. Não se privava de garantir-nos tampouco que “os três lêem
(direito!) os alemães e outros centro-europeus (e ele, como os leria?) assim
como os americanos (sic) e os ingleses”. A importância disto, a aceitar que
fosse um fato, ficava por conta da “nova estética”: dado que não tínhamos em
casa com quem aprender a escrever poesia em português, importar era preciso...
Marly de Oliveira, Merquior e eu entreolhávamo-nos perplexos: seria
então isto ao que se chamava “revolução” nas pátrias letras?! Talvez não, mas
com semelhantes “chutes” e cosmopolitismos bocós ia-se prenunciando o ainda
incipiente Febeapá letrado. Porque eu, for one, jamais notei em Faustino uma
aptidão linguística tão ampla e fina que lhe permitisse avaliar, menos ainda
avalizar, a alheia, bem ao contrário... É que haviam soltado a Ezra Pound do
hospício e ele záz! mandava-o para cá... Até porque ninguém mais queria em
parte alguma the wretched, tedious man / in the House of Bedlam, segundo a
genial evocação que dele fez La Bishop, em Visits to St. Elizabeth’s (1950). Este
poema, aliás, em tradução de Alfredo Lage e Lota de Macedo Soares, sob tutela
da autora, levei-o eu mesmo a Faustino, que o “aceitou” para sua página em
março de 1957; quinze meses depois, ao trocar sua profética tribuna por um
emprego em Nova Yorque, continuava inédito. Cheguei a contar, durante o
mesmo período, perto de cem referências ao Master of Masters; mas do
devastador retrato que dele fizera a testemunha ocular, um dos dois maiores
poetas americanos do pós-guerra, nada se ficaria sabendo. Nem sequer foi
devolvido o manuscrito. Vanguarda é isso mesmo, tudo, sobretudo a censura,
pela saúde da Causa!
Já por essa época a declinante Geração de 1945 havia mal entendido tudo.
No geral sem o gênio de seus predecessores, sem grande cultura e sem
credencial específica ante a História, aqueles rapazes que raramente acertaram
uma cadência imaginavam trazer de volta à pátria lira uma suposta solenidade
perdida... Curioso, pois que mais haviam feito aqueles mestres?! Quem precisava
de lições de gravitas, de limpidez, de elegância formal? Certamente não os
autores de Belo Belo (1947), Livro de Sonetos (1948) ou Retrato Natural
(1949). Menos ainda o criador de José (1942), da Bruxa (1945), de Luisa Porto
(1947). Não, aqueles rapazes não haviam lido com muita atenção senão os
“sinais dos tempos” a chegar-lhes do hospício poundiano com a data vencida
havia décadas, mas em socorro de seus “festões de penubis e oromãs”... Não é
de espantar que, uma vez evidenciado o mofo na prosódia de seus primeiros
livrecos sem graça e sem eco, nossos Marx Brothers se propusessem como
revide a reinventar a roda. Porque assim foi como, encurralados no naufrágio
geral do Titanic de papel de seus companheiros de primeira viagem - os demais
invertebrados de 45 - três dentre os mesmos, quando o fracasso lhes subiu à
cabeça, julgaram achar no eureka poundiano um salva-vidas: metamorfosearam-
se em fênix de jornal para “salvar a poesia”, proclamando a morte do verso com
a mesma cara de jacarandá com que Nietzsche anunciara a de Deus.
Mas, defuntíssimo Senhor, que verso senão o deles poderia estar morto no
Brasil dos anos 50? De quem senão de Drummond saía A luta corporal de
Ferreira Gullar em 1954? Onde senão à sombra do Orfeu de Jorge espoucava no
ano seguinte O homem e sua hora, o melhor que faria jamais o mesmo Faustino,
em transe ideogrâmico a partir de 56? A que fontes senão às mais castiças bebera
Otávio Mora, o adolescente que nos dava em 1956 Ausência viva, talvez a mais
bela estréia poética desde A cinza das horas? Quem melhor que Cecília
informava a Explicação de Narciso que Marly de Oliveira publicava dois anos
depois? E não só, a lista é tão longa quanto irrespondível. Edmir Domingues
mesmo, 45 ou não, certamente não necessitava de um urgente boca-a-boca para
que seu verso vivesse, livre que nascia de “lusbéis alíseos, morigerantes
glaromas & cansadas cornucópias”. Ele e incontáveis outros, not least a
inclassificável Maria da Saüdade Cortezão, cujo O dançado destino de 1956,
exemplar quase eliotano de clássica limpidez, nem toda uma banda dodecafona
faria dançar com menos elegância ante os educados príncipes de “Agedor”,
wherever that was to be found... A ela devo muito, muitíssimo, como a todos os
acima reverenciados, jovens ainda quando eu começava a ser jovem. Velhos
mesmo, velhos de matusalêmicas e parnasianas canseiras, só nossos
empoeirados sapos de ontem, desde então reafinando em vão seus surrados
realejos em uníssono para, na zoeira, proibir a tudo e a todos de existir. Mas
aludi a uma História que se teria repetido aqui como farsa. Qual foi? Ora, qual
outra senão a idéia de reeditar 22 em 55? 7
Pois examinemos de mais perto aquele solerte mal entendido. Uma
revolução faz-se sempre, e já por etimologia, no sentido de um retorno a algo
perdido, ou descurado. Na arte da poesia ela se faz urgente, e por assim dizer
inevitável, a cada vez que a linguagem poética se afasta perigosamente da língua
corrente. Quando se torna um linguajar, próprio apenas a educar príncipes em
Agedor com filomelas corças murchas; quando resvala num sistema fechado de
signos e convenções, a linguagem profunda de um povo começa a anquilosar-se e
a evaporar-se e faz-se imperativo trazê-la de volta àquela que é sua fonte e
referência: a fala, a língua como de fato se fala. Wordsworth e Coleridge não
tinham outra meta em mente, nem Pound e Eliot um século mais tarde. Cavafy não
foi grande por outra razão. Ungaretti e Montale tampouco. Ou em Espanha a
Generación del 98. Nesse sentido nosso Modernismo, às antípodas do de Dario,
fora um salutar e revolucionário esforço, e por isso mesmo um triunfo. Longe de
São Paulo (em que um Andrade se extratificara a estrofisar um coloquialismo
inexistente e o outro sucumbira às piadinhas do minimalismo mental de
circunstância) 8, o movimento quase que natural, em todo caso em combustão
expontânea a partir de 22, havia restituido a linguagem poética à fala natural da
tribo, revigorado as formas e os ritmos próprios à musicalidade inerente à
língua, sem prejuízo de seu comércio com o sensível, o imediato, o real. Feito
isto, restaurara a balada, o rimance, a cesura, a redondilha, o soneto; e
esplendidamente sobretudo este, que Bandeira, Drummond e Jorge haviam
resgatado ao torniquete parnasiano e, os dois primeiros, devolvido à invenção ao
nível da fala corrente; para além, não para aquém, da qual, o terceiro o levaria a
um rodopio órfico até então inédito em português. Enfim, outra vez tornavam-se
possíveis todas as reinvenções inerentes à riquíssima tradição poética
lusofônica.
