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da polarização
Claudemir Belintane
Universidade de São Paulo
Resumo
Palavras-chave
Correspondência:
Claudemir Belintane
Faculdade de Educação da USP
Av. da Universidade, 308
05508-900 – São Paulo – SP
e-mail: cbelintane@usp.br
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.2, p. 261-277, maio/ago. 2006 261
Reading and literacy in Brazil: a search beyond
polarization
Claudemir Belintane
Universidade de São Paulo
Abstract
Keywords
Contact:
Claudemir Belintane
Faculdade de Educação da USP
Av. da Universidade, 308
05508-900 – São Paulo – SP
e-mail: cbelintane@usp.br
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Desde o final século XIX, o ensino da 55,4% de alunos que apresentam problemas
leitura vem sendo submetido a uma polaridade sérios de leitura, sendo que 18,7% deles foram
discursiva que opõe, de um lado, as linhas te- classificados no nível ‘muito crítico’. Segundo o
óricas que acentuam a importância do código SAEB (p. 34), tais alunos “não desenvolveram
no processo da aprendizagem da leitura (méto- habilidades de leitura mínimas condizentes
dos alfabético, silábico, fônico e outros), cuja com quatro anos de escolarização; não foram
entrada no ensino se dá a partir de uma rígida alfabetizados adequadamente; não conseguem
sistematização das fases iniciais da aprendiza- responder os itens da prova”.
gem e cuja premissa básica assume que a lei- Outra avaliação que causou impacto
tura fluente resulta de um domínio seguro da negativo sobre o sistema escolar brasileiro foi
correlação entre as unidades mínimas da fala e a organizada pela OCDE – Organização para
as da escrita. De outro, posicionam-se as linhas Cooperação e Desenvolvimento Econômico –,
que dão relevo aos sentidos prévios construídos que ficou conhecida como PISA – Programa
pelo leitor e a suas habilidades em utilizar-se Internacional de Avaliação de Estudantes
de conhecimentos já assimilados para (OCDE-PISA, 2000)1 . Apesar de ter sua eficácia
monitorar o processo de leitura, cuja entrada questionada (Marchetti, 2005) em razão da
no ensino valoriza, entre outros, a cultura, a amplitude e das diferenças que recobre, seus
construção do conhecimento e a interatividade resultados causaram um imenso impacto
(métodos globais; ideográficos; construtivismo; midiático em razão de o Brasil ter sido classi-
sociointeracionismo e outros). ficado em último lugar no ranking dos 32 pa-
No Brasil, desde o início da década de íses avaliados.
1970, o segundo grupo suplantou o primeiro, É nesse efervescente e polêmico con-
pelo menos discursivamente (Barbosa, 1994). texto que a Câmara dos Deputados, por meio de
Entrecruzaram-se e influenciaram o discurso sua Comissão de Educação, constituiu um gru-
escolar publicações importantes que, se não po de trabalho (doravante GT) integrado por
conseguiram – como pretendiam – uma entra- especialistas nacionais e estrangeiros, cujo obje-
da mais efetiva nas ações escolares, ao menos, tivo era o de analisar a situação da alfabetização
tiveram algumas de suas versões tomadas como no Brasil e apresentar “propostas para o avanço
referências fundamentais na elaboração de pro- do debate e das políticas e práticas em nosso
gramas nacionais e regionais, desde o PNLD – país” (Brasilia, 2003, p. 8). O GT compôs-se dos
Programa Nacional do Livro Didático e os seguintes intelectuais: Marilyn Jaeger Adams
Parâmetros Curriculares Nacionais e Guias (EUA), Roger Beard (Inglaterra), Fernando
Curriculares regionais até programas mais espe- Capovilla (Brasil), Cláudia Cardoso-Martins (Bra-
cíficos como o PROFA – Programa de Forma- sil), Jean-Emile Gomberg (França), José Morais
ção de Professores Alfabetizadores do Ministério (Bélgica) e João Batista Araújo e Oliveira (Brasil).
