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INVESTIGAÇÃO CRIMINAL

JOÃO GUALBERTO GARCEZ RAMOS


Professor de Direito Processual Penal – UFPR

EMENTA: 1. Introdução. 2. A espécies de investigação criminal. 3. A investigação policial. 4. A


investigação pelo Ministério Público. 5. Diligências investigatórias criminais. 5.1. Isolamento
do local do crime. 5.2. Apreensão dos objetos relacionados ao crime. 5.3. Oitiva do ofendido,
das testemunhas e do indiciado. 5.4. Quebra de sigilos constitucional ou legalmente
protegidos. 5.5. Ação controlada. 5.6. Colaboração premiada. 5.7. Interceptação das
comunicações telefônicas. 5.8. Escuta ambiental. 5.9. Identificação criminal. 5.10. Infiltração
de agentes. 5.11. Reprodução simulada dos fatos. 6. Arquivamento e desarquivamento da
investigação criminal. 7. Referências bibliográficas.

1. Introdução

A lei penal dispõe que, cometido um crime, quem para ele concorreu incide
nas penas respectivas, na medida de sua culpabilidade (CP, art. 29). Em outras
palavras, a todos os autores, coautores, partícipes e mandantes de um crime devem
ser aplicada uma pena, que será medida pela contribuição e culpabilidade de cada
um no evento. Como corolário dessa regra, quem não concorreu para o crime não
deve sofrer pena alguma e, se souber disso antes da instauração do processo penal
condenatório, não deve sequer ser acusado. Pode-se dizer que essa regra funciona
perfeitamente bem no plano lógico-abstrato do Direito Penal, ainda que temperada
por inúmeros institutos penais descriminalizadores e despenalizadores, como o
princípio da insignificância, por exemplo.
No plano do Processo Penal, porém, esse dogma implica em que, noticiado um
fato criminoso, surge para o Estado a obrigação de esclarecê-lo e envidar esforços
para que a lei penal seja aplicada em relação a todos os que merecerem censura
penal. Ocorre que nem sempre todos os participantes de um crime são apanhados
em flagrante, com provas claras e sobejas de sua participação e culpabilidade. E
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mesmo quando o são, nem sempre está claro desde o princípio se todos os
participantes no crime foram, de fato, apanhados.
Por outro lado, a lei processual penal dispõe que a peça inicial de acusação pela
prática de um crime, seja ela uma denúncia ou uma queixa, “conterá a exposição
do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou
esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e,
quando, necessário, o rol de testemunhas” (CPP, art. 41). Isso significa que o
processo penal condenatório já se deve iniciar com todas essas informações. Por
mais clara que esteja a cena do crime, por mais didáticas que sejam as provas,
elaborar uma imputação completa, qualificar todos os acusados, classificar o crime
e apresentar as testemunhas exige um mínimo de pesquisa e reflexão. Não há
tempo nem lugar, durante o processo penal condenatório, para o esclarecimento
da acusação.
Por tal razão, andou bem o legislador de 1941 ao manter a investigação prévia
ao processo penal condenatório. Ao justificar o instituto do inquérito policial,
justificou sua decisão com a necessidade de não expor a Justiça Criminal aos “azares
do detetivismo, às marchas e contramarchas de uma instrução imediata e única”.
Concluiu afirmando que o sistema com um inquérito preparatório “assegura uma
justiça menos aleatória, mais prudente e serena” (IV – A conservação do inquérito
policial).
De fato, a experiência demonstra que a perda de algum tempo antes do início
do processo penal condenatório, desde que seja estratégica e voltada ao
esclarecimento do crime e à conservação das provas, é benéfica ao funcionamento
da Justiça Criminal.
Daí a importância da investigação criminal e dessa apenas aparente perda de
tempo antes da propositura da acusação.
Entretanto, esse tempo prévio não é perdido e costuma ser relevante para a
utilidade e eficiência da investigação, bem como para os interesses dos envolvidos.
Assim tudo o que diz respeito às investigações criminais costuma ser importante.
Afinal, a investigação versa sobre uma das mais graves condutas humanas. Assim,
nos tempos atuais, qualquer detalhe de uma investigação é, por definição, relevante.
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Em outras palavras, deixa de ser um detalhe. Um desses aspectos é o prazo da


investigação.
No Brasil, o ordenamento jurídico constitucional deixou estabelecido que
nenhum ser humano, por maior que tenham sido seus erros, merece condenação
perpétua (art. 5º, XLVII, b). No âmbito infraconstitucional essa garantia se
concretiza no âmbito do Código Penal, que estabelece que o tempo de
cumprimento das penas privativas de liberdade não pode ser superior a trinta anos
(Código Penal, art. 75, caput). Sendo a condenação a pena privativa de liberdade
maior que esse tempo, o condenado cumprirá apenas trinta anos da pena aplicada.
Sendo várias as condenações que, somadas, superem esse tempo, as penas
privativas de liberdade respectivas serão unificadas, a fim de atender o limite de
trinta anos (Código Penal, art. 75, § 1º).
Além dessa garantia, o Direito Penal também contempla a chamada prescrição
da pretensão condenatória, que varia conforme a quantidade de pena cominada
aos diversos crimes (Código Penal, arts. 107, IV e 109). O Estado não tem à sua
disposição a eternidade para perseguir os prováveis autores de crimes.
Se isso tudo é um axioma do Direito brasileiro moderno, é razoável imaginar
que, cometido um crime, não tenha o Estado todo o tempo do mundo para
investigá-lo. Os instrumentos investigatórios à disposição têm, a eles conectados,
prazos máximos para a sua conclusão. Mesmo que, na maioria dos casos, esses
prazos possam ser dilatados, conforme a complexidade do crime investigado, o
estabelecimento de um prazo máximo para o término da investigação traduz-se em
uma verdadeira garantia contra abusos.
Até porque, apontado um suspeito da autoria do crime, ele merece ter sua
situação definida em um prazo não muito dilatado. Muitos aspectos de sua vida e
de sua família dependem dessa definição. De novo: esse direito do imputado
independe da quantidade e da gravidade dos seus erros.

2. As espécies de investigação criminal

Em termos bastante genéricos, a investigação criminal pode ser conduzida por


um particular, pela autoridade administrativa, pelo parlamento, pela autoridade
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judiciária, pela autoridade policial e pelo Ministério Público. Obviamente, nem


todos esses sujeitos possui as mesmas possibilidades de realizar uma investigação
ampla ou eficiente. As características e os limites de cada qual também enformarão
suas próprias atividades investigatórias. Por certo, o produto do trabalho
investigatório desses sujeitos, no plano da realidade, possuirá características
diversas.
A investigação particular pode ocorrer por parte da vítima, de um seu parente
ou conhecido, ou mesmo de um profissional, conhecido popularmente como
detetive particular. Na medida em que a Constituição dispõe que “ninguém será
obrigado a (...) deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (art. 5º, II), o
particular pode perfeitamente investigar um crime, desde que não contrarie a lei
enquanto o faz.
Aliás, é perfeitamente adequado pensar que, tendo sobrevivido a vítima, é ela a
primeira pessoa apta a investigar, ainda que brevemente, o crime. Seus limites
investigatórios, bem assim os de um seu próximo ou parente, ou mesmo de um
detetive particular, são os limites do Ordenamento Jurídico. Dependendo das
circunstâncias, ela será a primeira responsável pela preservação do local do crime.
A investigação particular, por sua vez, é uma realidade no mundo inteiro. Seus
principais campos de atuação estão nos assuntos de família, especialmente aqueles
concernentes à fidelidade matrimonial, e nos grandes conglomerados industriais,
especialmente a proteção de segredos industriais e a proteção patrimonial em geral.
No Brasil, a legislação é recente e permite que o detetive particular planeje e
execute coleta de dados e informações de natureza não criminal (Lei 13432, art.
2º, caput). Embora o detetive particular não possa trabalhar diretamente em uma
investigação criminal, é certo que seu trabalho pode angariar elementos úteis para
o esclarecimento de uma infração penal.
Em seguida pode ser relacionada a investigação administrativa, conduzida pelos
órgãos da Administração Pública, para esclarecer os ilícitos praticados em
detrimento de seu patrimônio e interesse. O veículo dessa investigação chama-se
sindicância, procedimento administrativo sumário destinado a esclarecer
ocorrências suspeitas dentro do serviço público. Se a sindicância confirmar a
ocorrência dos ilícitos e lograr apontar os autores, dá ensejo a processo
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administrativo disciplinar e, não raro, se o ilícito for tipificado em lei penal, outra
investigação por parte da polícia ou do Ministério Público. Também a sindicância
deve ser instaurada imediatamente após ter a autoridade administrativa notícia da
ocorrência de fatos ilícitos.
Incluem-se nessa categoria as investigações levadas a efeito pelos órgãos
administrativos de fiscalização, como a Receita Federal, o Banco Central, a
Comissão de Valores Mobiliários (CVM), o Conselho de Controle de Atividades
Financeiras (COAF), os tribunais de contas etc.
Em seguida, pode ser citada a investigação parlamentar.
Trata-se de uma forma tradicional de investigar, reconhecida como essencial ao
próprio exercício político das casas legislativas. O Supremo Tribunal Federal já
decidiu que “o poder investigatório é auxiliar necessário do poder de legislar;
conditio sine qua non de seu exercício regular. Podem ser objeto de investigação
todos os assuntos que estejam na competência legislativa ou fiscalizatória do
Congresso”.1
As assim chamadas comissões parlamentares de inquérito, no âmbito federal,
são previstas pela Constituição, com os seguintes caracteres: poderes de
investigação próprios de autoridade judicial, além daqueles atribuídos pelos
regimentos internos das respectivas casas legislativas, atribuições para investigar fato
determinado, relacionado com as atribuições legislativas respectivas, prazo certo
para serem concluídas e dever de encaminhar ao Ministério Público os elementos
de prova que apontarem para responsabilidade civil ou criminal de eventuais
infratores (Constituição, art. 58, § 3º). A lei que as regula também fala em “ampla
ação para investigar” (Lei 1579, art. 1º). As constituições estaduais também podem
prevê-las. Ainda que a Constituição atribua à comissão parlamentar de inquérito
poderes próprios de autoridade judicial, algumas diligências reservadas à
apreciação judicial, como a busca domiciliar (Constituição, art. 5º, XI), a
interceptação da correspondência, da comunicação telegráfica, de dados e

1
Habeas corpus n. 71039-RJ – STF – Pleno – Rel. Min. Paulo Brossard – julgado em 7.abr.1994 – ordem
deferida, para cassar o decreto de prisão preventiva expedido pela CPI do INSS – votação unânime –
DJU, 6.dez.1996, p. 48708.
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telefônica (Constituição, art. 5º, XII) e a decretação da prisão, fora dos casos de
flagrância (Constituição, art. 5º, LXI) não podem ser determinadas por uma
comissão parlamentar de inquérito.2
No âmbito do Congresso Nacional, as comissões parlamentares podem ser
instaladas nele, na Câmara dos Deputados e no Senado Federal. As primeiras são
denominadas de comissões parlamentares mistas, pois integram membros das duas
casas. Segundo a Constituição, serão instaladas mediante requerimento de um terço
dos membros das respectivas casas legislativas (art. 58, § 3º).
Decidiu o Supremo que “a comissão parlamentar de inquérito, destinada a
investigar fatos relacionados com as atribuições congressuais, tem poderes
imanentes ao natural exercício de suas atribuições, como de colher depoimentos,
ouvir indiciados, inquirir testemunhas, notificando-as a comparecer perante ela e a
depor; a este poder corresponde o dever de, comparecendo a pessoa perante a
comissão, prestar-lhe depoimento, não podendo calar a verdade. Comete crime a
testemunha que o fizer. (...) Também pode requisitar documentos e buscar todos
os meios de provas legalmente admitidos. Ao poder de investigar corresponde,
necessariamente, a posse dos meios coercitivos adequados para o bom
desempenho de suas finalidades; eles são diretos, até onde se revelam eficazes, e
indiretos, quando falharem aqueles, caso em que se servirá da colaboração do
aparelho judiciário. Os poderes congressuais, de legislar e fiscalizar, hão de estar
investidos dos meios apropriados e eficazes ao seu normal desempenho”.3
As comissões parlamentares de inquérito deverão refletir, obviamente, as forças
políticas das casas legislativas, seja por partido, seja por bloco parlamentar.4

2
Mandado de segurança n. 23652-DF – STF – Pleno – Rel. Min. Celso de Mello – julgado em
22.nov.2000 – ordem indeferida – votação majoritária – DJU, 16.fev.2001, p. 92.
3
Habeas corpus n. 71039-RJ – STF – Pleno – Rel. Min. Paulo Brossard – julgado em 7.abr.1994 – ordem
deferida, para cassar o decreto de prisão preventiva expedido pela CPI do INSS – votação unânime –
DJU, 6.dez.1996, p. 48708.
4
Medida cautelar na ação de descumprimento de preceito fundamental n. 378-DF – STF – Pleno – Rel.
Min. Edson Fachin – Rel. p/ o acórdão Min. Roberto Barroso – julgada em 17.dez.2015 – medida cautelar
convertida em julgamento de mérito, ação julgada procedente – votação majoritária – DJe n. 43,
8.mar.2016.
7

Por fim, também já ficou pacificado que “ninguém pode escusar-se de


comparecer a comissão parlamentar de inquérito para depor. Ninguém pode
recusar-se a depor. Contudo, a testemunha pode escusar-se a prestar depoimento
se este colidir com o dever de guardar sigilo. O sigilo profissional tem alcance geral
e se aplica a qualquer juízo, cível, criminal, administrativo ou parlamentar. Não
basta invocar sigilo profissional para que a pessoa fique isenta de prestar
depoimento. É preciso haver um mínimo de credibilidade na alegação e só a
posteriori pode ser apreciado caso a caso”.5
O prazo máximo para a conclusão da investigação de uma comissão
parlamentar de inquérito é definido no ato de sua criação, podendo ser prorrogada
por ato motivado. Em todo o caso, ela se concluirá inevitavelmente ao final da
legislatura.6
Em seguida deve ser citada a investigação judicial.
Historicamente, essa forma de investigação teve enorme importância no
processo inquisitorial, presidido por um investigador-juiz. No plano comparado,
ela se destaca nos países que preveem a figura do “juiz de instrução”, como a
França, bem como naqueles, como os EUA, cuja Constituição prevê o
indiciamento por um grande júri como pressuposto para o processo penal
condenatório por crimes capitais ou por outra razão infames (5ª Emenda, 1ª
Cláusula).
A lei processual penal brasileira, em sua acepção original, pareceu cometer ao
juiz funções investigatórias. Não foi por outra razão que a autoridade policial se
chamou delegado – porque investigava como verdadeiro auxiliar do chefe de
Polícia, no tempo do Império uma autoridade que reunia funções policiais e
judiciárias. Também não é por outra razão que, findas suas investigações, o
delegado de Polícia deve apresentar seu resultado ao juiz.

