Você está na página 1de 10

brasileiras | especial

EM NOME DO PAI, DO FILHO,


E DO SANTÍSSIMO CONGRESSO
No Brasil, todos os dias, mulheres
seguem caminhos arriscados para
abortar clandestinamente. No entanto,
o tema continua tabu nas casas, nos
hospitais, no Senado e na Câmara,
onde a bancada religiosa trata a
despenalização da prática como pecado
reportagem INGRID FAGUNDEZ
ilustrações VERÔNICA GELESSON

N
ão existe mais amanhã. esqueceram a camisinha. Se conhe- horas e foi liberada. Tinha resolvido
Não tem viagem, pla- ciam há tanto tempo... Um mês depois, um problema, e criado alguns outros.
nos de carreira, estu- a menstrução não veio, só o desespero. Brasileiras abortam ilegalmente
dos. Não tem ama- Três testes de gravidez confirmaram a todos os dias, já que a legislação só per-
nhã, só um hoje que suspeita e trouxeram dúvida. E agora? mite interrupções em casos de estupro,
não quero, não aceito. Câncer a cada Ligou para duas ou três amigas, que risco à vida da mulher e anencefalia –
dia maior. Bomba atômica. Ó Deus, lhe passaram o nome do remédio: Cyto- anomalia caracterizada pela ausência
me perdoe! Ó mãe, me ajude...não tec. Tinha que ser naquela farmácia, parcial do encéfalo e/ou do crânio no
posso, não devo contar. E as férias? com tal vendedor. Foi lá, conversou feto. A Pesquisa Nacional de Abor-
A passagem comprada? Comprimi- com o homem em uma sala à parte, fez to (PNA), levantamento realizado em
dos? Uma clínica? Criança com mãe a encomenda. Recebeu breves reco- 2010 pela Universidade de Brasília
infeliz... trabalho medíocre. E como mendações e voltou para casa com a (UnB) com mulheres de 18 a 39 anos,
faço... cadê o cara? Cadê o ontem, a promessa da entrega. No dia seguin- em toda área urbana do Brasil, revelou
certeza, a barriga vazia? Não tem mais te, um motoboy levou os comprimidos que ao final da vida reprodutiva mais
final de semana. E aquela conhecida em troca de R$ 800. Um embaixo da de uma em cada cinco brasileiras abor-
que podia... que fez. E disse algo. Um língua, outro na vagina. Dor. Sangue tou. Muitas seguem caminhos tortuo-
doutor. Seguir o destino da mãe? Uma e medo rojavam dela. Foi ao hospital. sos para decidir sobre a maternidade.
gravidez adolescente? O que signifi- Hemorragia. Chegou lá e teve que se Elas não querem ser mães. Não agora.
ca a prova da faculdade? Não tenho explicar. O que fez? Por quê? Com o Produtora cultural, Rita*, 30 anos,
dinheiro. É caro, barato, será que dá? quê? Médicos e enfermeiros só tinham abortou três vezes. Engravidou quan-
Posso, devo, consigo? Quero. Quero e olhos. Precisavam deles para descon- do perdeu a virgindade, aos 15 anos,
tenho medo. fiar e punir. Aqueles olhares ao redor e depois aos 25 e 27 anos. Não estava
Um descuido, um aborto e uma sen- diziam “na hora de se cuidar, não se pronta para ter um filho. Até hoje acha
tença moral de assassina. Ela engra- cuidou”. Precisou fazer uma raspagem que não está. Rita conheceu Letícia
vidou do namorado quando os dois de útero. Ficou em repouso por poucas na faculdade de Psicologia em uma

2 brasileiros.com.br junho 2013 *O nome de Rita, assim como de outras mulheres entrevistadas nesta reportagem, foi trocado para proteger sua identidade brasileiros.com.br 3
brasileiras | especial

universidade privada de São Paulo. do primeiro aborto que ela fez, aos 15 comum entre mulheres negras e que, vendedores e as mulheres”, desde a
Letícia também interrompeu três gesta- anos. Depois de tomar comprimidos de de 2000 a 2010, o número de óbitos década de 1990 várias pesquisas cons-
ções aos 17, 19 e 27 anos. É secretária misoprostol, a adolescente teve uma por interrupções da gravidez cresceu tataram que o misoprostol era o agente
em uma ONG que capacita voluntários hemorragia e foi levada ao hospital. Lá, entre essas brasileiras. A Secretaria abortivo em mais da metade dos casos
para se tornarem contadores de histó- as enfermeiras perguntavam “Você é atribui às mortes a complicações de levantados. Os pesquisadores argu-
rias em hospitais. Roberta só fez um virgem?” e a mãe respondia que sim. intervenções inseguras. mentam que a inserção do remédio
aborto e o descreve como o processo Rita diz não ter vergonha, embora não O tipo de aborto determina os ris- mudou o cenário do aborto inseguro
mais doloroso de sua vida. Formada comente o assunto com colegas de tra- cos aos quais as mulheres se expõem. no país porque levou a mais interrup-
em Filosofia, tem 30 anos e trabalha balho. Ao longo da entrevista, realizada As intervenções mais seguras costu- ções completas e menores índices de
na coordenação executiva da União em uma sala ao fundo da casa de sho- mam custar mais caro, deixando as infecção e hemorragia.
Brasileira de Mulheres de São Paulo ws onde é produtora, ficava vigiando gestantes de menor renda suscetíveis O coordenador do setor de Tocogi-
e na Comissão Estadual da Mulher do a porta para garantir que ninguém se a complicações. “Há uma coisa que necologia - responsável por esses aten-
Partido Comunista do Brasil (PcdoB). aproximava. incomoda muito os médicos: pessoas dimentos - do Hospital Universitário
Engravidou aos 21, depois de ter sido que têm condições financeiras fazem Polydoro Ernani de São Thiago (HU),
estuprada. A ESCOLHA DO MÉTODO aborto em ambientes controlados. As em Florianópolis, Alberto Trapani,
Os vinte anos também são marcan- O aborto ainda é causa importante que são negras, pobres, fazem em locais presenciou as mudanças provocadas
tes para Júlia e Camila, hoje na faixa de morte de brasileiras. Segundo o rela- improvisados, o que aumenta a morbi- pela medicação. No HU desde 1996, o
dos trinta. A paulistana e a cearense dade materna”, alerta o presidente do ginecologista cita o medicamento como
engravidaram e abortaram nessa idade. Conselho Federal de Medicina (CFM), um fator que reduziu a quantidade de
Diferentes, a experiência as une. Júlia Roberto D’Ávila. pacientes internadas por complicações
é branca, loira de olhos azuis, namora- Quem tem R$ 3 mil de uma hora para e a gravidade das mesmas. Explica que
va quando engravidou. Se formou em Júlia recebeu a outra?, indaga Bárbara, que desembol- com o misoprostol as hemorragias são
Direito e faz mestrado em Sociologia. indicação da clínica sou esse valor no seu primeiro abor- frequentes, mas, quando ele não exis-
Camila é morena, de pele bronzeada, to, em 2010. Fez em uma clínica em tia no Brasil, as mulheres abortavam
tinha um filho quando engravidou. Não de uma conhecida. São Paulo e pagou o correspondente com objetos. “Usavam sondas, agulhas
fez graduação e trabalha como empre- “Quando você fala, aos seus dois meses de gravidez. O de crochê e faziam com pessoas não
gada doméstica. A primeira recorreu
a uma clínica clandestina de aborto; a
descobre que muitas ex-namorado bancou tudo, gastando
boa parte dos R$ 5 mil que recebeu ao
habilitadas. Tinham muitas infecções
e era frequente morrerem por isso”.
segunda à medicação. As duas se sub- pessoas à sua volta trabalhar em uma campanha política. Embora a droga tenha mudado a rea-
meteram à ilegalidade, buscaram algu- abortaram. Embora “Foi muita sorte poder pagar. Pensa- lidade da interrupção ilegal, o acesso
mas informações e omitiram outras. As va em outro método, mas tinha medo a ela não é fácil. Desde 1998, a Agên-
duas passam para frente o que sabem.
seja tabu, a prática é de morrer. A gente não tem instrução, cia Nacional de Vigilância Sanitária SORTE
“Já ajudei muita gente a decidir. Falo
da minha experiência, não aconselho.
absolutamente comum” não sabe como fazer”. Bárbara se refe-
re aos medicamentos abortivos, que
(Anvisa) restringiu a oferta de com-
primidos com esse princípio ativo a acredita que a internet é um grande veí-
A produtora cultural Rita fez
três interrupções inseguras,
inclusive com uma parteira, mas
Nunca vou chegar para uma pessoa normalmente têm o misoprostol como hospitais credenciados. A venda em culo para assustar as mulheres. “Muitas não ficou com sequelas
e falar ‘faz porque vai ser bom e vai princípio ativo. farmácias foi proibida. Isso não sig- dizem que compraram e não funcio-
resolver o seu problema’”. Camila faz Principal remédio usado nessas situ- nifica que não sejam comercializados. nou ou usaram errado. Muitas tiveram
questão de informar quem a procura tório “Mortalidade materna no Brasil: ações, o Cytotec chegou ao Brasil em Há várias maneiras de encontrá-los. hemorragia”. Garante que, quando as final do questionário, cujos resulta-
sobre as possibilidades que existem, principais causas de morte e tendên- meados dos anos 1980, como parte do A forma mais fácil é pela internet. orientações são seguidas corretamen- dos serão analisados por um médico,
especialmente sobre o Cytotec, remé- cias temporais no período de 1990 a tratamento de úlcera gástrica, e logo Uma busca rápida revela fóruns onde te, o misoprostol é um método eficaz e é solicitada uma doação mínima de 90
dio com o qual abortou. Júlia recebeu a 2010”, organizado pela Secretaria de percebeu-se seu potencial abortivo. O usuários oferecem o Cytotec ou o pro- dificilmente causa grandes problemas. euros para que ela receba em casa os
indicação da clínica de uma conhecida. Vigilância em Saúde, do Ministério da primeiro estudo sobre a utilização do cedimento cirúrgico em clínicas. O Ela sugere o site da ONG holandesa comprimidos de misoprostol e mife-
Ela se surpreendeu com a quantida- Saúde, o procedimento foi responsá- misoprostol para outros fins foi escrito contato é feito normalmente por e-mail, Women on Waves como referência de pristona. Segundo estudos compilados
de de mulheres próximas que haviam vel por 4,6% do total de óbitos mater- pelo ginecologista brasileiro Corintio com endereços genéricos como “sau- uso correto. pela Women on Waves, a combinação
passado pela mesma situação. “Quan- nos em 2010. É a quarta causa direta, Mariani Neto, que em 1987 publicou detranquila@yahoo.com.br” e “clini- A organização oferece um serviço das drogas termina com 96 a 99% das
do você começa a falar, descobre que depois da hipertensão (19,7%), hemor- um artigo sobre o uso do fármaco para casdeajuda@gmail.com”. chamado Women on Web para ajudar gestações até 11 semanas.
muitas pessoas à sua volta abortaram. ragia (10,9%) e infecção puerperal indução do parto de feto morto. Como As opções disponíveis online são mulheres que vivem em países de legis- Apesar da facilidade da internet,
Embora seja tabu, a prática é absolu- (6,5%) – que afeta o aparelho genital explicam a antropóloga Débora Diniz práticas, mas podem ser traiçoeiras. A lação restritiva a abortar. A gestante faz muitas brasileiras recorrem às far-
tamente comum”. feminino após o parto. O documento e o sociólogo Alberto Medeiros no tra- coordenadora da ONG Coletivo Femi- uma consulta online, na qual respon- mácias. As drogas com misoprostol
A família de Rita não sabe até hoje mostra que a morte por aborto é mais balho “Cytotec e Aborto: a polícia, os nista Saúde e Sexualidade, Ana Galati, de 25 perguntas sobre sua saúde. Ao tem 80% de eficácia, mas não deixam

