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Sobre a centralidade da tática no campo autonomista

O que é essencial é que a tática posta em prática aqui e agora já tenha em si mesma os
elementos organizativos radicalizados, já construa agora elementos de uma nova
sociabilidade pautada por outros valores Por Pablo Polese

Texto originalmente enviado como comentário ao texto A irresistível centralidade da


tática e os dilemas requentados
(disponível em.: http://www.passapalavra.info/2016/01/107317/comment-page-
1#comment-308854)

Compas,
tamo junto. O debate é mais que necessário, e o texto já vale ouro por pautar
esse debate e chamar os interlocutores que chama, o tal campo autonomista, que não
se sabe muito bem quem engloba depois dos desdobramentos que levaram ao fim do
MPL enquanto movimento capaz de se tornar movimento social de massas. Talvez por
isso vocês orientem as questões para o diálogo com o grupo Mal Educado, principal
organizador da luta dos estudantes secundaristas. Essa luta aglutinou algumas das
forças sociais que o MPL assimilado à ordem deixou de lado para se focar na luta
multiculturalista e políticas identitárias, ou seja, na autorreflexão e autoflagelação de si
mesmo.
O debate proposto contrapõe a “irresistível centralidade da tática” e o
abandono tácito do debate estratégico. Vocês escolheram, e não foi por acaso, pautar
o debate do seguinte modo: na luta empreendida a partir de 2013 pelo “campo
autonomista” o salto organizativo dos trabalhadores estaria impedido devido 1) ao
fato do principal organização dos trabalhadores estar cumprindo o papel de gestor dos
conflitos sociais por meio da articulação íntima que tem com as bases sociais, em
especial na figura dos movimentos sociais do campo democrático popular, e 2) devido
ao fato da principal organização do campo autonomista, o MPL, não possuir inserção
na base da classe trabalhadora. Concluem então que devido a esses limites o MPL
“pôde apenas mobilizar um espetáculo de rua com aspectos de revolta popular” e que
depois da vitória dos 20 centavos o movimento teria ficado “sem condições de
direção” e fora forçado a “tornar-se espectador atônito do processo que iniciou”.
Há aqui uma interpretação problemática das pretensões do MPL em ser mais
que um espectador atônito e sim o “dirigente” do processo de lutas das Jornadas de
Junho de 2013. Será mesmo que o MPL quis ser o dirigente daquele processo? Não
havia maiores potencialidades de radicalização se o MPL tivesse se retirado do centro
das atenções, dando total liberdade para o desenvolvimento da revolta popular? A
questão é complexa, mas independentemente da resposta, o fato é que havia no MPL-
SP uma franja de militantes que optou conscientemente em não dirigir o processo,
vendo nisso uma potencialidade maior de radicalização da luta e uma dificuldade
maior de sua assimilação por meio dos mecanismos estatais e capitalistas de
apassivamento por meio da cooptação de dirigentes, restando às forças da ordem
apenas os mais elaborados e vantajosos mecanismos de assimilação das lutas via mais-
valia relativa, ou seja, via incremento da produtividade/atendimento das demandas do
trabalhadores.
Para além dessa questão, o texto trabalha com uma noção problemática da
tática e estratégia. Não há tática sem estratégia. No máximo há tática sem consciência
de sua estratégia, sem atino acerca de qual estratégia fortalece, qual visão de mundo
sustenta e qual objetivo de longo prazo atende. A estratégia não é o destino e a tática
um dos caminhos, a estrada. A estratégia é o todo feito pela aplicação da tática. Para
ilustrar com uma metáfora, basta visualizar o exemplo das linhas (tática) que ao serem
tecidas constituem um tapete (a estratégia), com a ressalva de que há sempre um
tapete pronto, que vai sendo ampliado, e não um tapete incompleto. Outra metáfora é
a das linhas de Nazca, os geoglifos antigos localizados no deserto peruano. A estratégia
constitui o desenho em sua totalidade, seja no tapete, seja no deserto, são os pedaços
táticos vistos em sua completude, sendo que cada pedacinho não é uma mera parte
tática descolada, não é um aspirante a tapete e sim um tapete menor. As cores de
linhas escolhidas, o modo de tecê-las, constitui a tática. Cada elemento da tática é um
pedaço da estratégia, portanto a estratégia é um resultado global e não um objetivo
de longo prazo descolado da tática posta em prática aqui e agora.
A esquerda se acostumou a pensar por etapas, e vem daí o vício de se conceber
estratégia como destino, no caso um destino sempre adiado pelas mediações
“temporárias” interpostas. O chamado campo autonomista não se centra na tática e
deixa a estratégia de lado, ele segue uma estratégia assimilada à ordem, a qual implica
algumas táticas, a maioria delas desarticulada dos espaços de trabalho e moradia dos
trabalhadores. Quanto mais integrável à ordem e assimilável pelo sistema, mais uma
tática X ou Y é encorajada pelas forças objetivas. O fortalecimento de políticas
identitárias, por exemplo, tem nas Universidades e demais espaços de produção e