5
Habeas corpus n. 71039-RJ – STF – Pleno – Rel. Min. Paulo Brossard – julgado em 7.abr.1994 – ordem
deferida, para cassar o decreto de prisão preventiva expedido pela CPI do INSS – votação unânime –
DJU, 6.dez.1996, p. 48708.
6
Habeas corpus n. 71261-RJ – STF – Pleno – Rel. Min. Sepúlveda Pertence – julgado em 11.mai.1994 –
ordem indeferida – votação unânime – DJU, 24.jun.1994, p. 16651.
8

Entretanto, com o tempo, no Brasil, essa forma de investigar mostrou-se


inconveniente e incompatível com as sucessivas ordens constitucionais. Em todas
elas, a partir da edição do Código de Processo Penal de 1941, o perfil do juiz
necessariamente imparcial começou a se destacar. Se o juiz irá julgar o autor do
crime, indesejável que também o investigue.
Seja como for, no Brasil o juiz, posto que não as comande, participa das
investigações, sejam elas conduzidas pelo parlamento, pela autoridade policial ou
pelo Ministério Público. Isso porque inúmeras diligências investigatórias criminais
dependem de decisão judicial. As interceptações da correspondência, das
comunicações telegráficas e telefônicas, as buscas e apreensões em domicílio, bem
como as prisões, são exemplos de como o juiz participa diretamente das
investigações criminais.
Em seguida devem ser relacionadas a investigação policial e a investigação pelo
Ministério Público. Ambas requerem itens específicos.

3. A investigação policial

A investigação policial se faz formalmente através de três possíveis


instrumentos: o inquérito policial, o auto de prisão em flagrante e o termo
circunstanciado. Há ainda a investigação criminal através das assim chamadas
diligências preliminares, realizadas a campo pela autoridade policial quando ainda
não há nenhuma concreta notícia de crime, mas apenas a suspeita de que uma
situação pode envolver a prática ilícita. São, por assim dizer, investigações
informais, chamadas de “pesquisas” pelo Código de Processo Penal (art. 18).
O inquérito policial se inicia através de um ato do delegado de Polícia, que
conhece de uma notícia de crime; uma notitia criminis.
Essa notícia pode ser natural, que ocorre quando a autoridade pública toma
conhecimento naturalmente da infração penal, seja porque presenciou sua
ocorrência -- prendendo ou não em flagrante seu autor -- seja porque teve
conhecimento indireto de sua ocorrência, através de relatos, sem que o noticiante
tivesse a intenção de instaurar qualquer procedimento penal (p.e.: vox publica,
imprensa, procedimento administrativo etc.).
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Nesse caso, a autoridade policial poderá instaurar a investigação de ofício (CPP,


art. 5º, I) e, se o destinatário da notícia for o Ministério Público, poderá ele oferecer
diretamente a denúncia, se entender suficientes os elementos de convicção
recebidos (CPP, art. 27).
A notitia criminis também pode ser provocada, quando alguém leva,
intencionalmente, a notícia de um fato criminoso à autoridade pública. Por sua vez,
essa notícia provocada pode ser simples, qualificada e coercitiva.
A simples ocorrerá sempre que o ofendido ou qualquer do povo levarem-na à
autoridade na forma de uma simples comunicação, sem qualquer manifestação de
vontade (CPP, art. 5º, § 3º). Se a notícia for de um crime público, será ela vinculante
para a autoridade pública, que deverá agir de ofício nessas hipóteses. Segundo
JOAQUIM CANUTO MENDES DE ALMEIDA, essa possibilidade consubstancia uma
forma residual de ação penal popular.7 Esse poder também pode ser visto como
uma forma de atuação do chamado direito de petição (Constituição, art. 5º,
XXXIV).
A qualificada envolve uma manifestação de vontade, do ofendido, no sentido
da instauração de uma investigação. Se essa manifestação aponta um autor da
infração penal, é chamada de delatio criminis. Nos crimes de ação penal privada e
nos de ação penal pública condicionada essa é a única maneira de comunicar uma
infração penal à autoridade pública. A coercitiva ocorre quando o suspeito é preso
em flagrante delito, isto é, quando o condutor tem a certeza visual do crime, obtida
no calor dos fatos.8
A notitia criminis, se for natural, pode ser encaminhada na forma verbal, escrita,
telefônica, eletrônica etc. O interessado pode, outrossim, encaminhar documentos
que sejam autoexplicativos e que convençam a autoridade da necessidade de
instaurar a investigação.
Se a comunicação é qualificada o interessado deverá necessariamente se valer

7
ALMEIDA, Joaquim Canuto Mendes de. Processo Penal, ação e jurisdição, São Paulo: Ed. Revista dos
Tribunais, 1975, p. 12.
8
Cf. MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal, 2ª ed., Rio de Janeiro-São
Paulo: Ed. Forense, 1965, v. 1, n. 70, p. 135.
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de instrumentos que, de alguma maneira, autentiquem sua manifestação de


vontade. Precisará encaminhar à autoridade um requerimento contendo a narração
do fato, com todas as circunstâncias, a individualização do indiciado ou seus sinais
característicos, as razões que levam a crer ser ele o autor da infração ou os motivos
que demonstrem a impossibilidade de fazê-lo, e as provas das alegações, inclusive
relação de testemunhas dos fatos. Esses requisitos, por serem o mínimo que deve
conter uma comunicação dessa natureza, devem ser observados em qualquer
comunicação de crime (CPP, arts. 5º, § 1º e 27). No caso dos crimes de ação penal
privada e nos crimes de ação penal pública condicionada à representação, a peça
escrita que deve ser encaminhada à autoridade se chama representação, dada pelo
ofendido ou por quem tenha qualidade para representá-lo, e que se constitui na
comunicação e na autorização para investigar (CPP, art. 39, caput). No caso de
morte do ofendido, o direito passa para o seu cônjuge, para o seu ascendente, para
o seu descendente ou para o seu irmão (CPP, art. 31, por analogia).
Sendo, como é, um requerimento, pode ser indeferido pela autoridade. Se o
indeferimento provier da autoridade policial, diz a lei processual penal que caberá
recurso administrativo ao “chefe de Polícia” (CPP, art. 5º, § 2º), hoje geralmente
chamado de diretor-geral. Esse recurso não é o único caminho para reverter a
decisão. Há sucedâneos mais simples, como encaminhar a mesma comunicação ao
Ministério Público ou ao juiz, ou sucedâneos mais complicados, como impetrar
um mandado de segurança para discutir a legalidade do indeferimento.
Além do requerimento e da representação, outro veículo escrito – nesse caso
restrito à autoridade policial – é a requisição (CPP, art. 5º, II, primeira parte). Trata-
se de uma ordem de quem não tem sobre a autoridade policial um poder
hierárquico, mas derivado diretamente da lei ou da Constituição. O
descumprimento da ordem legal tipifica o crime de desobediência (CP, art. 330).
A requisição pode ser desobedecida pela destinatária somente no caso de
ilegalidade. Não cabe dizer que esse poder somente existe no caso de ilegalidade
patente. Mesmo no caso de ilegalidade não-manifesta, mas existente, a autoridade
policial não cometeria crime de desobediência caso não instaurasse o inquérito.
A instauração de qualquer investigação oficial, mas mormente do inquérito
policial, dá-se principalmente através de portaria da autoridade. Também pode se
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verificar através de um despacho, exarado no requerimento do interessado ou na


requisição do Ministério Público ou do Ministro da Justiça. Também se inicia com
a lavratura, por parte da autoridade policial, do auto de prisão em flagrante.
O inquérito policial militar é sempre iniciado por portaria, ainda que ela seja
determinada por requisição da autoridade competente (CPPM, art. 10). O mesmo
ocorre com o procedimento investigatório criminal do Ministério Público.
Veiculam a requisição o Juiz e o Ministério Público (CPP, art. 5º, II, primeira
parte).
Há uma requisição emanada do Ministro da Justiça, nos casos de crimes contra
a honra cometidos contra o Presidente da República (CP, art. 145, parágrafo único)
mas é dirigida ao Ministério Público e tem mais a característica de uma autorização
para proceder. A esse tema voltar-se-á adiante.
Dispõem os incisos I e IV do § 1º do art. 144 da Constituição que a Polícia
Federal tem atribuições para instaurar e processar o inquérito policial no âmbito
da Justiça Federal.
Conforme dispõe o § 4º do art. 144 da Constituição, cabe às Polícias Civis
instaurar e processar o inquérito policial para apuração das infrações penais no
âmbito da Justiça Comum Estadual. Isso representa a grande maioria das infrações
penais. As Polícias Civis não têm atribuições, conforme expressamente determina
o mesmo dispositivo, para a investigação dos crimes militares.
No caso destes, as atribuições para a investigação policial dependem, em grande
medida, da patente de quem esteja sendo investigado. A ideia é de que, na
investigação dos crimes militares, cabe ao oficial superior a investigação daqueles
que lhe são subordinados, ainda que na reserva remunerada ou não, ou reformado
(CPPM, art. 8º). A mesma lógica será obedecida, por ocasião do processo penal
condenatório, pela Justiça Militar dos Estados (CPPM, art. 6º).
A competência para conhecer dos crimes dolosos contra a vida praticados
contra civil, em tempos de paz, é da Justiça Comum (CPP, art. 82). Em que pese
tenha sido feita essa alteração em 1996, pela Lei 9299, entende-se que ela se
restringe à competência jurisdicional, permanecendo vigentes as atribuições das
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organizações militares para as investigações policiais (CPP, art. 82, § 2º).9


Não há procedimento estrito que seja previsto para o inquérito policial. A lei
processual penal assinala apenas que o procedimento deve ser reduzido a escrito
(CPP, art. 9º) e enumera aqueles atos que a autoridade policial deve realizar
imediatamente após ter tido ciência da infração penal (art. 6º): dirigir-se ao local,
providenciando para que não se alterem o estado e conservação das coisas, até a
chegada dos peritos criminais (I); apreender os objetos que tiverem relação com o
fato, após liberados pelos peritos criminais (II); colher todas as provas que servirem
para o esclarecimento do fato e suas circunstâncias (III); ouvir o ofendido (IV);
ouvir o indiciado, com observância, no que for aplicável, do disposto no Capítulo
III do Título VII, deste Livro, devendo o respectivo termo ser assinado por duas
testemunhas que lhe tenham ouvido a leitura (V); proceder a reconhecimento de
pessoas e coisas e a acareações (VI); determinar, se for caso, que se proceda a
exame de corpo de delito e a quaisquer outras perícias (VII); ordenar a
identificação do indiciado pelo processo datiloscópico, se possível, e fazer juntar
aos autos sua folha de antecedentes (VIII); averiguar a vida pregressa do indiciado,
sob o ponto de vista individual, familiar e social, sua condição econômica, sua
atitude e estado de ânimo antes e depois do crime e durante ele, e quaisquer outros
elementos que contribuírem para a apreciação do seu temperamento e caráter (IX);
colher informações sobre a existência de filhos, respectivas idades e se possuem
alguma deficiência e o nome e o contato de eventual responsável pelos cuidados
dos filhos, indicado pela pessoa presa (X) e poderá proceder à reprodução
simulada dos fatos, desde que esta não contrarie a moralidade ou a ordem pública
(art. 7º).
No caso do indiciado estar preso, o prazo para a conclusão do inquérito policial,
na Justiça Comum Estadual, é de dez dias, contado da execução da prisão (CPP,
art. 10). Não há previsão de possibilidade de prorrogação do prazo com
manutenção da prisão.

