Você está na página 1de 13

CONSELHO EDITORIAL

Ana Luisa Rocha Mallet - Universidade Estácio de Sá


Carolina Magalhães de Pinho Ferreira - Universidade Federal do Rio de Janeiro
Carlos Dimas Martins Ribeiro - Universidade Federal Fluminense
Cinara Maria Leite Nahra - Universidade Federal do Rio Grande do Norte
SOBRE A LEITURA
Cristiane Maria Amorim Costa - Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Daniel Abreu de Azevedo - Universidade de Brasília
Uma análise perceptopolítica
Diana I. Pérez - Universidad de Buenos Aires
Diogo Gonçalves V. Mochcovitch - Universidade Federal do Rio de Janeiro
Fabio Alves Gomes de Oliveira - Universidade Federal Fluminense
Guilherme Dias da Fonseca – Université Clermont Auvergne | França
Maria Clara Marques Dias - Universidade Federal do Rio de Janeiro
Martina Davidson - Universidade Federal Fluminense
Manuel Villoria Mendieta - Universidad Rey Juan Carlos | Espanha
Maria Andréa Loyola - Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Michelle Cecille Bandeira Teixeira - Universidade Federal Fluminense
Murilo Mariano Vilaça - Fundação Oswaldo Cruz
Paula Gaudenzi – Fundação Oswaldo Cruz
Rafael Ioris – University of Denver | EUA
Rafael Haddock-Lobo - Universidade Federal do Rio de Janeiro
Renata Ramalho Oliveira Ferreira - Instituto Nacional de Câncer
Rita Leal Paixão - Universidade Federal Fluminense
Suane Felippe Soares - Universidade Federal do Rio de Janeiro
Vanessa Neitzke Montinello - Instituto Nacional do Câncer &
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Wallace dos Santos de Moraes - Universidade Federal do Rio de Janeiro
Copyright desta edição ©2021 by Ape’Ku Editora e Produtora Ltda

Foi feito o depósito legal conforme Lei 10.994 de 14/12/2004


Proibida a reprodução parcial ou total desta obra sem autorização da editora

Produção gráfica: Ape’Ku Produções


Fotografia do autor: Ana Paula Lopes
Fotografia da capa: Rafael Haddock-Lobo
Arte da capa: Murilo Seabra
Revisão por conta do autor.

Os direitos de tradução da carta de Ken Saro-Wiwa foram gentilmente ce-


didos por Ayebia Clarke Publishing Limited, Banbury, Oxfordshire, Reino
Unido. www.ayebia.co.uk

Direitos desta edição reservados à


Ape’Ku Editora e Produtora Ltda
contato@apeku.com.br
www.apeku.com.br
Para Nathalia, Thomas e Lukacs.
dados internacionais de catalogação na publicação (cip)

S438o Seabra, Murilo


Sobre a leitura: uma análise perceptopolítica / Murilo Seabra. Coleção
X (Organização Rafael Haddock-Lobo) – Rio de Janeiro: Ape’Ku, 2021.
304 p. ; 23 cm.

ISBN 978-65-86657-xx-x versão impressa

Inclui bibliografia.
1. Filosofia. 2. Filosofia Política. I. Título. II. Autor.

CDD 170

Impresso no Brasil
Printed in Brazil
SUMÁRIO 191
ENGENHARIA DO SABER:
Entrevista com Murilo Seabra

11 247
PREFÁCIO KEN SARO-WIWA:
A Voz do Silêncio

21
ESFREGANDO OS OLHOS 263
CARTA A MANDY GARNER
Ken Saro-Wiwa
35
MODO DE USAR
269
RASCUNHOS
45
DOIS PESOS E DUAS MEDIDAS:
EXEMPLARES 287
REFERÊNCIAS

53
NOTAS SOBRE A LEITURA 301
SOBRE O AUTOR

169
SOMOS TODOS MEXICANOS:
Uma Conversa com Murilo Seabra
KEN SARO-WIWA:
A Voz do Silêncio
“Os militares não agem sozinhos”, escreveu Ken Saro-Wiwa pouco antes
de ser executado por causa de seu ativismo – pacífico, vale a pena frisar – con-
tra a Shell. “Eles são apoiados por um bando [gaggle] de políticos, advogados,
juízes, acadêmicos e homens de negócios, todos se escondendo sob a alegação
de que estão apenas cumprindo seus deveres, homens e mulheres que urinam
nas calças de medo e depois têm medo até de lavá-las”. A palavra inglesa
“gaggle”, que traduzi aqui como “bando”, desperta uma série de associações.
Ela também pode ser traduzida – dependendo do contexto – por “tumulto”,
“alvoroço”, “gritaria”, “balbúrdia”, “alarido”. Talvez “bando”, aliás, não tenha
sido a melhor escolha, pois o que a palavra “gaggle” tem de mais interessante
– a sua característica mais marcante – é o fato de indicar, ao mesmo tempo,
a abundância de signos e o vazio de sentido. Ela é a fala que não fala para ser
ouvida, mas para que nenhuma outra fala seja ouvida. Ela é a fala cujo oposto
é ela mesma. A fala que é uma antifala. A fala que desfala.*
A palavra “gaggle” chega muito perto de ser contrônima, isto é, antônima
de si mesma. Ela chega muito perto de ser uma contradição de duas sílabas.
De fato, ela coloca a ausência no coração da presença. O que ela designa é uma
investida tanto contra o intelecto quanto contra os tímpanos, uma investida
que consiste em sobrecarregá-los falando tudo ao mesmo tempo, mas apenas
para submetê-los à mais impiedosa privação e deixá-los morrerem de fome de
sentido. O conceito de gaglear fotografa – fotoflagra – o pêndulo nos dois pontos
opostos do seu movimento, na voz e no silêncio, no ruído e na mudez, no sim
e no não, na opulência e na escassez, proliferando a comunicação desordenada-
mente e a contendo ferrenhamente. Você pode, sim, falar. Mas é importante que
não fale. Você deve, aliás, falar. Mas é importante que suas palavras não tenham
substância. Você deve falar, falar e falar. Mas é importante que suas palavras não
tenham relevância. Você deve falar sem pensar, sem parar, sem hesitar, sem se