4 brasileiros.com.br junho 2013 brasileiros.com.br 5


brasileiras | especial
DIVIDIDA
O terceiro aborto foi o mais
doloroso para Letícia porque tinha
vontade de ser mãe, mas não estava
preparada para ter outro filho
de causar efeitos colaterais. “Foi mui- abertamente da intervenção. Nas clí- intervenção cirúrgica foi rápida. Júlia vários processos contra ele estão em
to sofrido. Nunca tive tanta cólica na nicas, basta agendar um horário com trocou a roupa pelo avental hospitalar, tramitação e alguns foram arquivados.
minha vida. Parece que você vai mor- o ginecologista, como se faz com qual- deitou na cama ginecológica, foi anes- O imbróglio mais recente aconteceu
rer”, descreve Letícia, ao lembrar do quer médico. As interrupções acon- tesiada e apagou em seguida. Acordou em 2010, quando foi condenado pelo
aborto que fez em 2012. Era sua quar- tecem por curetagem (raspagem do pouco tempo depois sozinha, em uma Conselho Regional de Medicina de São
ta gravidez, incluída a de sua filha, e útero) ou sucção e duram, em média, sala pequena. “Senti literalmente que Paulo (Cremesp) por ser proprietário
não tinha dinheiro para pagar uma clí- quinze minutos. Quinze minutos pas- um pedaço havia sido arrancado de de uma clínica clandestina. Sofreu a
nica. Decidiu ir a uma farmácia e per- sam mais rápido quando a mulher sabe dentro do meu corpo.” Tinha frio, e suspensão do exercício profissional
guntar se vendiam Cytotec. Depois de que faz um procedimento seguro, em nada para se cobrir. Gritou, chamando por 30 dias. Entrou com recurso no
ouvir um não, saiu, mas foi seguida por lugar apropriado e com profissionais a enfermeira, para que lhe trouxesse Conselho Federal de Medicina e foi
um funcionário. Ele a alcançou e disse experientes. uma coberta, sua amiga ou o namo- absolvido. Nos processos, Dr. Walter
que poderia conseguir o produto em 24 Quinze minutos se arrastam quan- rado, que a acompanhavam. O trata- responde pelo crime descrito no arti-
horas. O preço: R$ 600. do não se tem certeza. Rita não sabia mento também era frio. “A enfermei- go 126 do Código Penal como “pro-
Letícia fez o procedimento à noite. quem eram as mulheres que a levaram ra me tratou como se eu tivesse tirado vocar aborto com o consentimento da
Tomou um comprimido e introduziu outro para um apartamento também des- um dente.” gestante”. A pena estipulada é de um
na vagina, seguindo as orientações do conhecido. Não sabia o que estavam As recomendações e o processo a quatro anos de reclusão.
farmacêutico. Pouco depois, começou a fazendo com seu corpo ou de quem era foram parecidos para Letícia e Luisa.
sentir dores. “Cólica cavalar, mas trezen- a cama na qual deitou. Seguiu a indi- Elas consultaram com o mesmo gine- ASPECTOS DA CONFUSÃO
tas vezes mais forte e com dor de cabe- cação de uma amiga da faculdade, cuja cologista, um dos aborteiros mais famo- “Assassina!” gritam padres, evan-
ça. Não dava para deitar, sentar, ficar mãe era agenciadora de uma parteira sos de São Paulo, Dr. Walter*. gélicos, uma bancada do Congresso.
em pé. Foi o pior dia da minha vida. e aborteira. O preço era menor do que Luisa pagou R$ 2 mil ao médico. “A Criminosa, determina o Código Penal.
Quando doía fisicamente sofria espiri- o de outros locais. A “clínica” era o clínica era super segura. Saí de lá com E quando começa a vida, senhores? É
tualmente porque sabia que não tinha apartamento de alguém. No banheiro, mais raiva da criminalização do aborto. a fecundação, o embrião, o feto, o bebê
mais volta.” Envolta em uma contradi- havia bacias com sangue e restos de É muita hipocrisia. Minha experiência que nasce... é a mulher, sua autono-
ção dolorosa ao longo da madrugada, placenta no vaso sanitário. “Fui para foi tranquila porque tinha o dinheiro.” mia. O corpo é de quem? O médico
não quer repetir a experiência. Deseja o açougue. Gente nojenta, carnicei- O local atendia várias especialidades. denuncia. Denúncia, sigilo... silêncio
que seja a última vez. ra. Ninguém precisa passar por isso.” Na sala de espera, mulheres grávidas para quê? Mulheres que se escondem
Se tivesse dinheiro, Letícia teria Para as que têm mais dinheiro, as aguardavam para continuar o pré-natal. da lei, mas quando a lei pega não tem
abortado em uma clínica, como das opções são os dois tipos de clínica cita- O ambiente, segundo Luisa, era digno desculpa, sigilo, silêncio... tem sen-
duas primeiras vezes em que fez o pro- dos anteriormente. Júlia abortou em um da alta sociedade paulistana. tença. Vergonha. Quem é ela? O que
cedimento. Os consultórios mais caros dos muitos consultórios dos prédios Além da estrutura do espaço, a quer? Por que fez? Quem é o feto? “O
podem ser salas em prédios comerciais próximos à Avenida Paulista. No dia naturalidade com que Dr. Walter lidou feto é alguém?”, perguntam juízes,
ou fazer parte de grandes clínicas de da consulta, levou um exame bHCG com a situação impressionou Bárbara. advogados, feministas, sociólogos; afir-
ginecologia, estética e maternidades. quantitativo, que mede a quantidade Na primeira vez que o viu, em 2010, a ma o movimento pró-vida. A vida da
No primeiro caso, a estrutura é menor, do hormônio gonadotrofina coriônica estudante disse que queria “terminar mulher começa onde... sua liberdade
normalmente com sala de espera, con- humana (HCG) no sangue. Quanto mais um processo” e foi logo interrompida: termina quando.
sultório, sala de cirurgia e pós-cirúrgico. avançada a gravidez, mais hormônio “Você pode falar, isso é um aborto”. Ao descobrir que estão grávidas,
No segundo, um ginecologista atende e há no corpo da mulher. De acordo com Dr. Walter tem 70 anos, 1,70m e 80kg. muitas mulheres se tornam coadju-
faz o procedimento dentro da clínica. Em o resultado do exame, o médico esta- Conhecido por suas clínicas de abor- vantes na discussão sobre a despena-
ambos costuma haver duas consultas. beleceu o preço, R$ 3 mil. to, comenta com as pacientes que fez lização do aborto no Brasil. O debate
Uma para determinar o tempo de ges- Na primeira conversa o aborto foi o parto de sua filha. se arrasta há décadas no país, onde a
tação e, de acordo com ele, o preço, e agendado. Para a semana seguinte. A A ficha do ginecologista é extensa: grande influência das religiões cristãs
na outra é feita a interrupção. O valor
pode chegar a R$ 3 mil para gesta-
ções próximas dos três meses. A maio-
ria dos ginecologistas não se arrisca a A naturalidade com que Dr. Walter lidou com a situação impressionou Bárbara.
fazer interrupções depois desse prazo.
O pagamento é feito em dinheiro, em Na primeira vez que o viu, em 2010, a estudante disse que queria “terminar um
uma única parcela.
Em nenhum dos locais fala-se processo” e foi logo interrompida: você pode falar isso é um aborto” , ”
6 brasileiros.com.br junho 2013 *O nome de Dr. Walter foi trocado para proteger sua identidade brasileiros.com.br 7
brasileiras | especial