9
Cf., acerca da constitucionalidade da Lei n. 9299, Ação direta de inconstitucionalidade (medida liminar)
n. 1494-DF – STF – Pleno – Rel. p/ o acórdão Min. Marco Aurélio (Rel. orig. Min. Celso de Mello) –
julgada em 9.abr.1997 – indeferida a liminar – votação majoritária, vencidos os ministros Celso de Mello,
relator, Maurício Correa, Ilmar Galvão e Sepúlveda Pertence – Informativo STF n. 66.
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Na Justiça Comum Federal, estando o indiciado preso, o prazo é de quinze


dias, também contado da execução da prisão (Lei 5010, art. 66, caput). Há a
possibilidade de prorrogação do prazo de conclusão do inquérito, mantido preso
o indiciado. Nesse caso, a autoridade policial federal, ao tempo em que requerer a
prorrogação do prazo para a conclusão das investigações, deverá apresentar o preso
ao juiz (Lei 5010, art. 66, parágrafo único), sendo essa uma oportunidade deste
ouvi-lo informalmente.
Na Justiça Militar, se o indiciado estiver detido, o prazo para finalização do
inquérito policial militar é de vinte dias, contado da execução da prisão (CPPM,
art. 20, caput, primeira parte) e não há previsão legal de prorrogação desse prazo.
No caso do indiciado estar solto, o prazo para a conclusão do inquérito policial,
na Justiça Comum Estadual e na Justiça Comum Federal, é de trinta dias (CPP, art.
10, caput). Esse prazo pode ser prorrogado a critério do juiz, se o caso for de difícil
elucidação (CPP, art. 10, § 3º), quantas vezes for necessário.
Na Justiça Militar, o prazo para a conclusão das investigações, estando o
indiciado solto, é de quarenta dias (CPPM, art. 20). Há a possibilidade de
prorrogação desse prazo por vinte dias, “desde que não estejam concluídos exames
ou perícias já iniciados, ou haja necessidade de diligência, indispensáveis à
elucidação do fato” (CPPM, art. 20, § 1º). A particularidade interessante da Justiça
Militar é que a autoridade competente para conceder a prorrogação do prazo é a
autoridade militar superior.

4. Investigação pelo Ministério Público

Nos últimos anos tomou força e relevância a investigação criminal conduzida


diretamente pelo Ministério Público. Essa possibilidade sempre esteve, a rigor, na
lei processual penal. Desde 1941, dispõe ela que se o órgão do Ministério Público
julgar indispensáveis maiores esclarecimentos e documentos complementares ou
novos elementos de convicção, deverá requisitá-los diretamente, de quaisquer
autoridades ou funcionários que devam ou possam fornecê-los (CPP, art. 47).
Dispositivos semelhantes se encontram no próprio Código de Processo Penal,
embora introduzidos por legislação posterior (art. 13-A), no Código Eleitoral (art.
14

356), na Lei 7492 (art. 29). A Lei 9613, por sua vez, dá ao Ministério Público
poderes investigatórios equivalentes aos da Polícia (art. 17-B).
O fato é que essa possibilidade, que sempre existiu, sempre foi utilizada
timidamente pelo Ministério Público. Nos últimos anos, porém, passou a ser cada
vez mais acionada. Diversos fatores explicam essa tendência. Fala-se, por exemplo,
que a Polícia seria cronicamente ineficiente para investigar certos crimes. Também
há os temores de que em certos casos não haveria a possibilidade ou mesmo o
interesse da polícia em investigar com rigor, como no caso dos crimes cometidos
por policiais. Este não é o momento nem o lugar de discutir esses argumentos.
Seja como for, o que com certeza exerceu uma influência definitiva no avanço
das pretensões investigatórias criminais por parte do Ministério Público foi a
promulgação da Lei 7347, que disciplina a ação civil pública. Ela dispôs que o
Ministério Público, quando fosse necessário investigar a ocorrência de danos
causados ao meio-ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico,
estético, histórico, turístico e paisagístico, poderia instaurar e dirigir inquérito civil
ou requisitar diretamente a qualquer organismo público ou particular, certidões,
informações, exames ou perícias que pudessem comprovar o dano e apontar
responsáveis (art. 8º, § 1º). Ou seja: além do poder requisitório que já era
tradicional, aquela lei criou um instrumento investigatório completamente novo,
nomeando-o como o instrumento investigatório criminal da polícia de investigação.
Com o surgimento do inquérito civil, que passou a ser instaurado com vigor
pelo Ministério Público atuante na área da chamada tutela coletiva, passou a ser
questão de tempo o surgimento de um instrumento para a investigação criminal
direta pelo Ministério Público.
Essa possibilidade foi aberta pela Lei 8625 e pela Lei Complementar 75.
Conforme se sabe, aquela tratou da organização dos Ministérios Públicos dos
Estados e esta tratou do estatuto do Ministério Público da União. Ambas, com
diferenças mínimas, previram a possibilidade do agente do Ministério Público
realizar “diligências investigatórias” (Lei 8625, art. 26, I, c; LC 75, art. 8º, V). A
disciplina dessas diligências, porém, continuava sem definição.
Em 2004, com a criação do Conselho Nacional do Ministério Público, surgiu a
15

possibilidade de regulamentação dessa atividade investigatória criminal


(Constituição, art. 130-A, § 2º, I).
Finalmente, em 2006 foi regulamentado o procedimento investigatório
criminal, através de uma resolução do CNMP.10 Em 2017 foi editada nova
regulamentação,11 que define o procedimento investigatório criminal (PIC) como o
instrumento de investigação de crime do Ministério Público. Define-o como o
“instrumento sumário e desburocratizado de natureza administrativa e
investigatória, instaurado e presidido pelo membro do Ministério Público com
atribuição criminal”, instaurado com “finalidade apurar a ocorrência de infrações
penais de iniciativa pública, servindo como preparação e embasamento para o juízo
de propositura, ou não, da respectiva ação penal” (Res. 181-CNMP, art. 1º, caput).
Como o inquérito policial, o procedimento investigatório criminal poderá ser
instaurado de ofício, pelo membro do Ministério Público, no âmbito de suas
atribuições, ao tomar conhecimento direto de infração penal, ou ao ser provocado,
mediante requerimento ou mera notícia (Resolução 181-CNMP, art. 3º, caput). Se
o membro do Ministério Público receber quaisquer peças de informação do
cometimento de um crime, além de instaurar o procedimento investigatório
criminal, poderá promover a ação penal, encaminhá-las ao Juizado Especial
Criminal, requisitar a instauração de inquérito policial, promover seu arquivamento
(Resolução 181-CNMP, art. 2º) ou propor ao investigado acordo de não
persecução penal (Resolução 181-CNMP, art. 18, caput). É despiciendo dizer que
em qualquer dos casos deverá fundamentar suas opções.
Também poderá ser compelido a instaurar o procedimento investigatório
criminal caso haja determinação do órgão superior interno responsável, no caso de
promoção de arquivamento anterior ter sido rejeitada. Nesse caso, a designação do
membro que será responsável pela tramitação do procedimento deverá recair sobre
outro que não aquele que promoveu o arquivamento (CPP, art. 28).

10
A norma editada na época foi a Resolução CNMP n. 13, de dois de outubro de 2006, que vigorou até
2017.
11
Trata-se da Resolução CNMP n. 181, de sete de agosto de 2017. Ela foi parcialmente modificada pela
Resolução n. 183, de 24 de janeiro de 2018.
16

Conforme a Resolução 181-CNMP, no curso do procedimento investigatório e


sem prejuízo de outras providências inerentes à sua atribuição funcional e
legalmente previstas, o membro do Ministério Público poderá: fazer ou determinar
vistorias, inspeções e quaisquer outras diligências (art. 7º, I); requisitar informações,
exames, perícias e documentos de autoridades, órgãos e entidades da
Administração Pública direta e indireta, da União, dos Estados, do Distrito Federal
e dos Municípios (art. 7º, II); requisitar informações e documentos de entidades
privadas, inclusive de natureza cadastral (art. 7º, III); notificar testemunhas e vítimas
e requisitar sua condução coercitiva, nos casos de ausência injustificada, ressalvadas
as prerrogativas legais (art. 7º, IV); acompanhar buscas e apreensões deferidas pela
autoridade judiciária (art. 7º, V); acompanhar cumprimento de mandados de prisão
preventiva ou temporária deferidas pela autoridade judiciária (art. 7º, VI); expedir
notificações e intimações necessárias (art. 7º, VII); realizar oitivas para colheita de
informações e esclarecimentos (art. 7º, VIII); ter acesso incondicional a qualquer
banco de dados de caráter público ou relativo a serviço de relevância pública (art.
7º, IX); requisitar auxílio de força policial (art. 7º, X). Nenhuma autoridade pública
ou agente de pessoa jurídica no exercício de função pública poderá opor ao
Ministério Público, sob qualquer pretexto, a exceção de sigilo, sem prejuízo da
subsistência do caráter sigiloso da informação, do registro, do dado ou do
documento que lhe seja fornecido (art. 7º, § 1º).
O prazo mínimo para cumprimento da requisição do Ministério Público deve
ser de dez dias e pode ser prorrogado mediante solicitação justificada (art. 7º, § 3º).
A notificação para o investigado comparecer deverá respeitar uma antecedência
mínima de 48 horas e mencionar o fato investigado, salvo na hipótese de ter sido
decretado sigilo, bem como a faculdade deste se fazer acompanhar por defensor
(art. 7º, §§ 4º e 5º).
No procedimento investigatório criminal o Ministério Público poderá se ver na
contingência de enviar correspondências, notificações, requisições ou mesmo
intimações a autoridade com foro por prerrogativa de função, como o presidente
da República, o vice-presidente da República, membro do Congresso Nacional,
ministro do Supremo Tribunal Federal, ministro de Estado, ministro de Tribunal
Superior, ministro do Tribunal de Contas da União ou chefe de missão diplomática
17

de caráter permanente. Nesse caso, elas serão encaminhadas e levadas a efeito pelo
procurador-geral da República ou outro órgão do Ministério Público a quem essa
atribuição seja delegada (art. 7º, § 6º). Se o destinatário for governador de Estado,
membro do Poder Legislativo estadual ou desembargadores, elas serão
encaminhadas pelo procurador-geral de Justiça (art. 7º, § 7º). Se quaisquer delas
tiver de ser ouvida no bojo do procedimento, poderão fixar data, hora e local (art.
7º, § 8º).
O condutor do procedimento investigatório criminal será responsável pelo uso
indevido das informações e documentos que requisitar, inclusive nas hipóteses de
sigilo (art. 7º, § 9º).
O defensor do investigado poderá acompanhar as investigações (art. 9º, § 1º).
Se ainda não lhe tiver sido conferida procuração, poderá apenas examinar autos de
procedimento investigatório criminal, findos ou em andamento, podendo copiar
peças e fazer anotações, em meio físico ou digital, salvo se houver sido decretado
o sigilo das investigações, caso em que a exibição do instrumento de procuração
será exigida (art. 9º, §§ 1º e 2º). Em qualquer caso, o membro do Ministério
Público que preside o procedimento poderá delimitar o acesso do defensor aos
elementos de prova relacionados a diligências em andamento e ainda não
documentados nos autos, quando houver risco de comprometimento da eficiência,
da eficácia ou da finalidade das diligências (art. 9º, §§ 4º).
No interrogatório e em todos os compromissos que requeiram a presença do
investigado, esse poderá ser acompanhado por defensor. Aqui uma impropriedade:
diz a resolução que essa assistência visa a “evitar a alegação de nulidade do
interrogatório e, subsequentemente, de todos os elementos probatórios dele
decorrentes ou derivados, nos termos da Lei n. 8906, de 4 de julho de 1994” (art.
9º, § 3º). Obviamente não se trata de evitar a “alegação de nulidade”, mas a
nulidade propriamente dita, que pode ocorrer por cerceamento (Lei 8906, art. 7º,
XXI).
Recebidos uma representação, um requerimento ou peças de informação
noticiando uma infração penal, o membro do Ministério Público terá trinta dias
para formar o juízo de valor e iniciar a investigação. Caso sejam necessárias
diligências preliminares, esse prazo poderá ser fundamentadamente prorrogado
18

por até noventa dias (art. 3º, § 4º).


Os atos e peças do procedimento investigatório criminal são públicos, salvo
disposição legal em contrário ou por razões de interesse público ou conveniência
da instrução criminal (art. 15, caput). Consiste a publicidade interna no dever do
presidente do procedimento investigatório, caso requerido pelo investigado, pela
vítima ou por seu representante legal, pelo Poder Judiciário, pelo próprio
Ministério Público ou por terceiro diretamente interessado, ou por seus
procuradores ou por advogado: a) expedir certidão (art. 15, parágrafo único, I); b)
deferir pedido de extração de cópias (art. 15, parágrafo único, II); c) deferir pedido
de vista dos autos (art. 15, parágrafo único, III). Também consiste na publicidade
externa, que se consubstancia no dever do presidente da investigação de prestar
informações ao público em geral, observados o princípio da presunção de
inocência e as hipóteses legais de sigilo (art. 15, parágrafo único, IV).
O sigilo das investigações será decretado fundamentadamente pelo membro do
Ministério Público que preside as investigações, “quando a elucidação do fato ou
interesse público exigir” (art. 16, caput). Esse sigilo se estende apenas parcialmente
ao defensor do investigado, especificamente àquelas diligências ainda não
documentadas nos autos, quando houver risco de comprometimento de sua
eficiência ou finalidade (art. 9º, § 4º).
Se houver sigilo não oponível ao advogado munido de procuração, diz a
resolução que cabe a ele preservá-lo (art. 16, caput). A Lei 8906, porém, não prevê
nenhuma responsabilidade nesse caso.
Instaurado o procedimento, o membro do Ministério Público terá noventa dias
para concluí-lo. Esse prazo poderá ser prorrogado tantas vezes quantas forem
necessárias, desde que o presidente do procedimento fundamente sua decisão na
necessidade da prorrogação (art. 13, caput).

