Você está na página 1de 15

Nova embalagem, mercadoria antiga

Élie Bajard

Resumo

Diante das intervenções institucionais dos promotores do método


fônico na aprendizagem da escrita, visando substituí-lo ao cami-
nho promovido pelos Parâmetros Curriculares, o artigo analisa dois
textos representativos dessa nova frente: o Relatório entregue à
Câmara dos Deputados do Brasil e um texto do Observatoire
National de la Lecture (ONL), instituição referenciada no Relatório.
Os dois textos analisados, expressando a visão do ONL, definem o
ato de ler como uma seqüência de dois processos distintos: uma
extração da pronúncia, seguida por uma extração da compreensão.
Retomando a visão saussuriana que considera a língua escrita
como uma mera representação da língua oral, o ONL vê nos
grafemas apenas a tradução dos fonemas e, na leitura, a transpo-
sição dos primeiros nos segundos.
A especificidade da leitura, para os autores, encontra-se na
‘decodificação’. Ao postergar a compreensão para uma segunda
etapa, transformam a leitura em uma atividade que, operando fora
do significado, deixa de ser um ato de linguagem.
A partir dessa visão da escrita, a proposta pedagógica promove
conseqüentemente uma abordagem em duas etapas a serem se-
guidas pela totalidade das crianças, sem considerar a experiência
personalizada anterior. No entanto, parcialmente letradas pelo
contato com a literatura infanto-juvenil e pela escuta de textos
de ficção, nem sempre as crianças começam pela extração da
pronúncia, escapando assim ao programa previsto pelo ONL.
Esse retorno de uma proposta que apresenta semelhanças com o
método da cartilha, com sua seqüência decifração e leitura cor-
rente, não pode constituir uma resposta às necessidades de um
país que quer erradicar o analfabetismo funcional.

Palavras-chave

Didáticas – Alfabetização – Sistema gráfico – Sistema alfabético –


Compreensão.

Correspondência:
Élie Bajard
Rua Sergipe, 290 apto 162
01243-000 São Paulo
e-mail: emebaj@uol.com.br

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.3, p. 493-507, set./dez. 2006 493
New wrapping, old goods

Élie Bajard

Abstract

In view of the institutional interventions of the proponents of the


phonic method in literacy, and aiming at its substitution in the
path promoted by the National Curriculum Parameters in Brazil,
this article analyzes two texts representative of this new front: the
report delivered to the Brazilian House of Representatives, and a
text prepared by the Observatoire National de la Lecture (ONL), an
institution referenced in the report.
The two texts analyzed, expressing the views of the ONL, define
the act of reading as a sequence of two separate processes: an
extraction of the pronunciation, followed by an extraction of
understanding.
Recovering the Saussurian view that considers the written language
as a mere representation of oral language, the ONL sees in the
graphemes only the translation of phonemes, and in the reading the
transposition of the former into the latter.
To those authors, the specificity of reading is to be found in the
“decoding”. By deferring the understanding to a later stage, they
transform the reading into an activity that, operating outside the
sphere of meaning, ceases to be an act of language.
From such a vision of writing, the pedagogical proposal consequently
promotes a two-stage approach to be followed by each and every
child, disregarding their individual previous experience. However,
partially literate through their contact with children literature and by
listening to texts of fiction, children not always start with the
“extraction of pronunciation”, thereby eluding the program predicted
by the ONL.
This return to a proposal that resembles the method of the
primer, with its deciphering-fluent reading sequencing, cannot
be the answer to the needs of a country that wishes to eradicate
functional illiteracy.

Keywords

Didactics – Literacy – Graphical system – Alphabetical system –


Understanding.
Contact:
Élie Bajard
Rua Sergipe, 290 apto 162
01243-000 São Paulo
e-mail: emebaj@uol.com.br

494 Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.3, p. 493-507, set./dez. 2006
Diante da persistência do analfabetismo texto francês é diferente do relatório brasileiro;
funcional que os planos governamentais não con- não está recheado com expressões tais como:
seguem reduzir de maneira significativa, observa-se “todos esses estudos adotam procedimentos ci-
atualmente o reaparecimento, nas políticas educa- entíficos bem estabelecidos e reconhecidos pela
cionais, de uma didática da escrita fundamentada na comunidade internacional” (Brasil, 2003 p. 17);
automatização da transposição das letras em sons. “o estudo [o de Morais] rompeu com o mundo
Essa abordagem vai de encontro às pesquisas e aos da especulação e do amadorismo” (Brasil, 2003 p.
movimentos pedagógicos que possibilitaram a ela- 17), presentes no Relatório apresentado na Câma-
boração dos Parâmetros Curriculares Nacionais. ra, além de outras similares, que parecem ter sido
Como já é sabido, os Parâmetros enfatizam a apren- escolhidas com o objetivo de gerar confrontos e
dizagem da língua escrita por meio do seu próprio semear polêmicas. Graças a esses novos estudos,
uso, em uma alternância de “ação, reflexão, ação” a pedagogia passaria a obedecer a regras cien-
(1997, p. 48) e definem a leitura como “um processo tíficas e se libertaria de seus antigos pontos de
no qual o leitor realiza um trabalho ativo de cons- vista: “uma postura eminentemente política ou
trução do significado do texto” (1997, p. 53). ideológica levou, em diversos países, e conti-
Uma tal didática, que promove uma nua levando, no Brasil a uma rejeição de evi-
decodificação prévia a qualquer construção de dências objetivas e científicas sobre como as
sentido, diz se basear na ciência atual. No Brasil, crianças aprendem a ler” (Brasil, 2003, p. 17).
nomeada ‘método fônico’, ela se expressa, entre Esse novo pensamento ‘científico’ permitiria,
outras publicações, por meio de um Relatório então, salvar o Brasil da postura ‘ideológica’:
entregue à Câmara dos Deputados (Brasil, 2003). “as pesquisas atuais sobre a leitura obedecem
Elaborado por uma equipe internacional coordena- às mesmas regras aplicáveis às demais ciências
da por José Morais, o Relatório final do grupo de experimentais, como a física ou a biologia”
trabalho Alfabetização Infantil: os novos caminhos (Brasil, 2003, p. 17). Mais adiante lemos:
(Brasil 2003, p. 16) se refere explicitamente aos
trabalhos do Observatoire National de la Lecture A Sociedade Americana de Psicologia (ASP) pu-
– ONL –, órgão influente do Ministério da Edu- blicou em sua revista Observer (volume 15 de
cação Nacional da França, entre os quais se des- julho-agosto de 2002) um relatório intitulado
taca o texto La lecture et son apprentissage. “How psychological science informs us about
Observatoire National de la Lecture. L’évolution the teaching of reading”. Esse relatório ressalta
de l’enseignement de la lecture en France, que na nova Ciência Cognitiva da Leitura, o
depuis dix ans (Fayol; Morais 2004). princípio de que a consciência fonológica é o
São esses dois textos – o Relatório brasi- mais importante preditor de sucesso em leitura
leiro e o texto francês do ONL – que pretendemos possui a força equivalente à do conceito de
questionar neste artigo. Inicialmente criticaremos a gravitação em física. (p. 19)
apropriação exclusiva ‘da ciência’ pelo Relatório,
que nega cunho científico a outras linhas de pes- Para os autores, as ciências humanas
quisa sobre a alfabetização. Na seqüência, preten- seriam epistemologicamente equivalentes às ciên-
demos mostrar o caráter redutor da aprendizagem cias do mundo físico! Paradoxalmente, o discur-
da escrita exposta em ambos os textos, nos planos so emitido hoje pelos cientistas da natureza é
lingüístico, semiótico, psicológico e pedagógico. menos messiânico que o mantido pelo Relatório.
A necessidade de recorrer compulsiva-
Argumentação polêmica mente ao argumento de autoridade da ciência
acaba funcionando como denegação, gerando
Apesar de José Morais participar da suspeitas sobre a força da própria argumenta-
redação de ambos os documentos, o estilo do ção. O Relatório, que recorre até à caricatura