*  Ver SARO-WIWA, Ken. A Month and a Day & Letters. Banbury: Ayebia Clarke, 1995, p.174. A
execução de Saro-Wiwa levou uma nova geração de ativistas a abandonar o pacifismo. Ver OKON-
TA, Ike. “Behind the Mask”. In: Earth Island Journal, Vol. 22, No. 1, 2007, pp.24-31.
Sobre a leitura: uma análise perceptopolítica Murilo Seabra

cansar. Pois o essencial é desnortear – ou dessulear, como diria Rafael Haddo- Se você controla o que é ensinado na universidade – e também controla o
ck-Lobo – seus interlocutores e suas interlocutoras: não deixá-los nem deixá-las que aparece na mídia –, você controla uma parte não desprezível da sociedade.
descansar, não deixá-los nem deixá-las hesitar, não deixá-los nem deixá-las parar, Porque você controla quem tem autoridade. Porque você controla quem tem
não deixá-los nem deixá-las pensar. Você deve preenchê-los e preenchê-las com habilidade. Porque você controla quem tem voz. Porque você controla, como
seu vazio. De modo que não caiba mais nada. De modo que não reste nenhuma percebeu Henry Kissinger, os líderes do amanhã. É preciso pensar de forma
fresta desocupada. Você deve preencher tudo com nada. Absolutamente tudo. estratégica, ao estilo da Central Intelligence Agency (CIA). É mais eficiente
Com absolutamente nada. A sua fala oca – insistente e ensurdecedora – é a dedicar esforços para controlar o modo de pensar dos professores e das pro-
melhor forma de norteá-los e norteá-las. E também a melhor forma – pois ela fessoras – e dos escritores e das escritoras, dos jornalistas e das jornalistas – do
parece seu inverso – de censurá-los e censurá-las. Não é por acaso que a Shell, que para controlar o modo de pensar de cada uma das pessoas, cada um dos
patrona da cultura, inimiga da cultura, investe em escritores e escritoras. Não é indivíduos, que compõem a população. O raio de ação do corpo docente
por acaso que ela faz concursos e premia com somas vultuosas quem – obvia- não é nada desprezível. O seu prestígio não é nada desprezível. O seu peso
mente – demonstra perícia na arte de falar sem falar. Ela sabe da importância não é nada desprezível. No intervalo de tempo em que o Zé da cachaçaria
da propaganda. Ela sabe da importância das relações públicas. E também sabe influencia uma pessoa, quem leciona na escola influencia cem pessoas e quem
como é fundamental penetrar governos – como fez com o governo da Nigéria. leciona na universidade influencia mil pessoas. Estamos aqui diante de agen-
Não é difícil virar um escritor – até mesmo um pensador – de sucesso. Não é tes que transitam por escalas totalmente diferentes. O Zé da cachaçaria opera
difícil virar uma escritora – até mesmo uma pensadora – de sucesso. em centímetros, o corpo docente da escola em metros, o da universidade em
Talvez pareça estranho, até ofensivo, o fato de que Saro-Wiwa incluiu em quilômetros. O Zé da cachaçaria opera em gramas, o corpo docente da escola
sua lista “acadêmicos” – e, claro, acadêmicas. Mas a intelligentsia não pode em quilos, o da universidade em toneladas. Se quisermos fazer uma simulação
também falar sem falar? E com autoridade, o que torna a coisa ainda mais de computador da sociedade para saber como melhor influenciá-la, como me-
preocupante? E com habilidade, o que torna a coisa ainda mais exasperante? lhor dirigi-la, teremos que ponderar adequadamente as respectivas forças do
A universidade tem uma enorme importância estratégica. Ela é uma máquina Zé da cachaçaria, da escola e da universidade sobre a opinião pública. Pois se
gigantesca que contínua e ininterruptamente modela e remodela a sociedade, nosso modelo for mal calibrado, estaremos fadados a desperdiçar tempo e re-
agindo sobre o plano da matéria, sobre o plano físico, por meio do plano das cursos. Estaremos fadados a adotar táticas pouco eficientes. Não foram Zés da
ideias, por meio do plano psíquico. Ela é uma instituição sociomorfológica. Ela cachaçaria que Henry Kissinger levou para Harvard a fim de influenciá-los.*
age com uma força imensa sobre a cultura – e, por meio da cultura, sobre a Por que a CIA secretamente promoveu uma série de pensadores e pensado-
realidade no que ela tem de mais concreto. Dentro de seus muros aprendemos ras durante a Guerra Fria por meio de suas revistas? A resposta não pode ignorar
um novo modo de pensar, aprendemos um novo modo de sentir. Somos edu- o fato de que todos eles eram abertamente hostis – ou alheios – às ideias marxis-
cados e educadas. E também deseducados e deseducadas. Porque não somos tas. Curiosamente, o seu objetivo não era tanto empoderar a intelectualidade de
apenas levados e levadas a pensar. Também podemos ser – e efetivamente direita, o que, aliás, chegou a irritar profundamente as alas mais conservadoras
somos – condicionados e condicionadas a não pensar. Podemos ser sensibili- – não as mais inteligentes – de Washington. Era sobretudo transformar a esquer-
zados e sensibilizadas para os problemas que assolam o planeta. Mas também da. Era redirecioná-la, desmobilizá-la, abrandá-la. Era dessuleá-la. Era norteá-la.
dessensibilizados e dessensibilizadas. Podemos entrar na universidade queren- Era desmarxizá-la, desleninizá-la, desengajá-la. A tática das revistas da CIA – e
do mudar o mundo – e sair dela acreditando que, na verdade, o que precisa
*  Ver WILFORD, Hugh. The Mighty Wurlitzer: How the CIA Played America. Cambridge: Harvard
ser mudado é a vontade de mudar o mundo. University Press, 2008.

