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DANTE-PEREGRINO E DANTE-NARRADOR: A BUSCA DO

CONHECIMENTO DE SI-MESMO
Letícia Cristina Alcântara Rodrigues

When the dark wood fell before me


and all the paths were overgrown
Lorena Mckennitt1

A Commedia, rebatizada por Giovanni Boccaccio como A Divina Comédia, foi


escrita entre 1304 e 1321, e antecipa movimentos estéticos e filosóficos, apontando para
o mito do homem moderno à procura de si-mesmo. Ao percorrer os três reinos do além-
mundo − Inferno, Purgatório e Paraíso −, Dante2 encontra-se com figuras fantásticas e
insólitas, assim como com personalidades do tempo em que viveu, havendo um
entrelaçamento entre realidade e ficção, que permeará toda a obra.
Perdido em uma selva oscura e acuado por criaturas terríveis, Dante sente medo
ao ser compelido a permanecer longe da luz e impedido de alcançar uma colina banhada
pelo sol. Entretanto, Virgílio, seu primeiro guia, surge para conduzi-lo por outro
caminho. Assim, tem início o relato que compõe a Commedia, feito por um Dante
narrador que já empreendeu a trajetória e que, narrando-a, revive sua jornada de
autodescobrimento.
É com o verso “A meio do caminho desta vida” (Inf., I, 1) que a Commedia é
iniciada, trazendo-nos a perspectiva de uma história épica. Na Commedia, encontramos
três visões sobre a viagem pelo além-mundo: a do poeta-autor, que escreve a obra, a de
quem já empreendeu a jornada, e a revive por meio de uma narrativa, e a de um Dante
personagem que está vivendo os fatos no momento em que ocorrem e são recriados por
aquele que os narra.
Dessa forma, nos primeiros versos de cada reino do além-mundo, encontramos a
voz narrativa que reafirma a necessidade de contar a viagem vivida com fidelidade aos
fatos, além de também compreendê-la para poder transmiti-la. Além disso, Dante-
narrador recorre às divindades gregas para que seu canto possa ser fiel às vivências de
1
“Quando a floresta escura caiu diante mim/ e os caminhos foram encobertos.” (Lorena Mckennit,
Dante’s prayer, tradução nossa).
2
No decorrer do texto, faremos uso de três denominações para tratar do desdobramento de Dante em três
personagens que, normalmente, são confundidas com apenas uma. Na Commedia, identificamos Dante
Alighieri, o autor propriamente dito, o filósofo e o político florentino. No contexto ficcional, Dante-
narrador é aquele que nos conta os episódios da jornada pelos três reinos; e Dante é a personagem
narrada, que faz o percurso.
Dante, que percorre aqueles reinos. Ao recorrer às musas, os modelos clássicos são
reverenciados, ao mesmo tempo em que são utilizados para criar sua própria forma de
(re)contar aquela aventura, refletindo sobre ela, uma vez que, na epopeia de Dante
Alighieri, o narrador protagonista não representa mais uma nação, como nas epopeias
homéricas, por exemplo, mas é um homem solitário, a despeito dos guias que o
acompanham, em uma jornada de autodescobrimento, de criação de novas
possibilidades para si-mesmo.

Ó Musas, estendei-me a vossa influência!


Ó Mente, em que o que vi se refletia,
possas ora mostrá-lo em sua essência!
(Inf., II, 7-9, grifos nossos)

fala, narrar do sangue e das feridas


que ora eu vi, mesmo vezes recontada?

Todas as línguas estariam falidas,


pois a linguagem nossa e a nossa mente
para tanto abarcar são desprovidas.
(Inf., XXVIII, 2-6, grifos nossos)

E, pois, direi da parte separada


na qual a essência humana se depura,
por merecer o céu, dignificada.

Musas! Fazei volver a extinta e pura


veia do meu cantar, com vosso alento!

(Purg., I, 4-8, grifos nossos)

Ao céu que mais de sua luz se aquece


eu fui, e coisas vi que mencionar
não sabe, ou não pode, quem de lá regresse:

porque, a ansiada meta a demandar,


nosso intelecto se aprofunda tanto
que a memória é incapaz de o acompanhar.
[...]
Faze-me, ó bom Apolo, o teu fiel seguidor,
(Par., I, 4-13, grifos nossos)

Dessa forma, o épico do poeta florentino assume tons líricos, em que são
exacerbados os sentimentos do protagonista, suas ações únicas de homem que está vivo
em um universo de almas em eterna punição, ou purgando seus pecados para ascender à
glória da salvação. Conforme assegura Osip Mandelstam (2001, p. 40-41), “ele [Dante
Alighieri] é um estrategista da transmutação e hibridização” 3, utilizando-se dos modelos
clássicos com os quais teve contato, assim como dos filósofos e conhecimentos de seu

