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CASO 5: o CASO DA HORA DA BANANA 407

5 O CASO DA HORA DA BANANA

Este artigo descreve e analisa a interação social com um de trabalho, foi feita com o que, segundo minha ex-
pequeno grupo de maquinistas de uma fábrica durante os periência, se mostrou um recorde de treinamento mí-
dois meses de um período de observação participativa. nimo. A máquina que me foi destinada eslava situada
em um dos extremos da fila. O superintendente e um
Meus colegas trabalhadores c cu passamos dias dc dos operadores fizeram uma breve demonstração,
trabalho simples, repetitivo, relativamente isolados acompanhada de alguns conselhos como o de manter
dos demais operários da fábrica. Nossas máquinas es- as mãos afastadas do martelo na hora da descida des-
tavam separadas das demais áreas da fábrica pelas te. Depois dc um pequeno período dc prática, ao final
quatro paredes da sala dos balancins hidráulicos. A do qual o superintendente expressou sua satisfação
única porta da sala estava em geral fechada. Mesmo com meu progresso e meu potencial, fui deixado à
quando ficava aberta por causa do calor, as conse- vontade para desenvolver meu aprendizado sem ou-
qÇiencias não eram sociais; ela se abria para um espa- tra supervisão que a dos demais participantes do gru-
ço deserto da sala do departamento de expedição. po dc trabalho. De tempos em tempos, meus colegas
Houve contatos ocasionais com funcionários de fora, me ofereciam conselhos ou ajuda e respondiam a mi-
em geral sobre assuntos ligados ao trabalho. Mas com nhas perguntas.
cxccçâo da visita diária do encarregado de pegar as
peças prontas para a próxima etapa do processamen-
O griipo de trabalhadores
to, as visitas eram esporádicas e pouco frequentes.
Os balancins hldraúhcos eram do género de má- No início preocupado com o triplice objetivo de apri-
quinas^de estamparia, com construção mecânica mui- morar minha habilldiidc opcrucioniil. aumeninr ml-
to próxima das mais conhecidas prensas de estampa- nha produtividade e resguardar minha mâo esquer-
ria, caracterizando-se pelo martelo e bloco. O marte- da, dei pouca atenção a meus companheiros de traba-
lo tinha uma superfície de aproximadamente 8 por lho, cxccto para observar que pareciam cordiais, eram
12 polegadas na sua achatada superfíji^de golpe. A de meia-idade, nascidos no estrangeiro, comunicati-
descida para o golpe era forçada pelo operador, que vos e muito faladores, Seus nomes eram George, Ikc e
exercia pressão sobre uma alavanca presa à cabeça do Sammy. George, um cara parrudo, bem entrado nos
martelo. Algumas polegadas abaixo, estabelecia-se cinquenta anos, operava a máquina situada no outro
uma conexão elétrica que possibilitava que o golpe extremo da fila; mais tarde descobri que emigrara
fosse preciso. O martelo também podia movimen- muito jovem de um país do sudeste da Europa. Ike,
tar-se manualmente, para a frente c para trás, na hori- situado à esquerda de George, era alto, magro, esuiva
zontal e em arco, em tomo da coluna central da má- em tomo dos 50 anos c era judeu; viera do leste da
quina. Portanto, o operador tinha, até o momento de Europa ainda jovem. Sammy, o terceiro da fila e meu
estabelecer a conexão elétrica para o súbito e irrevo- vizinho, era forte, de quase 60 anos e judeu; escapara
gável impulso, flexibilidade para manobrar o instru- dc um país do leste da Europa pouco antes deste ser
mento sobre a superfície maior do bloco. Este, com invadido pelas tropas de Hitler. Todos três se encon-
aproximadamente 24 polegadas de largura, 18 de travam em uma fase descendente de suas trajetórias
profundidade e 10 de espessura, era feito de madeira ocupacionais. George e Sammy tinham sido donos de
resistente, como a de um cepo de açougueiro, e se en- pequenos negócios; o primeiro foi "varrido" quando
contrava a uma altura conveniente. Era nele que o .sua loja, que nâo estava no seguro, foi atingida por
operador colocava seu material, uma folha de cada um incêndio; o outro, perdera tudo ao fugir dos ale-
vez, no caso do couro, e uma pilha no caso de folhas mães. Segundo seu próprio relato, Ike tinha deixado
de plástico, para cortá-las com moldes de aço de vá- uma profissão altamente qualificada que exercera
rios tamanhos e formas. O molde a ser usado era mo- durante anos cm Chicago.
