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O Novo Terrorismo

21/03/2015 por oolhoderramado

Por Kiko Dinucci

Branco Sai, Preto Fica de Adirley Queirós parte de um trágico fato real ocorrido em um
baile “função” ou de Black Music em plena Ceilândia dos anos 80. Frequentado por jovens
com idade média de 16 anos, o baile foi invadido por soldados da polícia que chegaram de
cavalaria e helicóptero e sem motivos, começaram um espetáculo de violência contra seus
frequentadores.

Dois personagens/atores são os condutores dessa memória não cicatrizada. Marquim


(Marquinho da tropa) e Sartana (Shokito), ambos foram vítimas da violência ocorrida no
baile da Ceilândia. Marquim levou um tiro e ficou paraplégico, Sartana tentou fugir pela
porta da frente, foi atropelado pela cavalaria e teve uma perna esmagada e amputada.
Estamos diante de uma tragédia corriqueira no cotidiano brasileiro, crimes de violência por
parte do estado contra a população pobre e preta. Esse fator poderia levar o filme somente a
uma natureza trágica, mas Adirley propõe uma nova e inédita abordagem, cria o que ele
mesmo chama de ” filme vingança terrorista”.

Embora Adirley denomine Branco Sai, Preto Fica como filme de gênero, ele opta por um
processo de desconstrução do próprio conceito de gênero. Primeiro parte de um
acontecimento real para construir uma ficção e transforma essa ficção em filme vingança,
como se fosse uma promessa de justiça ou acerto de contas, seus personagens depois de
desventuras, retornam para revidar o tratamento violento que a sociedade lhes deu. Os
personagens são como filhos natimortos da pátria que retornam para explodir os vícios de
um Brasil calcado nos moldes do período colonial e escravocrata. Só se contentarão com a
destruição total. Destruir para reconstruir. E no filme em questão, o que deve ser destruído
é Brasília.

Na parte ficcional do filme, Marquim é um DJ de rádio, que em seus programas, nos narra
o passado (documental) da vida na Ceilândia, dos bailes black, suas narrações são
nostálgicas, ora divertidas, ora melancólicas. O personagem guarda dentro de sua casa uma
máquina que destruirá Brasília com música das periferias. Na companhia do DJ Jamaica,
Marquim grava em um registro documental, grupos de forró eletrônico, brega, rap,
pancadão. Sua bomba sonora é a antítese da cultura do “bom gosto” das classes
dominantes, eis a sua vingança. Satarna é um personagem sereno e inteligente, faz muito
bem atividades manuais, conserta pernas mecânicas, desenha, cuida de sua casa e da boa
forma de seu corpo e parece sempre estar em pleno equilíbrio, ajuda Marquim a construir a
bomba que levará Brasília aos ares com o som da periferia. Ambos os personagens nos
confundem, trazem muito dos próprios atores, se misturam. Nas partes documentais e
ficcionais do filme nunca temos certeza se estamos diante de Marquim ou Marquinhos da
Tropa, o mesmo acontece com Sartana e Shokito.
Em seu longa anterior, Adirley já havia ousado ultrapassar os limites entre ficção e
documentário ao misturar no mesmo filme os personagens Dandara (documental) e Dildu
(ficção). Ambos compartilhavam o mesmo espaço geográfico, a Ceiliandia. Seus trajetos,
ficcionais ou documentais, esbarrarravam em enredos comuns do cotidiano, se tornavam
compatíveis entre si ou a qualquer espaço suburbano do mundo. O drama de Dildo
conseguia ser mais denso que um simples drama ficcional, refletia a própria possibilidade
do real. Sua natureza era tão possível e tão viva, dialogava tanto com a rua e com a vida de
tantas pessoas e do próprio ator, que acabava por superar o próprio gênero documental.

