Resolvemos passar os feriados de páscoa na praia e, tentando causar uma
impressão de avós tradicionais e zelosos, levamos conosco a Yara e a Júlia, nossas netinhas de 5 e 2 anos. Ao chegar no apartamento, depois de 3 horas de viagem e um trânsito pesado em São Paulo, preparei uma merecida dose de uísque e sentei no sofá enquanto a Cleide trocava as crianças. Doce ilusão. Quando as meninas se viram de biquíni não houve mais meios de segura-las. Tivemos de correr para a praia na mesma hora e do jeito que estávamos. A Cleide sem ao menos fazer um inocente xixi e eu com o uísque em um copo de plástico acompanhando as tiranazinhas para o mar. Já sob o guarda-sol, a vovó saiu para o xixi e eu fiquei olhando as crianças. Encontrei um velho conhecido e, nos exatos 40 segundos que gastei para cumprimenta- lo, alguém já me chamou às pressas, pois a Júlia se dedicava a acabar com o Guarujá comendo, com uma colher de plástico, toda a areia. Depois da praia, exaustos, passamos no supermercado para abastecer a casa. Coloquei as duas crianças dentro do carrinho e, enquanto a Cleide ia trazendo as compras, fiquei entretendo as meninas. Por algum motivo, lembrei-me do Torpedão. Torpedão é o nome do personal training que contratei para me por em forma. O cara é um maldito torturador e, antes durante e depois dos treinos, fico sempre arquitetando maneiras de matá-lo. Já pensei em empurrá-lo para debaixo de um caminhão na hora da corrida. Outras vezes tenho ideias mirabolantes de temperar suas barras de cereais com veneno de rato, mas acho que teria que encontrar veneno de touro para derrubar o cara. Até em faca eu já pensei, mas aquelas que tenho em casa dificilmente furariam o couro daquele maldito. Pois bem, lembrando do Torpedão tive uma grande ideia: resolvi correr bastante com as duas crianças indefesas dentro do carrinho, assustá-las ao máximo, fazer manobras bruscas e freadas radicais, assim, pensei, elas ficam com medo e podemos sentar em algum lugar e descansar. O tiro saiu pela culatra. Elas adoraram a brincadeira e não pude fazer outra coisa o tempo inteiro. Passaram a chamar-me de Piuí e não me davam um segundo de descanso. O suor escorria pelas minhas faces e elas impiedosas ordenavam: — Vamos lá Piuí. De novo Piuí. E eu desempenhando aquele papel dentro do Pão de Açúcar lotado de pessoas normais que me olhavam como a um retardado mental. Aos poucos fui achando que eu fazia um mal juízo do Torpedão. Achando que ele não era tal ruim assim. Depois de uns quinze minutos o Torpedão parecia-me a mais angelical das pessoas. Tortura mesmo eu estava conhecendo agora. Depois das mercadorias escolhidas, resolvemos que eu iria para a frente do mercado tomar sorvete com as crianças, enquanto a Cleide passava no caixa que tinha uma fila de mais ou menos 3 km. Mas nada é tão simples quando aquelas duas estão presentes. A Júlia agarrou um pacote que chamava de “sagaldinho” e não largava de jeito nenhum. Queria a todo custo sair com ele do mercado o que me obrigaria a enfrentar a fila do caixa. Usei todos os argumentos racionais possíveis, mas ela parecia não ouvir e mantinha-se agarrada ao tal “sagaldinho”. A Yara, solidária à irmã, aguardava o desfecho da confusão de olho em um ovo de páscoa. Fui obrigado a usar força bruta e, com a Júlia no colo protestando violentamente, procurei sair do mercado. Para mostrar poder a menina tentou suicidar-se pulando de cabeça do meu colo para o chão. Lembrei-me dos palestinos suicidas e fiquei pensando que, se ela era capaz de suicidar-se por um salgadinho qualquer, do que ela seria capaz em sendo algo mais importante como uma mamadeira ou um pedaço de chocolate. Confesso que tremi ante a determinação da pequena terrorista. Finalmente escolhemos três casquinhas e nos sentamos para tomar o sorvete. Enquanto eu ainda me ajeitava na cadeira ouvi a voz das duas ao mesmo tempo. —Vovô, deixa a gente experimentar o seu. Não pude mais tomar sorvete. O meu foi aos poucos sendo experimentado... Experimentado... Até terminar. Quando tentei provar o delas fui sumariamente impedido o que causou espanto nas pessoas próximas que me olhavam com expressão de horror. Acho que pensavam que eu tentava assaltar as crianças. Algumas pessoas, que já me conheciam da hora do piuí, cochichavam coisas entre si e me olhavam ameaçadoramente. Derrotado, acabei por desistir do sorvete. A Júlia enfastiada e cheia do meu sorvete jogou o dela fora e, quando me distraí, fui avisado por alguém que a menina estava lambendo o chão. Era verdade. Ela não quis o sorvete apenas enquanto estava no copinho, quando ele estava no chão, arrependeu-se, entendeu que agora estaria com um gostinho especial e, sem titubear, lambia o sorvete, o chão, a sujeira, tudo.
* * * * *
Dormi, ou talvez tenha desmaiado sentado no sofá, depois de assistir à Júlia
comer metade de um ovo de páscoa mais ou menos do tamanho do Maracanã e esfregar a outra metade por todos os móveis, paredes e até na minha careca. Pela manhã, acordei com uma forte dor no peito e terrivelmente sufocado. Apavorado achei que estava tendo um enfarte, e tentei me levantar às pressas para chamar a ambulância. Nada de enfarte. Quem dera... Eram as meninas com seus respectivos baldinhos e brinquedos de praia acampadas sobre o meu peito, meu nariz, minha consciência. —Vovô, já tá na hora da praia... E lá vai o vovô, feliz, começar tudo de novo.