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SUMÁRIO: Introdução; 1 Teorias volitivas; 1.1 Teoria da aprovação (consentimento); 1.2 Teoria da indiferença; 1.3
Teoria da vontade de evitação; 1.4 Teorias da decisão contrária ao bem jurídico; 2 Teorias cognitivas; 2.1 Teoria da
representação; 2.2 Teorias da probabilidade; 3 Teoria significativa do dolo; 3.1 Da aplicação da teoria significativa do
dolo nos crimes de trânsito; Considerações finais. Referências.
RESUMO: Buscando atenuar as grandes dificuldades encontradas pela doutrina e jurisprudência na diferenciação
entre dolo eventual e culpa consciente, diversas teorias foram desenvolvidas ao longo dos anos. As mais tradicionais
sempre entenderam presente no dolo, além de um elemento cognitivo, um volitivo, sendo este último analisado a
partir de um viés psicológico, tentando averiguar as verdadeiras intenções do agente, no momento da conduta. Outras,
porém, partindo da dificuldade de constatação deste último elemento, entendem ser suficiente um determinado nível
de consciência no momento da ação, para a configuração do dolo. No presente trabalho, busca-se, após minuciosa
análise da evolução doutrinária no tema, comprovar que a teoria significativa da ação e a filosofia da linguagem, se
aplicadas à distinção entre dolo eventual e culpa consciente, apresentam os mais seguros, e político-criminalmente
acertados resultados. Para isso, serão utilizados casos de homicídio e lesões corporais cometidos na direção de
veículo automotor, julgados pelos tribunais nacionais, como grupo de análise.
Palavras-chave: Direito penal. Dolo eventual. Culpa consciente. Teoria da ação significativa. Crimes de trânsito.
ABSTRACT: Trying to reduce the great difficulties of the doctrine and jurisprudence in differentiating premeditated
murder from manslaughter, several theories were elaborated over the years. The more classical ones, always
understood present in the premeditation, in addition to a cognitive element, a volitional one, analyzed from a
psychological bias. However, others, starting from the difficulty in finding this last element, understand being
sufficient a certain level of conscience in the moment of the action, to configure the premeditation. In the present
essay, we look for, after a thorough analyses of the doctrinal evolution in the topic, prove that the “theory of the
meaningful action” and the “speech philosophy”, if applied to the distinction between premeditated murder and
manslaughter, present the safest and most correct results, in a criminal policy perspective. For this, it will be
analyzed cases of murder and body damages caused in the traffic, judged by national courts.
Keywords: Criminal law. Premeditated murder. Manslaughter. Theory of the meaningful action. Traffic crimes.
INTRODUÇÃO
*
Mestrando em Direito penal pela Universidade de Coimbra. Graduado pela Universidade Estadual
Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP/Franca. Advogado.
de aumento da pena, em casos como de embriaguez ao volante, participação em
competição não autorizada e omissão de socorro.
Importante destacar, porém, que o diploma somente dispõe a respeito da
modalidade culposa do crime em análise, de maneira com que, em caso de eventual
imputação a título de dolo, o tipo legal previsto seria o do artigo 121, caput, do Código
Penal, com pena prevista de 06 (seis) a 20 (vinte) anos de reclusão, não sendo esta
modalidade considerada um crime de trânsito (NUCCI, 2010, p. 1243).
Desta forma, corrobora-se a magnitude da importância da correta
caracterização do tipo subjetivo, nos casos de homicídio causado na direção de veículo
automotor, já que a diferença das penas previstas para cada uma das modalidades é
bastante significativa. Além disso, sempre bom ressaltar que eventual imputação a título
de dolo levaria à competência do Tribunal do Júri para o julgamento do caso.
Ocorre que, em virtude da tênue fronteira entre o dolo eventual e a culpa
consciente, os tribunais têm encontrado muitas dificuldades no correto enquadramento
dos casos, em especial, naqueles em que o agente encontra-se sob a influência de
substâncias alcoólicas ou equiparadas, ou na prática de competições não autorizadas,
conhecidas como “rachas”.