Um terceiro personagem de Branco Sai, Preto Fica, Dimas Cravalanças (Dimas Durães),
vem do futuro em sua nave/máquina do tempo para juntar provas para processar o governo
pelos crimes de violência contra a população de baixa renda. Dimas é um personagem fora
de controle, vem de um futuro devastado sob o governo da Vanguarda Cristã. A nave de
Dimas é um simples container, em seu interior, entre luzes, agitos ou calmaria, o
personagem viaja no tempo, junta provas, fotos do baile, se expressa através de
aglutinações de frases e pensamentos desconexos. Dimas é um personagem desesperado,
vindo de um Brasil assassinado, pelo racismo, pela intolerância religiosa, pela ganância
selvagem da classe dominante. Ele parece ter saído de um filme de Sganzerla ou Candeias.
A velocidade com que dispara os seus pensamentos ou observações é uma espécie de
exteriorização do pensar humano silencioso, algo parecido, mas de maneira diferente,
acontecia quando os anjos no filme de Wim Wenders, Asas do Desejo, liam os
pensamentos das pessoas: as frases se mostravam soltas e se encaixavam de alguma
maneira, mesmo que confusas. O cérebro de Dimas Cravalanças está à mostra para o
espectador, vivo, pulsante e embora não pareça, goza de extrema lucidez. O retorno de
Dimas do futuro para o presente cobrando sobre as injustiças do passado, não deixa de ser
também uma espécie de vingança. Não por acaso a inflamada fala final de Dimas dá lugar
ao funk de MC Dodô:

“Bomba explode na cabeça e estraçalha ladrão


Fritou logo o neurônio que apazigua a razão
Eu vou cobrar e com certeza a guerra eu vou ganhar
Os truta e as correria vão me ajudar”

A quebra de limites entre documentário e ficção já fora demonstrada no passado de maneira


brilhante em filmes com Mon, Un Noir (Jean Rouch) ou Iracema, Uma Transa Amazônica
(Jorge Bodanzky/Orlando Senna). Além de quebrar essas barreiras, Adirley resolve
transformar a ficção que poderia ser real ou documental em ficção científica. Estamos em
uma Ceilândia do futuro. Ninguém pode ir a Brasília sem ter passaporte ou visto. Os
moradores não devem sair de seu espaço periférico, não muito diferente do que acontece
hoje em dia com a população mais pobre tendo que morar em lugares cada vez mais
afastados. O futuro de Adirley é agora. A ficção científica de Adirley, além de flertar o
tempo todo com o documentário, transforma as suas limitações financeiras em apogeu
(como José Mojica Marins fez em seus primeiros filmes). Comparado às produções de
longas comerciais (Globo filmes e companhia), Branco Sai tem um orçamento
insignificante. O jeito então foi caminhar para a criatividade. A nave de Dimas é um
container, a bomba com que Marquinho explodirá Brasília é uma simples caixa de metal, a
maneira com que Sartana hakeia uma perna mecânica é filmada de maneira simples e sem
maiores recursos. O final apocalíptico é mostrado em forma de histórias em quadrinho,
feita a lápis. Em momento algum sentimos falta de efeitos especiais. Desta maneira, Branco
Sai, Preto Fica acaba sendo uma lição de como o cinema de cada lugar do mundo deve
procurar o seu próprio caminho sem se render às tendências hollywoodianas.

Adirley costuma classificar seu filme como “sessão da tarde”, diz que seu filme é como
Mad Max (Geoge Miller), Blad Runner (Ridley Scott), Bruce Lee, filme de ação, filme pra
assistir comendo pipoca. No entanto, o diretor opta por inventar a sua própria Sessão da
Tarde, com sua própria linguagem, a Sessão da Tarde que é possível de ser feita na
Ceilândia. O filme tem um tempo próprio, quase oriental, dialoga de certa maneira com
Yasujiro Ozu, tem muitas câmeras estáticas. A ação do filme se reflete nos movimentos dos
elevadores da casa de Marquim ou do metrô, movimentos verticais e horizontais. Esse
conjunto de escolhas tão originais e adaptadas à nossa realidade resulta no ponto forte do
filme.

O conceito de tempo e espaço de um  De volta Para o Futuro (Robert Zemeckis) e demais
filmes norte-americanos de ficção cientifica (tirando 2001 de Stanley Kubrick) chega a
ficar pequeno e ingênuo perante a complexidade de Branco Sai, Preto Fica. Adirley recorre
ao passado do país para falar do presente e do futuro a que caminhamos. Joga à tona
fantasmas do passado do país, dos quais nunca conseguimos nos desvencilhar ao longo da
história, como escravidão, opressão por parte das classes dominantes, ditadura militar e
violência. Todos os temas os temas (do futuro) que o filme aborda são radicalmente atuais:
isolamento periférico, violência policial, os evangélicos no poder (Vanguarda Cristã). O
dramaturgo Plinio Marcos dizia que enquanto o Brasil não mudasse, as suas peças
permaneceriam assustadoramente atuais. O mesmo efeito ocorre no filme.

