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O INTERESSANTE CASO DA FÉ DE 

JESUS

Marcelo Berti 1
marcelo.berti@gmail.com

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“Justiça de Deus mediante a fé em Jesus Cristo para todos os que creem” (Rm 3.22)

É bem provável que o nosso leitor já tenha lido, estudado e quem sabe ensinado o texto de Romanos
3.22. Esse texto é bem conhecido entre os cristãos evangélicos, em especial pelos reformados. A
centralidade da fé em Cristo como critério da obtenção da justiça que vem de Deus é fundamental
para a teologia reformada e parte integral da teologia evangélica. Contudo, o que talvez nosso leitor
não saiba é que existe nesse texto um dilema de tradução que poderia oferecer uma perspectiva
interessante sobre o ensino de Paulo aqui.

A expressão grega δικαιοσύνη δὲ θεοῦ διὰ πίστεως Ἰησοῦ Χριστοῦ (justiça de Deus mediante a fé
em Jesus Cristo, NVI) além da interpretação tradicional (fé em Jesus) poderia ser entendida como se a
fé/fidelidade de Cristo estivesse em foco aqui. Em outras palavras, o texto poderia dizer que a justiça
de Deus  se manifestou (v. 21) não mediante a  fé em Jesus, mas por causa da  fidelidade de Jesus. A
diferença entre essas duas leituras é significativa, e faremos bem em prestar atenção nas
possibilidades exegéticas aqui.

INTRODUÇÃO: ENTENDA O CASO


A leitura tradicional (fé em Jesus), também chamada de  leitura antropológica, é encontrada em
todas as versões em português (cf. ARA, ARC, ACF, NVI, NVT) e é a mais comumente encontrada nos

1Bacharel em Missões pelo Seminário Bíblico Palavra da Vida e Mestre em Teologia pelo Dallas Theological
Seminary, Marcelo Berti é editor do Teologando e atualmente está iniciando um processo de plantação da
Igreja Batista Fonte SP na cidade de São Paulo. É casado com a Gabriela Sachi e pai do Nathan e da Melissa. 
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comentários, sejam eles populares 2 ou não, 3 e em alguns artigos teológicos.4 A leitura


alternativa  (fidelidade de  Jesus),  também conhecida como  leitura cristológica, além de
desconhecida nas versões em português, é raramente apresentada nos comentários de Romanos.5 Por

2 F. F. Bruce, Romans: An Introduction and Commentary. Tyndale New Testament Commentaries (Downers
Grove: InterVarsity Press, 1985); John R. W. Stott, The Message of Romans: God’s Good News for the World. The
Bible Speaks Today (Downers Grove: InterVarsity Press, 2001); Grant R. Osborne, Romans. The IVP New
Testament Commentary Series (Downers Grove: InterVarsity Press, 2004); Jack Cottrell,  Romans. Vol. 1. The
College Press NIV Commentary (Joplin: College Press Pub. Co., 1996); R. C. H. Lenski, The Interpretation of St.
Paul’s Epistle to the Romans (Columbus: Lutheran Book Concern, 1936); John A. Witmer, “Romans”. In: The Bible
Knowledge Commentary: An Exposition of the Scriptures, editado por J. F. Walvoord e R. B. Zuck (Wheaton: Victor
Books, 1985); Marvin Richardson Vincent, Word Studies in the New Testament (New York: Charles Scribner’s Sons,
1887); A. T. Robertson, Word Pictures in the New Testament (Nashville: Broadman Press, 1933).
3 James D. G. Dunn, Romans 1–8. Word Biblical Commentary (Dallas: Word, Incorporated, 1998); John Murray,
The Epistle to the Romans. The New International Commentary (Grand Rapids: Eerdmans, 1968);  Robert
H. Mounce, Romans. The New American Commentary (Nashville: Broadman & Holman Publishers, 1995); C. K.
Barrett,  The Epistle to the Romans. Ed. rev. Black’s New Testament Commentary (London: Continuum,
1991); Douglas J. Moo, The Epistle to the Romans. (Grand Rapids: Eerdmans, 1996); Everett F. Harrison e Donald
A. Hagner. “Romans”. In: The Expositor’s Bible Commentary: Romans–Galatians (ed. rev.), editado por Tremper
Longman III & David E. Garland (Grand Rapid: Zondervan, 2008); Craig  Keener, Romans. New Covenant
Commentary Series (Eugene: Cascade Books, 2009);  Thomas R. Schreiner,  Romans. Baker Exegetical
Commentary (Grand Rapids: Baker, 1998). Ver também, Gordon D.  Fee,  Pauline Christology: An Exegetical-
Theological Study  (Peabody:  Hendrickson, 2007);  A. Schlatter,  Romans: The Righteousness of God  (Peabody:
Hendrickson, 1995).
4 A. Hultgren, “Pistis Christou Formulation in Paul”. Novum Testamentum 22.3 (1980): 248-63; James D. G. Dunn,
“Once More, PISTIS CRISTOU” in The Faith of Jesus Christ: The Narrative Substructure of Galatians 3:1–4:11, por
Richard B. Hays, 249-271 (Grand Rapids: Eerdmans, 2002); Moisés Silva, “Faith versus Works of Law in Galatians”
in: Justification and Variegated Nomism, vol. 2: The Paradoxes of Paul, editado por Peter T. O’Brien, D. A. Carson e
M. A. Seifrid, 217-248 (Grand Rapids: Baker, 2004); R. B. Matlock, “‘Even the Demons Believe’: Paul and πιστίς
Χριστοῦ”.  Catholic Biblical Quarterly  64.2 (2002): 300-318;  Stanley E. Porter e Andrew W. Pitts, “Πίστις with a
Preposition and Genitive Modifier: Lexical, Semantic, and Syntactic Considerations in the Πίστις Χριστοῦ
Discussion”. In: The Faith of Jesus Christ, editado por Michael F. Bird e P. M. Sprinkle, 33-53 (Grand Rapids: Baker,
2010).
5 Richard N. Longenecker, The Epistle to the Romans. New International Greek Testament Commentary (Grand
Rapids: Eerdmans, 2016);   Ben Witherington III e Darlene Hyatt, Paul’s Letter to the Romans: A Socio-Rhetorical
Commentary (Grand Rapids: Eerdmans, 2004);  N. T. Wright,  Paul for Everyone: Romans Part 1: Chapters 1-8
(London: Society for Promoting Christian Knowledge, 2004); Robert  Jewett,  Romans: A Commentary.
Hermeneia (Minneapolis: Fortress, 2007); Frank J. Matera, Galatians. Sacra Pagina (Collegeville: Liturgical,
1992); Leon Morris, The Epistle to the Romans. The Pillar New Testament Commentary (Grand Rapids:
Eerdmans, 1988). Morris apesar de apresentar a possibilidade dessa leitura, defende a mais improvável de todas
elas: Paulo pode estar defendendo as duas ideias ao mesmo tempo.

