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Élie Bajard
Resumo
Palavras-chave
Correspondência:
Élie Bajard
Rua Sergipe, 290 apto 162
01243-000 São Paulo
e-mail: emebaj@uol.com.br
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.3, p. 493-507, set./dez. 2006 493
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Élie Bajard
Abstract
Keywords
494 Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.3, p. 493-507, set./dez. 2006
Diante da persistência do analfabetismo texto francês é diferente do relatório brasileiro;
funcional que os planos governamentais não con- não está recheado com expressões tais como:
seguem reduzir de maneira significativa, observa-se “todos esses estudos adotam procedimentos ci-
atualmente o reaparecimento, nas políticas educa- entíficos bem estabelecidos e reconhecidos pela
cionais, de uma didática da escrita fundamentada na comunidade internacional” (Brasil, 2003 p. 17);
automatização da transposição das letras em sons. “o estudo [o de Morais] rompeu com o mundo
Essa abordagem vai de encontro às pesquisas e aos da especulação e do amadorismo” (Brasil, 2003 p.
movimentos pedagógicos que possibilitaram a ela- 17), presentes no Relatório apresentado na Câma-
boração dos Parâmetros Curriculares Nacionais. ra, além de outras similares, que parecem ter sido
Como já é sabido, os Parâmetros enfatizam a apren- escolhidas com o objetivo de gerar confrontos e
dizagem da língua escrita por meio do seu próprio semear polêmicas. Graças a esses novos estudos,
uso, em uma alternância de “ação, reflexão, ação” a pedagogia passaria a obedecer a regras cien-
(1997, p. 48) e definem a leitura como “um processo tíficas e se libertaria de seus antigos pontos de
no qual o leitor realiza um trabalho ativo de cons- vista: “uma postura eminentemente política ou
trução do significado do texto” (1997, p. 53). ideológica levou, em diversos países, e conti-
Uma tal didática, que promove uma nua levando, no Brasil a uma rejeição de evi-
decodificação prévia a qualquer construção de dências objetivas e científicas sobre como as
sentido, diz se basear na ciência atual. No Brasil, crianças aprendem a ler” (Brasil, 2003, p. 17).
nomeada ‘método fônico’, ela se expressa, entre Esse novo pensamento ‘científico’ permitiria,
outras publicações, por meio de um Relatório então, salvar o Brasil da postura ‘ideológica’:
entregue à Câmara dos Deputados (Brasil, 2003). “as pesquisas atuais sobre a leitura obedecem
Elaborado por uma equipe internacional coordena- às mesmas regras aplicáveis às demais ciências
da por José Morais, o Relatório final do grupo de experimentais, como a física ou a biologia”
trabalho Alfabetização Infantil: os novos caminhos (Brasil, 2003, p. 17). Mais adiante lemos:
(Brasil 2003, p. 16) se refere explicitamente aos
trabalhos do Observatoire National de la Lecture A Sociedade Americana de Psicologia (ASP) pu-
– ONL –, órgão influente do Ministério da Edu- blicou em sua revista Observer (volume 15 de
cação Nacional da França, entre os quais se des- julho-agosto de 2002) um relatório intitulado
taca o texto La lecture et son apprentissage. “How psychological science informs us about
Observatoire National de la Lecture. L’évolution the teaching of reading”. Esse relatório ressalta
de l’enseignement de la lecture en France, que na nova Ciência Cognitiva da Leitura, o
depuis dix ans (Fayol; Morais 2004). princípio de que a consciência fonológica é o
São esses dois textos – o Relatório brasi- mais importante preditor de sucesso em leitura
leiro e o texto francês do ONL – que pretendemos possui a força equivalente à do conceito de
questionar neste artigo. Inicialmente criticaremos a gravitação em física. (p. 19)
apropriação exclusiva ‘da ciência’ pelo Relatório,
que nega cunho científico a outras linhas de pes- Para os autores, as ciências humanas
quisa sobre a alfabetização. Na seqüência, preten- seriam epistemologicamente equivalentes às ciên-
demos mostrar o caráter redutor da aprendizagem cias do mundo físico! Paradoxalmente, o discur-
da escrita exposta em ambos os textos, nos planos so emitido hoje pelos cientistas da natureza é
lingüístico, semiótico, psicológico e pedagógico. menos messiânico que o mantido pelo Relatório.