Quanto à história da gralha, ou da farsa tentando fazer-se passar como
História, seria apenas uma idéia, uma irrequieta enfrutescência a mais no
mamoeiro marmorizante do Conceito; e a noção era simples, simplória mesmo,
como tudo o que se passa no mundo-da-lua: uma espécie de exame de segunda
época do Modernismo radical de três décadas antes. Eureka! Eureka! Eureka!
repetiam-se as três sápicas graças, já que ninguém gostou dos penubis do
Príncipe, desmaquiemo-lo e salvemos o Modernismo! Mas este havia cumprido
perfeitamente sua função histórica e perdido sua razão de ser ao livrar do colete
o idioma nobre e revigorar o discurso criador reaproximando-o do vigor
coloquial da língua. A “nova” receita, no entanto, para justificar sua
oportunidade (ou seu oportunismo?) negava tudo isso. 9 Propunha um
“movimento revolucionário” pertinente apenas às cabeças de ogiva gótica de
seus arcaisantes e estrangeirados inventores, auto-proclamados cibernéticos em
transe, mas em verdade neo-românticos retardatários em busca de redenção.
Cobra mata-se de uma paulada só; mas a Tricéfala, além de venenosíssima, era
sinuosa e camaleônica, deslizava entre oromãs de amil e passava do roxo
agedórico ao multicorolérico da sacra indignação... Ainda assim, aqui tocamos o
nervo da ruidosa e ruinosa questiúncula, afloramos a decifração do transparente
enigma que faria de Lusdrósio, Glaromil e Cornucópius os três arcanjos
vingadores da modernidade apunhalada por Fulô, José e Totônio Rodrigues.
Aristóteles chamou à tragédia “a purificação de uma paixão perigosa
através de uma libertação veemente”... Trágico só para eles, o edípico dilema
dos moços (basicamente a frustração de haver perdido o pioneiro barco e não
saber nadar por escassez de fôlego lírico, bovarismo de província e forma
mentis retórico-floral), a “revolução” por eles proposta, e quase imposta à força
de bastonadas e embustes, era, além de proto-fascista em sua inspiração e molde,
sobretudo descabida porque abstrata, arbitrária, inútil. Não se propunha a
socorrer uma língua abandonada por sua linguagem profunda, mas a impor uma
linguagem de gabinete, um dialeto gráfico, ao mais sadio e pleno momento da
língua. Que o tenham, esse linguajar, travestido de modernosidades e
excentricidades importadas, e revestido-lhe os penúbicos glaromas de exotismos,
populismos, trocadilhos, truques graficômicos, pedanteria professoral e erudição
de chusma de periódico, em nada o tornou menos cediço ou menos fátuo. E pelo
simples fato de que poesia e língua nunca se haviam dado tão bem entre nós
quanto aos meados deste século.
Este aspecto da farsa, aliás, sempre me impressionou. Que o mais rico e
original instante da poesia no Brasil, os anos de apogeu e refinamento de três
décadas de Modernismo, fosse não apenas ignorado, mas negado e caluniado
pela sápica trindade, parece-me hoje um caso exemplar em favor da tese
bloomiana sobre a “angústia da influência”. 10 Incapazes de resolver esse
tormento pela superação do modelo edípico - já que não tinham, nenhum dos três
rapazes, poesia alguma a fazer, como se viu e se há de ter notado pelos exemplos
transcritos aqui - a aristotélica libertação veemente só se podia manifestar
através do assassinato coletivo do arquétipo; já não mais da identidade, mas da
própria natureza do modelo ante o qual o neófito falira... A fúria contra a
palavra em favor (notem bem) da idéia é reveladora, elle en dit long; no artigo
de 1956 acima referido, o mesmo Sr. Augusto de Campos, inolvidável autor
daqueles “glaromas de amil e penubis” e outras incandescências florais ainda
tão próximas quanto mornas, investia contra nada menos que “a introspecção
debilitante ” (sic) e denunciava “as palavras como meros veículos indiferentes,
sem vida sem personalidade sem história - túmulos-tabus com que a convenção
insiste em sepultar (atenção!) a idéia.” A velha fórmula não falha: quando o
mundo-como-tal desautoriza ou rejeita uma auto-imagem, torna-se insuportável e
faz-se imprescindível sua substituição pelo mundo-como-idéia. Jean Cocteau
dizia que os homens se suicidam porque não conseguem ser poetas; a idéia da
“morte do verso” no momento mesmo de seu apogeu, foi exportada para a nação
pela trindade em pânico como uma indução ao suicídio coletivo: avec nous le
déluge...
Sedutor convite, a julgar pela rapidez com que a arca se encheu de toda
espécie de animais dos campos... So much for that, though, o dilúvio não veio e
a farsa expirou not with a bang, but a whimper, o gemido moribundo da saparia
glaromitomana recauchutada. A História nada teve a ver com isso e o século
afinal acaba melhor do que começou. Porque, como é sempre o caso em tempos
de crassa usurpação e truculência normativa, a poesia se fêz, continuou a ser feita
apesar da ocupação do espaço exterior pelo mais reles espírito de prosa: o
sempre crônico, inevitável prosaísmo das variegadas ditaduras do mundo-como-
idéia. Aos cimos em que se move o espírito, o poeta, o albatroz, o falcão e a
claridade, os miasmas do charco pseudo-conceitual não chegam, lá o esoterismo
programático não pode desvirtuar, poluir ou impedir nada. Foi perfeitamente
possível ao poeta nato, a um Ferreira Gullar, a uma Adélia Prado, a um Alberto
da Cunha Melo, a um Romano de Sant’Anna, a uma Marly de Oliveira, a um
Jairo José Xavier e a muitos outros, ignorar a pseudo-revolucionária “sapiência”
e construir suas obras a partir da grande herança do Modernismo, absorvida no
corpo vivo de uma tradição que nunca andara tão bem de saúde. Tutto sommato,
a farsa não repetiu a História, pensando bem. Tratou de macaqueá-la e, como o
“processo cultural ” todo seu que era, deu-se à margem dela, como se dá um
espetáculo de circo ao largo da vida normal de uma cidade. Afinal, nunca se
conseguiu instalar um charco numa praça central, ou periférica que seja. Ateste-o
o Anhangabaú, que continua seco...
***
Atenciosamente,
Augusto de Campos
No dia 3 do mês corrente o suplemento Cultura publicou sob o título acima
mencionado (CRANE ANDA PARA TRÁS FEITO CARANGUEJO) longa matéria
(duas páginas) onde, a pretexto de criticar uma tradução de minha autoria do
poema Praise For An Urn, de Hart Crane, o articulista se permite alinhavar um
inaudito enxurro de insultos e grosserias a meu respeito, com a clara intenção de
injuriar-me e de tentar denegrir minha reputação de escritor. A matéria foi
produzida com estardalhaço, objetivando nitidamente escandalizar, estampando
minha fotografia junto a toda sorte de afrontas e com a reprodução, sem consulta
prévia e sem autorização, de meu trabalho literário, ainda inédito em livro e
apenas divulgado, como colaboração especial e exclusiva, em outro periódico.