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outro lado, essa leitura tem ganhado recente suporte e é apresentada em algumas gramáticas,6
defendida em alguns livros 7 e em periódicos de teologia.8

A diferença entre essas duas leituras subjaz no uso do genitivo Ἰησοῦ Χριστοῦ [de Jesus Cristo]
em Romanos 3.22. A questão é se esse genitivo deve ser entendido de modo objetivo (leitura
antropológica) ou subjetivo (leitura cristológica). O dilema é assim apresentado porque entende-se
que em alguns casos uma construção modificada por um substantivo no genitivo pode conter
um processo verbal implícito no qual o genitivo pode ser (1) ou o objeto dessa ideia verbal ou (2) o
sujeito da mesma.

6 Favorece a leitura cristológica, Daniel B. Wallace, Greek Grammar Beyond the Basics: An Exegetical Syntax of
the New Testament with Scripture, Subject, and Greek Word Indexes (Grand Rapids: Zondervan, 1997);  Max
Zerwick,  Biblical Greek Illustrated by Examples. Edição em inglês adaptada da quarta edição latina (Rome:
Pontificio Istituto Biblico, 1963). Não oferecem soluções definitivas, Stanley E. Porter, Idioms of the Greek New
Testament (Sheffield: JSOT, 1999);  Andreas J. Köstenberger, Benjamin L.  Merkle e Robert L.  Plummer,  Going
Deeper with New Testament Greek: An Intermediate Study of the Grammar and Syntax of the New Testament
(Nashville: B&H Academic, 2016); David L. Mathewson e Elodie Ballantine Emig, Intermediate Greek Grammar:
Syntax for Students of the New Testament (Grand Rapids: Baker Academic, 2016).  Tanto Köstenberger, como
Mathewson e Porter entendem que o dilema não pode ser decidido por questões gramaticais ou sintáticas
apenas, mas que o contexto é quem tem primazia na decisão aqui. Em outras publicações, Porter assume a
leitura antropológica (cf. Porter-Pitts, “Πιστίς with a Preposition and Genitive Modifier: Lexical, Semantic, and
Syntactic Considerations in the πιστίς Χριστοῦ Discussion”).
7 N. T. Wright, Paul and the Faithfulness of God (Minneapolis: Fortress Press, 2013); Richard B. Hays The Faith of
Jesus Christ: the Narrative Substructure of Galatians 3:1-4:11. 2a ed. (Grand Rapids: Eerdmans, 2002); Michael F.
Bird e Preston M.  Sprinkle (orgs.),  The Faith of Jesus Christ, The: Exegetical, Biblical, and Theological Studies
(Grand Rapids: Baker Academic, 2010); Richard N. Longenecker, Paul, Apostle of Liberty. 2a ed. (Grand Rapids:
Eerdmans, 2015); I. G. Wallis,  The Faith of Jesus Christ in Early Christian Traditions  (Cambridge: Cambridge
University Press, 1995);  Douglas A. Campbell, The Rhetoric of Righteousness in Romans 3.21-26 (Sheffield:JSOT
Press, 1992);  Douglas A. Campbell, The Quest for Paul’s Gospel: A Suggested Strategy (London: T&T Clark, 2005);
D. A. Campbell, The Deliverance of God: An Apocalyptic Rereading of Justification in Paul (Grand Rapids:
Eerdmans, 2009); George  Howard, “Faith: ‘Faith of Christ’”. In: The Anchor Yale Bible Dictionary, editado por
David Noel Freedman, 2:758-760 (New York: Doubleday, 1992); S. K. Williams, Jesus as Saving Event (Missoula:
Scholars, 1975); C. E. B. Cranfield, On Romans and Other New Testament Essays (Edinburg: T&T Clark, 1998).
8 George  Howard, “The ‘Faith of Christ’”.  The Expository Times 85.7 (1974): 212-15; Morna D.  Hooker, “Πίστις
Χριστοῦ”.  New Testament Studies  35.3 (1989): 321-42;  S. K. Williams, “Again Pistis Christou”.  Catholic Biblical
Quarterly  49.3 (1987): 431-47; Markus Barth, “The Faith of the Messiah”. Heythrop Journal 10 (1969): 363-70; J. J.
O’Rourke, “Pistis in Romans”. Catholic Biblical Quarterly, 35.1 (1973): 188-94; S. K. Williams, “The ‘Righteousness
of God’ in Romans”. Journal of Biblical Literature 99.2 (1980): 272-78; Luke T. Johnson, “Romans 3:21-26 and the
Faith of Jesus”. Catholic Biblical Quarterly, 44.2 (1982): 77-90; L. E. Keck, “’Jesus’ in Romans”. Journal of Biblical
Literature, 108.3 (1989): 443-60.