da Educação e Cultura. Apesar de já decorridos três anos da publicação
Apesar da importância desse movimen- de seu relatório, resolvemos submetê-lo a refle-
to de renovação da educação, as avaliações xões uma vez que o tema vem experimentando
nacionais e regionais evidenciam um quadro desdobramentos surpreendentes na mídia e in-
não muito diferente do que já se exibia nas fluenciando autoridades (como veremos adian-
décadas de 1970 e 1980. Se antes preponde- te). No Brasil, o ministro da educação Fernando
rava a evasão escolar, hoje preponderam as Haddad em entrevista recente vem assumindo
imensas dificuldades de leitura e as defasagens que esse debate é necessário: “se o mundo in-
nas correlações esperadas de competência/sé-
rie (ou ciclo). As avaliações nacionais de 2003 1. Em 2003, houve outra avaliação do PISA (http://www.inep.gov.br); no
(BRASIL, 2004) evidenciam um percentual de entanto, a de 2000 é a que nos interessa porque seu foco principal foi a leitura.
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teiro fez esse debate, achamos que é preciso como exemplo os países industrializados que se
fazê-lo no Brasil também”2 . Na França, desde beneficiam das “ciências da leitura” e diz la-
janeiro deste ano, há de fato um debate mentar as “diversas razões que têm impedido
instigante que resultou de uma circular do Mi- que o Brasil acesse esses conhecimentos e in-
nistério da Educação que praticamente proíbe o corpore a experiência de países mais bem su-
uso do método ideovisual (em algumas entrevis- cedidos” (p. 8).
tas, o ministro restringe também o ‘método glo- O foco do deputado, seguindo o da
bal’)3 . Como veremos adiante, o contexto requer equipe de especialistas, desloca-se dos imensos
análise e reflexões e, nesse sentido, o relatório problemas que o país enfrenta tanto no campo
encomendado pela Comissão da Câmara não da Educação como no socioeconômico e vem
deixa de ser um documento oficial importante, iluminar somente as práticas de alfabetização,
já que permite reflexões tanto no campo do mais precisamente a adoção de metodologias,
ensino como no das políticas públicas. tendo sempre como seguras balizas os pretensos
Nesta primeira parte, faremos uma aná- avanços “da ciência cognitiva da leitura” (p. 10).
lise geral do relatório. Na segunda, vamos te- Já na síntese do relatório, que precede
cer algumas considerações sobre o panorama o desenvolvimento do texto, anuncia-se que “O
teórico-prático brasileiro. Pretendemos finalizar Brasil não vem conseguindo alfabetizar adequa-
o texto apresentando nossas perspectivas sobre damente suas crianças — conforme evidencia-
a alfabetização e o ensino da leitura. do pelo desempenho dos alunos nas séries pos-
teriores”4 . Do início ao final do relatório, insis-
Analisando o Relatório Final do tir-se-á nas recorrências ao “cientificamente
Grupo de Trabalho — comprovado”, às “provas irrefutáveis” alcan-
Alfabetização Infantil: os novos çadas pela “moderna ciência cognitiva”, cujas
caminhos pesquisas teriam lançado mão de procedimen-
tos tecnológicos avançados, que vão desde o
Já nas primeiras linhas da apresentação mapeamento do cérebro pela chamada MRI
do documento, assinada pelo deputado Gastão (imagem por ressonância magnética funcional),
Vieira, entrevê-se uma adesão política ao que até a análise genética da dislexia, eixos esses
supostamente seria um movimento internacional bastante comuns aos defensores do método fônico
de mudanças decorrentes dos avanços científicos e de uma concepção inatista de dislexia, cujos
e, ao mesmo tempo, uma aceitação plena do foco manuais, com as novidades das descobertas das
principal do documento, que se centra no méri- neurociências, vêm sendo traduzidos no Brasil
to dos estudos sobre alfabetização e na situação (Shaywitz, 2006; Snowling; Stackhouse, 2004).
de atraso científico do Brasil nesse campo: Baseados nessas ciências, os autores do
relatório enquadram seus opositores e todas as
Nos últimos 30 anos, houve um gigantesco pro- outras vertentes de pesquisa e de intervenções
gresso nos conhecimentos científicos sobre o educacionais no campo do amadorismo, dos
processo de aprendizagem da leitura e da escri- erros grotescos, das improvisações e das inves-
ta bem como sobre os métodos de alfabetiza- tidas ideológicas:
ção. Os estudos sobre alfabetização saíram do
campo da intuição, amadorismo e empirismo e
da especulação teórica para adquirir foros de
2. Folha de S. Paulo, 11 de fevereiro de 2006, Caderno Cotidiano.
ciência experimental. (Brasília, 2003. p. 8) 3. A discussão pode ser acompanhada no site francês: http://
www.cafepedagogique.net (última consulta em 05/03/2006).
