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Uma Breve Visão da Teologia Arminiana

 
Roger E. Olson
 
Um dos mais prevalecentes mitos difundidos por alguns calvinistas sobre o
Arminianismo é que ele é o tipo de teologia mais popular nos púlpitos e bancos evangélicos.
Minha experiência contradiz essa crença. Depende muito de como consideramos a teologia
arminiana. Os críticos calvinistas estariam corretos se o Arminianismo fosse o
Semipelagianismo. Mas ele não é, como espero mostrar. O evangelho pregado e a doutrina da
salvação ensinada na maioria dos púlpitos e tribunas evangélicos, e crido na maioria dos
assentos de igrejas evangélicas, não é o Arminianismo clássico, mas o Semipelagianismo, se
não um completo Pelagianismo. Qual é a diferença? O teólogo H. Orton Wiley, da Igreja do
Nazareno, corretamente define o Semipelagianismo dizendo, “Ele sustentava que restou poder
suficiente na vontade depravada para dar o primeiro passo em direção à salvação, mas não o
suficiente para completá-la. Isso deve ser feito pela graça divina.” 1[1] Esta antiga heresia tem
origem nos ensinos dos assim chamados massilianos, liderados principalmente por João
Cassiano (m. 433 d.C), que tentou construir uma ponte entre o Pelagianismo, que negava o
pecado original, e Agostinho, que defendia a eleição incondicional sobre o fundamento de que
todos os descendentes de Adão nascem espiritualmente mortos e culpados do pecado de Adão.
Cassiano acreditava que as pessoas são capazes de se voltarem para Deus mesmo à parte de
qualquer infusão da graça sobrenatural. Isto foi condenado pelo Segundo Concílio de Orange
em 529 (sem endossar a extrema doutrina agostiniana da predestinação).
 
O Semipelagianismo tornou-se a teologia popular da Igreja Católica Romana nos
séculos que antecederam a Reforma Protestante. Ele foi completamente rejeitado por todos os
reformadores, exceto os assim chamados racionalistas ou antitrinitarianos, tais como Fausto
Socinus. Alguns calvinistas adotaram a prática de se referir a toda teologia que ficou aquém do
Calvinismo rígido (TULIP) como semipelagiana. Isto, no entanto, está incorreto. Hoje em dia, o
Semipelagianismo é a teologia padrão da maioria dos cristãos evangélicos americanos.2[2]
Podemos comprovar isto na popularidade de clichês como “Se você der um passo em direção a
Deus, ele fará o resto do caminho em direção a você,” e “Deus vota em você, Satanás vota
contra você, e você tem o voto decisivo,” juntamente com a negligência quase total da
depravação humana e da incapacidade nas questões espirituais.
 
O Arminianismo é quase totalmente desconhecido, e menos ainda crido, no cristianismo
evangélico popular. Um dos propósitos deste livro é superar este déficit. Um mito predominante
sobre o Arminianismo é que a teologia arminiana é equivalente ao Semipelagianismo. Isto será
contestado no processo de refutação de vários outros mitos que tratam da condição humana e
da salvação. Isto é apenas uma antecipação do ponto de vista arminiano que será mais para
frente exposto.
 
Em primeiro lugar, é importante compreender que o Arminianismo não tem uma
doutrina ou ponto de vista específico sobre tudo no Cristianismo. Não há nenhuma doutrina
arminiana especial das Escrituras. Os arminianos do coração – os arminianos evangélicos –
acreditam nas Escrituras e têm a mesma gama de opiniões sobre os seus detalhes como os
calvinistas. Alguns arminianos acreditam na inerrância bíblica e outros não. Todos os
arminianos evangélicos estão comprometidos com a inspiração sobrenatural da Bíblia e sua
autoridade sobre todos os assuntos de fé e prática. Da mesma forma, não há uma eclesiologia
ou escatologia arminiana distintiva; os arminianos refletem o mesmo espectro de interpretações
que os outros cristãos. Um mito popular promovido por alguns calvinistas é que todos os
teólogos arminianos aceitam a teoria governamental da expiação e rejeitam a teoria da
substituição penal. Isso é simplesmente falso. Os arminianos acreditam na Trindade, na

1[1] H. Orton Wiley, Christian Theology (Kansas City, Mo.: BeaconHill, 1941),
2:103.
2[2] Não posso afirmar o mesmo de cristãos evangélicos em outros países,
porque eu não sei o suficiente sobre eles para fazer tal declaração.
divindade e humanidade de Jesus Cristo, na depravação da humanidade devido à Queda
primitiva, na salvação pela graça somente através da fé somente, e em todas as outras crenças
protestantes essenciais. A justificação como justiça imputada é afirmada pelos arminianos
clássicos seguindo o próprio Arminius. As doutrinas distintivas do Arminianismo têm a ver com a
soberania de Deus sobre a história e a salvação; a providência e a predestinação são as duas
doutrinas chave onde os arminianos se separam dos calvinistas clássicos.
 
Não há melhor ponto de partida para examinar as questões da providência e
predestinação que a própria Remonstrância. Ela é o documento fundamental do Arminianismo
clássico (além dos escritos de Arminius). A Remonstrância foi preparada por mais ou menos 43
(o número exato é debatido) pastores e teólogos reformados holandeses após a morte de
Arminius em 1609. O documento foi apresentado em 1610 para uma conferência de líderes da
igreja e do estado em Gouda, Holanda, para explicar a doutrina arminiana. Ele foca
principalmente nas questões da salvação e especialmente a predestinação. Várias versões da
Remonstrância (da qual os remonstrantes receberam o seu nome) existem. Iremos usar uma
tradução para o inglês do original em latim apresentada de forma um tanto condensada pelo
estudioso inglês do Arminianismo A. W. Harrison:
 
1. Que Deus, por um decreto eterno e imutável em Cristo antes da fundação do mundo,
determinou eleger, da raça caída e pecadora, para a vida eterna, aqueles que, através
de Sua graça, creem em Jesus Cristo e perseveram na fé e obediência; e, ao contrário,
resolveu rejeitar os não convertidos e os descrentes para a condenação eterna (Jo
3.36).
 
2. Que, em consequência disto, Cristo, o Salvador do mundo, morreu por todo e cada
homem, de modo que Ele obteve, pela morte na cruz, reconciliação e perdão pelo
pecado por todos os homens; de tal maneira, porém, que ninguém senão os fiéis
verdadeiramente desfrutam dos mesmos (Jo 3.16; 1Jo 2.2).
 
3. Que o homem não podia obter a fé salvadora de si mesmo ou pela força de seu
próprio livre-arbítrio, mas se encontrava carente da graça de Deus, através de Cristo,
para ser renovado no pensamento e na vontade (Jo 15.5).
 
4. Que esta graça foi a causa do início, desenvolvimento e conclusão da salvação do
homem; de forma que ninguém poderia crer nem perseverar na fé sem esta graça
cooperante, e consequentemente que todas as boas obras devem ser atribuídas à graça
de Deus em Cristo. Quanto ao modo de operação desta graça, no entanto, não é
irresistível (At 7.51).
 
5. Que os verdadeiros crentes tinham força suficiente através da graça divina para lutar
contra Satanás, o pecado, o mundo, sua própria carne, e obter vitória sobre eles; mas
se por negligência eles não poderiam apostatar da verdadeira fé, perder a alegria de
uma boa consciência e ser privado da graça necessária, deve ser mais plenamente
investigado de acordo com a Sagrada Escritura.3[3]
 
Observe que os remonstrantes, como Arminius anteriormente, não tomaram qualquer
posição sobre a questão da segurança eterna dos crentes. Ou seja, eles deixaram em aberto a
questão se uma pessoa verdadeiramente salva poderia cair da graça ou não. Eles também não
seguiram o padrão da TULIP. Embora o modelo de cinco pontos que descreve a crença
calvinista fora desenvolvido mais tarde, a negação dos três pontos centrais é bastante clara na
Remonstrância. No entanto, ao contrário da ideia popular sobre o Arminianismo (especialmente
entre os calvinistas), nem Armínio nem os remonstrantes negaram a depravação total; eles a
afirmaram. É claro que a Remonstrância não é uma declaração completa da doutrina arminiana,
mas ela aborda bem a sua essência. Além do que ela diz, há um campo de interpretação onde
os arminianos às vezes discordam entre si. Todavia, existe um consenso arminiano geral, e é
isso o que este breve resumo irá explicar, recorrendo amplamente ao teólogo nazareno Wiley,

3[3] A Remonstrância, em Harrison, Beginnings of Arminianism, pp.150–51.


que recorreu amplamente a Armínio, Wesley e os principais teólogos metodistas do século XIX
mencionados anteriormente.
 
O Arminianismo ensina que todos os seres humanos nascem moralmente e
espiritualmente depravados e impotentes para fazerem qualquer coisa boa ou digna aos olhos
de Deus sem que haja uma infusão especial da graça de Deus para superar os efeitos do
pecado original. “Os homens não apenas nascem debaixo da penalidade da morte como
consequência do pecado, mas eles também nascem com uma natureza depravada, que em
contraste com o aspecto legal da pena, é geralmente chamada de pecado inato ou depravação
herdada.”4[4] O Arminianismo clássico em geral concorda com a ortodoxia protestante que a
unidade da raça humana no pecado resulta em que todos nascem “filhos de ira”. No entanto,
os arminianos acreditam que a morte de Cristo na cruz fornece um remédio universal para a
culpa do pecado herdado, de modo que ele não é imputado às crianças por causa de Cristo. É
assim que os arminianos, de acordo com os anabatistas, tais como os menonitas, interpretam
as passagens universais do Novo Testamento como Romanos 5, onde tudo é declarado estar
incluído debaixo do pecado assim como tudo é incluído na redenção através de Cristo. Esta é
também a interpretação arminiana de 1Tm 4.10, que indica duas salvações através de Cristo:
uma universal para todas as pessoas e uma especialmente para todos os que creem. A crença
arminiana na redenção geral não é a salvação universal; é a redenção universal do pecado de
Adão. Assim, na teologia arminiana todas as crianças que morrem antes de atingirem a idade
do despertar da consciência e cometerem pecados atuais (em oposição ao pecado inato) são
consideradas inocentes por Deus e levadas ao paraíso. Entre aquelas que cometem pecados
atuais, apenas aquelas que se arrependem e creem têm Cristo como Salvador.
 
O Arminianismo considera o pecado original primariamente como uma depravação
moral que é resultado da privação da imagem de Deus; esta é a perda do poder de evitar o
pecado atual. “A depravação é total, visto que ela afeta todo o ser do homem.”5[5] Isso
significa que todas as pessoas nascem com inclinações alienadas, intelecto obscurecido e
vontade corrompida.6[6] Há tanto uma cura universal quanto um remédio mais específico para
essa condição; a morte expiatória de Cristo na cruz removeu a penalidade do pecado original e
liberou para a humanidade um novo impulso que começa a reverter a depravação com que
todos vêm ao mundo. Cristo é o novo Adão (Romanos 5) que é o novo cabeça da raça; ele não
veio apenas para salvar alguns, mas para fornecer um novo começo para todos. Uma medida
da graça preveniente se estende através de Cristo a toda pessoa que nasce (João 1).
 
Dessa forma, a verdadeira posição arminiana admite a completa penalidade do pecado,
e consequentemente não diminui a extrema pecaminosidade do pecado, nem deprecia
a obra expiatória de nosso Senhor Jesus Cristo. Faz assim, no entanto, não negando
toda a força da penalidade, como fazem os semipelagianos, mas magnificando a
suficiência da expiação, e a consequente transmissão da graça preveniente a todos os
homens através da autoridade do último Adão.7[7]
 
A autoridade de Cristo é coextensiva com a de Adão, mas as pessoas devem aceitar
(através da não resistência) esta graça de Cristo a fim de se beneficiar plenamente dela.
 
O homem é condenado unicamente por suas próprias transgressões. A oferta gratuita
removeu a condenação original e é abundante para muitas ofensas. O homem torna-se
responsável pela depravação de seu próprio coração somente quando rejeita o remédio
para ela, e conscientemente ratifica-a como sua própria, com todas as suas
consequências penais.8[8]
 

4[4] Wiley, Christian Theology, 2:98.


5[5] Ibid., p. 128.
6[6] Ibid., p. 129. Nesta crença, Wiley seguiu John Fletcher.
7[7] Ibid., pp. 132–33.
8[8] Ibid., p. 135.
A depravação herdada inclui o cativeiro da vontade ao pecado, que só é superado pela
graça sobrenatural, preveniente. Esta graça começa a operar em todos mediante o sacrifício de
Cristo (e o Espírito Santo enviado ao mundo por Cristo), mas surge com poder especial
mediante a proclamação do evangelho. Wiley, seguindo Pope e outros teólogos arminianos,
chama a condição humana – por causa do pecado herdado – de “impotência para o bem”, e
rejeita qualquer possibilidade de bondade espiritual à parte da graça especial de Cristo tendo a
precedência.
 
Porque Deus é amor (Jo 3.16; 1Jo 4.8), e não quer que ninguém pereça, mas que
todos cheguem ao arrependimento (1Tm 2.4; 2Pe 3.9), a morte expiatória de Cristo é
universal; alguns de seus benefícios são automaticamente estendidos a todos (por exemplo, a
libertação da condenação do pecado de Adão) e todos os seus benefícios são para todos que os
aceitarem (por exemplo, o perdão dos pecados atuais e a imputação da justiça).
 
A expiação é universal. Isto não quer dizer que toda a humanidade se salvará
incondicionalmente, mas apenas que a oferta sacrificial de Cristo satisfez as pretensões
da lei divina, de maneira que tornou a salvação possível para todos. A redenção,
portanto, é universal ou geral no sentido de provisão, mas especial ou condicional na
sua aplicação ao indivíduo.9[9]
 
No entanto, somente serão salvos aqueles que são predestinados por Deus para a
salvação eterna. Eles são os eleitos. Quem está incluído nos eleitos? Todos aqueles que Deus
anteviu que aceitarão sua oferta de salvação através de Cristo pela não resistência à graça que
se estende a eles por meio da cruz e do evangelho. Assim, a predestinação é condicional ao
invés de incondicional; a presciência eletiva de Deus é causada pela fé dos eleitos.
 
Em contraste com o Calvinismo acima estudado, o Arminianismo sustenta que a
predestinação é o propósito gracioso de Deus de salvar da ruína completa toda a
humanidade. Não é um ato arbitrário e indiscriminado de Deus para garantir a salvação
a um número especial de pessoas e a ninguém mais. Inclui provisionalmente todos os
homens e está condicionada somente pela fé em Cristo.10[10]
 
O Espírito Santo opera nos corações e mentes de todas as pessoas até certo ponto, dá-
lhes alguma consciência das expectativas e provisão de Deus, e as chama ao arrependimento e
à fé. Assim, “a Palavra de Deus é, em certo sentido, universalmente pronunciada, mesmo
quando não registrada em uma linguagem escrita.” “Aqueles que ouvem a proclamação e
aceitam o chamado são conhecidos nas Escrituras como os eleitos.”11[11] Os reprovados são
aqueles que resistem ao chamado de Deus.
 
Uma doutrina arminiana crucial é a graça preveniente, na qual os calvinistas também
acreditam, mas os arminianos a interpretam diferentemente. A graça preveniente é
simplesmente aquela graça de Deus que convence, chama, ilumina e capacita, e que precede a
conversão e torna o arrependimento e a fé possíveis. Os calvinistas a interpretam como
irresistível e eficaz; a pessoa em quem ela opera irá crer e arrepender-se para salvação. Os
arminianos a interpretam como resistível; as pessoas são sempre capazes de resistir à graça de
Deus, como a Escritura chama a atenção (At 7.51). Mas sem a graça preveniente, elas
inevitavelmente e inexoravelmente resistirão à vontade de Deus por causa de sua escravidão ao
pecado.