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GRAMÁTICA: O QUE SÃO OS GENITIVOS VERBAIS?


Em algumas construções específicas, o genitivo pode ser usado no grego koinê para descrever o
sujeito ou o objeto do processo verbal que o substantivo modificado por ele parece indicar. 9 De
acordo com Köstenberger et al., “o uso verbal do genitivo ocorre quando o genitivo é relacionado a
um substantivo que comunica uma ação que poderia ser ‘transformado’ em um verbo”. 10  Já
Mathewson e Emig descrevem esses genitivos da seguinte forma:
Quando um genitivo restringe um substantivo que pode indicar um processo verbal
(comumente esse substantivo tem   um verbo cognato, e.g., ἀγάπη [amor] e ἀγαπάω [amar],
este pode ser subjetivo ou objetivo. Se o genitivo é o agente do processo verbal, ele pode ser
denominado como  subjetivo. Se o genitivo é o objeto do processo verbal, ele pode ser
denominado objetivo.11

De acordo com Wallace, essa categoria de genitivo é léxico-sintática, isto é, acontece apenas
em algumas construções cujo substantivo modificado pelo genitivo expressa um processo verbal.12
Esse processo verbal é, como mencionado por Mathewson e Emig, normalmente expresso pela forma
verbal cognata do substantivo em questão. Além disso, a ideia verbal expressa por essa construção
deve ser necessariamente transitiva se o  genitivo  objetivo  é esperado. Por outro lado,  o genitivo
subjetivo pode acontecer com substantivos cuja ideia verbal seja transitiva ou intransitiva, mas nunca
com verbos de ligação. Abaixo, apresento alguns exemplos dessas categorias com a intenção de
demonstrar a validade dessas categorias sintáticas e clarificar as definições acima mencionadas.

Genitivo Subjetivo

Um exemplo interessante do genitivo subjetivo é encontrado em Romanos 8.35: τίς ἡµᾶς χωρίσει ἀπὸ
τῆς ἀγάπης τοῦ Χριστοῦ (NVI: Quem nos separará do amor de Cristo). Observe que do modo como o
texto é traduzido para o português alguém poderia perguntar se a expressão “de Cristo” significa o
amor que Cristo possui, ou o amor que vem de Cristo ou o amor que Cristo tem. Note, entretanto, que
nesse caso o genitivo τοῦ Χριστοῦ modifica o substantivo τῆς ἀγάπης (o amor), um substantivo que
tem um verbo cognato (ἀγαπάω). Nesse caso, o processo verbal aqui descrito poderia ter o
genitivo τοῦ Χριστοῦ funcionando ou como o sujeito (agente) do processo verbal, ou como o objeto do

9 Considere também a discussão dessa categoria de genitivo nas seguintes gramáticas, Richard A.  Young,
Intermediate New Testament Greek: A Linguistic and Exegetical Approach (Nashville: B&H Academic, 1994),
30-31; Friedrich Blass, Albert Debrunner, e Robert Walter Funk,  A Greek Grammar of the New Testament and
Other Early Christian Literature (Chicago: University of Chicago Press, 1961), 89-93;  A. T.  Robertson, A Grammar
of the Greek New Testament in the Light of Historical Research. Edição digital  (Bellingham: Faithlife, 2006),
499-501; C. F. D.  Moule, An Idiom Book of New Testament Greek. 2a ed. (New York: Cambridge University Press,
1959), 39-40. Uma versão sintética do caso também pode ser vista em H. E. Dana e Julius R. Mantey, A Manual
Grammar of the Greek New Testament (Ontario: Macmillan Company, 1957), 78-79.
10 Köstenberger (et al.), Going Deeper with New Testament Greek, 96.

11 Mathewson e Emig, Intermediate Greek Grammar, 14.

12Ver Wallace, Greek Grammar Beyond the Basics, 112-119, para uma boa apresentação de como esse genitivo é
identificado.