Para José Marques, do Conselho Regional de Medicina de São Paulo, a postura de Decidir, Regina Jurkewicz. “As


conservadora é predominante entre os colegas: a maioria acha que o bem maior
pessoas têm aquelas ideias de senso
comum ‘na hora que estava transan-

é a vida e acabou, não deve respeitar a autonomia da pessoa coisa nenhuma ” do estava bom, né?’ marcadas por um
pensamento de origem religiosa, que
culpabiliza as mulheres.” Assegura
que, independentemente da religião,
na moral sexual brasileira e latinoa-
complica a questão. A posição oficial aprovação só em 2014. Letícia, Luisa, Bárbara, Camila, Júlia, mericana há valores que definem a
da Igreja Católica é que o ser huma- O artigo 128 da reforma inclui mais Roberta, Elisa e Rita abortaram. sexualidade como um mal, como algo
no se forma na fecundação e, por isso, uma condição em que a interrupção não reprovado por Deus.
interromper a gravidez em qualquer é crime: quando feita “por vontade da JULGAMENTO MÉDICO O julgamento médico não acontece
etapa equivale a homicídio. A evan- gestante, até a décima segunda sema- O tratamento médico à mulher que só antes do aborto, mas durante todo
gélica segue a mesma linha. Além de na de gestação, quando o médico ou abortou ou quer abortar pode ser mais processo. No Código de Ética Médi-
punível do ponto de vista religioso, o psicológo constatar que a mulher não uma experiência traumática. A forma ca, o artigo 31 define que é vedado ao
ato também é crime segundo o Código apresenta condições psicológicas para como o profissional lida com a situação profissional “desrespeitar o direito do
Penal Brasileiro de 1940, que em seu arcar com a maternidade”. No entan- está quase sempre relacionada à sua paciente ou de seu representante legal
artigo 124 estabelece uma pena de um to, a aprovação não seria a solução. opinião sobre o assunto. Quando sou- de decidir livremente sobre a execução
a três anos de detenção. As próprias organizações feministas be que estava grávida, Júlia, hoje com de práticas diagnósticas ou terapêuti-
Para fugir dos dois tipos de jul- fazem ressalvas ao texto. Consideram 30 anos, foi procurar seu ginecologista. cas, salvo em caso de iminente risco
gamento, elas devem se refugiar no que possui um caráter criminalizante, Queria pedir ajuda, perguntar se ele de morte”. Fugindo das determinações
silêncio. O ideal é que poucas pes- aumentando penas de outras condutas. conhecia algum médico que fizesse o do documento, a realidade é outra. A
soas saibam, evitando olhares tortos Se a solução não está na reforma do procedimento. Em troca, recebeu um enfermeira Lígia Dutra, coordenado-
e processos. “A questão é muito soli- Código Penal, também não está em um sermão “de padre, de pai” sobre como ra do núcleo responsável pela saúde
tária porque você não pode falar com projeto de lei. Hoje, no Congresso, não poderia muito bem ter um filho aos da mulher no Hospital Universitário
todo mundo. Dependendo para quem tramita nenhum projeto que proponha 20 anos, porque “não era pobre nem Polydoro Ernani de São Thiago (HU),
você falar, escuta coisas horrorosas”, a despenalização do prática. nada”. Júlia não mudou de ideia. Dei- em Florianópolis, estabelece uma dife-
diz Elisa, que abortou aos 19 anos. Tantas implicações tornam o pro- xou o consultório pensando a mesma rença entre as reações dos profissionais
Fora as dificuldades para fazer a blema aparentemente insolúvel. Além coisa de quando entrou, mas lamenta em casos de aborto legal e ilegal: “O
intervenção, existem as complicações. disso, os dois prinicipais atores da dis- ter perdido um ginecologista do qual pessoal da enfermagem não aceita os
A Pesquisa Nacional de Aborto (PNA) cussão, organizações religiosas e femi- gostava. “Nunca mais voltei. Na hora dois, mas tolera melhor o por estupro.
MEMÓRIA APAGADA
mostrou que 55% das entrevistadas nistas, não facilitam seu avanço. Ocu- de ser parceiro da paciente, me tra- Tem uma conotação diferente. A gente Bárbara confessa que, por ter
que usaram medicamento para abortar pando lados opostos, expõem opiniões tou como o tradicional poder médico trata os pacientes da mesma forma, só com as interrupções, mesmo que legais. vivido um processo traumático,
precisaram de internação hospitalar. radicais sobre o tema, excluindo a pos- trata as mulheres, objetificando meu que muitos [profissionais] não aceitam Justifica que, para se proteger, os gine- não lembra de detalhes das duas
interrupções que fez, em 2010 e 2012
Ao serem atendidas, muitas sentiram sibilidade de diálogo. Para os religio- corpo. Como se dissesse ‘seu destino a interrupção provocada”. Mas lidam cologistas não falam abertamente sobre
a reprovação no comportamento de sos, o aborto é inadmissível em todos é ser mãe’.” com ela diariamente. No ano passado, quem faz ou não os procedimentos.
médicos e membros do corpo clínico os casos. Para feministas mais extre- O coordenador da Câmara Técni- no HU, foram feitas 278 curetagens A fala da enfermeira é representa- médicos dizendo que não vão aten-
- e temeram que os profissionais as mistas, o procedimento pode ser feito ca de Bioética do Conselho Regional uterinas (raspagens do útero) por inter- tiva. Ana Galati, do Coletivo Feminis- der para não sujar seu CRM [registro
denunciassem à polícia. a qualquer momento e só depende da de Medicina de São Paulo (Cremesp), rupções provocadas ou espontâneas ta Saúde e Sexualidade, indica Santa profissional]”. A funcionária do HU
Não parece que isso vá mudar em vontade da gestante. Mas existem outras José Marques, considera que a postu- – para proteger as pacientes, não há Catarina como uma das regiões pro- confirma a opinião da coordenadora.
breve. A reforma do Código Penal, que nuances, que fogem dessa polarização. ra do médico de Júlia é predominan- registro específico. Dentro desses 278 blemáticas no tratamento aos casos Informa que, por mais de dez anos, o
despenaliza o aborto até as 12 sema- Desde que mulher descobre a gravi- te entre os colegas. “A maioria acha procedimentos, apenas quatro foram de aborto. Em uma capacitação de Hospital Universitário foi o único em
nas de gestação em caso de desejo da dez até quando a interrompe, há muita que o bem maior é a vida e acabou, abortos legais por violência sexual. A profissionais realizada pelo Ministé- Santa Catarina a oferecer o aborto legal
gestante, tramita a passos lentos no gente envolvida nos aspectos práticos que não deve respeitar a autonomia da enfermeira ressalta que a maternida- rio da Saúde na capital do estado, em em casos de violência sexual. O Hos-
Senado. A proposta está sendo discu- e filosóficos da questão. Enfermeiros, pessoa coisa nenhuma”. Essa posição de está em reforma desde fevereiro de 2002, ela percebeu a dificuldade dos pital Regional de São José, na Grande
tida desde junho de 2012. A expec- médicos, juízes, advogados, delegados, pode estar ligada a valores cristãos, 2012 e, por isso, o número de leitos e catarinenses em lidar com o tema. “O Florianópolis, implantou o serviço em
tativa de alguns parlamentares é que cientistas políticos, sociólogos, senado- disseminados na cultura brasileira, intervenções está reduzido. Brasil inteiro mandou seus represen- 2010. “O nosso povo é muito religioso
o texto vá ao plenário ainda este ano. res e deputados: todos têm a ver com como observa a doutora em Ciências Lígia Dutra afirma que médicos, tantes à cidade para serem capacita- e, no interior, há muitas instituições
No entanto, outros juristas, deputados o aborto. Com tantos lados, não existe da Religião e membro da coordena- enfermeiros, assistentes sociais e psi- dos. O pessoal de Joinville, Blumenau, ligadas a alguma religião.”
e senadores avaliam que ele irá para consenso. Embates ideológicos à parte, ção da ONG Católicas pelo Direito cólogos ainda têm muito preconceito Indaial, Navegantes foi o pior. Muitos Não é só na capital catarinense que