Quando falamos de “graça preveniente” estamos pensando na que “precede”, que


prepara a alma para a sua entrada no estado inicial da salvação. É a graça preparatória

9[9] H. Orton Wiley, Introdução à Teologia Cristã (São Paulo, SP: Casa
Nazarena de Publicações, 1990), p. 270.
10[10] Ibid., p. 294.
11[11]H. Orton Wiley, Christian Theology (Kansas City, Mo.: BeaconHill, 1941),
2:341, 343.
do Espírito Santo exercida para o homem enfraquecido pelo pecado. Pelo que se refere
aos impotentes, é tida como força capacitadora. É aquela manifestação da influência
divina que precede a vida de regeneração completa.12[12]

Em um sentido, então, os arminianos, como os calvinistas, creem que a regeneração


precede a conversão; o arrependimento e a fé são somente possíveis porque a velha natureza
está sendo dominada pelo Espírito de Deus. A pessoa que recebe a total intensidade da graça
preveniente (isto é, através da proclamação da Palavra e a chamada interna correspondente de
Deus) não mais está morta em delitos e pecados. Entretanto, tal pessoa não está ainda
completamente regenerada. A ponte entre a regeneração parcial pela graça preveniente e a
completa regeneração pelo Espírito Santo é a conversão, que inclui arrependimento e fé. Estes
se tornam possíveis por dádiva de Deus, mas são livres respostas da parte do indivíduo. “O
Espírito opera com o concurso humano e por meio dele. Nesta cooperação, contudo, dá-se
sempre à graça divina preeminência especial.”13[13]

A ênfase sobre a antecedência e preeminência da graça forma o denominador comum


entre o Arminianismo e o Calvinismo. É o que torna o sinergismo arminiano “evangélico.” Os
arminianos levam extremamente a sério a ênfase neotestamentária na salvação como um dom
da graça que não pode ser merecido (Ef 2.8). Entretanto, as teologias arminianas e calvinistas
– como todos os sinergismos e monergismos – divergem sobre o papel que os humanos
desempenham na salvação. Como Wiley observa, a graça preveniente não interfere na
liberdade da vontade. Ela não dobra a vontade ou torna certa a resposta da vontade. Ela
somente capacita a vontade a fazer a escolha livre para cooperar ou resistir à graça. Essa
cooperação não contribui para a salvação, como se Deus fizesse uma parte e os humanos
fizessem outra parte. Antes, a cooperação com a graça na teologia arminiana é simplesmente
não-resistência à graça. É meramente decidir permitir a graça fazer sua obra renunciando a
todas as tentativas de auto-justificação e auto-purificação e admitindo que somente Cristo pode
salvar. Todavia, Deus não toma esta decisão pelo indivíduo; é uma decisão que os indivíduos,
sob a pressão da graça preveniente, devem tormar por si mesmos.
 
O Arminianismo sustenta que a salvação é toda pela graça – todo movimento da alma
em direção a Deus é iniciado pela graça divina – mas os arminianos reconhecem também que a
cooperação da vontade humana é necessária, porque, em última análise, o agente livre decide
se a graça oferecida é aceita ou rejeitada.14[14]
 
O Arminianismo clássico ensina que a predestinação é simplesmente a determinação
(decreto) de Deus para salvar através de Cristo aqueles que livremente respondem à oferta de
Deus da graça livre pelo arrependimento do pecado e fé (confiança) em Cristo. Ela inclui a
presciência de Deus de quem responderá. Não inclui uma seleção de certas pessoas para a
salvação, muito menos para a condenação. Muitos arminianos fazem uma distinção entre a
eleição e a predestinação. A eleição é corporativa – Deus determinou Cristo para ser o Salvador
daquele grupo de pessoas que se arrependem e creem (Ef 1); a predestinação é individual – a
presciência de Deus daqueles que se arrependerão e crerão (Rm 8.29). O Arminianismo clássico
também ensina que essas pessoas que respondem positivamente à graça de Deus pela não
resistência a ela (que envolve arrependimento e confiança em Cristo) são nascidas de novo pelo
Espírito de Deus (que é a regeneração completa), perdoadas de todos os seus pecados e
consideradas por Deus como justas por causa da morte expiatória de Cristo por elas. Nada disto
é baseado em qualquer mérito humano; é um dom gratuito, não imposto, mas livremente
recebido. “A única base da justificação... é a obra propiciatória de Cristo recebida pela fé,” e “o
único ato de justificação, quando visto negativamente, é o perdão dos pecados; quando visto
positivamente, é a aceitação do crente como justo [por Deus].” 15[15] A única diferença
significativa entre o Arminianismo clássico e o Calvinismo nesta doutrina, então, é o papel do

12[12]H. Orton Wiley, Introdução à Teologia Cristã (São Paulo, SP: Casa
Nazarena de Publicações, 1990), p. 298.
13[13] Ibid., p. 300.
14[14] Ibid.
indivíduo em receber a graça da regeneração e justificação. Como Wiley coloca, a salvação “é
um trabalho feito nas almas dos homens pela operação eficaz do Espírito Santo. O Espírito
Santo exerce seu poder regenerador apenas em certas condições, isto é, nas condições de
arrependimento e fé.”16[16] Assim, a salvação é condicional, não incondicional; os humanos
exercem um papel e não são passivos ou controlados por alguma força, interna ou externa.
 
É aqui onde muitos críticos monergistas do Arminianismo apontam o dedo e declaram
que a teologia arminiana é um sistema de salvação pelas obras, ou pelo menos algo inferior à
vigorosa doutrina de Paulo da salvação como um dom gratuito. Se ele deve ser livremente
aceito, eles afirmam, é merecido. Pelo fato do ato de aceitação ser crucial, o que é recebido
não é um dom gratuito. Os arminianos simplesmente não conseguem entender essa afirmação
e sua acusação implícita. Como veremos em vários pontos ao longo deste livro, os arminianos
sempre têm afirmado enfaticamente que a salvação é um dom gratuito; até mesmo o
arrependimento e a fé são apenas causas instrumentais da salvação e impossíveis à parte de
uma operação interna da graça! A única causa eficiente da salvação é a graça de Deus através
de Jesus Cristo e do Espírito Santo. A lógica do argumento de que um dom livremente recebido
(no sentido de que poderia ser rejeitado) não é um dom gratuito surpreende a mente
arminiana. Mas a principal razão para os arminianos rejeitarem a noção calvinista da salvação
monergística, em que Deus incondicionalmente elege alguns para salvação e inclina suas
vontades irresistivelmente, é que ela ofende o caráter de Deus e a natureza de um
relacionamento pessoal. Se Deus salva incondicionalmente e irresistivelmente, por que ele não
salva a todos? Apelar para mistério neste ponto não satisfaz a mente arminiana porque o
caráter de Deus como amor se mostrando em misericórdia está em jogo. Se os homens
escolhidos por Deus não podem resistir a ter um relacionamento correto com Deus, que tipo de
relacionamento é esse? Pode uma relação pessoal ser irresistível? Tais predestinados são
realmente pessoas em um relacionamento assim? Estas são questões fundamentais que
motivam os arminianos – como outros sinergistas – a questionarem toda forma de monergismo,
incluindo o Calvinismo rígido. A questão não é, mais enfaticamente, uma visão humanista do
livre-arbítrio autônomo, como se os arminianos fossem apaixonados pelo livre arbítrio pela sua
própria causa. Qualquer leitura imparcial de Arminius, Wesley, ou qualquer outro arminiano
clássico, irá revelar que este não é o caso. Pelo contrário, a questão é o caráter de Deus e a
natureza do relacionamento pessoal.
 
Anteriormente eu observei que não apenas a predestinação mas também a providência
fornece um ponto de diferença entre o Arminianismo e o Calvinismo. Em resumo, os arminianos
creem na soberania divina e na providência, mas as interpretam diferentemente dos calvinistas
rígidos. Os arminianos consideram que Deus se auto-limita em relação à história humana.
Portanto, muito do que acontece na história é contrário à perfeita vontade antecedente de
Deus. Os arminianos afirmam que Deus está no comando da natureza e da história, mas negam
que Deus controla todo evento. Os arminianos negam que Deus “esconde um rosto alegre” por
trás dos horrores da história. O diabo não é o “diabo de Deus”, ou mesmo um instrumento da
auto-glorificação providencial de Deus. A Queda não foi preordenada por Deus para algum
propósito secreto. Os arminianos clássicos acreditam que Deus pré-conhece todas as coisas,
incluindo todo evento mal, mas rejeitam qualquer noção de que Deus provê “impulsos secretos”
que controlam até as ações de criaturas malignas (angélicas ou humanas).17[17] O governo de

15[15] H. Orton Wiley, Christian Theology (Kansas City, Mo.: BeaconHill, 1941),
2: 395, 393.
16[16] Ibid., p. 419.
17[17] Calvino conhecidamente atribuiu até os atos pecaminosos e maus dos
ímpios aos impulsos secretos de Deus. Uma cuidadosa leitura do livro 1, cap. 18
– “Deus utiliza-se das obras dos ímpios, e inclina suas mentes para cumprir
Seus juízos, de forma que Ele se mantém puro de toda mancha.” – das
Institutas da Religião Cristã revela isso. Lá, entre outras coisas, Calvino diz que
“visto que a vontade de Deus é declarada ser a causa de todas as coisas, fiz da
sua providência o princípio determinante para todos os planos humanos e
Deus é abrangente, mas porque Deus se limita para permitir a livre agência humana (por uma
questão de relacionamentos genuínos que não são manipulados ou controlados), esse governo
é exercido de modos diferentes. Tudo o que acontece é, pelo menos, permitido por Deus, mas
nem tudo que acontece é positivamente desejado ou mesmo tornado certo por Deus. Assim, o
sinergismo entra na doutrina arminiana da providência bem como da predestinação. Deus pré-
conhece mas não age sozinho na história. A história é o produto de ambas as agências divina e
humana. (Não devemos esquecer as agências angélicas e demoníacas também!) O pecado
especialmente não é nem desejado nem governado por Deus, exceto no sentido que Deus o
permite e o limita. Mais importante, Deus não o predestina ou o torna certo. Não é possível
uma expressão breve melhor do entendimento arminiano da providência do que a fornecida
pelo teólogo reformado revisionista Adrio König:
 
Há lamentavelmente muitas coisas que acontecem sobre a Terra que não são a
vontade de Deus (Lc 7.30 e todo outro pecado mencionado na Bíblia), que são contra a
sua vontade, e que derivam do incompreensível e sem sentido pecado no qual
nascemos, no qual a maior parte dos homens vivem, e no qual Israel persistiu, e contra
o qual até os “mais santos homens” (Heid. Cat. p. 114) lutavam todos os seus dias
(Davi, Pedro). Deus tem apenas um curso de ação para o pecado, e que é prover sua
expiação, por tê-lo totalmente crucificado e sepultado com Cristo. Tentar interpretar
todas estas coisas através do conceito de um plano de Deus cria dificuldades
intoleráveis e dá origem a mais exceções do que regularidades. Mas a mais importante
objeção é que a ideia de um plano é contra a mensagem da Bíblia, visto que Deus
mesmo se torna inacreditável se aquilo contra o qual ele lutou com poder, e pelo qual
ele sacrificou seu único Filho, foi, todavia, de alguma forma parte integrante do seu
conselho eterno. Então, é melhor partir da ideia que Deus tinha um certo objetivo em
mente (a aliança, ou o reino de Deus, ou a nova Terra – que são a mesma coisa vista

obras, não só para exibir sua força nos eleitos, que são guiados pelo Espírito
Santo, mas também para obrigar o réprobo à obediência” (Institutes of the
Christian Religion 1.18.2, ed. John T. McNeill, trad. Ford Lewis Battles
[Philadelphia: Westminster Press, 1960], p. 232). Os arminianos acreditam que
o calvinismo rígido não pode escapar de fazer de Deus o autor do pecado e do
mal, e assim contrariando o seu caráter.
de diferentes ângulos) que ele irá alcançar conosco, sem nós, ou mesmo contra nós.18
[18]
 
Fonte: Arminian Theology: Myths and Realities, pp. 30-39
 
Tradução: Samuel Paulo Coutinho

http://www.arminianismo.com/index.php/categorias/diversos/artigos/44-roger-e-olson/1365-
roger-e-olson-uma-breve-visao-da-teologia-arminiana

18[18] Adrio König, Here Am I! A Believer’s Reflection on God (Grand Rapids:


Eerdmans, 1982), pp. 198–99.
Os Arminianos Tentam Reformar a Teologia Reformada
 
Roger E. Olson
 
A teologia arminiana provém do teólogo reformado holandês Jacó Armínio, que nasceu
em 1560 e morreu em 1609, aos 49 anos de idade.[1] Armínio e sua teologia eram polêmicos
em todas as partes dos Países Baixos, bem como na Grã-Bretanha e em outros países onde a
teologia reformada predominava ou tinha influência. A certa altura da controvérsia, irromperam
motins nas principais cidades da Holanda e de outras províncias dos Países Baixos. Em vida,
Armínio e seus ensinos provocaram uma divisão tão profunda na comunidade reformada que o
governo holandês acabou se envolvendo. Embora exonerado de uma heresia pela mais alta
autoridade governante do país, acabou morrendo em meio a outra crise entre a igreja e o
estado, que girou em torno de sua crítica pública às doutrinas calvinistas. Seus seguidores,
chamados remonstrantes (Remonstrantia foi o seu documento de protesto), retomaram a
bandeira deixada por ele e continuaram o desafio. No fim, foram excomungados da igreja
reformada dos Países Baixos pelo Sínodo de Dort (1618-1619) e seus líderes foram exilados
pelo governo holandês. Um deles, que trabalhou durante muitos anos como o principal
estadista dos Países Baixos, foi preso e decapitado publicamente, em parte, pelo menos, por
causa de seu apoio intransigente à “heresia” do arminianismo.
 
Séculos depois da controvérsia dos remonstrantes, o arminianismo tornou-se
praticamente sinônimo de pelagianismo para os puritanos e outros calvinistas conservadores.
Jacó Armínio, no entanto, negou expressamente ser pelagiano ou ter qualquer simpatia pela
heresia da salvação sem a ajuda da graça sobrenatural. Muitos oponentes cautelosos
equiparam a teologia arminiana com o semipelagianismo, embora o próprio Armínio tenha
afirmado que a iniciativa da salvação parte exclusivamente de Deus e que a salvação em si se
dá pela graça mediante a fé somente. Armínio considerava-se protestante leal à igreja
reformada da Holanda que simplesmente discordava de algumas opiniões do calvinismo. Em
especial, rejeitava a versão extrema do calvinismo chamada supralapsarismo, mas acabou
rejeitando qualquer tipo de crença na eleição divina incondicional – ou predestinação de uma
pessoa ao céu ou ao inferno. Como muitos calvinistas de sua época (e desde então)
equiparavam a doutrina protestante da justificação pela graça mediante a fé somente com o
monergismo e o sinergismo com a doutrina católica romana, Armínio foi acusado de ser um
simpatizante secreto de Roma. Armínio e seus seguidores negavam veementemente que o
monergismo é o único conceito do relacionamento entre Deus e os seres humanos caídos e
pecadores que adequadamente considera a salvação pura dádiva gratuita. Embora rejeitassem
a eleição incondicional e a graça irresistível, defendiam os principais princípios protestantes e
afirmavam que a justiça de Cristo é imputada aos pecadores para sua salvação mediante a fé
somente.
 