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.3, p. 493-507, set./dez. 2006 495
para desconsiderar o pensamento alheio, asse- vidades humanas que visam ‘tomar conheci-
melha-se mais a um panfleto do que a um texto mento’ – conforme uma das definições do item
científico. O julgamento emitido por Fijalkow ‘leitura’ presente no dicionário (Houaiss, 2001,
no que diz respeito a um outro livro publica- p. 1739) – sem extração de pronúncia. Assim,
do pelo ONL (1998) permanece pertinente em são excluídas do ato de ler, antes de qualquer
relação aos textos aqui examinados: “[trata-se debate ou investigação, várias práticas culturais
de] um contexto onde se enfrentam inovadores que, no entanto, deveriam ser consideradas
de um lado, e, de outro, pesquisadores de la- leituras. Vejamos algumas delas.
boratório separados da prática e políticos. Nes- O surdo que não se comunica pela lín-
se aspecto, é o fruto da aliança dos dois últi- gua portuguesa oral, mas somente pela língua
mos contra os primeiros” (Fijalkow, 1999, p. 51). dos sinais e extrai o significado do português
Talvez a primeira atitude científica a ser adota- escrito sem extrair a pronúncia, não estaria
da diante do Relatório deva ser de prudência e efetuando uma leitura? O acesso desse surdo à
reserva diante de um estudo pretensamente tão escrita não teria nada a ver com a leitura da
promissor. Se o ONL evita recorrer a uma ciên- pessoa ouvinte?
cia salvadora, no entanto, os dois textos são Além disso, como chamar a atividade
ramificações irrigadas pela mesma veia. do estudioso que pesquisa dentro de uma bi-
Analisaremos a seguir a abordagem da bliografia estrangeira sem dominar a língua oral
aprendizagem da escrita exposta em ambos os correspondente? Com efeito, a prática das lín-
textos. Como nossa análise operará a partir de guas estrangeiras mostra que a aquisição de uma
vários pontos de vista, exemplificaremos cada segunda ou terceira língua é freqüentemente
um por um foco definido. parcial e nem sempre seu domínio é igual em
Pretendemos mostrar que: todos os seus usos. Fatos como entender um
discurso oral sem saber falar, ler sem saber falar
• a lógica da argumentação deixa a desejar; etc. são comuns. Caso aceitássemos a argumen-
• a lingüística de referência, historicamente tação do ONL, estaríamos supondo que um es-
marcada, é redutora; tudioso brasileiro que não fala inglês só pode-
• a dimensão semiótica é esquecida, embora ria ter acesso ao sentido de um texto em língua
se trate de uma linguagem visual; inglesa se o pronunciasse com os fonemas da
• a psicologia do ato de ler e da aprendiza- língua portuguesa, os únicos que conhece.
gem remete a uma concepção mecanicista e Como denominar o ato de ‘tomar co-
autoritária. nhecimento’ de um texto em ideogramas por
um chinês? Quando se fundamenta a leitura na
Dupla extração extração da pronúncia, o que se faz é isolar o ato
de ler em língua portuguesa do ato de ler efetu-
O texto começa por uma definição que ado em outras línguas como, por exemplo, em
já mostra a que veio: “Ler é extrair de uma escrita ideográfica tal como a chinesa, na escrita
representação gráfica da linguagem a pronún- consonântica das línguas semíticas (árabe e
cia e o significado que lhe correspondem” hebraico) que não registram as vogais, sempre
(Fayol; Morais, 2004). inferidas a partir da estrutura consonântica ou
Se ler é definido como ‘extrair o signi- mesmo em determinadas escritas alfabéticas pou-
ficado’, porque é preciso mencionar ‘extrair a co ‘transparentes’, tal como o inglês.
pronúncia’? Se o objetivo de extrair o signifi- Em todos esses casos, não existe extra-
cado for atingido, por que inserir na definição ção de pronúncia anterior à extração do senti-
a maneira de fazê-lo? Definir a leitura por uma do. Ao contrário, a extração da pronúncia de
dupla extração exclui do ato de ler várias ati- um texto árabe, por exemplo, exige o reconhe-

496 Élie BAJARD. Nova embalagem, mercadoria antiga.