O Supremo Tribunal Federal já decidiu, no julgamento do HC 112.242, de
relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski, que o agente, ao conduzir veículo
automotor sabendo não ter condições para tal, aceitaria a ocorrência do resultado e,
portanto, agiria com dolo eventual. No caso, tendo sido comprovado que o agente teria
dirigido à velocidade bem superior a permitida, estando ainda, supostamente, na prática
de competição não autorizada, vindo a causar óbito de terceiro, considerou, a suprema
corte, que aquele “aceitara a ocorrência do resultado”, agindo com dolo eventual.1
Mas, também no âmbito do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do
Habeas Corpus 107.801, de Relatoria da Ministra Carmen Lúcia, apesar da Ministra
Relatora ter votado pela não concessão da ordem, o Ministro Luiz Fux considerou que a
embriaguez ao volante do agente, só seria passível de configuração de dolo, e
1
“HABEAS CORPUS. PENAL. CRIME DE HOMICÍCIO PRATICADO NA CONDUÇÃO DE
VEÍCULO AUTOMOTOR. PRETENSÃO DE DESCLASSIFICAÇÃO PARA O CRIME PREVISTO
NO ARTIGO 302 DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO. DEBATE ACERCA DO ELEMENTO
VOLITIVO DO AGENTE. CULPA CONSCIENTE X DOLO EVENTUAL. CONDENAÇÃO PELO
TRIBUNAL DO JÚRI. CIRCUNSTÂNCIA QUE OBSTA O ENFRENTAMENTO DA QUESTÃO.
REEXAME DE PROVA. WRIT ORDEM DENEGADA. I - O órgão constitucionalmente competente
para julgar os crimes contra a vida e, portanto, apreciar as questões atinentes ao elemento subjetivo da
conduta do agente aqui suscitadas – o Tribunal do Júri - concluiu pela prática do crime de homicídio com
dolo eventual, de modo que não cabe a este Tribunal, na via estreita do habeas corpus, decidir de modo
diverso. II - A jurisprudência desta Corte está assentada no sentido de que o pleito de desclassificação de
crime não tem lugar na estreita via do habeas corpus por demandar aprofundado exame do conjunto
fático-probatório da causa. Precedentes. III – Não tem aplicação o precedente invocado pela defesa, qual
seja, o HC 107.801/SP, por se tratar de situação diversa da ora apreciada. Naquela hipótese, a Primeira
Turma entendeu que o crime de homicídio praticado na condução de veículo sob a influência de álcool
somente poderia ser considerado doloso se comprovado que a embriaguez foi preordenada. No caso sob
exame, o paciente foi pronunciado pela prática de homicídio doloso por imprimir velocidade excessiva ao
veículo que dirigia, incompatível com a via em que ocorreu o acidente, colocando em risco a
incolumidade alheia, situação que demonstra que o réu aceitou a ocorrência do resultado e agiu, portanto,
com dolo eventual. IV - Este Tribunal assentou o entendimento de que a demonstração de prejuízo, “a
teor do art. 563 do CPP, é essencial à alegação de nulidade, seja ela relativa ou absoluta, eis que, (…) o
âmbito normativo do dogma fundamental da disciplina das nulidades pas de nullité sans grief compreende
as nulidades absolutas” (HC 85.155/SP, Rel. Min. Ellen Gracie). V - Habeas Corpus denegado.”
