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A Culpa in Contrahendo na Alemanha, França e

Portugal

Beatriz Ramirez

Disciplina de Direito Comparado


Regência do Professor Doutor Guilherme Dray
Sob a orientação da Professora Catarina Granadeiro
Outubro de 2022
Eu, Beatriz Ramirez declaro que este trabalho foi feito exclusivamente por mim e que
qualquer opinião de outros autor(es) está devidamente assinalada em formato de citação.
Declaro igualmente que cumpri com todas as regras científicas de autoria.
Abreviaturas e Siglas

Ac. ……………………………………………………………………………… Acórdão

BFO ………………………………………………………………….… Boa Fé Objetiva

Cfr. ………………………………………………………………………… Confronte-se

CIC ………………………………………………………………. Culpa in Contrahendo

BGB …………………………………………………...……… Bürgerliches Gesetzbuch

BMJ …………………………...…………… Bulletin des ârrets de la Cour de Cassation

CC …………………………………………………………………………. Código Civil

EUA ……………………………………………….………. Estados Unidos da América

p. …………………………………………………………………………………. Página

STJ ……………………………………………………..…. Supremo Tribunal de Justiça

v.g. ……………………………………………………………………......…… Como tal


Índice sistemático

Introdução ……………………………………………………………………………… 5

Análise Comparativa ………………………………………...………………………… 5

I) Contextualização histórica da CIC …………………………………………….. 5


Sistemas romano-germânicos, de Civil Law ………….……………………….. 5
i. Alemanha como ponto de partida ……………………………………… 5
ii. Adoção pelo sistema francês, uma diferente conceção ………………... 8
iii. Adoção pelo nosso ordenamento jurídico ……………………….…… 11

II) Regime e aplicabilidade do instituto ……………………...………………….. 12


i. Alemanha …………………………………………………………..… 12
ii. França ………………………………………………...………………. 15
iii. Portugal ………………………………………………………………. 16

III) Jurisprudência dos respetivos ordenamentos ……………………………….. 18


i. Alemã ………………………………………………………………… 18
ii. Francesa ………………………………………………………………. 19
iii. Portuguesa …………………………………………………………….

Síntese e Grelha Comparativa ……………………..…………………………………. 21

Bibliografia ………………………………………………….………………………... 24
I (Introdução)

O presente trabalho incidirá sobre regimes de culpa in contrahendo, por consistir


no instituto que permite conferir relevância jurídica à atuação das partes na fase
preparatória dos contratos. A abordagem incidirá sobre o seu acolhimento, qualificação e
respetiva aplicabilidade. Sendo um instituto que abre questões, como a sua natureza
originária: extracontratual ou aquiliana, é uma temática que sem duvida alguma me intriga
e fascina. Irei cingir-me à comparação metódica do instituto ao sistema jurídico alemão,
francês e português não obstante alguma consideração por outros ordenamentos.

Pela relevância no âmbito do comércio internacional e pelo contraste dogmático-


cultural destes ordenamentos jurídicos, atendendo à diferenciação quase que nuclear dos
sistemas pertencentes à família romano-germânica, a finalidade deste trabalho é
considerar as diretrizes dominantes dos respetivos ordenamentos e as suas posteriores
disparidades.

Não obstante os sistemas da Common Law e os modelos híbridos ou mistos, que


acabam por ser influenciados pelos ditos “modelos puros”1, podemos afirmar que, no
quadro europeu, se destacam dois grandes modelos de responsabilidade civil: o modelo
gaulês, de inspiração napoleónica, e o modelo germânico, que deve os seus principais
traços característicos à obra de Jhering.

Dada a amplitude do instituto da CIC, irei cingir-me à sua essência nos 3 países
em questão, abordando posteriormente a jurisprudência e doutrina2, respetivamente.

II (Análise Comparativa)

i) Qual a origem e contextualização histórica do instituto nos sistemas jurídicos


francês, alemão e português?