cimento prévio da palavra por meio da sua fonemas gregos, que talvez o próprio Milton des-
classe gramatical 1 já que o substantivo e o conhecesse, mas sim em fonemas ingleses. Outro
verbo podem se apresentar com a mesma raiz ponto: o grego escrito submetido ao exercício das
consonântica. Nesse caso, é a extração do sen- filhas de Milton, formatado de maneira moderna
tido que possibilita a extração da pronúncia. com espacejamento, não correspondia a um tex-
Será que o leitor de uma língua semítica, que to em scriptio continua da época helenística, que
inverte o processo, não está lendo? A visão dos recorria a palavras emendadas sem espacejamento.
autores tem um caráter eurocêntrico, uma vez Um tal formato teria dificultado, senão impossibi-
que consideram o alfabeto, desde a invenção litado, a ‘extração’ da pronúncia. Fazemos essas
grega, como modelo acabado da escrita. Eles observações para salientar que tanto as operações
esquecem de considerar que as línguas latinas cognitivas realizadas por Milton, quanto aquelas
se afastaram do modelo alfabético grego quan- efetuadas por suas filhas escapavam de uma prá-
do o espacejamento foi introduzido na escrita. tica real da língua grega.
É relevante analisar uma anedota histó- Curiosamente, nesse exemplo presente
rica que, apesar de não aparecer no texto fran- no Relatório, o autor abandona a definição do
cês, é narrada pelo texto brasileiro: ato de ler como extração dupla da pronúncia e
do sentido, reduzindo-o apenas à da pronún-
Depois que o poeta inglês Milton se tornou cia. Caso tivesse mantido a postura da dupla
cego e resolveu reler os clássicos, ele ensinou extração, a leitura resultaria do trabalho con-
suas filhas a decodificar textos em Grego, em- junto das filhas e do pai: as primeiras pronun-
bora elas não pudessem compreender uma só ciando e o outro entendendo.
palavra desse idioma. Podemos afirmar que
Milton estava lendo? Não, ele simplesmente Ler e entender
ouvia a leitura feita por suas filhas. Mesmo se
fosse analfabeto, mas soubesse o Grego, ele Para os autores em questão, “a dimensão
poderia compreender. E as filhas de Milton, es- de compreensão, apesar de ser imprescindível e
tariam lendo? Naturalmente que sim, elas esta- crítica, não é específica à leitura, já que se exer-
vam simplesmente lendo. (Brasil, 2003, p. 20) cita na visão de um filme, numa conversa e na
escuta de uma palestra” (Fayol; Morais, 2004).
Certamente o poeta Milton, que apenas Nessa citação, a distinção entre ler e entender é
escutava – tal como a criança analfabeta escu- feita com pertinência, pois muitas vezes a leitura
ta a proferição de um texto – não extraía o é definida apenas como ato de compreensão. Em
sentido do texto gráfico 2 , mas sim da escuta. sala de aula, são nomeadas ‘leitura’ múltiplas
Suas filhas pronunciavam-no, como debutantes operações de compreensão. A escuta do texto
em grego clássico são capazes de fazê-lo depois proferido, por exemplo, é chamada leitura com os
de três meses de exercício. As filhas do poeta ouvidos. Nessa ótica, todas as crianças saberiam
realizavam a operação mecânica de uma vitrola ler antes de serem alfabetizadas! Como todas as
que transforma a gravação de um disco em atividades de comunicação são impregnadas de
canção, mas não podiam compreender sua pró- compreensão, definir a leitura apenas pela pre-
pria emissão sonora. sença de operações de compreensão é, efetiva-
Aproveitando o que para nós é uma cari- mente, insuficiente.
catura (o objetivo da alfabetização reduzido à
‘sonorização’ das filhas de Milton), gostaríamos de 1. Encontramos em português um fenômeno análogo no par pronúncia/
fazer duas observações. A pronúncia das filhas de pronuncia.
2. Distinguimos o texto gráfico , apreendido pelos olhos, do texto sonoro,
Milton não podia corresponder à língua grega. Os apreendido pelos ouvidos. Os dois são representações do texto escrito
grafemas, com certeza, não eram convertidos em armazenado na memória do computador.

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.3, p. 493-507, set./dez. 2006 497
No entanto, a partir dessa observação, os ses. Os gregos, assumindo radicalmente o aspec-
autores elaboram uma argumentação equivocada. to fonético da escrita (século IX a.C.) suprimiram
Segundo eles, já que o ato de compreensão per- o espaço entre as palavras, presente na escrita
tence a todas as atividades de comunicação, não fenícia, uma vez que o espaço não correspondia a
é nele que se situa a especificidade da leitura, mas nenhum som, fazendo prevalecer uma escrita per-
sim na decodificação, “competência central do feitamente alfabética, a scriptio continua, com
processo de aprendizagem da leitura” (Brasil, correspondências biunívocas entre grafemas e
2003 p. 36). Para aceitar tal raciocínio, seria ne- fonemas (Saenger, 1998). Na Idade Média, a par-
cessário mostrar que o ato de compreensão é tir do século IX, foi reintroduzido o espacejamento
idêntico em todas as suas manifestações. Nesse entre as palavras e, mais tarde, a minúscula e a
caso, não poderia então servir para definir nenhu- pontuação. Uma dimensão ideográfica foi desse
ma delas. Façamos uma analogia com a navega- modo incorporada à lógica puramente alfabética,
ção. A propulsão, elemento comum à navegação dado que o acesso ao texto, que até então ocor-
à vela e à navegação a vapor, não poderia, segun- ria por meio de sua oralização, passou a ser tam-
do esse raciocínio, servir para a definição nem de bém visual, ou seja, silencioso, sem depender da
uma nem de outra modalidade. pronúncia. Essas mudanças contribuíram para a
De fato, tanto a escuta de uma conver- autonomia da escrita – hoje reconhecida – em
sa quanto a leitura de um texto requerem com- relação à língua oral (Ong, 1998).
preensão. No entanto, a distinção entre ambas Apesar das inúmeras pesquisas contem-
pode originar-se no tipo de compreensão exer- porâneas (Olson, 1997; Goody, 1986) que des-
citado e não em um processo externo a ela. tacam essa autonomia, o fonocentrismo perma-
Assim, a argumentação utilizada assemelha-se, nece preso a uma concepção de escrita que
ao nosso ver, a um sofisma. corresponde a uma outra época. Inscreve-se na
Segundo os autores, a extração da pro- lingüística de Saussure, para quem “a única ra-
núncia (leitura) transforma a escrita em discur- zão da existência [da escrita] é representar [a
so oral. Este, por ser escutado, acaba sendo fala]” (Saussure, 1969, p. 34). Essa lingüística foi
compreendido. Assim os textos instalam uma fundada com a ambição de libertar a análise da
dicotomia entre dois procedimentos, a extração língua de suas raízes escritas, tendo em vista
da pronúncia e a extração da compreensão, que expandir seu campo às línguas sem escrita. As-
não se justifica. Para nós, ler consiste em ‘extrair sim sendo, a fonologia inventou um método
o sentido’ (para utilizar a terminologia pouco endógeno para identificar suas unidades – os
satisfatória dos autores) e para fazê-lo existem fonemas – sem compará-las a unidades escritas.
vários procedimentos historicamente atestados, Dessa maneira, elaborou um instrumento apto à
inclusive o da extração da pronúncia. descrição de todas as línguas, escritas ou não.
Como a língua oral funciona sem estar
Nível lingüístico necessariamente ligada a um sistema escrito, o
fonema é definido sem referência à língua es-
Os defensores do método fônico con- crita, como a menor unidade sonora capaz de
sideram a língua escrita como uma representa- produzir uma diferença de sentido . Por que
ção da língua oral: “os sistemas alfabéticos então, na língua escrita, ficar atrelado à defini-
representam a fala” (Brasil, 2003, p. 10). O ção exógena do grafema – Nina Catach (1996)
princípio é questionável não por ser errado, mas – segundo a qual essa unidade é constituída
por ser insuficiente. Algumas reflexões históri- pelas letras correspondentes a um fonema? Se
cas podem ajudar a esclarecer tal insuficiência. hoje a escrita funciona com uma relativa auto-
O alfabeto nasceu da transposição dos nomia, por que definir a unidade escrita apenas
fonemas em letras por meio de várias metamorfo- a partir da sua relação com a língua oral? Se-