250 251
Sobre a leitura: uma análise perceptopolítica Murilo Seabra

a Shell foi uma de suas patrocinadoras – não era reprimir a fala, mas fundamen- marxismo – depois do fim da Guerra Fria. O mesmo vale para o pensamen-
talmente promovê-la. É verdade que elas criticaram duramente autores e autoras to macropolítico e geopolítico de sua parceira de luta, Simone de Beauvoir. Já
hoje quase completamente esquecidos e esquecidas. Fundamentalmente, po- Foucault, que teria superado o marxismo (segundo a narrativa oficial), expe-
rém, elas espalharam pelo mundo figuras que na época – na época – eram ainda rimentou um sucesso súbito em fins de 1960, que o deixou, aliás, perplexo, e
desconhecidas. Como seria a paisagem intelectual de hoje se Washington não desde então sua popularidade não parou de crescer. Curiosamente, parece que
a tivesse submetido a uma obra de engenharia? Qual seria a agenda acadêmica suas críticas ao conceito marxista de ideologia não tiveram muita ressonância.
de hoje se Washington não tivesse realizado uma obra de engenharia epistêmica O conceito só parou de ganhar popularidade na década de 2000, o que talvez
de proporções nunca antes vistas que se espalhou pela logosfera a partir de seu possa ser explicado como uma assimilação tardia das suas repetidas investidas
escritório estrategicamente localizado em Paris, a capital das luzes? contra o instrumental analítico marxista, mas também como um efeito do
O neoliberalismo é incapaz de se sustentar por si mesmo. Ele precisa de ataque às Torres Gêmeas e da subsequente ideologia da Guerra ao Terror, que
apoio externo. A afirmação de que “10+10=30”, deixada à própria sorte, tende nunca foi uma guerra contra a tática de usar violência para atingir fins políti-
a desmoronar e a se tornar desatualizada rapidamente. Ela tende a ser esquecida, cos, mas uma guerra psicológica – no sentido militar – abertamente contra o
a acumular poeira. Pois suas engrenagens simplesmente não se encaixam umas islamismo e veladamente contra o pensamento. Assim como os europeus pre-
nas outras. Temos aqui rodas dentadas que não conseguem se articular. Assim, cisaram desalmar os indígenas para justificar frente à cristandade a colonização
ela contém em si o princípio – ou a falta de princípio – do seu colapso. É difícil de suas terras, os americanos precisaram demonizar os afegãos e iraquianos
mantê-la em pé. Sem os investimentos vultuosos de Washington, a intelectua- para justificar a espoliação de suas riquezas. E assim como os europeus usa-
lidade do pós-guerra muito provavelmente não teria jogado para escanteio sua ram o subsequente reconhecimento de que os indígenas eram, sim, humanos,
busca por justiça econômica; ela não teria se desviado do objetivo de tornar o não meros animais, para os mesmos fins (como eram humanos, precisavam
mundo um lugar mais igualitário e mais habitável, sem os níveis de miséria que receber a palavra de Deus), os americanos usaram simultaneamente a tática
vemos hoje. A verve acadêmica muito provavelmente não teria descarrilhado de pintarem, por exemplo, as mulheres afegãs como donzelas oprimidas pelo
durante a Guerra Fria. Fanon teve o apoio de Sartre. Ele amplificou sua voz e islamismo para convencer a opinião pública da nobreza e da necessidade da
divulgou seu pensamento. O engajamento sartreano, porém, já saiu de moda. Guerra ao Terror (pois elas precisavam, portanto, ser salvas da opressão por
Aliás, o próprio pensamento – com a ascensão da universidade neoliberal – está meio da destruição de seus lares, do assassinato de suas famílias e de estupros).*
saindo de moda. Porque a moda agora é gaglear. A moda agora é mover palavras A filosofia acadêmica de hoje está completamente desartrianizada. O seu foco
contra palavras, não contra a dilapidação sistêmica do mundo. A realidade dia- agora está em questões micropolíticas. Ela continua de punhos cerrados, sem dú-
riamente secretada pelo neoliberalismo é nauseante. É melhor não falar dela. É vida. Ela continua nervosa e apaixonada. Mas ela desfere seus golpes contra a
de mau gosto falar dela. Saro-Wiwa não teve seu Sartre. Porque já não havia mais verdade, a metafísica e o poder – não o poder no sentido macro ou geopolítico,
Sartres na década 1990. Eles morreram. Mas não sem antes terem suas reputa- apenas no sentido micropolítico, o que convém bastante às agências secretas, às
ções assassinadas – para não deixarem descendentes. grandes corporações e aos governos hegemônicos que vivem da espoliação do pla-
Da década de 1940 até o início da década de 1970, a popularidade de neta. A busca por justiça social foi reduzida ao seu mínimo, à luta contra o pre-
Sartre teve uma ascensão meteórica. Do início da década de 1970 até o fim da
Guerra Fria, porém, a ascensão de sua popularidade foi aplacada. A expansão *  Ver ZUCCHINO, David. “Soldier Convicted in Rape, Murder of Iraqi Girl is Found Hanged”. In:
do pensamento engagée foi contida. O interesse por seu trabalho só voltou a New York Times, 18/02/2014. Ver também EQUIPE DE REDAÇÃO. “‘I Didn’t Think of Iraqis as
Humans’, Says U.S. Soldier who Raped 14-year-old Girl before Killing her and her Family”. In: Daily
crescer – mas de forma muito mais hesitante e modesta, expurgada de seu Mail Online, 21/12/2010.