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Habeas Corpus n. 112.242. Relator: Ministro Ricardo
Lewandowski, 2ª. Turma, Data de Julgamento: 05/03/2013. Disponível em: <
http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=4194513 >. Acesso em 28 de
janeiro de 2017.
consequentemente de pronúncia, em caso de embriaguez preordenada. Assim, sendo
acompanhado pelo Ministro Marco Aurélio, concedeu a ordem, desclassificando a
conduta para o previsto no artigo 302 do Código de Trânsito, determinado a remessa
dos autos para o juízo de primeira instância, retirando-o da competência do tribunal do
júri.2
Desta forma, observando-se que, mesmo no âmbito da mais alta corte
nacional, não é pacífico o tema, tem-se por notório o fato de que, aos juízes de primeira
instância e aos tribunais estaduais, faltam critérios seguros para a distinção entre as
modalidades dolosa e culposa, nos crimes em análise.
O que se nota, porém, como uma das grandes causas de divergência entre os
julgadores, é o chamado “elemento volitivo” do dolo e sua dificuldade de aferição e
comprovação nos casos concretos. Observa-se que, a jurisprudência utiliza-se de
critérios psicológicos para a constatação do mesmo, sendo que estes são de difícil, senão
impossível, constatação prática.
Assim, o que se pretende com o presente trabalho, é analisar o
desenvolvimento e evolução da doutrina, no que se refere à diferenciação entre o dolo
eventual e a culpa consciente, tendo como plano de fundo os crimes de homicídio e
lesões corporais no trânsito, buscando determinar qual seria o critério mais favorável de
diferenciação entre as modalidades dolosa e culposa, tendo-se como objetivo a
uniformização da jurisprudência e um conseqüente incremento da segurança jurídica.
2
“PENAL. HABEAS CORPUS. TRIBUNAL DO JÚRI. PRONÚNCIA POR HOMICÍDIO
QUALIFICADO A TÍTULO DE DOLO EVENTUAL. DESCLASSIFICAÇÃO PARA HOMICÍDIO
CULPOSO NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. EMBRIAGUEZ ALCOÓLICA. ACTIO
LIBERA IN CAUSA. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DO ELEMENTO VOLITIVO.
REVALORAÇÃO DOS FATOS QUE NÃO SE CONFUNDE COM REVOLVIMENTO DO
CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO. ORDEM CONCEDIDA. 1. A classificação do delito como
doloso, implicando pena sobremodo onerosa e influindo na liberdade de ir e vir, mercê de alterar o
procedimento da persecução penal em lesão à cláusula do due process of law, é reformável pela via do
habeas corpus. 2. O homicídio na forma culposa na direção de veículo automotor (art. 302, caput, do
CTB) prevalece se a capitulação atribuída ao fato como homicídio doloso decorre de mera presunção ante
a embriaguez alcoólica eventual. 3. A embriaguez alcoólica que conduz à responsabilização a título
doloso é apenas a preordenada, comprovando-se que o agente se embebedou para praticar o ilícito ou
assumir o risco de produzi-lo. 4. In casu, do exame da descrição dos fatos empregada nas razões de
decidir da sentença e do acórdão do TJ/SP, não restou demonstrado que o paciente tenha ingerido bebidas
alcoólicas no afã de produzir o resultado morte. 5. A doutrina clássica revela a virtude da sua justeza ao
asseverar que “O anteprojeto Hungria e os modelos em que se inspirava resolviam muito melhor o
assunto. O art. 31 e §§ 1º e 2º estabeleciam: 'A embriaguez pelo álcool ou substância de efeitos análogos,
ainda quando completa, não exclui a responsabilidade, salvo quando fortuita ou involuntária. § 1º. Se a
embriaguez foi intencionalmente procurada para a prática do crime, o agente é punível a título de dolo; §
2º. Se, embora não preordenada, a embriaguez é voluntária e completa e o agente previu e podia prever
que, em tal estado, poderia vir a cometer crime, a pena é aplicável a título de culpa, se a este título é
punível o fato”. (Guilherme Souza Nucci, Código Penal Comentado, 5. ed. rev. atual. e ampl. - São Paulo:
RT, 2005, p. 243) 6. A revaloração jurídica dos fatos postos nas instâncias inferiores não se confunde com
o revolvimento do conjunto fático-probatório. Precedentes: HC 96.820/SP, rel. Min. Luiz Fux, j.