498 Élie BAJARD. Nova embalagem, mercadoria antiga.


guindo o modelo da definição endógena do essa novidade data dos anos de 1970 e a teo-
fonema, estamos propondo uma definição tam- ria lingüística utilizada, que provém dos anos de
bém endógena do grafema: a menor unidade 1950, está ainda presa a uma visão fonocêntrica
gráfica capaz de produzir uma diferença de (Derrida, 1999).
sentido. A partir dessa análise, as unidades a
serem identificadas seriam outras, isto é, apro- Nível semiótico
ximadamente as do teclado do computador. A
esse respeito, é importante destacar que o te- Essa abordagem endógena, ainda pouco
clado não foi construído a partir da fonologia, investigada, traz conseqüências para o funciona-
mas sim a partir de uma lógica tátil e gráfica. mento semiótico do texto. Sendo um sistema en-
Alguns estudiosos, na herança de dereçado à vista, a escrita possui, antes de mais
Hjelmslev, investigam esse ponto de vista: nada, um valor icônico. Isso quer dizer que qual-
quer grafe compõe uma imagem com seus vizi-
Os lingüistas podem […] considerar que a língua nhos. Essa função ideográfica, universal, aproxima
existe sob duas formas, entre as quais a lingüís- a escrita portuguesa não só das outras escritas
tica não postula nem hierarquia nem dependên- alfabéticas, mas também das escritas consonânticas
cia. É neste plano […] que construímos um mo- ou mesmo ideográficas (Sampson, 1996). O con-
delo autonomista que implica uma descrição junto dos grafes compõe o sistema gráfico que
imanente da língua escrita. (Anis, 1996, p. 213) opera semioticamente por meio de uma dimensão
ideográfica. Nessa abordagem, o sistema alfabéti-
Observemos que: co com suas relações fonográficas se torna um
subconjunto do sistema gráfico. Todos os grafes
• no teclado do computador, o acento ocupa possuem valor ideográfico, enquanto apenas uma
uma tecla igual à das letras, enquanto a maior te- parte deles possui valor sonoro.
cla marca um grafe sem valor sonoro: o espaço; Se considerarmos o sistema ortográfico
• a oposição maiúscula/minúscula não tem de maneira larga, verificaremos que ele acaba
correspondência sonora, mas produz uma di- se superpondo ao sistema gráfico. Na perspec-
ferença de sentido entre o nome próprio Rosa tiva tradicional, ocorre o oposto. A ortografia
e o substantivo comum rosa. se constitui de exceções no que diz respeito às
relações entre ‘sons e letras’. É uma ‘sobra’, uma
Escrever uma palavra com o computa- excrescência do sistema alfabético: o texto fala
dor supõe manipular essas unidades gráficas. A de “ortografia inconsistente” (Fayol, Morais,
relação da letra com o fonema passa assim para 2004). Por isso, “a primeira dificuldade – a
um segundo plano. Numa época em que as cri- descoberta do principio alfabético e das corres-
anças usam o teclado antes do lápis e os ado- pondências fonográficas – deve ser, pelo menos,
lescentes manipulam com habilidade o celular, parcialmente resolvida antes que a segunda – a
no qual a mesma tecla comanda três ou quatro aprendizagem do sistema ortográfico – seja
letras, é necessário estar atento ao funcionamen- abordada” (Fayol; Morais, 2004).
to do sistema gráfico sem ficar preso exclusiva- Assumindo uma visão mais complexa da
mente a sua dimensão alfabética. Nessa perspec- língua escrita, podemos considerar dois níveis
tiva, todos os grafes (letra, minúscula, acento, de funcionamento:
pontuação, espacejamento) se tornam unidades
de uma segunda articulação no nível visual. 1) No nível interno, isto é gráfico, o conjunto
A aprendizagem da leitura preconizada das unidades, ‘os grafes’, possibilita escrever
pelo ONL se vale da ciência lingüística e reivin- qualquer texto; cada palavra possui uma confi-
dica sua introdução na pedagogia. No entanto, guração visual proveniente do conjunto e da

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.3, p. 493-507, set./dez. 2006 499
ordem das letras utilizadas, assim como de seus sejam automáticos” (Brasil, 2003, p. 6). Assim o
limites marcados por um espaço branco (Alain acesso direto “ao léxico mental ortográfico” (Fayol;
disse que se reconhece a palavra como se re- Morais, 2004) efetuado pelo leitor experiente, seria
conhece o navio, pela silhueta das suas velas, oriundo, segundo os autores, de uma aceleração da
seu ‘gréement’ 3). A palavra helicóptero, por ‘decodificação’ – uma automatização – e não de
exemplo, composta de letras com hastes ascen- uma operação outra, ideográfica, isto é, baseada
dentes e descendentes, outras sem hastes cons- numa percepção imagética. Segundo essa ótica, o
trói uma imagem singular. Esse caráter visual da ato de ler do chinês não encontraria nenhuma se-
grafia, atestado por numerosos estudiosos melhança com a leitura do homem ocidental.
(Sampson, 1996), chamado ideográfico (ou Curiosamente, a recusa da dimensão
logográfico quando opera no nível da palavra), ideográfica, como modo de apreensão visual da
parece negado pelos autores do Relatório. palavra em favor da dimensão exclusivamente
2) Na sua relação com a língua oral, as letras fonográfica, acaba levando a um paradoxo. Se a
remetem a fonemas, constituindo assim o sis- extração da pronúncia é o procedimento primeiro
tema alfabético, o único relevante para os au- que, de acordo com os autores, se exerce sobre a
tores em questão. palavra, devemos reconhecer que essa unidade grá-
fica é apreendida visualmente, antes de qualquer
Para distinguir os dois modos de iden- ‘decodificação’, por meio do espacejamento, isto é,
tificação, podemos tomar como exemplo duas a partir de um grafe – o espaço branco – sem cor-
grafias de um mesmo nome: G. W. Bush e respondência sonora. Assim, a logografia, nem se-
Jedabliubâch, que evidenciam o duplo modo de quer mencionada pelos autores, dá suporte, à re-
acesso ao nome do presidente dos USA4 . Na se- velia deles, a um método que a rejeita.
gunda grafia, domina a dimensão alfabética, en- Na transposição da língua escrita em
quanto na primeira, a ideográfica tem primazia. língua oral preconizada pelos autores, apenas os
A semiótica visual está ausente nos dois elementos isomorfos – ‘em correspondência’ –
textos aqui abordados. Podemos dizer brincan- nos dois sistemas são considerados. Enquanto
do que, se no mundo dos surdos a passagem a língua escrita é constituída de grafemas or-
pelas sonoridades é impossível, no mundo do ganizados em palavras e a língua oral é forma-
“Observatoire” a configuração visual está tão da de fonemas organizados por uma prosódia
fora do universo dos autores, quanto da per- dentro da qual eles se apresentam fundidos, os
cepção do poeta cego Milton. autores consideram apenas os componentes
Se o reconhecimento de logomarcas (grafemas e fonemas) que constituem a inter-
como Coca-Cola, McDonald ou do próprio nome seção entre ambas as manifestações da língua.
pelas crianças pequenas não é mencionado no As particularidades de cada uma das represen-
texto do Observatoire, no Relatório é considerado tações da língua – prosódia de um lado e pa-
como um “processamento rudimentar” (Brasil, lavras separadas do outro – são abandonadas.
2003, p. 33) a ser abandonado. Na medida em que Trata-se assim de uma dupla redução.
a dimensão logográfica da leitura é ignorada, os Para os autores, a língua escrita deve ser
autores acabam desvalorizando o ‘processamento’ transposta em matéria sonora para ganhar existên-
infantil em lugar de considerá-lo como a primeira cia. Restrita às suas características grafofonéticas,
manifestação de um processo ideográfico, âncora
possível para uma aprendizagem da via direta.
3. Metáfora atribuída ao filósofo francês Alain (1868-1951), citada com
A leitura fluente do leitor experiente é atri- freqüência. Encontra-se, entre outros, em Fijalkow. Disponível em: <http:/
buída não a um procedimento logográfico especí- /www.bienlire.education.fr/01-actualite/document/fijalkow.pdf>.
Acessado em: 31 janeiro 2006.
fico, mas à aceleração da extração da pronúncia: 4. A grafia ‘USA’ é, inclusive, muitas vezes pronunciada ‘Estados Unidos’
“implica que o reconhecimento e a identificação pelo brasileiro, que não soletra a sigla.