3
“He is a strategist of transmutation and hybridization” (MANDELSTAM, 2001, p. 40-41).
tempo, para construir um mundo, que, ainda nas palavras de Mandelstam (1971, p. 415
apud ANDERSON, 2010, p. 245),tornam a Commedia “um cristal único com 13 mil
faces”4. Para Dante, a salvação está além de chegar ao Paraíso ou vislumbrar a luz
divina, está na percepção de que ele, indivíduo, vivo, é senhor de seu destino, é capaz,
por meio de suas ações, retirar-se ou pôr-se em um caminho.
No primeiro verso da Commedia, Dante-narrador já está em outro tempo, como
ressalta Patrick Boyde (2006, p. 3):

nos ajuda a ver que o protagonista é retratado com afastamento crítico por
parte do autor do poema, que escreve a partir do ponto de vista superior da
maturidade completa obtida na terceira idade. Isso nos prepara para
reconhecer que Dante, o autor, representa seu self mais jovem, rebelde, como
um representante típico daquele momento da vida, como alguém que
manifesta tanto as fraquezas quanto os “sinais” da bondade inata cuja teoria
nos levaria a esperar em um homem bem-dotado durante seus anos
intermediários. Tomadas juntas, essas considerações nos lembram de que o
Dante peregrino é um personagem em um trabalho de ficção: ele é
parcialmente atraído pela vida, em parte uma criação livre e, em parte,
modelado sobre um tipo. (p. 3, grifos do autor, tradução nossa)5

Ao contrário de Boyle, que divide as vozes em apenas duas, compreendemos


que há três – Dante-autor, Dante-narrador e Dante-narrado. Na obra de Dante Alighieri,
detectamos a visão de mundo medieval e também os conhecimentos do autor ao
escrever o poema. O narrador é um Dante que já retornou de uma viagem, que já
conheceu a si próprio como homem, indivíduo, mas que precisa (re)contar sua história,
criando um Dante-narrado, que lhe trará, juntamente com a memória, a compreensão de
toda a jornada percorrida.
O tempo em que Dante Alighieri viveu foi marcado por mudanças, como o
crescimento dos centros urbanos, o avanço do conhecimento, a assunção do pensamento
aristotélico, e os embates entre filosofia e religião, entre poder laico e poder religioso,
tanto que, em relação às figuras do Imperador e do Pontífice, o poeta florentino faz essa
reflexão em sua obra Monarquia.

Ao homem, portanto, em atenção ao seu fim duplo resultou necessário um


poder duplo: o do soberano Pontífice, o qual, conforme a revelação, orienta o
4
“The Commedia as a single crystal with 13,000 facets” (MANDELSTAM, 1971, p. 415 apud
ANDERSON, 2010, p. 245).
5
“It helps us to see that the protagonist is portrayed with critical detachment by the author of the poem,
who writes from the superior vantage point of full maturity gained in the third age. It prepares us to
recognise that Dante-the-author depicts his earlier, wayward self as a typical representative of that time of
life, as someone who manifests both the weaknesses and the 'signs' of innate goodness which theory
would lead one to expect in a well-endowed man during his middle years. Taken together, these
considerations remind us that Dante-the-pilgrim is a character in a work of fiction: he is partly drawn
from life, partly a free creation and partly modelled on a type” (BOYDE, 1966, p. 3).
gênero humano para a felicidade espiritual; e o do Imperador que, segundo os
ensinamentos dos filósofos, conduz os homens para a felicidade temporal.
(ALIGHIERI, 2006, p. 135)

Além disso, nos séculos XII e XIII, há pensadores que já apresentavam a questão
do indivíduo que parte em busca do autoconhecimento. Encontramos essa jornada em
busca de si-mesmo no relato de Dante-narrador, que, após reviver sua viagem,
compreende-se como ser humano, criador de si-mesmo e de seu destino.
Para o homem medieval, e não podemos esquecer que Dante Alighieri é um
autor tipicamente medieval, existia uma força que o movia – a Providência – que, assim
como a liberdade, provinha da graça de Deus6. Essas duas forças, paradoxais – pois, se
havia uma Providência, como o homem poderia ser livre, ou se ele era livre, e isso fazia
com que ele agisse, como sua ação poderia ser contrária a Deus ?– criaram no homem
medieval não um nó de forças contrárias como no homem grego – dividido entre o
destino e a liberdade7, mas um “palco ocupado por dois atores: Deus e o Diabo” (PAZ,
2012, p. 217), que tendiam a atrair o ser humano.
São esses dois atores que motivam a Commedia, pois foi para escapar do
Demônio que Dante percorreu os reinos do além-morte, conheceu frente a frente o Mal
por excelência – congelado no Cocito, condenado e condenando os traidores ao suplício
–, em busca de, finalmente, por meio da purgação de seus pecados, contemplar a força
motriz do mundo, Deus.
No decorrer do caminho percorrido por Dante, encontramos a fragilidade
humana cada vez mais reforçada na personagem, seja por meio dos medos enfrentados,
das dores visualizadas, da ira, seja na alegria pelo encontro com outras personagens,
seja na beleza contemplada e admiração por Beatrice. A humanidade em Dante é
reforçada até a plenitude alcançada no Paraíso.