1. Sistemas romano-germânicos, de Civil Law


1.1. Alemanha como ponto de partida do instituto da CIC

A óbvia influencia de Jhering neste instituto não pode ser ignorada, todavia, há que
fazer referência a um dos momentos pioneiros da codificação deste mesmo: Allgemeines

1
Miranda Barbosa, Mafalda, “A Reforma Francesa da Responsabilidade CIivl— Breves Considerações
em Sede Extracontratual”, 2018
2
Neste sentido, a temática da natureza da responsabilidade (aquiliana/extracontratual), será apenas
brevemente mencionada.
Bürgerliche Gesetzbuch3. Este código e o prussiano de 1794, foram as primeiras
codificações a estipular ditames referentes à responsabilidade pré-contratual. O ponto
crucial de ambos passou pela referência à seguinte norma: “fica obrigado à reparação dos
danos que causasse, aquele que enganasse outrem no processo negocial, através de
expressões obscuras ou atos simulados, bem como quem recorresse a temor injusto ou
dolo”4.

Dando agora, a devida relevância a Jhering, mais propriamente ao seu ensaio5…


Mesmo que a sua descoberta não tenha sido pioneira, foi sem dúvida alguma,
revolucionária. O Professor Mota Pinto faz inclusive um reparo a isto mesmo: “ainda que
não tenha sido uma verdadeira descoberta jurídica, o artigo que escreveu é
inequivocamente um dos escritos de doutrina jurídica mais célebres, fazendo-se algo
inteiramente desconhecido, pelo menos um marco notável”.

Jhering procurou justamente chamar à atenção da ciência do direito para a necessidade


de complementação juspositiva quanto à formação dos contratos. Inserido numa época
que valorizava a lógica e os conceitos, no âmbito da escola histórica e panteística, Jhering
começa por criticar a jurisprudência alemã, tentando fazer uma transição do
concetualismo para a justiça concreta. Antes da escrita do seu ensaio, o que relevava
pragmaticamente no Direito era a Teoria da Vontade6. Atendendo que até à publicação
deste artigo, o que vigorava no ordenamento jurídico alemão era efetivamente o Direito
das Pandectas – Direito Romano – como fonte de Direito, mais propriamente, de Direito
Civil. Numa fase primordial do BGB7, o código apenas fazia referência ao dever de agir
em conformidade com o instituto da boa fé, não existindo portanto uma cláusula geral
atendente à CIC.

Através de fontes romanas, constata que a tutela da parte prejudicada se daria por
uma ação contratual, pela qual poderia obter indemnização por interesse negativo.
Invocou fontes relacionadas com a venda de uma herança inexistente, tutelada pela

3
Código Civil Austríaco 1812; passados 40 anos de trabalho preparatório, o código civil, também
denominado de ABGB, entrou em vigor no país.
4
Vicente, Dário Moura, “Da Responsabilidade Pré-Contratual em Direito Internacional Privado”,
Almedina, 2001, p. 242.
5
Jhering, Rudolph Von, “Culpa in Contrahendo ou indemnização pelos contratos nulos ou não chegados
à perfeição”, 1861.
6
Segundo a qual eram inválidos os contratos nos quais a vontade fosse proferida em erro, o que impediria
a parte lesada de obter compensação pelos danos oriundos dessa situação.
7
Bürgerliches Gesetzbuch – Código Civil Alemão, em desenvolvimento desde 1881, entrando em vigor a
1 de janeiro de 1990.
digesta e pelas institutiones iustiniani. A culpa foi o elemento unificador da sua tese, a
partir de uma generalização das hipóteses enunciadas nas fontes 8. Onde mais tarde se
apercebeu que era um fundamento falível, já que existem casos onde a falta de culpa
resulta também em responsabilidade, gerando o dever de indemnizar. Reiterou que a
nulidade contratual não significa necessariamente a ausência de produção de quaisquer
efeitos, apenas dos principais da obrigação (como a entrega da coisa), permanecendo a
ação contratual para ressarcimento dos danos. Largando a resposta até então dominante
na Alemanha, as partes abandonariam o campo dos meros deveres negativos
extracontratuais9.