4. O Relatório considera a avaliação nacional de 2001 realizado pelo
O deputado expressa sua esperança no SAEB, em que o desempenho dos alunos de 4ª séries é mais grave ainda
conhecimento científico sobre a leitura e cita (22,2 % são classificados como ‘muito crítico’).
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dores, educadores e países comprometidos com a Essa intenção é enunciada exaustiva-
adoção de critérios científicos como base para a mente em muitos outros pontos do texto, de
formulação de políticas e práticas de ensino da forma mesmo a incitar o leitor perspicaz a in-
leitura e escrita. (Brasília, 2003, p. 13) dagar o porquê dessa busca exagerada de
legitimação. Uma possível explicação é a estra-
Pode-se perceber nessas linhas que o tégia de luta que se entrevê nesse tipo de ar-
grupo, mesmo com seus três brasileiros, isola-se mação discursiva: o grupo precisa desalojar a
imaginariamente, autoconcebendo-se como úni- outra corrente que ora está no poder que, no
ca comunidade de pesquisadores internacionais, caso brasileiro, seriam as perspectivas constru-
relegando ao limbo todos os pesquisadores bra- tivistas ou sociointeracionistas, os autores de
sileiros que mantêm outros compromissos documentos e programas oficiais no Brasil
epistemológicos e outros enlaces internacionais. (PCNs — Parâmetros Curriculares Nacionais,
O documento quer induzir o leitor a crer na PROFA — Programa de Alfabetização de Adul-
existência de uma única comunidade internaci- tos, PNLD — Plano Nacional do Livro Didático
onal, que é a detentora da verdadeira pesquisa e outros documentos oficiais do último decê-
científica — fica claro o uso intencionado do nio) e da maquinaria dos manuais didáticos.
artigo definido “a comunidade” e não “uma O texto do relatório é construído de tal
comunidade” ou “esta ou aquela comunidade”. forma a conduzir o leitor à conclusão de que
A reivindicação desse isolamento faz coincidir o existe uma linha de pesquisa absolutamente
grupo de autores do texto com “a comunidade” confiável, supostamente testada e aprovada por
de cientistas que detém a verdade, o que evi- pesquisadores de alto nível e de cujo contex-
dencia uma rigidez do pólo discursivo próxima to os pesquisadores e educadores brasileiros
da intolerância. O trecho abaixo ilustra sobeja- não fariam parte e, ainda mais, tenta mostrar
mente essa busca de legitimação: que a validade dessas pesquisas é universal, ou
seja, podem ser globalizadas.
É importante salientar que as pesquisas atuais No capítulo III, o documento apresen-
sobre leitura obedecem às mesmas regras apli- ta a concepção de leitura do grupo, trazendo
cáveis às demais ciências experimentais, como a fragmentos de obras de Adams e Morais. A
física ou a biologia. A comunidade científica leitura é definida como “capacidade de extrair
internacional nessa área inclui centenas de pes- a pronúncia e o sentido de uma palavra a par-
quisadores, organizados em inúmeras institui- tir de sinais gráficos” (Brasília 2003, p. 20).