5. Diligências investigatórias criminais

Investigar significa “seguir os vestígios”, “pesquisar”, “reconstituir”. No caso do


Processo Penal, significa isso e algo mais. Significa seguir os vestígios de um crime
e de seu autor, e além disso descobri-los e documentá-los e providenciar para que
19

não desapareçam e que mantenham suas características da época do crime para


futuro uso em processo penal condenatório e indiciar o seu autor, ou autores e
cúmplices e partícipes, de modo que eles possam ser regularmente acusados e
processados por seus crimes.
Tanto quanto a própria atividade probatória, a atividade investigatória é
fundamental para o processo penal condenatório. Sem a investigação prévia,
muitos dos processos penais restariam inviabilizados, seja porque não se descobriu
o crime com todas as suas características, seja porque não se descobriu quem fosse
seu autor, seja porque se iniciou o processo penal condenatório precipitadamente,
isto é, sem coligir provas suficientes para sua viabilidade. Mesmo nos casos em que
desde logo se sabe da existência de um crime e de quem seja seu autor, como
aqueles crimes documentais ou nos casos em que há prisão em flagrante, alguma
atividade investigatória é essencial, a fim de conservar os vestígios do crime e
viabilizar seu uso em futuro processo penal condenatório.
A atividade investigatória não se realiza em um procedimento predeterminado.
A lei processual penal simplesmente diz à autoridade policial que colha todas as
provas que servirem para o esclarecimento do fato e de suas circunstâncias (CPP,
art. 6º, III). O procedimento que se instaura – seja ele um inquérito policial, seja
um procedimento investigatório criminal, seja uma sindicância, seja um inquérito
administrativo – destina-se a reunir, documentar e conservar os resultados dessas
diligências, para uso futuro.
A maior parte das diligências se origina de uma mesma categoria geral, o poder
de polícia. Têm-no as autoridades policiais, os fiscais, os membros do Ministério
Público, os juízes e os servidores públicos nos respectivos âmbitos de suas
atividades. Embora todas essas autoridades possam investigar, é inegável que muitas
delas o fazem em caráter acidental, por assim dizer, dependendo da situação que
se apresente. Qualquer autoridade administrativa pode se achar na contingência de
ter de determinar a instauração de uma sindicância para apurar irregularidades
ocorridas em seu âmbito de atividade.
Enquanto isso, a Polícia Federal e as polícias civis nos Estados têm na
investigação sua atividade típica e principal. Os chefes dessas instituições, bem
como seus corregedores, podem também instaurar sindicâncias para apurar ilícitos
20

ocorridos nessas instituições.


Em muitos casos, mesmo outras atividades deferidas à Polícia Federal, como a
fiscalização das fronteiras e a expedição de passaportes, por exemplo, existem em
razão da própria atividade investigatória.
Desde a entrada em vigor do Código de Processo Penal até hoje, inúmeras
limitações foram introduzidas à atividade investigatória. Esse movimento foi
induvidosamente acentuado depois da entrada em vigor da atual Constituição. Isso
gerou um certo descompasso entre o que o texto do Código de Processo Penal diz
e o que se considera legítimo por parte da polícia de investigação.
De início, outrossim, todas as diligências investigatórias estavam perfeitamente
previstas no Código de Processo Penal. Com o tempo, foram surgindo outras
diligências, reguladas pela legislação especial.
Por fim, pode-se dizer que o tempo fez com certas diligências investigatórias –
chamemo-las convencionais – se mostrassem insuficientes tanto para coibir a
prática criminosa quanto para investigá-la. Isso aconteceu principalmente no campo
da investigação dos crimes praticados pelas chamadas “organizações criminosas”.
Isso porque uma das suas características fundamentais é a prática reiterada de
crimes, como se fossem elas verdadeiras empresas e o crime sua principal atividade
econômica. Com isso, foi necessário desenvolver e regulamentar certas práticas
investigatórias novas, que permitem à autoridade policial um acesso às provas
destinadas a punir os integrantes de organizações criminosas. Muitas dessas técnicas
podem ser consideradas extravagantes, especialmente se comparadas com as
reguladas pelo Código de Processo Penal. Sem elas, porém, muitas investigações
dos crimes das organizações criminosas restariam frustradas.
Conforme se viu, é a atividade investigatória, naturalmente dinâmica, que
estabelece as suas próprias necessidades. Em todo o caso, há uma variedade grande
de diligências destinadas às descobertas essenciais ao processo penal condenatório.
Vale a pena revisitar cada uma delas.
21

5.1. Isolamento do local do crime

Uma das primeiras providências deferidas à autoridade policial, sem a


necessidade de intervenção do Poder Judiciário, é precisamente a de poder e dever
isolar o local do crime, para que nele não se modifiquem o estado e a conservação
das coisas, até a chegada dos peritos, que deverão, a partir de sua chegada,
fotografar o local e dimensioná-lo, para fins de elaboração de seus laudos, bem
como recolher os objetos de interesse para a prova pericial (CPP, arts. 6º, I e 169).
Os cadáveres, por exemplo, devem ser fotografados pelos peritos na posição
em que forem encontrados. O mesmo deve ocorrer com as lesões externas e os
vestígios deixados no local do crime (CPP, art. 164).
Não se trata de uma diligência investigatória que acrescente provas ou indícios
à investigação, mas permite que sejam preservados os porventura existentes. Trata-
se, conforme dito, de um poder-dever da autoridade policial, que se realiza por
ordem sua, no âmbito de suas atribuições. A única exceção legalmente prevista para
essa diligência refere-se aos crimes de trânsito se as pessoas envolvidas ou os
veículos ou ambos estiverem no leito da via pública e prejudicarem a circulação dos
demais automóveis (Lei 5970, art. 1º). Nesse caso, sendo necessária a remoção dos
veículos ou das pessoas envolvidas que se encontrem no leito da via pública, a
autoridade policial deverá lavrar boletim acerca da ocorrência, nele consignando o
fato, suas testemunhas e demais circunstâncias relevantes (Lei 5970, art. 1º,
parágrafo único).
Eventualmente, esse poder-dever da autoridade policial tem sua contrapartida
no fato de dever ser suportado pelas pessoas que tiverem de fazer uso do local de
um crime, ainda que se trate de uma propriedade privada. Por um período, ficarão
impossibilitadas de utilizar esse local. Conforme o Código de Processo Penal, essa
ocupação e isolamento pela autoridade policial prescinde de autorização judicial.
Por conta do fato de que essa ordem legal nem sempre é devidamente
observada, no Brasil, pelas autoridades policiais, a questão da recepção da regra
processual autorizando o isolamento da cena do crime, seja ela local público, seja
local privado, sem ordem judicial, não chegou ao Poder Judiciário.
É discutível que tenha sido, diante do claro comando constitucional no sentido
22

de que a “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar


sem consentimento do morador, salvo em flagrante delito ou desastre, ou para
prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial” (Constituição, art. 5º,
XI).
No caso do isolamento, pode não se tratar de flagrante delito nem desastre nem
socorro, mormente se se tratar de crime consumado. Daí é difícil sustentar a
legitimidade da regra que autoriza a polícia a tomar conta do lugar, mesmo contra
a vontade de quem de direito.
Se o proprietário permanecer ou entrar no local e porventura alterar o estado
do lugar, das coisas ou das pessoas, mesmo com a finalidade de induzir em erro o
juiz ou o perito, antes da instauração do inquérito policial ou mesmo depois de
instaurado não pratica o crime de fraude processual (CP, art. 347). Isso porque a
lei penal tipifica a fraude processual quando a inovação ocorre na pendência de
processo judicial ou administrativo, o que o inquérito policial definitivamente não
é. O entendimento jurisprudencial se inclina no sentido de reconhecer a atipicidade
de semelhante conduta.12
Paradoxalmente, no caso dos crimes de trânsito com vítima, é penalmente típica
a conduta de inovar o estado de lugar, de coisa ou de pessoa, com o fim de induzir
a erro o policial, o perito ou o juiz, na pendência ou antes da instauração de
procedimento policial preparatório, inquérito policial ou processo penal (CTB, art.
312).
No caso dos demais crimes – isto é, daqueles que não envolvem acidentes de
trânsito – se a autoridade policial não isolar o local do crime e, com isso, permitir
sua alteração, e em consequência os exames periciais não sejam realizados, pode
ser impossível à acusação demonstrar a ocorrência dos crimes que deixam vestígio,
por ausência ou deficiência de exame pericial (CPP, art. 158).

12
PRADO, Luiz Regis. Comentários ao Código Penal, 4ª ed., São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2007,
p. 982-983.
23

5.2. Apreensão dos objetos relacionados ao crime

A lei processual penal determina que a autoridade policial apreenda os objetos


que tiveram provável relação com o ilícito investigado, uma vez que tenham sido
liberados pelos peritos criminais (CPP, art. 6º, II).
Não se trata da mesma diligência descrita mais adiante no Código de Processo
Penal e denominada de “busca e apreensão” (CPP, arts. 240-250).
Neste caso, a autoridade simplesmente apreende aqueles objetos que
anteriormente arrecadara na cena do crime. Isso, segundo a lei processual penal,
depois que os peritos tiverem feito seu exame técnico. Não precisa fazer nenhuma
busca porque os objetos já estão em poder.
É de se notar que essa apreensão policial é autorizada independentemente de
mandado judicial, mesmo que os objetos sejam claramente de propriedade de
alguém que nenhuma relação tenha tido com o crime e que estivessem dentro de
uma propriedade privada. Basta que esses objetos sejam de um provável interesse
para a investigação e que, repita-se, tenham sido arrecadados em um local de crime.
Uma vez apreendidos, somente poderão ser restituídos aos seus proprietários após
o trânsito em julgado da decisão (a depender do teor da decisão, é claro) ou quando
não mais interessarem ao processo penal (CPP, art. 118).
Também aqui é possível identificar um problema constitucional com a regra do
estatuto processual penal (CPP, art. 6º, II). A Carta Política protege a propriedade
privada, permitindo a desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por
interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro (Constituição, art.
5º, XXIV). Ainda que a apreensão realizada pela autoridade policial não seja,
ainda, uma desapropriação, constitui-se em um desapossamento que pode
redundar na perda da propriedade da coisa.
Melhor seria que, uma vez determinada a apreensão das coisas que
interessassem à investigação ou ao futuro processo penal condenatório, o juiz fosse
imediatamente comunicado, a fim de convalidar a apreensão.
Seja como for, essa providência tem a mais variada serventia. Por exemplo, os
objetos apreendidos podem ser objeto de nova perícia, determinada tanto a pedido
da acusação quanto a pedido da defesa. Daí o interesse em mantê-los à disposição
24

das autoridades.
Também pode ser que esses objetos sejam úteis durante o processo e o
julgamento da causa. A arma do crime, bem assim a roupa usada pela vítima ou
pelo acusado quando do cometimento do crime, por exemplo, podem ter de ser
manipuladas pelo juiz ou pelos jurados durante um julgamento.
Os instrumentos do crime estão entre as coisas que devem ser apreendidas
sempre. Se forem objetos de per se lícitos, como uma faca de cozinha ou um
computador, ficarão à disposição do processo enquanto puderem ser úteis ao
esclarecimento do ilícito penal. Depois do final do processo penal ou quando já
não tiverem utilidade provável para as partes ou para o juiz, podem ser devolvidas
ao legítimo proprietário. Se forem objetos ilícitos, como uma arma sem registro ou
de uso restrito ou proibido no território nacional, ou como um automóvel
adulterado para o transporte oculto de mercadorias, poderão ser objeto de
perdimento, como um efeito genérico da condenação (CP, art. 91, II, a; CPP, art.
119).
Considere-se a hipótese de ter sido apreendido o instrumento do crime, uma
coisa cujo fabrico, alienação, uso, porte ou detenção constitua fato ilícito e, ao final
do processo penal condenatório, ser absolutória a sentença proferida. Em um
primeiro momento, não cabe perdimento, até porque a sentença foi absolutória.
Por outro lado, a coisa muito provavelmente não poderá ser devolvida para
ninguém, nem mesmo o lesado ou o terceiro de boa-fé. Nesse caso, deve-se aplicar
por analogia a regra que determina que o juiz aguarde noventa dias para decretar a
perda, em favor da união, desses objetos ilícitos (CPP, art. 122, caput).
Também tem importância a apreensão dos produtos do crime, uma vez
encontrados no seu local. A autoridade deve apreendê-los porque esses produtos
serão provavelmente objeto de perdimento em favor da União, ressalvado o direito
do lesado ou do terceiro de boa-fé (CP, art. 91, II, b). Um exemplo é o automóvel
que tenha sido objeto de crime patrimonial. É produto do crime e será perdido em
favor da União ou devolvido ao lesado, uma vez que transite em julgado a sentença
ou que não seja mais útil ao processo penal condenatório.
No caso dos proveitos do crime, isto é, daqueles objetos que não foram
25

produtos diretos do crime, mas que foram adquiridos pelo criminoso com a
comercialização dos produtos do crime, a lei processual penal não autoriza sua
apreensão diretamente pela autoridade policial, dês que não tem relação direta com
o fato (CPP, art. 6º, II, a contrario sensu). Sabedora de sua existência, a autoridade
policial poderá representar pela busca e apreensão desses bens (CPP, arts. 240-
250) ou mesmo pelo seu sequestro (CPP, art. 132).
No caso de crime tipificado na lei de drogas, além da apreensão e de outras
medidas assecuratórias patrimoniais dos objetos que constituam produto do crime
ou proveito auferido pela prática criminosa (Lei 11343, art. 60), o juiz poderá
autorizar a utilização desses objetos pelos órgãos da repressão ou por entidades que
atuam na prevenção do uso indevido, na atenção e reinserção social de usuários e
dependentes de drogas e na repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito
de drogas, exclusivamente no interesse dessas atividades (Lei 11343, arts. 61 e 62).