252 253
Sobre a leitura: uma análise perceptopolítica Murilo Seabra

conceito. Em sintonia com as últimas décadas do século XX, as primeiras décadas Mas não parece que ele está exagerando? Não parece que ele está – como
do século XXI viram dois movimentos que deveriam se reforçar mutuamente se diria uma boa parte da esquerda acadêmica, orgulhosa da sua arte de gaglear
apartando e marchando em direções opostas: a luta contra a desigualdade política – dando voz ao ressentimento? Isto é, culpando os outros pelos seus infortú-
e econômica recuou (apesar de ter produzido alguns espasmos ocasionais, como nios e eximindo os nigerianos e as nigerianas, independentes desde 1960, de
o Occupy Wall Street) e a luta em favor das identidades excluídas avançou. O responsabilidade por seus assuntos domésticos? Como a culpa pode ser do
resultado é que se quer hoje diversificar o 1%, não melhorar as condições de vida Reino Unido, que está situado a milhares de quilômetros de distância? Não
dos 99%. O plano da esquerda acadêmica dominante já não é mais acabar com parece que Saro-Wiwa é um mero orador, não um verdadeiro filósofo, não um
a pobreza. O seu plano é garantir que membros isolados das diferentes minorias verdadeiro pensador? Pois o objeto dele não é excessivamente local e particu-
tenham um lugar na elite. A palavra “solidariedade” carrega hoje uma áurea nega- lar? Pois não falta ao seu discurso um elemento universal? E além de ser um
tiva, antiquada, quase conservadora. O mesmo vale para a palavra “verdade”. O mero orador, não parece que ele é um orador ressentido, que se regozija com
mesmo vale para os esforços de compreensão mais amplos. Eles são totalitários. a própria derrota? Não parece que ele é um teórico da conspiração que não
Todo pensamento totalizante – todo pensamento abrangente, todo pensamento conseguiu se afirmar realizando um trabalho sério e resolveu se fazer de vítima
panorâmico – é totalitário. O problema é que existe um nexo indissolúvel entre para chamar atenção? Ele não poderia, por exemplo, ter vendido sua força de
solidariedade e pensamento. A solidariedade é o pensamento traduzido em ação. trabalho à Shell? E caso ela realmente estivesse estuprando – quanto exagero!
O pensamento é a solidariedade traduzida em palavra. A diferença entre a direita – e devastando o meio ambiente, ele não poderia ter acionado o sistema legal
e a esquerda é que a primeira pensa com o bolso e a segunda com o coração. E o para processá-la? Não temos aqui simplesmente mais um exemplo de paranoia
pensamento que se solidariza de maneira seletiva, dizendo “Je suis Charlie!”, mas e histeria? Mais um exemplo de ativista que faria exatamente aquilo que critica
não “Je suis Ken Saro-Wiwa!”, o pensamento que usa dois pesos e duas medidas, se chegasse ao poder? Que já faz exatamente aquilo que critica em sua própria
não é bem um pensamento, mas uma mistura do pensamento com seu avesso. esfera de atuação? Você não sente um prazer secreto diante da sua própria agu-
A minha passagem preferida da carta de Sara-Wiwa a Mandy Garner – e deza intelectual, do seu próprio brilhantismo, quando consegue expor as en-
uma das minhas preferidas de toda sua obra epistolar – é a seguinte: tranhas das lutas sociais e reduzi-las à sintomatologia do ressentimento? Você
não sente um prazer especial quando consegue derrubar movimentos inteiros
Em última análise, porém, a culpa é do governo britânico. É o go-
verno britânico que fornece armas a crédito aos ditadores nigerianos,
com uma simples frase, talvez até uma simples palavra – a palavra “poder”?
sabendo muito bem que serão usadas apenas contra inocentes desar- Não parece claro que Saro-Wiwa está gagleando?
mados e desarmadas. É o governo britânico que faz uma barulheira O conceito de ressentimento – que você borrifa pra lá e pra cá – me dá tanta
sobre democracia na Nigéria e na África, mas dá seu completo apoio a náusea quanto o marxismo nauseava Foucault. Ele é usado para deslegitimar de
ditadores. É o governo britânico que apoia o estupro e a devastação do
meio ambiente pela Shell, essa valorosa organização que paga impos- forma irrefletida e apressada, de forma inconsequente e rasa, as lutas que os guer-
tos e emprega trabalhadores. Eu coloco às portas do governo britânico reiros frios nos condicionaram a ver como démodés. A macropolítica é démodé.
a culpa pelo meu sofrimento e pela destruição dos Ogoni e de outros A geopolítica é démodé. A distinção entre direita e esquerda é démodé. A solida-
povos do delta nigeriano. No fim das contas, está nas mãos do povo
riedade é démodé. A verdade é démodé. O pensamento é démodé. O conceito de
britânico, do eleitorado britânico, o poder de decidir acabar ou não
com essa grande farsa, com esse uso de dois pesos e duas medidas que ideologia é démodé. O próprio conceito de classe social – sem o qual o marxismo
tem prolongado o pesadelo africano e difamado a humanidade.* desmorona – é démodé. O negócio agora é criticar o poder. O negócio agora é
criticar o ativismo. O negócio agora é denunciar a revolução. O negócio agora
*  Ver SARO-WIWA, Ken. A Month and a Day & Letters. Banbury: Ayebia Clarke, 1995, p.179. é vigiar o impulso de mudar o mundo. O negócio agora é virar um empreende-