Não se trata de uma ficção cientifica apenas, trata-se de uma ficção cientifica brasileira, ou
melhor, de uma nova ficção cientifica, inédita em qualquer filmografia. O filme de Adirley
destrói os limites do tempo diagnosticando os problemas do país que o tempo nunca
conseguiu apagar. O tempo do Brasil e do próprio filme são estáticos perante a nossa
impotência em resolver esses problemas. Se na série Mad Max a humanidade caminhou
para e decadência e destruição, em Branco Sai, Preto Fica,  a humanidade jamais saiu do
lugar, nasceu da própria destruição. E na destruição permaneceu. O filme nos mostra um
Brasil  que se viciou no que tinha de pior para construir a sua própria história, feita de
sangue a cada dia, sem cessar.

Branco Sai, Preto Fica nos mostra a periferia com o olhar interno, de dentro pra fora, como
pouquíssimas vezes se viu no cinema nacional. Não satisfeito em subverter os conceitos de
documentário, ficção, ficção científica e tempo, Adirley subverte também o conceito de
política e de vingança. A sua vingança, mesmo explodindo Brasilia, é sutil, nobre, vem em
forma de arte. A arte como insulto. A beleza como violência (a maneira com que o Brasil
ao longo de sua história, sempre respondeu às suas desventuras). Estamos diante de uma
nova espécie de terrorismo, artístico, fatal como transformação estética e política para quem
assiste. Com o intuito de explodir Brasilia, Adirley acabou explodindo (para o bem) o
próprio cinema brasileiro. Destruir para reconstruir.
AFTER HOURS »

DAQUELE INSTANTE EM DIANTE


28/07/2011 por oolhoderramado

A GUERRA ENTRE ITAMAR ASSUMPÇÃO E SEU TEMPO

por Kiko Dinucci

É impossível passar incólume ao filme de Rogério Velloso sobre o compositor e cantor


Itamar Assumpção. E é bem possível que uma pessoa que desconheça a obra de Itamar e
que veja nas duas horas de sessão pela primeira vez toda a trajetória desse furacão, sinta
muita vergonha por não ter conhecido antes (como bem escreveu Luiz Chagas, guitarrista
da banda Ísca de Polícia, na revista Brasileiros). Imperará nesse caso, no mínimo, uma
sensação de quem ignorou o choque de um meteoro contra o planeta. Como não percebi
isso antes?

Não é à toa que o filme começa em tom investigativo. Seus personagens vasculham os mais
remotos arquivos pessoais para o público tentar desvendar o que foi a passagem desse
artista pelo século XX, dono de uma obra intensa e original, a frente de seu tempo (ainda) e
que desafiou as estruturas da indústria fonográfica e da própria linguagem da música
popular brasileira.

Suzana Salles, Alice Ruiz, Luiz Waack e Alzira Espíndola aparecem no início do
documentário procurando arquivos sonoros, manuscritos, matérias de jornais. A
investigação será a principal ferramenta de Velloso para conduzir o filme, do começo ao
fim, ele mostrará arquivos de áudio, vídeo, fotos, shows, entrevistas, reproduzindo de certa
maneira a investigação dos personagens iniciais. Suzana Salles mostra o seu fichário e
avisa: estão mais ou menos organizados. Parece ser a ordem de como Velloso irá expor os
seus arquivos. Para Itamar, “totalmente organizado” seria uma prisão. O “mais ou menos
organizado” abre o leque para a surpresa, o inesperado, e é isso o que acontece.

Embora o filme tenha uma narrativa linear, não se rende ao convencional. O diretor opta
por uma narrativa polifônica, assim como os arranjos e composições de Itamar. Vozes
sobrepostas, sons de cenas futuras ou anteriores invadindo o começo e o fim das cenas e um
incrível diálogo das canções de Itamar com os temas sugeridos pelos depoimentos. Fica
evidente nesse caso a observação de Luiz Tatit, que diz que Itamar vem de uma leva de
artistas que não distinguem a sua obra da vida real. Eis o que faz as canções entrarem no
filme como uma linha de costura entre as cenas.

Outra característica forte do filme é a exposição biográfica do artista feita a partir de


fragmentos que não necessariamente se prendem a um fato ou uma data. Aqui os dados
biográficos aparecem de forma paralela. Como por exemplo quando é narrada a repressão
policial que Itamar sofreu em vida. O compositor fala sobre o episódio do gravador que ele
portava e que a polícia suspeitou ser roubado (o que o levou a passar cinco dias na cadeia).
Arrigo Barnabé completa a história, mas avisa que esse não foi o único episódio de
discriminação sofrida por Itamar. Logo em seguida Paulo Lepetit cita outro caso passado
durante a turnê de shows do projeto Pixinguinha. Zena, viúva de Itamar, ressalta que o
nome da banda Ísca de Polícia não surgiu do nada e que seu marido era vítima constante de
batidas policiais. Alice Ruiz reflete sobre a disparidade do talento de Itamar com as
situações discriminatórias com que ele se deparava. Itamar reaparece se dizendo contra a
postura agressiva dos policiais. Todos os fatos aparecem paralelos, costurados, sem
exatidões, quase abstratos, mas refletem de forma eficaz o tema central da cena, o racismo.