ções científicas e com publicações em revistas Nesse contexto, o documento expõe um trecho
técnicas que submetem seus artigos a conselhos de uma das obras de Morais, que usa como
de revisores antes da publicação. A maioria des- uma espécie de alegoria didática o caso da
sas publicações encontra-se referenciada nas cegueira do poeta inglês Milton, cujas filhas,
citações apresentadas na seção final (Referênci- mesmo sem compreender a língua grega, liam
as). A criação da SSSR (Sociedade para os Es- textos em grego para o poeta, que os compre-
tudos Científicos da Leitura), em 1990, é um endia. Para Morais, o poeta não estava prati-
marco na institucionalização da nova ciência cando a leitura, somente as filhas o faziam já
da leitura. (p. 17) que conseguiam extrair dos símbolos gregos a
pronúncia, mesmo sem conhecer os sentidos
O interdiscurso aí pressuposto estrutu- desse. O pai, ouvindo o som da língua grega,
ra uma contenda como um discurso não cien- realizava apenas o ato da compreensão. Com o
tífico, aquele que pode ser autorizado, o que exemplo, os autores fazem uma distinção abso-
não reúne credibilidade suficiente para influen- luta entre ler e compreender e dão forma ao
ciar as políticas públicas. embate principal do capítulo, opondo a equa-
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que “os métodos fônicos se mostram superio- evidente a sua intenção publicitária na própria
res aos demais. A instrução em fônica deve ser estruturação do texto. No primeiro capítulo, o
sistemática e não acidental” (p. 63). Estado da Arte, segundo os autores, elaborado
No capítulo IV, ao apresentar a “experi- com rigor cientifico, mostra que as linhas com-
ência de outros países”, os autores refazem a prometidas com a whole language e com o
contraposição entre as correntes, evidenciando construtivismo ou sociointeracionismo foram
a disputa entre as linhas de pesquisa, com im- suplantadas pelas evidências recentes da ciência
plicação de governos, ministérios, entidades e – que reconhecem, sempre de “maneira inequí-
planos que são especialmente criados para esta- voca”, que o método fônico é superior e mais
belecer interfaces com o governo e assumir o eficiente ao ensino escolar da leitura e da escrita.
controle ideológico e logístico das redes esco- No capítulo seguinte, apresenta os três países
lares. Nos três países, o relatório tenta evidenciar que tiveram problemas com as metodologias não
alguns pontos que seriam comuns: científicas e deixam claro que há sempre um
caminho, que é também o evidenciado no rela-
• Governos e entidades especialmente criadas tório que estão produzindo: uma comissão de
para enfrentar a crise exigem mais controle da cientistas que não se veiculam a ideologias, um
rede escolar, interferem em currículos e progra- relatório cientificamente elaborado e providên-
mas; investem num minucioso controle na pro- cias a serem tomadas pelos governos.
dução de materiais didáticos e no programas de Vê-se, com clareza, que a preocupação
formação de professores, sempre tendo como constante no relatório é a busca de legitimidade.
referência uma única orientação teórica, a fônica. Se os cientistas são aceitos como os mais relevan-
• Os governos acabam reconhecendo os pó- tes da comunidade internacional (capítulo II e III),
los da contenda entre os métodos e, apesar se as experiências de seus países foram aceitas
de nem sempre poderem assumir diretamente como tendências universais (capítulo IV), então a
uma única metodologia, apontam favoravel- análise da situação brasileira empreendida pelo
mente para o método fônico; grupo (capítulo V) e as conclusões e recomenda-
• Há sempre um grupo de trabalho considera- ções (capítulo VI) serão inquestionáveis e pode-
do acima dos conflitos ideológicos, caracteri- rão influenciar diretamente as políticas públicas.
zado como de alto nível científico, que pro- O exagero dessa busca de legitimidade,
duz um relatório evidenciando as causas do sobretudo a de José Morais, também pode ser
fracasso escolar e elegendo a metodologia observada em um documento francês, produzi-
fônica como a mais adequada ao processo de do pela ONL (órgão que rivaliza com a Associ-
alfabetização e ensino da leitura; ação Francesa de Leitura – AFL), L´évolution de
• As avaliações passam a ser mais detalhadas, l´enseignement de la lecture em France depuis
envolvendo também os níveis iniciais; dix ans, quando Bernard Cerquiglini, presidente
• Em geral, a idéia de avaliação é associada do ONL, ao apresentar os participantes das Jor-
ao diagnóstico médico da dislexia e acaba nadas de janeiro de 2004, apresenta José Mo-
enfatizando que a preparação para a escrita rais como conselheiro do presidente Lula no
(ensino de fônica) e os diagnósticos de possí- Brasil (ONL, 2004, p. 8).
veis problemas de aprendizagem devem Ainda que nos relatos da situação de
incidir mais cedo na vida das crianças (por cada país haja pontos obscuros não esclareci-
volta dos cinco anos), para controlar distúrbi- dos pelo relatório, tais como reações de inte-
os de aprendizagem e outros problemas. lectuais locais e mesmo das redes escolares (re-
ações estas que em geral são consideradas pelo
Por mais que o relatório apresente seus GT como motivações meramente ideológicas) e
dados e alinhe argumentos a partir deles, fica resultados que não se efetivaram nas novas
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en neurosciences n’ont pour l’instant aucune afirmar a existência de programas de alfabeti-
application aussi directe à l’éducation”9 . No en- zação eficazes nos sistemas públicos munici-
tanto, concorda com as pesquisas do “National pais” (p. 112).