Nada mais natural e legítimo do que as diferenças de opinião no mundo das
idéias e da literatura. Não se pode confundir, no entanto, divergência com
violência e crítica com coice. Não é dessa forma que se enriquece o debate
cultural. Com mais de 40 anos de atividade poética, e mais de 40 livros
publicados, dois terços dos quais dedicados à tradução de poesia, uma bagagem
literária abismalmente superior à do desprezível e obscuro articulista, meu
gratuito desafeto, e à do seu padrinho, editor deste suplemento, ambos aspirantes
ressentidos a poeta e tradutor, estou certo de que não mereço a infame tentativa
de linchamento intelectual de que fui vítima e me sinto à vontade não só para
repudiar esse injusto tratamento como para recusar-me a trocar argumentos com
um arrivista, um salta-pocinhas internacional, que em vez de ascender por seus
próprios méritos, quer conquistar espaço e notoriedade a tamancadas, fazendo
uso da tática surrada de provocar e difamar os seus pares mais conhecidos.
Sobre a leitura torpe que faz dos meus versos, basta-me dizer com Marcial:
“Quem recitas meus est, o Fidente, libellusmeus est: / sed male cum recitas,
incipit esse tuus.” Ou em tradução sempre livre: “Os versos que citas,
Fedentino, são meus: / mas tão mal os recitas que parecem ser teus”.
Ao divulgarem sem autorização, desrespeitando a boa ética, o meu trabalho
literário, ao lado da mal ajambrada tentativa de versão do poema de Crane pelo
meu antagonista, fizeram-me no entanto, ele e o editor do suplemento, sem o
saber, um favor incomensurável. Pouparam-me de qualquer necessidade de dar
resposta casuística a esse destampatório pedantesco mas imperito, inçado de
solecismos (como o emprego de “posto que” como locução conjuntiva causal em
vez de concessiva - erro crasso em português). É tão risível a incompetência da
tradução do meu detrator, que já na primeira linha converte, grotescamente, o
amigo de Crane em um cachopo lusitano (“nortenho” é o natural ou habitante do
norte de Portugal...) ; é tão risível o seu arremedo, recheado de pés quebrados e
de rimas pobres, frouxo e adiposo a ponto de acrescentar ao texto uma estrofe
inteira inexistente no original, que não é preciso buscar nenhuma pérola de
retórica para retrucar a esse ataque de cólera ao mesmo tempo tolo, doente e
cretino - ou numa só palavra-valise: Tolentino. O leitor que julgue.
Colaborador, por muitos anos, do antigo Suplemento Literário do Estado
de São Paulo, lembro-me com saudade do tempo em que era dirigido por Décio
de Almeida Prado, intelctual digno, de conceitos artísticos diferentes dos meus
sob vários aspectos, e que acolhia liberalmente nas páginas daquele suplemento
as mais diversas opiniões, mas que - estou certo - jamais concordaria com a
publicação de matérias de tão baixo teor ético e estético como aquela com que
fui agredido.
Quanto ao editor de Cultura, João Moura Jr., que escondido no anonimato,
orquestrou essa parada de insultos para atingir-me com mão alheia,
reinaugurando o jornalismo marron em nossas páginas culturais, o episódio só
evidencia que ele não tem nível intelectual nem responsabilidade para ocupar o
posto que ocupa nesse prestigioso jornal. Mostra-se da mesma altura do apagado
esboço de poeta e tradutor (alguém o conhece?) que irremediavelmente é e
sempre será.
"Que, posto que em cientes muito cabe,
mais em particular o experto sabe."
(Os Lúsiadas, X: 152)
Caro Sr. Editor,
vê-se que em sua irada "resposta" o autor do texto beletrista que dissequei
para seu jornal não consegue discutir minha análise, prefere esbravejar a
argumentar. Fora de si, o resident parnassian rotula-se um de meus "pares" (?).
Nunca me veio à idéia tal hipótese... Em todo caso, o ronco do Goulart
d'Andrade redivivus é puro arroto balofo, foge do assunto e grunhe como o sapo-
boi do Manuel: "Não foi!" -"Foi!" -"Não foi!". Ei-lo pulling rank para desviar a
atenção de sua pobre leitura do inglês e da sua lirazinha de batráquio 1918;
sorry, mas não se trata de "saber com quem se está falando", mas de saber do
que se está falando. Espécie quando se pretende apresentar e traduzir "com
exclusividade" o que já se sabe e já se fêz. Mas já que a vaidade ferida o levou a
perder momentaneamente o auto-contrôle, fico sabendo não apenas do que falo,
mas também de quem falo: de um vaidoso prepotente, mais um delirante
autoritário num país que se cansou deles. Como poeta, nosso ofendido
vanguardista sempre me pareceu uma nulidade sem graça; hoje estendo meu
desdém à fraude linguística e ao mau jornalista que é.
Sem prestar mais atenção a uma estátua eqüestre nos "subúrbios de
arrebol" de nossas letras (roam-se de inveja os esforçados provincianos, mas in
my exile's guise passei a vida entre os que de fato são meus pares), de visita por
aqui peguei o sábio com a boca na botija, seu ubíquo retrato todo lambusado de
melado sub-parnasiano, gaguejando o inglês e babando regra e "cinza de versos"
em seu boletim semanal às custas de um verdadeiro poeta; pasmo de que o
homem afinal não soubesse javanês, pus os pingos nos ii da escolhinha Berlitz,
that's all! E eis que, à falta de poder defender-se, ofende-se com meus
argumentos e demonstrações. Ante a afronta de um text criticism atreve-se (não
acabo de crê-lo!) a "exigir respeito"! O autoritário d'antanho sabe que não tem o
que dizer à gargalhada que hoje o emoldura do Oiapoque à Marilena Chauí: não
pode, nunca pôde fazer melhor, pouco conhece e nada domina de versificação
nenhuma, muito menos da inglesa, mal sabe inglês e não consegue fazer versos na
própria língua ou encarar-se no espelho da crítica de texto. É natural que
esbraveje, mas dá-me pena. Formalista insosso, sem entender (será o Benedito?)
que a recriação de um poema nada tem a ver com o número de versos, mas com
a devida equivalência dada ao sentido, ao ritmo e à matéria a verter, finge (não
creio que seja o Benedito...) escandalizar-se de me ver "acrescentar ao texto uma
estrofe inteira". Coitado, compreendo-o: incapaz de conseguir uma única, como
lhe deve ter doído aquela estrofe a mais!