28/6/2011; RE 99.590, Rel. Min. Alfredo Buzaid, DJ de 6/4/1984; RE 122.011, relator o Ministro
Moreira Alves, DJ de 17/8/1990. 7. A Lei nº 11.275/06 não se aplica ao caso em exame, porquanto não se
revela lex mitior, mas, ao revés, previu causa de aumento de pena para o crime sub judice e em tese
praticado, configurado como homicídio culposo na direção de veículo automotor (art. 302, caput, do
CTB). 8. Concessão da ordem para desclassificar a conduta imputada ao paciente para homicídio culposo
na direção de veículo automotor (art. 302, caput, do CTB), determinando a remessa dos autos à Vara
Criminal da Comarca de Guariba/SP.” SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Habeas Corpus 107.801.
Relatora: Ministra Carmen Lúcia, 1ª. Turma, Data de Julgamento: 06/09/2011). Disponível em: <
http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=4053973 >. Acesso em 28 de
janeiro de 2017.
1 TEORIAS VOLITIVAS
Ainda no âmbito das teorias volitivas, uma das mais modernas concepções
do dolo é defendida, dentre outros, por Claus Roxin. Para o autor, a essência do dolo
seria a “realização de um plano”. Assim, um resultado há de considerar-se dolosamente
produzido quando e porque corresponda com o plano do sujeito atuante (ROXIN, 1997,
p. 416 – 417).
A partir deste pressuposto, desenvolve o autor, seu critério de diferenciação
entre dolo eventual e culpa consciente, explicando que quem inclui em seus cálculos a
possibilidade de realização de um tipo, sem que este o dissuada de agir, terá decidido
contrariamente ao bem jurídico protegido por este tipo. Por outro lado, quando não há
esta decisão, mas sim, um descuido, haverá culpa, ainda que consciente (ROXIN, 1997,
p. 425).
Interessante observar que, a partir desta concepção de dolo como realização
do plano do agente, mostra-se como muito improvável, a possibilidade de casos
concretos de trânsito passíveis de configuração como dolo eventual. Neste sentido,
exemplifica Roxin:
Cuando, p.ej. alguien, a pesar de la advertencia de su acompañante, adelanta
de manera arriesgada y provoca así un accidente, este accidente no estará
causado por regla absolutamente general dolosamente, sino sólo por
imprudencia consciente, aunque el sujeto – hasta aquí como en el caso de la
correa de cuero – conocía las posibles consecuencias e incluso le había
advertido de ellas. La diferencia radica sin embargo en que el conductor, en
tal situación y pese a su consciencia del riesgo, confía en poder evitar el
resultado mediante su habilidad al volante, pues, de lo contrario desistiría de
su actuación, porque él mismo sería la primera víctima de su conducta. Esta
confianza en un desenlace airoso, que és más que una débil esperanza, no
permite llegar a una decisión en contra del bien jurídico protegido. (ROXIN,
1997, p. 426 – 427).
Assim, observa-se que, nos casos de trânsito, no geral, o agente não inclui
em seus planos a possibilidade de resultar-se acidentado, até mesmo porque, caso isto
ocorresse, ele seria uma das vítimas. O que ocorre é, na verdade, que apesar de ter
consciência do risco, confia na sua capacidade de evitar o resultado.
Desta forma, partindo do exposto até então, conclui Roxin (1997, p. 427)
que há que se afirmar o dolo eventual quando o sujeito conta seriamente com a
possibilidade do resultado típico, mas, apesar disto, continua atuando, resignando-se,
conformando-se com o mesmo. De outro lado, quando o agente, apesar de consciente da
possibilidade de ocorrência do resultado, não a leva a sério, ou não confia na sua
ocorrência, não se resignando com a mesma, terá atuado com culpa consciente.
