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Adriano Teixeira
Doutor e Mestre em Direito
pela Universidade Ludwig-Maximilian de Munique (Alemanha),
consultor e advogado.
Resumo:
O artigo aborda a questão do dolo eventual nos casos de “racha” entre veículos automotores,
à luz da decisão do Tribunal de Berlim de 27 de fevereiro de 2017, bem como do acórdão do Tri-
bunal Federal da Alemanha. Apresentam-se e analisam-se os posicionamentos da crítica cientí-
fica a respeito, discutindo-se sobretudo a pertinência da exigência do elemento volitivo do dolo.
Palavras chave:
Racha, dolo, elemento volitivo.
Keywords:
Cars street race, criminal intent, volitional element.
Resumen:
El artículo aborda la cuestión del dolo en los casos consecutivos de "carrera ilegal de coches”,
a la luz de la decisión del tribunal de Berlín de 27 de febrero de 2017, así como la sentencia del
Tribunal Federal de Alemania. Se presentan y analizan los posicionamientos de la crítica científica
al respecto, discutiendo sobre todo la pertinencia de la especificación del elemento volitivo del
dolo.
Palabras-clave:
Carrera ilegal de coches, dolo, elemento volitivo.
78
1
trataremos com mais detalhes a respeito da nossa jurisprudência em um outro estudo, a ser publicado
futuramente.
2
Para além da nossa breve incursão nestes dois argumentos, o leitor interessado nessa discussão também
poderá encontrar uma abordagem em Hörnle (2018, p. 1576), Puppe (2018, p. 323) e Preuß (2018, p. 345)
3
o processo chegou ao Bgh por meio da Revision, que, grosso modo, corresponde ao recurso especial
brasileiro e não guarda qualquer semelhança com a nossa revisão criminal. A respeito, veja-se a explicação
de Luís greco (2018, p. 67).
dEscrição do cAso 5
Dois jovens dirigindo automóveis potentes6 apostam uma corrida para saber quem
chegará primeiro em um determinado local. Ambos, por volta da 1:00 da manhã, dirigiam
por uma movimentada avenida de Berlim com velocidade excessiva, alcançando uma velo-
cidade de até 170 km/h (eram permitidos 50 km/h), quando, em um cruzamento, avançando
um sinal vermelho, o automóvel conduzido por um deles atinge violentamente um outro
80 veículo dirigido por Z 7, que cruzava a avenida com o sinal verde. Com o impacto, Z sofre di-
versas lesões graves, que levam à sua morte ainda no local8.
4
Conferir, por exemplo, Jahn (2017, p. 700), Kubiciel e hoven (2017, p. 439), Puppe (2017a) e Walter (2017, p. 1350).
5
Essa descrição já se encontra em obra publicada por um dos autores (vIAnA, 2017, p. 276).
6
Um Mercedes-Benz AMg CLA 45 e um Audi S6 tDI 3.0 Quattro.
7
Será utilizado Z para proteger a identidade da vítima.
8
Para maior detalhamento das circunstâncias fáticas conferir a decisão publicada (AUtoR, 2017, p. 471-478).
9
o leitor também encontrará esse detalhamento em Preuß (2017, p. 303-304) e Puppe (2017a, p. 440).
As dEcisÕEs
o StgB conhece dois tipos penais básicos de homicídio: Mord (§ 211 StgB) e totschlag
(§ 212 StgB). Curiosamente, o primeiro representa o delito mais grave, com previsão de pena
de prisão perpétua em regime fechado (embora revisável13), e o segundo (totschlag),
“menos grave”, ao qual se comina uma pena privativa de liberdade de cinco anos ou mais 81
(não há pena máxima cominada). o que caracteriza o Mord é a presença de elementos qua-
lificadores, tais como torpeza, insídia, crueldade e – o que interessa para o caso analisado –
emprego de meios que representam perigo comum. há um dissenso entre a jurisprudência
e a doutrina alemãs a respeito da relação entre esses dois delitos: a jurisprudência os consi-
dera tipos penais autônomos14, ao passo que a doutrina majoritária os enxerga como tipos
penais em gradação (tipo penal básico e tipo penal qualificado) (ESER; StERnBERg-LIEBEn,
2014; REngIER, 2016, p. 14). Para os propósitos deste comentário, não precisamos explorar
essa questão, de modo que, à guisa de simplificação, trataremos daqui por diante esses dis-
positivos como homicídio simples (§ 212 – totschlag) e homicídio qualificado (§ 211 – Mord).