Receio que empreender um tal destino,


6
Segundo Etienne Gilson há duas condições que “são exigidas para fazer o bem: um dom de Deus que é a
graça e o livre-arbítrio. Sem o livre-arbítrio não haveria problemas; sem a graça, o livre-arbítrio (após o
pecado original) não quereria o bem ou, se o quisesse, não conseguiria realizá-lo. A graça, portanto, não
tem o efeito de suprimir a vontade, mas sim de torná-la boa, pois ela se transformara em má. Esse poder
de usar bem o livre-arbítrio é precisamente a liberdade. A possibilidade de fazer o mal é inseparável do
livre-arbítrio, mas o poder de não fazê-lo é a marca da liberdade. E o fato de alguém se encontrar
confirmado na graça, a ponto de não poder mais fazer o mal, é o grau supremo da liberdade. Assim, o
homem que estiver mais completamente dominado pela graça de Cristo será também o mais livre:
‘libertas vera est Christo servire” (apud OLIVERA, 1995, p. 18).
7
Octávio Paz (2012) faz uma incursão sobre as forças do Destino e da Liberdade que regem o homem na
sociedade grega. Segundo o pesquisador, “o Destino se apoia na liberdade dos homens; melhor dizendo: a
liberdade é a dimensão humana do Destino” (p. 212), pois sem o homem, “o Destino não se cumpre e a
harmonia cósmica se rompe” (p. 212).
na minha pequenez, é uma loucura:
Mas, sábio, vês o que tão mal opino.”
(Inf., II, 34-36, grifo nosso)

“Mestre”, falei, “delas não me asseguro”.

E ele, como quem cerce o medo corta:


“Aqui toda suspeita é bom deixar,
qualquer tibieza aqui não se comporta.
(Inf., III, 12-15, grifo nosso)

“Amor que em minha mente conjectura”,


— começou a cantar tão docemente,
que ainda tal dulçor em mim perdura.

Meu Mestre e eu e a recém-vinda gente


enlevados estávamos e atentos,
tanto, que nada mais nos vinha à mente
(Purg., II, 112-117, grifo do original)

assim, por grandes dúvidas tolhido,


eu me calava, e aqui não me lamento,
nem louvo, porque a tal fui constrangido.

(Par., IV, 7-9, grifo nosso)

Não que vários aspectos, simplesmente,


na luz se demonstrassem, que eu fitava,
e que era em si a mesma e permanente,

mas porque meu olhar se incrementava


tanto, fitando-a, quer uma só essência,
à minha mutação, se transmudava.
(Par., XXXIII, 109-114, grifo nosso)

Dante lavou-se de seus pecados no Lete, com a ajuda de Matelda e Beatrice,


para, a seguir, ascender ao Paraíso e alcançar a salvação ao contemplar a figura divina.
Esse momento representa o auge da compreensão de si-mesmo, quando Dante atinge a
totalidade. Esse aspecto nos permite aproximar o texto do poeta do que C. G. Jung,
muitos séculos mais tarde, vai compreender como processo de individuação, que é o
“processo de formação e particularização do ser individual e, em especial, é o
desenvolvimento do indivíduo psicológico como ser distinto do conjunto, da psicologia
coletiva” (JUNG, 2012, p. 467). O processo de individuação desenvolvido por C.G.
Jung, que trata da integração do self e da sombra, é uma concepção moderna e surge do
entendimento que a modernidade deu ao indivíduo, mas encontramos na Commedia um
embrião desses aspectos, com uma semelhança, uma aproximação a esse processo. Na
compreensão de Jung, esse processo, inicialmente, seria verificado a partir do meio da
vida, quando o homem se volta mais para seu mundo interno. Não podemos deixar de
fazer uma relação com a Commedia, uma vez que Dante-peregrino parte em sua jornada
no meio de sua vida e, ao longo da trajetória, busca essa compreensão e esse voltar-se
para si-mesmo.
Ainda segundo Jung, a individuação constitui o propósito central do
desenvolvimento humano, e que alcançá-la “significa tornar-se um ser único, na medida
em que por ‘individualidade’ entendermos nossa singularidade mais íntima, última, e
incomparável, significando também que nos tornamos o nosso próprio si-mesmo”
(2011, p. 63, grifos do autor). Ainda de acordo com o autor suíço, “a meta da
individuação não é outra senão a de despojar o si-mesmo dos invólucros falsos da
persona, assim como do poder sugestivo das imagens primordiais” (2011, p. 64).
Para Jung, persona, que reporta à máscara usada pelo ator no teatro grego, é
uma palavra apropriada, uma vez que se refere ao papel desempenhado pelo ator numa
determinada circunstância. Nesse sentido, a realização de si-mesmo implica o processo
de libertação das falsas máscaras escolhidas para e pelo próprio eu. Assim, afirma que