Sem dúvida ou questionamento, Armínio é um dos teólogos mais injustamente
ignorados e grosseiramente mal interpretados da história da teologia cristã. Tanto ele como sua
teologia são “frequentemente avaliados segundo boatos superficiais”.[2] Um comentarista e
crítico reformado moderno notou que “a teologia de Jacó Armínio é desprezada tanto por
admiradores quanto por difamadores”[3] e disse que Armínio é “um dos doze ou mais teólogos
da históna da igreja cristã que ofereceu um critério permanente para a tradição teológica e,
com isso, transformou seu nome em símbolo de um ponto de vista doutrinário ou confessional
específico”,[4] o que torna duplamente irônico que seja “um dos principais e também mais
desprezados teólogos protestantes”.[5] Para compreender Armínio e sua teologia e a profunda
divisão que ela provocou na teologia protestante teremos de voltar na história até antes do
próprio Armínio e examinar a teologia reformada depois de Calvino.
 
O escolasticismo reformado e o supralapsarismo
 
Embora os principais reformadores protestantes da primeira geração, como Lutero,
Zuínglio e Calvino, tenham reagido contra o escolasticismo e a teologia escolástica, seus
seguidores imediatos voltaram-se para um tipo de pensamento escolástico que dava muito mais
ênfase à filosofia e à lógica e procurava usá-las para desenvolver sistemas altamente coerentes
de doutrina protestante. Essa tendência dos pensadores protestantes da pós-Reforma rendeu-
lhes o rótulo dúbio de “escolásticos protestantes” e sua teologia é caracterizada com imprecisão
como escolasticismo protestante. O que muitos deles tentaram fazer foi encontrar e construir
uma ortodoxia protestante rígida que contestasse todas as heresias, inclusive os ataques de
céticos e críticos católicos romanos. Portanto, enquanto Lutero e Calvino estavam satisfeitos
com um pouco de mistério na teologia, esses escolásticos protestantes tentaram obliterar o
mistério, a incerteza e a ambiguidade da teologia protestante ao imitarem o estilo de Tomás de
Aquino, que procurou empregar as Escrituras, a tradição e a razão para desenvolver um
sistema abrangente de toda a verdade. Naturalmente, a maioria dos escolásticos protestantes
dos séculos XVI e XVII não tinha consciência das semelhanças entre seus próprios
empreendimentos teológicos e os de Tomás de Aquino e de outros teólogos católicos
medievais. Apesar disso, os teólogos históricos posteriores, ao examiná-los, não puderam
deixar de perceber a semelhança.
 
Richard Muller, um dos principais estudiosos modernos do escolasticismo protestante,
define-o como “teologia acadêmica, identificada pela cuidadosa divisão dos temas e definição
das partes componentes e pelo interesse em impelir questões lógicas e metafísicas levantadas
pela teologia para respostas racionais”.[6] Muller descreve com exatidão essa teologia pós-
Reforma protestante do final do século XVI (exatamente quando Armínio estava começando seu
ministério em Amsterdã) como “ortodoxia confessional mais rigorosamente definida em seus
limites doutrinários do que a teologia dos reformadores primitivos, mas, ao mesmo tempo, mais
ampla e mais diversificada no emprego de material de tradição cristã, particularmente do
material fornecido pelos doutores medievais [em teologia]”.[7] Embora poucos (ou talvez
nenhum) desses praticantes do escolasticismo protestante reconhecessem explicitamente sua
dívida para com fontes documentais católicas romanas, os sistemas de pensamento ortodoxo
protestante que desenvolveram dependia muito das referidas fontes e, sobretudo, de seus
métodos de dedução lógica e especulação metafísica.
 
Um dos exemplos mais notáveis desse escolasticismo protestante incipiente é o
sucessor de Calvino em Genebra, Teodoro Beza (1519-1605). Quando Calvino morreu, em
1564, “toda a responsabilidade de Calvino recaiu sobre Beza. Beza era chefe da Academia [de
Genebra] e professor, presidente do Conselho dos Pastores, uma influência poderosa sobre os
magistrados de Genebra e porta-voz e defensor da posição protestante reformada”.[8] Assim
como vários outros pastores e teólogos reformados de todas as partes da Grã-Bretanha e da
Europa continental, Jacó Armínio foi aluno de Beza por algum tempo. Posteriormente, é claro,
rejeitou as conclusões de Beza, mas talvez não o método escolástico. Beza é mais conhecido na
história da teologia como um dos fundadores do tipo extremo da teologia calvinista conhecido
como supralapsarismo. Muitos escolásticos reformados, como Beza, ficavam fascinados com
perguntas sobre os decretos de Deus. Tanto Zuínglio como Calvino enfatizavam que tudo que
acontece – inclusive a queda de Adão e Eva e a eleição de alguns seres humanos para a
salvação e de outros para a perdição – é determinado por Deus. Em outras palavras, esses dois
teólogos suíços reformados afirmaram que nada acontece, nem pode acontecer, por acidente
ou mesmo por contingência. Tudo que acontece fora do próprio Deus, acontece por decreto
divino. Deus prediz o que vai acontecer, porque tudo é predestinado por ele e ele predestina
porque decreta que assim seja por toda a eternidade.
 
Beza e outros teólogos reformados depois de Calvino começaram a pensar e especular
a respeito da “ordem dos decretos divinos”. Em outras palavras, interessavam-se pelos
propósitos supremos de Deus para todas as coisas. Por que Deus criou o mundo? Seu decreto
da criação do mundo é logicamente anterior ao decreto de predestinar algumas pessoas para a
salvação e outras para a perdição eterna ou o contrário? Eles concordavam que todos os
decretos de Deus são simultâneos e eternos, porque aceitavam a noção de Agostinho da
eternidade como o “momento presente eterno” no qual todos os tempos – passado, presente e
futuro – são simultâneos. Acreditavam que, para Deus, não há nenhuma separação, nem
sequer sucessão, de momentos. Tudo é eternamente presente. Por isso, Deus não decreta algo
e depois espera para ver o que acontece para então, dependendo do resultado, decretar outra
coisa. Todos os decretos de Deus em relação ao que está fora dele (a criação) são simultâneos
e eternos. Logo, quando Beza e outros protestantes especulavam e debatiam a respeito da
“ordem dos decretos eternos”, referiam-se à ordem lógica e não a alguma ordem cronológica.
Portanto, a pergunta era: Qual é a ordem lógica correta dos decretos de Deus com relação à
criação e à redenção? É uma questão importante, porque a maneira de vermos os propósitos
supremos de Deus para as coisas depende de como consideramos a ordem dos decretos divinos
e vice-versa.
 
Beza e outros calvinistas eram obcecados pela doutrina da predestinação, muito mais
do que Calvino jamais foi. Enquanto Calvino situou essa doutrina dentro da categoria da
redenção como parte da atividade graciosa de Deus e admitia o mistério em relação aos
propósitos de Deus na eleição e reprovação divinas, Beza situou a predestinação dentro da
doutrina de Deus como a dedução direta do poder, dos conhecimentos e do governo
providencial de Deus.[9] Assim, aproximava-se muito mais de Zuínglio do que de Calvino. Beza,
assim como a maioria dos calvinistas, também deduziu a doutrina da expiação limitada – que
Cristo morreu somente pelos eleitos e não pelos réprobos – a partir da doutrina da providência
e dos decretos de eleição divinos. Essa dedução, embora lógica, não se encontra em Calvino.
Para proteger a doutrina da predestinação de qualquer desgaste pelo sinergismo, Beza e outros
calvinistas rígidos do século XVI desenvolveram o supralapsarismo. Supra indica a prioridade
lógica em relação a alguma outra coisa. Lapsarismo é uma referência à queda da humanidade
(da mesma raiz que lapso – “cair”). Por isso, supralapsarismo significa, literalmente, “alguma
coisa anterior à queda”. Isso, porém, dificilmente explica sua relevância teológica.
 
Teologicamente, o supralapsarismo é uma forma de ordenar os decretos divinos de tal
maneira que a decisão e o decreto de Deus em relação à predestinação dos seres humanos, ao
céu ou ao inferno, antecede seus decretos de criar os seres humanos e permitir sua queda. A
ordem típica dos decretos divinos, segundo o supralapsarismo, é a seguinte:
 
1. O decreto divino de predestinar algumas criaturas à salvação e à vida eterna e outras
à perdição e ao castigo eterno no inferno.
2. O decreto divino de criar.
3. O decreto divino de permitir que os seres humanos caiam no pecado.
4. O decreto divino de fornecer meios para a salvação (Cristo e o evangelho) dos
eleitos.
5. O decreto divino de aplicar aos eleitos a salvação (a justiça de Cristo).
 
A ordem supralapsária dos decretos divinos deixa claro que o primeiro e principal
propósito de Deus no seu relacionamento com o mundo é glorificar a si mesmo (sempre o
motivo principal de Deus em tudo), salvando algumas criaturas e condenando outras. A dupla
predestinação, portanto, logicamente antecede à criação, à queda e todas as demais coisas,
inclusive a encarnação de Cristo e sua expiação, na intenção e no propósito de Deus.
 
Beza e os demais calvinistas supralapsários acreditavam estar apenas esclarecendo os
pormenores lógicos da doutrina da eleição ensinada pelo próprio Calvino. Não se sabe se isso
era verdade. Alguns estudiosos acreditam que Calvino o teria aprovado. Outros acham que ele
teria rejeitado o supralapsarismo e preferido o contrário, o infralapsarismo. Infra indica
subsequência a outra coisa. Nesse caso, o infralapsarismo subordina o decreto divino da
predestinação ao decreto de permitir a queda da humanidade no pecado. Segundo os
calvinistas infralapsários, o propósito supremo de seu plano global não é eleger alguns e
reprovar outros, mas glorificar a si mesmo pela criação do mundo. Foi somente porque os seres
humanos caíram no pecado que Deus subsequentemente (pela ordem lógica) decretou a dupla
predestinação. Portanto, a ordem típica dos decretos divinos no infralapsarismo é a seguinte:
 
1. O decreto divino de criar o mundo e, nele, a humanidade.
2. O decreto divino de permitir a queda da humanidade.
3. O decreto divino de eleger alguns seres humanos à salvação e à vida eterna e de
predestinar outros à perdição e ao castigo eterno.
4. O decreto divino de fornecer o meio de salvação (Cristo) aos eleitos.
5. O decreto divino de aplicar a salvação aos eleitos e deixar os réprobos (os
predestinados à perdição) ao seu destino merecido.
 
Os supralapsários e os infralapsários concordavam em muitos assuntos. Concordavam
que Calvino tinha a visão básica correta do plano e propósito de Deus em relação à criação:
glorificar a si mesmo através de tudo. Concordavam que Deus controla tudo que acontece,
tanto na criação quanto na redenção, e que nada acontece sem que ele o decrete e faça
acontecer. Concordavam que a queda da humanidade e o destino final de cada ser humano no
céu ou no inferno são predestinados por Deus, e não apenas previstos ou prenunciados.
Concordavam que Deus não é responsável pelo pecado nem pelo mal, no sentido de carregar
algum fardo de culpa por isso, pois ele está acima das leis e das noções humanas de equidade.
Tudo o que Deus faz é correto, porque glorifica a ele e, conforme Beza supostamente declarou:
“Os que sofrem eternamente no inferno podem pelo menos se consolar com o fato de estarem
ali para a maior glória de Deus”.
 
A discórdia entre os supralapsários e os infralapsários girava em torno de o primeiro
propósito (supremo) de Deus ser o de se glorificar pela predestinação ou pela criação. Outra
maneira de expressar a questão é que os supralapsários consideravam que o decreto divino da
predestinação se aplicava aos seres humanos como criaturas, sem levar em conta o fato de
também serem pecadores, ao passo que os infralapsários consideravam que o decreto divino da
predestinação se aplicava aos seres humanos como pecadores caídos. De qualquer forma,
porém, tanto os salvos quanto os perdidos são o que são porque Deus assim decidiu desde a
eternidade.
 
O consenso doutrinário calvinista
 
Na segunda metade do século XVI, os escolásticos protestantes reformados
pertencentes às duas escolas de pensamento, supralapsária e infralapsária, desenvolveram
gradualmente um sistema de doutrina calvinista que, posteriormente, foi sintetizado de acordo
com o acrônimo TULIP. Os cinco pontos do calvinismo nunca tinham sido expostos exatamente
dessa maneira antes da grande controvérsia arminiana e da sua conclusão no Sínodo de Dort
em 1618-1619. Nesse sínodo calvinista na Holanda, eles foram declarados e reconhecidos como
doutrina oficial, pelo menos para as igrejas holandesas reformadas. Depois desse
acontecimento, protestantes reformados de todos os lugares começaram a aceitá-los. O
acrônimo foi adotado e os cinco pontos são corretamente entendidos como válidos pela maioria
dos escolásticos reformados, tanto supralapsários quanto infralapsários, mesmo antes de Dort
os ter canonizado. Os cinco pontos são o que Armínio questionava e seus seguidores, os
remonstrantes, rejeitavam e, por esse motivo, os últimos foram excomungados e exilados da
Holanda. É quase certo que o próprio Armínio receberia o mesmo tratamento se tivesse vivido
tempo suficiente. Em poucas palavras, os cinco pontos são:
 
- Depravação total (Total depravation). Os seres humanos estão mortos em seus delitos
e pecados antes de Deus os regenerar soberanamente e lhes outorgar a dádiva da
salvação (o que, em geral, implica na negação do livre-arbítrio).
- Eleição incondicional (Unconditional election). Deus escolhe alguns seres humanos
para serem salvos, antes e independentemente de qualquer coisa que façam por conta
própria (com isso, fica em aberto a questão se Deus ativamente predestina alguns para
a perdição ou simplesmente os deixa em sua perdição merecida).
- Expiação limitada (Limited atonement). Cristo morreu somente para salvar os eleitos e
sua morte expiatória não é universal, para a humanidade toda.
- Graça irresistível (Irresistible grace). Não é possível resistir à graça de Deus. Os
eleitos a receberão e serão salvos por ela. Os réprobos nunca a receberão.
- Perseverança dos santos (Perseverance of the saints). Os eleitos perseveram
inevitavelmente para a salvação final (eterna segurança).
 
Esse é um quadro parcial da teologia reformada calvinista de aproximadamente 1600,
embora o acrônimo TULIP fosse cunhado posteriormente. Para onde quer que se fosse na Grã-
Bretanha ou na Europa continental, os que se consideravam reformados e seguidores de João
Calvino concordavam, no mínimo, quanto a esses cinco axiomas de doutrina, além do Credo
niceno. É discutível se Calvino teria concordado com todos os cinco. Os teólogos e pregadores
reformados também concordavam, de modo geral, que fazia parte do sistema a crença na
providência meticulosa de Deus sobre tudo – que tudo o que acontece na natureza e na história
é decretado por Deus. Qualquer outra crença, como o sinergismo, era equiparada pela maioria
dos calvinistas com a doutrina católica romana. Os supralapsários toleravam os infralapsários,
mas achavam que a interpretação que estes davam à teologia calvinista, na melhor das
hipóteses era fraca e, na pior, era abertura para o sinergismo. Beza tolerou o infralapsarismo
em Genebra e até mesmo entre o corpo docente da Academia de Genebra.
 