8 brasileiros.com.br junho 2013 brasileiros.com.br 9


brasileiras | especial

médicos relutam em lidar com as inter- criança? “Dessa criança! Como se fosse é preciso acreditar em suas histórias. está dizendo a verdade, os ginecolo-
rupções. Vice-presidente da Sociedade um menino vestido de marinheiro, de A “Norma Técnica de Prevenção e gistas do HU recorrem a um protocolo
de Ginecologia e Obstetrícia da Infância sete anos! Quem é ele para me julgar? Tratamento dos Agravos Resultantes de específico. A paciente conta como foi
e Adolescência (Sogia), Vicente Rena- Iria pagar as contas ‘dessa criança’ se Violência Sexual contra as Mulheres e estuprada e há quanto tempo isso acon-
to Bagnoli, é contra a despenalização ela viesse ao mundo?” Adolescentes”, publicada pelo Ministé- teceu – o prazo máximo estabelecido
da prática. O ginecologista, que traba- O julgamento médico não se limi- rio da Saúde pela primeira vez em 1999, pelo Ministério da Saúde para interrup-
lha no Hospital das Clínicas (HC), em ta à ilegalidade. Brasileiras que pre- deixou claro que o Código Penal não ções legais é de 20 semanas de gesta-
São Paulo, se considera religioso, mas cisam interromper uma gestação para exige autorização judicial para prática ção. Ela faz um ultrassom e, de acordo
não fanático. Argumenta que “hoje só salvar sua vida ou não prejudicar sua do aborto no caso de estupro. Os gine- com o resultado, uma equipe avalia se
engravida quem quer”. “Uma menina saúde também têm dificuldades ao se cologistas devem se basear apenas na o relato é compatível com o tempo de
de 14, 15 anos sabe que se transar, deparar com valores alheios. O Códi- fala da paciente. Com essa norma e o gravidez. Na análise do exame existe
vai engravidar. Qualquer menina vê go Penal estabelece que não se pune o uma tolerância de duas a três sema-
tanta televisão, conversa tanto, que aborto praticado por médico “se não há nas a mais ou a menos do suposto dia
sabe muito bem de onde vem o bebê.” outra forma de salvar a vida da gestan- do estupro. A enfermeira Ligia Dutra
De acordo com Bagnoli, as gestações te”. Para Cristião Rosas, da Febrasgo, recorda de apenas um episódio em que
indesejadas não devem ser interrom- esse trecho é uma pegadinha: “O leigo
O ginecologista a idade gestacional não correspondeu à
pidas, e sim evitadas. Comenta que a entende que a situação deve ser extre- Vicente Bagnoli história contada. Foi em 2011. Quan-
oferta de métodos contraceptivos acon- ma, quase na irreversibilidade do quadro argumenta que hoje do isso acontece, a recomendação é
tece no mundo inteiro e em todo Bra- clínico”. As situações-limite ocorrem encaminhar a mulher ao pré-natal ou,
sil. “A maioria das meninas que vem porque, em grande parte dos hospitais, só engravida quem quer. se ela não quiser, orientá-la a buscar
aqui engravidam de sem-vergonha.
Algumas tiveram bebê com 14 anos
e saem daqui com pílulas. Largam de
o diagnóstico dos problemas de saúde
da gestante é tardio. Causas indiretas
como hipertensão, diabetes e cardio-
“ Uma menina de
14, 15 anos vê tanta
outro serviço de saúde ou ajuda judicial.
Os olhares condenatórios de médi-
cos e enfermeiros incomodam, enver-
tomar e no próximo ano estão grávidas.
Você acha certo ficar fazendo aborto
patias ainda são razões importantes de
morte materna no Brasil. Rosas argu-
televisão, conversa gonham, calam. Suas palavras podem
ser mais prejudicias. O medo de ser
nessas pessoas?” menta que o diagnóstico deve ser rápi- tanto, que sabe de julgada existe, mas é menor do que o
A argumentação do médico é ques-
tionada pela cientista política Kaua-
do para que a grávida possa optar pelo
procedimento enquanto ele é viável e
onde vem o bebê ” de ser denunciada. Casos de pacientes
entregues à polícia porque fizeram abor-
ra Rodrigues, do Centro Feminista de não em uma fase avançada da gestação. tos ilegais aparecem de vez em quando
Estudos e Assessoria (Cfemea), que Ao prorrogar a decisão, o ginecologista nos meios de comunicação. Nas notí-
propõe a pergunta: por que as bra- ressalta que o comportamento médico cias, histórias parecidas. Mulheres que
sileiras engravidam? “Vivemos em OUTROS RUMOS preza mais pela continuidade da gra- documento “Atenção Humanizada ao interromperam ou tentaram interrom-
Se Júlia tivesse continuado a
uma sociedade patriarcal e machis- gravidez, aos 19 anos, não poderia videz do que pela saúde da gestante. Abortamento: Norma Técnica”, lançado per uma gravidez e, sofrendo com as
ta em que mulheres têm dificuldades médico o direito de omitir socorro”, ter deixado o Direito para fazer Se quando a vida da mulher está em em 2002, o Ministério alterou o modo sequelas, procuraram ajuda. Da maca
ao negociar o uso do preservativo com esclarece Cristião Rosas, presidente mestrado em Sociologia risco, a intervenção é a última possi- de agir dos profissionais. Como lembra foram à delegacia. Diante desses rela-
seus parceiros, os métodos contracep- da Comissão de Violência Sexual e bilidade, nos casos de violência sexu- o coordenador do setor de Tocogineco- tos, fica a dúvida: os profissionais de
tivos não chegam a todas e, às vezes, Interrupção da Gravidez da Federação al é mais difícil garanti-la. A paciente logia do Hospital Universitário (HU), saúde têm esse direito?
quando chegam, não há informação de Brasileira de Ginecologia e Obstetrí- com misoprostol. A medicação sugerida está saudável, pode ter o filho, mas ele Alberto Trapani, antes dessas regras O Código de Ética Médica, no artigo
como usá-los adequadamente. Mesmo cia (Febrasgo). Se não há outro gine- serviu para expulsar o feto, morto den- é fruto de uma experência traumáti- entendia-se que para realizar a inter- 73, proíbe revelar algum fato ao qual se
quando se usa o método de forma cor- cologista que possa fazer a interrup- tro do útero. Antes e durante o processo ca. Além das possibilidades físicas de rupção legal era necessário um proces- teve acesso pelo exercício da profissão
reta ele pode falhar.” ção e disso depende a vida ou a saúde de diagnóstico, Roberta, então com 20 seguir com a gravidez, há outro desa- so judicial. Com as normas técnicas, “salvo por motivo justo, dever legal ou
A posição adotada por Vicente Bag- da mulher, o objetor deve realizar o anos, se sentiu julgada pelos profissio- fio: ser levada a sério. Mulheres que as etapas se tornaram mais simples, consentimento, por escrito, do pacien-
noli é um direito garantido pelo Código aborto. Rosas nota que a maioria dos nais do hospital. A estudante precisou recorrem ao aborto legal normalmen- assustando a classe médica. “Houve te”. No Manual de Orientação Ética e
de Ética Médica: a objeção de cons- profissionais se sente mais à vontade fazer duas ultrassonografias para que te não passaram pelo atendimento de um receio grande de que, se você desse Disciplinar, publicado pelo Conselho
ciência. Se por valores pessoais ou fazendo interrupções com medicamen- a morte do feto fosse comprovada. Na emergência, feito até 72 horas após o à paciente o direito de dizer que sofreu Regional de Medicina de Santa Catarina,
princípios religiosos, o médico decidir tos. “É muito mais fácil”. segunda, o médico que realizava o exa- estupro. As que passam, tomam a pílu- violência sexual sem provar, haveria o motivo justo é descrito como algo que
não realizar esse tipo de atendimento, Foi esse método que um ginecolo- me perguntou “Por que é em regime de la do dia seguinte e grande parte não uma avalanche de pessoas mentindo justifique a quebra do sigilo por razões
pode negar-se a fazê-lo. Desde que isso gista recomendou a Roberta quando urgência?”. Ela não escondeu os fatos. engravida. No entanto, não há como para fazer aborto em uma instituição legítimas e de interesse coletivo. Como
não prejudique a saúde da paciente. ela sofreu um aborto retido - consequ- Tinha abortado. Diante da resposta, provar através de exames que as ges- pública. Esse receio não se confirmou.” exemplo é citado o caso de um candi-
“A objeção de consciência não dá ao ência de uma interrupção incompleta o homem questionou: o aborto dessa tantes foram violentadas sexualmente, Para se certificar de que a mulher dato à vaga de motorista de transporte