Essa distinção é importante para a questão da imputação subjetiva: pelas circunstâncias do
crime, a imputação a título de dolo eventual ou culpa consciente significa a diferença entre
uma pena mínima de cinco anos ou multa (homicídio culposo, § 222 StgB) e uma pena de
prisão perpétua (§ 211 StgB).
10
Para que se tenha uma imagem visual do local, convidamos o leitor a visitar a plataforma eletrônica
Instant google Street view.
11
Lg Berlin JZ, 2017, p. 1062.
12
o tribunal também aplicou uma pena acessória: comunicou ao órgão responsável pelas habilitações no
país a proibição perpétua de concessão de novas carteiras de habilitação para os condutores.
13
Cumpridos 15 anos da pena, é possível determinar algo análogo ao nosso livramento condicional, de
acordo com o § 57 StgB.
14
BghSt 1, 368 (370); BghSt 50, 1 (5).
15
A respeito desse conceito ver greco et al. (2014, p. 58).
16
Lg Berlin JZ 2017, 1062 (1064).
todos esses elementos necessários para a imputação dolosa são afirmados pelo tri-
bunal em relação ao caso concreto. Primeiro, destacaremos aquilo que, na concepção do
tribunal, milita a favor da presença do elemento cognitivo e, posteriormente, os dados que
têm força para afirmar o elemento volitivo.
também se afirmou o elemento volitivo, já que os réus teriam agido com indiferença
(Gleichgültigkeit) em relação ao resultado fatal, embora não o desejassem. Devido à extrema
velocidade com que conduziam, ao passar pelo cruzamento onde houve a colisão, os réus
não poderiam mais confiar que tudo sairia bem, de modo que teriam relegado ao acaso as
consequências de suas ações21. Possuídos pela vontade de ganhar a corrida, não realizaram
– e nem poderiam, em virtude da velocidade que imprimiram nos veículos – qualquer movi-
mento para evitar um eventual acidente, qualquer manobra de desvio ou frenagem22.
Dois argumentos defensivos foram refutados pelo tribunal: conforme o primeiro, afir- 83
mar que os agentes representaram mentalmente a possibilidade de lesão ou morte de ter-
ceiros significaria dizer que também teriam imaginado a própria lesão ou a própria morte,
ou seja, que teriam agido de forma “kamikaze”; de acordo com o segundo, também seria
um contrassenso ignorar o fato de os condutores obviamente não desejarem que seus “san-
tuários sobre quatro rodas” sofressem qualquer dano. Contra o primeiro desses argumen-
tos, aduziu-se que os potentes e robustos carros utilizados pelos réus lhes forneciam uma
sensação especial de segurança, como se estivessem em um tanque de guerra23. Em relação
ao segundo, argumentou-se que, no momento do êxtase provocado pela adrenalina, os
possíveis pensamentos sobre danos ao automóvel são suprimidos.
17
vale advertir o leitor que, na jurisprudência do Bgh, mesmo nos casos de perigo objetivo extremo, é
possível negar o dolo eventual. Isso se dá, especialmente, na constelação de casos que se ajusta à chamada
teoria do obstáculo psíquico (Hemmschwellentheorie). Sobre isso, ver viana (2017, p. 305).
18
Lg Berlin JZ 2017, 1062 (1064).
19
Lg Berlin JZ 2017, 1062 (1065).
20
Lg Berlin JZ 2017, 1062 (1066).
21
Isso inviabiliza ser cogitada uma imputação a título de culpa e, consequentemente, impede ser reconhe-
cida a realização do tipo previsto no § 222 do StgB.
22
Lg Berlin JZ 2017, 1062 (1066).
23
Lg Berlin JZ 2017, 1062 (1067).