Outro defensor da teoria da decisão contrária ao bem jurídico é Hassemer.
Para o autor, a ratio da maior punibilidade do delito doloso estaria no fato de que, nele,
o agente não violaria apenas o bem jurídico, mas também a norma que obriga a
observação deste bem. (HASSEMER, 1990, p. 917).
Observa, porém, que o dolo é uma situação interna do agente, não
observável de maneira direta. Assim, adota a idéia de que a sua constatação deve ser
feita através de elementos indicadores externos, que facilitariam, inclusive, a sua
posterior prova processual. Tais indicadores são categorizados entre os que indicam o
perigo da situação para o bem jurídico, a representação do agente sobre este perigo e sua
decisão a favor da realização do mesmo. (HASSEMER, 1990, p. 925 – 929).
Observa o autor, que das três categorias supracitadas, somente a primeira é
observável. As outras, somente são constatáveis mediante indicadores. Assim,
exemplifica:
Así, en el que hay que tratar la peligrosidad objetiva para el bien jurídico
típicamente protegido, se determina por ejemplo la fuerza destructiva de una
bomba y su distancia del objeto amenazado, las posibilidades de que una
arma exhibida sea utilizada, el lapso de tiempo que dura un suceso lesivo
(p.ej. el estrangulamiento de una persona), la zona del cuerpo a la que se
dirige el ataque, existencia o proximidad de una acción de salvamento o
evitadora del peligro, etc. En el nivel cognitivo (de la representación del
peligro) se determina por ejemplo la visibilidad del suceso por el agente (su
presencia en el lugar del hecho, proximidad espacial del objeto), su capacidad
de percepción (perturbación pasional o por drogas de esa capacidad, aumento
de la misma por cualidades innatas o adquiridas profesionalmente),
complejidad vs. simplicidad de la situación, tiempo necesario para realizar
observaciones relevantes, etc. Y se determinarían, en el nivel de la decisión,
la confirmación de conductas activas de evitación, la probabilidad de una
autolesión en relación con los motivos del agente, indicadores de especial
relevancia como juventud, incapacidad física, peculiaridades profesionales,
comportamientos anteriores del delincuente en situaciones similares que
puedan tener relación, de una forma relevante para el dolo, con la situación
actual, indicios de vínculos afectivos entre delincuente y víctima, etc.
(HASSEMER, 1990, p. 929 – 930).
2 Teorias cognitivas
professor. A propósito desta coletânea. In: SCHÜNEMANN, Bernd. Do conceito filológico ao conceito
tipológico de dolo. In: SCHÜNEMANN, Bernd. Estudos de direito penal, direito processual penal e
filosofia do direito. Coordenação: Luís Greco. – São Paulo: Marcial Pons, 2013. p. 5 – 25. p. 10.
A principal crítica a esta concepção reside no fato de que, ao invés de
abstrair-se do elemento volitivo, conforme pretendia, a teoria da representação na
verdade presume-o a partir de certo grau de conhecimento do autor. (KÖHLER apud
HAVA GARCÍA, 2003, p. 4).
4
“A filosofia da linguagem de Wittgenstein, cujo paradigma filosófico é adotado neste trabalho, rompe
com as possibilidades de conhecimento metafísico, com o idealismo, com a idéia kantiana de
isomorfismo entre linguagem e mundo, signo e objeto, com a concepção essencialista das palavras, ou
seja, a filosofia da linguagem libera-se de todas as ilusões e erros da filosofia da consciência,
apresentando um novo paradigma, onde a linguagem media o conhecimento e se produz
intersubjetivamente.” HABERMAS apud CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira. O elemento volitivo do dolo:
uma contribuição da filosofia da linguagem de Wittgenstein e da teoria da ação significativa. In:
BUSATO, Paulo César (coord.). Dolo e direito penal: modernas tendências. – 2.ed. – São Paulo: Atlas,
2014. p. 119 – 144. p. 130.