Mas há pior: inconformado com a liberdade de imprensa, agride o editor
que ousou faltar à genuflexão ante a vaca sagrada; trata-o de "desafeto" à mera
suspeita de que não o admire; acusa-o de "orquestrar insultos" para atingí-lo (no
Olimpo?) "com mão alheia"; contrasta-o calhordamente a um predecessor ilustre
a quem atribui alma de censor, e investe, ele sim, com "coices" e "injúrias", na
"tentativa de linchamento" de uma reputação de jornalista e autor que não esteve
em questão em toda essa questão. Com sua notória ausência de sense of humour,
agride quem ousa examinar-lhe o sacro texto e quem cumpre sua função de
informar. Não suportando ver-se posto a nu, pomposo e quantitivo cobre-se com
suas quatro dezenas de volumes abismalmente (é ele quem o diz) diferentes dos
meus quatro nos quatro idiomas em que os escrevi, que de fato conheço e nos
quais (são eles, os nativos de lá, que o dizem...) tornei-me ilustre.
Protesta contra um desdém que diz ferí-lo em seus brios profissionais.
Quais? Que "reputação de escritor" é essa, que não suporta começar ou acabar
numa análise de texto? Ou se imagina a salvo de julgamento pelo furibundo
horror que lhe causa saber-se desprezado? Se calhar, o homem não sabe que é
sub-geração de 45, vai ver que se admira mesmo de meu ultraje ante sua audácia
e incompetência... Nesse caso, sinto magoar um desequilibrado, mas que se há de
fazer? Deixar Nabucodonosor pastar à solta? Paste, pasme o ensimesmado
monarca, mas para mim seus textos são impagáveis e seu autor não passa de um
pobre diabo, a comic strip. Trágico, aliás, porque um falsificador inciente do
belo, daquela joy forever que é incapaz de conhecer. Que pena se perdeu mesmo
o tino! Mas não posso, na dúvida se Rubião está ou não em seu juizo, fingir
respeito pelo "imperador", menos ainda pelas sobras de um autoritarismo de que
já vai longe entre nós o “arrebol”... Fiz bem em não afetar um respeito que nunca
tive pelo esperto trabalho de um marqueteiro, e agora é tarde, o reizoca está nu.
E ainda implume, a despeito de 40 anos e 40 cambalhotas para fazer-se passar
por poeta; uma por ano! informa-nos o sargento-mor de nosso último DOI-CODI.
We are not impressed. Se nos ativermos ao vernáculo de tantos fascículos, a
nudez do sapo-rei é apenas cômica. Se nos estendermos à leitura competente das
línguas que anuncia conhecer, a coisa é mais séria, cheira a uma indigente
intrujice que não passaria no exame vestibular de Oxford.
With respect, senhor redator, é tempo de que varram da cena as baleias
auto-encalhadas na praia da História. Louco mesmo, ou só louco de raiva,
écrasez l'infâme!
Seu, cordialmente,
Bruno Tolentino, Rio de Janeiro 9/9/94.
P.S. E Achtung! Se o defunto tentar ressuscitar, disseco seu
Rilkecídio recente e, aí sim, a onça vai beber água naquela
Brunnen-Mund... Mas, pensando bem, são por demais
sensíveis as múmias envoltas nas folhas da moda, pura maldade
acordá-las no mundinho do Mamais! Requiescat.
A RESPOSTA DO SR. AUGUSTO DE CAMPOS às observações do poeta Bruno
Tolentino acerca de sua tradução de Hart Crane é absolutamente insatisfatória. O
número e o prestígio das assinaturas no manifesto que a secunda só mostram que
um séquito volumoso de guarda-costas ilustres não serve para dar recheio a uma
argumentação vazia.
Resposta e manifesto concentram-se no tom — considerado insultuoso —
do artigo de Tolentino, passando cautelosamente ao largo do seu conteúdo, que,
naquilo que diz respeito à análise da tradução, é cientificamente exato e
aparentemente irrespondível.
Tolentino pode ter infringido as regras do bom-tom, mas uma cultura em
que as regras de bom-tom são mais relevantes do que a veracidade intrínseca dos
argumentos é uma cultura moribunda. Uma crítica literária de alto nível pode vi-
ver bem numa linguagem dura, agressiva, mordaz, como o provam os exemplos
célebres de Jonathan Swift, William Hazlitt, Oscar Wilde, Voltaire, Joseph de
Maistre, Julien Benda e inumeráveis outros, entre os quais os nossos Mário e
Oswald de Andrade. Mas ela não sobrevive ao culto das exterioridades e ao
dogma da polidez a todo preço, que hoje governa o jornalismo cultural
brasileiro, e que O Estado de S. Paulo, ao publicar o artigo de Tolentino, ousou
contrariar. É da tradição da critica literária, aliás, acender de tempos em tempos
as chamas da mais viva controvérsia, onde a última coisa que importa é medir as
palavras. Os insignes fundadores da crítica nacional, Sílvio Romero e José
Veríssimo, pegaram-se como gato e cachorro num entrevero verbal que, pelo
visto, ofenderia a delicada sensibilidade da corte do sr. Campos. Nas últimas
décadas, como é público e notório, a crítica literária andou desaparecida do
nosso cenário cultural, e isto é provavelmente o motivo pelo qual a linguagem
pessoal e desabrida em que se escreveram algumas das produções clássicas
desse gênero se tornou destoante no nosso ambiente jornalístico, onde as normas
de impessoalidade e frieza que devem imperar no noticiário acabaram alastrando
sua jurisdição, indevidamente, para as páginas culturais e literárias. Nestas
últimas deveria vigorar, em vez disso, a linguagem literária, pessoal no mais
alto grau compatível com a exigência de comunicabilidade, e que não exclui nem
pode excluir a ironia, o sarcasmo, eventualmente até mesmo o insulto, quando
legitimado por motivos intelectuais e morais relevantes e quando dirigido contra
obras, idéias e doutrinas de domínio público e não contra meros comportamentos
pessoais.
O que é realmente inusitado, anormal, aberrante, é responder a uma crítica
literária, feroz e insultuosa o quanto seja, mediante um manifesto coletivo de
desagravo 17. O desagravo, como o próprio nome diz, é cabível somente em caso
de agravo moral, isto é, de ofensa à honra. Uma das formas de ofensa moral é a
difamação. Mas o nosso Código Penal exclui desta categoria as opiniões
depreciativas quanto às qualidades intelectuais da suposta vítima:
“Não ocorre difamação no procedimento de quem se limita a externar
opinião pessoal a respeito de qualidades psico-intelectuais da pretendida
vítima” 18 .
Chamar portanto um cidadão de mau filólogo, de tradutor péssimo, de
poeta inepto, não constitui difamação. Será então injúria? Impossível: Não há
crime de injúria em crítica literária, onde, afirma Heleno Fragoso,
“a exclusão do crime deriva do animus criticandi , que exclui o propósito
de ofender e, pois, a conduta típica” 19 .