Como antecipamos, a rigor, a decisão do Bgh não nos oferece nada de extraordinaria-
mente novo a ponto de justificar uma análise isolada de sua decisão. Dois argumentos ma-
nejados pelo tribunal, contudo, merecem uma abordagem, ainda que breve. vamos a eles.
De saída, o Bgh questionou o marco temporal para a afirmação do dolo tal qual fixado
pelo tribunal de Berlim. Segundo o Bgh, um delito doloso se configura apenas quando, após
tomada a resolução delitiva (Tatentschluss), ainda procede ao menos uma ação que desem-
bocará no resultado. Por exemplo: a decisão de apertar o gatilho precede o disparo. Assim,
o dolo de matar teria de ser provado antes da entrada dos condutores no cruzamento, pois,
depois disso, como o tribunal de Berlim afirmou, eles nada mais podiam fazer. A possível
circunstância de que, no momento do atravessar do cruzamento, em que mais nada poderia
ser feito, os agentes possuíam dolo de matar é irrelevante. tratar-se-ia do que sói chamar-
se de dolus subsequens25.
As considerações teóricas gerais sobre o dolo carreadas pelo Bgh não diferem subs-
tancialmente das expostas pelo tribunal de Berlim. no entanto, o Bgh aponta falhas – mais
84 precisamente omissões – na análise do caso por parte da instância anterior. Em primeiro
lugar, aponta que uma questão fundamental para análise do dolo deixou de ser enfrentada,
a saber: o fato de se colocarem em perigo, também, os acusados. o Bgh aduz que, em casos
como esse – de comportamentos arriscados no trânsito, nos quais o interesse primário dos
envolvidos não é lesionar terceiros –, a possibilidade de lesão dos agentes faz que estes ten-
dencialmente acreditem em um desfecho positivo – o que afastaria o dolo, segundo a (tra-
dicional) fórmula jurisprudencial. o argumento do tribunal de Berlim, de que os condutores
se sentiam seguros nos seus automóveis, não teria sido acompanhado por nenhuma evi-
dência, seja do caso concreto, seja do senso comum26. Além disso, embora a instância tenha
negado um “dolo de autolesão” em relação aos acusados, ela afirmou o dolo de lesão cor-
poral relacionado à pessoa que estava no banco do passageiro do carro de um dos acusados.
Assim, o tribunal de Berlim analisou de modo contraditório e ambivalente a representação
de perigo dos acusados em relação a ocupantes do mesmo carro (negativa para o condutor
e positiva para o passageiro)27.
24
Lg Berlin JZ 2017, 1062 (1068).
25
Bgh nJW 2018, 1621 (1622).
26
Bgh nJW 2018, 1621 (1623).
27
Bgh nJW 2018, 1621 (1623).
De saída, convém remarcar que a decisão do Lg Berlim merece aprovação. Isso não
significa que todos os argumentos ventilados são corretos e/ou necessários. há, portanto,
por parte dos autores, alguma concordância em relação ao resultado final, mas não em re-
lação ao caminho percorrido para se chegar a ele.
tonio Walter (2017) põe em xeque o peso do elemento cognitivo a partir das conse-
quências, que retira do elemento volitivo. Ele parte da premissa que os jovens não queriam
ou não aprovavam o resultado morte, pois isso iria contra seu senso de sobrevivência (ar-
gumento de se colocar em perigo, ver a seguir (b)) e o amor que tinham pelos carros e pelas
28
Para além daqueles trabalhos já citados na nota de rodapé nº 7, vale destacar, também: herzberg, (2018,
p. 122), Krell (2018, p. 237), Kubiciel e Wachter (2018, p. 332), Preuß (2017, p. 303) e Puppe (2018, p. 326).
29
Bgh – 4 StR 501/16, nZv 3/2017, p. 135; Bgh – 4 StR 311/17, JR 7/2018, p. 348. Para outros casos na doutrina,
vide Krell (2018, p. 237), Puppe (2018, p. 326) e Preuß (2017, p. 345).