Ao contrário das antigas teorias volitivas, que partiam do pressuposto de
que a intenção do agente seria algo interno, psicológico, Wittgenstein afirma que pensar
é uma atividade de operar signos, que pode ser realizada através da escrita, da fala, de
uma ação, etc. Desta forma, não se pode distinguir o pensamento da fala, ou do agir, por
exemplo, uma vez que se pensa falando ou agindo. (WITTGENSTEIN apud CABRAL,
2014, p. 132 – 134).
Da mesma forma, devem ser rechaçadas as idéias de acesso privilegiado do
agente aos seus estados mentais, que só poderiam ser averiguados por terceiros por
meios indiretos, assim como a de uma linguagem privada do mesmo, uma vez que, esta
só ganharia significado quando se tornasse pública. (CABRAL, 2014, p. 135 – 136).
Assim, utilizando-se dos pensamentos de Wittgenstein para a averiguação
do dolo, tem-se que é necessário sim, um elemento volitivo para sua constatação,
elemento este, porém, que não deve ser analisado a partir de uma perspectiva
psicológica, mas sim, integralmente normativa, ou seja, em seus fundamentos e em seus
elementos. (MARTÍNEZ-BUJAN PÉREZ, 2014, p. 29 – 32).
Desta forma:
Apoiado em um autêntico conhecimento (sobre dados concorrentes no
momento da realização do fato), o elemento cognitivo proporciona a
bagagem intelectual, prévia e imprescindível, com que conta o sujeito e lhe
proporciona os dados necessários para a adoção de uma determinada decisão.
Porém, ao ser um requisito inescusável, tal elemento não constitui ainda um
requisito suficiente para afirmar a presença de um comportamento doloso;
para isto deve existir ademais um compromisso com a vulneração do bem
jurídico, que nos revela que o sujeito adota uma decisão especial, a saber, a
decisão de enfrentar a sociedade, porque esta qualificou tal bem como valioso
para a convivência ao protegê-lo através de uma norma penal. (MARTÍNEZ-
BUJAN PÉREZ, 2014, p. 31).
5
“Vives exige, para o reconhecimento do “tipo de ação” uma pretensão de relevância no sentido da
determinação de que uma ação humana em concreto é uma das que interessam ao Direito Penal. Mas esta
pretensão de relevância é verificável mediante o cumprimento de dois pontos: uma pretensão conceitual
de relevância, que expressaria a idéia de tipicidade, e uma pretensão de ofensividade, que representaria a
idéia de antijuridicidade material. E logo, fecha o injusto com a antijuridicidade formal, que corresponde
a uma pretensão de ilicitude que se traduz na verificação da falta de ajuste do comportamento
significativo em relação ao ordenamento jurídico. É neste ponto onde Vives situa o dolo e a imprudência,
sendo o primeiro identificado segundo um compromisso de atuar por parte do autor. O dolo, para Vives,
resulta um dolo neutro, ou seja, é a intenção de realizar o fato antijurídico. BUSATO, Paulo César. Dolo e
Desta forma, a partir de uma concepção significativa de dolo, tem-se que o
elemento volitivo existe no seu âmbito, não podendo sua dificuldade probatória ser
justificativa para exclusão. Pode-se considerar que o agente atuou dolosamente quando,
com base nos seus conhecimentos previamente adquiridos, das técnicas que dominava,
selecionou determinados objetos em face de outros, ou seja, a realização do resultado
lesivo frente ao respeito pelo bem jurídico. (DÍAZ PITA, 2014, p. 15). Em outras
palavras, celebrou um compromisso com o resultado lesivo. (VIVES ANTÓN apud
DÍAZ PITA, 2014, p. 15).