É contudo de frisar que Jhering afasta por completo o âmbito da responsabilidade


pelos danos patrimoniais positivos (mais propriamente dos danos emergentes e lucros
cessantes), já que isso mesmo implicaria uma tutela pré-contratual demasiado ampla no
domínio do comércio jurídico. Não obstante, o interesse positivo é incompatível com a
sua conceção já que a responsabilização pelo incumprimento das obrigações pré-
contratuais depreende a conclusão do contrato. A sua influência foi notável no direito
positivo, essencialmente em normas relativas à omissão de recusa expressa de proposta;
causa de invalidade do contrato e ocultação de vícios.10

No direito alemão a responsabilidade pré-contratual foi modelada pelo costume


jurisprudencial do inicio do seculo XX e não pelo BGB ou até mesmo pela lei ordinária.
A evolução da CIC deu inicio com uma decisão do Tribunal do Império, quando este
admitiu pela primeira vez a responsabilidade por parte de um proprietário de uma loja,
exatamente, por danos causados a uma propensa cliente, atendendo à violação de deveres
pré-contratuais de diligência e segurança, ainda que no momento da efetivação do dano
não houvesse ainda qualquer contrato. Existia antes uma relação jurídica preparatória de
um contrato de compra e venda, que conclusivamente foi considerada análoga à relação
contratual propriamente dita. O Tribunal acabou então por aplicar analogicamente um

8
Que demonstravam que era concedida ação de natureza contratual nos casos em que o comprador fosse
enganado (deceptus) quanto à característica prejudicial do bem que adquiria, mesmo que o contrato fosse
inválido na íntegra
9
Cordeiro, António Menezes, “Da Boa Fé no Direito Civil”, Almedina, 1997, p. 530
10
Tene, Omer, “Good Faith in Precontratual Negotiations: A Franco-German-American Perspective”,
2006
preceito da responsabilidade do devedor11. Dado o desenrolar da situação, é de frisar duas
ordens nucleares de fatores, como identifica o Professor Dário Moura Vicente12:

• O ponto de vista mais restritivo da responsabilidade extracontratual que triunfou


com o BGB (1900) e que recusa a indemnização ao abrigo das normas que
regulam esta modalidade de responsabilidade civil, de danos patrimoniais
provocados negligentemente, dos quais não resultem a lesão de certos bens
jurídicos (como a integridade física, ou mesmo a vida) ou de regras legais de
proteção; conceção esta que também exclui a responsabilidade objetiva do agente
por atos prejudiciais dos seus auxiliares sempre que não haja culpa in elegendo ou
in vigilando da sua parte;
• O ethos social que instiga o Direito alemão desde Bismarck e que se revelaria
particularmente favorável à ampliação do âmbito das situações geradoras de
responsabilidade obrigacional na jurisprudência tanto do Tribunal do Império,
como do Tribunal Federal Alemão.

A aceitação plena e generalizada do instituto acaba por só dar inicio na década de 20,
estabelecendo que as partes ficavam adstritas a uma relação de confiança e lealdade,
análoga à própria relação contratual, acarretando deveres de diligência, sendo estes
correspondentes ao tráfico normal13. É então conclusivo, que a evolução deste instituto
(sendo que extrai integralmente princípios alusivos à boa fé), influenciou posteriormente
outros ordenamentos de Civil Law, alargando assim o âmbito de deveres passíveis de
serem extraídos desse mesmo instituto.

1.2. O sistema jurídico Francês: uma diferente conceção

Ao contrário do caso alemão, a CIC teve uma evolução bastante díspar em França,
caracterizada por um apreciamento pouco favorável por parte da jurisprudência e da
doutrina14. Primeiramente por não existir tutela da responsabilidade pré-contratual e mais

11
Também conhecido como o “caso do linóleo”, este caso marca a primeira forma de aplicabilidade
jurisprudencial da responsabilidade pré-contratual. Onde uma potencial cliente, ao ser assistida por um
funcionário do estabelecimento, sofreu danos físicos resultantes da queda de um tapete de linóleo.
12
Vicente, Dário Moura, 2013, p. 56
13
Vicente, Dário Moura, “Da Responsabilidade Pré-Contratual em Direito Internacional Privado”,
Almedina, Coimbra, 2001, p. 244
14
Cordeiro, António Menezes, “Teoria Geral do Direito Civil II, Negócio Jurídico”, 2021, p. 332
propriamente pelo facto da jurisprudência francesa ter vindo desde sempre a rejeitar a
conceção do instituto (mais propriamente a convenção alemã)15.