Mas se não houve no artigo de Tolentino injúria ou difamação, então não
houve ofensa moral de espécie alguma, e sim o exercício normal de uma das
funções da crítica, que é a de separar o que presta do que não presta. Se
Tolentino acertou ou errou nas suas observações sobre a tradução, é o que os
experts em literatura, Campos, Cabrais, Costas Limas e Wisniks incluídos,
teriam a obrigação de discutir, para esclarecimento do público, e foi
precisamente esse o ponto que eles escamotearam ao exame do leitor, preferindo,
em vez disto, fazer uma exibição deprimente de suscetibilidades morais
inteiramente deslocadas do contexto 20.
Quanto aos argumentos de Tolentino, se não são absolutamente
irrespondíveis, permanecem ao menos irrespondidos, graças ao fato de que, nos
seus opositores, o reflexo emocional barato predominou sobre a reação
intelectual séria. Os signatários do manifesto deram uma demonstração coletiva
de imaturidade intelectual, ao julgar que trejeitos de suposta dignidade ofendida
podem proteger o sr. Campos das objeções críticas de Tolentino, as quais, o que
quer que pensemos do linguajar em que se expressam, são, em sua substância,
sérias e pesadas. No futuro esse infeliz documento será encarado como um
testemunho da pobreza cultural deste nosso tempo brasileiro, em que meros
protestos e reclamações tendem a fazer as vezes do pensamento, e no qual o
gênero literário mais assiduamente cultivado é o “manifesto de intelectuais”.
No terreno crítico e filológico, que é a esfera própria da discussão iniciada
por Tolentino, o único sinal de um revide por parte do sr. Campos foi sua
observação a respeito do uso que a tradução concorrente da sua faz da palavra
“nortenho”, uso este que o sr. Campos considera indevido, por fugir à acepção
consagrada nos dicionários. Mas o que é realmente indevido é um teórico de
poesia renomado como o sr. Campos pretender que a linguagem poética deva
ater-se às acepções consagradas nos dicionários — o que é precisamente o
contrário da definição mesma de poesia, a qual consiste, segundo uma frase que
o sr. Campos citava muito, antigamente, em donner un sens plus pur aux mots de
la tribu, sentido este que só por uma rara exceção coincide plenamente com o
que se encontra nos dicionários.
O sr. Campos também faz, com uma intenção que deve ter lhe parecido
muito filológica, uma censura ao uso da locução conjuntiva “posto que” no texto
de Tolentino — um erro crasso de gramática, no seu entender. A boa retórica não
é incompatível com erros crassos de gramática, mas é certamente incompatível
com a falta de sensibilidade para o contexto verbal, onde uma locução pode se
encaixar às vezes até mesmo com sentido inverso ao usual. O “posto que” está
perfeitamente encaixado no seu posto, sugerindo espontaneamente o significado
que lhe deu Tolentino, e portanto não é erro crasso nenhum.
Tanto o sr. Campos quanto os seus guarda-costas poderiam ter feito melhor.
Estes poderiam ter oferecido em defesa do seu protegido argumentos críticos em
vez de recriminações. E o sr. Campos, que já fez boas traduções, poderia ter
posto a salvo a reputação das restantes mediante o simples reconhecimento de
que a de Hart Crane, mal lido e mal entendido no original inglês, está mesmo
abismalmente mal feita...
III. A RETIRADA DA LACUNA
“One can no longer go to court,
Because his legs have grown too short;
The other cannot sing a song,
Because his legs have grown too long.”
Nursery Rhyme, cf. T.S.Eliot,
“The Three Voices Of Poetry”
(Um já não pode ir mais à Corte
porque cada perna sua encurtou-se;
o outro quer cantar sem ser capaz:
as pernocas cresceram demais.)
Nossa! Como anda amparada
a mais murcha flor dos campos!
Enxames de pirilampos,
espectros vindos do nada,
do P.T., da violada,
do arrebol... Com tantos grampos
a tênue trança dos Campos
nunca há de ser destrançada!
Paga o pato a liberdade,
filha ilustre do desdém
que toda cultura tem
pelo embuste e a vaidade...
Senhores, fiz muito bem,
só faltei à caridade!
III. A QUARENTENA
Aracnídeo mutante,
tua baba é perigosa,
teu rugido não: é rosa
de oromã morigerante...
Pode até ser que suplante
o Onestaldo, a tua prosa
metrificada e babosa,
mas quanto a ter o desplante
de trocar Goulart de Andrade
por outro augusto batráquio,
é vil regicídio! E ataque
(o de ira ou o de vaidade)
só coroa um rei de araque:
o rei da mediocridade.
(& UM P.S. )
O meu primo formou-se na USP,
já eu não:
ele mata mosquito no cuspe
e eu na mão.
POST-MORTEM
Onde já se viu
um rei ficar nu?!
- Olha só o Gugu...
Gruda-que-partiu,
é mesmo verdade!
- Quem diria, né?
É, mas a cidade
protesta de pé ...
- Que cidade nada,
mera paulicéia,
menos desvairada
do que desvalida:
fica uma tetéia
sem os sapos da vida...
PAULICÉIA DESVALIDA
TOTTENLIEBE
1. À penteadeira
A RETIRADA DA LACUNA
Com dó do terceiro mundo
dois irmãos inventam a roda:
pedante vira profundo,
pernóstico entra na moda.
Vai-se abrindo uma lacuna
no cérebro nacional
e a poesia vira aluna
de sapos de manual.
A musa proto-fascista
do Pound e de outros malucos
pare batráquios e eunucos,
a onda minimalista
espraia-se das Perdizes
a todos os suplementos
e a castração das raízes
resume os dez mandamentos
segundo três manda-chuvas.
Enquanto isso um país
que sobrevive a sauvas
não sabe mais o que diz
e, sem pensar no que faz,
gasta cuspe e engenho lírico
macaqueando jerico
para publicar no Mais!
A ambição da paulicéia
uma vez mais ressuscita
e cobra caro a visita
do mundinho-como-idéia:
- Assim falou Zaraugusta!
Os ocos do Pacaembu
morrem de rir: se não custa
dar de graça o pátrio cu,
que se entupa de concreto
o nacional orifício,
que o fácil vire difícil
e tudo mais objeto,
que o país se torne um poste
cercado de vira-latas!
“E é possivel que se goste
de molhar de tinta as patas
por tão pouco resultado?!”
É sim, leitor, ou já foi...
Um país seviciado
por resmas de sapo-boi
acordou com uma enxaqueca
intolerável no reto,
uma sensação de seca,
de vagalhões de concreto
entrando pelo conduto
maís intimo de um sujeito,
o reinado absoluto
do sapo-impostor... Bem feito!
Quem manda se enfileirar
para pagar vassalagem
no charco da moda? Pajem
de pagé tem que aguentar...
Transforma-se o amador na...
...coisa amada, e no entanto
a morigerante morna
não tapa apenas o canto
de uma raça em demissão,
tapa-lhe também o resto,
entope-lhe sem protesto
o orifício ao rés-do chão,
quem manda dar o que é seu?