Jacó Armínio e a controvérsia dos remonstrantes
 
A Holanda na qual Jacó Armínio nasceu e foi criado estava lutando contra a tradição
católica romana e contra o domínio da Espanha católica. Um pequeno grupo de rebeldes uniu
várias províncias contra o domínio espanhol e estabeleceu uma aliança instável conhecida como
Províncias Unidas (dos Países Baixos). A Holanda era a maior e a mais influente das províncias.
Ao mesmo tempo em que os holandeses se libertaram da Espanha, estabeleceram sua igreja
nacional protestante. A igreja reformada de Amsterdã foi fundada em 1566 e seus principais
ministros e leigos mantiveram os três princípios protestantes fundamentais, sem se aliarem a
nenhum ramo específico do protestantismo. O protestantismo holandês primitivo era um tipo
sui generis que não seguia rigidamente o luteranismo ou o calvinismo.[10]
 
Armínio foi criado como protestante na cidadezinha de Oudewater, entre Utrecht e
Roterdã, mas sua formação cristã na juventude não foi pesadamente calvinista. Aos quinze
anos de idade, foi enviado a Marburgo, na Alemanha, para obter sua educação. Enquanto
estava lá, sua cidade natal foi invadida por soldados católicos leais à Espanha e muitos
habitantes foram massacrados. A família inteira de Armínio foi exterminada em um único dia. O
jovem estudante ficou sob os cuidados de um respeitado ministro holandês de Amsterdã e
acabou se tornando um dos primeiros alunos a se matricular na recém-estabelecida
universidade protestante de Leiden. A igreja reformada de Amsterdã considerava Armínio um
dos jovens candidatos mais promissores ao ministério e por isso custeou seu estudo superior
em Leiden e, depois, na Suíça. Lá, estudou por algum tempo na “Meca” da teologia reformada,
a Academia de Genebra, dirigida por Beza.
 
Em 1588, Armínio iniciou o ministério na igreja reformada de Amsterdã, aos 29 anos de
idade. Todos os relatos contam que seu pastorado foi ilustre. Conforme observa certo biógrafo:
“Armínio se tornou o primeiro pastor holandês da igreja reformada holandesa da maior cidade
da Holanda, exatamente quando ela estava emergindo de seu passado medieval e irrompendo
na Idade de Ouro”.[11] Era notadamente benquisto e respeitado, tanto como pastor quanto
como pregador, e rapidamente se tornou um dos homens mais influentes de toda a Holanda.
Casou-se com a filha de um dos principais cidadãos de Amsterdã e entrou para o grupo dos
privilegiados e poderosos. Nem por isso demonstrou qualquer indício de arrogância ou ambição.
Nem sequer seus críticos ousaram acusá-lo de abusar de seu cargo pastoral ou de qualquer
outra falha pessoal ou espiritual. Acabaram acusando-no de heresia somente porque, como
pastor de uma das igrejas mais influentes da Holanda, começou a criticar abertamente o
supralapsarismo que entrou em ascensão conforme cada vez mais ministros holandeses
retornaram de seus estudos em Genebra sob a direção de Beza. Armínio era da “escola amiga”
do protestantismo holandês de mentalidade independente, que se recusava a declarar como
ortodoxo qualquer ramo específico da teologia protestante. Alguns, no entanto, insistiam cada
vez mais que o supralapsarismo era a única teologia protestante ortodoxa e que qualquer outra
opinião significava, de alguma forma, uma acomodação à teologia católica romana e, portanto,
era uma aliada em potencial da Espanha, inimiga política dos Países Baixos.
 
Na década de 1590, o conflito entre Armínio e os calvinistas rígidos da Holanda se
tornou cada vez pior. Alguns estudiosos sugerem que Armínio mudou de opinião nesse período.
Acreditam que tinha sido um “hipercalvinista” ou mesmo um supralapsário. Essa suposição
parece ter se fundamentado simplesmente no fato de ele ter sido aluno de Beza. O principal
intérprete moderno de Armínio contradiz a ideia da alegada mudança de opinião de Armínio:
“Todas as evidências levam a uma só conclusão: Armínio não concordava com a doutrina de
Beza sobre a predestinação, quando assumiu o seu ministério em Amsterdã; na realidade, é
provável que nunca tenha concordado com ela”.[12] Na série de sermões sobre a Epístola de
Paulo aos romanos, o jovem pregador começou a negar abertamente não somente o
supralapsarismo, mas também a eleição incondicional e a graça irresistível. Interpretou
Romanos 9, por exemplo, como uma referência não a indivíduos, mas a classes – crentes e
incrédulos – conforme predestinadas por Deus. Afirmou que o livre-arbítrio dos indivíduos os
incluía nas classes de “eleitos” e de “réprobos” e explicou a predestinação como a presciência
divina acerca da livre escolha dos indivíduos. Para apoiar essa ideia, Armínio apelou a Romanos
8.29. Conforme observa o biógrafo e intérprete de Armínio, Carl Bangs, o teólogo holandês
demonstrou, em seus sermões da década de 1590, o desejo de encontrar o equilíbrio entre a
graça soberana e o livre-arbítrio humano: “o objetivo era uma teologia da graça, que não
deixasse o homem ‘entre a cruz e o punhal’”.[13]
 
Os rígidos oponentes calvinistas de Armínio em Amsterdã e outros lugares não
tardaram em farejar o pavoroso erro de sinergismo em sua pregação e ensino e, publicamente,
acusaram-no de heresia para os oficiais da igreja e da cidade, que examinaram a questão e
inocentaram Armínio das acusações. Armínio apelou à tradição protestante holandesa da
independência dos sistemas teológicos específicos e à tolerância de diversidade nos pormenores
da doutrina. Os oficiais concordaram. Os oponentes supralapsários de Armínio ressentiram-se e
decidiram que o arruinariam de qualquer maneira. Sofreram uma derrota fragorosa quando
Armínio foi nomeado para ocupar a prestigiosa cátedra de teologia na Universidade de Leiden
em 1603. O outro catedrático de teologia daquele período era Francisco Gomaro, que talvez
tenha sido o calvinista supralapsário mais franco e rígido de toda a Europa. Gomaro, além de
considerar todas as outras opiniões, inclusive o infralapsarismo, falhas ou até heréticas, “tinha,
segundo quase todos os relatos a seu respeito, um temperamento extremamente irascível”.
[14]
 
Quase que imediatamente, Gomaro iniciou uma campanha de acusações contra
Armínio. Algumas delas eram verídicas. Por exemplo, Armínio não escondia a rejeição não
somente do supralapsarismo, mas também da doutrina clássica calvinista da predestinação
como um todo. Gomaro distorceu esse fato e, publicamente e por trás das costas de Armínio,
insinuou que ele era um simpatizante secreto dos jesuítas – uma ordem de sacerdotes católicos
romanos especialmente temida que era chamada “tropa de choque da Contra-Reforma”. Essa
alegação de Gomaro, assim como outras, era claramente falsa. Por exemplo, Gomaro acusou
Armínio de socinianismo, que era uma negação da Trindade e de quase todas as demais
doutrinas cristãs clássicas. Não importa o que Armínio escrevesse ou dissesse em sua defesa,
via-se constantemente atacado por boatos e sob suspeita. “Quando a controvérsia ultrapassou
os limites das salas acadêmicas e chegou aos púlpitos e às ruas, suas defesas perderam o
efeito. Era mais fácil chegar à conclusão de que ‘onde há fumaça, há fogo’”.[15] A controvérsia
cresceu a ponto de provocar uma guerra civil entre as províncias dos Países Baixos. Algumas
apoiavam Armínio, outras apoiavam Gomaro. O conflito eclodiu em 1604, quando Gomaro, pela
primeira vez, acusou Armínio abertamente de heresia e durou até a morte de Armínio por causa
de tuberculose em 1609. Quando morreu, sua teologia estava sob a inquisição pública de
líderes religiosos e políticos. Em seu enterro, um de seus amigos mais íntimos fez o discurso
fúnebre diante do corpo de Armínio: “Viveu na Holanda um homem que só não era conhecido
por quem não o estimava suficientemente e só não o estimava quem não o conhecia
suficientemente”.[16]
 
Depois da morte de Armínio, quarenta e seis ministros e leigos holandeses respeitados
redigiram um documento chamado “Remonstrância” que resumia a rejeição, por Armínio e por
eles mesmos, do calvinismo rígido em cinco pontos. Graças ao título do documento, os
arminianos passaram a ser chamados de remonstrantes. Entre eles, estavam os estadistas e
líderes políticos holandeses que tinham ajudado a libertar os Países Baixos da Espanha. Seus
inimigos acusavam-nos de apoiar secretamente os jesuítas e a teologia católica romana, e de
simpatizar com a Espanha, só porque concordavam com a oposição de Armínio a respeito das
doutrinas da predestinação! Não existe nenhuma evidência de que qualquer um deles
realmente tivesse alguma culpa em relação às acusações políticas feitas contra eles. Mesmo
assim, ocorreram tumultos em várias cidades holandesas, nos quais foram pregados sermões
contra os remonstrantes e distribuídos panfletos que os difamavam como hereges e traidores.
Finalmente, o grande poder político dos Países Baixos, o príncipe Maurício de Nassau, entrou na
luta em favor dos calvinistas. Em 1618, ordenou a detenção e o encarceramento dos principais
arminianos, para aguardar o resultado do sínodo nacional de teólogos e pregadores. O Sínodo
de Dort entrou em sessão em novembro de 1618 e foi encerrado em janeiro de 1619, contando
com a presença de mais de cem delegados, inclusive alguns da Inglaterra, da Escócia, da
França e da Suíça. “João Bogerman, um pregador calvinista com opiniões extremadas, que
havia defendido em um documento a pena de morte por heresia, foi escolhido como
presidente”.[17]
 
Como esperado, a despeito das eloquentes defesas do arminianismo feitas pelos
principais remonstrantes, na conclusão do sínodo, todos os líderes remonstrantes foram
condenados como hereges. Pelo menos duzentos foram depostos do ministério da igreja e do
estado e cerca de oitenta foram exilados ou presos. Um deles, o presbítero, estadista e filósofo
Hugo Grotius (1583-1645), foi confinado em uma masmorra da qual posteriormente escapou.
Outro estadista foi publicamente decapitado. Um historiador moderno da controvérsia concluiu
que “o modo de [o príncipe] Maurício tratar os estadistas arminianos só pode ser considerado
um dos grandes crimes da História”.[18]
 
O Sínodo de Dort promulgou um conjunto de doutrinas padronizadas para a igreja
reformada holandesa, que se tornou a base do acrônimo TULIP. Cada cânon, conforme eram
chamadas as doutrinas, baseava-se em um dos cinco pontos da “Remonstrância”. As coisas que
os arminianos negavam, Dort canonizou como doutrina oficial, obrigatória para todos os crentes
protestantes reformados. Não arbitrou, no entanto, sobre o supralapsarismo e o infralapsarismo
e, desde então, as duas teorias continuaram dentro do consenso calvinista expresso pelo
Sínodo de Dort. Após a morte do príncipe Maurício em 1625, o arminianismo gradualmente
voltou a fazer parte da vida holandesa. Já em 1634, muitos exilados voltaram e organizaram a
Fraternidade Remonstrante, que cresceu e formou a Igreja Reformada Remonstrante, que
ainda existe. Não foi nos Países Baixos, no entanto, que a teologia arminiana causou maior
impacto. Isso aconteceu na Inglaterra e na América do Norte pela influência de destacados
ministros anglicanos, batistas gerais, metodistas e ministros de outras seitas e denominações
que surgiram nos séculos XVII e XVIII. João Wesley (1703-1791) tornou-se o arminiano mais
influente de todos os tempos. Seu movimento metodista adotou o arminianismo como teologia
oficial e, através dele, tornou-se parte da tendência prevalecente na vida protestante da Grã-
Bretanha e da América do Norte.
 
A crítica de Armínio contra a teologia reformada
 
Armínio expressou sua teologia em vários tratados publicados, os quais, juntos, formam
três grandes volumes.[19] Suas principais obras doutrinárias sobre questões relacionadas à
controvérsia arminiana (os decretos, a providência, e a predestinação) são: Exame do panfleto
do dr. Perkins sobre a predestinação (1602), Declaração de sentimentos (1608), Carta
endereçada a Hipólito A. Collibus (1608) e Artigos que devem ser diligentemente examinados e
ponderados (data desconhecida). Naturalmente, Armínio escreveu várias outras obras de
importância, inclusive comentários sobre Romanos 7 e Romanos 9, mas os quatro tratados
resumem e expressam de forma adequada e clara suas ideias básicas a respeito de Deus, da
humanidade, do pecado e da salvação.
 
Uma das acusações feitas com frequência contra Armínio e seus seguidores é a de
terem se desviado da teologia protestante clássica. Eles foram acusados de rejeitar as crenças
fundamentais da Reforma protestante. Ainda hoje, é possível ouvir ou ler essa alegação,
especialmente da parte de calvinistas tradicionais. O próprio Armínio não poupou esforços para
comprovar seu compromisso e suas credenciais teológicas protestantes. Por exemplo, sobre a
sola scriptura, Armínio afirmava a autoridade suprema das Sagradas Escrituras acima de todas
as demais fontes e normas. Rejeitava explicitamente a equivalência entre a tradição ou a razão
e as Escrituras e apelava por um novo exame de todas as formulações teológicas humanas à
luz da Bíblia.
 
A regra da verdade teológica não deve ser dividida em primária e secundária; é una e
simples, as Sagradas Escrituras. [...] As Escrituras são a regra de toda a verdade divina,
de si, em si e por si mesmas. [...] Nenhum escrito composto por homens, seja um,
alguns ou muitos indivíduos, à exceção das Sagradas Escrituras [...] está [...] isento de
um exame a ser instituído pelas Escrituras. [...] É tirania e papismo controlar a mente
dos homens com escritos humanos e impedir que sejam legitimamente examinados,
seja qual for o pretexto adotado para tal conduta tirânica.[20]
 
Além de declarações explícitas como essa, outra prova da lealdade de Armínio ao
princípio protestante das Escrituras reside no fato de ele nunca ter contestado as Escrituras
nem apelado a uma tradição extrabíblica ou ideia filosófica contrária a elas. Discordava
abertamente de algumas interpretações tradicionais das Escrituras, mas nunca discordou dos
ensinos das Escrituras, conforme os entendia. De fato, acusou seus oponentes calvinistas de
violar o princípio bíblico ao tratarem certas declarações confessionais reformadas como
equivalentes à Bíblia em dignidade e autoridade e se recusarem a reconsiderá-las ou revisá-las.
 
Assim como no princípio bíblico, Armínio nunca se cansou de afirmar a lealdade ao
princípio básico protestante sola gratia et fides – a salvação pela graça, mediante a fé somente.
Alan Sell, teólogo reformado contemporâneo, declara que “quanto à questão da justificação,
Armínio está em harmonia com todas as igrejas reformadas e protestantes”.[21] Naturalmente,
se partirmos do fato de que qualquer forma de sinergismo é incompatível com a doutrina
protestante da justificação pela fé somente, a doutrina da salvação adotada por Armínio será
excluída a priori. Mas Armínio contestava essa suposição e insistia em afirmar que, embora
negasse a teologia monergista de Agostinho, Zuínglio e Calvino, podia aderir à doutrina
protestante clássica da salvação. Na Declaração de sentimentos, escreveu: “acredito não ter
ensinado ou nutrido sentimentos a respeito da justificação do homem diante de Deus que não
fossem unanimemente mantidos pelas igrejas reformadas e protestantes e estivessem de total
acordo com suas opiniões expressas”.[22] Por ter sido publicamente acusado de negar a
justificação pela graça mediante a fé somente, Armínio incluiu uma declaração confessional
sobre essa doutrina em Sentimentos, que entregou ao governo holandês na controvérsia
imediatamente anterior à sua morte:
 
Pelo presente, abreviadamente, direi apenas que “creio que os pecadores são
considerados justos unicamente pela obediência de Cristo e que a justiça de Cristo é a
única causa meritória pela qual Deus perdoa os pecados dos que creem e os considera
tão justos como se tivessem cumprido com perfeição a lei. Mas como Deus não imputa
a justiça de Cristo a ninguém, a não ser aos que creem, concluo que, já que se pode
dizer com segurança, àquele que crê, a fé é imputada pela graça como justiça – porque
Deus apresentou seu Filho Jesus Cristo para ser uma propiciação, um trono de graça
[ou misericórdia] pela fé em seu sangue –, seja qual for a interpretação aplicada a
essas expressões, nenhum de nossos ministros culpa Calvino nem o considera
heterodoxo nessa questão; a minha opinião, porém, não diverge tanto da dele a ponto
de me impedir de colocar de próprio punho minha assinatura em tudo o que ele
ensinou a respeito do assunto, no terceiro livro de suas Institutas; isso estou disposto a
fazer a qualquer momento, além de expressar a minha aprovação total.[23]
 
Em muitos lugares e de muitas maneiras, Armínio afirmou a crença de que a salvação
se dá pela graça de Deus mediante a fé somente. A calúnia de que negava tal coisa, tão
comum em sua época e frequente desde então, é uma das maiores injustiças da história da
teologia cristã.
 