A rejeição supramencionada pode ser explicada pelo vincado caráter extraído da


responsabilidade delitual que caracteriza o Direito Francês16, no que diz respeito ao
âmbito da responsabilidade extracontratual. A tutela mais abrangente acaba somente, por
permitir a incorporação da responsabilidade pelos danos ocorridos na conclusão do
contrato.17 Não significa isto que não se reconheça a existência de dever de indemnizar
fundado num delito pré-contratual. Contudo, das situações passíveis de originar a
obrigação de indemnizar elencadas na doutrina e jurisprudência germânicas, apenas se
reconduz àquele o rompimento unilateral e não fundamentado das negociações. A tutela
dada a estas situações é que diverge do cominado pelo direito alemão, uma vez que a
doutrina e a jurisprudência francesas entendem que sem contrato, não há como existir
responsabilidade contratual, sendo todas as demais situações abrangidas pela
responsabilidade delitual18.

Mais propriamente, no artigo 1382º Code Civil, encontra-se a sua disposição geral,
apoiada num conceito chave: a faute. Incluindo-se no âmbito de culpabilidade, não deve
ser confundida com “culpa” propriamente dita, consagrada no nosso ordenamento. Esta
noção pressupõe dois elementos (um objetivo e um subjetivo), a violação de um dever e
a imputabilidade, respetivamente19. É constatável assim, que no caso francês os elementos
subjetivos e objetivos consagram-se num único intuito. Dado isto, a responsabilidade civil
tem de ser atendida por via dos critérios introduzidos pela doutrina e jurisprudência,
designadamente pelo nexo de causalidade. O que faz com que muito dificilmente sejam
indemnizados todos os danos em causa, excluindo a indemnização pelo carácter indireto
e não certo do dano. Gerando assim, problemas relativos à indemnização ou a falta dela

15
Cordeiro, António Menezes, “Teoria Geral do Direito Civil II, Negócio Jurídico”, 2021, p. 689
16
Atendendo aos artigos 1240º e 1241º do Code Civil – “Qualquer atuação, que causa danos a outro,
obriga o culposo a repará-los”; “Todos são responsáveis pelos danos que causem, não só pela sua própria
atuação, mas também pela sua negligência ou imprudência”.
17
Fine, Edith e Kessler, Friedrich, “Culpa in contrahendo, Bargaining in Good Faith, and Freedom of
Contract: A Comparative Study”, Harvard Law Review, volume 77, número 3, 1964, p. 407
18
Referência ao Acórdão da Cassação de 20 de março de 1972, decisão essa que faz referencia ao dever
de indemnizar um propenso comprador, pela desistência de negociações feita por um vendedor
americano, no âmbito de abuso de direito.
19
O desenvolvimento da noção puramente objetiva do fait fautif acompanha o aumento das preocupações
com a posição da vítima e conduz quase a uma ideia de ilicitude – Cfr. Warembourg, Auque,
Irresponsabilité ou responsabilité civile de l’infans”, 332 e 337. No centro da controvérsia entre os
adeptos da faute subjetiva e da faute objetiva encontra-se o artigo 489º-2 do Code Civil, ligando-se a
problemática, diretamente, à possibilidade de um demente ser civilmente responsabilizado.
dos danos puramente patrimoniais são desconhecidos nesta latitude. Há contudo que fazer
uma célere distinção: Responsabilidade contratual→ dá-se apenas nos casos da conclusão
efetiva de um contrato, que tenham sido caracterizados por danos decorridos na fase pré
negocial; e a Responsabilidade extracontratual/aquiliana→ Dá-se nos casos em que haja
um rompimento súbito e brutal na fase das negociações (pourparlers).

É notável assim que o principio da liberdade contratual no âmbito da autonomia


privada prevalece, na medida em que a aceitação de danos pré-negociais é raríssima.20 O
relator francês no Congresso da International Academy of Comparative Law, em Bristol,
em 1998, afirmou mesmo, no que concerne aos danos puramente patrimoniais, que “ce
théme est particuliérement difficile à traiter ou meme concevoir, pour um juriste français,
car celuici, a priori, ne connait le probléme, ni meme la expression”. Se tal não implica
uma abertura desmedida à ressarcibilidade de certos danos, envolve, não obstante os
resultados prático-normativos a que se chegue, o reconhecimento da diversa conjugação
dogmática dos pressupostos delituais.21