A necessidade de recorrer compulsiva-
Argumentação polêmica mente ao argumento de autoridade da ciência
acaba funcionando como denegação, gerando
Apesar de José Morais participar da suspeitas sobre a força da própria argumenta-
redação de ambos os documentos, o estilo do ção. O Relatório, que recorre até à caricatura
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para desconsiderar o pensamento alheio, asse- vidades humanas que visam ‘tomar conheci-
melha-se mais a um panfleto do que a um texto mento’ – conforme uma das definições do item
científico. O julgamento emitido por Fijalkow ‘leitura’ presente no dicionário (Houaiss, 2001,
no que diz respeito a um outro livro publica- p. 1739) – sem extração de pronúncia. Assim,
do pelo ONL (1998) permanece pertinente em são excluídas do ato de ler, antes de qualquer
relação aos textos aqui examinados: “[trata-se debate ou investigação, várias práticas culturais
de] um contexto onde se enfrentam inovadores que, no entanto, deveriam ser consideradas
de um lado, e, de outro, pesquisadores de la- leituras. Vejamos algumas delas.
boratório separados da prática e políticos. Nes- O surdo que não se comunica pela lín-
se aspecto, é o fruto da aliança dos dois últi- gua portuguesa oral, mas somente pela língua
mos contra os primeiros” (Fijalkow, 1999, p. 51). dos sinais e extrai o significado do português
Talvez a primeira atitude científica a ser adota- escrito sem extrair a pronúncia, não estaria
da diante do Relatório deva ser de prudência e efetuando uma leitura? O acesso desse surdo à
reserva diante de um estudo pretensamente tão escrita não teria nada a ver com a leitura da
promissor. Se o ONL evita recorrer a uma ciên- pessoa ouvinte?
cia salvadora, no entanto, os dois textos são Além disso, como chamar a atividade
ramificações irrigadas pela mesma veia. do estudioso que pesquisa dentro de uma bi-
Analisaremos a seguir a abordagem da bliografia estrangeira sem dominar a língua oral
aprendizagem da escrita exposta em ambos os correspondente? Com efeito, a prática das lín-
textos. Como nossa análise operará a partir de guas estrangeiras mostra que a aquisição de uma
vários pontos de vista, exemplificaremos cada segunda ou terceira língua é freqüentemente
um por um foco definido. parcial e nem sempre seu domínio é igual em
Pretendemos mostrar que: todos os seus usos. Fatos como entender um
discurso oral sem saber falar, ler sem saber falar
• a lógica da argumentação deixa a desejar; etc. são comuns. Caso aceitássemos a argumen-
• a lingüística de referência, historicamente tação do ONL, estaríamos supondo que um es-
marcada, é redutora; tudioso brasileiro que não fala inglês só pode-
• a dimensão semiótica é esquecida, embora ria ter acesso ao sentido de um texto em língua
se trate de uma linguagem visual; inglesa se o pronunciasse com os fonemas da
• a psicologia do ato de ler e da aprendiza- língua portuguesa, os únicos que conhece.
gem remete a uma concepção mecanicista e Como denominar o ato de ‘tomar co-
autoritária. nhecimento’ de um texto em ideogramas por
um chinês? Quando se fundamenta a leitura na
Dupla extração extração da pronúncia, o que se faz é isolar o ato
de ler em língua portuguesa do ato de ler efetu-
O texto começa por uma definição que ado em outras línguas como, por exemplo, em
já mostra a que veio: “Ler é extrair de uma escrita ideográfica tal como a chinesa, na escrita
representação gráfica da linguagem a pronún- consonântica das línguas semíticas (árabe e
cia e o significado que lhe correspondem” hebraico) que não registram as vogais, sempre
(Fayol; Morais, 2004). inferidas a partir da estrutura consonântica ou
Se ler é definido como ‘extrair o signi- mesmo em determinadas escritas alfabéticas pou-
ficado’, porque é preciso mencionar ‘extrair a co ‘transparentes’, tal como o inglês.