5.3. Oitiva do ofendido, das testemunhas e do indiciado

O momento de realizar a maior parte das diligências investigatórias parece ser


um só. Diz a lei processual penal que elas devem ocorrer “logo que [a autoridade
policial] tiver conhecimento da prática da infração penal” (CPP, art. 6º, caput). Ou
seja, parece que elas devem ocorrer ao mesmo tempo, o que não é verdadeiro.
Esse dispositivo somente acentua o caráter urgente das investigações.
Como todas as diligências não podem ocorrer ao mesmo tempo, parece claro
que as primeiras dentre as primeiras devem ser o isolamento do local do crime,
para o seu levantamento pelos peritos, a apreensão de todos os objetos relacionados
ao crime e a colheita, em geral, das provas que sirvam para o esclarecimento do
fato e de suas circunstâncias (anotação de nome de testemunhas, realização de
desenhos e tirada de fotos do local etc.).
Em seguida, deve a autoridade ouvir o ofendido, se houver um, ouvir as
testemunhas e ouvir o indiciado. Todos esses atos deverão guardar alguma
similitude com os atos processuais de oitiva dessas pessoas pelo juiz, fora o
contraditório, que não se aplica às investigações.
Quanto à oitiva do ofendido, se houver um, deve ser a primeira dessas
26

diligências que pretendem reconstituir a dinâmica dos fatos. Com essa oitiva a
autoridade procura estabelecer a relevância do fato, sua repercussão, suas
consequências para a pessoa do ofendido, sua conduta antes e depois dos fatos. É
uma espécie de ponto de partida para a reconstituição da sequência dos
acontecimentos.
Ouvido o ofendido, a autoridade policial deve ouvir as testemunhas do fato que
haja identificado logo que chegou ao local do crime, as que surgiram com as
investigações e as que se apresentaram depois. O conjunto desses depoimentos
ajudará a autoridade policial a formar uma imagem em movimento do crime.
A documentação desses depoimentos tem uma função acauteladora. Serve para
auxiliar o ofendido e as testemunhas a se lembrarem dos fatos e de todas as suas
circunstâncias. Serve para a autoridade policial manter registrada a sequência dos
acontecimentos. A documentação cristaliza, por assim dizer, as versões desses
personagens.
Em seguida a autoridade policial deve ouvir o indiciado. Segundo a dicção da
lei processual penal, o indiciado exsurge das provas e não de uma decisão da
autoridade policial. Afinal, a autoridade policial deve ouvir o indiciado logo que
tiver conhecimento da infração penal (CPP, art. 6º, V). Isso significa que, segundo
o sistema do Código de Processo Penal o indiciado preexiste à própria instauração
formal das investigações. Em outras palavras, o indiciamento não existe enquanto
um ato jurídico formal.
Entretanto, uma lei de 2013 deu ao delegado de Polícia a atribuição de decidir
pelo indiciamento, por ato fundamentado, mediante análise técnico-jurídica do fato
que deverá indicar a autoria, a materialidade e as circunstâncias do crime (Lei
12830, art. 2º, § 6º). O caso é peculiar, pois essa lei atribuiu ao delegado a
competência para decidir pela prática de um ato que não existe, rigorosamente,
como entidade jurídica; um ato que não tem senão consequências morais negativas
em relação à pessoa do imputado. É ainda mais peculiar porque representa uma
evolução relativa à situação anterior, em que o mesmo ato, sem existência jurídica,
era praticado pelos delegados sem qualquer espécie de manifestação. Se a lei tivesse
criado o indiciamento, dando certas consequências jurídicas para ele, seria ainda
mais estranho, pois o delegado de Polícia teria incorporado certas competências
27

tipicamente jurisdicionais à sua atividade. Melhor teria andado a lei se tivesse de


uma vez declarado a inexistência do indiciamento policial no mundo jurídico.
Quanto ao interrogatório propriamente dito, a lei processual penal brasileira
não delimitou estritamente como deva realizar-se. Dispôs apenas que o
interrogatório policial deve realizar-se com observância, no que for aplicável, das
regras atinentes ao interrogatório judicial (CPP, art. 185-196). Não há nenhuma
disposição de como esse ato deva realizar-se.
O § 136a do Código de Processo Penal alemão (Strafprozessordnung – StPO),
por exemplo, dispõe que “a liberdade de formação e declaração da vontade do
imputado não será prejudicada através de maus tratos, através de submissão a
fadiga, através de violência corporal, através de tortura, através de fraude ou de
hipnose”.13
Nos EUA, durante muitos anos, a Suprema Corte considerou as confissões
dadas durante interrogatórios policiais, com o investigado sob custódia, em
princípio, legítimas. Diversas vezes considerou inadmissíveis aquelas
comprovadamente resultantes de tortura,14 de tratamento humilhante,15 aquelas
obtidas mediante fraude,16 aquelas resultantes de longos interrogatórios17 ou aquelas
decorrentes de prisões sem mandado.18
Em todos esses casos, porém, a exclusão das confissões somente foi realizada
mediante a comprovação da ilicitude da conduta da polícia. Na década de 1960, a
Suprema Corte inverteu a presunção em torno do interrogatório policial do
investigado preso. Passou a considerar que decidiu, em um famoso julgamento, que

13
No original: “Die Freiheit der Willensentschließung und der Willensbetätigung des Beschuldigten darf
nicht beeinträchtigt werden durch Mißhandlung, durch Ermüdung, durch körperlichen Eingriff, durch
Verabreichung von Mitteln, durch Quälerei, durch Täuschung oder durch Hypnose”.
14
White v. Texas, 310 U.S. 530 (1940); Vernon v. Alabama, 313 U.S. 547 (1941); Ward v. Texas, 316
U.S. 547 (1942).
15
Lomax v. Texas, 313 U.S. 544 (1941).
16
Spano v. New York, 360 U.S. 315 (1959).
17
Chambers v. Florida, 309 U.S. 227 (1940).
18
Mallory v. United States, 354 U.S. 449 (1957).
28

“a atmosfera e o ambiente no qual está inserido o investigado ... são inerentemente


intimidantes e trabalham para enfraquecer o privilégio contra a autoincriminação
forçada. A não ser que medidas preventivas adequadas sejam tomadas pela polícia
a fim de afastar a compulsoriedade inerente dos interrogatórios policiais, nenhuma
declaração obtida do investigado pode ser considerada decorrente de sua vontade
livre”. A partir dessa decisão as confissões policiais de investigados presos passaram
a ser admitidas somente se a polícia demonstrar que respeitou os direitos
fundamentais do imputado, dando a ele os chamados “avisos de Miranda”
(Miranda warnings).19
Nos últimos anos, a Suprema Corte dos EUA passou a restringir
paulatinamente o alcance de Miranda. Passou a permitir o uso de declarações
dadas pelo réu antes dos avisos de Miranda para propósitos de confrontar versões
defensivas apresentadas pelo réu,20 passou a considerar a falha eventual da polícia
de dar os avisos de Miranda sob a perspectiva da boa ou má fé,21 decidiu que
somente podem ser excluídas aquelas declarações dadas pelo réu antes de receber
os avisos de Miranda se ele estiver sendo submetido ao menos a um equivalente
funcional de um interrogatório,22 decidiu que são admissíveis as declarações dadas
pelo réu antes de receber os avisos de Miranda se há uma exigência de segurança
pública envolvida, como achar a arma do crime, ainda carregada,23 validou
declarações do preso dadas antes que pudesse se avistar com sua defensora
pública24 e até mesmo declarações dadas por um suspeito sob surto psicótico.25

19
Miranda v. Arizona, 384 U.S. 436 (1966).
20
Harris v. New York, 421 U.S. 222 (1971).
21
Michigan v. Tucker, 417 U.S. 433 (1974).
22
Rhode Island v. Innis, 446 U.S. 291 (1980).
23
New York v. Quarles, 467 U.S. 649 (1984).
24
Moran v. Burbine, 475 U.S. 412 (1986).
25
Colorado v. Connelly, 479 U.S. 157 (1986).
29

5.4. Quebra de sigilos constitucional ou legalmente protegidos

Outra ferramenta de investigação consiste na quebra de certos sigilos


constitucionalmente protegidos, como o sigilo da correspondência, das
comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas (Constituição,
art. 5º, XII), bem como de outros sigilos legalmente protegidos, como o sigilo
bancário (LC 105, art. 1º).
Nestas hipóteses, a autoridade quebra o sigilo das informações que são detidas
pelo próprio imputado ou por terceiros, como as companhias telefônicas, aos
provedores de dados, os bancos, as corretoras de valores mobiliários, a Receita
Federal, o Banco Central etc.
Em primeiro lugar, deve-se partir do pressuposto que todos esses sigilos são, a
priori, legítimos. Constituem, ao contrário do que reza muitas vezes a opinião
pública, um valor constitucional de grande relevância. A privacidade deve ser
protegida e respeitada. Reservar-se sobre certos fatos da vida, mesmo que
apetitosos à curiosidade alheia, não é um mero capricho. O direito a essa reserva
faz parte, em grande medida, do status dignitatis do cidadão, garantido, aliás, pelo
Pacto de São José, que põe o indivíduo a salvo de “ingerências arbitrárias ou
abusivas em sua vida privada, em sua família, em seu domicílio ou em sua
correspondência” (art. 11, 2).
Tome-se o exemplo da correspondência. É tradicional o respeito ao sigilo das
comunicações por carta, presente nesta e em todas as Constituições brasileiras
anteriores.26 O conteúdo dessas comunicações é restrito ao remetente e ao
destinatário. Somente eles podem, se assim o quiserem, fornecer essas informações
sigilosas, não importando seu conteúdo, a terceiros (Lei 6538, art. 5º). Mesmo
assim, o conhecimento sobre o conteúdo das correspondências pode ser útil e
necessário a uma investigação criminal. Nesse caso, ou seja, se houver prévia
suspeita de que o conteúdo da correspondência será útil à elucidação de um crime,
(CPP, art. 240, § 1º, f) sua violação será admitida e determinada pela autoridade

26
Constituição de 1824, art. 179, XXVII; Constituição de 1890, art. 72, § 18; Constituição de 1934, art.
113, 8; Constituição de 1937, art. 122, 6º; Constituição de 1946, art. 141, 6º; Constituição de 1967, art.
150, § 9º; Constituição de 1969, art. 153, § 9º.
30

judicial.27
Por outro lado, também é certo que embora haja expectativa de privacidade,
não há legitimidade nessa expectativa quando o indivíduo se vale dos sigilos
constitucionalmente garantidos para cometer crimes ou para garantir a ocultação
de outros crimes.
Daí que o Supremo Tribunal Federal decidiu que a legitimidade da quebra de
sigilos constitucionalmente garantidos prende-se à existência de um fato concreto e
de uma causa provável e não em meras conjecturas e em “generalidades
insuficientes para ensejar a ruptura da intimidade das pessoas”.28 E deve revestir-se
de razoabilidade quanto às hipóteses de violação.29
Somente quando a autoridade estatal – policial ou judicial – demonstrar que o
imputado muito provavelmente fez ou faz uso de qualquer dos sigilos protegidos
como ferramentas da prática de crimes passa a ser constitucionalmente legítima sua
quebra.
Além disso, a quebra do sigilo deve ser imprescindível ao progresso das
investigações. É o que a Constituição da República quis dizer com a expressão “no
último caso” (melhor seria que houvesse escrito “em último caso”), ao se referir à
necessidade das diligências para a investigação (art. 5º, XII).30
Embora haja uma identidade de razões, como bem ponderou o Superior
Tribunal de Justiça anos atrás,31 a verdade é que os meros dados cadastrais de
alguém junto a uma companhia telefônica ou a um órgão público não são cobertos

27
Recurso ordinário em habeas corpus n. 115983-RJ – STF – 2ª Turma – Rel. Min. Ricardo Lewandowski
– julgado em 6.abr.2013 – desprovido – votação unânime – DJe n. 172, 3.set.2013.
28
Mandado de segurança n. 23960-DF – STF – Pleno – Rel. Min. Maurício Corrêa – julgado em
20.set.2001 – segurança concedida – votação unânime – DJU, 16.nov.2001.
29
Recurso extraordinário n. 219780-PE – STF – 2ª Turma – Rel. Min. Carlos Velloso – julgado em
13.abr.1999 – não conhecido – votação unânime – DJU, 10.set.1999, p. 23 – RTJ n. 172, p. 302.
30
Recurso ordinário em habeas corpus n. 52209-RS – STJ – 5ª Turma – Rel. Min. Jorge Mussi – julgado
em 10.nov.2014 – desprovido – votação unânime – DJe, de 27.nov.2014.
31
Recurso ordinário em habeas corpus n. 8493-SP – STJ – 6ª Turma – Rel. Min. Luiz Vicente
Cernicchiaro – julgado em 20.mai.1999 – provido – votação unânime – DJU, 2.ago.1999, p. 224.
31

pelo sigilo constitucional.32


Também não configura quebra do sigilo bancário a troca de informações entre
instituições financeiras, para fins cadastrais, o fornecimento de informações
constantes de cadastro de emitentes de cheques sem provisão de fundos e de
devedores inadimplentes, a entidades de proteção ao crédito, bem como a
comunicação, às autoridades competentes, da prática de ilícitos penais ou
administrativos, abrangendo o fornecimento de informações sobre operações que
envolvam recursos provenientes de qualquer prática criminosa (LC 105, art. 1º)
Não se deve confundir a quebra do sigilo das comunicações telefônicas com a
interceptação das comunicações telefônicas.33 Em ambos os casos está claro que há
quebra de sigilo. Naquele caso, porém, a autoridade busca informações sobre
determinadas comunicações depois que elas ocorreram, a fim de saber quais foram
os interlocutores, o local onde se encontravam na oportunidade, o horário das
comunicações e sua duração, bem como outros dados relevantes. Nesse caso, o
destinatário da ordem da autoridade judiciária é a companhia telefônica, para que
informe quais e quando foram os contatos telefônicos efetuados pelo imputado ou
por pessoas ligadas ao crime, ou até mesmo pela vítima, em um determinado
período de tempo.
Na interceptação, a ser vista adiante, a autoridade policial consegue ouvir as
comunicações enquanto elas acontecem, gravando-as para futura utilização em
juízo.