Reading Panel” que, ao analisar diversos méto- Mesmo ressalvando – em apenas três
dos de ensino, assegura a superioridade das linhas (p. 113) – que há uma diversidade de
metodologias fônicas. Mesmo assim, o pesquisa- causas que incidem sobre as dificuldades brasi-
dor francês ressalta o que está explícito no NRP: leiras no campo do ensino da leitura, o docu-
que as atividades fônicas devem estar presentes mento descarta de imediato que os problemas
desde o início do ensino da leitura, mas não iso- possam ser atribuídos à “questão da pobreza” ou
ladamente, já que a fônica é apenas mais um dos a “distúrbios de aprendizagem”. Como tais pro-
componentes entre outros que também são ne- blemas são complexos demais para serem ava-
cessários. Nota-se aqui e mesmo no NRP que a liados por uma comissão desse tipo, a atenção
versão fônica para o Brasil não assume esses do GT se concentra nas “políticas e práticas de
relativismos. Aliás, Bajard (2006, p. 2), compa- alfabetização associadas a estes resultados”.
rando o relatório brasileiro com um dos docu- Tendo, então, focalizado o problema
mentos do ONL francês, nota essa diferença: que interessa ao GT, volta-se o foco sobre os
Parâmetros Curriculares Nacionais. O relatório
Apesar de José Morais participar da redação menciona a notável influência que o documento
dos dois textos, o estilo do texto francês é dife- brasileiro exerce sobre as secretarias municipais
rente do relatório brasileiro. La lecture et son e estaduais de Educação, nos programas de for-
apprentissage não está recheado com expressões mação de professores e nos livros didáticos.
tais como as seguintes, presentes no Relatório Em razão dessa influência, o relatório
apresentado na Câmara: “todos esses estudos dedica várias páginas à análise do documento.
adotam procedimentos científicos bem estabele- Como aconteceu nos três países, o GT ‘brasilei-
cidos e reconhecidos pela comunidade interna- ro’ também detectará as influências da whole
cional”, (Brasília, 2003 p. 17); “O estudo [o de language de Goodman e Smith e também as do
Morais] rompeu com o mundo da especulação e construtivismo de Emilia Ferreiro, sobretudo as
do amadorismo, (p. 17), além de outras simila- oriundas do livro A psicogênese da língua escrita
res que parecem ter sido escolhidas com o obje- (Ferreiro e Teberosky, 1986). Só que no caso do
tivo de gerar confrontos e semear polêmicas. Brasil, os autores detectam, nas páginas dos
PCNs, a convergência dessas três correntes: da
Avançando na análise do relatório, o psicologia genética, do sociointeracionismo e da
capítulo IV, ao abordar o caso brasileiro, pres- leitura significativa. Dos quatro documentos de
supõe que o leitor já deveria estar pronto para que se compõem os PCNs, a atenção se centrará
aceitar que o que tem diante de si é uma peça apenas no do primeiro e segundo ciclos, já que
científica construída acima de intenções ideo- estes tratam do período de alfabetização.