10 brasileiros.com.br junho 2013 brasileiros.com.br 11


brasileiras | especial

coletivo que é portador de epilepsia. A delegada Magali Celeghin Vaz, da Senta atrás da mesa do escritório para as disparidades de tratamento entre “Isso nos dividiu e na votação optamos nenhum se referia à despenalização.
O dever legal ocorre quando a infor- 4ª Delegacia de Polícia de Defesa da dizer que nunca presenciou um caso ricas e pobres nessas situações. “As por deixar apenas o trecho ‘até a 12ª Trinta e um propunham retrocessos. O
mação deve ser revelada por força de Mulher de São Paulo, vai ao encontro de aborto. Viu, sim, colegas apurarem ricas têm autonomia e as pobres não semana, respeitando a autonomia da advogado Juliano Barbosa, do Centro
disposição legal expressa, como atesta- dessa suposição. Com sotaque paulis- denúncias de clínicas ilegais, mas nun- têm direito, fazem em condições ina- mulher’. Entendemos que, se ela qui- Feminista de Estudos e Assessoria
do de óbito. Entretanto, no mesmo tre- tano carregado e voz alta, afirma: “teo- ca uma mulher sozinha levada à dele- dequadas e morrem.” ser, não é preciso ter atestado médico. (Cfemea), nota entraves na discussão.
cho, fica claro que é proibido quebrar ricamente, os médicos são obrigados, gacia. A raridade do crime é explicada A fim de transformar esse cenário, o Sabemos que isso jamais será aprova- Afirma que desde a aprovação da Lei
o sigilo quando o médico depõe como ao perceber alguma coisa atípica, a por uma investigadora, que interrompe CFM assumiu, em março, uma posição do pelo Congresso.” Maria da Penha, em 2006, nenhum
testemunha e durante a investigação comunicar uma delegacia”. A mulher a entrevista. “Elas chegam aqui para favorável à reforma do Código Penal, A reforma do Código Penal não é a projeto significativo para as mulheres
de crimes que não envolvam o uso de com um pingente de algemas no colar denunciar um suposto estupro e são que propõe a despenalização do aborto luz no fim do túnel para as organizações foi aprovado. A alteração mais recente
armas de fogo ou brancas. repete a afirmação, para que não res- encaminhadas para o hospital Pérola feito até as 12 semanas de gravidez pelo feministas, que ressaltam seu caráter na legislação foi feita pelo Judiciário.
O artigo 73 não encerra a questão. tem dúvidas: a obrigação é denunciar. Byington, onde fazem a interrupção. desejo da mulher. O entendimento foi repressivo e criminalizante. “É muito No ano passado, o Supremo Tribunal
Há diferentes formas de intepretá- No entanto, a norma técnica do Você percebe que não foram estupra- aprovado pelos 27 conselhos regionais ruim no geral. Ter uma parte boa no Federal aprovou a inclusão da anen-
-lo e muitos questionam sua validade Ministério da Saúde determina que o das porque uma vítima de violência de medicina e enviado à comissão de tema do aborto e tantas outras negati- cefalia, malformação caracterizada
diante do Código Penal. O conselhei- médico ou qualquer outro profissional sexual fica abalada psicologicamente.” juristas que está analisando a reforma, vas não é uma boa estratégia. Há uma pela falta parcial do encéfalo ou do
ro e diretor corregedor do Conselho de saúde não pode comunicar o fato à A punição pelo crime de aborto não em tramitação no Congresso. D’Ávila tendência grande de criminalização de crânio no feto, como condição para o
Regional de Medicina de São Pau- autoridade policial, judicial, nem ao é comum. O professor Matheus Felipe conta que as condições listadas no condutas em geral”, analisa a cientis- aborto legal.
lo (Cremesp) Krikor Boyaciyan crê Ministério Público e alerta que o não- Castro explica que o fato de os delitos artigo 128 para a gestante abortar por ta política Kauara Rodrigues, do Cen- O advogado do Cfemea argumenta
que se deve acatar o Código de Ética -cumprimento da determinação pode não chegarem às autoridades é recor- vontade própria, – “quando o médico tro Feminista de Estudos e Assessoria que a falta de propostas no Congres-
Médica, preservando o segredo pro- levar a um procedimento criminal, rente no direito penal. “Existem cifras ou psicológo constatar que a mulher (Cfemea), localizado em Brasília. E, no so sobre esses direitos está ligada ao
fissional. O presidente do Conselho civil e ético-profissional. ocultas. Boa parte dos crimes não é não apresenta condições psicológi- Legislativo, não há nenhuma luz mais fortalecimento de uma resistência con-
Federal de Medicina (CFM), Rober- Apesar da discussão sobre o tema, conhecida”. Para a professora do Ins- cas para arcar com a maternidade”- próxima. Dos 34 projetos sobre o tema servadora, principalmente religiosa,
to D’Ávila, tem opinião semelhante: o professor de Direito Penal da Uni- tituto de Biologia da Universidade de foram questionadas pelos conselheiros. que tramitavam no Congresso em maio, que ganhou força com a estagnação
“Somos contra qualquer revelação de versidade Federal de Santa Catari- Brasília (UnB) e presidente do Movi-
sigilo. É um ponto de honra na rela- na (UFSC) Matheus Felipe de Castro mento Nacional da Cidadania pela
ção médico-paciente, a não ser que o observa que grande parte da classe Vida - Brasil Sem Aborto, que atua no
segredo faça mal a uma comunidade, médica não denuncia. “Eles natura- Congresso, Lenise Garcia, existe uma MÃE VIAJANTE
Grávida, a fotógrafa Elisa, que
mas não é o caso do aborto”. Apesar lizam a situação. O nível de compre- impunidade “tremenda”. “Criminalizar abortou aos 19 anos, pretende
da assertividade de D´Ávila, o corre- ensão é maior, optam pela mãe”. O é necessário, mas não suficiente. Tem ensinar ao filho tudo que aprendeu
gedor admite que a questão é contra- ginecologista Alberto Trapani, do HU, que criminalizar porque é crime tirar em suas temporadas fora do Brasil
ditória. “Se você perguntar para um explica que é importante saber como o a vida de outro. Mas aí não pune.” Ela
policial, ele vai falar: ‘lógico que tem aborto aconteceu e, principalmente, se define a inaplicabilidade da legislação
que denunciar’.” foi provocado com algum instrumento, como hipocrisia social.
mas defende que não tem obrigação O mesmo termo é usado pela coor-
de entregar ninguém. “Nossa função denadora do Coletivo Feminista Saúde
é de assistência. Até porque esse cri- e Sexualidade, Ana Galati, para des-
me não colocou a vida de outra pessoa crever o movimento. Ela recebe diaria-
Dos 34 projetos em risco, mas a da própria gestante”. mente mulheres que desejam interroper
sobre o tema que Para ele, as mulheres que se negam a gestações. “Ainda existe o Brasil Sem
falar são minoria. Mesmo com o silên- Aborto! Gostaria de viver em um país
tramitavam no cio de algumas, o ginecologista relata, em que os índices de aborto fossem
Congresso em maio, os médicos quase sempre descobrem muito baixos. Mas não é a realidade.
nenhum se referia como foi feita a interrupção. Não é raro
encontrarem comprimidos na vagina
A hipocrisia nasce daí.” A coordena-
dora propõe a releitura do nome da
à despenalização.
Trinta e um propunham
das pacientes. organização: “Quando você diz ‘Brasil
sem aborto’, quer dizer ‘Brasil escon-