vimentado, manualmente, de local para local cada
vez que um corte era executado; raramente, quando
o operador via necessidade, o material a ser cortado O trabalho
era movimentado sobre o bloco. Antes que o primeiro dia de trabalho clicgasse ao fim,
A apresentação à nova ocupação, com suas sim- ficou evidente que minha carreira dc operador de ba-
ples habilidades para lidar com a máquina e rotinas lancins hidráulicos seria um processo desalentador
408 COMPORTAMENTO O R G A N I Z A C I O N A L

dc corrida contra o relógio, sendo que este era um dos, (b) variação na forma dos moldes usados e (c)
despertador antigo que liquctaqueava numa pratelei- um processo chamado "raspar o bloco". O processo
ra próximo à máquina de George. Durante minha ex- básico que ordenava a combinação específica de com-
pcriCncia industrial j;i hiiara com o monótono trans- ponentes funcionários poderia ser descrito assim;
curso dos minutos e das horas, mas nunca me depa- "Logo que acabar tantas destas, passo a fazer algumas
rara com uma combinação tâo sombria de condições marrons." E tendo atingido o objetivo de trabalhar
dc trabalho, somando a longuíssima jornada, o estí- com o material marrom, estabelecia-se um novo ob-
mulo cerebral infinitesimal c a extrema limitação dos jetivo, "agora é a vez dos brancos". Ou o novo objeti-
movimentos físicos. O contraste com minha recente vo podia envolver a troca de moldes.
passagem pelos campos petrolíferos da Califórnia era
impressionante. Nada de oito horas diárias correndo
daqui para ali. por desertos e contrafortes com uma Atividades sociais informais do grupo
turma alegre dc trabalhadores nâo-qualificados con- de trabalhadores; horas e temas
sertando poços petrolíferos, oleodutos e tanques de Comecei a observar atentamente a atividade social
csiocagcm. Aqui nâo havia as brincadeiras ao fim da que acontecia à minha volta; e com a atenção veio um
tarde, buscando tarântulas e cobras nas areias, nem crescente envolvimento. O que ouvi primeiro, antes
subíamos cm velhos vigamcntos para buscar ninhos de começar a escutar, foi um fluxo de pedaços desco-
dc corvos c, naturalmente, a grande nuvem de poeira nexos de comunicação que não faziam muito senti-
que visia ao longe nos informava com grande antece- do. Os sotaques eram fortes, e as referências nào
lonsiiuiíani um coniexio cooicnic dc .significados.
dPiiciíida clu-giidadorlu-íc Aíjiii i-ra íiiar i»dia inici-
ro de pé, no mesmo lugar, ao lado de irâs velhos ra- Lira apenas "palavrório". O ciue vi no início, antes dc
bugentos numa sala sombria, com janelas gradeadas começar a observar, eram surtos ocasionais de brin-
através das quais só se viam os tijolos da parede de cadeiras grosseiras, tão simples e invariáveis cm pa-
um armazém; os movimentos das pernas resumidos a drão e tâo infantis cm qualidade que nâo motivavam
deslocar o peso do corpo dc uma para outra perna, os a atenção. Por exemplo, Ike sempre desligava a má-
movimentos dc mão e braço, uma siiçp^es e repetiti- quina de Sammy quando este ia ao banheiro ou ao
va sequência dc colocar o molde, descer a alavanca, bebedouro. E, invariavelmente, Sammy caía na arma-
dilha tentando operar sua alavanca ao retomar ao
colocar o molde, descer a alavanca, e a atividade inte-
lectual reduzida ao cálculo do tempo restante até o posto. E isso era seguido sempre por indignação e re-
fim do expediente. É verdade que dc tempos em tem- clamações de Sammy, risadas de Ike e admoestações
pos era necessário subsHtuir íima pilha dc folhas porpaternais de George. Inicialmente, meu interçssc nes-
se comporumento se confinou a imaginar quando
outras; mas a pilha era preparada por outra pessoa e a
troca só demorava um ou dois minutos. De tanto em Ikc cansaria de sua monótona brincadeira ou quando
lanio. uma caixa com produto acabado tinha de ser Sammy passaria a verificar a tomada de força antes dc
tirada do caminho e outra vazia posta no lugar, mas voltar a operar a alavanca.