lógicas, sendo assim, diante de tantas evidên- Depois de apresentar alguns trechos
cias, acabará admitindo que os problemas reve- que definem os pressupostos teóricos do docu-
lados nas avaliações do SAEB são de responsa- mento brasileiro, enfatizando os confrontos
bilidade dos construtivistas brasileiros. que este propõe em relação às perspectivas que
Partindo de avaliações do SAEB e do enfatizam o código e a decifração, o relatório
PISA, o relatório também constata que o “Bra- põe em causa as secretarias e os programas de
sil enfrenta fortes dificuldades para alfabetizar formação de professores, dando especial desta-
seus alunos e, com isso, permitir-lhes uma
escolarização adequada” (Brasília, 2003, p. 112) 9. http://education.devenir.free.fr/Lecture.htm#_edn3 (consulta em 05
e que não há no país dados “que permitam março de 2006)
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ontologia demasiado avara” (p. 9), já que ado- fônico, quando vertida para a prática, quase
tam critérios que limitam a complexidade do nada acrescenta à conhecida tradição dos cha-
objeto de pesquisa e tornam o modelo mados métodos alfabéticos ou silábicos. O que
explicativo bastante restrito, quase insignifican- sempre apregoam como novidades são as su-
te diante da vasta gama de outros fenômenos postas comprovações científicas que trazem da
que o compõe. A visão científica dos defenso- neurobiologia e da genética. Em Snowling;
res do método fônico pode ser relida a partir Stackhouse (2004) e Shaywitz (2006), pode-se
dessa interpretação de Piatelli-Palmarini, ou detectar tendência semelhante à do relatório,
seja, a redução da aprendizagem da leitura ao pois se elabora um discurso que prega as no-
fenômeno da decodificação produz um corte vidades e os avanços da ciência no tratamen-
nos elementos essenciais do processo e eviden- to da dislexia para, no final, oferecer quase
cia também a sua perigosa avareza sempre sugestões de diagnósticos e atividades,
epistemológica. Vejamos um dos momentos em a escolas e pais, que praticamente nada diferem
que os autores destacam os elementos essen- das praticadas na década de 1960 (Jadoulle,
ciais do processo de aprender a ler, transcre- 1966). A avareza epistemológica, o foco redu-
vendo o texto do National Reading Panel zido sobre a decodificação, reedita as soluções,
(Brasília, 2003, p. 23): presentes nas cartilhas tradicionais, os esquemas
cartesianos de sempre: partir da menor dificul-
É um fato científico bem estabelecido que dade (começar pelas sílabas mais fáceis), uma
aprender a ler requer: ordem rigorosa (famílias silábicas em seqüência,
em ordem de dificuldade), redução das diferen-
• Compreender o princípio alfabético. ças subjetivas, apagamento de quase todos os
• Aprender as correspondências entre grafe-mas tipos de diferenças.
e fonemas.
• Segmentar seqüências ortográficas de palavras A complexidade das demandas
escritas em grafemas. brasileiras e as dificuldades de
• Segmentar seqüências fonológicas de palavras transposição do conhecimento
faladas em fonemas. teórico para as práticas
• Usar regras de correspondência grafema-
fonema para decodificar informação (Adams, Em geral, os pesquisadores, diante da
1990; Adams; Treiman; Pressley, 1997; Snow, complexidade da demanda brasileira, vêem-se
1998; National Reading Panel, 1998). obrigados a elaborar sínteses teóricas entre
diversos autores e até mesmo entre diversas
Apesar de os autores reconhecerem que ciências, porque percebem os grandes proble-
muitos outros aspectos de ler e escrever foram mas que a redução do foco da relação educa-
abandonados em razão da especificidade do tiva a um aspecto ocasiona. As indagações
relatório, reforçam que estes acima elencados, abaixo representam boa parte das inquietações
pelo NRP, são os mais fundamentais. Talvez o de um pesquisador ou mesmo de um educador
que suscite críticas e reações, em todos os pa- diante da complexidade que o ensino da leitura
íses onde se tenta implementar o método, não e da escrita põe para cada educador:
sejam as motivações ideológicas e políticas
como os defensores do fonocentrismo afirmam Foi precisamente a necessidade de analisar o
exaustivamente em muitas páginas do relatório, contexto, de pensar a alfabetização (ou o desen-
mas justamente essa redução da complexidade volvimento/ensino/aquisição da escrita) em ter-
do campo a que se dedicam. O estado da arte mos de interação e interlocução, que fui eviden-
da psicologia cognitiva que sustenta o método ciando ao longo destes anos de trabalho – para
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partir do uso de textos integrais de sua cultura, jogo uma subjetividade que se compraza em des-
sobretudo aqueles gêneros que parecem ter sido cobrir um espaço de movimento entre textos orais
especialmente preparados pela cultura para que a e entre estes e os textos escritos e, de uma forma
criança possa brincar com a desmontagem de mais geral, entre os elementos segmentáveis e
palavras. As fórmulas de escolha, o jogo do analisáveis da fala e da escrita, sejam eles fones,
revestrés, a língua do Pê, os trava-línguas, as silabas, grafemas, morfemas, frases, referências intra
mnemonias e tantos outros gêneros lúdicos presen- e intertextuais etc. Em Belintane (2006), mostramos
tes na diversidade cultural brasileira já trazem em o efeito da adivinha na memória, discutimos a idéia
si os elementos essenciais de uma escrita. de uma “subjetividade de entre-textos”, que ana-
Os textos de origem oral permitem es- lisa forma e sentido ao mesmo tempo.