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mesmo. Em outras palavras, o genitivo poderia ser objetivo e descrever o amor do qual Cristo é o
objeto (o amor que temos a Cristo); ou poderia ser um genitivo subjetivo e descrever o amor que
Cristo tem por nós. Nesse caso, parece contextualmente óbvio que “nada pode nos separar do amor
que Cristo tem por nós”, fazendo o uso do genitivo claramente subjetivo. Nesse caso, seria equivocado
traduzir essa expressão como um genitivo objetivo.

Outro caso que nos ajuda a compreender essa categoria é  1João 4.9:  ἐν τούτῳ ἐφανερώθη ἡ
ἀγάπη  τοῦ θεοῦ  ἐν ἡµῖν (ARA:  Nisto se manifestou o amor  de Deus  para conosco). Novamente, o
genitivo aqui modifica um substantivo cuja ideia verbal é transitiva. Idealmente, o genitivo τοῦ θεοῦ
poderia ser o objeto do processo verbal descrito pelo substantivo articulado ἡ ἀγάπη (o amor), dando
a entender o amor que temos a Deus; ou poderia ser o sujeito do mesmo processo, e descrever o amor
que Deus tem por nós. Contextualmente, entretanto, o complemento ἐν ἡµῖν (para conosco, por nós)
exige que o genitivo aqui seja tomado como subjetivo, já que o objeto do processo verbal descrito
por  ἡ ἀγάπη torna-se explícito nesse complemento. Em outras palavras, o texto fala que “nisto foi
manifesto o amor que Deus tem por nós”.

Genitivo Objetivo

O genitivo objetivo, como já mencionado, é aquele que modifica um substantivo cuja ideia verbal é
transitiva e faz do genitivo seu objeto. Um exemplo interessante dessa categoria é  Mateus 13.31:  ἡ
δὲ  τοῦ πνεύµατος  βλασφηµία οὐκ ἀφεθήσεται (lit.  mas a blasfêmia  do Espírito  não será perdoada).
Observe que o genitivo τοῦ πνεύµατος modifica o substantivo βλασφηµία (blasfêmia) cuja ideia verbal
pode ser transitiva (cf. βλασφηµέω, Tg 2.7). Nesse caso, é possível que o genitivo esteja sendo usado
como objeto do processo verbal. Note, entretanto, que se a expressão ἡ τοῦ πνεύµατος βλασφηµία (lit.
a blasfêmia do Espírito) fosse um genitivo subjetivo, ela deveria ser entendida como a blasfêmia que
o Espírito realiza. Ao passo que, se tomada com o genitivo objetivo, a mesma expressão poderia ser
traduzida como a blasfêmia cometida contra com Espírito. Contextualmente, parece claro que essa
segunda opção é exatamente o sentido esperado aqui.

Outro exemplo interessante e significativo para nosso entendimento de Romanos 3.22,


é  Marcos 11.22:  ἔχετε πίστιν  θεοῦ  (NVI:  Tenham fé  em Deus). Como nos outros casos,  θεοῦ  (lit.  de
Deus)  modifica o substantivo  πίστις (fé), cuja ideia verbal pode ser transitiva no Novo Testamento
(πιστεύω em Lc 16.11; Jo 2.24). Caso θεοῦ fosse aqui entendido como o sujeito da ideia verbal de πίστιν,
a ideia seria: “Tenham fé como aquela que  Deus tem”. Ainda que possível, essa tradução parece
contextualmente improvável. Por outro lado, a ideia do genitivo objetivo parece se adequar
perfeitamente aqui: “Tenham fé em Deus”. Nesse caso, Deus seria o objeto da fé dos discípulos. Por ser
um caso sintaticamente semelhante àquele encontrado em Romanos 3.22, por usar o mesmo
substantivo (πίστις) modificado pelo genitivo em questão, muitos comentaristas ilustram sua decisão
em Romanos 3.22 usando esse mesmíssimo texto.

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TEOLOGIA: O QUE O TEXTO NOS ENSINA?


Tendo demonstrado o dilema de tradução de Romanos 3.22, e as possíveis opções gramaticais acima
mencionadas, é oportuno demonstrar como esse dilema tem sido entendido nos comentários e quais
são as implicações teológica das diferentes interpretações desse texto.

Leitura Antropológica

A leitura tradicional, i.e., por meio da fé em Jesus, é defendida pelos seguintes argumentos derivados
do contexto e da teologia de Paulo:

(1)  Ênfase: No que se refere a aparente repetição de ideias na sentença “διὰ πίστεως Ἰησοῦ
Χριστοῦ εἰς πάντας τοὺς πιστεύοντας” (por meio da fé em Jesus para todos os que creem), defensores do
uso objetivo do genitivo entendem que Paulo aqui enfatiza a necessidade da fé.13 Em resposta,
defensores da leitura cristológica entendem que isso seria uma tautologia.