5.5. Ação controlada

Uma das diligências policiais criadas em face do crime organizado é a chamada


ação controlada. Consiste ela em retardar a intervenção policial relativa a uma certa
atividade criminosa, com vistas a concretizá-la em um momento posterior, que

32
Embargos de declaração no recurso ordinário em mandado de segurança n. 25375-PA – STJ – 5ª Turma
– Rel. Min. Felix Fischer – julgados em 18.nov.2008 – acolhidos parcialmente – votação unânime – DJe
2.fev.2009.
33
Mandado de segurança n. 24817-DF – STF – Pleno – Rel. Min. Celso de Mello – julgado em 3.fev.2005
– segurança indeferida – votação unânime – DJe 208, de 6.nov.2009.
32

permita a obtenção de mais provas, de provas melhores, ou a prisão de mais


criminosos. A autoridade policial deve retardar a intervenção e, enquanto não age,
observar e acompanhar a atividade criminosa. A regra vale tanto para a autoridade
policial stricto sensu, quanto para a autoridade administrativa que constatar, no
âmbito de suas atividades fiscalizatórias, a prática de crime por organização
criminosa (Lei 12850, art. 8º, caput).
Se estiver diante de crime provavelmente praticado por organização criminosa
e for conveniente atrasar a intervenção, a autoridade policial deverá previamente
comunicar sua intenção ao juiz competente que, se for o caso, estabelecerá limites
a essa ação e a comunicará ao Ministério Público (Lei 12850, art. 8º, § 1º). A lei
que dispõe sobre os crimes de “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores
prevê expressamente a possibilidade de suspensão de cumprimento de ordens de
prisão e de medidas assecuratórias de bens, direitos ou valores quando sua
execução imediata puder comprometer as investigações (Lei 9613, art. 4º-B).
A lei permitiu que a ação controlada seja cercada de todo o sigilo necessário à
eficácia da intervenção, restringindo a publicidade ao juiz, ao Ministério Público e
ao delegado de Polícia e permitindo a omissão de informações que possam indicar
a operação a ser efetuada (Lei 12850, art. 8º, §§ 2º e 3º).
Por fim, caso a ação controlada envolva o acompanhamento de atividade
criminosa a ser desenvolvida no exterior, a autoridade policial deverá obter a
colaboração das autoridades dos países que figurarem como provável caminho ou
destino do ou dos suspeitos da prática da infração penal (Lei 12850, art. 9º).
Foi o FBI uma das primeiras instituições policiais a utilizar-se da ação
controlada. E foi também uma diligência dessa natureza, por parte do FBI,
envolvendo um criminoso famoso, a primeira a ter sua constitucionalidade testada
perante a Suprema Corte estadunidense, ainda que de maneira indireta. O caso
Hoffa v. United States, 385 U.S. 293 (1966) envolveu o famoso e poderoso líder
do sindicato dos caminhoneiros dos EUA James Riddle Hoffa, ou simplesmente
Jimmy Hoffa. Conforme as investigações levadas a efeito pelo FBI, esse famoso
sindicalista teria ligações e negócios ilícitos com membros de organizações
criminosas estadunidenses. O FBI investigou-o durante meses. Quando já tinha
elementos para prendê-lo, preferiu acompanhar suas atividades criminosas e
33

introduzir um informante, a fim de obter mais provas e prender mais pessoas. Esse
informante acabaria sendo uma das principais testemunhas para incriminar Hoffa,
dessa vez por tentativa de suborno de jurados num dos diversos processos a que
respondeu. Depois de preso e condenado por crimes cometidos quando já era
observado pela polícia, Hoffa contestou a condenação. Entre outras coisas,
sustentou que os agentes do FBI não poderiam ter esperado para prendê-lo; que
deveriam tê-lo feito na primeira oportunidade em que tiveram uma causa provável.
O caso chegou à Suprema Corte estadunidense para a análise das provas
testemunhais produzidas pelo informante e pelo próprio Hoffa, já que muita coisa
foi oriunda de gravações produzidas por esse informante. Por ocasião da decisão,
a Suprema Corte afirmou que o “governo não era obrigado a prender Hoffa
quando ele pela primeira vez teve uma causa provável para fazê-lo”,34 reconhecendo
a legitimidade constitucional da ação controlada. O juiz associado POTTER
STEWART, que escreveu a decisão majoritária tomada pela Suprema Corte, chegou
a afirmar, com indisfarçável ironia, que “não existe um direito constitucional a ser
preso”.35

5.6. Colaboração premiada

Outrora chamada de delação premiada, um importante instrumento de


investigação é a chamada colaboração premiada. Em linhas gerais, ela consiste no
oferecimento de vantagens ao imputado que prestar auxílio concreto a uma
investigação criminal ou a um processo penal condenatório.
Essa ideia de que os suspeitos, indiciados, testemunhas ou ofendidos que
porventura tenham voluntariamente prestado colaboração efetiva para com uma
investigação policial criminal ou um processo penal condenatório devam receber
um tratamento diferenciado remonta a 1986, especificamente à lei dos crimes do
colarinho branco. Conforme essa lei, nos crimes financeiros cometidos por
membros organizados em quadrilha ou em coautoria, se o coautor ou partícipe,
através de confissão espontânea, revelar à autoridade policial ou judicial toda a

34
Hoffa v. United States, 385 U.S. 293, 294 (1966).
35
Hoffa v. United States, 385 U.S. 293, 310 (1966).
34

trama delituosa, terá sua pena reduzida de um a dois terços (Lei 7492, art. 25, §
2º).
Disposição semelhante foi repetida pela lei de 1990 que definiu uma série de
crimes econômicos. Nesse diploma ficou definido que, nos crimes cometidos nele
previstos e que houvessem sido cometidos por quadrilha ou em coautoria, o
coautor ou partícipe que espontaneamente revelasse à autoridade policial ou
judicial a trama delituosa teria sua pena reduzida de um a dois terços (Lei 8137, art.
16, parágrafo único).
A vantagem foi reiterada pela lei que criou o programa de proteção a vítimas e
testemunhas ameaçadas. Essa lei previu, pela primeira vez no Brasil, a possibilidade
de dar ao réu colaborador o perdão judicial, com a consequente extinção da
punibilidade (CP, arts. 107, IX e 120) ao imputado que tenha colaborado,
voluntaria e eficazmente, com a investigação e o processo criminal, desde que dessa
colaboração resulte a identificação dos demais coautores ou partícipes da ação
criminosa (Lei 9807, art. 13, I), a localização da vítima com a sua integridade física
preservada (Lei 9807, art. 13, II) e a recuperação total ou parcial do produto do
crime (Lei 9807, art. 13, III).
Nos dias atuais, a colaboração premiada consiste no auxílio, voluntário e efetivo,
prestado pelo imputado em favor da investigação ou do processo penal
condenatório, desde que desse auxílio tenha resultado um ou mais dos seguintes
objetivos: a identificação dos demais coautores e partícipes da organização
criminosa e das infrações penais por eles praticadas (Lei 12850, art. 4º, I), a
revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa
(Lei 12850, art. 4º, II) a prevenção de futuras infrações penais decorrentes das
atividades da organização criminosa (Lei 12850, art. 4º, III), a recuperação total ou
parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização
criminosa (Lei 12850, art. 4º, IV) e a localização de eventual vítima com a sua
integridade física preservada (Lei 12850, art. 4º, V). Em retribuição a esse auxílio e
consideradas a personalidade do colaborador, a natureza, as circunstâncias, a
gravidade e a repercussão social do crime e a eficácia da colaboração (Lei 12850,
art. 4º, § 1º), será concedido ao réu colaborador o perdão judicial (CP, arts. 107,
IX e 120), a redução da pena privativa de liberdade em até dois terços ou sua
35

substituição por pena restritiva de direitos (CP, art. 43).


O Ministério Público pode até mesmo deixar de oferecer denúncia contra o
colaborador em duas hipóteses: se ele não for o líder da organização criminosa (Lei
12850, art. 4º, I) e se for o primeiro a prestar efetiva colaboração (Lei 12850, art.
4º, II).
Em qualquer caso, da colaboração premiada deverá advir um ou mais dos
seguintes resultados: a identificação dos demais coautores e partícipes da
organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas (Lei 12850, art. 4º,
I); a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização
criminosa (Lei 12850, art. 4º, II); a prevenção de infrações penais decorrentes das
atividades da organização criminosa (Lei 12850, art. 4º, III); a recuperação total ou
parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização
criminosa (Lei 12850, art. 4º, IV); a localização de eventual vítima com a sua
integridade física preservada (Lei 12850, art. 4º, V). É o que se denomina de
“paradigma da efetividade e corroboração”, pois a construção dos dispositivos
legais dá a entender que essa escolha de pena depende principalmente dos efeitos
da colaboração no esclarecimento do crime e no desmantelamento da atividade
criminosa organizada. Tanto é verdade que se o perdão judicial não tiver sido
objeto da proposta inicial de colaboração poderá ser incluído a posteriori, se ficar
claro que a colaboração foi mais relevante do que havia sido inicialmente previsto
(Lei 12850, art. 4º, § 2º).
O chamado acordo de colaboração premiada será formalizado entre o delegado
de Polícia, o investigado e seu defensor, com a manifestação do Ministério Público,
bem como pelo Ministério Público, o investigado ou acusado e seu defensor. Em
qualquer um dos casos, será discutido e formalizado sem a participação do juiz (Lei
12850, art. 4º, § 6º), que poderá indeferir sua homologação se faltar alguns dos
requisitos legais ou adequá-la às circunstâncias do caso concreto (Lei 12850, art. 4º,
§ 8º). O juiz deverá observar diversos direitos do colaborador, entre eles o de
usufruir das medidas de proteção previstas na legislação específica (Lei 12850, art.
4º, I), o deter respeitado o sigilo a respeito de suas informações pessoais, inclusive
em relação à imprensa (Lei 12850, art. 5º, II e V), o de ser conduzido em juízo
separadamente dos demais coautores e partícipes (Lei 12850, art. 5º, III), o de
36

participar das audiência sem contato visual com os demais acusados (Lei 12850,
art. 5º, IV), o de cumprir pena em estabelecimento penal diverso dos demais
acusados ou condenados (Lei 12850, art. 5º, VI) e, talvez o principal deles, o de ser
acompanhado por seu advogado em todos os atos de negociação, confirmação e
execução da colaboração, o colaborador deverá estar assistido por defensor (Lei
12850, art. 4º, § 15).
A fim de reunir mais elementos sobre a viabilidade de homologar o acordo, o
juiz poderá ouvir o colaborador na presença apenas de seu defensor advogado (Lei
12850, art. 4º, § 7º).
Em uma clara aplicação do princípio geral de Direito que proíbe alguém de se
beneficiar da própria torpeza, a lei prevê que se as partes se retratarem da proposta
de acordo, as eventuais provas autoincriminatórias produzidas pelo colaborador
não poderão ser utilizadas exclusivamente em seu desfavor (Lei 12850, art. 4º, §
10).
O termo de acordo deverá conter, por escrito, o relato da colaboração e seus
possíveis resultados (Lei 12850, art. 6º, I), as condições da proposta do Ministério
Público ou do delegado de Polícia (Lei 12850, art. 6º, II), a declaração de aceitação
do colaborador e de seu defensor (Lei 12850, art. 6º, III) e as assinaturas das partes
envolvidas (Lei 12850, art. 6º, IV) e, finalmente, a especificação das medidas de
proteção ao colaborador e à sua família, quando necessário (Lei 12850, art. 6º, V).
A tramitação do pedido de homologação do acordo é inteiramente sigilosa e esse
sigilo somente será levantado depois do recebimento da denúncia (Lei 12850, art.
7º). A lei prevê, antes disso, inclusive, grande dose de sigilo em relação ao próprio
defensor do colaborador, na medida em que não terá acesso aos autos, nem às
diligências em andamento e só terá acesso aos elementos de convicção relativos ao
acordo mediante autorização judicial (Lei 12850, art. 7º, § 2º). O STF, analisando
caso sob o paradigma de legislação anterior, atenuou esse sigilo.36