cometeríamos um erro se a considerássemos a persona, in toto, como algo


“individual”. Como seu nome revela, ela é uma simples máscara da psique
coletiva, máscara que aparenta uma individualidade, procurando convencer
aos outros e a si mesma que é uma individualidade, quando, na realidade, não
passa de um papel, no qual fala a psique coletiva. (2011, p. 45-46, grifos do
autor)

Dessa forma, Dante Alighieri cria para si-mesmo suas personas: Dante-
narrador, Dante-peregrino, e Dante-autor. A jornada empreendida encoraja o homem –
poeta florentino – a conhecer-se a si-mesmo, em busca de se tornar o ser único que de
fato é.
É importante ressaltar a divisão entre Dante-peregrino e Dante-narrador.
Essa complexidade nos encaminha para a diferença existente entre um e outro, pois o
segundo é um pouco mais velho do que o primeiro. O protagonista não conhece seu
trajeto, não sabe o que o aguarda, restando-lhe interrogar, se compadecer das almas ou
se irar em decorrência do que ouve ou vê, experimentando uma variedade de
sentimentos – angústia, temor, curiosidade ou piedade, entre outros 8. Já o narrador
possui conhecimento do que lhe aconteceu na sua totalidade e singularidade, assumindo
a missão de relatar sua experiência, como exprime na sua obra:

Ó Musas, estendei-me a vossa influência!


(Inf., II, 7, grifo nosso)

8
A professora Henriete Karam aponta tais aspectos em ensaio intitulado “A representação e a expressão
do eu na Divina Comédia de Dante Alighieri”, que consta dessa coletânea.
Na verdade, quanto eu do reino santo
pude na mente conservar, revel,
matéria me dará ao novo canto.

Faze-me, ó bom Apolo, o teu fiel seguidor,


nesta faina derradeira,
como os que escolhes para o grão laurel.

[...]

Se o grão poder me fores estendendo


por que o reflexo, ao menos, do esplendor
celeste, como o vi, vá descrevendo,

tu me verás chegar ao lenho em flor


e cingir o laurel, dele somente
pelo tema e por ti merecedor.
(Par. I, 10-15; 22-27, grifos nossos)

Nessa necessidade de contar o que viveu, Dante-narrador torna-se


necessário para que o processo de conhecimento de si-mesmo como indivíduo, um ser
humano único, seja possível. O ato de narrar acrescenta a esse personagem-narrador a
capacidade criativa e transformadora, de ter o controle sobre o que irá revelar e o que
deixará de mencionar para seu leitor.
Assim, Dante-narrador se torna um duplo de Dante Alighieri como autor de
si-mesmo. É capaz de alcançar o empíreo e de ver toda a plenitude do Paraíso. Em
conformidade com o que ressalta Jung − “só aquilo que somos realmente tem o poder de
curar-nos” (2011, p. 57) − no ápice do Paraíso, Dante consegue curar-se, tornar-se si-
mesmo, atravessando seus desdobramentos e reintegrando-se ao todo, ao sagrado, ao
universal. Compreendendo, assim, o amor que tudo move.

REFERÊNCIAS

ALIGHIERI, Dante. A divina comédia. Trad., introd. e notas de Cristiano Martins. 8.ed.
Belo Horizonte: Itatiaia, 2006.

ALIGHIERI, Dante. Monarquia. Trad., introd. e notas de Hernâni Donato. São Paulo:
Ícone, 2006b.

ANDERSON, William. Dante the maker. Glenshaw – PA: S4N Books, 2010.

BOYDE, Patrick. Perception and passion in Dante’s Comedy. Londres: Cambridge


University Press, 2006. (e-book)
JUNG, C.G.. Tipos Psicológicos. 5.ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2012. Vol. 6.
JUNG, C.G.. O eu e o inconsciente. Trad. Dora Ferreira da Silva. 23. ed. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2011.

MANDELSTAM, Osip. Conversation about Dante. In: HAWKINS, Peter S.; JACOFF,
Rachel (ed.) The poets’ Dante. New York: Farrar, Straus and Giroux, 2001. p. 40-93.

PAZ, Octavio. O arco e a lira. Trad. Ari Roitman e Paulina Wacht. São Paulo: Cosac
Naify, 2012.

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