Determinando assim que o eventual cruzamento de responsabilidades seja


esclarecido de diferente maneira daquela com que habitualmente nos deparamos, já que,
se ao nível da responsabilidade aquiliana cabe toda e qualquer violação de um direito ou
interesse, constata-se assim, que a responsabilidade contratual, configura um regime
especial que entra em confronto com o regime geral no qual a hipótese também cabe.
Logo, a querela resume-se a um concurso de normas, a resolver segundo os critérios
gerais. Neste aceção e mais uma vez dada a amplitude da cláusula delitual francesa, é
perdido o fundamento para uma tentativa de autonomização de uma terceira via de
responsabilidade civil.

Porém, a imputabilidade pode não coincidir exatamente com os contornos da


imputabilidade com que habitualmente nos deparamos. Na verdade, a consideração do
elemento subjetivo pode perfeitamente conduzir à ponderação da culpa do agente, aferida
em abstrato, pelo que se prescinde a imputabilidade no sentido do discernimento22. Não
será, contudo, esse o sentido com que Yvonne Lambert-Faivre a considera – “ L’évolution

20
Cfr. a célebre frase de Jean Carbonnier: “pas de contrat vaut mieux qu’un mauvais contrat”.
21
Miranda Barbosa, Mafalda, “A Reforma Francesa da Responsabilidade CIivl— Breves Considerações
em Sede Extracontratual”, 2018
22
Idem
de la responsabilité civile d’une dette de responsabilité à une créance d’indemnisation “,
Revue Trimestrielle de Droit Civil, année 1987, 2-3.

Aqui é notável que o conceito de faute demanda dois aspetos: a conduite fautive, que
pressupõe a comparação da conduta a um referente non fautive e a imputabilidade desse
comportamento ao responsável, entendida como a consciência suscetível de discernir o
fautif do non fautif.

1.3. A adoção pelo nosso ordenamento jurídico

No direito Português, a natureza deste instituto sempre suscitou grande controvérsia


doutrinária. Portugal, no âmbito da família romano-germânica, foi fortemente
influenciado pela doutrina de Jhering, o que pressupõe a sua génese romana.

Em Portugal, presa-se a primeira vez23 que o instituto foi mencionado por Guilherme
Moreira, na sua obra: Instituições do Direito Civil Português, de 1911, abordando assim
a conceção de Jhering. No ano em questão, vigorava o Código de Seabra, no qual não
havia qualquer tipo de disposições relativas à CIC. O jurista português veio a admiti-la
em determinados contratos nulos, mais propriamente nos casos de venda de coisa alheia
de má fé. Contudo, só com a conceção de José Tavares, é que a rutura injustificada das
negociações (não atendendo aos preceitos da boa fé), passaria a ter tutela por parte do
instituto24.

A adoção da CIC em Portugal não foi integralmente pacifica. Não obstante uma forte
corrente doutrinária que a elogiou, como foi o caso de Cunha Gonçalves e Belesa dos
Santos, existia contudo, uma corrente mais conservadora como Jaime de Gouveia25 que
vem afirmar que toda a doutrina da CIC seria arbitrária e sem fundamento pragmático. O
professor Menezes Cordeiro, em confronto com as primeiras conceções do instituto por
parte do jurista alemão, não delimita a CIC ao interesse negativo: “Já se pretendeu
delimitar o dever de indemnizar ao interesse negativo. Não vemos base para isso. A
mensagem legislativa foi a de cobrir todo o período anterior ao contrato: não o de operar
distinções.”.

Na sequencia do artigo de Jhering, alguma doutrina tem vindo a tentar limitar a


indemnização ao interesse negativo: o dano a considerar não se identificaria com o ganho

23
Segundo o Professor Menezes Cordeiro, onde o afirma na sua obra na p. 333.
24
Leitão, Luís Menezes, “Direito das Obrigações”, 2021 (13ª edição)
25
Gouveia, Jaime de, “Da Responsabilidade contratual”, 1932, p. 293/294
que derivaria do contrato (interesse positivo), mas apenas com as despesas e as perdas
provocadas pelas negociações feitas, ainda que alargado aos lucros cessantes, mercê
dessas mesmas negociações. Esta construção tem como subjacente a ideia de que, na CIC,
se violaria um hipotético “contrato pré-contratual”. A determinação do âmbito da
indemnização deve fazer-se de acordo com as regras próprias da causalidade normativa
e, em especial: perguntando quais os bens protegidos pela boa fé violada.