Por que, então, os oponentes e inimigos de Armínio o acusavam bem como seus
seguidores de negar o princípio da salvação pela graça mediante a fé somente? Só pode ser
porque se opunha abertamente às doutrinas do calvinismo que eram extremamente associadas
a esse princípio. Acreditavam que a salvação é pura dádiva – imerecida – quando a pessoa é
totalmente passiva na regeneração, na conversão e na justificação. Ou seja, a salvação
acontece realmente pela graça somente quando a aceitação dela pelos pecadores não é um ato
de livre escolha, mas se dá de forma incondicional e irresistível. E isso só é verdade se estiver
predestinado e eternamente decretado. Portanto, dizer que o pecador que está sendo salvo
participa da própria salvação é dar lugar à jactância, porque subentende que a pessoa que
livremente toma a decisão de aceitar a graça para a salvação a está, de certa forma,
conquistando por merecimento. Segundo a crença calvinista tradicional, isso também despojaria
Deus de sua soberania e tornaria a decisão divina, a respeito de quem deve ser salvo,
dependente das decisões e ações das criaturas. Armínio rejeitava totalmente essa linha de
raciocínio e interpretava a passagem bíblica crucial de Romanos 9 de modo diferente dos
calvinistas.
 
Armínio não rejeitava a predestinação. Na realidade, afirmou a crença na
predestinação. Rejeitava, isto sim, o supralapsarismo, que considerava doutrina muito
perniciosa. Resumiu a versão supralapsária do calvinismo apresentada por Gomaro da seguinte
forma:
 
Deus, por decreto eterno e imutável, predestinou, dentre os homens (que nem sequer
considera criados e muito menos caídos), certos indivíduos à vida eterna e outros à
destruição eterna, sem levar em conta a justiça ou o pecado, a obediência ou a
desobediência, mas unicamente seu próprio aprazimento, para demonstrar a glória de
sua justiça e misericórdia ou, como outros afirmam, para demonstrar sua graça
salvífica, sua sabedoria e seu poder livre e inexorável.[24]
 
Na Declaração de sentimentos, Armínio levantou vinte objeções ao supralapsarismo.
Algumas se aplicam a qualquer versão da crença calvinista na predestinação, incluindo o
infralapsarismo. Argumentou que o supralapsarismo é contrário à própria natureza do
evangelho, pois entende que as pessoas são salvas ou não independentemente de serem
pecadoras ou crentes. Primeiro (no primeiro decreto de Deus), são salvas ou condenadas e,
somente então, se tornam crentes ou pecadoras. Argumentou, também, que essa doutrina é
uma novidade na história da teologia, porque nunca foi apresentada antes de Gomaro e de
seus antecessores imediatos (por exemplo, Beza). Além disso, é contrária à natureza amorosa
de Deus e à liberdade da natureza humana. Talvez a objeção mais forte de Armínio tenha sido
a de que o supralapsarismo (e, por extensão, qualquer doutrina da eleição incondicional) é
“injurioso à glória de Deus” porque “a partir dessas premissas, deduzimos, além disso, que
Deus realmente peca [...], que Deus é o único pecador [...], que o pecado não é pecado”.[25]
Armínio nunca se cansou de dizer que a forte doutrina do calvinismo não pode negar que
coloca Deus como autor do pecado e, se Deus é o autor do pecado, logo, o pecado não é de
fato pecado porque tudo o que ele cria é bom. Armínio era um realista metafísico.
 
Quando passou a examinar o infralapsarismo, Armínio não foi mais generoso. Embora
não coloque o decreto divino da eleição e da reprovação antes da criação e da queda, o
infralapsarismo não deixa de considerar necessária a queda da humanidade e Deus seu autor.
[26] Em última análise, segundo Armínio, qualquer doutrina monergista da salvação torna
Deus o autor do pecado e, portanto, hipócrita, “porque imputa hipocrisia a Deus ao supor que,
em sua exortação às pessoas, exige que creiam em Cristo, mas não o apresenta como seu
Salvador”.[27] Armínio apelou a João 3.16 e argumentou em seus escritos que a
universalidade da vontade de Deus de salvar deve ser levada a sério e que a predestinação
deve ser entendida de forma compatível com o amor e bondade de Deus e com o livre-arbítrio
humano.
 
A doutrina da predestinação segundo Armínio
 
Armínio não se recusava a discutir os decretos de Deus. Apenas se opunha à ordem
específica em que os decretos divinos eram colocados nos dois principais ramos do calvinismo.
Segundo ele, ambos eram passíveis de críticas devastadoras da mesma espécie. Por exemplo,
nenhum colocava em primeiro lugar o decreto divino no sentido de enviar Jesus Cristo para ser
o Salvador do mundo, enquanto o evangelho é essencialmente Jesus Cristo. Na Dedaração de
sentimentos, Armínio propôs um esquema alternativo de quatro decretos divinos a respeito da
salvação intitulado “Meus próprios sentimentos a respeito da predestinação”:
 
I. O primeiro decreto absoluto de Deus sobre a salvação do pecador é aquele pelo qual
decretou que nomeava seu Filho Jesus Cristo mediador, redentor, salvador, sacerdote e
rei [...]
II. O segundo decreto exato e absoluto de Deus é aquele pelo qual decretou que
receberia em favor aqueles que se arrependessem e cressem e que, em Cristo [...] se
cumpriria a salvação dos penitentes e crentes que perseverassem até o fim; mas que
deixaria em pecado e sob a ira todos os impenitentes e incrédulos e os condenaria pela
alienação a Cristo.
III. O terceiro decreto divino é aquele pelo qual Deus decretou que administraria de
modo suficiente e eficaz os meios que eram necessários ao arrependimento e à fé [...].
IV. Depois desses, segue-se o quarto decreto pelo qual Deus decretou a salvação ou a
perdição das pessoas. Esse decreto se fundamenta na presciência de Deus, pela qual
desde a eternidade ele sempre soube quais os indivíduos que, pela graça [preveniente],
creriam e, pela graça subsequente, perseverariam.[28]
 
Para Armínio, portanto, a predestinação era, antes, de Jesus Cristo e não de indivíduos
sem ele.
 
É importante lembrar que Armínio insistia que toda a questão da predestinação estava
relacionada à condição caída dos seres humanos carentes de redenção. Para Armínio, o decreto
divino de permitir a queda, em outras palavras, não dizia respeito à salvação. Os decretos de
Deus a respeito da salvação vêm depois (são logicamente posteriores) da permissão divina da
queda de Adão e de Eva. Como Armínio concebia a queda? Deixou isso claro em seu tratado
Certos artigos a ser diligentemente examimados e ponderados: “Adão não caiu por decreto de
Deus, nem por estar destinado a cair, nem por ter sido desertado por Deus, mas por mera
permissão de Deus, que não está subordinada a nenhuma predestinação, nem à salvação ou à
morte, mas que pertence à providência, que é distinta e oposta à predestinação”.[29] Em
outras palavras, a providência divina compreende certos decretos e a predestinação divina,
outros. As duas não devem ser confundidas. Na providência, Deus decretou que permitiria a
queda de Adão e de Eva e de toda a raça humana junto com eles. No Exame do panfleto do dr.
Perkins, Armínio disse claramente que Deus não poderia evitar a queda depois de criar os seres
humanos e dar-lhes o dom do livre-arbítrio. Armínio acreditava na autolimitação e restrição de
Deus e também na liberdade humana genuína no relacionamento abrangente estabelecido pela
aliança.[30] Portanto, os decretos de Deus quanto à predestinação dizem respeito aos seres
humanos apenas como pecadores depois da queda e, de modo algum, à própria queda. Deus
sabia previameme que os seres humanos cairiam, mas não decretou nem predestinou, de
nenhuma forma, tal coisa.
 
Depois que os seres humanos caíram, argumentava Armínio, o primeiro decreto de
Deus em relação a eles foi providenciar para que Jesus Cristo fosse seu Salvador. Então, depois
disso, decretou que salvaria, por meio de Cristo, todos aqueles que se arrependessem e
cressem e que deixaria à sua merecida perdição aqueles que recusassem a salvação. A partir
daí, Armínio começa a analisar a predestinação dos seres humanos caídos. Em primeiro lugar,
trata-se de classes e grupos e não de indivíduos. Isto é, Deus decreta que salvará os que
creem, todos eles. O objeto da eleição para a salvação é um grupo indefinido de pessoas: os
crentes. O objeto da condenação para a perdição também é um grupo indefinido de pessoas:
os incrédulos. Foi assim que Armínio interpretou o texto de Paulo em Romanos 9: tratando-se
de classes ou grupos e não de indivíduos. “Armínio entende Romanos 9 em termos de
‘predestinação de classes’: ‘os que buscam a justiça pelas obras e os que a buscam pela fé’;
Esaú é exemplo dos que buscam a justiça pelas obras e Jacó, dos que buscam pela fé.”[31]
Mas Armínio também tinha uma explicação para a predestinação condicional dos indivíduos. Em
sua presciência absoluta, Deus sabe quem terá fé e quem não terá.[32] Como Paulo disse em
Romanos 8.29: “Pois aqueles que de antemão conheceu, também os predestinou para serem
conformes à imagem de seu Filho; a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos”. A
predestinação de grupos, portanto, é incondicional. A predestinação de indivíduos é condicional
e se baseia na presciência de Deus daquilo que farão livremente com a liberdade que Deus lhes
dá. Essa é a essência do segundo e do quarto decretos de Armínio mencionados anteriormente.
 
O sinergismo evangélico de Armínio
 
E quanto à graça? Enquanto os calvinistas clássicos argumentavam que a graça salvífica
é sempre irresistível, Armínio acreditava que a graça significava que a salvação é resistível e
que muitos, inclusive nas Escrituras, resistiram à graça de Deus. Mas como a salvação pode
acontecer “unicamente pela graça” se os seres humanos são livres para aceitá-la ou rejeitá-la?
Se alguém não achar essa pergunta razoável, é provável que seja arminiano! Os calvinistas e
outros monergistas acreditam que, para se dar completamente pela graça, conforme Paulo
afirmou em Efésios 2, a salvação não podia ser uma dádiva recebida “livremente” no que se
refere à contingência. Em outras palavras, se a pessoa que recebe a graça para a salvação
pudesse recusá-la, então, ao aceitá-la, estaria praticando uma “boa obra” e mereceria uma
parte da salvação, podendo assim jactar-se. Isso também sugere uma capacidade como a do
pelagianismo em que a pessoa contribui para sua própria salvação, declaram os monergistas. A
solução de Armínio para esse problema delicado é o conceito-chave da “graça preveniente”.
Armínio sempre foi cuidadoso ao atribuir toda a salvação à graça e nada às boas obras. Um
exemplo típico desse cuidado está na seção sobre a graça e o livre-arbítrio da Carta endereçada
a Hipólito A. Collibus: “O mestre [de teologia] que atribui o máximo possível à graça divina tem
a minha mais alta aprovação, contanto que pleiteie a causa da graça de tal maneira que não
provoque danos à justiça de Deus e não remova o livre-arbítrio para praticar o mal”.[33] Mas
como isso é possível? Armínio explicou:
 
A respeito da graça e do livre-arbítrio, ensino conforme as Escrituras e o consentimento
ortodoxo: o livre-arbítrio não tem a capacidade de fazer ou de aperfeiçoar qualquer
bem espiritual genuíno sem a graça. Para que não se diga que eu, assim como Pelágio,
cometo uma falácia em relação à palavra “graça”, esclareço que com ela me refiro à
graça de Cristo que pertence à regeneração: afirmo, portanto, que a graça é simples e
absolutamente necessária para a iluminação da mente, para o devido controle das
emoções e para a inclinação da vontade ao que é bom. É a graça que [...] força a
vontade a colocar em prática boas ideias e os bons desejos. Essa graça [...] antecede,
acompanha e segue; ela nos desperta, assiste, opera para queiramos o bem, coopera
para que não o queiramos em vão. Ela afasta as tentações, ajuda e oferece socorro em
meio às tentações, sustenta o homem contra a carne, o mundo e Satanás, e nessa
grande luta concede ao homem a satisfação da vitória. [...] A graça é o princípio da
salvação; é o que a promove, aperfeiçoa e consuma. Confesso que a mente [...] do
homem natural e carnal é obscura e escura, que suas afeições são corruptas e
imoderadas, que sua vontade é obstinada e desobediente e que o próprio homem está
morto em pecados.[34]
 
A graça descrita por Armínio nessa declaração um tanto longa é a graça preveniente. É
a graça que Deus oferece e concede a todas as pessoas de alguma forma e é absolutamente
necessária para que os pecadores caídos – mortos em pecados e escravos da vontade – creiam
e sejam salvos. É a graça sobrenatural, auxiliadora e outorgante de Jesus Cristo. Mas por ser
preveniente (acontece antes), pode ser resistida. Se a pessoa não resistir à graça preveniente e
permitir que ela opere em sua vida pela fé, ela se tornará justificadora. A mudança é a
“conversão”, não uma boa obra, mas a simples aceitação. É aqui que aparece o sinergismo de
Armínio. A vontade humana, livre pela graça preveniente (a operação do Espírito Santo dentro
da pessoa), precisa cooperar simplesmente aceitando a necessidade da salvação e permitindo
que Deus outorgue a dádiva da fé. Ela não será imposta por Deus e o pecador não pode
merecê-la. Ela deve ser aceita livremente, mas até mesmo a capacidade de desejá-la e de
aceitá-la se torna possível pela graça. O conceito da graça preveniente permite que a
soteriologia de Armínio seja sinergista (envolvendo as vontades e atuações divina e humana)
sem cair no pelagianismo ou no semipelagianismo. Diferentemente deste último, o sinergismo
de Armínio coloca toda a iniciativa e capacidade de salvação a favor de Deus e reconhece a
total incapacidade do ser humano de contribuir para a própria salvação sem a graça auxiliadora
sobrenatural de Cristo.
 
Está claro, portanto, que Armínio rejeitava não somente o supralapsarismo, como
também qualquer conceito monergista da salvação. No mínimo, negava a eleição incondicional,
a expiação limitada e a graça irresistível. Não se pode afirmar que negava a depravação total. A
citação apresentada da Carta a Hipólito indica que de fato acreditava nela. Alguns
remonstrantes claramente não acreditavam e isso se tornou uma questão delicada e
controversa depois da morte de Armínio. Este não negava a perseverança (a segurança eterna
dos santos), mas argumentava que a questão não estava encerrada e advertia contra a falsa
segurança e certeza. Assim como no caso da depravação total, muitos arminianos
posteriormente rejeitaram a perseverança incondicional e ensinaram que a pessoa pode perder
a salvação por indiferença e também pela rejeição consciente da graça. Muitos outros
arminianos passaram a crer na segurança eterna dos genuinamente regenerados e justificados
pela graça.
 