pronúncia’? Se o objetivo de extrair o signifi- Em todos esses casos, não existe extra-
cado for atingido, por que inserir na definição ção de pronúncia anterior à extração do senti-
a maneira de fazê-lo? Definir a leitura por uma do. Ao contrário, a extração da pronúncia de
dupla extração exclui do ato de ler várias ati- um texto árabe, por exemplo, exige o reconhe-
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No entanto, a partir dessa observação, os ses. Os gregos, assumindo radicalmente o aspec-
autores elaboram uma argumentação equivocada. to fonético da escrita (século IX a.C.) suprimiram
Segundo eles, já que o ato de compreensão per- o espaço entre as palavras, presente na escrita
tence a todas as atividades de comunicação, não fenícia, uma vez que o espaço não correspondia a
é nele que se situa a especificidade da leitura, mas nenhum som, fazendo prevalecer uma escrita per-
sim na decodificação, “competência central do feitamente alfabética, a scriptio continua, com
processo de aprendizagem da leitura” (Brasil, correspondências biunívocas entre grafemas e
2003 p. 36). Para aceitar tal raciocínio, seria ne- fonemas (Saenger, 1998). Na Idade Média, a par-
cessário mostrar que o ato de compreensão é tir do século IX, foi reintroduzido o espacejamento
idêntico em todas as suas manifestações. Nesse entre as palavras e, mais tarde, a minúscula e a
caso, não poderia então servir para definir nenhu- pontuação. Uma dimensão ideográfica foi desse
ma delas. Façamos uma analogia com a navega- modo incorporada à lógica puramente alfabética,
ção. A propulsão, elemento comum à navegação dado que o acesso ao texto, que até então ocor-
à vela e à navegação a vapor, não poderia, segun- ria por meio de sua oralização, passou a ser tam-
do esse raciocínio, servir para a definição nem de bém visual, ou seja, silencioso, sem depender da
uma nem de outra modalidade. pronúncia. Essas mudanças contribuíram para a
De fato, tanto a escuta de uma conver- autonomia da escrita – hoje reconhecida – em
sa quanto a leitura de um texto requerem com- relação à língua oral (Ong, 1998).
preensão. No entanto, a distinção entre ambas Apesar das inúmeras pesquisas contem-
pode originar-se no tipo de compreensão exer- porâneas (Olson, 1997; Goody, 1986) que des-
citado e não em um processo externo a ela. tacam essa autonomia, o fonocentrismo perma-
Assim, a argumentação utilizada assemelha-se, nece preso a uma concepção de escrita que
ao nosso ver, a um sofisma. corresponde a uma outra época. Inscreve-se na
Segundo os autores, a extração da pro- lingüística de Saussure, para quem “a única ra-
núncia (leitura) transforma a escrita em discur- zão da existência [da escrita] é representar [a
so oral. Este, por ser escutado, acaba sendo fala]” (Saussure, 1969, p. 34). Essa lingüística foi
compreendido. Assim os textos instalam uma fundada com a ambição de libertar a análise da
dicotomia entre dois procedimentos, a extração língua de suas raízes escritas, tendo em vista
da pronúncia e a extração da compreensão, que expandir seu campo às línguas sem escrita. As-
não se justifica. Para nós, ler consiste em ‘extrair sim sendo, a fonologia inventou um método
o sentido’ (para utilizar a terminologia pouco endógeno para identificar suas unidades – os
satisfatória dos autores) e para fazê-lo existem fonemas – sem compará-las a unidades escritas.
vários procedimentos historicamente atestados, Dessa maneira, elaborou um instrumento apto à
inclusive o da extração da pronúncia. descrição de todas as línguas, escritas ou não.