pard tanio bastava dar um ou dois passos. E, para di- A maioria das interrupções nas séries diárias era
vidir o dia cm panes digcríveis havia a meia hora dc chamada de "horas" no linguajar dos operadores c gi-
almoço c as eventuais idas ao banheiro ou ao bebe- ravam em tomo do consumo dc comida ou bebida.
douro. Mas. após cada instante de pausa, martelo c Havia a hora do café. a hora da laranja, a hora da ba-
molde eram tudo o que sc movia: abaixe a alavanca, nana, a hora do peixe, a hora do refrigerante e, natu-
movimente o molde, abaixe a alavanca, movimente o ralmente, a hora do almoço. Outras interrupções que
molde. faziam parte da série mas nâo eram reconhecidas ver-
Inventei um jogo de trabalho. Na verdade era mui- balmente como horas eram a da janela, a da colcta e
to simples, tâo elementar que jogá-lo lembrava os as horas de salda escalonadas de Sammy e Ike. Nesses
dias chuvosos da infância quando a atenção se con- intervalos sem nome não havia compartilhamento de
centrava cm pedaços coloridos dc diferentes cores e alimentos.
tamanhos. Mas essa atividade adulta nâo era apenas Passei a prestar atenção a essa divisão do tempo
desperdício dc tempo; o que lhe faltava em conteúdo quando hii convidado, na primeira semana, a dividir
imaginário das aiividades de antanho era compensa- duas laranjas. Era Sammy quem providenciava as laran-
do por uma estrutura nítida. As etapas fundamentais jas; depois de anunciar "Hora da laranja!", ele as pegava
envolviam: (a) variação na cor dos materiais corta- em sua marmita. Na primeira vez recusei, mas depois
CASO 5; o CASO DA HORA DA BANANA 409

passei a consumir regularmente minha meia laranja. Temas


Sammy continuava a providenciar as laranjas e a anun-
Para dar um pouco de, digamos, substância ao esque-
ciar a "Hora da laranja!", embora houvesse dias em que
ma interacional das horas, meu gmpo de trabalhado-
Iketivessede lembrar que já estava na hora da laranja e res desenvolveu vários "temas" em tomo dos quais sc
reclamasse do atraso do lanche. Ikc reclamava sempre desenvolviam as brincadeiras verbais, que tinham se
da qualidade da fruta, o que dava origem a brincadeiras tomado, pela repetição, padronizadas. Esses tópicos
entre doador e reclamante. Eu achava a fruta meio sem de conversação iam de papos totalmente sem sentido
graça, mas sentia, antes de perceber a função da hora da a conversas extremamente sérias. Ao contrário das
laranja, que Ike estava sendo grosseiro ao criticar o pre- "horas", esses temas fluíam sem nenhuma sequência
sente. Ficava imaginando por que Sammy continuava previsível. Conversas sérias viravam de repente brin-
dividindo suas laranjas com o ingrato. cadeiras grosseiras e vice-versa. No meio de comen-
Depois de aproximadamente uma hora, vinha a tários sérios sobre a alta do custo de vida, Ike deixava
hora da banana. Era Sammy, novamente, quem pro- cair algo pesado atrás de Sammy que sc assustava fa-
videnciava o lanche - uma banana. Contudo, nào cilmente ou batia na sua cabeça com um saco de pa-
dava para dividir a fruta em quatro partes. Ike a co- pel. A interação imediatamente se tomava uma co-
mia inteira depois de tê-la roubado sub-repticíamen- média pastelão em que trocavam tapas, ameaças, sol-
te da marmita de Sammy, que ficava numa prateleira tavam gargalhadas e reclamações que acabavam inva-
atrás de seu posto. Toda manhã, depois de realizado riavelmente numa ecolalia de "Ikc é um homem mau,
o furto, Ike gritava "Hora da bananal", e passava a muito'mau! George é um bom pai, um homem muito
consumi-la enquanto Sammy fazia imiteis protestos e bom!" Ou dc repente se seguia uma série dc compa-
denúncias. George se juntava a ele mostrando discre- rações hostis, como aquelas que acompanhavam o
ta reprovação, e às vezes reclamando de Sammy por desligamento da máquina 4c Sammy c que acabavam
fazer tanto fuzuê. Sammy tinha comprado a banana numa discussão dos prós c contras dc fazer uma pou-
para seu almoço, nunca chegava a comê-la e ainda as- pança para pagar o próprio enterro.