254 255
Sobre a leitura: uma análise perceptopolítica Murilo Seabra

dor de si mesmo. O negócio agora é lutar por um lugar no 1%. Assim como o necessário para lidar com quem ainda vive no mundo do século XIX
neoliberalismo está tentando enterrar o comunismo qua tendência econômica, o de cada estado por si.
Um conselho para os estados pós-modernos: quem tem vizinhos
pós-estruturalismo está tentando enterrar o marxismo qua tendência acadêmica.* amigáveis que respeitam a lei não pode esquecer que em outras partes
Mas o que parece ser a quintessência da crítica, o que parece ser o estágio do mundo reina a lei da selva. Quando lidamos com nós mesmos,
mais elevado do pensamento filosófico contemporâneo – que não luta mais mantemos a lei, mas quando operamos na selva, precisamos também
usar as leis da selva. No período de paz que está chegando na Europa,
contra a pobreza e a desigualdade, que não se interessa pelo que a Shell faz ou
vamos sentir a tentação de negligenciar nossas defesas, tanto as físicas
deixa de fazer, que se resguarda religiosamente contra teorias da conspiração, quanto as psicológicas. Isso representa um dos grandes perigos para o
preferindo mobilizar suas forças contra o ressentimento, contra metanarrativas estado pós-moderno.*
e contra o poder infinitesimal – talvez seja a verdadeira tempestade na piscina de
crianças. Tomadas de forma isolada, fora da guerra simbólica global, as palavras Não é revoltante? Se você não sente nenhuma revolta, você precisa se revol-
de Saro-Wiwa de fato podem soar como uma teoria da conspiração. Tomadas tar com a deseducação que recebeu. Com a dessensibilização que sofreu. Pois
como um discurso autocontido, encerrado em si mesmo e sem referente ex- se você visse um diplomata brasileiro falando da necessidade de usar dois pesos
terno, como um discurso que não pode ser confirmado por uma verdade que, e duas medidas contra os Estados Unidos, você provavelmente se revoltaria.
conforme a cláusula pétrea do pós-estruturalismo, necessariamente não existe, as Aliás, um dos sinais mais seguros de que você se revoltaria é precisamente o
palavras de Saro-Wiwa de fato só podem soar como uma teoria da conspiração. fato de você que não se revolta com as palavras de Robert Cooper. A lógica
Não é fácil ver nelas uma mania de perseguição? Elas não destilam ressentimen- capturada pela expressão “dois pesos e duas medidas”, que aparece tanto na
to, nada mais que ressentimento? Não é óbvio? Não é claro? Não é evidente? passagem de Saro-Wiwa quanto na passagem de Cooper, fornece uma chave
O chamado “método estruturalista de leitura”, propagado orgulhosa- fundamental para a compreensão da civilização ocidental. O uso de dois pesos
mente pela Universidade de São Paulo (USP) e usado frequentemente como e duas medidas pode ser observado em todas esferas e escalas da sociedade: no
desculpa para não se fazer filosofia no Brasil, submete-nos a uma lobotomia tratamento diferenciado de homens e mulheres, adultos e crianças, professores e
brutal. Pois o fato é que para entender um texto T, não posso apenas ler T. Eu estudantes, chefes e empregados, e também na divisão hierárquica entre bairros
preciso também ler o que se opõe a T. Eu preciso também ler o que comple- enriquecidos e bairros empobrecidos, estados enriquecidos (como São Paulo
menta T. Os textos sempre falam por oposição – e consequentemente também e Rio Grande do Sul) e estados empobrecidos (como Piauí e Rio Grande do
por alianças. Pelos dois processos ao mesmo tempo. Teoria da conspiração? Norte), regiões enriquecidas (como o sudeste brasileiro) e regiões empobrecidas
Paranoia? Mania de perseguição? Ressentimento? Talvez a melhor forma de (como o nordeste brasileiro), nações enriquecidas (como o Reino Unido) e na-
avaliar as palavras de Saro-Wiwa seja colocando-as ao lado das seguintes pala- ções empobrecidas (como a Nigéria), continentes enriquecidos (como a Euro-
vras do diplomata e “pensador” britânico Robert Cooper: pa) e continentes empobrecidos (como a África). Quantos escritores e quantas
escritoras do Reino Unido você já leu? Quantos escritores e quantas escritoras
Para o estado pós-moderno existe, portanto, uma dificuldade. Pre- da Nigéria você já leu? Quantos escritores e quantas escritoras da Europa você já
cisamos nos acostumar com a ideia de dois pesos e duas medidas. leu? Quantos escritores e quantas escritoras da África você já leu?
Quando lidamos com nós mesmos, operamos com base nas leis e na
Saro-Wiwa denuncia o uso de dois pesos e duas medidas. Cooper defende o
segurança aberta e cooperativa. Mas quando lidamos com tipos mais
antiquados de estados, precisamos reverter a métodos mais duros, de uso de dois pesos e duas medidas. Saro-Wiwa luta contra o gaglear. Cooper reco-
uma era já passada – força, ataques preventivos, engano, tudo que for
*  Ver COOPER, Robert. The Post-Modern State and the World Order. London: Demos, 2000, pp.37-38.
*  A palavra francesa “démodé” significa fora de moda, ultrapassado. Ver também COOPER, Robert. “The New Liberal Imperialism”. In: The Guardian, 07/04/2002.