difusão de conhecimento todo um arsenal de subsídios estatais e privados, e não é por
acaso que vem daí a maioria dos futuros militantes ferrenhos das bandeiras
multiculturalistas. Não é à toa que se lê mais Foucault que Pannekoek, e não é por
acaso que o principal financiador de estudos feministas (revistas, pesquisas, projetos
etc) é a Fundação Ford. Essa mesma Fundação financiou o estabelecimento do
movimento negro no Brasil após o final da ditadura militar. Em ambos os casos,
propiciou com eficácia o estabelecimento da mesma orientação política, de matriz
norte-americana. Isso não quer dizer que a bandeira feminista ou a da luta contra o
racismo sejam menos importantes ou em si mesmas reformistas, integradas à ordem,
mas quer dizer que as vertentes que defendem práticas sociais feministas e anti-
racistas num molde menos perigoso à ordem do capital são as que serão incentivadas
aqui e ali por fatores objetivos, mais que tudo econômicos, e subjetivos, especialmente
no plano da disputa de ideologias enquanto parte da luta de classes. É por esse motivo
que encontra ambiente institucional e político favorável as vertentes de esquerda que
o Passa Palavra chamou de “feminismo excludente”, bem como as vertentes de luta
negra que excluem a participação de brancos.
Sendo assim uma luta centrada no feminismo ou na causa negra em uma chave
desarticulada da questão de classe é uma luta que tem apenas tática, sem estratégia?
Não, são lutas que, querendo ou não, conscientemente ou não, atendem a uma
estratégia, no caso, uma estratégia de apassivamento das lutas com potencialidade
anticapitalista, uma estratégia de renovação das elites em bases de raça e gênero. Não
há, devido a seu potencial de mobilização, bandeiras mais perigosas para o sistema
que a feminista e negra, afinal em tempos de anacronismo da luta pelo “fim da
exploração” não há campo mais explosivo que o da organização das mulheres e
negros. De fato, o próprio desenvolvimento do Capitalismo exige a superação do
machismo e do racismo; não é por acaso que nos altos escalões de gestores nas
grandes companhias transnacionais e nos organismos internacionais como o Banco
Mundial e o Fundo Monetário Internacional há elevada participação de mulheres e de
pessoas de todas as cores. A luta pela superação do machismo e do racismo é sem
dúvida necessária e urgente, mas é uma das muitas lutas que conduzimos no interior
do Capitalismo e sem ultrapassar o capital. Por isso mesmo o sistema dominante
promove o multiculturalismo e decreta a política de cotas. Há, portanto, uma
estratégia sendo posta em prática por meio de um elo perverso entre os organismos
financiadores transnacionais e alguns modos de organização do pobre, preto e
periférico contra a opressão estatal. Só se pode atuar em benefício do feminismo e da
luta contra o racismo se o sexo e a melanina deixarem de ser considerados (dentro das
próprias organizações da esquerda) caracteres decisivos para a prática política. Isso
implica que sejam ultrapassados os limites organizativos que precisamente definem
desde os métodos táticos o feminismo e os movimentos étnicos “excludentes”,
pautados na teoria dos privilégios. São bandeiras com alto poder de mobilização, e
exatamente por isso o sistema lança contra suas elas um conjunto de mecanismos
assimiladores, que delimitam não só as demandas, a maioria das quais perfeitamente
atendíveis dentro da ordem e de modo lucrativo, mas especialmente os horizontes
organizacionais dessas lutas. E por quê “especialmente” os horizontes organizacionais?
Justamente porque é na organização aqui e agora, no pôr em prática de táticas
radicalizadas, que se constitui uma estratégia radicalizada. Uma forma de organização
da luta contra as opressões e a exploração de classe que articule mulheres e negros
juntamente com os “privilegiados” brancos é uma forma de organização perigosa,
potencialmente explosiva, daí todos os esforços do sistema para desencorajar que
formas de luta se articulem assim, e isso é feito não pela via da repressão e
inviabilização das organizações e seus programas estratégicos, mas pelo estímulo
objetivo e subjetivo a que as lutas se organizem de uma forma tática esterilizadora dos
potenciais de radicalização estratégica e, portanto, mais conveniente para o processo
de controle e assimilação capitalista das lutas.
As forças conservadoras vencem as forças da revolta popular não quando
apagam a possibilidade de conquista da demanda de longo prazo, mas quando
desestruturam a forma organizativa e tiram dela todos os elementos radicais e críticos,
que são “táticos” e implicam a viabilidade ou não da luta se dar de modo conjunto,
agregador de forças sociais mais ou menos distintas, contra inimigos em comum e que
seja capaz de plantar no cotidiano a semente do novo, que é sempre a semente do
conflito. O MPL perde a potencialidade anticapitalista não por ter se centrado numa
tática de revolta de rua descolada de alguma “estratégia radical”, nem por ter
abandonado a bandeira da tarifa zero, ou por se tratar de uma demanda que o