retrocessos.
SILÊNCIO NO CONGRESSO de os abortos embaixo do tapete’”. A
A delegada Magali Vaz tira a pistola definição de hipocrisia de Ana Galati
do coldre e a coloca dentro da bolsa, se aproxima a de Roberto D’Ávila, do
onde a arma divide espaço com absor- Conselho Federal de Medicina. Para
ventes e um estojo de maquiagem. ele, hipócrita é quem finge não ver

12 brasileiros.com.br junho 2013


brasileiras | especial

dos movimentos sociais. “O pessoal Universidade de São Paulo (USP), um anteprojeto que foi incorporado ao A presidente do Brasil Sem Aborto, Lenise Garcia, defende a integração de ideais
ficou parado porque tem um governo de
esquerda, e é aí que esses grupos con-
Gustavo Venturi caracteriza esse cená-
rio como uma reação dos religiosos aos
projeto 1135, de 1991. De autoria dos
ex-deputados Eduardo Jorge (PT/SP) e “
religiosos ao debate: não vejo nenhum problema que exista uma frente parlamentar
servadores voltam à ativa.” A cientista
política Kauara Rodrigues, também do
avanços conquistados por movimentos
sociais nas últimas décadas. “Essa
Sandra Starling (PT/MG), o 1135 pre-
via a revogação do artigo 124 do Códi- evangélica, se tenho uma frente parlamentar ambientalista ou ruralista ”
Cfemea, confirma o fortalecimento de reação se aproveita do que considero go Penal, que determina detenção de
partidos e forças mais conservadoras. uma imaturidade na nossa cultura polí- um a três anos à mulher que aborta,
Conta que, desde 2003, colaborado- tica a respeito do Estado laico. O fato descriminalizando a prática. Além do
res da organização vêm apontando um de que há alguns anos essa resposta anteprojeto, o 1135 teve um substituti- Aborto. O movimento coordenado por gravidez. O prazo não é uma escolha banalização do aborto caso seja lega-
aumento de poder desses atores. Cita não existia mostra a falta de debate e vo apresentado em 2004 - projeto que ela nasceu pouco tempo depois, em um arbitrária. Aos três meses, os órgãos e lizado. A presidente do Brasil Sem
a presidência da Comissão de Direitos a invisibilidade de sujeitos de direito substitui outro em vigor. Nesse caso, o encontro organizado no Congresso para sistemas do organismo estão formados, Aborto vai mais longe. Acredita que
Humanos da Câmara, assumida pelo que hoje existem.” Justifica que, antes, substitutivo propunha a revogação dos reunir grupos contrários à legalização. mas não funcionam, ainda precisam a liberação da prática levaria à bana-
deputado Marco Feliciano, do Partido não havia necessidade dos conservado- artigos 124, 126, 127 e 128, legalizan- Também em 2005 foi criada a Frente crescer e amadurecer. A embriologis- lização da vida. “Se desvalorizo a vida
Social Cristão, como um sinal da arti- res se articularem porque eram hege- do totalmente o procedimento. Parlamentar em Defesa da Vida – Con- ta e professora do Centro de Ciências de um embrião, daqui a pouco desva-
culação das bancadas religiosas para mônicos e seus interesses não estavam Após a inclusão do anteprojeto, o tra o Aborto, que se mantém até hoje. Biológicas da Universidade Federal de lorizo a do morador de rua. Está per-
ocupar espaços de decisão na Câmara ameaçados. No início dos anos 2000, substitutivo foi à votação na Comis- Lenise Garcia defende a integração dos Santa Catarina (UFSC) Evelise Nazari turbando meu comércio, vou mandar
e no Senado. isso começou a mudar. são de Seguridade Social e Família ideais religiosos ao debate: “Não vejo explica: “O feto está morfologicamente alguém matar”. Lenise Garcia comenta
Cientista político e professor Em 2005, o Governo Federal formou da Câmara, no fim de 2005. Em uma nenhum problema que exista uma Fren- pronto, mas as estruturas serão total- que em Portugal, onde o procedimen-
do Departamento de Sociologia da uma comissão tripartite, com repre- das reuniões, em novembro, o texto te Parlamentar Evangélica, se tenho mente funcionais só depois do nasci- to é permitido, as mulheres estariam
sentantes do Executivo, Legislativo não entrou em votação por um voto. uma Frente Parlamentar Ambienta- mento. O sistema nervoso está forma- usando a intervenção como método
e da sociedade civil, para repensar a “Se fosse discutido naquele momento, lista ou Ruralista. Como os partidos do, por exemplo, mas o feto não tem anticoncepcional.
SEM ARREPENDIMENTOS
legislação brasileira sobre o aborto. provavelmente seria aprovado. Foi um estão ideologicamente fracos, o que condição de sentir sensações.” No entanto, dados publicados em
Para Luisa, integrante de uma Depois de quatro meses de trabalho, alerta para os pró-vida”, lembra Leni- guia as discussões políticas são outras Se tem o sistema nervoso estrutura- maio pela Direção-Geral de Saúde
organização feminista, a interrupção os membros da comissão apresentaram se Garcia, presidente do Brasil Sem ideias em torno das quais as pessoas do, o feto é considerado uma vida pela (DGS) do país ibérico mostraram que
não foi traumatizante: “o assunto já se aglutinam”. A frente parlamentar e legislação brasileira. De acordo com o número de interrupções caiu 7,6%
estava tranquilo na minha cabeça”
o movimento representam a força que o professor de Direito Penal da UFSC em 2012 em comparação com o ano
pretende - e está conseguindo - bar- Matheus Felipe de Castro, a definição anterior. Segundo o DGS, foram realiza-
rar leis progressistas sobre o assunto. de vida se baseia na lei nº 9343, a lei das 18.924 abortos, 1.513 a menos do
Ao aumentarem sua influência, esses dos transplantes, de 1997. O texto con- que em 2011. Há exemplos próximos
setores ampliaram também a visibi- sidera a morte cerebral como referência desse fenômeno. O Uruguai, onde a
lidade de seus argumentos. Grupos para morte. Invertendo a lógica, a vida prática foi despenalizada em outubro
pró-vida, como se autodenominam, começa quando o sistema nervoso se de 2012, se tornou um dos países com
possuem uma lista de motivos pelos forma. Apesar de detalhar a determi- as menores taxas de aborto do mun-
quais as interrupções devem continuar nação legal da questão, Castro deixa do, segundo dados apresentados pelo
sendo crime. Um dos mais citados é claro que os conceitos não são defini- subsecretário do Ministério da Saúde
que o ser humano se forma na fecun- tivos e podem ser usados para diferen- Pública uruguaio, Leonel Briozzo, em
dação e, portanto, o aborto corresponde tes fins. “Se baseiam na ciência, mas julho. Em seis meses, foram realizados
a homicídio. A relação é igual à esta- o conhecimento é sempre provisório. 2550 abortos legais, sendo que, antes
belecida pela Igreja Católica. “Não há Os dois lados [favoráveis e contrários da despenalização, a cifra mais reco-
discordância sobre isso. Se você pegar à despenalização] se apropriam do nhecida era de 33 mil procedimentos
um livro de biologia, vai começar na discurso científico para defender posi- clandestinos por ano.
fecundação. É quando ficam definidas ções político-ideológicas.” O professor Além dos números, a possível bana-
as principais características do novo avalia que o direito do feto, defendido lização é questionada por Roberta,
indivíduo”, afirma Lenise Garcia. Dife- por organizações pró-vida, é um enten- que interrompeu uma gravidez aos 22
rentemente do que ela diz, o tópico é dimento influenciado pela ideologia. anos. “Bicho, não é um piquenique!
cercado por divergências. A maioria das Isso porque, na concepção jurídica, o Tem que desconhecer muito a subje-
legislações que despenalizam o proce- ser humano só adquire direitos a par- tividade feminina para falar uma coisa
dimento, incluindo o texto da reforma tir do nascimento. dessas.” Júlia, que fez o procedimento
do Código Penal Brasileiro, permitem Outra bandeira levantada pelas aos 20, também critica a previsão do
a intervenção até as 12 semanas de organizações pró-vida é a possível movimento pró-vida. “É um momento