256 257
Sobre a leitura: uma análise perceptopolítica Murilo Seabra

nhece seu valor estratégico. Sem uma enorme dose de cinismo, não é possível ver ção, não à ideia de elucidação intratextual, não ao esquecimento metodológico
Saro-Wiwa como um mero ressentido. Pelo menos, não depois de lê-lo ao lado de si mesmo ou de si mesma e de toda realidade circundante. Ela implica em
de Cooper. Mas quando ele é lido à luz da filosofia uspiana, só é possível vê-lo um ethos decididamente investigativo, rebelde, desobediente e completamente
como um mero ressentido. Por outro lado, porém, o uspianismo, que não pensa avesso ao paradigma filosófico uspiano (que não é filosófico nem uspiano, mas
seriamente sequer sobre o Brasil (apesar das suas aparições esporádicas na mídia), hagiológico e francês). Se o que se faz nos departamentos brasileiros de filoso-
não tem o menor interesse nem por Saro-Wiwa nem pelo que acontece ou deixa fia pode ser classificado como história da filosofia, então o que se faz em revistas
de acontecer na Nigéria. Quando o uspianismo faz análises macropolíticas, elas de celebridades – como a revista Caras – pode ser classificado como sociologia.
costumam se resumir, mesmo em seus momentos mais contundentes, a análises Nos dois casos, temos um puro e simples culto de personalidades. O problema
internalistas que cometem um dos erros mais combatidos por Saro-Wiwa: o erro admite uma solução, já antecipada por Armijos. Se a comunidade acadêmica
de achar que nossos desenvolvimentos políticos podem e devem ser explicados brasileira de filosofia não está disposta a mudar de conduta, ela pode mudar de
única e exclusivamente por acontecimentos domésticos. Assim, por exemplo, ape- nome. Não sei bem para qual, porém. Mas um nome que representa o que ela
sar de todo alarido em torno do golpe contra Dilma e da ascensão de Bolsonaro, faz é claramente preferível a um nome que representa exatamente o oposto do
não se pode encontrar nenhuma análise a respeito da influência de Washington que ela faz. Os jovens e as jovens que ingressam nas universidades poderiam
sobre Brasília oriunda dos seguidores e das seguidoras do método estruturalista de então fazer escolhas mais acertadas. Atualmente, os departamentos brasileiros
leitura. A voz do prestígio não fala do que pode ameaçar seu prestígio. Ela não fala de filosofia chegam muito perto de ser antônimos de si mesmos. A USP é
do que parece – mesmo que não seja – teoria da conspiração. A usparada faz, sim, apenas o epicentro do problema. E um caso extremo.*
análises internalistas razoavelmente competentes. O problema é que ela se esquece Talvez seja dolorido reconhecer que apesar de “Penso, logo existo” ser
da porosidade das nossas fronteiras. Ela se esquece que assim como não posso uma proposição filosófica, “Descartes escreveu ‘Penso, logo existo’” não é uma
entender um texto T apenas em termos de T, também não posso entender Brasília proposição filosófica. Mas precisamos nos confrontar com a verdade. Não
apenas em termos de Brasília. Aliás, se substituirmos Lagos por Brasília e Londres negá-la. Não reprimi-la. Não racionalizá-la. A proposição “Penso, logo existo”
por Washington, veremos que as análises geopolíticas de Saro-Wiwa, escritas em contém um elemento de reflexão. Ela tem uma substância própria. Mas a pro-
fins do século XX, lançam um olhar muito mais afiado sobre a situação brasileira posição “Descartes escreveu ‘Penso, logo existo’” é uma proposição parasitária,
contemporânea do que as melhores filosofadas uspianas. sem substância própria. Ela depende inteiramente da primeira. Se você tirar
Faríamos bem em rever completamente nossa forma de fazer o que cha- dela tudo o que toma de alhures, não sobra nada. O que temos aqui é o que
mamos equivocadamente de “filosofia”. Não podemos ser comedidos nem Wittgenstein chamaria de interpretação, uma atividade de reescrita que pode
comedidas. Gonzalo Armijos Palácios e Oswaldo Porchat Pereira têm razão ser realizada por máquinas, não exigindo sequer que se compreenda as proposi-
em afirmar que não é filosofia o que se faz nos departamentos de filosofia bra- ções interpretadas. O método estruturalista de leitura nos pede para abrirmos
sileiros. Mas o que se faz neles também não é história da filosofia. O método mão do pensamento. Nada poderia ser mais estranho à filosofia, não importa
estruturalista de leitura – que não tem nenhuma relação com o estruturalismo como se a defina. Nada. Absolutamente nada.
de Lévi-Strauss – possui muito mais semelhanças com a exegese bíblica do que Por outro lado, a filosofia é, sim, uma atividade que faz falta. A reflexão
com a análise histórica propriamente dita; aliás, a palavra “método” confere tenaz e cerrada faz falta. Sartre se atreveu a pensar. Tentaram matá-lo. Saro-
um ar indevido de pompa ao que se resume simplesmente a uma moralidade,
que à la Cooper é sistematicamente aplicada de acordo com dois pesos e duas *  Ver ARMIJOS, Gonzalo. De como fazer Filosofia sem ser Grego, estar Morto ou ser Gênio. Goiânia:
Ed. UFG, 2004. Ver também PORCHAT, Oswaldo. “Discurso aos Estudantes de Filosofia da USP
medidas. A palavra “história” está etimologicamente ligada à ideia de investiga- sobre a Pesquisa em Filosofia”. In: Fundamento, Vol. 1, No. 1, 2010, pp.18-33.