500 Élie BAJARD. Nova embalagem, mercadoria antiga.


o sistema gráfico acaba se reduzindo ao sistema significante sonoro /faka/, o qual ativa a palavra
alfabético. Réplica da oralidade, a língua escrita armazenada na memória (Figura I). Trata-se de
não seria suscetível de ser submetida a uma operações que transformam grafemas em fonemas,
semiótica, reduzindo-se assim à sua função de possibilitando a identificação da palavra. Dão as-
memória da oralidade. Não seria uma linguagem sim acesso ao signo lingüístico – e ao seu signi-
em si mesma; não teria capacidade de construir ficado – dominado na língua oral. Esse processo
diretamente o pensamento. “lento [que] opera da esquerda à direita e mobi-
Segundo os autores, o grafema remete liza recursos atencionais” (Fayol; Morais, 2004) é,
individualmente ao fonema. Sua relação visual nós concordamos, exigente em energia cognitiva.
com os outros fonemas, isto é, a figura que
compõe com os vizinhos, é de certa forma ne- Figura I
gada. A configuração visual da palavra inexiste.
As experimentações perceptivas feitas por Javal,
no século XIX, não são consideradas.
É necessário mencionar que no item ‘Ler
e compreender’ (Fayol, Morais, 2004), os auto-
res integram aos problemas de compreensão vá-
rios aspectos das ciências contemporâneas da
linguagem, tais como o tratamento da inferência
e da anáfora, descrito pela análise do discurso.
No entanto, para eles, esses componentes ope-
ram posteriormente ao reconhecimento das pa-
lavras e à sua decodificação; a escrita não se
configura como representação da língua, mas so-
mente como réplica da oralidade, a única susce-
tível de proporcionar acesso ao significado.
Esse afastamento do sentido se verifica tam-
bém por meio do peso atribuído à ‘pseudopalavra’ No entanto, para os autores, o aperfeiço-
como indicador de leitura, uma vez que se trata de amento da decodificação acontece com a sua
unidade sem significado. Como a pseudopalavra é aceleração, gerando automatismo: o tratamento
uma unidade constituída apenas por elementos al- das palavras conhecidas deve tornar-se o mais rá-
fabéticos, a extração da sua pronúncia não corre ris- pido e automático possível5 (Brasil, 2003, p. 15).
cos de ser contaminada por outros procedimentos Assim, dentro da abordagem fônica, existe um
(inferência, imagem etc.). Uma vez que exclui qual- único processo de ativação do léxico armaze-
quer interferência contextual na sua decodificação, nado na memória – a decodificação – desen-
a pseudopalavra suscitaria uma leitura ‘pura’. Por volvido pelo leitor iniciante com lentidão e
isso, passa a ser um indicador central da avaliação pelo leitor experiente com velocidade.
da leitura do método fônico. A pseudopalavra, sig- Para Giasson (2000, p. 62), ao contrário,
no com significado perdido, torna-se emblema de existem dois processos de ativação da palavra
uma escrita desgarrada da linguagem. armazenada na memória. Um primeiro — que pode
recorrer (ou não) à decodificação —, nomeado
Nível psicológico
5. No entanto, se um automatismo como a troca de marchas de um carro
Na visão foneticista da leitura, o esquema é executado sem reflexão, a seqüência dos gestos que o compõem, apesar
de ser ultra-rápida, nunca se realiza em um tempo igual a um desses
simbólico da decodificação é simples e linear. As gestos. Na leitura, ao contrário, uma palavra de cinco letras é apreendida
letras da palavra ‘faca’, por exemplo, remetem ao com a mesma velocidade que uma letra isolada.