30
Com esse sentido concordam Kubiciel e hoven (2017, p. 440). também próxima a essa opinião é grüne-
wald (2017, p. 1070).
nesse sentido, convém remarcar que o importante não é saber se o indivíduo efetiva-
mente confiou, ou não, que tudo sairia bem, senão se, nas circunstâncias, esse indivíduo,
86 racionalmente, poderia confiar que nada de muito grave ocorreria. A evasiva da “pseudo-
confiança”, normalmente ventilada, isto é, averiguar em que o indivíduo confiava quando
acelerava a 170 km/h, abrirá as portas da imputação subjetiva culposa para os aventureiros,
pois esses dificilmente confiam que o seu comportamento desembocará em algo ruim32.
Isso pode ser facilmente comprovado, levantando-se a pergunta-teste a seguir para um hi-
potético participante de racha: “o que você considera quando acelera a 170 km/h durante o
racha?” Uma possível resposta seria “penso somente em vencer a corrida33” . Com isso
poderíamos retorquir a Walter (2017) sobre se essa representação (egoísta) do condutor
é suficiente para impedir uma imputação dolosa. Cremos que não, a seguir o leitor saberá
os porquês. Por ora, é possível seguir uma intuição: a ideação do próprio indivíduo sobre o
resultado que o seu comportamento pode produzir deve desinteressar à imputação subje-
tiva34. E deve ser assim porque a valoração sobre a representação do risco e o risco do com-
portamento não são a mesma coisa: a primeira é realizada pelo próprio indivíduo e a segunda
pelo direito. Se esse elemento merece, ou não, ser verdadeiramente discutido, isso é algo
que o leitor saberá logo adiante. Por ora, pareceu-nos importante já destacar o quanto ele
pode ser problemático.
31
no original: “Wer vertraut, der ist sich gewiss, dass es gutgehen werde” (WALtER, 2017, p. 1351).
32
Considerando que o direito precisa levar em conta a irracionalidade das ações porque a maioria dos au-
tores também são irracionais, estão contra isso Momsen (2018, p. 89) e Walter (2017, p. 1350).
33
Justamente por isso a afirmação de que não tinham como objetivo matar qualquer pessoa dos indivíduos
que participaram do racha em Berlim não causa qualquer surpresa.
34
Inclusive, também é possível pôr em xeque a tentativa de encontrar algum preciso estado mental no
indivíduo durante a realização do seu comportamento: quem saberá efetivamente o que alguém, em um
determinado momento, pensou ou quis? Antes disso, este quem chegou a pensar em algo?
há mais de cem anos, parcela da literatura científica alemã – e mais recentemente al-
gumas exceções na literatura brasileira37 – já demonstrou quais são os resultados a que che-
gamos quando argumentamos com base nessa perspectiva psicológica do dolo (LACMAnn, 87
1911, p. 158). Para recordar essa objeção centenária: imagine-se que dois fazendeiros brincam
de tiro ao alvo numa feira popular e decidem fazer uma aposta. o desafio: atirar no chapéu
da menina que se encontra vinte metros adiante sem a ferir. o prêmio: todo o patrimônio
do perdedor. o primeiro fazendeiro atira e ocorre o duplamente indesejado, a menina é
atingida e morre. neste caso, é óbvio que o atirador não quis, em sentido psicológico-des-
critivo, o resultado. Conclusão: aquele que pretende ser coerente com as premissas que
professa – leia-se, a literatura que defende um conceito psicológico de vontade – deve estar
disposto a atribuir ao atirador a realização de um homicídio culposo (gRECo, 2009, p. 887;
SoUZA SAntoS, 2008, p. 285). Em poucas palavras: deve estar disposto a assumir que a
morte da menina foi obra do azar.
é justamente por isso que, nesse âmbito, psicólogos e juristas não falam o mesmo
idioma, isto é, utilizam o termo querer em sentidos distintos. Para evitar uma decisão que
contraria a intuição, que é a que precisaríamos tomar no caso da menina, o Bgh retoma o
caminho da normatização do elemento volitivo38. na perspectiva jurídico-normativa não
35
Sobre os equívocos deste proceder, ver viana (2017, p. 147).
36
“Ist dem täter der eintritt des tatbestandlichen Erfolges liber, und deswegen handelt er schließlich auch”
(BUng, 2009, p. 184, itálico no original).