258 259
Sobre a leitura: uma análise perceptopolítica Murilo Seabra

-Wiwa se atreveu a pensar. Foi executado. Cooper reconhece o valor estratégi- A filosofia se apresenta como a plataforma por excelência do pensamento.
co do pensamento. A CIA reconhece o valor estratégico do pensamento. Até Mas ela o tolhe com uma infinidade de regras que nunca são explicitamente
mesmo Bolsonaro reconhece o valor estratégico do pensamento. A pressão enunciadas. Temos que deixar a tarefa de pensar para as potências do norte
para privatizar as universidades públicas brasileiras é também – não apenas, atlântico. Temos que incluir em nossas bibliografias autores e autoras do norte
mas também – um sinal de reconhecimento do valor estratégico do pensa- atlântico. Temos que nos deixar tutelar pelos autores e pelas autoras do norte
mento. Hoje a comunidade acadêmica brasileira está acuada. A comunidade atlântico. E não podemos dialogar com outras partes do mundo. A menos que
brasileira de filosofia, porém, mantém-se entretida em seus afazeres como se sejam também tuteladas pelos autores e pelas autoras do norte atlântico. Não
não tivesse força sociomorfológica e não estivesse contribuindo para o desenho podemos usar gírias. Não podemos citar pichações. Muito menos analisá-las
geral da sociedade. Trata-se de um engano. Quando você ensina Wittgenstein, detidamente. Não podemos refletir sobre nossas vidas, nossas experiências,
você não está apenas ensinando Wittgenstein. Você está também deixando de nossas circunstâncias. Não podemos refletir sobre nossa realidade imediata.
ensinar Sartre. Você está construindo uma subjetividade mais tímida e com- Podemos escrever sobre o Holocausto. Mas não sobre o genocídio amerín-
penetrada, menos ativa e engajada. Quando você traduz Agamben, você não dio. Podemos escrever sobre a linguagem. Mas não sobre a pobreza. Sobre a
está apenas traduzindo Agamben. Você está também deixando de traduzir Revolução Francesa. Mas não sobre a Revolução Haitiana. Podemos escrever
Saro-Wiwa. Você está construindo uma subjetividade que tem mais apreço sobre autores que escreveram em diálogos e aforismos. Mas não podemos,
pela erudição do que pela revolução. As grandes corporações – como a Shell, a nós mesmos, nós mesmas, escrever em diálogos e aforismos. A lista conti-
Volkswagen e a Nestlé, que se notabilizaram nos últimos anos por suas mano- nua. Podemos, não podemos. Devemos, não devemos. Mas, porém, contudo,
bras asquerosas – teriam muito mais dores de cabeça se escolhêssemos melhor embora, porque, por nada, todavia, aliás, entretanto, não obstante. Pelo me-
os autores e as autoras que resolvemos canonizar. nos, a massa de regras tem, sim, uma utilidade. Se transformarmos todas suas
O que diferencia a filosofia das demais disciplinas de humanas é o fato de proibições em permissões e todas suas permissões em proibições, todas suas
ela não ter um objeto fixo nem regras fabris bem delimitadas. O seu espaço negações em afirmações e todas suas afirmações em negações, todas suas placas
de manobra é vertiginoso. No entanto, ela se encontra presentemente amor- de “Pare” em placas de “Siga em frente” e todas suas placas de “Siga em fren-
daçada por uma infinidade de regras do ofício que raramente são tematiza- te” em placas de “Pare”, teremos um conjunto bastante confiável de diretrizes
das e menos ainda discutidas. Por que não falamos mais de utopias? Por que explicando o que precisamos fazer para filosofar.
não tentamos imaginar um mundo novo? Por que não discutimos operações
psicológicas? Por que não discutimos o uso das mídias sociais para manipu-
lar eleições? Por que não colocamos pressão sobre as corporações? Antes de
serem perseguidos pela ditadura militar (que Washington, aliás, amamentou
com carinho), os idealizadores da Universidade de Brasília (UnB) estavam
determinados a colocar no centro de sua agenda os problemas nacionais mais
agudos. A ditadura acabou. Mas a UnB nunca recuperou seu plano original. A
filosofia acadêmica se despolitizou durante a Guerra Fria e agora no máximo
se aventura a falar de questões de identidade. Somos controlados e controladas
temática, bibliográfica e estilisticamente. Somos controlados e controlados
criativamente. Somos controlados e controlados intelectualmente.