Como a língua oral funciona sem estar
Nível lingüístico necessariamente ligada a um sistema escrito, o
fonema é definido sem referência à língua es-
Os defensores do método fônico con- crita, como a menor unidade sonora capaz de
sideram a língua escrita como uma representa- produzir uma diferença de sentido . Por que
ção da língua oral: “os sistemas alfabéticos então, na língua escrita, ficar atrelado à defini-
representam a fala” (Brasil, 2003, p. 10). O ção exógena do grafema – Nina Catach (1996)
princípio é questionável não por ser errado, mas – segundo a qual essa unidade é constituída
por ser insuficiente. Algumas reflexões históri- pelas letras correspondentes a um fonema? Se
cas podem ajudar a esclarecer tal insuficiência. hoje a escrita funciona com uma relativa auto-
O alfabeto nasceu da transposição dos nomia, por que definir a unidade escrita apenas
fonemas em letras por meio de várias metamorfo- a partir da sua relação com a língua oral? Se-
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ordem das letras utilizadas, assim como de seus sejam automáticos” (Brasil, 2003, p. 6). Assim o
limites marcados por um espaço branco (Alain acesso direto “ao léxico mental ortográfico” (Fayol;
disse que se reconhece a palavra como se re- Morais, 2004) efetuado pelo leitor experiente, seria
conhece o navio, pela silhueta das suas velas, oriundo, segundo os autores, de uma aceleração da
seu ‘gréement’ 3). A palavra helicóptero, por ‘decodificação’ – uma automatização – e não de
exemplo, composta de letras com hastes ascen- uma operação outra, ideográfica, isto é, baseada
dentes e descendentes, outras sem hastes cons- numa percepção imagética. Segundo essa ótica, o
trói uma imagem singular. Esse caráter visual da ato de ler do chinês não encontraria nenhuma se-
grafia, atestado por numerosos estudiosos melhança com a leitura do homem ocidental.
(Sampson, 1996), chamado ideográfico (ou Curiosamente, a recusa da dimensão
logográfico quando opera no nível da palavra), ideográfica, como modo de apreensão visual da
parece negado pelos autores do Relatório. palavra em favor da dimensão exclusivamente
2) Na sua relação com a língua oral, as letras fonográfica, acaba levando a um paradoxo. Se a
remetem a fonemas, constituindo assim o sis- extração da pronúncia é o procedimento primeiro
tema alfabético, o único relevante para os au- que, de acordo com os autores, se exerce sobre a
tores em questão. palavra, devemos reconhecer que essa unidade grá-
fica é apreendida visualmente, antes de qualquer
Para distinguir os dois modos de iden- ‘decodificação’, por meio do espacejamento, isto é,
tificação, podemos tomar como exemplo duas a partir de um grafe – o espaço branco – sem cor-
grafias de um mesmo nome: G. W. Bush e respondência sonora. Assim, a logografia, nem se-
Jedabliubâch, que evidenciam o duplo modo de quer mencionada pelos autores, dá suporte, à re-
acesso ao nome do presidente dos USA4 . Na se- velia deles, a um método que a rejeita.
gunda grafia, domina a dimensão alfabética, en- Na transposição da língua escrita em
quanto na primeira, a ideográfica tem primazia. língua oral preconizada pelos autores, apenas os
A semiótica visual está ausente nos dois elementos isomorfos – ‘em correspondência’ –
textos aqui abordados. Podemos dizer brincan- nos dois sistemas são considerados. Enquanto
do que, se no mundo dos surdos a passagem a língua escrita é constituída de grafemas or-
pelas sonoridades é impossível, no mundo do ganizados em palavras e a língua oral é forma-
“Observatoire” a configuração visual está tão da de fonemas organizados por uma prosódia
fora do universo dos autores, quanto da per- dentro da qual eles se apresentam fundidos, os
cepção do poeta cego Milton. autores consideram apenas os componentes
Se o reconhecimento de logomarcas (grafemas e fonemas) que constituem a inter-
como Coca-Cola, McDonald ou do próprio nome seção entre ambas as manifestações da língua.
pelas crianças pequenas não é mencionado no As particularidades de cada uma das represen-
texto do Observatoire, no Relatório é considerado tações da língua – prosódia de um lado e pa-
como um “processamento rudimentar” (Brasil, lavras separadas do outro – são abandonadas.
