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Como bancos ingleses lucraram com escravidão no Brasil

 Letícia Mori - Da BBC News Brasil em São Paulo1 - 19 julho 2020

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O tráfico de pessoas da África para as Américas durou mais de três séculos
No auge do tráfico de escravos da África para o Brasil, entre 1800 e 1850, mais de 2 milhões de pessoas foram
trazidas à força para o país para serem escravizadas, segundo o Banco de Dados do Comércio Transatlântico de
Escravos2 (Transatlantic Slave Trade Database). No total, ao longo de quatro séculos, mais de 4,8 milhões de
pessoas escravizadas foram obrigadas a desembarcar em solo brasileiro.

O tráfico era um negócio lucrativo, mas não foram só os traficantes e fazendeiros que se
aproveitaram da exploração brutal de seres humanos. Banqueiros ingleses se envolveram com a
escravidão no Brasil mesmo depois de ela ter sido abolida nas colônias britânicas, em 1833.
É isso que mostra uma pesquisa do historiador Joe Mulhern,3 especializado no envolvimento
britânico com a escravidão no Brasil, pela Universidade de Durham, na Inglaterra.
"Apesar de o Império Britânico na era vitoriana pensar em si mesmo como um modelo
moral quanto à escravidão e fazer pressão para que outros países, inclusive o Brasil, abolissem a
prática, os legisladores tiveram dificuldade para cortar os laços econômicos com a escravidão em
países estrangeiros", explica Mulhern em entrevista à BBC News Brasil.
Havia duas formas principais de envolvimento dos britânicos, explica o historiador. Uma
mais ampla, por meio de empréstimos e a compra de títulos do Tesouro, entre outras relações
indiretas com a economia escravocrata. E outra mais direta, em que instituições e indivíduos deram
apoio financeiro, na forma de empréstimos e garantias, por exemplo, para o tráfico de escravos ou
para fazendas que usavam esse tipo de mão de obra.
Alguns britânicos chegaram a ser diretamente proprietários de escravos — segundo o
trabalho de Mulhern, um censo de 1848-1849 mostra que havia, naquele ano, cerca de 3.400
pessoas escravizadas por mestres britânicos.
1
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-53385247. Acesso em 07/04/2023.
2
https://www.slavevoyages.org/
3
http://etheses.dur.ac.uk/13071/1/Mulhern_J_After_1833._British_Entanglement_with_Brazilian_Slavery.pdf?DDD17+
2

Entre os envolvidos nessa relação mais direta, havia indivíduos ligados a bancos que foram
predecessores de grandes instituições financeiras atuais do Reino Unido.

Lobby no parlamento
Em 1833 o Reino Unido havia extinguido a escravidão em suas colônias, dando
compensações para os senhores mas não para os escravizados. O império começou também a fazer
pressão diplomática para que a escravidão fosse abolida no Brasil. Essa pressão é apontada por
historiadores brasileiros como um dos múltiplos fatores que levaram ao fim da prática no país.
A lei que proibiu o tráfico como parte de um acordo com o Reino Unido, inclusive, deu
origem à expressão "para inglês ver", porque durante muito tempo não havia fiscalização e o tráfico
continuou.
No entanto, apesar dessa pressão do governo do país europeu, muitos do britânicos
envolvidos na prática conseguiam impedir que a legislação britânica fosse mais restritiva em
relação às suas atividades no exterior.
"Essa ambivalência no envolvimento do Reino Unido na escravidão (tanto pressionando
para o seu fim quanto deixando de cortar laços econômicos existentes) pode ser encontrada na
legislação da época", diz o historiador.

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Africanos escravizados tiveram roubadas sua liberdade, identidade e cultura

Isso porque os envolvidos faziam lobby no Parlamento.


"Eles pressionavam para que seus negócios fossem protegidos, com os mesmos argumentos para
defender a escravidão usados no Reino Unido antes de 1833", explica Mulhern.
Os três principais, aponta, eram a defesa da propriedade (porque as pessoas tinham sido
vendidas como propriedades); a necessidade de o Reino Unido prosperar nesses mercados que ainda
eram escravocratas; e o mito de que os britânicos que exploravam escravos eram "benevolentes".
"Já existia o mito de que os senhores de escravos no Brasil eram benevolentes. Os ingleses
diziam que eles eram ainda mais", conta Mulhern. "Mas não há nenhuma evidência de que a
escravização, uma prática baseada na violência ou na ameaça dela, era menos cruel quando
praticada pelos britânicos".
3

Seres humanos como garantia


Muitas vezes os escravizados eram parte das propriedades usadas em garantias de
empréstimos de um banco. Na dissertação de Mulhern, ele resgatou casos em que bancos ingleses
tinham um devedor insolvente e acabavam leiloando os escravizados para cobrar a dívida.
Um desses bancos, mostra Mulhern em sua pesquisa, era o London and Brazilian Bank,
criado em 1862 (e comprado em 1923 pelo Lloyd's Banking Group, que existe até hoje).
O banco continuou envolvido com a escravidão até a praticamente a abolição da prática no
Brasil, em 1888 — ou seja, mais de 50 anos depois da abolição da escravatura nas colônias
britânicas, como Jamaica e África do Sul.
Um dos executivos do London and Brazilian Bank, Edward Johnston, chegou a ser dono de
escravos no Brasil e a casar com uma família que era dona de uma fazenda de café no Rio de
Janeiro. "A riqueza gerada com a escravidão no Brasil ajudou a estabelecer um banco que investiria
na exploração de pessoas", diz Mulhern.