O legado do arminianismo
 
Uma questão ainda debatida pelos estudiosos de Armínio é se a sua teologia era uma
alternativa à teologia reformada ou uma adaptação dela. Richard Muller sustenta que era uma
alternativa e, como prova, indica a forte ênfase de Armínio à autolimitação de Deus. Os
teólogos reformados posteriores a Calvino reconheciam a condescendência de Deus na
revelação, mas negavam unanimemente qualquer autolimitação de Deus na providência ou
predestinação.[35] Carl Bangs sustenta a opinião de que a teologia de Armínio representa uma
adaptação e desenvolvimento da teologia reformada.[36] Embora o próprio Armínio quase
certamente entendesse dessa forma sua teologia, Muller está mais próximo da verdade. A
teologia de Armínio é totalmente protestante, mas não reformada. O teólogo holandês se
propôs reformar a teologia reformada, mas acabou criando um paradigma protestante
totalmente diferente. Os anabatistas argumentariam, com razão, que se tratava de um
paradigma que Baltasar Hubmaier e outros pensadores anabatistas começaram a desenvolver
quase um século antes. Ele poderia ser chamado de “sinergismo evangélico”.
 
O arminianismo, embora politicamente reprimido e posteriormente marginalizado no
país de origem, radicou-se e floresceu em solo inglês no fim do século XVI. Muitos líderes da
Igreja da Inglaterra foram simpáticos a ele no início e, posteriormente, adotaram-no
abertamente. Embora Os trinta e nove artigos de religião da Igreja da Inglaterra incluíssem a
afirmação da predestinação, o arminianismo tornou-se opção permanente da tradição
anglicana. No século XVII, uma era de racionalismo e avivamento na Inglaterra e na Nova
Inglaterra, os arminianos dividiram-se em dois grupos: arminianos de mente e arminianos de
coração. Os primeiros pendiam para o deísmo e a religião natural e os últimos, para o pietismo
e o avivamento. A história desses movimentos será contada nos capítulos posteriores. Basta
dizer que, no cristianismo da era moderna de língua inglesa, é possível ser arminiano liberal ou
arminiano evangélico. O movimento metodista primitivo, fundado por John e Charles Wesley,
bem como muitos batistas primitivos representavam o segundo tipo de arminianismo, enquanto
os deístas e os pensadores protestantes liberais dos séculos XVIII e XIX representavam o
primeiro. Com esses movimentos, a teologia arminiana paulatinamente tornou-se parte das
grandes tendências do pensamento protestante na Inglaterra e nos Estados Unidos – para
desgosto dos protestantes reformados mais tradicionais.
 
Como vimos, depois da morte dos primeiros reformadores, seus herdeiros ortodoxos e
escolásticos elevaram à importância primordial as questões da exatidão doutrinária e litúrgica.
Alguns críticos diriam que as igrejas nacionais protestantes magisteriais da Europa e da Grã-
Bretanha declinaram até se tornarem “ortodoxia morta” que crê na regeneração batismal, no
clericalismo e no constantinismo. Essa situação provocou a reação dos ministros das igrejas
estatais chamada pietismo. Entre outras coisas, ela tentava vincular a justificação à conversão,
e a regeneração ao começo de uma vida de santificação verdadeira. Também censurava a
ênfase exagerada à ortodoxia doutrinária e a indiferença diante da experiência espiritual como
sinal autêntico do cristianismo e criava lemas como: “melhor uma heresia viva do que uma
ortodoxia morta!”. É para a história do pietismo e de sua tentativa de reformar a teologia
protestante nos séculos XVI e XVII que agora dirigiremos nossa atenção.
 
Fonte: História da Teologia Cristã, 465-483

http://www.arminianismo.com/index.php/categorias/diversos/artigos/44-roger-e-olson/
1331-roger-e-olson-os-arminianos-tentam-reformar-a-teologia-reformada

O Arminianismo É uma Teologia Centrada em Deus

Roger E. Olson

Uma das críticas mais comuns ao Arminianismo por seus adversários é que ele é uma
“teologia centrada no homem”. (Eu ocasionalmente usarei a expressão de gênero exclusivo
porque ela é usada com bastante frequência pelos críticos do Arminianismo. Ela significa, é
claro, “centrada na humanidade”). Um crítico reformado do Arminianismo que frequentemente
levanta essa acusação é Michael Horton, professor de teologia no Seminário Teológico de
Westminster (campus Escondido) e editor da revista Modern Reformation[1] (Reforma
Moderna). Tenho tido longas conversas com Horton sobre o Arminianismo clássico e seus
estereótipos e de outros críticos reformados, mas até agora ele ainda diz que o Arminianismo é
“centrado no homem”. Quase todos os artigos da infame edição especial de maio/junho de
1992 da Modern Reformation[2] sobre o Arminianismo repete esta caricatura. Horton não é
exceção. Em seu artigo “Evangelical Arminians” (Arminianos Evangélicos), onde ele diz que “um
evangélico não pode ser arminiano mais do que um evangélico pode ser católico romano”,[3] o
teólogo do Seminário de Westminster e editor da revista também chama o Arminianismo de
“uma mensagem centrada no homem, de potencial humano e relativa impotência divina”.[4]

Horton dificilmente é o único crítico que tem feito esta acusação contra o Arminianismo.
Vários autores de artigos da edição sobre o “Arminianismo” da Modern Reformation fazem a
mesma coisa. Por exemplo, Kim Riddlebarger, seguindo B. B. Warfield, afirma que a liberdade
humana é a premissa central do Arminianismo, o seu “primeiro princípio” que rege todo o resto.
[5] Isto é simplesmente uma outra maneira de dizer que o Arminianismo é “centrado no
homem”. O teólogo luterano Rick Ritchie faz a mesma acusação contra o Arminianismo na
mesma edição da Modern Reformation.[6] Nessa edição o teólogo Alan Maben cita Charles
Spurgeon quando diz que: “O Arminianismo [é] uma religião e heresia natural, de rejeição a
Deus e auto-exaltação” e o homem é a figura principal em perspectiva.[7]

Outro teólogo evangélico que acusa o Arminianismo de ser centrado no homem é o


falecido James Montgomery Boice, um dos meus professores de seminário. Em seu livro
Whatever Happened to the Gospel of Grace?, o falecido pastor da Décima Igreja Presbiteriana
da Filadélfia, escreveu que sob a influência do Arminianismo, o Cristianismo evangélico
contemporâneo “está focado em nós mesmos e... apaixonado pelas suas próprias supostas
capacidades espirituais”.[8] De acordo com ele, os arminianos não podem dar glória somente a
Deus e devem reservar alguma glória para si mesmos, pois eles acreditam que a vontade
humana desempenha um papel na salvação. Ele conclui, “Uma pessoa que pensa dessa forma
não compreende a natureza absolutamente penetrante e completamente escravizante do
pecado humano”.[9]

O teólogo reformado coreano Sung Wook Chung, educado em teologia no Seminário


Teológico de Princeton, escreve que o Arminianismo “exalta o poder autônomo e a vontade
soberana dos seres humanos ao negar a absoluta soberania de Deus e o seu livre-arbítrio. O
Arminianismo também considera o homem como centro do universo e o propósito de todas as
coisas”.[10] Al Mohler, presidente do Seminário Teológico Batista do Sul, escreve em The
Coming Evangelical Crisis sobre o “foco centrado no homem da tradição arminiana”.[11] No
mesmo volume, Gary Johnson chama o Arminianismo de “uma fé centrada no homem” e diz
que “quando a Teologia se torna Antropologia, ela se torna simplesmente uma forma de
mundanismo”.[12]

Talvez a forma mais sofisticada de dizer a mesma coisa é fornecida pelo estudioso da
ortodoxia protestante Richard Mueller em seu volume sobre Armínio intitulado God, Creation
and Providence in the Thought of Jacob Arminius. Mueller escreve que “O pensamento de
Armínio evidencia... uma maior confiança na natureza e nos poderes naturais do homem... do
que a teologia de seus contemporâneos reformados”.[13] Ele passa a acusar Armínio de
confundir natureza e graça e de colocar a criação no centro da teologia, negligenciando a
redenção. Ele escreve que Armínio tendia “a entender a criação como manifestando o propósito
último de Deus”.[14] Uma leitura atenta da interpretação de Mueller da teologia de Armínio irá
revelar que ele está acusando-a de ser antropocêntrica ou centrada no homem ao invés de
centrada em Deus e focada na graça. Uma leitura atenta de Armínio, por outro lado, irá revelar
quão equivocada é esta avaliação.

O que esses e outros críticos querem dizer quando acusam o Arminianismo de ser
“centrado no homem” ou “centrado na humanidade”? E o que significaria para uma teologia ser
centrada em Deus, como eles afirmam que a deles é? Especialmente no atual ressurgimento
calvinista de cristãos “jovens, inquietos e reformados”, é importante esclarecer esses termos
como frequentemente se ouve dizer, como se fosse um mantra, que teologias não-calvinistas
são centradas no homem enquanto a teologia reformada é centrada em Deus. O seu principal
guru, John Piper, frequentemente fala sobre o “Teocentrismo de Deus” e se refere a tudo na
criação e redenção para a glória de Deus como o principal fim. Sua implicação, ocasionalmente
afirmada, é que o Arminianismo não satisfaz esta visão elevada de Deus. Muito frequentemente
sem qualquer consideração do que essas designações significam, os novos calvinistas de hoje
as espalham como clichés e slogans.

Parece que quando os críticos do Arminianismo o acusam de ser centrado no homem


eles querem dizer basicamente três coisas. A primeira é que o Arminianismo foca demais na
bondade e capacidade humana, especialmente no campo da redenção. Ou seja, ele não leva
suficientemente a sério a depravação da humanidade e estima demais a contribuição humana
para a salvação. Outra maneira de dizer é que a teologia arminiana não dá a Deus toda a glória
pela salvação. Em segundo lugar, eles querem dizer que o Arminianismo limita a Deus ao
sugerir que a vontade de Deus pode ser frustrada pelas decisões e ações humanas. Em outras
palavras, a soberania e o poder de Deus não são levados suficientemente a sério. Em terceiro
lugar, eles querem dizer que o Arminianismo coloca demasiada ênfase na realização e felicidade
humana em negligência ao propósito de Deus que é glorificar a si mesmo em todas as coisas.
Outra maneira de expressar isto é que o Arminianismo supostamente tem uma noção
sentimental de Deus e da humanidade na qual a principal finalidade de Deus é tornar as
pessoas felizes e realizadas.

Certamente existe alguma verdade nessas críticas, mas elas erram o alvo quando
apontadas para a teologia arminiana clássica. Infelizmente, muito raramente os críticos
mencionam algum teólogo arminiano ou citam do próprio Armínio para apoiar essas acusações.
Quando eles dizem “Arminianismo”, eles parecem querer dizer a religião popular, que em geral
é, reconhecidamente, semipelagiana. Alguns, mais notavelmente Horton, aponta o revivalista
do século dezenove, Charles Finney, como o culpado de rebaixar o Cristianismo americano a
uma espiritualidade centrada no homem. Se Finney é um bom exemplo de um arminiano é
altamente questionável. Concordo com Horton e outros que o Cristianismo bem popular nos
Estados Unidos, incluindo muito do que se passa por “evangélico”, é centrado no homem.
Discordo deles, no entanto, sobre o Arminianismo clássico, sobre o que eu suspeito que a
maioria deles sabe muito pouco.

O que esses críticos reformados do Arminianismo considerariam como uma verdadeira


teologia centrada em Deus? Em primeiro lugar, a depravação humana deve ser enfatizada tanto
quanto possível, de forma que os homens não são capazes, mesmo com assistência divina
sobrenatural, de cooperar com a graça de Deus na salvação. Em outras palavras, a graça deve
ser irresistível. Outra maneira de dizer isso é que Deus deve sobrepujar os pecadores eleitos e
compeli-los a aceitar a sua misericórdia, sem qualquer cooperação, até mesmo não-resistência,
de sua parte. Esta é uma característica essencial do Calvinismo extremado, também conhecida
como Calvinismo de cinco pontos. Segundo Boice e outros, a teologia somente é centrada em
Deus se a decisão humana não desempenhar nenhum papel na salvação. A desvantagem disto,
obviamente, é que a seleção de Deus de alguns para a salvação deve ser puramente arbitrária
e Deus deve ser descrito como de fato querendo a condenação de uma parcela significativa da
humanidade que ele poderia salvar, pois a salvação neste esquema é absolutamente
incondicional. Em outras palavras, o Calvinismo pode ser centrado em Deus, mas o Deus que
está no centro é moralmente ambíguo e indigno de adoração.

 
Em segundo lugar, aparentemente, para os críticos reformados do Arminianismo, a
teologia centrada em Deus deve ver Deus como aquele que determina toda a realidade, e que
inclusive ordena, projeta, governa e controla o pecado e o mal, que são então introduzidos no
plano, propósito e vontade de Deus. A vontade perfeita de Deus sempre está sendo feita,
mesmo quando paradoxalmente contemplá-la o faz sofrer (como John Piper gosta de afirmar).
A única visão da soberania de Deus que irá satisfazer os críticos reformados do Arminianismo é
a providência meticulosa na qual Deus planeja e torna tudo certo, até as mínimas decisões das
criaturas, mas mais notavelmente a queda da humanidade e todas as suas consequências,
incluindo o sofrimento eterno dos pecadores no inferno. O lado negativo disso, obviamente, é
que o Deus que está no centro é, mais uma vez, moralmente ambíguo na melhor das hipóteses
e um monstro na pior. O teólogo David Bentley Hart assim se expressa: Deve-se considerar o
preço dessa centralidade em Deus:

Ela nos obriga a crer e amar um Deus cujos bons propósitos serão realizados não
somente apesar de – mas inteiramente por meio de – cada crueldade, cada miséria
fortuita, cada catástrofe, cada traição, cada pecado que o mundo já tenha conhecido;
ela nos obriga a crer na eterna necessidade espiritual de uma criança morrer de uma
morte agonizante de difteria, de uma jovem mãe devastada pelo câncer, de dezenas de
milhares de asiáticos sendo engolidos em um instante pelo mar, de milhões
assassinados em campos de extermínio, gulags[15] e pela fome provocada (e assim
por diante). É uma coisa estranha, na verdade, buscar [uma teologia centrada em
Deus]... à custa de um Deus que se torna moralmente repugnante.[16]

Terceiro, para satisfazer os críticos reformados do Arminianismo, a centralidade em


Deus exige que os seres humanos sejam meros peões no grande plano de Deus para glorificar
a si mesmo; sua felicidade e satisfação não podem ser mencionadas como tendo algum valor
para Deus. Mas isso significa, então, que dificilmente se pode mencionar o amor de Deus por
todas as pessoas. É preciso primeiramente afirmar, juntamente com John Piper e outros, que
Deus ama as pessoas porque Ele ama a si mesmo e que Cristo morreu por Deus mais do que
pelos pecadores. O lado negativo disso é que a Bíblia fala muito sobre o amor de Deus pelas
pessoas – Jo 3.16 e numerosos versículos semelhantes – e explicitamente diz que Cristo morreu
pelos pecadores (Rm 5.8). Apesar de não ser canônica, a afirmação do pai da igreja primitiva
Irineu que “A glória de Deus é o homem completamente vivo” deve ser considerada como
tendo alguma validade. Certamente é possível ter uma teologia centrada em Deus sem implicar
que as pessoas criadas à imagem e semelhança de Deus, e amadas por Deus de tal maneira
que ele enviou seu Filho para morrer por eles, sejam de nenhum valor para Deus. Na verdade,
alguns teólogos reformados como John Piper ironicamente violam o terceiro princípio da
centralidade em Deus, como é exigido por alguns críticos do Arminianismo. Seu chamado
“hedonismo cristão”[17] diz que a felicidade e a satisfação humana são importantes para a
teologia mesmo que não sejam para Deus. Seu mantra é “Deus é mais glorificado em nós
quando estamos mais satisfeitos nele”. Apesar dessa declaração e do seu hedonismo cristão, no
geral e em toda parte Piper segue a linha calvinista típica de pensar que a felicidade e a
realização humana devem ser de pouco ou nenhum valor em comparação com a glória de
Deus. Outro aspecto negativo, além da ênfase da Bíblia sobre o amor e o cuidado de Deus
pelas pessoas, está a imagem de Deus que ele oferece. Nesta teologia, o Deus que está no
centro é o narcisista supremo, o maior egoísta que encontra glória em exibir o seu simples
poder até mesmo a ponto de mandar milhões para o inferno só para manifestar o seu atributo
da justiça.