Mas que ninguém mais se assute,
a macacada aprendeu
por onde entra um embuste
e o vento afinal levou
concretos e concretinos
como velhos inquilinos,
urubuzecos de um vôo
que já não sai do quintal;
hoje os pobres bicharocos,
amarrotados e roucos,
trocam socos num jornal
que lhes faz o obituário
com semanal devoção,
mas não adianta não,
o velho receituário
não presta para mais nada,
nem como ajuda em latrina,
e a urubusada, coitada,
melancólica termina
onde começou: nas redes
jornalísticas do esgoto,
que nem gozo de garoto
solitário entre paredes...
Anda a escassear quem goste
de dar o pouco que tem,
não há mais um joão-ninguém
querendo servir de poste
a pausa de vira-lata,
chegou-se enfim a um consenso
(óbvio desde que eu penso)
de que a coisa era tão chata
quanto afinal perigosa.
Se, patético, persiste
algum resíduo, anda triste:
o mote não vale a glosa
e morre dando pinote,
que hoje é muito mais difícil
segurar pelo cangote
doadores de orifício...
II
Mas, imaginem, este caso
de necrofilia crônica
entrou pelo último ocaso
numa cena tragi-cômica,
sob estranha revoada
(a bem dizer gritaria)
em prol de uma saparia
que se presumia alada.
Um certo Doutor Enéas
fez o papel da Chauí,
muita gente o da Dercy
e, entre incontáveis mocréias,
até a suave dondoca
desfilou com um Luis XV
que, se bem que ainda ranzinze,
já não abre mais a boca
senão para confundir
seu sacro terror do eterno
com seu ódio do porvir,
sua ante-visão do inferno.
Sim, mas como? Como foi
que se ajuntou tanto trapo
em torno de um sapo-boi,
e o que tinha feito o sapo?
Um yankey, muito fino
para o engenho suburbano,
ia entrando pelo cano
quando um tal de Tontolino
(que detesta trocadilho
porque respeita o idioma),
pôs o sapo-boi em coma
confiscando-lhe o espartilho
com finuras espartanas...
O raio, ao partir ao meio
os batráquios e os bananas,
fez um deles falar feio
cercado de guarda-costas,
mas todo o disse-me-disse
foi dito sem que se ouvisse
uma só dessas respostas
que vão direto ao assunto...
Hoje o sapo-gralha mente,
grita, jura de pé-junto
que sabe inglês, mas se sente
um certo constrangimento
até mesmo em quem o adora,
e há quem planeje ir-se embora,
ou ler outro suplemento...
Mas o que fizera o bicho
que já não tivesse feito
para baixar no conceito
de um país e virar lixo?
Sapo-gralha perde a pluma
mas não perde um bate-boca,
não tem vergonha nenhuma
e toda vergonha é pouca
quando se é pego em flagrante
sem saber nada de inglês,
ou sem saber o bastante
para pô-lo em português.
Sobre esta simples premissa
baseia-se a história inteira
do conteúdo à maneira,
mas basta de encher linguiça,
passemos logo ao suplício
da saparia indigente,
bicho que fala difícil
para parecer que é gente.
Num arrebol suburbano
os sapos pontificais
enxertavam, ano após ano,
filas de intelectuais
com o sumo da paulicite,
isto é, com traduções
repletas da celulite
dos falsos cirurgiões.
O frankenstein troliglota
faute de mieux conseguia
substituir a poesia
entre o Gianotti e o janota,
segundo um estranho pacto:
quem mal escreve traduz...
Havia um acordo tácito
quanto às transfusões de pus
que a dupla tranqüilamente
injetava no sistema
de artérias do paciente,
presunçosa como a teima
de um moribundo em viver.
Quanto a mim, não vejo como
quem mal consegue escrever
pode dar, tomo após tomo,
lições a ninguém de nada,
mas por lá é um caso sério,
importação transformada
em anjo de cemitério
é um esporte cultural,
que fazer... Fez-se de tudo
na empolada capital,
menos um pequeno estudo
textual da transcrição,
da transformação de um mano
no outro, e dos dois no engano
chamado contrafação,
senão embuste atrevido.
Foi o que fez um sujeito
que não só era bem lido,
mas sabia ler direito
e abaixo veio o mundinho
dos sapos com sua escória.
Eu, que acompanhei a história,
resumi-a sem carinho,
é certo, mas com pesar.
Não quero causar alarme,
mas começo a perguntar-me
como a coisa há de acabar...
III
Recapitulemos, pois,
em ritmo de balada
a lacuna retirada
de um sapo em nome de dois.
De tanto "fazer o novo"
cambaleava o defunto
sem fôlego e sem assunto,
mas Eva ainda via o ovo!
A aranha arranhava a jarra
de Nabucodonosor
quando lhe podaram a garra
e lhe espanaram o bolor...
Êta vidinha cruel!
Nos subúrbios do arrebol,
um sapo tapara o sol
com a “cinza” do Manuel,
e, coitadinho, a peneira
continha ainda mais furos
(de inglês) do que os ex-futuros
ideogramas da zoeira...
Por isso o tal rufião
que sabe ler e escrever
mostrou a toda a nação
um sapo para inglês ver.
Só vendo... Cala! Caluda!
Façam calar esse incauto,
que o sapo de salto alto
foi ao chão! Deus nos acuda!
Mas claro que o Hart Crane
tratou de não mencionar
cinza alguma! Agora azar...
Aboliu-se um coûp solene,
cu de desde priscas eras
mallamerdeando a poesia
e atirando o verso às feras!
Hasard, azar, quem diria,
Golias tinha platéia,
Davi só tinha uma funda,
mas mandou-lhe, ó boa idéia,
uma pedrada na testa...
Que festa! No país todo
o eco de uma pedrada
foi virando gargalhada!
Riu-se à beça, riu-se a rodo
e quem não podia rir
pôs-se a gritar, que remédio?
Morria o arrebol do tédio
nos subúrbios sem porvir
e eis que o augusto batráquio
vai pedir de sapo em sapo
proteção contra um “ataque”
que lhe desinchara o papo!
O velho Matusalém,
irmão do pobre tetrarca,
miando triste do além
ao ver o mano de maca,
o terceiro homem sente
que o sapo já foi ao fundo
e confessa a meio mundo:
- “A pedrada é inteligente,
quando não se tem resposta
de que vale um ti-ti-ti
assinado por Gal Costa
e Marilena Chauí...?”
Assim mesmo o inconsolado
manda chamar do Oiapoque
à Chauí seu semi-gado,
sua tropinha-de-choque,
em vez de estudar inglês!
Quatro décadas depois
está sem emprego e os três
ainda por cima são dois...
Que editor arriscaria
por a corda no pescoço
publicando a despoesia
que intraduz o sapo-moço?
Ou o sapo-velho também,
que do hebreu ao russo, ao grego,
chama urubu de meu nego
e o bicho avoa e não vem...