Este “querer” normativo, ou seja, o “compromisso com a lesão”, da mesma
forma que o “ter conhecimento”, deve ser alvo de uma atividade probatória, o que seria
feito, segundo Maria Del Mar Díaz Pita (2014, p. 17), através dos indicadores externos
que a reflitam.
significado. In: BUSATO, Paulo César (coord.). Dolo e direito penal: modernas tendências. – 2.ed. –
São Paulo: Atlas, 2014. p. 59 - 84. p. 74.
do “in dúbio pro reo” deveria ser invertido, de maneira com que, em caso de dúvidas,
haveria que ser pronunciado o Acusado. Deu provimento, assim, ao recurso ministerial.6
Na situação exposta, existem diversos fatores essenciais a serem levados em
conta, na sua análise. Primeiramente, se por um lado é extremamente reprovável e
vedada a condução de uma motocicleta sem diversos acessórios essenciais para a
incolumidade, tais como os faróis, ainda mais a prática de manobras que colocam em
risco todos os transeuntes, por outro, deve se observar que, se de fato o motociclista era
piloto de “rally”, provavelmente possuiria uma perícia um pouco maior do que a média,
no mínimo. Além disso, os fatos de a vítima ser deficiente auditiva e ainda encontrar-se
na pista de rolagem, mesmo que próxima ao meio fio, assim como o horário avançado
da noite, em que o movimento costuma ser bem menor, devem ser levados em
consideração.
Desta forma, tomando-se por base todos estes indicadores externos
supracitados, não se pode considerar que o agente tenha prestado um compromisso com
a lesão ao bem jurídico “vida” da vítima. Muito embora aquele tenha conduzido seu
veículo de maneira temerária e sem diversos equipamentos obrigatórios, pesam a seu
favor o fato de que era extremamente improvável que alguém, deficiente auditivo,
atravessasse a rua na sua frente, àquela hora da noite.
Além disso, em virtude do fato muito bem destacado pelo juiz a quo, de que
ao realizar manobras arriscadas com seu veículo, o motociclista colocou em risco não
somente terceiros, mas também e principalmente a sua pessoa. Assim, é evidente que,
apesar de ter agido de maneira imprudente, confiava na sua perícia de piloto
profissional. Desta forma, entendemos haver, no caso em tela, homicídio culposo na
direção de veículo automotor, qualificado pela circunstância de estar na prática de
exibição, ou demonstração de perícia em manobra, previsto pelo artigo 302, § 2º., do
Código de Trânsito Brasileiro.
A 2ª. Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, por sua vez,
na decisão do Recurso em Sentido Estrito nº. 10694090553678001, de Relatoria da
Desembargadora Beatriz Pinheiro Caires, apreciou a modalidade dolosa em caso no
qual o agente estaria embriagado, em alta velocidade, vindo a atingir veículo quando na
contramão de direção, causando duas mortes e três vítimas não fatais. No caso, a
Desembargadora Relatora, ora vencida, considerou que a imputação do dolo ao agente
seria mera presunção pelo fato de o mesmo estar embriagado, motivo pelo qual não
poderia subsistir. No seu entender, pelo contrário, quando o motorista está sob a
influência de bebida alcoólica, tende a ter sua autoconfiança prevalecida, acreditando na
sua capacidade de evitar o resultado. Votou, assim, pela desclassificação para a
modalidade culposa. A Desembargadora Revisora, porém, divergiu deste entendimento,
considerando que a embriaguez ao volante e o excesso de velocidade seriam suficientes
para corroborar a decisão de pronúncia.7
6
“Homicídio. Pronúncia. Acidente de trânsito. Dolo eventual. Culpa consciente. Desclassificação.
Manobras perigosas. Excesso de velocidade. Dúvidas. Competência exclusiva do júri popular. Em se
tratando de crimes contra a vida, a desclassificação só é possível, em sede de pronúncia, quando
indubitavelmente comprovada a inocorrência do dolo eventual, caso contrário deve o feito ser remetido ao
sinédrio popular.” TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE RONDÔNIA. Recurso em Sentido Estrito nº.