(2) Contexto Imediato: Fica evidente pelo contexto imediato que a fé em Jesus está em vista
aqui no v. 26: εἰς τὸ εἶναι αὐτὸν δίκαιον καὶ δικαιοῦντα τὸν ἐκ πίστεως Ἰησοῦ (para se tornar o justo e o
justificador daqueles que [têm]  fé em Jesus).14 Em resposta, os defensores da leitura cristológica
afirmam que enquanto o contexto é claro no v. 26, o mesmo não pode ser dito do v. 22. Moo oferece
um argumento mais convincente ao dizer que a expressão  πιστίς Χριστοῦ (v. 22) poderia indicar a
fidelidade de Cristo (cf.  Rm 3.3) e que Paulo defende a relação entre a obediência e fidelidade de
Cristo e a nossa justificação (cf. Rm 5.19), mas que nada no contexto parece exigir tal interpretação. 15

(3) Uso do Artigo: O argumento aqui é que se πιστις aparece articulado, então o sentido deve
ser objetivo; caso seja usado de modo anártro, então o sentido deve ser subjetivo.16 Mesmo
defendendo a leitura antropológica, Moisés Silva não parece encontrar nesse argumento qualquer
validade.17

(4) Contraste entre obras da lei e fé em Cristo: O contraste entre a expressão ἔργων νόµου


(lit.  obras da lei;  cf.  v. 20) e  πιστίς Χριστοῦ (v. 22) sugerem que as duas expressões devem ser
entendidas como sendo centradas no homem. Uma vez que tal contraste aparece com certa
frequência nos escritos paulinos (cf. Rm 3.28, 4.5, 4.13-16, 9.32, 10.4; Gl 2.16, 3.2, 3.5, 3.11-12, 3.23-26; Ef
2.8; Fp 3.9), os defensores da leitura antropológica usam tal contraste para demonstrar o sentido

13 Ver Dunn, Romans 1–8, 166; Murray, The Epistle to the Romans, 371.

14 Ver Bruce, Romans, 107; Barrett, The Epistle to the Romans, 70; Mounce, Romans, 114-5.

15 Moo, The Epistle to the Romans, 225.

16Ver Porter e Pitts, “Πιστίς with a Preposition and Genitive Modifier”, 49-51; Hultgren, “Pistis
Christou Formulation in Paul”, 253; Dunn, “Once More, PISTIS CRISTOU”, 253; Fee, Pauline Christology, 224-5.
17Silva, “Faith versus Works of Law in Galatians”, 227. Silva é seguido aqui por  Hays The Faith of Jesus Christ,
295), Williams, “Again Pistis Christou”, 432 e Wallis, The Faith of Jesus Christ in Early Christian Traditions, 70 n.
26.

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objetivo do genitivo da expressão πιστίς Χριστοῦ.18 Por outro lado, esse contraste poderia sugerir que
enquanto  ἔργων νόµου descreve o esforço humano,  πιστίς Χριστοῦ descreve a ação divina, como os
defensores da leitura cristológica preferem argumentar.

(5)  Linguagem Paulina:   Α expressão πιστίς ἐν Χριστῷ  (lit.  fé em Cristo)  não  é comum em
Paulo, por isso ele usa πιστίς Χριστοῦ. Moisés Silva defende que a audiência de fala grega entenderia a
expressão  πιστίς Χριστοῦ de modo objetivo. 19 Em resposta a essa afirmação, defensores da leitura
cristológica apontam ocasiões em que Paulo utiliza πιστίς ἐν Χριστῷ em suas cartas (cf. Rm 3.25; Gl
3.26; Ef 1.15). Além disso, o uso da expressão  πίστις ἐν Χριστῷ não pode determinar as nuances
semânticas do genitivo na expressão πιστίς Χριστοῦ.

(6)  O uso da expressão em Gálatas: Em Gálatas 2.16 vemos mais uma expressão que os
defensores da  leitura antropológica  entendem ser a melhor explicação para a expressão  πιστίς
Χριστοῦ: διὰ πίστεως Ἰησοῦ Χριστοῦ, καὶ ἡµεῖς εἰς Χριστὸν Ἰησοῦν ἐπιστεύσαµεν (NVI: mediante a fé em
Jesus Cristo. Assim, nós também cremos em Cristo Jesus). Nesse caso, a expressão εἰς Χριστὸν Ἰησοῦν
ἐπιστεύσαµεν (cremos em Cristo) explicaria a expressão anterior sugerindo que o genitivo  Χριστοῦ
deve ser entendido de modo objetivo.20

A teologia dessa leitura é comumente conhecida e difundida entre os cristãos. Por ser a mais
conhecida das possíveis interpretações desse texto, não precisamos nos delongar em sua defesa ou
explicação. John Murray expressa muitíssimo bem a teologia desse texto de acordo com a leitura
antropológica:
Ao representar Jesus Cristo como objeto de fé, o apóstolo traz à tona uma consideração que
não havia sido expressamente declarada até agora nesta epístola. A fé que é trazida em relação
à justificação não é uma fé geral em Deus; Muito menos é fé sem conteúdo bem definido e
inteligível. É a fé dirigida a Cristo, e quando é denominado “Jesus Cristo”, estes títulos são
fundamentais de tudo o que Jesus era e é pessoal, historicamente e oficialmente. É Jesus Cristo
de acordo com Romanos 1: 3, 4, que é o objeto da fé justificadora. Em termos dos versículos 21,
22, é essa fé que nos coloca em relação efetiva à justiça de Deus. Nos versículos sucessivos, o
apóstolo define a realização de Cristo pelo qual ele é constituído o objeto apropriado desta fé,
uma realização definida como redenção, propiciação e reivindicação da justiça. É Jesus Cristo
na eficácia que lhe pertence como redentor e propiciador que é o objeto próprio da fé. A fé
está focada nele no caráter específico que é dele como Salvador, Redentor e Senhor.21