36
Habeas corpus n. 90688-PR – STF – 1ª Turma – Rel. Min. Ricardo Lewandowski – julgado em
12.fev.2008 – conhecido parcialmente e deferido parcialmente – votação unânime quanto ao
conhecimento parcial da impetração e majoritária quanto ao seu deferimento particial, vencidos o ministro
Marco Aurélio, que a concedia em maior extensão e o ministro Menezes direito, que a indeferia – DJe
74, de 25.abr.2008 – RTJ 205/263 – Ementário 2316/756 – LexSTF n. 358 (2008), p. 389-414.
37

O instituto da colaboração premiada contém algumas características bastante


polêmicas, entre elas a que determina que o colaborador, “em todos os
depoimentos que prestar”, renunciará ao direito ao silêncio e estará sujeito ao
“compromisso legal de dizer a verdade” (Lei 12850, art. 4º, § 14). Há vários
problemas nesse dispositivo. O mais evidente deles, porém, não parece o mais
grave. A renúncia ao direito ao silêncio, desde que conectada com o conteúdo da
colaboração, é uma óbvia consequência do acordo. Seria um absurdo que o
colaborador, uma vez que aceitou os benefícios da colaboração, invocasse o direito
ao silêncio. Tal conduta, de sua parte, inviabilizaria o instituto como um todo.
Os dois outros problemas são, em uma primeira visada, graves. O primeiro é o
dispositivo da lei que estende a renúncia a todos os depoimentos que o colaborador
prestar. Será que não haverá alguma situação em que invocar o direito ao silêncio
poderá ser constitucionalmente legítimo? A disposição legal parece por demais
draconiana. A tendência é deixar a avaliação dessa possibilidade ao caso concreto.
O outro problema é a utilização de uma expressão com conteúdo semântico
muito preciso e conhecido dos processualistas penais desde 1941, e que regula uma
situação muito diversa. Segundo a lei, o colaborador presta “compromisso legal de
dizer a verdade”. Essa expressão refere-se, tradicionalmente, ao compromisso
prestado pelas testemunhas, por ocasião de seus depoimentos em juízo (CPP, art.
203). A consequência desse compromisso parece clara: sujeitar o depoente às
penas do falso testemunho (CP, art. 342). Pergunta-se: o réu colaborador que fizer
uma afirmação falsa, negar ou calar a verdade, estará sujeito às penas do falso
testemunho? Seja qual for a pergunta que as partes – inclusive as partes que foram
atingidas negativamente pela colaboração – lhe fizerem? Soa muito estranho que
isso possa se dar, e somente a experiência com a lei permitirá um juízo mais sereno
a respeito. Uma coisa parece clara: se o réu colaborador estiver sendo processado
qualquer declaração falsa que tiver feito será resolvida no âmbito do acordo
celebrado e assinado com a Polícia ou com o Ministério Público e homologado
pelo juiz. Se o réu colaborador não tiver sido denunciado (Lei 12850, art.4º, § 4º)
e tiver sido arrolado como testemunha e prestar o compromisso legal – não há
porque não fazê-lo – parece óbvio que estará sujeito às penas do crime de falso
testemunho.
38

A lei deixa claro que as declarações do colaborador não poderão fundamentar


uma sentença (Lei 12850, art. 4º, § 16). São apenas mais uma prova a ser cotejada
com as demais. Em todo o caso, levará em consideração, para aplicar os benefícios
previstos no acordo, sua eficácia (Lei 12850, art. 4º, § 11).

5.7. Interceptação das comunicações telefônicas

Outro instrumento muito válido e eficaz na moderna investigação criminal é a


interceptação das comunicações telefônicas, também denominada de escuta
telefônica. Como essas interceptações se verificavam inicialmente através de um
grampo metálico, que se prendia nas interconexões telefônicas, o termo – grampo
– embora à margem da lei, continua em uso.
No princípio, quando a Constituição não tratava da matéria e não havia lei
regulando a diligência, muito se discutiu a respeito de sua legitimidade no Processo
Penal. Já naquela época, penalistas como HELENO CLÁUDIO FRAGOSO já
concordavam, em tese, com sua admissão como meio de prova no processo penal
condenatório.37
Hoje, com o advento da Lei 9296, que regulamenta o art. 5º, XII, da
Constituição da República, não se discute mais a admissibilidade, em tese, dessa
diligência. Além disso, trata-se de uma diligência investigatória indispensável. Isso
porque, nos dias atuais, a comunicação telefônica rivaliza com a comunicação face
a face e supera, de longe, a comunicação por correspondência ou por meios
telegráficos. Tanto quanto as pessoas em suas atividades lícitas, os criminosos usam
essas comunicações para agilizarem os próprios projetos ilícitos.
A diligência traduz-se na captação de uma comunicação telefônica, sem o
conhecimento dos seus participantes, bem como da gravação dessa comunicação,
para uso futuro, como prova, em processo penal condenatório.
Enquanto o sigilo da comunicação telefônica para finalidades lícitas, ainda que
moralmente indefensáveis, é garantido em termos absolutos, o mesmo não ocorre

37
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Jurisprudência criminal, 4ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1982, v. 1, n.
448, p. 518.
39

quando haja fundada suspeita do uso desses instrumentos para a prática de crime.
Por essa razão, essa diligência é constitucionalmente autorizada em caráter
excepcional, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para
fins de investigação criminal ou de instrução processual penal (Constituição, art. 5º,
XII).
Como se trata de um sigilo constitucionalmente garantido, ela só pode ser
determinada pela autoridade judiciária competente nas hipóteses previstas (Lei
9296, art. 3º). Não será admitida a interceptação quando não houverem indícios
razoáveis da autoria ou da participação em infração penal, quando não for
indispensável ou quando o crime investigado for punido, em grau máximo, com
pena de detenção (Lei 9296, art. 2º). Por tratar-se de um instrumento eficaz para a
investigação das atividades de organizações criminosas, é prevista como
instrumento de investigação nesses casos (Lei 12850, art. 3º, IV e V).
A medida poderá ser determinada de ofício pelo juiz competente para o
julgamento da futura ação penal, sob segredo de justiça (Lei 9296, art. 1º), em
resposta a um requerimento da autoridade policial ou do Ministério Público. Em
qualquer caso, o objeto da investigação deve ser descrito com clareza, bem como
devem ser indicados e qualificados os suspeitos, salvo se a impossibilidade de
fornecer esses dados for manifesta (Lei 9296, art. 2º, parágrafo único).
A autoridade que a requerer deverá demonstrar a necessidade da diligência,
com a indicação dos meios a serem empregados, isto é, deverá demonstrar também
estar apto a realizá-la (Lei 9296, art. 4º, caput). O requerimento deverá ser escrito;
todavia, em casos excepcionalíssimos, admitir-se-á que o faça oralmente (Lei 9296,
art. 4º, § 1º).
A lei dispõe que a interceptação pode ser determinada pelo juiz, de ofício (Lei
9296, art. 3º, caput), ou a requerimento da autoridade policial, durante a
investigação criminal (Lei 9296, art. 3º, I), ou a requerimento do Ministério
Público, durante a investigação e durante a fase instrutória do processo penal
condenatório (Lei 9296, art. 3º, II).
Há um prazo para a execução da interceptação; é de quinze dias, renováveis
por igual período, uma vez comprovada a indispensabilidade da prova (Lei 9296,
40

art. 5º). Não há limite, porém, para as renovações, desde que se observem os prazos
de quinze dias.38
Com a interceptação da comunicação telefônica a autoridade policial recolhe,
normalmente, vasto material fonográfico, que deve ser transcrito. Surge a questão
de definir quanto, do material gravado, deve ser transcrito pela autoridade. Muitos
entendem que a autoridade investigante deve transcrever todas as conversas,
mesmo aquelas irrelevantes. E, quanto às partes relevantes, consideram que devem
ser transcritas na integralidade, sem quaisquer cortes. A transcrição parcial dos
trechos relevantes poderia excluir partes que contextualizam outras partes, em
prejuízo do imputado. Outros já entendem que cabe à autoridade policial
transcrever aquelas partes que considerar relevantes, conservadas as gravações para
contestações por parte da defesa.
Quanto ao tema, o Supremo Tribunal Federal já decidiu essa questão nos dois
sentidos, isto é, concluiu que é necessária a transcrição completa das comunicações
telefônicas do imputado e que esse dever recai sobre a autoridade que solicitou e
realizou a interceptação.39 Também decidiu que não é necessária a transcrição
completa, mas apenas das partes que a autoridade considerar relevantes para a
investigação. Contudo, a fim de garantir o contraditório e a ampla defesa, a
autoridade deverá conservar as gravações para o caso da defesa considerar
relevantes outras partes e pretender transcrevê-las.40

38
Habeas corpus n. 83151-RS – STF – Pleno – Rel. Min. Nelson Jobim – julgado em 16.set.2004 – ordem
denegada – votação majoritária, vencido o Min. Marco Aurélio – DJU, de 4.mar.2005, p. 11 – RTJ n.
193, p. 609; Inquérito n. 2725-SP – STF – 2ª Turma – Rel. Min. Teori Zavascki – julgado em 8.set.2015
– denúncia recebida – votação unânime – DJe 195, de 30.set.2015.
39
Agravo regimental no recurso ordinário em habeas corpus n. 122812-RJ – STF – 1ª Turma – Rel. Min.
Roberto Barroso – julgado em 9.jun.2015 – desprovido – votação majoritária, vencido o Min. Marco
Aurélio – DJe 128, de 1º.jul.2015.
40
Medida cautelar no habeas corpus n. 91207-RJ – STF – Pleno – Rel. p/ o acórdão Min. Cármen Lúcia
– julgado em 11.jun.2007 – liminar indeferida – votação majoritária, vencido o Min. Marco Aurélio – DJe
106, de 1º.set.2007; Agravo regimental no recurso ordinário em habeas corpus n. 118621-ES – STF – 1ª
Turma – Rel. Min. Roberto Barroso – julgado em 4.ago.2015 – desprovido – votação majoritária, vencido
o Min. Marco Aurélio – DJe 171, de 1º.set.2015; Inquérito n. 2725-SP – STF – 2ª Turma – Rel. Min.
Teori Zavascki – julgado em 8.set.2015 – denúncia recebida – votação unânime – DJe 195, de 30.set.2015.
41

Não há que se confundir a interceptação das comunicações telefônicas com a


gravação da conversa por um dos interlocutores, sem o conhecimento do outro. O
Supremo Tribunal Federal decidiu tratar-se de registro lícito, desde que o
interlocutor que desconhece a gravação esteja investindo criminosamente contra
aquele.41

5.8. Escuta ambiental

Está prevista na legislação e consiste na captação ambiental de sinais


eletromagnéticos, ópticos ou acústicos (Lei 12850, art. 3º, II).
O Supremo Tribunal Federal já decidiu tratar-se de um meio de prova
legalmente admitido para a investigação dos crimes provavelmente praticados por
organização criminosa e que pode ser circunstanciadamente autorizado pelo juiz e
válida, portanto, a prova produzida a partir dela.42
O Supremo Tribunal Federal enfrentou a questão da escuta ambiental realizada
com o conhecimento de um dos interlocutores e sem o do outro. Decidiu pela
validade da prova produzida a partir dessa diligência.43
Em relação à escuta ambiental armada por um dos interlocutores, sem o
conhecimento dos demais, vale a mesma regra estabelecida pelo Supremo Tribunal

41
Habeas corpus n. 74678 – STF – 1ª Turma – Rel. Min. Moreira Alves – julgado em 10.jun.1997 –
ordem indeferida – votação unânime – DJU, 15.ago.1997, p. 37036; Habeas corpus n. 75261-MG – STF
– 1ª Turma – Rel. Min. Octavio Gallotti – julgado em 24.jun.1997 – ordem parcialmente deferida –
votação unânime – DJU, 22.ago.1997, p. 38764; Habeas corpus n. 75338-RJ – STF – Pleno – Rel. Min.
Nelson Jobim – julgado em 11.mar.1998 –ordem indeferida – votação majoritária, vencidos os ministros
Marco Aurélio e Celso de Mello – DJU, 25.set.1998, p. 11.
42
Inquérito n. 2424-RJ – STF – Pleno – Rel. Min. Cezar Peluso – julgado em 26.nov.2008 – rejeitadas as
preliminares, negado provimento ao agravo regimental, recebida a denúncia quanto a todos os demais
denunciados, exceto quanto ao crime previsto no art. 288 do CP, quanto a um dos denunciados – votação
majoritária – DJe 55, de 26.mar.2010.
43
Repercussão geral na questão de ordem no recurso extraordinário n. 583937-RJ – STF – Pleno – Rel.
Min. Cezar Peluso – julgado em 19.nov.2009 – reconhecida a existência da repercussão geral, reafirmada
a admissibilidade da gravação e anulado o processo desde o indeferimento da prova admissível e ora
admitida – votação majoritária, vencido o Min. Marco Aurélio – DJe 55, de 26.mar.2010.
42