37
Para além dos autores deste artigo, Luís greco (2009, p. 885) também adota, ou já adotou, uma concep-
ção meramente cognitiva de dolo. negando a vontade em sentido psicológico, temos gomes (2017) e
Souza Santos (2008, p. 285). Repercutem, em maior ou menor extensão, as teorias que dispensam a von-
tade: Busato (2018, p. 381-382), Martinelli e Bem (2018, p. 466-468) e tavares (2018, p. 253-266).
38
originariamente exposta no famoso caso da correia de couro, BghSt 7, 363 e ss. ver também Bgh nStZ
2011, p. 211; Bgh nStZ-RR 2015, p. 109.
A premissa de que condutor do racha acreditaria num desfecho livre de acidente pode
ser compreendida dentro de uma moldura argumentativa delineada por Roxin e greco (no
prelo)40. Segundo esses autores, numa ultrapassagem perigosa, em geral, não há dolo in-
tencional no comportamento. Isso porque, em uma tal situação de risco – e em que pese a
88 consciência desse risco – o condutor confia que a sua “destreza” evitará o resultado. Do
contrário, desistiria da sua ação, pois ele mesmo seria a primeira vítima do seu comporta-
mento (RoxIn; gRECo, no prelo). Mas é preciso ficar atento para o fato de que os autores
ressaltam que “por regra”, “normalmente” (in aller Regel) o resultado não será dolosamente
causado. Se consideramos a semântica, não é possível taxar, nem de longe, que um racha
pelas ruas movimentadas de uma cidade expressa uma hipótese de “normalidade”.
observando-se com cuidado a descrição de Roxin e greco (no prelo), é possível retirar
um importante elemento para a imputação subjetiva. Com efeito, em uma situação de risco,
o autor representa simultaneamente duas coisas: o (irracional) “tudo sairá bem”, mas, igual-
mente, o arriscado método de condução. E é justamente a representação desse letal método
de condução que deve ser valorada. Isso porque não se trata de considerar a consideração
que o indivíduo fez sobre a probabilidade de uma autolesão, senão a sua consideração da
probabilidade de lesão de terceiros. Aquele que ingressa em uma disputa automobilística
ilegal pelas ruas movimentadas da cidade, embora não realize um ataque direto contra o
corpo, em regra, reconhece a probabilidade de uma consequência fatal (EISELE, 2018, p.
552). o que ele “faz” com essa representação (se a reprime psiquicamente, se confia que
tudo sairá bem ou mantém-se indiferente) deve interessar somente ao seu patrimônio psí-
quico; mas o que ele “faz” apesar dessa representação, isso sim precisa interessar ao direito
penal. numa linguagem mais pedestre, o condutor do racha pode “jogar” com a própria
vida, mas não com a vida dos outros.
39
Sobre esse modo de proceder em relação ao dolo e a correspondente crítica, ver viana (2017, p. 98).
40
o assunto é igualmente tratado por Schmidhäuser (1980), especialmente na página 244.
Por outro plano, também não está político-criminalmente justificada a razão pela qual
a representação do autor de que tudo sairá bem deve excluir o dolo. os limites deste artigo
não permitem uma fundamentação mais aprofundada, reservada para trabalhos futuros,
pelo que deixaremos aqui somente uma provocação: por que razão o direito deve valorar
positivamente a autoconsideração do risco realizada por condutor aventureiro (leia-se, ex-
cluir o dolo) e a vítima deve pagar o preço pela sede de prazer absoluto41? não cremos ser
possível uma fundamentação razoável para superar essa perplexidade. Justamente por isso,
o fundamental para a imputação subjetiva é que o terceiro racional averigue a intensidade
do perigo e o grau de vulnerabilidade da vítima para verificar se, no caso concreto, o condu-
tor estabeleceu ou não um compromisso cognitivo com o perigo de realização do tipo
(vIAnA, 2017, p. 251). Disso podemos derivar a seguinte conclusão: nem todos os casos de
excesso de velocidade implicarão, necessariamente, uma imputação dolosa, tampouco uma 89
imputação culposa. Para dar um exemplo: nem todos que conduzem com velocidade exa-
geradamente superior à permitida pelo local expressam um compromisso cognitivo com o
perigo de morte, basta imaginar a não incomum atitude de quase todo condutor inexpe-
riente acelerar demasiadamente seu veículo. Essa hipótese, como é possível intuir, difere
completamente dos hedonistas que se esforçam (somente) em buscar a emoção.