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A presença de negros no Cone Sul é um fenômeno que pode ser traçado desde os tempos da conquista, no século 16,
quando já havia registros da presença de pessoas que escravizados

Esses laços, no entanto, eram escondidos de investidores no Reino Unido, onde a opinião
pública já não era favorável à escravidão.
Para evitar afugentar investidores no país de origem, a maior parte dos bancos envolvidos
com operações relacionadas à escravidão não o fazia diretamente, mas por meio de comissários
intermediários, explica Mulhern à BBC News Brasil.
Um desses intermediários era a casa bancária Gavião Ribeiro Gavião, que financiava a
economia agrícola de São Paulo e atuava no comércio interno de escravos.
A casa bancária atuou como intermediária para o London and Brazilian Bank. O banco
britânico declarava que seu propósito no Brasil era comercial, mas tinha uma carteira de hipotecas
cujas garantias eram fazendas de café em São Paulo e mais de 800 pessoas que trabalhavam nelas
como escravos.
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Terceirização
O historiador também cita o caso da Fazenda Angélica, em Rio Claro, no interior de São
Paulo, que acabou se tornando um dos ativos de um banco e sendo administrada por ele. Depois de
uma tentativa fracassada de usar mão de obra de imigrantes, o banco resolveu "terceirizar" o uso de
mão de obra escrava.
Isso porque, sendo uma empresa inglesa, o banco não poderia ser dono direto de
escravizados. Mas uma brecha na legislação permitia que ele "alugasse" a mão de obra escrava de
outros senhores de escravo — e foi o que fez.

CRÉDITO,DOMÍNIO PÚBLICO
Um escravo sendo torturado em uma fazenda brasileira na visão do pintor francês Jean-Baptiste Debret, que viajou o
país retratando cenas da vida no século 19

Quando vendeu a fazenda, o banco afirmou que "não empregava um único escravo" — sem
citar que pagou senhores de escravos para usarem as pessoas escravizadas por eles na plantação e
que ainda tinha 80 escravos como garantia do financiamento que possibilitou a venda da fazenda.

Empréstimo não pago


"Nem sempre esse envolvimento era bem-sucedido, e agentes britânicos que fizeram as
negociações do tipo no Brasil chegaram a ser repreendidos no Reino Unido", conta Mulhern.
Mas a repreensão, diz ele, não foi por questões morais, mas porque muitos dos empréstimos
não foram recuperados e algumas instituições acabaram tendo dificuldades financeiras por causa
disso.
"Muitos investidores buscavam investir em infraestrutura, em criação de linhas de trem por
exemplo, mas os fazendeiros queriam um investimento direto na produção agrícola, que era um
negócio muito arriscado", diz Mulhern. "Apesar disso, alguns agentes se envolveram, até contraindo
orientações da sede, e depois foram repreendidos porque os negócios não deram certo".
Empréstimos que tinham seres humanos como garantia e não eram pagos tinham impactos
diretos na vida dessas pessoas.
Em 1869, o Barão do Turvo, fazendeiro carioca que tinha uma dívida com o London and
Brazilian Bank, não pagou um empréstimo que devia.
"O banco então entrou com um processo para recuperar o dinheiro, e como havia pessoas
escravizadas como garantia, elas sofreram a consequência", diz Mulhern. Advogados do banco
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então realizam um leilão de 103 escravizados, incluindo famílias com crianças e bebês.
Documentos da época compilados por Mulhern mostram como o banco vendeu pelo menos 30
dessas pessoas no leilão — entre elas a pequena Ancieta, uma bebê escravizada de apenas um ano
de idade; e as pequenas Adelina e Marcellina, vendidas com 2 e 6 anos.

Lidando com o passado


O movimento americano Black Lives Matter (Vidas Negras Importam, em português), de
protesto contra o racismo e contra o assassinato de negros pela polícia, fez com que muitas
instituições viessem a público falar sobre seu histórico racista e mostrar que mudaram de postura,
inclusive doando dinheiro para instituições de combate ao racismo.
"Historiadores já sabiam dessas ligações, mas o movimento Black Lives Matter trouxe um
novo escrutínio sobre esse passado", diz Mulhern.
Após a publicação de um artigo de Joe Mulhern sobre sua pesquisa, o banco Lloyds Banking
Group atualizou seu site4 para incluir um reconhecimento de que pelo menos seis dos 200 bancos
que foram incorporados pelo grupo se envolveram com a escravidão, incluindo o London and
Brazilian Bank.
"Embora tenhamos muito do nosso passado para nos orgulharmos, não podemos nos
orgulhar de tudo", diz o banco.
"Mas se esse debate vai ir além do reconhecimento e levar de fato a algum tipo de reparação
ou doação financeira é algo que eu não sei", afirma o pesquisador.

4
https://www.lloydsbankinggroup.com/who-we-are/our-heritage.html

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