Tratando-se de confiança, é necessário constatar o alcance desta, ponderando o


seu investimento. Se por via da confiança suscitada, uma parte perdeu uma ocasião de
negócio, a indemnização pode cingir-se à oportunidade perdida (alguma doutrina
considera como lucro cessante do interesse negativo). Ou sendo mais realista, computar
simplesmente o beneficio que adviria da execução do negócio malogrado: o interesse
positivo. Na mesma linha de raciocínio, a violação de sigilo obriga a questionar pela
extensão do segredo violado. Ou seja, a tarefa da determinação da indemnização não deve
ser solucionada concetualmente com base na própria CIC, mas antes pela ponderação das
regras gerais da responsabilidade civil. Algo que por si só foi inovador em relação à
génese pioneira do instituto alemão. Acolhida no nosso ordenamento jurídico com o nome
de “culpa na formação dos contratos”, este instituto e as suas vicissitudes serão melhor
abordadas posteriormente.

ii) Qual o regime e a aplicabilidade da Culpa in Contrahendo nos respetivos


ordenamentos?

1. Alemanha

O direito delitual alemão baseia-se no dito Enumerationprinzip, atendendo que


somente os bens dispostos pelo artigo 823º I do BGB são objeto de tutela. A par desta
previsão, o 823º II BGB determina que a indemnização pode resultar da violação de
disposições legais de proteção de interesses alheios, e o 826º considera que a violação
dolosa dos bons costumes pode constituir fonte de responsabilidade civil. A conceção
pré-contratual encontra-se, aos dias de hoje, sedimentada na Alemanha, seja em sede
doutrinária, jurisprudencial ou legal, com a recente positivação da figura no artigo 311º,
II, do BGB/2002.26

26
Vicente, Dário Moura, “Direito Comparado – Obrigações”, 2013, p. 96
A complexidade dos casos apenas permite o estabelecimento das linhas nucleares e
princípios gerais do instituto. Dado isto, o artigo 311º, II, BGB apenas dispõe uma ideia
fundamental de responsabilidade pré-contratual por violações dos deveres de
consideração, os quais, por seu turno, têm base legal agora oficialmente no artigo 241º,
II, BGB. Atendendo a ratio do artigo 311º, II, BGB, surge uma relação obrigacional com
os deveres de consideração do 241º, II, BGB no âmbito do início das negociações, da
reparação do contrato ou de proximidades negociais. É de frisar ainda, em prol das
familiaridades negociais27.

Para além de alterar o conceção tradicional de relação obrigacional e de deveres


obrigacionais, o artigo 311º, III, BGB faz ainda referência ao âmbito da excecionalidade,
através do dogma da relatividade obrigacional, ao abonar o surgimento do vínculo
obrigacional especial entre a parte de um propenso contrato em relação ao terceiro, que
influencia expressamente a formação do contrato ou o desfecho das negociações,
atribuindo a este o dever da constância dos deveres decorrentes da boa-fé objetiva ( artigo
241º, II, BGB).

Estes deveres relevam no caso concreto. O legislador optou por não especificá-los,
nem no 311º, II, nem no 241º, II, BGB, onde está claramente consagrada a categoria geral
dos deveres de consideração, autónomos no que toca aos deveres de prestação (241º, I ,
BGB) e ao dever do neminem laedere, conhecido na ordenamento jurídico alemão sob a
denominação de “deveres de segurança do tráfico” ou Verkehsicherungspflichten (823º,
BGB)28. Segundo o artigo 241º, II, BGB, uma relação obrigacional pode, atendendo o seu
conteúdo, obrigar as partes – além dos deveres de prestação do 241º, I, BGB – a ter em
consideração os direitos, bens e interesses da contraparte. É de frisar que no 241º, II,
BGB não existe qualquer tipo de referência aos principais deveres de lealdade, proteção,