A segunda objeção adicional – essa levantada somente pelo Bgh – diz respeito à
dimensão temporal do dolo. o Bgh recorreu a uma consideração um tanto quanto óbvia:
nos delitos comissivos o decisivo para o dolo é o momento no qual o indivíduo conduz a
sua ação à realização do tipo – fala-se, neste caso, em princípio da coincidência (hRUS-
ChKA, 1988, p. 4; JoECKS, 2017; KÜhL, 2017, p. 89; RoxIn; gRECo, no prelo; vIAnA, 2017,
p. 19-82). Com essa premissa em mente, argumentou-se que os condutores estavam
diante de um “dolo de matar” somente no momento do cruzamento fatal, ou seja, no
momento em que eles não poderiam mais reagir para evitar a colisão. Essa questão fica
melhor esclarecida com o próprio exemplo usado pelo Bgh para afirmar o dolus subse-
quens. Para o Bgh, o caso do racha se assemelha à seguinte situação: “imagine-se que
alguém, por travessura, jogue uma rocha morro abaixo; após fazê-lo, reconhece que
abaixo passa o seu inimigo. Esse alguém, então, pensa: ‘isso vem bem a calhar’. Esse pen-
samento posterior é, contudo, insignificante, eis que a verdadeira ação – jogar a rocha
morro a baixo – foi efetuada sem dolo”.
41
Um esboço para a consideração da vítima no âmbito da imputação objetiva já foi realizado por um dos
autores (vIAnA, 2017, p. 265-270; p. 336-340).
posicionAmEnTo
De acordo com a ideia de dolo como um compromisso cognitivo com o perigo repre-
sentado, o nível de imputação indicado pelo Lg Berlim merece concordância.
Está bastante claro que os condutores não queriam causar qualquer “acidente” fatal;
sua motivação é hedonista e, por isso mesmo, o “acidente” é completamente incompatível
com a meta de cada um: o prazer de ganhar a corrida. Como demonstrado, adotando-se
uma concepção volitiva de dolo, seríamos forçados, neste ponto, a não prosseguir com a
análise do caso, eis que a inexistência do estado mental em relação ao resultado inviabilizaria
uma imputação dolosa. Chegamos, então, a um ponto crucial: acaso uma hipotética posição
mental do indivíduo contrário ao resultado efetivamente existisse, isso seria suficiente para
justificar uma imputação culposa43? Cremos que essa pergunta merece uma resposta ne-
gativa. trocando em miúdos, julgamos que a imputação subjetiva não pode ser determinada
a rogo de uma (hipotética e insondável) postura mental, sob pena de se abrir para o autor
uma porta de possibilidades de manipulação dos fatos (e do direito)44. A esta altura, isso já
42
Puppe (2017a, p. 324) e Schneider (2018, p. 528) vão nesse sentido.
43
Comparar com o disposto em Puppe (2017b).
44
Comparar com o disposto em grünewald (2017, p. 1070).
Parcela da literatura chama a atenção para o fato de que a normatização do dolo não
é algo fácil, afinal ela privilegiaria, entre outras coisas, a invasão do dolo eventual no âmbito
da culpa consciente (gRÜnEWALD, 2017, p. 1071). Essa não é uma objeção forte. E não o é
porque – como a própria literatura reconhece –, sendo a zona do dolo (eventual) e a da
culpa consciente extremamente imprecisas, não seria possível falar, sem ferir a lógica, em
invasão de zonas. Decisivo, isso sim, é fornecer critérios que permitam situar a imputação
subjetiva dentro de parâmetros razoáveis. não há, aqui, espaço suficiente para abordar
todas as alternativas científicas que a literatura apresenta para a retirada do elemento voli-
tivo da estrutura do dolo, razão pela qual, neste ponto, apresentaremos apenas um esboço
da nossa ideia e reservaremos para outra oportunidade a discussão sobre as possíveis ob-
jeções a essa proposta.