sim não deixava de trazê-la no dia seguinte. No iní- Os "temas das brincadeiras" eram cm geral dados
cio, eu ficava intrigado. Um pouco deijoii eu já espe- por George ou Ike, sendo Sammy o alvo. Às vezes
rava o furto diário e as brincadeiras que se seguiam. "encarnavam" em Ike, raramente em George. Uma
A seguir vinha a hora da janela. Seguia-se à hora da das brincadeiras prediletas se referia aos US$100
banana como consequência das broncas que Ike leva- mensais que Sammy recebia do filho. Eles diziam que
va do indignado Sammy. Depois de "aguentar" repeti- Sammy nào precisava fazer hora extra, talvez nem
das referências a ele mesmo como sendo pessoa sem mesmo precisasse trabalhar porque tinha um filho
moral e sem caráter, Ike "finalmente" retaliava, abrin- que o sustentava. George sempre dizia que ele, Geor-
do a janela que estava à frente do posto de Sammy para ge, mandava dinheiro para a filha, c nào o contrário.
permitir que o "ar fresco" ventilasse o colega. A calú- Às vezes a mulher de Sammy ligava para o marido e
nia que teria, por sua repetição ecolálica, dado cabo da quando ele contava que ela ligara pedindo para ele
paciência e tolerância em geral, assumia a fonna dc comprar algo no armazém, a turinit fingia nflo ncrcdi-
uma comparação hostil: "George é um bom pai. Ike é tar. Os colegas diziam que a mulher estava vigiando o
um homem mau, muito mau!" A abertura da janela le- marido e a expressão "Você é um homem ou um
vava um certo tempo e envolvia uma longa converea rato?" SC tomava uma exclamação ccoUUica utili2.ida
entre Ike e Sammy, antes c depois. Ike ameaçava, fazia dentro e fora do contexto original.
finta, até finalmente abrir a janela. Sammy protestava, Os temas sérios eram relativos às principais des-
argumentava e reclamava que pegaria um resfriado; graças vividas no passado pelos membros do gru-
depois de algum tempo, largava a máquina para fechar po. George gostava de repetir a narrativa sobre o
a janela. Às vezes o tempo estava frio e a corrente de ar incêndio que destruíra sua loja; as queixas de Ike
se tomava desagradável, mas, frio ou calor, chuva ou giravam em torno das doenças de sua mulher que
vento, todo dia chegava a hora da janela. (Imagino que já fora operada várias vezes c volta e meia era hos-
no início fosse uma brincadeira de inverno.) A parte pitalizada. Ike falava desanimado dos gastos que ti-
de George nessa brincadeira era a de incentivar Ike a nha com a empregada para ele e os filhos; do filho
abrir a janela, apesar de ser o "pai bom". Ele destacava adolescente que "era incapaz de preparar o almoço.
os efeitos tónicos do ar puro e debochava de Sammy Não é capaz nem mesmo de fazer um sanduíche!".
por sua ingratidão. E as lembranças dc Sammy sc voltavam para a per-
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da dc seu próspero negócio quando teve dc fugir ram US$1.000. Era um monólogo, mias era ouvido
dos nazistas. atentamente, havia comunicação, a comunicação sa-
Havia um tema que sc revestia dc especial soleni- grada de u m templo, quando George falava das visi-
dade, o do "professor". Esse lema também poderia tas ao professor ou dos jantares na casa dele no do-
ser chamado de "tema do casamento da filha de mingo. Sempre que falava do professor, de sua filha,
George", pois o recente casamento da tinica filha do casamento, do novo genro que na verdade per-
dc George estava inseparavelmente ligado ã conexão manecia uma figura apagada no fundo do palco,
dc George com o ensino superior. Sua filha casara quase como o bolo de casamento, George era o se-
com o filho dc um professor dc uma das faculdades nhor da interação. Sua maneira de falar aos opera-
locais. Na verdade esse tema não poderia ser conside- dores do balancim hldratllico era, na verdade, a de
rado rigorosamente um motivo dc conversa; quando um mestre dignando-se a dirigir um olhar a seus su-
o assunto vinha à tona, somente George falava. Os balternos. Cheguei à conclusão de que era sua cone-
dois operários judeus ouviam com profundo respei- xão com o professor, nào sua chefia ou os cenuvos a
to, para nào dizer admiração, os relatos dc George so- mais que ganhava por hora, que dava a George seu
bre a festa dc casiimcnio, incluindo foios. que custa- status superior dentro do grupo.

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