14 brasileiros.com.br junho 2013 brasileiros.com.br 15


brasileiras | especial

turbulento, que envolve luto, perda, foi o segundo candidato mais vota- essa posição ou calarem-se, os políti- Depois da resposta, sorriu e disse: “Sei
tristeza. Dizer que vai ser banalizado do em São Paulo, com 560 mil votos. cos deixam de beneficiar as maiores que é dia da mulher! Temos uma pre-
é ignorância ou maldade. Prefiro achar Um dos católicos carismáticos, como interessadas: as brasileiras. sidente que faz coisas boas! Dilma!”.
que é ignorância.” Apesar de defen- é conhecido no Congresso, o deputa- E foi embora, sem ouvir a mensagem
der a vida, a argumentação de Lenise do passou a integrar a frente em 2011. RADICALISMO NA DISCUSSÃO que as feministas direcionavam a ela.
Garcia ignora o processo traumático Para Chalita, a decisão não prejudicaria A amiga fez, a prima também. Basta “O radicalismo dentro do movimen-
pelo qual as mulheres passam. Sua sua popularidade - o que de fato não uma pergunta para saber que o abor- to feminista existe, sim!”, reconhe-
fala reduz a experiência a uma atitu- ocorreu. Sua carreira é afetada hoje to não está distante, talvez na casa ao ce Ana Galati, do Coletivo Feminista
de irresponsável e repetitiva. por denúncias de corrupção, não por lado, na recomendação da vizinha. É Saúde e Sexualidade. Ela esclarece
A presidente do Cômite CEDAW da ser contrário à legalização da prática. impossível calcular o número de bra- que poucas integrantes defendem um
Organização das Nações Unidas (ONU) O que vale para senadores e depu- sileiras que fazem interrupções, já que discurso mais racional, evitando falas
- órgão que fiscaliza o cumprimento da tados também se aplica à presidente a prática é clandestina. Apesar de ser emocionais. Descreve que racionalizar
Convenção sobre Eliminação de Todas da república. Nas eleições de 2010, um dos maiores problemas de saúde o discurso é preenchê-lo com informa-
as Formas de Discriminação contra a Dilma Roussef mudou suas declara- pública do Brasil, o tema é tabu. A ções, elementos estatísticos, evitando
Mulher -, Silvia Pimentel, constata que mulher que aborta se vê cercada por declarações “rasgadas” que, segundo
os argumentos de grupos conservado- preconceito, medo, julgamentos morais ela, não convencem ninguém. Com esse
res estão calcados em bases religiosas. e encara uma sociedade desprepara- comportamento, feministas afastam a
“Encontram pé e cabeça para suas da para lidar com ela e sua gravidez população de suas causas, facilitando
construções porque têm um referen- O caos que se forma indesejada. Os atores envolvidos nes- a predominância de pensamentos reli-
cial que não é a realidade social, é a é alimentado por sa cena, repetida à exaustação entre giosos e prejudicando o debate.
religião.” Percebe que se estabelecem quadro paredes de casas, farmácias e A presidente do Cômite CEDAW, da
verdades dogmáticas inquestionáveis
posições extremistas. consultórios, empurram a gestante para ONU, Silvia Pimentel, observa que,
até para os membros dos grupos. De um lado, religião, uma zona de indefinição. Ela é culpada além de afastar os cidadãos, posições
Os políticos que se posicionam con- de outro, feminismo. por ter engravidado, irresponsável, irre- radicais dificultam ações a favor da
tra tais verdades sofrem consequências. levante, fadada a ter um filho que não legalização do aborto porque simplifi-
O caso da deputada federal Jandira
Fhegali (PcdoB/RJ) é emblemático.
morte e vida se chocam quer ou a entrar na ilegalidade. Como
se não bastasse a existência desse caos,
cam o ato. “Alguns discursos caíram na
banalização: abortar na hora que você
Relatora do projeto 1135/91, era uma impedindo um ele é alimentado por posições radicais, quiser. É terrível. Como você tem um
das maiores defensoras da causa no diálogo difícil, que contaminam a opinião pública. De bebê – com seis meses já é um bebê –
Congresso, até que a militância afetou
sua carreira política. Quando se can-
mas possível um lado, religião, de outro, feminismo.
Morte e vida se chocam, impedindo um
e o tira de lá? No fundo, talvez essas
vertentes mais radicais tenham medo de
didatou ao Senado, em 2006, foi alvo diálogo difícil, mas possível. que a situação dos direitos da mulher
de uma campanha protagonizada por Na manifestação pelo dia da mulher, retroceda.” Júlia, que abortou aos 19
entidades pró-vida que a retrataram em 8 de março deste ano, dezenas de anos e é feminista, reconhece que a
como abortista. Perdeu para Francisco ções após José Serra a acusar de ser organizações feministas se reuniram em experiência é por vezes simplificada,
Dornelles (PP) após liderar pesquisas favorável à legalização da prática. O frente à Catedral da Sé, na cidade de subestimando o sofrimento físico e psi-
de opinião. “Hoje está absolutamente tucano recuperou falas nas quais Dilma São Paulo. Em cima de um trio-elétri- cólogico causados por ela. “Não é ape-
afastada do assunto”, relata a cientista demonstrava esse ponto de vista. “Com co, algumas integrantes do movimento nas reconhecer que a mulher tem direito
política Kauara Rodrigues, do Cfemea. sua trajetória de esquerda e feminis- listavam, pelo microfone, as entidades ao próprio corpo e a autonomia é dela.
Jandira Fhegali não mudou de lado, ta, não foi difícil encontrar passagens presentes naquele dia. Mais de dez, para Fisiologicamente existe uma sensação
mas optou por não participar das dis- em que defendia esse direito”, nota o um público de 300 pessoas. Às 14h, de mutilação, de perda.”
cussões, temendo represálias. cientista político Gustavo Venturi. Ele começaram os discursos. Enquanto uma Os movimentos religiosos também
Se parlamentares deixam de apoiar a traz um dado importante: as pesquisas das manifestantes gritava palavras de são marcados por posições extremistas.
despenalização para não perder votos, de opinião pública das últimas décadas ordem como “1, 2, 3, 4, 5, mil! Que- Há dez quilômetros de onde aconteceu a
quem defende a criminalização não sempre mostraram uma maioria con- remos o aborto legal no Brasil” ou “A
teme a perda de eleitorado. Entre os trária à legalização. Portanto, a então nossa luta é todo dia, somos mulheres
179 integrantes da Frente Parlamentar candidata precisou alterar seu discurso. e não mercadoria!”, passantes cruza- COMPLICAÇÕES
Mista em Defesa da Vida - Contra o A mudança de Dilma mostrou que, na vam a praça da Sé revirando os olhos Depois de usar misoprostol para
abortar, aos 22 anos, Roberta teve
Aborto está o deputado Gabriel Chalita política, o debate só beneficia quem se e dando risadinhas. Uma senhora se uma hemorragia, ficou anêmica
(PMDB/SP) que, nas eleições de 2010, coloca contra a causa. Ao assumirem aproximou e perguntou: “o que é isso?”. por meses e deprimida por anos