De saída, é preciso deixar bastante claro que o caso analisado não expressa um caso
normal de trânsito. E é importante frisar isso porque a solução aqui apresentada não é rea-
lizada no modo “tudo ou nada” – isto é, todo caso de racha implica necessariamente uma
imputação dolosa.
A essa objeção replica-se, com razão, que a punibilidade da tentativa, como se sabe,
não é construída somente pelo componente subjetivo – da chamada resolução delitiva (Ta-
tentschluss) –, mas também pelo aspecto objetivo, a saber o unmittelbares Ansetzen. Esse
componente objetivo, cuja determinação não raro se mostra difícil na prática, é constituído,
grosso modo, pelo point of no return, a partir do qual o resultado ocorrerá de forma natural,
sem ulteriores intervenções do autor. Isso não pode ser determinado de forma genérica,
mas sim ponderado em cada caso concreto. ou seja, não é possível afirmar que agentes já
adentraram na zona da tentativa quando ligaram os motores, quando excederam o limite
de velocidade pela primeira vez ou quando avançaram o primeiro sinal vermelho (KUBICIEL;
hovEn, 2017, p. 442; EISELE, 2018, p. 554). haverá tentativa, entretanto, quando uma po-
tencial vítima se aproximar do raio de ação dos motoristas – e pareceria muito estranho que
isso não fosse assim.
45
Para chegar a esse referencial igualamos a energia cinética de colisão com a energia potencial equivalente
a uma altura h.
46
Puppe (2018, p. 324), por sua vez, aceita a premissa dessa objeção – a afirmação de inúmeras tentativas
de homicídio –, mas não compartilha a conclusão que esse resultado seria absurdo, mas sim consequente
e correto. Puppe apenas concretiza o(s) momento(s) da(s) tentativa(s): o atravessar dos cruzamentos em
extrema velocidade.
Provavelmente a razão por que a discussão do dolo eventual nos casos de racha é tão
intensa e controvertida na comunidade jurídico-penal alemã – para além do apelo emocional
e midiático – é que esses casos colocam um dilema de natureza político-criminal: ou (I) no
caso de se negar o dolo e se afirmar apenas um homicídio culposo – aplicando uma pena
máxima de apenas cinco anos ou multa; ou (II) na hipótese de condenação por homicídio
qualificado doloso, é aplicada uma pena de prisão perpétua em regime fechado. Para casos
como o de racha, em que, por um lado os autores não consideram com tanta clareza o perigo
de morte (e muitas vezes não a desejam), e, por outro lado, acabam conscientemente pondo
vidas em risco, nenhuma das duas opções parece ser satisfatória (gRÜnEWALD, 2017, p.
1072; KRELL, 2018, p. 239). é verdade que esse dilema não se coloca no Brasil, ao menos não
nesse nível de radicalidade. Contudo, ainda assim, o aplicador do direito terá de escolher
um intervalo de dois a quatro anos de detenção (art. 302 do Código de trânsito Brasileiro –
homicídio culposo na direção de veículo automotor) ou de doze a trinta anos de reclusão
(art. 121, § 2º, do Código Penal), ou seja, duas opções bastante díspares. Para contornar ou
fugir desse dilema, apresentam-se soluções de caráter legislativo, uma já de lege lata, outra
de lege ferenda.
no entanto, essa não é uma solução definitiva, ao menos do ponto de vista teórico,
pois, mesmo com a existência desses tipos penais autônomos, na hipótese do resultado
morte, o julgador não fica isento de examinar a realização do tipo de homicídio e de aferir
se foi culposo ou doloso. não se poderia evocar aqui o princípio da especialidade em detri-
mento da punibilidade por homicídio.
Essas questões, contudo, extrapolam os limites deste artigo. Entretanto, aqui ainda
cabe uma síntese da discussão central, qual seja, os critérios para a imputação a título de
rEfErÊnciAs
BRASIL. Supremo tribunal de Justiça. Recuso Especial 912.060 Distrito Federal. Relator:
Ministro Arnaldo Esteves Lima. Diário da Justiça Eletrônico, Poder Judiciário, Brasília, DF,
14 nov. 2007.
BRASIL. Supremo tribunal de Justiça. habeas Corpus 120.175 Santa Catarina. Relator:
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