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.3, p. 493-507, set./dez. 2006 501
identificação, cria o vínculo entre o significante palavra, uma configuração visual capaz de ativar
visual e o conceito já dominado na língua oral. Um diretamente o conceito armazenado, mas deve
segundo, chamado reconhecimento, recorre ao transitar pelo significante sonoro.
vínculo já criado pela identificação. Esse segundo
processo, ideográfico, incide sobre um significante Figura II
visual e é distinto do primeiro.
Por isso, a ativação da palavra realiza-
da unicamente por seu significante oral deve
ser questionada. Essa representação é suficiente
para explicar a decodificação, mas não vale para
o ato de ler. O acesso direto ao léxico — por
‘endereçamento’6 — precisa de outro modelo de re-
ferência para escapar de uma explicação mecanicista
como a da aceleração da decodificação.
Recusamos que a razão de ser da grafia
se deva apenas à sua relação com fonemas;
preferimos conceber o signo como um nó de
vínculos complexos 7 . O conjunto visual de
grafes, limitado por espaços, constituindo a
imagem da palavra, sua ortografia, vem, no
decorrer da aprendizagem, integrar-se a esse
nó, assim como outros significantes, tais como
o gesto da língua dos sinais no caso dos sur- Para nós, a leitura se vale de dois proces-
dos, a pronúncia da palavra em língua estran- sos. O primeiro, esporádico, recorre à decodificação
geira etc. Essa imagem se incorpora ao signo para elucidar o material desconhecido. O outro,
sonoro já armazenado na memória e o torna contínuo, trata ideograficamente o material conhe-
mais complexo. Assim sendo, qualquer consti- cido. O leitor experiente utiliza de maneira pontual
tuinte desse nó — e no nosso caso, a imagem a decodificação – que para ele também permane-
gráfica — pode ativar o signo completo, inclu- ce lenta — e de maneira corrente a leitura ideo-
sive nos seus componentes sonoros (Figura II). gráfica — rápida, por ser visual. O acesso direto ao
É a integração da imagem gráfica ao con- léxico não remete à aceleração de um processo —
junto do signo que possibilita o ‘endereçamento’, a decodificação —, mas à sua substituição por um
também nomeado acesso direto. Como atinge di- outro — o ato ideográfico.
retamente o conceito na sua complexidade, o Ao longo dos dois textos analisados,
acesso direto implica uma operação de linguagem, manifesta-se um pressuposto não explicitado: o
com sua dimensão semântica, e não somente uma processo psicológico de utilização de uma lin-
transposição de grafemas em fonemas. guagem seria apenas determinado pela lógica da
A concepção estritamente fônica da escri- sua descrição. Isto é, se a lingüística descreve a
ta ignora o reconhecimento imediato, instantâneo, escrita a partir da língua oral, o ato de ler aca-
‘global’, da semiótica visual de Bertin (1977), da ba se submetendo a essa descrição. Como diz
teoria da Gestalt ou dos estudiosos da dimensão Foucambert, isso equivale a se perguntar: “Dado
ideográfica da escrita. Exclui a possibilidade de que a água é composta de oxigênio e hidrogênio,
integração da imagem do conjunto de grafemas ao
nó já constituído pela língua oral. Nessa visão, o
6. Adressage em francês.
grafema vinculado individualmente ao significante 7. Estes podem corresponder no cérebro a um nó de conexões neurais
sonoro não forma, com os outros grafemas da (Pinker, 2002).

502 Élie BAJARD. Nova embalagem, mercadoria antiga.


como Lucien aprende a nadar?” (Foucambert; o simples fosse também fácil. As etapas vão dos
Chenauf, 1997). Uma outra metáfora na própria grafemas até o sentido, passando sucessivamente
área da visão pode nos aproximar de nosso tema. por sua transposição em fonemas, pela identifica-
Apesar do fato de uma imagem colorida ser com- ção da palavra, pelo domínio da frase e do texto.
posta de três cores primárias (azul, amarelo, ver- Nessa necessidade de extrair a ‘pronúncia’ antes
melho-magenta), a interpretação de uma ilustra- ‘do sentido’, de ‘decodificar’ a palavra antes de
ção colorida não requer a identificação dessas três compreendê-la, de dominar o sistema alfabético
cores primárias. O fato de a escrita ser constitu- antes de atingir a compreensão, sempre a aborda-
ída de unidades gráficas em relação biunívoca gem do sentido é relegada a uma fase posterior. O
com os fonemas, não acarreta obrigatoriamente método adia o acesso à compreensão, obrigando
que o ato de ler implique passar pelos fonemas a criança a cumprir tarefas mecânicas para atingi-
para tratar os grafemas. Da mesma maneira, a la. Não é à toa que a criança dedicada apenas à
formatação digital da escrita pelo computador, decodificação — isto é, a uma atividade que ope-
baseada em elementos binários (0 e 1) não exi- ra fora de qualquer significado — apresenta difi-
ge dos usuários o domínio dessa codificação para culdades para elaborar o sentido, como o atesta a
que possam escrever. O isomorfismo entre a des- massa de analfabetos funcionais.
crição lingüística da escrita e o procedimento psi- A dicotomia entre decodificação e com-
cológico do ato de ler é apenas uma hipótese de preensão não se sustenta. Como aceitar que uma
trabalho e exige comprovação. De toda maneira, atividade humana não seja informada pelo senti-
é preciso distinguir a análise de um fenômeno de do? A própria escolha do texto não seria incen-
sua utilização na prática educativa. tivada pelo conteúdo que o leitor espera desco-
Ao reduzir a língua escrita aos ele- brir? A identificação da palavra seria realizada na
mentos em correspondência com a língua oral, ignorância do sentido trazido pelo contexto da
os autores sugerem que a transposição dos frase, do texto ou da imagem? A apreensão da
grafemas em fonemas por si só possibilita in- palavra poderia realizar-se fora das expectativas
ferir a complexidade da língua oral. No entan- do leitor? Como afirmar que existem operações
to, como traduzir grafemas em prosódia? iniciais (decodificação) anteriores à influência do
Como se pode verificar, as crianças emitem, significado, desprovidas de qualquer sentido?
freqüentemente, seqüências de fonemas sem
conseguir constituir um texto sonoro. Nível pedagógico

Nível da aprendizagem Ao propor a abordagem da leitura pela


extração da pronúncia, o ONL está centrado no
Como consideram a extração da pronún- método. A aprendizagem, inteiramente prevista
cia separadamente da extração do sentido, os pela instituição acadêmica, determina o caminho
autores do ONL propõem um caminho que rom- da criança. Desde a educação infantil, a estrutura
pe com a aprendizagem de outras linguagens, tais fonética da língua oral começa a ser ensinada,
como a da língua oral materna e a de línguas sob a justificativa de que a consciência fônica é
estrangeiras. Contudo, sabemos que nas aprendi- correlata às competências de leitura. Se os auto-
zagens linguageiras é por meio de situações de res do texto francês evitam fazer da consciência
comunicação que o código é descoberto e domi- fonológica uma causa que determina inteiramente
nado. Trata-se não de dominar um código para a aprendizagem da leitura — “as relações entre
atingir a mensagem, mas de conquistar um códi- consciência fonológica e aprendizagem da leitu-
go mediante a prática linguageira. ra são recíprocas” (Fayol, Morais, 2004) —, essa
A metodologia fônica parte dos elementos mesma consciência fonológica chega a se subs-
simples rumo aos elementos complexos, como se tituir ao objetivo de leitura, na medida em que