2003, p. 33) a ser abandonado. Na medida em que Trata-se assim de uma dupla redução.
a dimensão logográfica da leitura é ignorada, os Para os autores, a língua escrita deve ser
autores acabam desvalorizando o ‘processamento’ transposta em matéria sonora para ganhar existên-
infantil em lugar de considerá-lo como a primeira cia. Restrita às suas características grafofonéticas,
manifestação de um processo ideográfico, âncora
possível para uma aprendizagem da via direta.
3. Metáfora atribuída ao filósofo francês Alain (1868-1951), citada com
A leitura fluente do leitor experiente é atri- freqüência. Encontra-se, entre outros, em Fijalkow. Disponível em: <http:/
buída não a um procedimento logográfico especí- /www.bienlire.education.fr/01-actualite/document/fijalkow.pdf>.
Acessado em: 31 janeiro 2006.
fico, mas à aceleração da extração da pronúncia: 4. A grafia ‘USA’ é, inclusive, muitas vezes pronunciada ‘Estados Unidos’
“implica que o reconhecimento e a identificação pelo brasileiro, que não soletra a sigla.
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identificação, cria o vínculo entre o significante palavra, uma configuração visual capaz de ativar
visual e o conceito já dominado na língua oral. Um diretamente o conceito armazenado, mas deve
segundo, chamado reconhecimento, recorre ao transitar pelo significante sonoro.
vínculo já criado pela identificação. Esse segundo
processo, ideográfico, incide sobre um significante Figura II
visual e é distinto do primeiro.
Por isso, a ativação da palavra realiza-
da unicamente por seu significante oral deve
ser questionada. Essa representação é suficiente
para explicar a decodificação, mas não vale para
o ato de ler. O acesso direto ao léxico — por
‘endereçamento’6 — precisa de outro modelo de re-
ferência para escapar de uma explicação mecanicista
como a da aceleração da decodificação.
Recusamos que a razão de ser da grafia
se deva apenas à sua relação com fonemas;
preferimos conceber o signo como um nó de
vínculos complexos 7 . O conjunto visual de
grafes, limitado por espaços, constituindo a
imagem da palavra, sua ortografia, vem, no
decorrer da aprendizagem, integrar-se a esse
nó, assim como outros significantes, tais como
o gesto da língua dos sinais no caso dos sur- Para nós, a leitura se vale de dois proces-
dos, a pronúncia da palavra em língua estran- sos. O primeiro, esporádico, recorre à decodificação
geira etc. Essa imagem se incorpora ao signo para elucidar o material desconhecido. O outro,
sonoro já armazenado na memória e o torna contínuo, trata ideograficamente o material conhe-
mais complexo. Assim sendo, qualquer consti- cido. O leitor experiente utiliza de maneira pontual
tuinte desse nó — e no nosso caso, a imagem a decodificação – que para ele também permane-
gráfica — pode ativar o signo completo, inclu- ce lenta — e de maneira corrente a leitura ideo-
sive nos seus componentes sonoros (Figura II). gráfica — rápida, por ser visual. O acesso direto ao
É a integração da imagem gráfica ao con- léxico não remete à aceleração de um processo —
junto do signo que possibilita o ‘endereçamento’, a decodificação —, mas à sua substituição por um
também nomeado acesso direto. Como atinge di- outro — o ato ideográfico.
retamente o conceito na sua complexidade, o Ao longo dos dois textos analisados,
acesso direto implica uma operação de linguagem, manifesta-se um pressuposto não explicitado: o
com sua dimensão semântica, e não somente uma processo psicológico de utilização de uma lin-
transposição de grafemas em fonemas. guagem seria apenas determinado pela lógica da
A concepção estritamente fônica da escri- sua descrição. Isto é, se a lingüística descreve a
ta ignora o reconhecimento imediato, instantâneo, escrita a partir da língua oral, o ato de ler aca-
‘global’, da semiótica visual de Bertin (1977), da ba se submetendo a essa descrição. Como diz
teoria da Gestalt ou dos estudiosos da dimensão Foucambert, isso equivale a se perguntar: “Dado
ideográfica da escrita. Exclui a possibilidade de que a água é composta de oxigênio e hidrogênio,
integração da imagem do conjunto de grafemas ao
nó já constituído pela língua oral. Nessa visão, o
6. Adressage em francês.
grafema vinculado individualmente ao significante 7. Estes podem corresponder no cérebro a um nó de conexões neurais
sonoro não forma, com os outros grafemas da (Pinker, 2002).
