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No final do ano passado, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tomou uma decisão de vanguarda. No
julgamento do AgResp 1.940.381/AL, sob a relatoria do ministro Ribeiro Dantas, ficaram assentados, de
uma só vez, três precedentes inovadores para o processo penal brasileiro[1]: primeiro, sobre a teoria da
perda de uma chance probatória, tese desenvolvida entre nós por Alexandre Morais da Rosa e Fernanda
Mambrini Rudolfo e já discutido nesta coluna; segundo, sobre o valor probatório do testemunho por
ouvir dizer (Hearsay), tema largamente discutido na common law e que também já foi abordado por
Aury Lopes Jr. neste espaço; e, terceiro, sobre a ocorrência de injustiça epistêmica, cujas modalidades e
características temos discutido há algum tempo em artigos nesta coluna (aqui, aqui, aqui, aqui e aqui
), eventos acadêmicos (aqui, aqui, aqui, aqui) e podcasts (aqui e aqui).
Spacca
A menção expressa ao conceito de injustiça epistêmica na ementa do acórdão, contudo, até o momento
não foi objeto de detida análise pela comunidade jurídica. Isso talvez se justifique porque o próprio STJ
propôs como teses apenas os dois primeiros precedentes acima — sobre perda de uma chance probatória
e ouvir dizer. A própria ConJur, em seu comentário à decisão, ressaltou somente as duas primeiras
teses. É assim oportuno que iniciemos nossas contribuições para a coluna Limite Penal no ano de
2022, com mais um artigo dedicado às injustiças epistêmicas.
O Agravo foi contra decisão do Tribunal de Justiça de Alagoas, que não admitiu recurso especial
interposto pela defesa em face da manutenção da condenação de M B B. O réu havia sido condenado por
ato infracional equiparável à tentativa de homicídio. No que diz respeito à injustiça epistêmica, objeto de
nossa consideração aqui, para o relator do caso, ministro Ribeiro Dantas, esta teria ocorrido, de forma
"evidente", porque o réu não teve a sua narrativa considerada pelas autoridades. M M B era menor de
idade, morador de rua, dependente químico, sem educação formal — ou seja, um conjunto perfeito de
marcadores identitários aptos para gerar injustiças epistêmicas sistemáticas.
O ponto é que M M B não encontrou operadores jurídicos dispostos a lhe proverem a atenção devida à
sua versão do ocorrido. Desde a fase do inquérito policial até a decisão condenatória em segunda
instância, em distintas etapas processuais, foi-lhe negada qualquer oportunidade de contribuir à
determinação dos fatos a partir de sua perspectiva. Sua condição de sujeito epistêmico, capaz de fornecer
informações sobre os fatos do caso, foi ignorada. Não que a versão do réu merecesse qualquer sorte de
"superioridade epistêmica", mas ela tampouco deveria ter sido de pronto descartada por quem tinha o
encargo institucional de demonstrar os fatos presentes na acusação formulada. E nesse ponto, importa
frisar que a alegação do réu de que agira em legítima defesa cria para a acusação o encargo de refutá-la.
Isso não apenas não foi feito sob a perspectiva do ônus probatório, como tampouco serviu para fragilizar
a tese acusatória aos olhos do julgador. Ao contrário, foi francamente desconsiderada como hipótese
alternativa àquela sustentada pelos órgãos encarregados da persecução penal.
Por esta razão, é inovadora e apropriada a referência, na ementa e no corpo da decisão no AgResp
1.940.381/AL, ao conceito de injustiça epistêmica. Este é um conceito desenvolvido pela filósofa
Miranda Fricker há mais de uma década. Na verdade, o desenvolvimento do conceito se deve às
pesquisas por ela efetuadas durante seus estudos doutorais. Em 2007, Fricker publicou Epistemic
Injustice: Power and the Ethics of Knowing, o livro que inaugurou uma nova subárea de pesquisa na
Epistemologia Social. A Epistemologia Social é uma área da filosofia contemporânea que se dedica a
teorizar sobre os modos através dos quais, nos mais variados contextos da vida em sociedade, os sujeitos
produzem/alcançam o conhecimento, justificam suas crenças, formulam critérios para as afirmações de
verdade que fazem etc. Neste sentido, o ambiente dos tribunais é apenas um dentre os diversos contextos
sociais nos quais as transações epistêmicas injustas chamam a atenção da autora.