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.3, p. 493-507, set./dez. 2006 503
a extração da pronúncia é vista como anterior à • identificação dos personagens;
extração do sentido. • interpretação narrativa das imagens;
Paradoxalmente, esse desprezo da com- • escuta do texto como ritual de entrada na
preensão dentro do processo da alfabetização literatura;
ocorre em um momento em que o mundo da • aproximação da especificidade do texto
infância se apodera da literatura. Uma literatu- como elemento distinto da imagem;
ra infanto-juvenil de qualidade está florescen- • descoberta da sua permanência, oposta à
do tanto no Brasil como na Europa. Sustenta- flexibilidade do discurso oral;
da pelas demandas da classe média, ela invade • descoberta da necessidade de aprendiza-
não apenas os lares, mas as bibliotecas públi- gem para poder ler;
cas e escolares e outras salas de leitura. Hoje • constituição de um ‘banco’ de palavras escritas
no Brasil, a venda de livros endereçados às no qual o próprio nome da criança é gerador;
crianças ultrapassa a dos livros para adultos. • levantamento gradativo do material gráfico
Algumas ONGs como, por exemplo, A cor da (diversidade das letras, maiúscula/minúscula,
letra, formam jovens mediadores de leitura para acentos, pontuação, espacejamento);
atuar em hospitais, creches, orfanatos ou em • levantamento gradativo das relações grafo-
praças e jardins públicos. A expansão dos acer- fonéticas.
vos de livros contradiz a concepção dicotômica
do ONL, constituída de uma fase de aprendiza- O alfabetizador não pode ignorar o per-
gem e uma outra de utilização. De fato, o en- curso letrado anterior à escolarização. O profes-
contro com o livro antecede a aprendizagem e, sor de primeira série não pode mais ser o anfitrião
ao mesmo tempo, a proporciona. Essa nova da iniciação à escrita, que ocorre muito antes da
prática social e escolar leva inevitavelmente a alfabetização formal: a escolha da metodologia
questionar as metodologias da alfabetização. deve levar esse fato em consideração.
Esse encontro precoce com os acervos Ao contrário desse processo, a metodo-
inaugura a entrada das crianças na literatura, ini- logia do ONL prevê fases sucessivas nas quais a
ciação esta que se efetua em duas frentes. Dire- descoberta do princípio alfabético deve anteceder
tamente, isto é, sem intervenção de um mediador, a aprendizagem do sistema ortográfico. Essa pro-
a criança manuseia o livro, brinca com ele, encena posta, que não é suscetível de ser modificada, nem
seus personagens em dobradura, interpreta a se- pela ordem das descobertas das crianças nem pelas
qüência de suas imagens, observa a presença do mutações sociais em curso em nosso mundo, re-
texto, descobre elementos do código gráfico que toma, mutatis mutandis, o programa da cartilha.
não se reduzem ao código alfabético tais como Uma vez que “a descoberta do princípio
a maiúscula, o travessão etc. Ao mesmo tempo, a alfabético deve ser no mínimo parcialmente re-
criança que se beneficia da intervenção vocal de solvida” (Fayol, Morais, 2004) antes da aborda-
um mediador escuta textos e assim, mesmo sem gem do sistema ortográfico, os elementos do
ser alfabetizada, penetra no mundo da ficção es- código ideográfico não são considerados, ape-
crita. Várias aprendizagens são construídas por sar de já serem suscetíveis de identificação pela
meio do contato precoce com o livro: criança pequena. Com um programa assim cris-
talizado em fases, os autores não podem integrar
• descoberta, por meio de brincadeiras infan- no seu modelo as descobertas infantis, como
tis, do livro como objeto sensível; propõe Bajard (2002). Por que adiar a aborda-
• descoberta do livro como portador de his- gem do código gráfico (maiúscula) e começar
tórias; autoritariamente pelo código alfabético sem con-
• descoberta das três matérias da narrativa: siderar a cultura diversificada já adquirida pela
icônica, sonora e gráfica; criança no seu contato com o livro?

504 Élie BAJARD. Nova embalagem, mercadoria antiga.


O texto do Observatoire pretende impor do ato de ler concebido com uma dupla opera-
um procedimento seqüencial, fundado na pri- ção, em seqüência, de extração da pronúncia e
mazia da extração da pronúncia, transgredido extração do significado. Tecem uma teoria em
pelas crianças familiarizadas com o contato do duas etapas, sem levar em consideração a di-
livro. A observação sistemática das sessões de mensão ideográfica da escrita e sem combiná-la
mediação mostra que as habilidades construídas à dimensão alfabética. Recorrem a argumentos
pelas crianças mediante a prática do livro não científicos parciais para justificar uma aborda-
seguem a ordem prevista. O código alfabético gem da escrita que não deixa de ser um eco da
nem sempre é descoberto em primeiro lugar; o metodologia da escola tradicional. A antiga se-
papel da maiúscula ou do travessão é às vezes qüência decifração - leitura corrente cede lugar
percebido antes do valor sonoro das letras. A a uma nova formulação: extração da pronúncia
abordagem da escrita pela palavra é também - extração do sentido.
suscetível de transgressão: grafes da frase ou Como no método tradicional, a extração
do texto podem ser identificados antes dela, da pronúncia opera não apenas fora da ortogra-
como o ponto de interrogação, por exemplo. fia, mas também fora da gramática, que nunca é
O método apresentado não considera a convocada para a identificação da palavra. No
cultura da escrita da criança nem seus modos entanto, as unidades homófonas /a/ e /à/, por
de apropriação. A proposta até poderia con- exemplo, precisam ser identificadas como palavras
templar uma criança padrão, sem desejos, sem diferentes. Dentro de uma abordagem investigativa,
história, sem vinculação com um meio social a observação da crase pode ocorrer antes do pre-
determinado, enfim, uma criança de laborató- visto pelo método tradicional. Quando crianças
rio. Tal abordagem valoriza mais o ensino do observam, por exemplo, que na frase Você vai
professor do que a aprendizagem da criança à festa aparece um tracinho sobre o /a/ (situ-
real, que cotidianamente convive com a escrita ação problema), o professor pode conduzir um
“de fato, ao contrário da aquisição da identifi- questionamento de modo a que encontrem
cação das palavras faladas8 , a identificação das uma solução provisória para esse problema.
palavras escritas não se faz espontaneamente Mais tarde, a criança poderá deduzir, por exemplo,
pela exposição à escrita” (Fayol; Morais, 2004). que a palavra precedida por /à/ nunca exige acordo
Já que o significado é excluído do iní- com o verbo; em outras palavras, nunca é sujeito.
cio do processo em benefício do ato mecânico Essa teoria do ONL em duas fases ex-
da decodificação, o sentido acaba sendo igual- plica qualquer dificuldade de leitura pela escas-
mente excluído do texto gráfico (qual é o inte- sez do domínio da ‘decodificação’. O acesso à
resse desse texto para mim?), do ato de ler (ler compreensão se encontra assim sempre adiado
para quê?) e enfim da aprendizagem (aprender pelo domínio insuficiente da extração da pro-
para quê?). Os autores do ONL pretendem adi- núncia. Vale a pena ler com atenção o texto de
ar a extração do sentido para depois da extra- Gombert mencionado por Morais:
ção da pronúncia, mas como fazê-lo quando a
criança atribui sentido ao livro antes de entrar Todos os professores já encontraram alunos que são
na escola? capazes de decodificar textos sem compreendê-
los… Por isso muitos professores desconfiam do
Mercadoria antiga ensino da decodificação… A solução [no entanto]
não consiste em abolir o ensino da decodificação,
Os autores instauram uma distinção en- mas, ao contrário, ensinar o aluno a ler automati-
tre a decodificação, específica ao ato de ler, e a
compreensão, comum a todas as atividades hu- 8. A aquisição da identificação das palavras faladas se faria, para os
manas. Essa dicotomia aparece desde a definição autores, pela simples exposição?