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a extração da pronúncia é vista como anterior à • identificação dos personagens;
extração do sentido. • interpretação narrativa das imagens;
Paradoxalmente, esse desprezo da com- • escuta do texto como ritual de entrada na
preensão dentro do processo da alfabetização literatura;
ocorre em um momento em que o mundo da • aproximação da especificidade do texto
infância se apodera da literatura. Uma literatu- como elemento distinto da imagem;
ra infanto-juvenil de qualidade está florescen- • descoberta da sua permanência, oposta à
do tanto no Brasil como na Europa. Sustenta- flexibilidade do discurso oral;
da pelas demandas da classe média, ela invade • descoberta da necessidade de aprendiza-
não apenas os lares, mas as bibliotecas públi- gem para poder ler;
cas e escolares e outras salas de leitura. Hoje • constituição de um ‘banco’ de palavras escritas
no Brasil, a venda de livros endereçados às no qual o próprio nome da criança é gerador;
crianças ultrapassa a dos livros para adultos. • levantamento gradativo do material gráfico
Algumas ONGs como, por exemplo, A cor da (diversidade das letras, maiúscula/minúscula,
letra, formam jovens mediadores de leitura para acentos, pontuação, espacejamento);
atuar em hospitais, creches, orfanatos ou em • levantamento gradativo das relações grafo-
praças e jardins públicos. A expansão dos acer- fonéticas.
vos de livros contradiz a concepção dicotômica
do ONL, constituída de uma fase de aprendiza- O alfabetizador não pode ignorar o per-
gem e uma outra de utilização. De fato, o en- curso letrado anterior à escolarização. O profes-
contro com o livro antecede a aprendizagem e, sor de primeira série não pode mais ser o anfitrião
ao mesmo tempo, a proporciona. Essa nova da iniciação à escrita, que ocorre muito antes da
prática social e escolar leva inevitavelmente a alfabetização formal: a escolha da metodologia
questionar as metodologias da alfabetização. deve levar esse fato em consideração.
Esse encontro precoce com os acervos Ao contrário desse processo, a metodo-
inaugura a entrada das crianças na literatura, ini- logia do ONL prevê fases sucessivas nas quais a
ciação esta que se efetua em duas frentes. Dire- descoberta do princípio alfabético deve anteceder
tamente, isto é, sem intervenção de um mediador, a aprendizagem do sistema ortográfico. Essa pro-
a criança manuseia o livro, brinca com ele, encena posta, que não é suscetível de ser modificada, nem
seus personagens em dobradura, interpreta a se- pela ordem das descobertas das crianças nem pelas
qüência de suas imagens, observa a presença do mutações sociais em curso em nosso mundo, re-
texto, descobre elementos do código gráfico que toma, mutatis mutandis, o programa da cartilha.
não se reduzem ao código alfabético tais como Uma vez que “a descoberta do princípio
a maiúscula, o travessão etc. Ao mesmo tempo, a alfabético deve ser no mínimo parcialmente re-
criança que se beneficia da intervenção vocal de solvida” (Fayol, Morais, 2004) antes da aborda-
um mediador escuta textos e assim, mesmo sem gem do sistema ortográfico, os elementos do
ser alfabetizada, penetra no mundo da ficção es- código ideográfico não são considerados, ape-
crita. Várias aprendizagens são construídas por sar de já serem suscetíveis de identificação pela
meio do contato precoce com o livro: criança pequena. Com um programa assim cris-
talizado em fases, os autores não podem integrar
• descoberta, por meio de brincadeiras infan- no seu modelo as descobertas infantis, como
tis, do livro como objeto sensível; propõe Bajard (2002). Por que adiar a aborda-
• descoberta do livro como portador de his- gem do código gráfico (maiúscula) e começar
tórias; autoritariamente pelo código alfabético sem con-
• descoberta das três matérias da narrativa: siderar a cultura diversificada já adquirida pela
icônica, sonora e gráfica; criança no seu contato com o livro?