Ver Murray, The Epistle to the Romans, 365-67; Keener, Romans, 57; Fee, Pauline Christology, 226; Dunn, “Once
18

More, PISTIS CRISTOU”, 270-71; Hultgren; “Pistis Christou Formulation in Paul”, 258-59.


19Silva, “Faith versus Works of Law in Galatians”, 228-30. Argumentos similares foram apresentados por
Hultgren, “Pistis Christou Formulation in Paul”, 254; Matlock, “‘Even the Demons Believe’”, 306.
20Ver Murray, The Epistle to the Romans, 371; Hultgren, “Pistis Christou  Formulation in Paul”, 255; Schreiner,
Romans, 185, Silva, “Faith versus Works of Law in Galatians”, 232, Fee, Pauline Christology, 224; Matlock, “‘Even
the Demons Believe’”, 83-86.
21 Murray, The Epistle to the Romans, 111.

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Leitura Cristológica

A leitura cristológica,  i.e.  por meio da fidelidade  de  Jesus, é defendida pelos seguintes argumentos
derivados do contexto e da teologia de Paulo:

(1) Tautologia: No que se refere à aparente repetição de ideias na sentença “διὰ πίστεως Ἰησοῦ
Χριστοῦ εἰς πάντας τοὺς πιστεύοντας” (por meio da fé em Jesus para todos os que creem), defensores do
uso objetivo do genitivo entendem que repetição de ideias aqui se parece com uma tautologia
desnecessária.22 É evidente que repetições similares a essa acontecem em outros lugares, 23 mas no
caso específico de Romanos 3.22 os defensores da leitura cristológica o vêem como desnecessário.
Apesar de ser utilizado repetidamente, esse argumento parece ser tão irrelevante na decisão da
questão que poderia ser descartado, como sugere Campbell, um defensor da leitura cristológica.24

(2) Função de pistis: Uma crítica que aparece frequentemente entre os defensores da leitura
antropológica é que no argumento de Paulo, pistis funciona como um ato de auto-revelação divina:
“Νυνὶ δὲ χωρὶς νόµου δικαιοσύνη θεοῦ πεφανέρωται (…) διὰ πίστεως Ἰησοῦ Χριστοῦ” (mas agora, à parte de
lei, se manifestou a justiça de Deus […] por meio pisteōs Iēsou Cristou). Para os defensores da leitura
cristológica, parece pouco provável que a fé humana possa ser o meio pelo qual a justiça de Deus é
revelada.25 Se essa observação está correta, a leitura cristológica faz muito sentido contextualmente,
sugerindo que é na fidelidade de Cristo que a justiça de Deus é revelada àqueles que creem. Campbell
sugere que a fé é descrita aqui como assensus, e por isso responde a algo já revelado. 26 Em resposta a
essa observação, Schlatter sugere que a fé descrita aqui é causada pela justiça de Deus,27 de tal forma
que a fé humana é na verdade um ato iniciado na divindade. De fato, a teologia de Paulo parece
aceitar esse princípio em outros lugares, mas existe como validar essa interpretação teológica aqui?
Ao que parece, nenhum defensor da leitura antropológica conseguiu demonstrar isso
contextualmente, pelo menos até onde tenho conhecimento.

(3) O Uso de Habacuque: Para os defensores da leitura cristológica, o uso que Paulo faz de
Habacuque 2.4 em Romanos 1.17 e Gálatas 3.11 parece decidir a questão.28 O argumento sugere que o

22Ver Barth, “The Faith of the Messiah”, 368; O’Rourke, “Pistis in Romans”, 189; Williams, Jesus’ Death as Saving
Event, 47-48; idem, “The ‘Righteousness of God’ in Romans, 274, Johnson, “Romans 3:21-26 and the Faith of
Jesus”, 79; Hooker, “Πίστις Χριστοῦ”,  322, 336; Keck, “‘Jesus’ in Romans”, 454-56, Matera, Galatians, 100-101,
Howard, “Faith: ‘Faith of Christ’”, 758; Campbell, The Rhetoric of Righteousness in Romans 3.21-26, 64; Hays, The
Faith of Jesus Christ, 158.
23 Dunn, “Once More, PISTIS CRISTOU”, 262.

24 Campbell, The Quest for Paul’s Gospel, 221-2, n. 19.

25 Ver D. W. B. Robinson, “‘Faith of Jesus Christ’ – A New Testament Debate”. Reformed Theological Review 29
(1970), 80; Keck, “‘Jesus’ in Romans”, 456; Hays, The Faith of Jesus Christ, 158-60; Campbell, The Rhetoric of
Righteousness in Romans 3.21-26, 63; idem, The Quest for Paul’s Gospel, 197; idem, The Deliverance of God, 379.
26 Campbell, The Quest for Paul’s Gospel , 197; idem, The Deliverance of God, 68.
27 Schlatter, Romans, 94.