260 261
CARTA A MANDY GARNER
Ken Saro-Wiwa
CARTA A MANDY GARNER
Ken Saro-Wiwa
Port Harcourt, 12 de maio de 1995

Mandy Garner,

Faz um ano desde que me arrancaram sem nenhuma educação da cama e


me colocaram sob detenção. Passei sessenta e cinco dias acorrentado, semanas
morrendo de fome, meses sendo mentalmente torturado, e, recentemente, um
camburão sem ventilação, quente como uma sauna, levou-me a um tribunal
de fachada, chamado Tribunal Militar Especial, onde os autos deixaram evi-
dente que a sentença já havia sido decidida. A pena de morte, sem direito à
apelação, é uma certeza.
A batalha está perdida? Dificilmente. As pessoas que comandam e super-
visam esse vergonhoso espetáculo, essa trágica farsa, amedrontam-se diante
da palavra, diante do poder das ideias, do poder da caneta, das exigências da
justiça social e dos direitos humanos. Elas sentem tanto medo do poder da
palavra que não se atrevem a ler. Este é seu atestado de óbito.
Quando tomei a decisão, após anos escrevendo, de levar a palavra às ruas
para mobilizar o povo Ogoni e empoderá-lo a protestar contra a devastação
pela Shell do meio ambiente onde vive, bem como contra a difamação e a de-
sumanização perpetradas pela ditadura militar nigeriana, eu não tinha dúvida
alguma quanto ao que poderia acontecer. Essa consciência tem me proporcio-
nado força, coragem e ânimo, colocando-me em uma posição de vantagem
psicológica em relação aos meus algozes.
Por um passe de mágica, o espírito Ogoni conseguiu ontem trazer à minha
cela um belo poema de Jack Mapanje, veterano das prisões de Kamuzu Banda,
mantido atrás das grades por quatro anos sem acusação formal. Quando me
encontrei com Jack em Potsdam, no ano de 1992, fiquei me perguntando
como ele havia conseguido sobreviver. O seu poema, enviado da Universidade
de Leeds, convenceu-me a colocar uma armadura de bom humor. O premia-
do romancista de Zimbabwe, Chenjerai Hove, também assinou as palavras
Sobre a leitura: uma análise perceptopolítica Murilo Seabra

dedicadas a mim na nota final. É maravilhoso ver quantas pessoas nobres, os o governo britânico que faz uma barulheira sobre democracia na Nigéria e
melhores cérebros, simpatizam com o sofrimento alheio. na África, mas dá seu completo apoio a ditadores. É o governo britânico que
E, sim, todo esse percurso está marcado pelo humor. No dia 16 de março apoia o estupro e a devastação do meio ambiente pela Shell, essa valorosa or-
de 1995, ao bater das doze horas, meus arquinimigos, a Shell e o governo ganização que paga impostos e emprega trabalhadores. Eu coloco às portas do
nigeriano, encontraram-se nos escritórios do Alto Comissariato da Nigéria governo britânico a culpa pelo meu sofrimento e pela destruição dos Ogoni e
em Northumberland. Eles chegaram a um consenso interessante. A Shell não de outros povos do delta nigeriano. No fim das contas, está nas mãos do povo
havia recebido nada em quatro meses. O alto comissário prometeu pagá-la. britânico, do eleitorado britânico, o poder de decidir acabar ou não com essa
Irritado com as iniciativas de Anita e Gordon Roddick levadas a cabo em meu grande farsa, com esse uso de dois pesos e duas medidas que tem prolongado
nome e no nome do povo Ogoni, ele também entreviu “segundas intenções” o pesadelo africano e difamado a humanidade.
(como um golpe de estado contra o ditador nigeriano mais recente, você sabe Se vou viver ou morrer, pouco importa. Para mim, basta saber que há pes-
como são as coisas) e perguntou se a Shell poderia oferecer “contramedidas” de soas dedicando tempo, recursos e energia para lutar contra essa perversidade,
assistência. A Shell garantiu aos desafortunados que seus “propagandistas” já que é apenas uma entre as muitas que proliferam mundo afora. Se não ven-
estavam tramando travessuras e já podiam contar vitórias. Ela estava fazendo cerem hoje, elas vencerão amanhã. Temos que continuar nos esforçando para
seu próprio filme para contrabalancear a produção encomendada pelo Chan- tornar o mundo um lugar onde todas pessoas possam viver melhor. Estamos
nel 4 sobre os Ogoni. A Shell havia conseguido inclusive converter pessoas todos e todas fazendo nossa parte, cada um e cada uma à sua maneira.
ligadas ao ativismo à sua causa, convencendo-as de que era justa. Satisfeito
com o andamento das coisas, o alto comissário pediu à Shell que exibisse seu Minhas saudações vão para todos e todas vocês,
filme antes mesmo que a Catma Films produzisse o filme encomendado pelo
Channel 4. Também prometeu que ajudaria a Shell a “superar qualquer empe- Ken Saro-Wiwa.
cilho burocrático para a produção do seu filme”. A Shell, por sua vez, lembrou
ao alto comissário que um tal senhor Boele havia se passado por turista para
vir à Nigéria fazer pesquisas e entrevistar diversos grupos e pessoas. A moral da
história? Tome cuidado com ativistas que se fingem de turistas. Não conceda
a eles ou elas vistos de entrada no país. Mas, por favor, o governo nigeriano
precisa pagar a Shell, porque, afinal, a “falta de pagamento frequentemente
leva ao desemprego, que, por sua vez, leva à agitação social”. Fim da reunião.
Eis os conspiradores. Nenhuma palavra sobre suspender o genocídio dos
Ogoni, nenhuma palavra sobre parar de fabricar acusações de assassinato con-
tra seus líderes, nenhuma palavra sobre a miséria generalizada do povo Ogoni
provocada pelas conspirações da Shell e de sucessivos ditadores nigerianos. Só
dinheiro e como desviar a atenção do público.
Em última análise, porém, a culpa é do governo britânico. É o governo
britânico que fornece armas a crédito aos ditadores nigerianos, sabendo muito
bem que serão usadas apenas contra inocentes desarmados e desarmadas. É

266 267

Você também pode gostar