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camente através do exercício repetido desse tipo de rio – não corresponde aos desafios do mundo
atividade. (Brasil, p. 38) contemporâneo. Uma vez que, hoje, a criança se
inicia na literatura antes da idade da escolarização
É um exemplo de “uma receita que ao formal, o programa estabelecido pelo método do
fazer mais da mesma coisa é uma ‘solução’ que ONL se torna caduco. O professor não pode mais
cria o problema” (Watzlawick; Weekland, 1977) reivindicar para si o monopólio da responsabili-
e alimenta a queixa compulsiva do professor: dade do início do letramento, já que a criança o
“eles lêem mas não entendem”. Se é necessário experimenta bem antes de seu ingresso na primei-
adiar o ensino da compreensão até o domínio ra série. É desde o primeiro encontro com o livro
da decodificação, como estranhar que muitos que ela tenta dar significado a esse objeto. A ati-
alunos, apesar de alfabetizados, contribuam vidade de compreensão pode iniciar-se desde os
ainda para o aumento das coortes do analfabe- primeiros anos de vida; a criança não vai esperar
tismo funcional? o domínio do alfabeto para iniciar suas operações
A metodologia apontada representa um de busca do sentido.
passo atrás em relação aos pressupostos do O método fônico, avatar do método tra-
construtivismo. Conforme os métodos ativos, dicional, não pode ajudar a sociedade a redu-
Emília Ferreiro (1987) explica que o domínio zir o analfabetismo funcional por ela produzi-
da linguagem se constrói por meio da sua prá- do em massa. Os jovens e adultos assim ‘alfa-
tica, que as crianças aprendem integrando, a betizados’ conhecem o código alfabético, trans-
um sistema provisório já estruturado, novos ele- formam letras em sons ou, para falar como os
mentos por elas descobertos. Assim, as desco- autores do ONL, praticam a correspondência
bertas não se realizam necessariamente na or- entre grafemas e fonemas. No entanto, perma-
dem prevista pelo método nem tampouco na necem analfabetos funcionais, uma vez que
mesma ordem para todas as crianças. não sabem utilizar a escrita como uma forma de
É necessário salientar que a metodo- linguagem distinta da oralidade, imprescindível
logia do Observatoire – e a fortiori a do Relató- ao homem contemporâneo.
Referências bibliográficas
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escrita. São Paulo: Ática, 1996, p. 213-224.
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legislativo e a alfabetização infantil: os novos caminhos”. Câmara dos Deputados, Comissão de Educação e Cultura. Brasília, 15
de setembro de 2003.
DERRIDA, J. Gramatologia
Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 1999. 386 p.
SAENGER, P. A leitura nos séculos finais da Idade Média. In: CAVALLO, G.; CHARTIER, R. História da leitura no mundo ocidental
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São Paulo: Ática, 1998, p.147-149.
Recebido em 21.10.05
Modificado em 13.06.06
Aprovado em 26.06.06
Élie Bajard é doutor em Lingüística pela École des Hautes Études em Sciences Sociales (Paris). Ex-professor de l’Institut de
Formation des Maîtres de Reims (França), ex-adido Lingüístico no Brasil, criador do Projeto Nacional Pró-Leitura (1988-
1994), ex-professor convidado da ECA/USP (1999-2004). Assessor em várias ONGs, tal como no projeto Aprender para
ensinar do Museu de Arte Moderna de São Paulo, endereçado a jovens surdos, alunos da Divisão de educação e reabilitação
dos distúrbios da comunicação, da PUC de São Paulo, tendo em vista serem monitores do museu (2005 até hoje).
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.3, p. 493-507, set./dez. 2006 507