O ponto de tudo isso é simplesmente este: Não adianta muito construir uma teologia
centrada em Deus se o Deus que está no seu centro é pura e simplesmente poder, de caráter
moral ambíguo. “Glória” é um termo ambíguo. Quando separado de virtude não é digno de
devoção. Muitos dos monarcas da história foram “gloriosos” e ao mesmo tempo eram
sanguinários e cruéis. A verdadeira glória, a melhor glória, a glória correta, digna de adoração,
honra e devoção inclui necessariamente a bondade. Poder sem bondade não é verdadeiramente
glorioso, mesmo se ele é chamado assim. O que faz alguém ou algo digno de veneração não é
o simples poder, mas a bondade. Quem é mais digno de imitação e até veneração, Madre
Teresa ou Adolf Hitler? Hitler conquistou a maior parte da Europa. Madre Tereza tinha pouco
poder além do seu exemplo. E, no entanto, a maioria das pessoas diria que Madre Teresa era
mais “gloriosa” do que Adolf Hitler. Deus é glorioso porque ele é tanto grande quanto bom e
sua bondade, assim como sua grandeza, deve ter alguma ressonância com o nosso melhor e
mais alto conceito de bondade ou então ela não faz sentido.

Tudo que deve ser dito é que os críticos do Arminianismo são aquelas pessoas do
provérbio que atiram pedras na casa dos outros enquanto vivem em casas de vidro. Eles falam
interminavelmente sobre a glória de Deus e sobre a centralidade em Deus enquanto sugam a
bondade de Deus e dessa forma o despem de sua real glória. Sua teologia pode ser centrada
em Deus, mas o Deus em seu centro é indigno de estar no centro. Melhor uma teologia
centrada no homem do que uma teologia que gira em torno de um ser que dificilmente se
distingue do diabo.

 
Apesar das objeções em contrário, irei argumentar que a teologia arminiana clássica é
tão centrada em Deus quanto o Calvinismo, se não mais. O Deus no seu centro, cuja glória, ao
contrário das afirmações dos críticos, é a finalidade ou propósito principal de tudo, não é
moralmente ambíguo, o que é o ponto principal do Arminianismo. De alguma forma, a teologia
arminiana foi estigmatizada com a má reputação de crer muito fortemente na liberdade
humana. Isso nunca foi verdade. O Arminianismo real sempre acreditou na liberdade humana
por uma razão principal: proteger a bondade de Deus e, dessa forma, a reputação de Deus em
um mundo cheio de maldade. Existe apenas uma razão para a teologia arminiana clássica
enfatizar o livre-arbítrio, mas ela tem dois lados. Primeiro, proteger e defender a bondade de
Deus; em segundo lugar, tornar clara a responsabilidade humana pelo pecado e o mal. Ela não
tem absolutamente nada a ver com algum desejo humanista de autonomia da criatura ou de
crédito pela salvação. Nunca consistiu em vanglória, exceto na bondade do Deus que cria,
governa e salva.

Por que será que Armínio rejeitava e por que será que os arminianos clássicos rejeitam
o Calvinismo? Certamente não é porque ele é centrado em Deus. Como irei demonstrar, a
própria teologia de Armínio era totalmente centrada em Deus em todos os sentidos. Armínio e
seus seguidores rejeitaram o Calvinismo porque, como o próprio Armínio dizia, ele é
“repugnante à natureza de Deus”.[18] Como assim? Segundo Armínio (e todos os arminianos
clássicos concordam), o Calvinismo implica que “Deus realmente peca. Porque, (de acordo com
essa doutrina,) Ele induz a pecar por um ato que é inevitável, e de acordo com seu próprio
propósito e intenção primária, sem ter recebido qualquer indução anterior a tal ato de qualquer
pecado ou demérito precedente no homem”. Além disso, “A partir da mesma posição, nós
também podemos inferir que Deus é o único pecador. Pois o homem, que é impelido por uma
força irresistível a cometer o pecado (isto é, a perpetrar algum ato que foi proibido), não se
pode dizer que ele próprio peca”. Finalmente, “Como uma legítima consequência, também
resulta que o pecado não é pecado, pois o que quer que seja que Deus faça, isso não pode ser
pecado, nem deveria quaisquer de seus atos receber essa designação”.[19]

Qualquer um que tenha lido os sermões de John Wesley “Sobre a Graça Livre” e “A
Predestinação Calmamente Considerada” sabe muito bem que ele rejeita o Calvinismo pela
mesma razão dada por Armínio antes dele. No primeiro sermão ele descreveu a dupla
predestinação (que ele corretamente argumentava que é necessariamente implicada pela
eleição incondicional calvinista clássica) como “Que blasfêmia esta, como alguém pensaria que
poderia fazer tinir os ouvidos de um cristão!”[20] Segundo ele, essa doutrina “destroi todos
seus atributos [de Deus] de uma só vez” e “representa o mais santo Deus como pior do que o
diabo, como mais falso, mais cruel, e mais injusto”.[21] No sermão “A Predestinação
Calmamente Considerada”, Wesley rejeitava o Calvinismo por um único motivo: não porque ele
negava o livre-arbítrio do homem, mas porque ele “destroi a justiça de Deus”. Ele pregava
como se fosse para um calvinista: “você supõe que Ele [a saber, Deus] os envia [a saber, os
réprobos] para o fogo eterno, por não escapar do pecado! Isto é, em termos simples, por não
ter aquela graça que Deus decretou que eles nunca deveriam ter! Que estranha justiça! Que
imagem você extrai do Juiz de toda a terra!”[22] Qualquer um que tenha lido os arminianos
clássicos posteriores sabe que seu principal motivo para rejeitar o Calvinismo é o mesmo: ele
impugna a bondade de Deus bem como mancha a sua reputação. Isso não tem nada a ver com
a valorização do livre-arbítrio humano em si e por si, e eu desafio os críticos a demonstrarem o
contrário.

Para explicar e defender a centralidade em Deus do Arminianismo, vamos começar com


a primeira questão mencionada acima como uma razão que os críticos levantam para afirmar
que a teologia arminiana é centrada no homem: a condição e a participação humana na
salvação. A teologia arminiana clássica, definida pelo pensamento do próprio Arminio e pelos
pensamentos de seus fiéis seguidores, sempre enfatizou a depravação humana tão fortemente
quanto o Calvinismo, e ela sempre deu todo o crédito pela salvação unicamente a Deus.
Qualquer um que tenha lido Armínio por si mesmo não pode contestar isso. O editor de The
Works of James Arminius (Baker, 1996 – publicado originalmente na Inglaterra em 1828) diz
corretamente que “qualquer arminiano moderno que confesse os sentimentos que o próprio
Armínio tem mantido aqui, seria imediatamente chamado de calvinista”.[23] Nesse contexto
Armínio escreveu sobre a condição humana “sob o domínio do pecado”: “Neste estado, o livre-
arbítrio do homem em direção ao verdadeiro bem não está apenas ferido, mutilado, enfermo,
inclinado e... enfraquecido; mas está também... aprisionado, destruído e perdido: E os seus
poderes não estão apenas debilitados e inúteis a menos que seja assistido pela graça, mas ele
não tem qualquer poder exceto quando excitado pela graça divina”.[24] Para que ninguém
entenda mal, ele defende seu ponto dizendo do homem que no estado natural, devido à queda,
ele está “completamente morto em pecado”.[25] Esse não é o único lugar em seus volumosos
escritos onde Armínio descreve dessa forma a condição humana à parte da graça sobrenatural.
Praticamente em cada ensaio, discurso e declaração ele abundantemente diz a mesma coisa!
Não pode haver dúvida de que Armínio cria na depravação total tanto quanto os calvinistas.

E quanto ao livre-arbítrio? E quanto à contribuição humana para a salvação? Armínio


não atribuiu algum bem à pessoa humana que levaria Deus a salvá-la? Deixarei que Armínio
fale por si mesmo sobre este assunto também. Imediatamente após descrever a cura divina
para a depravação humana, que é o que é comumente conhecida como “graça preveniente”,
que desperta a pessoa morta no pecado para consciência da misericórdia de Deus, Armínio diz
que até mesmo “o próprio início das coisas boas, da mesma forma o progresso, a continuidade
e a confirmação, ou melhor ainda, a perseverança no bem, não são de nós mesmos, mas de
Deus através do Espírito Santo”.[26] Esta não é uma citação isolada tomada fora de contexto.
Em toda parte Armínio constantemente atribui todo o bem existente no homem a Deus como
sua fonte e cada impulso e capacidade para o bem à graça. Não posso resistir em oferecer mais
um exemplo. Em sua “Uma Carta Dirigida a Hipólito A Collibus” Armínio fala da graça e do livre
arbítrio:

Confesso que a mente de... um homem natural e carnal é obscura e sombria, que suas
afeições são corruptas e desordenadas, que sua vontade é teimosa e desobediente e
que o próprio homem está morto em pecados. E eu adiciono a isto, que o professor que
atribui tanto quanto possível à Graça Divina obtém a minha mais alta aprovação, desde
que ele tanto defenda a causa da Graça como não inflija prejuízo à Justiça de Deus e
não retire o livre-arbítrio para fazer o que é mau.[27]

O contexto desta declaração deixa claro que a preocupação de Armínio com o livre-
arbítrio é evitar injúria à bondade de Deus, tornando-o o autor do pecado e do mal. Para ele, o
livre-arbítrio humano é sempre a causa do pecado e do mal e Deus nunca é a sua causa,
mesmo que indiretamente. (Embora, deve ser notado que em sua doutrina da providência,
Armínio afirma que uma criatura não pode fazer nada sem a permissão de Deus e até mesmo a
sua cooperação). Esta é a única razão pela qual ele afirma o livre-arbítrio.

E quanto aos arminianos posteriores, tais como os remonstrantes? Às vezes os críticos


do Arminianismo alegam que o verdadeiro significado do Arminianismo deve ser encontrado na
teologia dos remonstrantes, que foram os seguidores de Armínio após sua morte. Obviamente,
isso é como dizer que o verdadeiro significado do Calvinismo deve ser encontrado na teologia
dos escolásticos reformados depois de Calvino. A verdade é que tanto o “Arminianismo” quanto
o “Calvinismo” deve ser definido tanto por seus homônimos quanto por seus seguidores mais
fiéis. Eu afirmo que a teologia arminiana verdadeira e clássica sempre foi fiel e condizente com
o pensamento de Armínio e vice-versa. Tenho demonstrado isso em Arminian Theology: Myths
and Realities (InterVarsity Press, 1996).

A expressão normativa da teologia remonstrante pode ser encontrada na Confissão


Arminiana de 1621, escrita por Simon Episcopius, fundador do Seminário Remonstante na
Holanda. Em perfeita harmonia com Armínio, a Confissão afirma que a pessoa humana decaída
é completamente incapaz de exercer a fé salvadora e que ela é totalmente dependente da
graça para todo e qualquer bem. No artigo sobre a criação do mundo, os anjos e os homens,
ela diz que “o que de bom [o homem] tem, ele deve tudo solidamente a Deus e... ele é
obrigado... a prestar e consagrar o mesmo inteiramente a Ele”.[28] Quanto à condição
humana, a Confissão diz a respeito da graça que “sem ela nós não poderíamos nem nos livrar
do miserável jugo do pecado, nem fazer nada realmente bom em toda a religião, nem
finalmente escapar da morte eterna ou de qualquer verdadeira punição do pecado. Muito
menos poderíamos, a qualquer momento, obter a salvação eterna sem ela ou através de nós
mesmos”.[29] Não há nada “centrado no homem” nesta Confissão. Os remonstrantes
posteriores como Philip Limborch, que se encaixa na categoria de Alan Sell de “arminianos da
cabeça” em oposição aos “arminianos do coração”,[30] desviaram-se para um semi-
Pelagianismo centrado no homem. Porém, a maioria dos arminianos seguiu o caminho de
Armínio, Episcopius, Wesley e os teólogos metodistas do século 19, como Richard Watson, que
afirmava que até mesmo o arrependimento é dom de Deus.[31]

Qualquer um que lê estes arminianos clássicos com uma hermenêutica de caridade ao


invés de uma hermenêutica de suspeita e hostilidade não pode deixar de ver a sua centralidade
em Deus ao enfatizar a absoluta dependência dos humanos da graça de Deus para tudo que é
bom. Todos eles repetem essa máxima frequentemente e atribuem toda a salvação, desde o
seu início até ao fim, à graça sobrenatural de Deus. É claro, muitos críticos reformados não
ficarão satisfeitos com isso. Eles ainda dirão, como faz Boice, que se o pecador, ainda que
capacitado pela graça preveniente, faz uma livre escolha de aceitar a misericórdia de Deus para
salvação, isso é centralidade no homem ao invés de centralidade em Deus. Tudo o que posso
dizer a esse respeito é que isso é ridículo. O ponto que Boice e outros críticos continuamente
fazem é que no sistema arminiano a pessoa salva pode orgulhar-se porque ela não resistiu à
graça de Deus enquanto as outras resistiram. Todos os teólogos arminianos, desde Armínio até
Wesley e Wiley, têm apontado que uma pessoa que recebe um presente como a salvação de
sua vida não pode vangloriar-se, se tudo o que ela fez foi aceitá-lo. Toda a glória por esse dom
deve ir para o doador e não para o recebedor.

A segunda questão levantada pelos críticos do Arminianismo tem a ver com as alegadas
limitações de Deus e a falta de soberania e poder. O presidente do Seminário Teológico Batista
do Sul, Al Mohler, escreve em The Coming Evangelical Crisis que “O Deus arminiano, em última
análise, não tem onisciência, onipotência e soberania transcendente”.[32] Eu argumento que
esta acusação não tem peso algum. Qualquer um que lê Armínio ou seus fiéis seguidores, os
arminianos clássicos, não pode sair com essa impressão. Todos enfatizam a soberania de Deus
sobre a sua criação, incluindo a providência específica, e todos ressaltam o poder de Deus
limitado apenas pela sua bondade. O que confundem os críticos reformados (e talvez outros) é
o pressuposto arminiano subjacente da auto-limitação voluntária de Deus em relação à
humanidade. No entanto, que Deus se limita a si mesmo de maneira nenhuma significa que ele
é essencialmente limitado. De acordo com a teologia arminiana, Deus é soberano sobre a sua
soberania e sua bondade condiciona o seu poder. Do contrário, ele seria pura e simplemente
poder sem caráter. Como afirmei anteriormente, isso o tornaria indigno de adoração.