Capitalismo conseguiu integrar pela via dos mecanismos de mais-valia relativa (o que
vai acontecer, mais cedo ou mais tarde, e quando acontecer será uma “vitória”
daquelas que o Capitalismo adora conceder), mas pura e simplesmente porque deixa
de se organizar de modo radical, assim como outrora aconteceu com o MST e tantos
outros órgãos de luta da classe trabalhadora. Nesse sentido o problema da tática não é
menor ou secundário ao da estratégia, tal como na equação dos “fins” e “meios” de
Maquiavel. A tática e a estratégia caem e se erguem juntas e chegam sempre de mão
dadas na encruzilhada dupla que persegue toda luta social: ou se radicalizam ou são
derrotadas.
Assim, se essas ideias fizerem mesmo o sentido que espero que façam, para
uma luta se radicalizar não é preciso ter uma concepção clara de estratégia no sentido
de um objetivo a ser atingido no longo prazo. Esse é um modo menos poderoso de se
entender a tática e a estratégia, embora em alguns casos seja útil em termos de
capacidade de mobilização. O que é essencial é que a tática posta em prática aqui e
agora já tenha em si mesma os elementos organizativos radicalizados, já construa
agora elementos de uma nova sociabilidade pautada por outros valores capazes de nos
dar o cheirinho do mundo futuro que se busca com luta, e por isso vocês erram e
erram feio quando subestimam a luta dos secundaristas de SP por conta de um
suposto problema de falta de estratégia.
A forma de organização dos secundaristas via ocupação e autogestão dos
espaços escolares foi radical, foi o germe do novo brotando, e por isso a coisa explodiu
e a luta se alastrou, carregando consigo aquela tática acertada, aquela faísca que
encontrou o que em verdade a procurava. Além disso, dada a conjuntura em que
ocorre e o legado que deixa para trás, essa experiência põe as condições para a
formação de uma base de militantes críticos, desapegados do legado que pesa nas
costas dos militantes de longa data, o legado democrático popular e seu apego à busca
pelo poder estatal, acúmulo de forças etc.
Ah, “mas a luta não foi ao centro da classe”, não se enraizou na base social de
onde emana a produção de valor, reclamam vocês fazendo eco a toda uma ala da
extrema esquerda. Será que o enraizamento na base social constitui uma etapa prévia
à radicalização da estratégia? É a radicalização da estratégia, por meio do pôr em
prática de táticas radicais, que leva, ou traz, o aprofundamento do enraizamento da
base social. A concepção hegemômica e territorial de trabalho de base (o que é, como
fazer e para quê) onde se vai até a base social visando mobilizá-la de tal ou qual forma
por tal ou qual bandeira está mais que nunca ultrapassada, pois estamos todos
mobilizados em tempo integral pela racionalidade neoliberal e sua promoção do
"empreendedorismo de si mesmo", portanto a luta de classes se converteu em uma
disputa de táticas (integradas nalguma estratégia). Não se trata de colocar em
movimento as bases, e sim de mudar o rumo de um movimento permanente, uma
mobilização total que se converteu hoje na principal forma de contrarrevolução
permanente. Assim, a contrainsurgência se dá hoje pela via não da imobilização da
base pela via da repressão, que é reservada aos que não se integram aos dispositivos
previstos, mas sim pela disponibilização de um amplo mecanismo estatal e privado que
garante e impõe aos trabalhadores uma intensa participação ativa na sua própria
degola cotidiana, seja na velha base do individualismo capitalista, seja na base do
oferecimento, à classe organizada, dos orçamentos participativos etc. do campo
democrático popular.
O almejado “centro da classe”, então, tem que ser seduzido, só isso. Para o
flerte dar certo as organizações precisam ensaiar táticas efetivas, faíscas em busca do
gás incendiário da rebeldia popular. Além disso, vejam, o capital é uma totalidade, não
basta produzir, é preciso realizar o valor. O espaço de produção não é então o único
lugar com potencialidade de ruptura das bases que sustentam o sistema. Qualquer
interrupção na distribuição das mercadorias já coloca o sistema em crise e traz a
sombra do colapso. O essencial é que a treta se espalhe, sem primazia de um “sujeito”
que seja em si mesmo mais ou menos revolucionário devido a sua colocação na
estrutura produtiva. Trata-se de empreender lutas radicais no nosso cotidiano, onde
quer que seja possível, espaço de moradia, de trabalho, de lazer, serviços, enfim, onde
quer que haja contradição social. Lutas que forjam militantes críticos. Hoje não há
tática mais radical que essa. E ao se pôr, essa tática constitui uma estratégia. Essa base
social que se forja nas lutas recentes que se dão por fora da órbita democrática
popular pode ser assimilada à ordem, pode ser cooptada pelas organizações do campo
democrático popular (MST, CUT, MTST, PSTU, PT, Conlutas, Levante, etc)? Pode. Mas
esse é um risco que sempre se corre, não importa quão radical seja o programa
estratégico em construção.

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