28Ver A. T. Hanson, Studies in Paul’s Technique and Theology (London: SPCK, 1974), 40-45; Douglas A. Campbell,
“Romans 1:17 – A Crux Interpretum for the Pistis Cristou Debate”. Journal of Biblical Literature 113.2 (1994): 281-84;
idem, The Deliverance of God, 613-16; Wallis, The Faith of Jesus Christ in Early Christian Traditions, 110-11.

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O INTERESSANTE CASO DA FÉ DE JESUS

“justo” de Habacuque é interpretado por Paulo em referência a Cristo Jesus. Dessa forma, a fidelidade
de Cristo até a morte e subsequente ressureição torna-se a referência da justiça divina oferecida por
Deus.29 Em resposta a essa observação, Cranfield pergunta se os leitores de Paulo teriam como
entender tal interpretação, tendo em vista que Cristo não se faz presente no contexto imediato de
Romanos 1.30 Entretanto, o argumento proposto por Hays e Campbell vai além de Romanos 1.17 e
Gálatas 3.13. De acordo com ambos, a expressão ek pisteōs é usada por Paulo somente em Romanos e
Gálatas. Para Campbell, por exemplo, todas vezes que Paulo usa essa expressão, ele faz referência à
Habacuque 2.4 como uma forma de demonstrar a fidelidade de Cristo.31 Em outras palavras, esse
argumento em defesa da leitura cristológica é dependente de uma leitura cristológica de Habacuque
e da subsequente interpretação Paulina dessa leitura.

(4) Fé singular e externa: Outro argumento em defesa da leitura cristológica encontra-se na


interpretação de Gálatas 3.23: “Antes que viesse esta fé, estávamos sob a custódia da Lei, nela
encerrados, até que a fé que haveria de vir fosse revelada”. De acordo com os defensores da leitura
cristológica, essa fé não expressa a chegada da  possibilidade  da fé, mas descreve uma fé que é
singular e externa. Dessa forma, essa fé que haveria de vir, não é o despertar interior e individual, mas
é um ato de fidelidade revelada [em Cristo]. Campbell sugere que essa “chegada” em Gálatas está
diretamente relacionada à “promessa” realizada em Cristo como nota-se em Gálatas 3.16, 19. Em
outras palavras, a semente prometida (singular) em 3.16 é Cristo e a lei foi colocada em seu lugar até
sua chegada em 3.19. Em 3.23 a fé (singular) é quem haveria de vir, e de acordo com Campbell, aqui a
referência é feita à fidelidade de Cristo.32 Dunn, entendendo a dificuldade em se interpretar a fé de
modo singular nesse verso, sugere que Paulo faz referência à “era da fé”  e defende que a resposta
humana é o “necessário complemento da vinda da semente”.33

A teologia derivada dessa leitura é interessante, e talvez Howard possa nos ajudar aqui:

É provável que a fórmula pistis Christou, especialmente quando ocorre em Romanos e Gálatas,


esteja relacionada principalmente à inclusão dos gentios. A fé de Cristo é o cumprimento da
promessa dada a Abraão de que todas as nações serão abençoadas nele. Cristo manteve a fé (=
fé de Cristo) com a promessa divina ao abrir as portas para as nações gentias. Para Paulo,
então, a doutrina da justificação pela fé é a doutrina pela qual Deus, pela fidelidade de Cristo,
uniu na era presente Israel e as nações, a fim de levá-las à fé em Deus e realizar a salvação da
humanidade.34

29 Hays, The Faith of Jesus Christ, 132-41.


30 Cranfield, On Romans and Other New Testament Essays, 88.

31Campbell, The Rhetoric of Righteousness in Romans 3.21-26, 67; idem, “Romans 1:17”, 283; idem, The Deliverance
of God, 58-60; cf. Hays, The Faith of Jesus Christ, 132-33.
32 Campbell, The Deliverance of God, 869.
33James D. G. Dunn, “EK PISTEWS: A Key to the Meaning of PISTIS CRISTOU”. In: The Word Leaps the Gap:
Essays on Scripture and Theology in Honor of Richard B. Hays, editado por J. R. Wagner, C. K. Rowe e A. K. Grieb
(Grand Rapids: Eerdmans, 2008), 351-66, esp. 364.
34 Howard, “Faith: ‘Faith of Christ’”, 760.

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O INTERESSANTE CASO DA FÉ DE JESUS

CONCLUSÃO
Tendo considerado os dilemas de tradução, as possibilidades gramaticais e as implicações teológicas
de cada uma dessas opções, duas conclusões são inevitáveis: (1) Uma decisão final aqui é
exegeticamente difícil; (2) a teologia de ambas as decisões são plausíveis. A questão, entretanto, é
como validar uma ou outra. Como o estudante de teologia pode ter certeza de qual interpretação
melhor representa o texto sagrado?

A resposta a essa pergunta não é simples, mas eu gostaria de oferecer algumas sugestões.

