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CONHECIMENTO DE SI-MESMO
Letícia Cristina Alcântara Rodrigues
Dessa forma, o épico do poeta florentino assume tons líricos, em que são
exacerbados os sentimentos do protagonista, suas ações únicas de homem que está vivo
em um universo de almas em eterna punição, ou purgando seus pecados para ascender à
glória da salvação. Conforme assegura Osip Mandelstam (2001, p. 40-41), “ele [Dante
Alighieri] é um estrategista da transmutação e hibridização” 3, utilizando-se dos modelos
clássicos com os quais teve contato, assim como dos filósofos e conhecimentos de seu
3
“He is a strategist of transmutation and hybridization” (MANDELSTAM, 2001, p. 40-41).
tempo, para construir um mundo, que, ainda nas palavras de Mandelstam (1971, p. 415
apud ANDERSON, 2010, p. 245),tornam a Commedia “um cristal único com 13 mil
faces”4. Para Dante, a salvação está além de chegar ao Paraíso ou vislumbrar a luz
divina, está na percepção de que ele, indivíduo, vivo, é senhor de seu destino, é capaz,
por meio de suas ações, retirar-se ou pôr-se em um caminho.
No primeiro verso da Commedia, Dante-narrador já está em outro tempo, como
ressalta Patrick Boyde (2006, p. 3):
nos ajuda a ver que o protagonista é retratado com afastamento crítico por
parte do autor do poema, que escreve a partir do ponto de vista superior da
maturidade completa obtida na terceira idade. Isso nos prepara para
reconhecer que Dante, o autor, representa seu self mais jovem, rebelde, como
um representante típico daquele momento da vida, como alguém que
manifesta tanto as fraquezas quanto os “sinais” da bondade inata cuja teoria
nos levaria a esperar em um homem bem-dotado durante seus anos
intermediários. Tomadas juntas, essas considerações nos lembram de que o
Dante peregrino é um personagem em um trabalho de ficção: ele é
parcialmente atraído pela vida, em parte uma criação livre e, em parte,
modelado sobre um tipo. (p. 3, grifos do autor, tradução nossa)5
Além disso, nos séculos XII e XIII, há pensadores que já apresentavam a questão
do indivíduo que parte em busca do autoconhecimento. Encontramos essa jornada em
busca de si-mesmo no relato de Dante-narrador, que, após reviver sua viagem,
compreende-se como ser humano, criador de si-mesmo e de seu destino.
Para o homem medieval, e não podemos esquecer que Dante Alighieri é um
autor tipicamente medieval, existia uma força que o movia – a Providência – que, assim
como a liberdade, provinha da graça de Deus6. Essas duas forças, paradoxais – pois, se
havia uma Providência, como o homem poderia ser livre, ou se ele era livre, e isso fazia
com que ele agisse, como sua ação poderia ser contrária a Deus ?– criaram no homem
medieval não um nó de forças contrárias como no homem grego – dividido entre o
destino e a liberdade7, mas um “palco ocupado por dois atores: Deus e o Diabo” (PAZ,
2012, p. 217), que tendiam a atrair o ser humano.
São esses dois atores que motivam a Commedia, pois foi para escapar do
Demônio que Dante percorreu os reinos do além-morte, conheceu frente a frente o Mal
por excelência – congelado no Cocito, condenado e condenando os traidores ao suplício
–, em busca de, finalmente, por meio da purgação de seus pecados, contemplar a força
motriz do mundo, Deus.
No decorrer do caminho percorrido por Dante, encontramos a fragilidade
humana cada vez mais reforçada na personagem, seja por meio dos medos enfrentados,
das dores visualizadas, da ira, seja na alegria pelo encontro com outras personagens,
seja na beleza contemplada e admiração por Beatrice. A humanidade em Dante é
reforçada até a plenitude alcançada no Paraíso.
Dessa forma, Dante Alighieri cria para si-mesmo suas personas: Dante-
narrador, Dante-peregrino, e Dante-autor. A jornada empreendida encoraja o homem –
poeta florentino – a conhecer-se a si-mesmo, em busca de se tornar o ser único que de
fato é.
É importante ressaltar a divisão entre Dante-peregrino e Dante-narrador.
Essa complexidade nos encaminha para a diferença existente entre um e outro, pois o
segundo é um pouco mais velho do que o primeiro. O protagonista não conhece seu
trajeto, não sabe o que o aguarda, restando-lhe interrogar, se compadecer das almas ou
se irar em decorrência do que ouve ou vê, experimentando uma variedade de
sentimentos – angústia, temor, curiosidade ou piedade, entre outros 8. Já o narrador
possui conhecimento do que lhe aconteceu na sua totalidade e singularidade, assumindo
a missão de relatar sua experiência, como exprime na sua obra:
8
A professora Henriete Karam aponta tais aspectos em ensaio intitulado “A representação e a expressão
do eu na Divina Comédia de Dante Alighieri”, que consta dessa coletânea.
Na verdade, quanto eu do reino santo
pude na mente conservar, revel,
matéria me dará ao novo canto.
[...]
REFERÊNCIAS
ALIGHIERI, Dante. A divina comédia. Trad., introd. e notas de Cristiano Martins. 8.ed.
Belo Horizonte: Itatiaia, 2006.
ALIGHIERI, Dante. Monarquia. Trad., introd. e notas de Hernâni Donato. São Paulo:
Ícone, 2006b.
ANDERSON, William. Dante the maker. Glenshaw – PA: S4N Books, 2010.
MANDELSTAM, Osip. Conversation about Dante. In: HAWKINS, Peter S.; JACOFF,
Rachel (ed.) The poets’ Dante. New York: Farrar, Straus and Giroux, 2001. p. 40-93.
PAZ, Octavio. O arco e a lira. Trad. Ari Roitman e Paulina Wacht. São Paulo: Cosac
Naify, 2012.