00125622220098220007. Relator: Desembargador Valter de Oliveira, Câmara Criminal, Data de
Publicação: 03/08/2010). Disponível em: <
https://www.tjro.jus.br/apsg/faces/jsp/apsgDetalheProcesso.jsp >. Acesso em 28 de janeiro de 2017.
7
“RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. TRÂNSITO. HOMICÍDIO NA DIREÇÃO DE VEÍCULO
AUTOMOTOR. DOLO EVENTUAL. ELEMENTOS SUFICIENTES À PRONÚNCIA.
ART. 413 DO CPP. AUSÊNCIA DE DEVIDA COMPROVAÇÃO DE CULPA CONSCIENTE.
Analisando o presente caso sob a perspectiva da teoria significativa, há que
se acompanhar, no nosso entender, o posicionamento da primeira desembargadora, pela
culpa consciente.
Isto porque, muito embora a embriaguez e o excesso de velocidade sejam
circunstâncias que tornam ainda mais reprovada a conduta do agente, não há como se
abstrair do fato de que, em caso de acidente, o motorista acusado seria também, uma das
vítimas. Não há que se falar, assim, em um compromisso com a lesão ao bem jurídico,
mas tão somente, em imprudência.
Isto corrobora a tese da Desembargadora vencida, no sentido de que a
embriaguez, no caso, ao contrário da pretensão ministerial no sentido de que
representaria uma assunção do agente para com o risco, tende a elevar a autoconfiança
do agente, além de reduzir a completa percepção da realidade, fazendo o agente crer e
confiar na sua capacidade de evitação de um acidente.
Assim, mesmo nos casos de embriaguez ao volante, mostra-se de difícil
configuração prática a modalidade dolosa, a não ser, é claro, quando aquela seja
preordenada.
Por sua vez, um pouco mais delicada se mostra a resolução dos casos em
que um motorista comete homicídio ou lesões corporais, quando da prática de
competição não autorizada em via pública, popularmente conhecida como “racha”.
Na Apelação Criminal nº 1046014000409001, julgada pela 4ª. Câmara
Criminal do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, de Relatoria do Desembargador
Eduardo Brum, foram apreciados fortes indícios de que agente estaria embriagado, e na
prática de “racha” com outro veículo, estando, inclusive, dirigindo na contramão de
direção, vindo a colidir frontalmente com a motocicleta da vítima, que falecera no local.
O Ministério Público ofereceu denúncia pleiteando a condenação por homicídio doloso,
por motivo torpe e com emprego de meio que possa resultar em perigo público e
mediante recurso que tornou impossível a defesa da vítima. O juiz de primeiro grau,
porém, decidiu pela impronúncia, condenando o Acusado como incurso nas penas do
art. 302 do Código de Trânsito Brasileiro, qual seja, por homicídio culposo na direção
de veículo automotor. O Tribunal, por sua vez, entendeu estarem presentes indícios
suficientes para a configuração do dolo, dando provimento ao recurso ministerial e
entendendo pela pronúncia do Acusado.8
Considerações finais
REFERÊNCIAS:
AZEVEDO, David Teixeira de. O direito penal no código de trânsito brasileiro. In:
AZEVEDO, David Teixeira de. Atualidades no direito e processo penal. São Paulo:
Método, 2001. p. 187-215.
BEM, Leonardo Schmitt de. Dolo eventual e culpa consciente. Revista de Estudos
Criminais, Porto Alegre, n.36, v. 10, p. 85-98, jan./mar. 2010.
BUSATO, Paulo César. Dolo e significado. In: BUSATO, Paulo César (coord.). Dolo e
direito penal: modernas tendências. 2.ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 59-84.
DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral: tomo I: questões fundamentais:
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DÍAZ PITA, Maria del Mar. A presumida inexistência do elemento volitivo no dolo e
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