(1) Respeite o dilema: Tendo observado os argumentos de cada lado do debate, é evidente


que existem pontos fracos e fortes em todos os argumentos. Ao que parece, com a exceção do
argumento (4) da leitura cristológica, todos os pontos afirmados em ambos os lados do debate têm
suas respostas plausíveis. Diante de tal cenário, a sugestão de Robert Jewett é importante: “Ambas as
teorias do genitivo objetivo e subjetivo, tal como atualmente apresentadas, têm suas falhas, portanto,
um alto grau de certeza não deveria ser reivindicado no processo de decidir entre elas”. 35

(2)  Entenda as limitações da gramática: Embora os argumentos baseados em gramática


tenham seu lugar na exegese do texto, a exegese não é feita de gramática apenas: o contexto ainda
permanece o rei. A exegese do texto não deve ser aprisionada à análise dos termos genitivos em
questão.

(3)  Entenda o lugar da teologia do autor: Ainda que a teologia do autor faça parte da
exegese em um caso como esse, o intérprete tem que ser cauteloso no seu uso. Podemos acabar
introjetando aspectos mais simples e claros em questões mais complexas e menos claras como uma
forma de explicar o dilema. Embora muito comum, essa é a forma mais comum
de  eisegese  encontrada nos dilemas exegéticos: não se decide dilemas gramaticais a partir da
teologia. O lugar da teologia de um autor é sempre o fim a que se dirige a exegese, e não o contrário. É
o texto que tem primazia à teologia (ad fontes).

(4)  Entenda o lugar da sua teologia: Se a teologia do autor pertence ao fim do processo
exegético, o que dizer da teologia do intérprete? É evidente que não temos como interpretar sem
nossas perspectivas e preferências, mas o intérprete tem a responsabilidade de ler o texto, antes de
teologizar sobre ele. O intérprete que é incapaz de ler o texto, antes de teologizar sobre ele, sempre
corre o risco de encontrar suas preferências teológicas no fim de seu processo exegético. Isso
acontece, porque tal intérprete usa a Escritura como espelho, ao invés de usá-la como uma janela
para enxergar aquilo que ela ensina. Eis aqui um dos maiores males da hermenêutica confessional: as
conclusões teológicas são feitas de ponto de partida para a exegese. Nesse método exegético, o
teólogo sempre encontra a si mesmo no texto. Alguns exemplos são aqui evidentes:

Em nenhum outro lugar Paulo afirma de modo claro (ao invés de uma expressão
preposicionada de sentido ambíguo), que nossa salvação depende da fidelidade de Cristo.36

35 Jewett, Romans, 277.

36 Fee, Pauline Christology, 225.

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O INTERESSANTE CASO DA FÉ DE JESUS

Se a fidelidade de Cristo fosse tão central para o pensamento de Paulo como essas
afirmações parecem sugerir, seria estranho, então, que suas cartas não tenham nenhuma
referência livre de ambiguidade referente a ela.37

Em outras palavras, como Paulo não é claro em outros lugares, logo esse sentido não é
possível aqui. Esse argumento, embora comumente apresentado por exegetas competentes,38 é
primário e equivocado. Se Romanos 3.22 fosse a única ocasião inequívoca que Paulo enfatizasse a
fidelidade de Cristo, nós precisaríamos reconhecer que, embora não fosse central à sua teologia, ou
ainda, que fosse um aspecto que não se encontra em nenhum outro lugar, ela ainda seria verdadeira
aqui. Esse tipo de argumento a partir da maioria inibe leituras singulares nas Escrituras, e projeta a
teologia do intérprete sobre o texto. Ainda que bem intencionada, essa é uma clara forma de eisegese.
Diga-se de passagem, um erro do qual todos nós somos passíveis.

(5) Entenda o cerne da questão: O cerne da questão não é se a expressão deva ser traduzida
como fé em Jesus ou como a fidelidade de Jesus. O debate já deixou claro que ambas as traduções são
possíveis. O cerne da questão é as implicações teológicas dessa expressão. O que Paulo quis dizer com
essa expressão e como isso se relaciona com sua teologia? Esse é o ponto. E nesse quesito a gramática
apenas nos aponta para as opções. O labor hermenêutico e teológico é necessário aqui.

Tendo dado esses conselhos, eu gostaria que o leitor soubesse que diante de tal dilema
exegético eu ainda não consegui definir minha opinião. De fato, a leitura antropológica, embora não
tenha me convencido, oferece uma conclusão teológica que mais facilmente se ajusta à visão que
tenho da teologia paulina. Por outro lado, os argumentos em defensa da leitura cristológica, tomados
no seu devido contexto, parecem coerentes para mim. Infelizmente, tal interpretação exige uma
reestruturação da visão que tenho da teologia de Paulo. Em outras palavras, ainda que a leitura
cristológica faça sentido, a conclusão teológica dela derivada pede um entendimento mais adequado
do modo como leio a teologia de Paulo.  Talvez eu precise estudar mais o assunto para definir a
questão. 

37 Cranfield, On Romans and Other New Testament Essays, 94.

38 Ver Dunn, “Once More, PISTIS CRISTOU”, 269 ; Schreiner, Romans, 185.

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