Federal quanto ao registro de conversas telefônicas por um interlocutor sem o


conhecimento do outro. É lícita como instrumento de legítima defesa, isto é, desde
que aquele esteja sendo vítima de crime pelos demais ou por algum dos demais
interlocutores.44
Entretanto, se a conversa se dá entre o indiciado e policiais, com ares de
informalidade, mas na verdade se trata de um interrogatório, pois os policiais
sabem da gravação e o indiciado não, e eles o convidam a admitir, como se fosse
algo para ser revelado entre amigos, a gravação é ilícita. O Supremo Tribunal
Federal decidiu tratar-se, no caso, de verdadeiro interrogatório sub-reptício, “o qual
– além de realizar-se sem as formalidades legais do interrogatório no inquérito
policial (CPP, art. 6º, V) –, se faz sem que o indiciado seja advertido do seu direito
ao silêncio”. Por essa razão, todas as eventuais admissões de culpa por parte do
criminoso são consideradas prova ilícita e também são ilícitas, por derivação, todas
as provas eventualmente obtidas a partir dessas “confissões”.45
Na Suprema Corte dos EUA há inúmeras decisões nesse mesmo sentido,
anulando provas obtidas a partir de conversas informais de presos com policiais,
de presos com outros presos informantes de policiais ou mesmo de presos com
médicos enviados pela polícia para obter confissões de maneira sub-reptícia.46

5.9. Identificação criminal

Na sistemática original do Código de Processo Penal, a identificação criminal


do indiciado pela prática de uma infração penal era uma providência automática
(CPP, art. 5º, VIII). Foi a regra desde o Estado Novo até os tempos da
redemocratização, ocorrida nos anos 1980, passando pelo período de ditadura
militar. Foi também o meio pelo qual muitos abusos foram cometidos, pois a

44
Recurso extraordinário n. 212081-RO – STF – 1ª Turma – Rel. Min. Octavio Gallotti – julgado em
5.dez.1997 – não conhecido – votação unânime – DJU, 27.mar.1998, p. 23.
45
Habeas corpus n. 80949 – STF – 1ª Turma – Rel. Min. Sepúlveda Pertence – julgado em 30.out.2001
– ordem parcialmente deferida – votação unânime – DJU, 14.dez.2001, p. 26 – RTJ n. 180, p. 1001.
46
Leyra v. Denno, 347 U.S. 556 (1954); Massiah v. United States, 377 U.S. 201 (1964); McCleskey v.
Zant, 499 U.S.467 (1991).
43

experiência revela que a identificação criminal causa inúmeros constrangimentos


para o identificado. Com isso passou a ser instrumento de constrangimento moral,
bem como, quiçá, de corrupção policial. Por tal razão, foi objeto de preocupações
do constituinte de 1988, que criou regra constitucional no sentido de que o
indiciado que possuir identificação civil não será identificado criminalmente, salvo
nas hipóteses previstas em lei (Constituição, art. 5º, LVIII).
A Lei 12037 regulamenta esse dispositivo constitucional. E coloca a
identificação criminal como uma verdadeira diligência investigatória policial. Passa
a ser um instrumento a disposição da autoridade policial destinado a determinar
com exatidão a identidade e os caracteres distintivos do indiciado. Pode ser
utilizado quando o documento de identificação apresentado pelo indiciado
apresentar rasura ou indícios de falsificação (Lei 12037, art. 3º, I), quando for
insuficiente para identificá-lo cabalmente (Lei 12037, art. 3º, II), quando o
indiciado apresentar documentos de identidade distintos e conflitantes entre si (Lei
12037, art. 3º, III), quando no registro policial do indiciado constarem outros
nomes ou outras qualificações (Lei 12037, art. 3º, V), quando o estado de
conservação do documento apresentado, o tempo muito distante em que tenha
sido expedido ou a localidade em que tenha sido expedido impossibilitem a
completa identificação dos caracteres essenciais do indiciado (Lei 12037, art. 3º,
VI). A lei ainda prevê a identificação criminal quando, por outro motivo, seja
essencial às investigações policiais. Nesse caso, será ela determinada pelo juiz, de
ofício ou mediante representação da autoridade policial, do Ministério Público ou
da defesa do indiciado (Lei 12037, art. 3º, IV).
Sendo ela uma diligência policial, e sendo certo que o juiz não participa das
investigações, de estranhar que o juiz possa determiná-la de ofício. Melhor seria
que a lei não tivesse previsto essa hipótese, e só previsse a decisão judicial pela
identificação criminal como resultado de uma provocação seja da autoridade
policial, seja do Ministério Público ou seja da própria defesa, que pode ter interesse
na diligência, até como forma de esclarecer uma determinada situação.
44

5.10. Infiltração de agentes

Outra ferramenta de investigação criminal é a chamada infiltração de agentes.


Ocorre quando uma autoridade policial se faz passar por alguém interessado em
cometer crimes e, dessa maneira, é aceito no seio de uma organização criminosa,
onde passa a atuar como membro dessa mesma organização, inclusive agindo
ilicitamente para demonstrar sua fidelidade aos demais, tudo com o objetivo de
amealhar provas contra seus integrantes.
Essa modalidade de investigação é prevista na legislação, que não especifica em
que consistirá a atividade desenvolvida pelo agente infiltrado, a qual dependerá das
circunstâncias específicas de cada organização criminosa. O que a lei estabelece é
que a infiltração só será autorizada se houver manifestação técnica do delegado de
Polícia, no caso de ter sido requerida ao juiz pelo Ministério Público, ou se a
diligência for solicitada pela autoridade policial. Outrossim, a autorização judicial
sigilosa deverá ser circunstanciada e motivada, contendo os limites de atuação do
agente infiltrado (Lei 12850, art. 10, caput).
A lei dá a entender que se trata de uma diligência policial residual, isto é,
somente deve ser solicitada, autorizada e realizada se a mesma prova não puder ser
produzida por outros meios.
Essa cautela é compreensível, pois a infiltração de agentes coloca problemas
muito graves e particulares. O primeiro deles consiste na possibilidade – ou até
mesmo na necessidade – do agente policial, uma vez aceito no seio de uma
organização criminosa, praticar crimes como se fosse um dos seus legítimos
integrantes. É até possível imaginar que, antes de nela ingressar, mas para ser nela
aceito, o agente policial tenha de praticar alguma infração penal, até como forma
de iludir os demais criminosos sobre a firmeza e a seriedade de suas intenções.
A lei brasileira, nesse caso, autoriza o agente policial a praticar crimes coerentes
com a finalidade da investigação e a ela proporcionais. Caso o agente policial
pratique fatos criminosos coerentes com essa finalidade e se for inexigível conduta
diversa para manter o disfarce (ou, a fortiori, para manter a própria vida), não será
por eles punível (Lei 12850, art. 13, parágrafo único). Se praticar fatos adequados
à investigação criminal mas se houver com excesso, responderá por esses excessos
45

(Lei 12850, art. 13, caput). Se praticar crimes desconexos com a investigação,
responderá normalmente por esses fatos.
Embora o trabalho do agente policial seja parte de suas atribuições normais,
como qualquer outra investigação, a lei reconhece que há certas particularidades.
Afinal, trata-se de um agente policial que engana, por períodos de tempo longos ou
relativamente longos, membros de uma organização criminosa. Não é preciso
sublinhar o perigo existente para a vida ou para a integridade corporal desse
indivíduo.
Daí que a lei lhe dá o direito de recusar ou de fazer cessar a infiltração, sem
mesmo apresentar motivo (Lei 12850, art. 14, I), de ter sua identidade alterada (Lei
12850, art. 14, II, primeira parte), de usufruir das medidas de proteção a
testemunhas (Lei 12850, art. 14, II, segunda parte), de ter seu nome, sua
qualificação, sua imagem, sua voz e demais informações pessoais preservadas
durante a investigação e o consequente processo penal condenatório, salvo se o juiz
decidir em contrário (Lei 12850, art. 14, III) e, finalmente, não ter sua identidade
revelada, nem ser fotografado ou filmado pelos meios de comunicação, sem sua
prévia autorização por escrito (Lei 12850, art. 14, IV).

5.11. Reprodução simulada dos fatos

A experiência demonstra que muitos dos fatos criminosos que chegam ao


conhecimento das autoridades envolvem uma cena criminosa, mais ou menos rica
em detalhes. Nessa cena tanto o criminoso quanto a vítima e as testemunhas
tiveram seu quinhão de envolvimento. Além disso, cada qual viu a cena de que
participou a partir de um ângulo particular. Dos diversos ângulos nem sempre
resulta uma mesma e coerente estória, isso mesmo considerando que todos relatem
o que viram com absoluta sinceridade.
Daí a utilidade de realizar reprodução simulada dos fatos (CPP, art. 7º).

6. Arquivamento e desarquivamento da investigação criminal

O tema do arquivamento e desarquivamento de qualquer procedimento


46

investigatório criminal é conexo ao da ação penal, especialmente ao da ação penal


pública e, portanto, merece uma consideração, ainda que seja no final.
A respeito já escrevi:
O exame das providências processuais destinadas ao controle da abstinência da ação
penal leva à conclusão de que o destino do inquérito policial que não dê base a um
processo penal condenatório não é definido por um esquema clássico de requerimento-
indeferimento-recurso, como o que ocorre no caso da ação penal julgada improcedente.
Em outras palavras: quando o órgão do Ministério Público postula o arquivamento do
inquérito policial não faz, no rigor da palavra, um requerimento. Nem o Juiz, que atende
à postulação, defere um requerimento.
A essa conclusão se chega examinando-se o que ocorre quando o Juiz não entende
como o órgão do Ministério Público e resolve não arquivar o inquérito policial.
Determina o art. 28 do Código de Processo Penal que, nesse caso, o Juiz “fará remessa
do inquérito ou peças de informação ao procurador-geral”.
Percebe-se nitidamente que o mecanismo é completamente diverso do que ocorre no
caso do requerimento-indeferimento-recurso já visto. Quando o arquivamento do
inquérito policial haja sido postulado e negado pelo Juiz, o Ministério Público não
recorre: é o Juiz que providencia o reexame da hipótese, no caso, pelo Procurador-
Geral. Logo, em conclusão, não há requerimento do órgão do Ministério Público, nem
há decisão jurisdicional, com plena cognição. Em verdade, há, por parte do órgão do
Ministério Público, promoção de arquivamento e, por parte do Juiz, mero controle das
razões apresentadas por parte daquele. Ou se se quiser, controle da legalidade da opção
de arquivamento. Não há, propriamente, decisão por parte do Juiz, na medida em que
a palavra final a respeito do arquivamento será dada no interior da instituição do
Ministério Público e não por órgão judiciário”.47

Quanto ao desarquivamento, trata-se de uma providência que só pode ser


tomada, diz o Supremo Tribunal Federal, através da Súmula 524, com novas
provas.
Em primeiro lugar, cabe perguntar se o desarquivamento é sempre possível,
surgidas ou obtidas novas provas, ou se tem ele o seu cabimento restrito. Autores
há que consideram que um arquivamento por atipicidade da conduta transita em
julgado e estaria fora do alcance da Súmula 524.48

RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no Processo Penal brasileiro, Belo Horizonte:
47

Ed. Del Rey, 1998, p. 266.


48
Cf., nesse sentido, COUTINHO, Jacinto N. de Miranda. “A natureza cautelar da decisão de
arquivamento do inquérito policial”, em Revista de Processo, n. 70 (1993), p. 56. Contra: JARDIM,
47

A respeito, escrevi que essa ideia se choca com uma “realidade prática da qual
não se pode fugir. Por vezes, o arquivamento se dá pela falta de tipicidade aparente
— ou, ainda, pela atipicidade evidente — mas, posteriormente, surgem provas de
que o fato narrado no inquérito policial não ocorreu daquela maneira, mas de
outra, penalmente típica. Nesse caso, a rigor, o desarquivamento não pode ser
negado, até porque o fato investigado pelo inquérito, até o seu arquivamento, não
era precisamente o que ocorrera: as provas surgidas evidenciam a prática de uma
verdadeira infração penal. Conforme se vê, o arquivamento do inquérito policial
decidido por falta de tipicidade aparente do fato, pode ser modificado com outro
fundamento, até porque a falta de tipicidade aparente sempre se resolve com base
nas provas produzidas. Assim, no arquivamento decidido com esse fundamento,
somente se pode falar em coisa julgada material em termos, por assim dizer,
‘laboratoriais’, já que, na prática, o surgimento de provas substancialmente novas
poderá modificar, inclusive, essa decisão de arquivamento”.49
Além disso, a Súmula 524, que foi concebida como um instrumento de garantia
do cidadão contra eventuais arbítrios do Estado, não faz qualquer diferenciação: o
inquérito pode sempre ser desarquivado, desde que surgidas novas e substanciais
provas, independentemente dos fundamentos utilizados para arquivá-lo.

Afranio Silva. “Arquivamento e desarquivamento do inquérito policial”, em RDPenCrim, n. 35 (jan-


jun/1983), p. 76-89 e em Direito Processual Penal: estudos e pareceres, Rio de Janeiro: Ed. Forense,
1995, p. 245-266.
49
RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela..., p. 269-270.
48

7. Referências bibliográficas

ALMEIDA, Joaquim Canuto Mendes de. Processo Penal, ação e jurisdição, São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1975
COUTINHO, Jacinto N. de Miranda. “A natureza cautelar da decisão de
arquivamento do inquérito policial”, em Revista de Processo, n. 70 (1993)
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Jurisprudência criminal, 4ª ed., Rio de Janeiro:
Forense, 1982
JARDIM, Afranio Silva. “Arquivamento e desarquivamento do inquérito
policial”, em RDPenCrim, n. 35 (jan-jun/1983) e em Direito Processual Penal:
estudos e pareceres, Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1995
MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal, 2ª ed., Rio
de Janeiro-São Paulo: Ed. Forense, 1965, v. 1
PRADO, Luiz Regis. Comentários ao Código Penal, 4ª ed., São Paulo: Ed.
Revista dos Tribunais, 2007
RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no Processo Penal
brasileiro, Belo Horizonte: Ed. Del Rey, 1998

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