Vou começar, como fiz antes, com o próprio Armínio. O que ele acreditava sobre a
soberania e o poder de Deus? Primeiro, ele corretamente apontava que, embora ele afirmasse o
domínio absoluto de Deus sobre a criação, “A declaração de domínio não tem glória por si só, a
menos que ele tenha sido devidamente utilizado”.[33] Em seus “Debates Privados” e seus
“Debates Públicos”, Armínio fez um grande esforço para afirmar e apoiar o que é chamado de
teísmo cristão clássico com todos os atributos tradicionais inerentes a ele, incluindo a
onipotência e a soberania. Uma declaração mais forte a respeito dos atributos incomunicáveis
de Deus não poderia ser encontrado em qualquer outro lugar. Quanto à soberania, Armínio
confessou que “Satanás e os homens ímpios, não somente não podem realizar, mas, na
verdade, não podem até mesmo começar alguma coisa, exceto pela permissão de Deus”.[34]

Até mesmo alguns arminianos podem considerar algumas das declarações de Armínio
sobre a soberania de Deus perplexas, se não perturbadoras. Ele atribuía todo o poder a Deus e
negava que qualquer criatura tivesse a capacidade de realizar alguma coisa, inclusive o mal,
independentemente de Deus. Aos críticos que o acusavam de limitar a Deus e exaltar a
autonomia humana, Armínio escreveu:

Eu abertamente reconheço que Deus é a causa de todas as ações que são perpetradas
pelas criaturas. Porém, eu meramente exijo isso, que essa eficiência de Deus seja assim
explicada de modo que nada, seja o que for, seja depreciado da liberdade da criatura, e
que a culpa do próprio pecado não seja transferida a Deus: isto é, que possa ser
demonstrado que Deus é de fato o causador do ato, no sentido que ele permite o
próprio pecado, ou melhor, que Deus é, ao mesmo tempo, o causador e o que permite
o mesmo ato.[35]

 
Esta é uma expressão da doutrina de Armínio a respeito da divina cooperação na qual a
criatura não pode agir sem a permissão e ajuda de Deus. Deus quer que as suas criaturas
tenham o livre-arbítrio e, portanto, deve relutantemente cooperar com as criaturas em seus
atos pecaminosos, porque elas não podem agir independentemente dele. No entanto, ele não
planeja, propõe ou torna certo qualquer pecado ou mal.

Para ainda mais explicar o ponto: Em sua “Uma Carta Dirigida a Hippolytus A Collibus”,
Armínio fez um grande esforço para afirmar a soberania, o poder e o controle providencial
divinos sobre a criação. Ele especula que foi acusado de manter “opiniões deturpadas a respeito
da Providência de Deus” porque negava que “com relação ao decreto de Deus, Adão pecou
necessariamente”.[36] Em outras palavras, ele rejeitava a visão típica calvinista de que Deus
preordenou e tornou certo o pecado de Adão. Entretanto, ele asseverava que, apesar de sua
rejeição da necessidade da queda de Adão, ele ensinou uma visão vigorosa e elevada da
providência de Deus:

Eu muito solicitadamente evito duas causas de ofensa, – que Deus não seja proposto
como o autor do pecado, – e que sua liberdade não seja retirada da vontade humana:
Estes são dois pontos que, se alguém souber como evitá-los, refletirá sobre nenhum
ato que eu não vou, nesse caso, muito alegremente reconhecer que seja atribuído à
Providência de Deus, desde que uma justa consideração seja atribuída à divina
preeminência.[37]

O que é absolutamente claro a partir do contexto é que sua insistência que a liberdade
não seja retirada da vontade humana tem somente um único motivo – que Deus não seja
proposto como o autor do pecado. Ele não tinha nenhum interesse secreto na autonomia
humana ou no livre-arbítrio por sua própria causa. Sua centralidade em Deus girava em torno
de dois focos: a bondade imaculada de Deus e a absoluta dependência da criatura de Deus
para tudo que é bom. Estas não podem deixar de ser notadas, pois elas aparecem em quase
todas as páginas de seus escritos.

E quanto à Confissão Arminiana de 1621, a declaração normativa da fé remonstrante


após Armínio? Será que ela caiu na centralidade humana como afirmam os críticos? Em seu
capítulo “Sobre a providência de Deus, ou sua preservação e o governo das coisas”, a Confissão
assevera que “nada acontece em qualquer lugar do mundo inteiro voluvelmente ou por acaso,
isto é, que Deus não saiba, ignora ou ociosamente o observa, e muito menos seja um mero
expectador, e menos ainda seja completamente relutante, até mesmo a contragosto, e não
esteja disposto a permiti-lo”.[38] A conclusão prática da doutrina da providência, a Confissão
afirma, é que o verdadeiro crente “sempre dará graças a Deus na prosperidade, e além disso,
no futuro... livre e continuamente depositará sua maior esperança em Deus, seu Pai mais fiel”.
[39]

Quanto à onipotência de Deus, a Confissão diz que Deus “é onipotente, ou de poder


invencível e insuperável, porque Ele pode fazer o que quer que deseja, não obstante todas as
criaturas estarem indispostas. Na verdade, Ele sempre pode fazer mais do que ele realmente
quer, e portanto pode simplesmente fazer o que quer que não implique em contradição, isto é,
que não sejam necessariamente e de si mesmas repugnantes à verdade de certas coisas, nem
à sua própria natureza divina”.[40] O que mais alguém pode exigir de uma doutrina da
onipotência? Ah, sim... alguns críticos reformados podem e assim parecem exigir a
omnicausalidade divina. O problema com isso, é claro, é que ela envolve Deus no mal.
Novamente, o Deus no centro desse sistema não é digno de ser central a um sistema de crença
que valoriza a virtude e a bondade. O fato é que as doutrinas da soberania e poder de Deus de
Armínio e dos remonstrantes são tão elevadas e vigorosas quanto possíveis, exceto que elas
tornam Deus o autor do pecado e do mal.

E quanto aos arminianos posteriores? Será que eles permaneceram fiéis a esta elevada
doutrina da supremacia de Deus em e sobre todas as coisas? Enquanto afirmava tudo que
Armínio e os primeiros remonstrantes ensinaram sobre a doutrina, incluindo o controle de Deus
sobre todas as coisas na criação, Richard Watson corretamente advertiu que “a soberania de
Deus é uma doutrina bíblica que ninguém pode negar; porém isso não significa que as noções
que os homens aprazem formar dela devem ser recebidas como bíblicas”.[41] Por exemplo, ele
afirma que Deus podia ter impedido a queda de Adão e todas as suas más consequências, mas
considerou melhor permiti-la.[42] Que Deus meramente a permitiu e não a preordenou ou a
causou é onde a doutrina da providência de Watson se distancia da visão reformada típica. No
entanto, ele rejeita qualquer noção de que Deus seja de algum modo o autor do pecado como
incompatível com a bondade de Deus.[43] O próprio fato que ele afirma que Deus poderia ter
impedido a queda aponta para a sua forte visão da onipotência e soberania de Deus.
Novamente, em Watson, vemos uma sutil, mas definitiva suposição da voluntária auto-limitação
de Deus a fim de manter o Deus que se encontra no centro da teologia bom e digno de
adoração.

 
O resultado de tudo isto até agora é que a teologia arminiana clássica não tem uma
ênfase centrada no homem. A principal preocupação de Armínio não era elevar a humanidade
ao mesmo nível de Deus ou superior a ele; ninguém pode lê-lo de forma justa e ter essa
impressão. Sua principal preocupação era elevar a bondade de Deus ao mesmo nível ou até
mesmo sobre o poder de Deus, sem diminuir em nada o poder de Deus. A forma que ele
conseguiu isso foi por meio da ideia da voluntária auto-limitação divina – algo que ele em todos
os lugares supõe e sugere sem expor explicitamente. O teólogo reformado Richard Mueller
corretamente descobriu e trouxe à luz este elemento do pensamento de Armínio. Ele reconhece
os dois igualmente importantes impulsos no pensamento de Armínio: o direito absoluto de Deus
de exercer poder e controle e a livre limitação de Deus do poder para o bem da integridade da
criação:

Tanto no ato da criação quanto no estabelecimento do pacto, Deus livremente se


compromete com a criatura. Deus não é, em primeiro lugar, de alguma forma
constrangido a criar, porém faz assim apenas por causa de sua própria livre inclinação
para comunicar a sua bondade; nem é Deus, em segundo lugar, contrangido a oferecer
qualquer coisa ao homem em troca de obediência, na medida em que o ato da criação
implica um direito e um poder sobre a criatura. Apesar de tudo, em ambos os casos, o
desempenho livre do ato resulta no estabelecimento de limites ao exercício do poder
divino: admitindo o ato da criação, Deus não pode reprovar absolutamente e sem uma
causa na criatura; admitindo o início do pacto, Deus não pode remover ou evitar suas
promessas.[44]

O ponto é que toda e qualquer limitação do poder e controle soberano de Deus para
dispor de suas criaturas como ele quer é auto-imposta, quer por sua natureza, quer por suas
promessas do pacto. Isto dificilmente resulta em uma teologia centrada no homem! Na
realidade, pode-se corretamente afirmar que certas doutrinas reformadas da necessidade da
criação, incluindo a redenção e a condenação, para a completa manifestação dos atributos de
Deus e plena exibição de sua glória resulta em uma teologia centrada na criação, que rouba
Deus de sua liberdade e torna o mundo necessário para ele.

A terceira acusação feita contra o Arminianismo que alegadamente demonstra a sua


centralidade no homem é o seu foco na felicidade e realização humana em detrimento da glória
de Deus. Alguns teólogos reformados dizem que o Deus do Arminianismo é um Deus fraco e
sentimental, que existe para servir às necessidades e desejos humanos, e que na teologia
arminiana, o homem é glorificado às custas da glória de Deus. Isto nada mais é do que uma
calúnia viciosa, que precisa ser exposta como tal. Isto pode ser verdadeiro de grande parte da
religião popular americana, mas não tem nada a ver com a teologia arminiana clássica, na qual
o fim principal de todas as coisas é a glória de Deus.

Como sempre, vou começar com o próprio Armínio. Qualquer um que lê os seus
“Debates Privados”, “Debates Públicos” ou seus “Discursos” não pode negar que ele faz da
glória de Deus o propósito supremo de tudo, incluindo a criação, a providência, a salvação, a
Igreja e a consumação. Em seus “Debates Privados”, Armínio declarou claramente que Deus é a
causa de toda bem-aventurança e que o “fim” da bem-aventurança é duplo: “(1.) uma
demonstração da gloriosa sabedoria, bondade, justiça, poder e igualmente da perfeição
universal de Deus; e (2.) sua glorificação pelos beatificados”.[45] Para que ninguém pense que
ele torna Deus dependente da criação ou que a criação é necessária para Deus, Armínio declara
em sua “Apologia ou Defesa” que tudo quanto Deus faz ad extra[46] é absolutamente livre –
até mesmo sua auto-glorificação através da criação e da redenção: “Deus livremente decretou
formar o mundo, e livremente o formou: E, neste sentido, todas as coisas são feitas de forma
contingente em relação ao decreto divino; porque nenhuma necessidade existe por que o
decreto de Deus deve ser apontado, uma vez que ele procede de sua própria pura e livre...
vontade”[47] Em outras palavras, somente a crença de Armínio na liberdade libertária, tanto
de Deus quanto das criaturas, protege a absoluta contingência e, portanto, a liberdade da
criação. O que é mais glorioso? Um Deus que cria para glorificar a si mesmo de forma
absolutamente livre ou um, como o Deus de Jonathan Edwards, que não pode fazer
diferentemente do que faz?

É difícil saber de qual contexto citar as inúmeras afirmações de Armínio a respeito da


glória de Deus como o fim principal de todas as suas obras. Aqui, entretanto, está um exemplo
típico de seus “Debates Privados”, onde ele cobre todas as partes da teologia e quase sempre
conclui que tudo no céu e na terra é para a glória de Deus. Esta afirmação tem a ver com a
santificação, embora suas palavras sejam quase idênticas em relação à justificação e tudo mais
que Deus faz. A santificação, Armínio declara, “é um ato gracioso de Deus... [que] o homem
pode viver a vida de Deus, para louvor da justiça e da gloriosa graça de Deus....”[48] Em
seguida, também, “O fim [propósito] é, que um homem crente, sendo consagrado a Deus como
sacerdote e rei, deve servi-lo em novidade de vida, para a glória de seu divino nome....”[49]
De forma similar, o “fim” da igreja é “a glória de Deus”[50] e o “fim” dos sacramentos é “a
glória de Deus”[51] e “O principal fim [da adoração] é a glória de Deus e de Cristo....”[52]
Nos seus “Debates Públicos”, Armínio repete o padrão de descrever tudo que é abençoado e
bom como obra de Deus e seu fim ou propósito como a glória de Deus.
 

Anteriormente eu disse que Armínio quase sempre conclui que tudo no céu e na terra é
para a glória de Deus. Há uma e somente uma exceção. Em sua discussão sobre o pecado, ele
conclui, especificamente aqui no que diz respeito ao primeiro pecado, que “Não havia nenhum
fim para este pecado”.[53] Tanto o homem que pecou quanto o diabo estabeleceram um fim
ou propósito para o pecado, mas no final das contas o pecado não poderia ter um propósito
que seria transportá-lo para a vontade de Deus que não o faria pecado. Pelo contrário, o
primeiro pecado, como todo pecado, foi algo irracional e inexplicável – exceto pelo apelo ao
abuso do homem do livre-arbítrio. No entanto, Deus tinha um fim em permiti-lo: “atos gloriosos
a Deus, que possam surgir dele”.[54] Em outras palavras, enquanto o pecado não glorifica a
Deus, a redenção dos pecadores o glorifica.

O tempo e o espaço proíbem um relato mais longo e detalhado da ênfase de Armínio


na glória de Deus como o principal fim ou o propósito de todo bem na criação. Tudo que posso
fazer é aconselhar aos céticos a lerem os seus “Discursos” em suas Obras, Volume I, onde ele
constantemente repete o refrão para “a glória de Deus e a salvação dos homens”. Para que
ninguém pense que ele coloca dois fins no mesmo nível de importância, ele diz no Discurso II
que toda salvação tem o único propósito de que “possamos cantar louvores a Deus
eternamente”.[55]

Não se encontra nenhuma sugestão em Armínio de alguma preocupação com a


autonomia humana por sua própria causa. A única razão de Armínio para afirmar o livre-arbítrio
libertário é desconectar o pecado de Deus e tornar o pecador o único responsável por ele. Sua
única preocupação prioritária é com a glória de Deus em todas as coisas. Não pode haver
dúvida de que ele concordaria de todo coração com a resposta à primeira pergunta do Breve
Catecismo de Westminster: “Qual é o fim principal do homem?” “O fim principal do homem é
glorificar a Deus e gozá-lo para sempre”.

O tempo me proíbe de ensaiar uma longa descrição das afirmações arminianas da


glória de Deus depois de Armínio. É suficiente dizer que todos os arminianos clássicos sempre
concordaram com Armínio sobre este assunto. Eu desafio os críticos do Armininismo a
mostrarem um exemplo de um teólogo arminiano clássico que tem elevado a humanidade a um
fim em si mesmo ou de algum forma transformado a glória do homem no fim principal de Deus.
Isso não existe.
 

Concluo com essa observação. A diferença entre as teologias arminiana e calvinista não
está na centralidade do homem versus a centralidade em Deus. O verdadeiro Arminianismo é
tão completamente centrado em Deus quanto o Calvinismo. Uma leitura justa dos teólogos
arminianos clássicos, de Armínio a Thomas Oden, não pode deixar de encontrar neles uma
ressonante confirmação da centralidade em Deus de toda a criação e redenção. A diferença, ao
invés disso, se encontra na natureza e no caráter do Deus que está no centro desses dois
sistemas. O Deus que está no centro do Calvinismo clássico e extremado, tipificado pela TULIP,
é um ser moralmente ambíguo em poder e controle, que dificilmente se distingue do diabo. O
diabo quer que todas as pessoas vão para o inferno enquanto que o Deus do Calvinismo quer
que algumas pessoas, talvez a maioria, vão para o inferno. O diabo é o instrumento de Deus
para causar destruição e terror no mundo – para a glória de Deus. O Deus que está no centro
do Arminianismo clássico é o Deus de Jesus Cristo, cheio de amor e compaixão, bem como
justiça e ira, que voluntariamente limita o seu poder para permitir a rebelião da criatura, mas é,
não obstante, a fonte de todo bem, para cuja glória e honra tudo existe, exceto o pecado.

Fonte: http://www.rogereolson.com/2010/11/28/arminianism-is-god-centered-theology/

Tradução: Cloves Rocha dos Santos

http://www.arminianismo.com/index.php/categorias/diversos/artigos/44-roger-e-olson/
1223-roger-e-olson-o-arminianismo-e-uma-teologia-centrada-em-deus

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