No primeiro capítulo do seu livro, Fricker considera a injustiça epistêmica do tipo testemunhal sofrida
por Tom Robinson, personagem do conhecido romance de Harper Lee, To Kill a Mockingbird
. Tom é um homem negro injustamente acusado de ter estuprado a jovem branca Mayella Ewell; e os
jurados do caso, por preconceito racial, e não obstante a prova de inocência produzida pelo advogado de
defesa, negam a credibilidade que era devida à sua versão. Mas os casos de injustiça epistêmica
trabalhados por Fricker vão muito além da dimensão judicial.
Por exemplo, para explorar a injustiça testemunhal de que uma mulher (na posição de falante) pode ser
vítima em razão de um preconceito de gênero, Fricker recorre ao filme "O Talentoso Ripley". Naquela
história, o dissimulado Tom Ripley assassina o melhor amigo, Dickie Greenleaf, assume a sua
identidade e continua a conviver com seus familiares, mantendo-os enganados e manipulados. A certo
ponto da trama, Marge Sherwood, namorada de Dickie, conta para o sogro, Herbert Greenleaf, a suspeita
que nutre de que Ripley tenha matado o seu amado. Herbert apressadamente descarta o relato de Marge
por considerá-la histérica e irracional, a despeito dos indícios contra Ripley enumerados por ela: a
obsessão de Ripley por Dickie; o anel que Dickie jurara a Marge que nunca tiraria, mas que ela encontra
nas coisas de Ripley; a nada plausível hipótese levantada por Ripley de que Dickie teria se suicidado,
etc. Os estereótipos machistas — disponíveis nos anos 50 em que a história se passa e que, infelizmente,
ainda estão entre nós — foram a base da redução da credibilidade de Marge por parte de Herbert. Daí a
famosa passagem que retrata a descaracterização de Marge como um sujeito epistêmico, capaz de
contribuir com uma versão racional da realidade: "Marge, existe a intuição feminina e existem os
fatos" (Fricker, 2007, p. 88).
O que queremos dizer é o seguinte: embora Fricker tenha explorado exemplos do cenário judicial, este
não foi o campo de aplicação do conceito de injustiça epistêmica exclusivamente mirado pela autora.
Contudo, não é difícil vislumbrar que as práticas jurídico-epistêmicas que se dão no decorrer de um
processo criminal são de especial interesse para o estudo das injustiças epistêmicas. É o que temos
defendido em nossos trabalhos.
Foi pensando nisso que Janaina Matida, uma das autoras do texto de hoje, ao idealizar um curso para a
Defensoria Pública (parceria IDDD e Anadep) em 2021, não deixou de fora o tema da injustiça
epistêmica, tendo convidado, de forma inédita no país, a própria Miranda Fricker para uma das aulas,
que versou sobre "Presunção de inocência, injustiça epistêmica e responsabilidade por preconceitos
implícitos". Ainda em 2021, o tema foi objeto de disciplina eletiva ofertada por Rachel Herdy
, que também subscreve este texto, em conjunto com Fábio Shecaira, no âmbito do Programa de Pós-
Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Tanto a expressiva
receptividade entre defensores públicos de todas as partes do Brasil, que participaram ativamente das
discussões, quanto o grande interesse de mestrandos e doutorandos do país[2] são fortes indicativos do
potencial explicativo desta categoria para a Justiça criminal brasileira. Não surpreende, portanto, que a
discussão tenha sido rapidamente apropriada em decisão recente do STJ.
Os estudos sobre injustiça epistêmica, contudo, vão além das ideias de Fricker. Se voltarmos ao AgResp
1.940.381/AL, sob as lentes de interlocutores que também têm significativamente contribuído para a
discussão[3], podemos fazer uma crítica construtiva ao acórdão. De fato, foi praticada injustiça
epistêmica testemunhal contra o réu M B B – mas não só contra ele. Houve injustiça epistêmica
testemunhal contra todos aqueles que não foram ouvidos pelos mesmos preconceitos identitários, dado
que tal como o recorrente, as demais testemunhas e mesmo a própria vítima estavam em situação de rua.