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.3, p. 493-507, set./dez. 2006 505
camente através do exercício repetido desse tipo de rio – não corresponde aos desafios do mundo
atividade. (Brasil, p. 38) contemporâneo. Uma vez que, hoje, a criança se
inicia na literatura antes da idade da escolarização
É um exemplo de “uma receita que ao formal, o programa estabelecido pelo método do
fazer mais da mesma coisa é uma ‘solução’ que ONL se torna caduco. O professor não pode mais
cria o problema” (Watzlawick; Weekland, 1977) reivindicar para si o monopólio da responsabili-
e alimenta a queixa compulsiva do professor: dade do início do letramento, já que a criança o
“eles lêem mas não entendem”. Se é necessário experimenta bem antes de seu ingresso na primei-
adiar o ensino da compreensão até o domínio ra série. É desde o primeiro encontro com o livro
da decodificação, como estranhar que muitos que ela tenta dar significado a esse objeto. A ati-
alunos, apesar de alfabetizados, contribuam vidade de compreensão pode iniciar-se desde os
ainda para o aumento das coortes do analfabe- primeiros anos de vida; a criança não vai esperar
tismo funcional? o domínio do alfabeto para iniciar suas operações
A metodologia apontada representa um de busca do sentido.
passo atrás em relação aos pressupostos do O método fônico, avatar do método tra-
construtivismo. Conforme os métodos ativos, dicional, não pode ajudar a sociedade a redu-
Emília Ferreiro (1987) explica que o domínio zir o analfabetismo funcional por ela produzi-
da linguagem se constrói por meio da sua prá- do em massa. Os jovens e adultos assim ‘alfa-
tica, que as crianças aprendem integrando, a betizados’ conhecem o código alfabético, trans-
um sistema provisório já estruturado, novos ele- formam letras em sons ou, para falar como os
mentos por elas descobertos. Assim, as desco- autores do ONL, praticam a correspondência
bertas não se realizam necessariamente na or- entre grafemas e fonemas. No entanto, perma-
dem prevista pelo método nem tampouco na necem analfabetos funcionais, uma vez que
mesma ordem para todas as crianças. não sabem utilizar a escrita como uma forma de
É necessário salientar que a metodo- linguagem distinta da oralidade, imprescindível
logia do Observatoire – e a fortiori a do Relató- ao homem contemporâneo.

Referências bibliográficas

ANIS, J. Uma grafemática autônoma. In: CATACH, N. Para uma teoria da língua escrita
escrita. São Paulo: Ática, 1996, p. 213-224.

BAJARD, É. Caminhos da escrita


escrita: espaços de aprendizagem. São Paulo: Cortez, 2002. 303 p.

BERTIN, J. Sémiologie graphique


graphique: la graphique et le traitement graphique de l’information. Paris: Flammarion, 1977. 267 p.

BRASIL. Relatório final do grupo de trabalho “Alfabetização infantil: os novos caminhos”. Apresentado no seminário “O poder
legislativo e a alfabetização infantil: os novos caminhos”. Câmara dos Deputados, Comissão de Educação e Cultura. Brasília, 15
de setembro de 2003.

CATACH, N. Para uma teoria da língua escrita


escrita. São Paulo: Ática, 1996. 261 p.

DERRIDA, J. Gramatologia
Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 1999. 386 p.

FAYOL, M.; MORAIS, J. La lecture et son aapprentissa


pprentissa
pprentissagege
ge. Observatoire National de la Lecture. L’évolution de l’enseignement de la
lecture en France, depuis dix ans In: Journées de l‘ONL. Clermont-Ferrand. Disponível em: <http://www.inrp.fr/ONL/ressources/
publi/publications_tot.htm>. Acesso em: janeiro de 2004.

FERREIRO, E.; GOMEZ-PALACIO, M. Os processos de leitura e escrita


escrita. Porto Alegre: Artes Médicas, 1987. 273 p.

506 Élie BAJARD. Nova embalagem, mercadoria antiga.


FIJALKOW, J. Un coup pour rien. Les Actes de Lecture
Lecture. n. 67. Septembre, 1999.

FOUCAMBERT, J.; CHENOUF, Y. Usa ges expert de l’écrit


Usages l’écrit. Projet de recherche INRP, Département Didactique des Disciplines, Unité
Didactique des Apprentissages de Base. Disponível em: <http://www.inrp.fr/> . Acesso em: avril/septembre 1997.

GIASSON, J. A compreensão na leitura


leitura. Lisboa: ASA, 2000. 320 p.

GOODY, J. Lóg ica da escrita e organização da sociedade


Lógica sociedade. Lisboa: Edições’70, 1986.

HOUAISS, A. Dicionário da língua portuguesa


portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

OLSON, D. O mundo no papel


papel: as implicações conceituais e cognitivo da leitura e da escrita. São Paulo: Ática, 1997. 340 p.

ONG, W. Oralidade e cultura escrita


escrita. São Paulo: Papirus, 1998. 224 p.

ONL Apprendre à lire au cycle des aapprentissa


pprentissa ges ffondamentaux
pprentissages ondamentaux (GS,CP,CE1)
(GS,CP,CE1)
,CE1): analyses, réflexions et propositions. Paris:
Odile Jacob, 1998.

Parâmetros Curriculares Nacionais


Nacionais: Língua Portuguesa. Brasília, Ministério da Educação e do Desporto, 1997, p. 48.

SAMPSON, G. Sistemas de escrita


escrita: tipologia, história e psicologia. São Paulo: Ática, 1996.

SAUSSURE, F. Curso de lingüística geral


geral. São Paulo: Cultrix, 1969. 280 p.

SAENGER, P. A leitura nos séculos finais da Idade Média. In: CAVALLO, G.; CHARTIER, R. História da leitura no mundo ocidental
ocidental.
São Paulo: Ática, 1998, p.147-149.

WATZLAWICK, P. F.; WEAKLAND, J. Mudança


Mudança: princípios de formação e resolução de problemas. São Paulo: Cultrix, 1977.

Recebido em 21.10.05
Modificado em 13.06.06
Aprovado em 26.06.06

Élie Bajard é doutor em Lingüística pela École des Hautes Études em Sciences Sociales (Paris). Ex-professor de l’Institut de
Formation des Maîtres de Reims (França), ex-adido Lingüístico no Brasil, criador do Projeto Nacional Pró-Leitura (1988-
1994), ex-professor convidado da ECA/USP (1999-2004). Assessor em várias ONGs, tal como no projeto Aprender para
ensinar do Museu de Arte Moderna de São Paulo, endereçado a jovens surdos, alunos da Divisão de educação e reabilitação
dos distúrbios da comunicação, da PUC de São Paulo, tendo em vista serem monitores do museu (2005 até hoje).

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.3, p. 493-507, set./dez. 2006 507

Você também pode gostar