Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Introdução
Esta revisão inicia pelo estudo de pontos do desenvolvimento da linguagem oral que
antecedem e são relacionados ao domínio da lógica do sistema alfabético de escrita24 ,
aspecto fundamental para que se efetive o processo de alfabetização. A fim de que a criança
se aproprie deste sistema de escrita, é necessário o entendimento básico de que os grafemas
representam fonemas, possibilitando a conversão grafema-fonema cada vez mais rápida e a
sua junção em palavras, o que permite a leitura fluente e o acesso a significados. O início deste
processo se dá na percepção e aquisição de fonemas pela criança, para então progredir em
habilidades cognitivas gradualmente mais complexas de consciência fonológica, que
permitirão à ela reconhecer e unir fonemas e grafemas no seu aprendizado de leitura e de
escrita. Este processo de aquisição fonológica no Português completa-se, numa expectativa de
normalidade, até os 5 anos de idade (Lamprecht et al, 2004).
Dehaene (2012, p. 215) também destaca a precocidade desta habilidade infantil, sendo
verificado que, com poucos dias de vida, o bebê discrimina os contrastes linguísticos dos sons
de qualquer língua e já mostra uma atenção especial para a prosódia de sua língua materna.
Logo aos 3 meses, numa fase em que ainda produz apenas sons inarticulados, a região cerebral
frontal inferior esquerda, chamada área de Broca, já é ativada quando escuta frases. Há uma
interconexão das áreas cerebrais que analisam fonemas, palavras e frases, formando uma rede
que facilita a aprendizagem da língua. Para que se reconheçam as palavras dentro de um
enunciado, é necessário o reconhecimento de regularidades entre o estímulo atual e a
experiência passada, ou seja, que haja uma característica invariante da informação auditiva
(Santos e Navas, 2012, p. 6). Registros visuais, auditivos e motores da fala associam-se em
representações mentais dinâmicas e, ‘quanto mais frequente o padrão de atividade de
associação, mais fortes e completas serão as conexões entre as unidades e, por consequência,
maior a velocidade e a acurácia do processamento’ (Santos e Navas, 2004, p.7).
Para que uma criança avance nessas habilidades de manipulação da estrutura sonora
das palavras realça-se a importância de brincar com as palavras e seus sons desde muito cedo.
Parlendas, trava-línguas, versos, canções, por exemplo, oferecidos pelos adultos, captam e
favorecem a atenção da criança à linguagem, pois a estimulam tanto pela graça dos sons
semelhantes e melódicos como pelas trocas afetivas possibilitadas pela entonação da voz, a
expressão facial, o olhar e a palavra dirigidas à criança. Neste sentido, a leitura partilhada de
histórias, ou seja, a leitura em voz alta feita pelo adulto para os pequenos, constitui uma das
práticas com maior impacto no futuro escolar da criança; essa prática possibilita ampliar o
vocabulário, desenvolver a compreensão da linguagem oral, introduzir padrões
morfossintáticos, despertar a imaginação, incutir o gosto pela leitura, bem como estreitar o
vínculo familiar (Carpentieri et al., 2011). Também o diálogo de qualidade com a criança é de
suma importância. Desde cedo, pode-se observar uma comunicação não-verbal entre uma
mãe e um filho, pois entre eles ocorrem variações de tônus (contrações e descontrações
musculares), a manutenção do contato visual e expressões faciais que ‘conversam’ (Mousinho
et al, 2008). A alternância de turnos de conversação, seja com respostas não-verbais, enquanto
a criança ainda não fala, ou verbais, quando ela começa a estruturar a expressão linguística,
possibilita sua inserção como interlocutor na linguagem, ora como quem escuta, ora como
quem responde ao que é dito, ou propõe o tópico de conversação usando fala/gesto, que pode
e deve ser interpretado pelo adulto. Falar com o pequeno numa altura em que ele possa
visualizar a boca e a expressão facial do falante, facilita a integração dos aspectos visuais e
auditivos, além de efetivamente o convocar à conversação. Os primeiros fonemas 195 que a
criança produz são os de mais fácil visualização, realizados anteriormente na boca, produzidos
com os lábios - /p/, /b/, /m/. Um pouco depois, surgem o /n/, /t/, /l/, também anteriores, e já
envolvendo movimento de elevação de língua. Em seguida, gradualmente aparecem o /d/, /k/
(som do ‘C’), /f/, /s/, /g/, /v/, /z/, /R/ (som dos 2 RR), /š/ (som do CH), /ž/ (som do J). Mais
tarde, surgem fonemas com movimentos mais complexos, como /ñ/ - som do NH, /ʎ/ - som do
LH, e o /r/, chamado tepe, produzido com a vibração da ponta da língua atrás dos dentes
incisivos superiores, fonema que exige maior controle muscular. Nesse processo de aquisição,
também é preciso levar em conta a estrutura da sílaba, pois há maior facilidade de produção
com a estrutura silábica de consoante-vogal (CV). A estrutura silábica predominante na língua
portuguesa é consoante-vogal (CV), comum a todas as línguas do mundo, surgindo mais
precocemente no processo de aquisição nos diferentes sistemas linguísticos (Matzenauer,
2004). A inversão desta ordem para vogal-consoante traz maior complexidade na produção.