Durante o filme, notamos que a montagem ágil usa mais um elemento de fragmentação, a
colagem de uma mesma fala. Em vários momentos a fala de um único personagem é
fragmentada, recortada e reelaborada por Velloso, colada uma na outra, formando uma só
idéia. O jornalismo televisivo já usou e abusou dessa técnica a serviço da distorção e da má
fé. Mas aqui o diretor trabalha como um compositor, um arranjador, cola momentos
diferentes de uma mesma fala a serviço de sua investigação, o que dá um movimento
vitorioso ao ritmo do documentário.

“Daquele instante em diante” é separado em blocos. O primeiro é sobre o impacto da obra


de Itamar, tudo é arrebatador: o talento do compositor e seus músicos, a estética, a
linguagem, os elementos cênicos. Tudo é beleza, novidade e espanto. São notórias as
imagens de performances da banda Ísca de Polícia.

No segundo bloco, nos deparamos com a dificuldade de Itamar para com o mercado
musical da época e vice e versa. Saímos da reflexão artística da obra de Itamar para
entrarmos no tema que tanto atormentou o protagonista: o mercado. É assustador assistir à
guerra entre Itamar e seu tempo. A partir desse momento o espectador sai do estado de
deleite do primeiro movimento do filme e se encontra em um território árido.

Mas nos deparamos também, a partir desse drama, com um Itamar humanizado, que cuida
do seu quintal no bairro da Penha (Zona Leste de São Paulo), que cultua as suas orquídeas.
Essa humanização se estende aos entrevistados, que preparam cafés, falam ao telefone,
relembram, riem, como se a câmera não estivesse mais ali. A cena cotidiana acaba por
relaxar os depoimentos e Velloso se transforma em um diretor mosca, colhendo o que de
mais importante esses personagens podem revelar, a viagem, a aventura com Itamar.
Suzana Salles diz no final do filme: quando lembramos de uma viagem, não lembramos das
malas, do aeroporto, mas sim das coisas boas. Os depoimentos de Alice Ruiz, Marta
Amoroso e Tonho Penhasco também sobressaem, soam como epílogos para cada cena.

Embora Itamar esbravejasse sempre que necessário, contra o mercado, contra o mundo,
mostrando “com quantos nãos se faz um sim”, respondeu com uma obra apaixonada e
criativa. Isso fica evidente durante os últimos minutos do documentário, sobretudo no
episódio que fala de sua doença. Itamar diz: “minha doença não tem que entrar na roda, não
interessa”. Itamar passou por cima de qualquer obstáculo fazendo arte. Em outra cena ele
canta (à capela) a sua parceria com Paulo Leminski, “Dor elegante”, no auge de sua doença,
em plena dor, a letra diz: “ópio, édens, analgésicos/ não me toquem nessa dor/ ela é tudo
que me sobra/ sofrer vai ser a minha última obra”.
A solidão de Itamar fica explícita no vídeo, quase insuportável para quem assiste. O público
já não olha Itamar com uma visão externa, sofremos na carne os seus dramas, pensamos
principalmente na condição da cultura no Brasil, o buraco é mais embaixo, uns choram,
outros se revoltam e Itamar para surpresa de todos continua a derramar belezas, tal qual
uma grande gargalhada de desespero, ofende e fere com tanta beleza.

Itamar Assumpção travou sozinho uma guerra contra tudo que considerou injusto para um
artista brasileiro. Com as consecutivas portas fechadas, Itamar respondeu com muita
produção, realizou quase todos os projetos que quis e fez em vida nove álbuns e mais três
póstumos. Essa resposta foi uma oferenda, um sacrifício, uma missão que só será
compreendida daqui há pelo menos 50 anos, sim, porque o Brasil ainda se mostra
despreparada para digerir a sua obra. Em seu último show, debilitado, Itamar canta uma
canção de Djavan ao lado das Orquídeas do Brasil e repete o último refrão: “minha vida por
inteiro lhe dou”. Não por acaso, a última frase de Itamar em cima de um palco.

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