Xô, xô, urubu ingrato,
bicharoco desalmado
que deixas desempregado
um par de sapos no mato
sem cachorro e sem idéia
de como se há de explicar
à nata da paulicéia
se lhe der de perguntar:
- “Mas nem inglês, meu irmão?!”
Não, nem inglês nem zulu...
Mas a culpa é do urubu,
não é culpa deles não!
Peguem o bicho em pleno vôo,
depenem, apedrejem, matem
o urubu que desertou
von galochen zwei chaten,
porque sapo de galocha
no meio da tradução,
fazendo a coisa nas cocha
não tem remédio ou perdão.
Que fazer? Passar recibo
de inepto e de arrivista
pulando à toa no estribo
da redondilha petista,
ou andar atrás dos gatos
do Eliot, mais gagá
do que os últimos gaiatos
do velho Febeapá?
Não, irmãos, assim não dá!
MEA CULPA?
Em terra de sapo cego
o olho do cu é rei,
e ainda assim, Senhor, não nego,
confesso-Vos que pequei,
que atentei contra a mais nobre
das virtudes de um cristão:
caridade com um irmão...
Mas que o Diabo me cobre
esse pecado mortal,
não vou é deixar que a pata
de um sapeco de jornal
com sua gosma barata
grude a lira brasileira,
prefiro a ira do Cão
a perdoar baboseira
de batráquio de salão!
O NOVO PRODUTO
Poetastros do Brasil,
esqueçam o Fimatosan,
o xarope é o Glaromil,
um ontem para o amanhã!
Misto de cinza senil
com penubis de oromã,
põe até pernas de rã
na barriga de um barril!
Asmático debutante,
se não logras ser poeta
toma a lavagem concreta
que no espaço de um instante
sai-te do reto uma reta
moderna & morigerante.
LA VIEILLE GARDE
OS IRMÃOS GONCURTOS
Dois manos morreram juntos
de cachumbas e sarampos,
mas deixaram os dois defuntos
entre os túmulos e os campos
e a dupla agitou às pampas!
Iniciaram vários surtos
de nada e puseram tampas
em tudo, os irmãos goncurtos...
Em manifestos e cartas
mataram o verso mil vezes
e já pousavam de deuses
quando as Musas, mais que fartas,
pegaram os dois animais
e os sepultaram no Mais!
II
Trata-se de um suplemento
de teor assim-assim,
mas que lido até o fim
lobotomiza jumento.
Quanto ao duplo monumento,
passou de mini a mirim
por conta do atrevimento,
da intrujice: de chinfrim
um deles passou a zero
de uma esquerda de arrivista,
já o outro urinou na pista
por conta de um lero-lero
que "traduziu", desta vez,
coitado, do javanês...
III
Pobres dos irmãos germanos!
A ira da Musa faz
como sempre estragos tais
que hão de passar muitos anos
antes que se esquentem os panos
que tentam pôr os jornais
nos ferimentos morais...
São esforços sobre-humanos
nas folhas da capital
para que cada animal
tenha sua morte honrosa,
mas a dor é tão raivosa
e o pânico tão geral
que o mote mal vale a prosa.
SAPOPPELGÄNGER
TEMPO DI MIGRARE
IN (FUTURAM) MEMORIAM
A HOMÉRICA GARGALHADA
SITTING DUCKS
INOCENTE INÚTIL
“Sou um bobalhão
que não fede ou cheira,
fui a um beija-mão
por engano e, queira
ou não queira, irmão,
fiz mais uma asneira...
Mas me esquento não,
foi de brincadeira,
eu sempre brinquei
com a vida, com a arte...
Mas respeito a lei
do mais forte, à parte
o rei que beijei,
meu amo é o Sarney!”
CONVITES À FILOSOFIA
EM RETROSPECTO
Pobre pequena,
sofreu demais!
Com aquela cena
perdeu a paz,
não se viu mais
feliz, serena,
era só ais...
Já a Marxilena
é um monstro horrendo:
eu fico lendo
Tia Chauí
e me arrependo
do que senti
pela Lili!
MUDEZ DE PEDRA
Deram um jaboti-ti-ti
para uma jabotetéia
das muitas que dão ali
no mundinho-como-idéia:
diante de toda a platéia
o bicho foi com a Chauí!
Se a esperta compôs de cor
ou colou do namorado,
ninguém sabe: o Merquior,
nosso mais lido letrado,
foi desta para a melhor
e o bicho é mudo, coitado...
HOMUNCULUS PAULISTANUS
ET CATERVA
Lulu Gosmolima
projeta na Musa
a alminha confusa,
quanto mais a estima
mais o gajo abusa,
mais lhe baba em cima.
Lirinha cafusa
sem ritmo ou rima
quando o entusiasma
como um trem fantasma
excita um pirralho
o estilo cascalho,
de gato com asma,
fica duca mesmo!
Fauna Sucesseira
é outra personagem
que só lê asneira,
adora bobagem!
Deve ser faceira
debulhando vagem,
se fosse rameira
teria a vantagem
de ganhar a vida
de maneira honesta,
mas é precavida,
só lê o que não presta,
flor tão bem nascida
não enruga a testa.
SEGREDOS DE IMPRENSA
GRITARIA NA TOUCEIRA
“Macaco quanto mais sobe mais se vê o rabo...”
(Dito popular trásmontano)
No país dos antolhos, da vizeira,
não há nada de proibido,
a não ser haver lido
uma asneira:
se for
de vanguarda, convém
calar sobre a gaffe, se bem
que o mais prudente é declarar-lhe amor.
Eu conheci um vendedor de vento
num país parecido ao nosso
que só vendia um troço
nojento:
boato...
Fazia-se pagar
por si mesmo, assumindo o ar
de quem conhece a letra do contrato.
Por aqui, nem falar, tem muita gente
dando-se esse mesmo ar:
o asno oracular,
o doente...
No entanto
ai de quem vir o rabo
do símio quando sobe! Eu acabo
de ver um deles nu, mas meu espanto
no caso,
não foi tanto por conta
do dito rabo, cuja ponta
em cu de deuses deve-se ao acaso,
foi por conta da incrível gritaria
de tanta gente contra mim!
Gente séria e chinfrim,
quem diria!
Séria mesmo, não sei, até então
duvidava, hoje hesito:
marmanjo não ganha no grito,
a razão
é a meta,
mas no caso não era!
É que símio por aqui é fera,
faz tudo quanto quer, faz-se poeta...
NOTAS
1 Poesia Concreta (Literatura Comentada, 1982)
2 Duas Cidades, 1975
3 “A sensibilidade agora presente é mais a de um transeunte enervado que lança seu
testemunho anônimo, mistura de gesto enigmático e de deboche, do que a de um poeta...” (cf. opus cit.)
4 Em nota a esta jóia de seu “Teoria e Prática do Poema”, o imantado versejador que em breve
relegaria Bandeira, Drummond e Jorge de Lima “à margem do processo cultural” informava-nos estar “na
mesma trilha de João Cabral, porém ao avesso” (sic); por si só tal “silogismo” parece-me antológico...