tratégias excelentes de alfabetização e de Nesse contexto de ensino, é possível e
engajamento subjetivo no universo da leitura. É recomendável que se utilizem as concepções de
possível, por exemplo, classificar os trava-lín- Emília Ferreiro e atividades com famílias silábi-
guas, as fórmulas de escolha, as adivinhas, as cas (com atividades orais, cópia, ditado etc.).
mnemonias de acordo com o tipo de dificulda- Note que partindo do oral, dos gêneros orais e
de que o processo de alfabetização vai enfren- da leitura, as fases de Ferreiro não estarão
tar no momento. Se quisermos lidar com encon- centradas apenas na escrita e as atividades com
tros consonantais, poderemos brincar oralmen- famílias silábicas partirão de contextos mais
te com o trava-língua – por exemplo: “troque o complexos (textos de origem oral ou mesmo da
trinco e traga o troco” –, pronunciando-o de pesquisa em livros). Frisemos bem: a atividade
dois jeitos: com o encontro consonantal ou com família silábica é muito importante, mas
reduzida à sílaba canônica: “toque o tinco e somente deve ser posta em jogo seletivamente a
taga o toco” (as crianças reconhecem aí, na falta partir de diagnósticos precisos e de preferência
do /r/, o outro que ainda tem dificuldade de fala individualizados. Só se abordam as famílias silá-
e acaba percebendo o encontro consonantal). Ao bicas que de fato constituem dificuldades — so-
fazer o percurso de passagem para a escrita, mos radicalmente contra a exaustão do contínuo
seguindo roteiro semelhante ao dado acima, das famílias silábicas como forma de contemplar
vamos ter um pareamento que evidencia a for- todos os alunos e todas as dificuldades. Nivelar a
ma e a função do encontro consonantal. classe dessa maneira é assumir uma metodologia
Há muitos outros jogos que permitem de baixo custo, mas de alto risco.
associar movimentos corporais ao descolamento Nas situações heterogêneas de ensino, não
de unidades vocabulares ou silábicas (alguns há outra solução. É necessário trabalhar a partir de
exemplos: pular corda dizendo textos, atirar a diagnósticos precisos, com mais de um material
bola na parede dizendo um texto, fórmulas de didático10 e até mesmo com dois professores si-
escolha, alguns brincos e mnemonias) – nesse multaneamente — um dos problemas atuais nessas
ponto, lingüística e a cinesiologia se associam salas é que o professor não consegue dar conta
e, em geral, favorecem muito a entrada no jogo dos diversos níveis que tem diante de si.
dos sujeitos que apresentam dificuldades ana- Voltando à polêmica dos métodos, cabe
líticas em relação à segmentação. aqui ainda uma pergunta e um comentário: se
Insistimos que na oralidade já há os ele- os próprios especialistas defensores do método
mentos fundamentais de uma escrita (Belintane, fônico (Adams et al., 2006) admitem que ape-
2005), ou seja, que a estética que permite a nas 25% dos alunos de classe-média e um “nú-
memorização e o jogo são elementos fundamen-
tais não apenas para que o aluno aceite o jogo de 10. Em Belintane (2000), sugerimos uma ambiência de linguagem e de
formação contínua de professores em rede eletrônica para tentar dar conta
“cola-descola” da intermitência silábica e dessa complexidade. A idéia é produzir um material didático contextualizado,
fonemática, mas também para que coloque em a partir de demandas concretas da rede em questão.
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Recebido em 19.10.05
Modificado em13.03.06
Aprovado em 17.04.06
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.2, p. 261-277, maio/ago. 2006 277