16 brasileiros.com.br junho 2013 brasileiros.com.br 17


brasileiras | especial

manifestação, fica o Centro de Reestru- A assistente social Regina Nascimento considera a falta de condições financeiras
turação para a Vida (Cervi). No bairro
Barra Funda, Zona Oeste de São Paulo, um dos menores empecilhos para continuar a gravidez: pobre tem filho tem ” .
cinco, dez filhos. e cria. a ânsia dos pais de dar e ter pode suplantar o amor ”
uma casa verde-água abriga a organi-
zação. O Cervi oferece orientação para
mulheres que vivem uma gravidez inde-
sejada. A assistente social do centro,
Regina Nascimento, explica que um
dos primeiros passos no atendimento assegura que a interrupção não resolve filho, né? Tem quatro, cinco, dez filhos. portanto, um homicídio.
é exibir o documentário norte-ameri- o problema da mulher porque é apenas E cria. A ânsia dos pais de dar e ter às Mesmo com o documento, os deba-
cano “O Grito Silencioso”, de 1984. O mais uma agressão. Lenise Garcia, do vezes suplanta o amor.” tes internos continuaram. No livro, a
filme é narrado pelo obstetra Bernard Brasil Sem Aborto, indica a adoção como Como entidade cristã, o Centro de escritora cita que a minoria dos teólo-
Nathanson, um dos líderes do movimen- uma possibilidade. “Como a situação Reestruturação para a Vida embasa gos aceita a intervenção nos primeiros
to pela legalização do aborto e dono de se resolve? É quando essa gravidez é suas considerações no cristinianismo. meses da gravidez. A oposição não é
uma clínica legal de interrupções nos levada a termo, mesmo que a criança No entanto, a posição da Igreja Cató- visível à grande parte dos fiéis, mas
Estados Unidos que depois se conver- seja doada. E frequentemente as mães lica - principal representante da reli- existe, e mostra que nem toda inicia-
teu ao ativismo contra a causa. Em “O desistem de dar para adoção e ficam gião - sobre o aborto é mais flexível do tiva religiosa condena a legalização.
Grito Silencioso”, Nathanson mostra a com a criança. Muita gente diz que as que parece. A doutora em Ciências da Apesar das divergências dentro da
gravação de um aborto registrado por mulheres vão olhar para o filho e lem- Religião e membro da coordenação da Igreja, a posição da maioria das orga-
ultrassonografia. Nas imagens, o feto brar do agressor. Que nada! O testemu- ONG feminista Católicas pelo Direito nizações cristãs permanece imutável.
parece abrir a boca, como se estives- nho que elas dão é que é um consolo.” de Decidir, Regina Jurkewicz, escla- O discurso dessas entidades chega ao
se gritando, quando o aparelho de suc- Até quando a criança não vai sobre- rece que a condenação à prática não é Congresso, onde deputados e senado-
ção se aproxima dele. O vídeo é muito viver, em razão de alguma anomalia um dogma, mas uma medida discipli- res o utilizam para sustentar suas posi-
criticado pela comunidade científica grave, não se admite o aborto. Para nar. Dogma, detalha, implica na infa- ções frente a esse e outros temas. Para
porque pode induzir ao erro. Um feto justificar, a assistente social do Cer- bilidade papal, quando o papa declara a professora de Sociologia da Pontifícia
com 12 semanas, idade gestacional do vi cita o curta-metragem “Flores de que determinado ponto não pode ser Universidade Católica de São Paulo
que aparece na gravação, é menor do Marcela”, sobre a vida de Marcela de alterado. Para isso, condições especí- (PUC/SP) Carla Cristina Garcia, os par-
que um apontador de lápis. Entretanto, Jesus Galante, bebê com anencefalia ficas precisam ser cumpridas e o tema lamentares aproveitam-se das crenças
nas imagens aparenta ser muito maior (sem córtex cerebral) que viveu por um deve ser discutido por teólogos. “É um para mascarar posicionamentos políti-
e ter forma humana mais desenvolvi- ano e oito meses. Pela gravidade da dogma dizer que Maria subiu aos céus. cos. “Vão propondo e trancando pautas
da. Depois de exibido o documentário, malformação, anencéfalos geralmen- Não cabe questionamento.” A reprova- de acordo com ideologias revestidas
perguntam à gestante se ela quer mes- te morrem dias ou horas após o nasci- ção ao procedimento não é dogmática de ‘sou cristão’. É uma disputa entre
mo abortar. “Fico feliz de te falar que mento. “Ela tinha reações. Quando a porque sempre provocou discordância conservadores e liberais, é só retirar
mais de 90% das mulheres que vêm mãe saía de perto e a deixava só com entre membros da instituição. o discurso de Deus.” Porta-vozes de
aqui continuam a gravidez”, estima a o pediatra, a nenê chorava”, diz sobre Com dois mil anos de história, a pensamentos radicais e influenciados
assistente social. partes do vídeo. Igreja só tomou posição oficial sobre por interesses políticos, liberais e con-
Regina Nascimento defende que A embriologista Evelise Nazari res- o assunto há menos de dois séculos. servadores não fazem questão de che-
nada justifica a morte de um feto. Nem salta que casos como o de Marcela são No livro “Uma história não contada: gar a um consenso. E travam o debate.
complições médicas, nem estupros. No exceção e acontecem quando o feto a história das idéias sobre o aborto na Para os dois extremos, o aborto pare-
primeiro caso, diz que os riscos à vida tem um grau mais leve de anencefalia. Igreja Católica”, publicado por Cató- ce ser uma questão simples. O direito
da mãe muitas vezes não são reais. Segundo uma médica entrevistada no licas pelo Direito de Decidir, a norte- ao próprio corpo é o que conta, sem se
“Os médicos prevêm o risco imedia- filme, o comportamento do bebê não -americana Jane Hurst conta que só considerar as consequências traumáti-
to, mas não a longo prazo, as sequelas era consciente, mas reflexo à audição. em 1869 o papa Pio IX publicou a cas do ato. O bebê deve nascer mesmo
emocionais.” Sobre a violência sexual, A embriologista resume: “Era um esta- encíclica Apostolicae Sedis, na qual que seja filho de estupro, não tenha
do vegetativo”. determina a excomunhão para mulhe- cérebro ou possa provocar a morte da
Frente a anomalias, riscos à vida e res que interromperam gestações em mãe. Feministas e religiosos gritam
UM DÁ, DOIS NÃO estupros, Regina Nascimento, do Cervi, qualquer etapa. A declaração de Pio verdades absolutas em lados opostos.
Quando abortou, aos 20 anos,
Camila tinha um filho pequeno, encara a falta de condições financei- IX foi o primeiro apoio explícito à teo- Se ficassem em silêncio, talvez perce-
estava se separando e não ras como um dos menores empecilhos ria de que o ser humano começa na besse a dor das mulheres presas nessa
podia sustentar duas crianças para continuar a gravidez. “Pobre tem fecundação e de que a interrupção é, confusão. I

18 brasileiros.com.br junho 2013 brasileiros.com.br 19


TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO
JORNALISMO UFSC - 2013.1
Aluna: Ingrid Tabares Fagundez
Orientador: Luis Alberto Scotto

Você também pode gostar