5 Observe-se que até hoje o articulista não se mostrou capaz de um único soneto, não se diga com a
alta voltagem dos que nos deram aqueles três mestres modernistas, mas por vago, anônimo ou anódino que
fosse; mas já se mostrava capaz de decidir por si só o que fosse esse processo cultural, a cuja margem
relegava nossos dois maiores poetas de roldão com a espetacular reinvenção jorgeana da secular forma
toscana.
6 Manuel Bandeira não fugira a esse problema crucial, que acabaria por comprometer
irremediavelmente a realização poética marioandradina; com a aguda clareza do poeta-crítico, diagnosticara-o
lapidarmente como uma deslocação do imaginário, uma fatal falta de chão sob todo o seu projeto lírico:
“linguagem artificial, porque é uma síntese e sistematização literária pessoal de modismos dos quatro
cantos do Brasil ” (à página 134 de Apresentação da Poesia Brasileira, Casa do Estudante do Brasil,
1953).
7 Na introdução à 1a. edição de Teoria da Poesia Concreta.: Textos Críticos e Manifestos (Duas
Cidades, 1975), o trio “revolucionário” gabava-se de haver “retomado o diálogo com 22, interrompido por
uma contra-reforma convencionalizante e floral” (sic). Para além deste curioso ato-falho, a nostálgica
ciumeira dos “morigerantes maralmíscares” não explicava quem dos seis grandes e dos seis estreantes
acima citados teria sido responsável por esse lapso; ficávamos sabendo apenas que a “educação do
príncipe”, aquele fino “operário do azul em Agedor” estivera ameaçada até que os três grandes de
Noigandres varressem para “a margem do processo cultural” as baboseiras contra-reformistas de
Drummond, Bandeira, Cecília, Jorge, Murilo e seus jovens turcos. Ufa!
8 Seria ainda Manuel Bandeira a dar a medida e o nome aos boizinhos sagrados da paulicéia
minimalista. Em sua Apresentação da Poesia Brasileira (cf. nota 5) resumia assim a arte oswaldiana:
“pequenos trechos de prosa que ordena em verso-livre (...) menos por inspiração do que para indicar
novos caminhos (...) versos de um romancista em férias, de um homem muito preocupado com os
problemas de sua terra e do mundo, mas... exprimindo-se ironicamente, como se estivesse a brincar.”
Com efeito, só que a brincadeira não acabara, a ampliação valorativa do mini-mestre de Pau Brasil far-se-ia
indispensável à fabricação de novas miniaturas à la Leminski, entre tantas...
9 “O velho alicerce formal e silogístico-discursivo, fortemente abalado no começo do século,
voltou a servir de escória às ruínas de uma poética comprometida (sic), híbrido anacrônico de
coração atômico e couraça medieval.” cf. Augusto de Campos in Suplemento Dominical do Jornal do
Brasil aos 12/5/56.
10 cf. Harold Bloom, A Ansiedade da Influência (Imago).
11 Será superfluo, mas não é nunca demais lembrar que Machado de Assis, supremo cume do gênio
nacional, não passaria hoje de nota de rodapé em nossa história literária caso tivesse morrido antes dos
quarenta. O gênio é imprevisível, às vezes já lá está, às vezes vem tarde e, se às vezes não vem, convém
aguardá-lo sempre com reverente confiança. Que significaria hoje para nós Manuel Bandeira se a tísica o
tivesse levado à idade de Raul de Leoni? Que se teria tornado, se lhe tivesse sobrevivido, o autor de Luz
Mediterrânea?
12 Vejo neste tipo de episódio, de resto, mais uma instância do ódio visceral que anima os dois manos
contra aquilo que lhes escapa congenitamente, ou seja a arte que jamais souberam fazer. A reunião dos
preciosos espólios de Titio Kilroy & Vovó Sousândrade, respectivamente o Homem Torso e a Mulher
Barbada das sub-letras tropicais, mais que um consolo à solidão da Família Adams do Belletrismo-em-armas,
seria um modo a mais de torpedear a idéia mesma de uma ordem possível no acervo cultural de um povo,
especialmente uma que unisse beleza e verdade como traços da fisionomia nacional.
13 Veja-se como, em Soneterapia, o Sr. Augusto de Campos, trinta anos após seus “morigerantes
penubis e glaromas” receitava à pátria lira seu novo Elixir da Longa Vida, marca 1982: “Drummond perdeu
a pedra: é drummundano / João Cabral entrou pra Academia / custou mas descobriram que Caetano /
era o poeta (como eu já dizia)”. Ao desrespeito ao Poeta Maior, homem que terá sido tudo menos
mundano, soma-se o despeito adolescente à Casa de Machado de Assis. E o elixir é barato, à venda no
Canecão, última Ágora do make it new. O populismo cai como uma luva ao demagogo. O artista falido
detesta a arte, essa ingrata que não o quiz e ele atira com facilidade ao populacho pela mão dos DJs. O
bárbaro no jardim do espírito, com seu ódio ao belo, seu desprezo pelo pensamento e sua aversão à poesia - a
esse indispensável acervo de um povo que é sua linguagem profunda - faz sempre o mesmo itinerário: passa
pelo embuste e vai cair na anarquia. De quatro.
14 Ou aparisionados?
15 (Perspectiva, 1972)
16
Bruno Tolentino, Os Deuses De Hoje, Poemas 1964-94 (Record, 1995)
17 O manifesto, publicado em O Estado de S. Paulo de 16 de setembro de 1994, trazia as
assinaturas de dezenas de intelectuais de prestígio, entre os quais João Cabral de Melo Neto, Marly de
Oliveira, Luís Costa Lima, José Miguel Wisnik, José Lino Grünewald, Marilena Chauí, Gilberto Gil e Caetano
Veloso. Alguns alegaram depois ter assinado em branco, sem saber exatamente o que o Sr.Augusto de
Campos iria colocar acima de seus honrados nomes. É mais seguro assinar em branco notas promissórias do
que manifestos de intelectuais.
18 TACRIM -SP — HC — Relator Juiz Valentim Silva — JUTACRIM 37/86.
19 Heleno C. Fragoso, Lições de Direito Penal, São Paulo, Bushatsky, 1976, p. 225.
20 Suscetibilidades, aliás, hipócritas. Fingir-se de escandalizados por coisa pouca é um truque pueril
com que os políticos do interior dão à platéia caipira uma impressão de pureza. Basta com dizer umas
obviedades, e logo esses santinhos-do-pau-oco sentem um impulso irresistível de mostrar/ocultar suas paixões
vis por meio de afetações de escândalo. Dizem então: “Nossa, como ele tem ódio!”, ou melhor, fazendo
biquinho de velha inglesa: “Como ele tem óóóuuudiu!” — para que o auditório entenda que no coração deles
não existe senão o puro amor. Será que ainda existe quem caia nessa? Pobre Tolentino: trinta anos fora do
Brasil, e um sujeito se esquece de que essas coisas ainda existem.