Quanto maiores as sílabas, envolvendo mais consoantes, as chamadas sílabas complexas, mais
difícil é sua produção no período inicial da fala. Exemplo disso é a dificuldade que muitas
crianças apresentam em completar a aquisição do /r/, pois este fonema pode estar no início de
sílabas dentro da palavra (como em ‘parede’, ‘careca’), no final de uma sílaba (como em
‘corpo’, ‘forte’), ou num encontro consonantal, dificultando sua percepção (como em ‘praça’,
‘creme’). Este fonema costuma ser o que completa o período de aquisição fonológica.
A palavra possui um papel impulsionador para a fala da criança e é nela que reside a
riqueza de significados e sentidos expressos e compreendidos na linguagem. A ampliação do
vocabulário tem sido um dos aspectos mais destacados em importância quando se pensa no
desenvolvimento da linguagem e aprendizagem das crianças. É uma aquisição que integra
diferentes níveis de consciência linguística, como o fonológico, morfológico e semântico,
possibilitando a compreensão da fala e da leitura. ‘Um vocabulário pobre constitui um
obstáculo para a compreensão de textos’, como referido pelo PNA (2019). Podemos transpor
tal afirmação para a compreensão da linguagem oral, ainda que nessa modalidade o contexto
e a gestualidade auxiliem na compreensão do que é dito. O léxico mental agrega às palavras
padrões de pronúncia, aspectos pragmáticos que orientam seu uso, frequência de uso,
padrões sintáticos, grau de formalidade, relações lexicais, informação morfológica, entre
outras informações, pois neste as palavras são conectadas em redes semânticas e são
atualizadas conforme as novas experiências de uso destas (Aitchison, 1987). As categorias
semânticas vão se tornando mais elaboradas à medida que novas palavras são incorporadas e
relacionadas com as pré existentes. Luria (1987) considera a palavra o elemento fundamental
da linguagem. Esta nomeia as coisas, individualiza características, designa ações, relações e
reúne objetos em determinados sistemas. A palavra torna-se um elo de toda uma rede de
imagens que evoca, denominada rede semântica. Conforme Luria (1987, p.35), “aquele que
fala, ou que escuta, contém, inibe, toda esta rede de palavras e imagens evocadas pela
palavra, para poder escolher o significado imediato necessário no caso ou situações dadas”.
Assim, ela se transforma na base da generalização (instrumento do pensamento) e meio de
comunicação (instrumento da comunicação verbal).
A compreensão textual pode e deve ser estimulada desde muito cedo, levando em
conta obras adequadas às diferentes faixas etárias, Inicialmente, os livros infantis costumam
ter o predomínio de figuras associadas a frases mais curtas, que captam a atenção e são mais
facilmente assimiladas pela criança. Assim, na repetição do contato com este tipo de livro, as
palavras e ilustrações são reconhecidas, nomeadas, e a criança começa a ter a expectativa e a
antecipar o que virá na página seguinte. Progressivamente os textos aumentam em extensão e
complexidade de frases e vocabulário, apoiados por ilustrações que também facilitam este
processo. Pereira e Scliar-Cabral (2012) pontuam que, quando o texto é o foco da consciência,
é preciso levar em consideração os planos linguísticos que se inter-relacionam e se amarram
neste – o fônico, o morfológico, o sintático, o léxicosemântico, o pragmático e o textual -,
aspectos que devem ser levados em consideração e estimulados nas reflexões das crianças.
Considerações Finais
Nesta revisão com a proposta de associar comportamentos de linguagem oral que são
“raízes” dos comportamentos de leitura e de escrita, foi possível verificar a importância de que
estes sejam estimulados e amparados pelos adultos que convivem com a criança. Igualmente ,
é fundamental que a escola esteja atenta à qualidade do desenvolvimento da criança que
chega aos bancos escolares, observando as consistências e inconsistências na organização da
linguagem, o que possibilita intervenções mais adequadas no processo de aprendizagem.
Pode-se, assim, resgatar determinadas habilidades que são anteriores ao que a criança precisa
desenvolver no seu processo de aquisição de leitura e escrita.
Palavras, fonemas, frases e textos são vivenciados primeiro oralmente, para então
serem referência para as aprendizagens de escrita e leitura. E são experimentados pela criança
pela voz dos adultos, que possuem a fundamental tarefa de apresentar e verbalizar o mundo
aos pequenos que estão em desenvolvimento, para que se situem e pertençam à linguagem.
Pinto (2017) resume de forma lapidar o significado deste processo:
Cada um possuirá uma língua matriz particular provinda
de seu percurso próprio porque lê textos diferentes, percorre
trajetos heterogêneos no campo da(s) literacia(s) e desenha
objetivos distintos de acordo com seus desejos. Não restam
dúvidas de que, a ser assim, são necessários grandes esforços para
que cada identidade se manifeste no seu melhor. Ou oralmente ou
por escrito, a língua projeta o que se investe nela (p. 53).