E mais: se aplicarmos uma visão holística, como a proposta por José Medina e Jennifer Lackey,
chegaremos à conclusão de que houve também injustiça epistêmica por excesso de credibilidade
dado às palavras do policial militar e do bombeiro, que só resignaram-se a repetir o que "ouviram
dizer" de "populares". Se, por um lado, as partes envolvidas ou testemunhas do fato tiveram, uma a uma,
sua condição de sujeitos epistêmicos desconsiderada, por outro, o policial e o bombeiro que chegaram
depois contaram com uma generosa atribuição de credibilidade, pois o que relataram por ouvir dizer foi
automaticamente considerado verdadeiro, sem que se tenham envidados quaisquer esforços para se
identificar estes "populares" e ouvi-los diretamente.
Justamente para dar visibilidade aos efeitos causados pela multiplicidade de estereótipos e
generalizações carentes de respaldo empírico que perversamente podem invadir o interior de um mesmo
processo cognitivo, convém atentar à distribuição de credibilidade considerando todos os sujeitos
envolvidos, todas as transações epistêmicas. Em resumidas linhas, quando nos fechamos à possibilidade
de reconhecer a credibilidade de uma pessoa, é bem provável que estejamos, na outra ponta, conferindo
credibilidade em excesso a quem, naquela situação e naquelas circunstâncias específicas, pouco ou nada
contribua com informações relevantes para a determinação do que realmente ocorreu.
Movidas por este ânimo, daremos continuidade ao debate das injustiças epistêmicas no workshop "
Injusticia Epistémica en el contexto probatorio", atividade que está sob a nossa coordenação e que
integra a programação da Michelle Taruffo Girona Evidence Week, promovida pela Universitat de
Girona (23 e 27 de maio). Concluída a lista de propostas aprovadas ontem (3/3), podemos compartilhar
nosso entusiasmo diante da oportunidade de troca de experiências com pesquisadores e profissionais de
distintos sistemas jurídicos. O Workshop reunirá um grupo de pesquisadores engajados com a
(re)fundação de um sistema de justiça criminal a partir de bases garantistas, comprometidas com a busca
pela verdade e a não-discriminação.
A injustiça epistêmica está oficialmente em pauta! O STJ rapidamente reconheceu uma categoria cuja
relevância jurídica temos enfatizado em artigos desta coluna e em muitos espaços acadêmicos.
Esperamos que a categoria da injustiça epistêmica continue a encontrar adesão no mundo jurídico e
possa ser explorada em toda a sua potencialidade para a erradicação de todos os preconceitos identitários
que invadem a justiça criminal brasileira. Fica a nossa dica, em tempestiva homenagem ao 8 de março,
Dia Internacional da Mulher.
[1] Uma explicação técnica: uma decisão pode trazer um, vários ou nenhum precedente; e um único
precedente pode se manifestar em mais de uma decisão. Neste caso, identificamos a presença de três
precedentes inovadores na ementa do acórdão – embora, como vamos ver, apenas dois foram
transformados em tese.
[2] Vale mencionar a recente defesa da dissertação de mestrado de Sérgio Rodas, sob orientação da
professora Rachel Herdy, intitulada "A prática de injustiça epistêmica por atribuição de excesso de
credibilidade a colaboradores premiados". Tratou-se de uma dissertação inovadora, que busca aplicar o
conceito de injustiça epistêmica por excesso de credibilidade — ideia desenvolvida por José Medina e
Jennifer Lackey, em resposta crítica às contribuições de Fricker — no contexto de aplicação do instituto
da colaboração premiada. Também é relevante mencionar a tese de doutorado igualmente inédita, de
Carolina Castelliano, já qualificada e em fase de elaboração, também sob a orientação da professora
Rachel Herdy, sobre o tema da injustiça hermenêutica, uma das modalidades de injustiça epistêmica
ainda pouco discutida na área do Direito.
[3] MEDINA, José. "The relevance of credibility excess in a proportional view of epistemic injustice:
Differential epistemic authority and the social imaginary", Social Epistemology, 25, 11-35, 2011; e
LACKEY, Jennifer. "Credibility and the Distribution of Epistemic Goods", In Believing in Accordance
with the Evidence (ed. K McCain, Synthese Library 398, 2018.
Date Created
04/03/2022