27
“Artigo 311º (...) Uma relação obrigacional, com os deveres decorrentes do 241º, alínea 2, surge ainda
através:
1. do início de negociações contratuais;
2. da preparação de um contrato, através do qual uma parte, com vistas a uma eventual relação negocial,
permite à outra parte a possibilidade de atuar sobre seus direitos, bens jurídicos e interesses, ou confia-lhe
os mesmos;
3. de contatos negociais semelhantes.
(3) Uma relação obrigacional, com os deveres decorrentes do artigo 241º alínea 2, pode surgir ainda para
pessoas que não deverão ser parte no contrato. Tal relação obrigacional surge mais propriamente quando
o terceiro toma para si confiança, na medida considerável, e, com isso, influencia significativamente as
negociações contratuais ou a conclusão do contrato.”
28
Fritz, Nunes Karina, “A Culpa in Contrahendo no Direito Alemão: Um Contributo para Reflexões em
Torno da Responsabilidade Pré-Contratual”, 2017
informação/esclarecimento, sigilo e diligência. Existe apenas uma menção aos deveres de
consideração enquanto categoria geral.

Os efeitos jurídicos decorrentes da ofensa aos deveres de conduta devem, por sua vez,
ser atendidos no artigo 280º, BGB – cláusula geral do direito da perturbação da prestação
(Leistungsstörungsrecht) – que seira melhor titulado de direito da perturbação da relação
obrigacional, uma vez que nem todas as perturbações lá presumidas manifestam um
distúrbio na prestação em si29. Como é o caso das ofensas aos deveres pré-contratuais,
que na sua grande maioria, não afetam a prestação do contrato, podendo até este nem
chegar a formar-se. Quanto ao artigo 280º, I, BGB, o legislador afirma que a consequência
da violação de um dever é, ao que tudo indica, o surgimento de uma presunção
reparatória.

A harmonização dos artigos supramencionados – 311º, 241º e 280º BGB – acomoda


a seguinte conclusão: na fase pré-contratual, surge uma relação obrigacional especial da
qual surgem deveres de consideração de ambas as partes, cuja violação leva ao possível
dever de reparar os danos causados. O conteúdo, a tipificação e a posterior extensão da
pretensão reparatória (Schadensersatzanspruch) é regulado pelas normas dos artigos 249º-
253º30. Contudo, há que frisar que nem sempre a reparação do dano pré-contratual se faz,
através de uma indemnização pecuniária, esta deve ser feita, nos termos do artigo 249º,
por meio de reposição natural31, segundo a qual o devedor tem que repor o estado em que
a parte lesada (credor) se encontraria se a violação de determinado dever não tivesse dado
lugar.

A reposição natural pode contudo, requerer outras formas de reparação, além da


pecuniária. Em variadíssimas situações onde deu lugar a violação de deveres pré-
contratuais, pode ser insatisfatório uma indemnização em dinheiro para restituir o estado
ileso hipotético que existiria se o dano não tivesse dado lugar. Principalmente, quando as
partes chegam a celebrar o contrato, na presença lesiva dos danos causados, pode ocorrer

29
Brox, Hans; Walker, Wolf-Dietrich, “Allgemeines Schuldrecht”, p. 206 e ss.
30
Brox, Hans; Walker, Wolf-Districh, “Allgemeines Schuldrecht” — que formam o chamado “direito dos
danos” (Schadensrecht), um sistema de regras destinadas à determinação e apuração do dano.
31
O princípio da reposição natural está implicitamente disposto como o princípio geral de reparação civil,
tanto contratual (artigo 798º/1 CC português), quanto extracontratual (artigo 483º CC português) e é
consagrado na doutrina. Cfr. Gomes, Orlando “Obrigações” ,p. 285: “A relação obrigacional entre o agente
e a vítima tem como conteúdo a pretensão do prejudicado à reparação do dano. Pode ser satisfeita mediante
reposição natural, que importa restituição do bem danificado ao seu estado anterior, ou indemnização
propriamente dita, consistente no pagamento de determinada quantia.”
que a parte lesada mantenha o interesse em concluir o negócio, adaptando-se a outras
disposições32.

O aprimoramento do dano pré-contratual é ponderado pelo interesse negativo, o que


entra em confronto com outros ordenamentos jurídicos, que atentam também os lucros
cessantes e os danos emergentes. O interesse negativo, veio contudo, a perder o seu
caráter limitativo da indemnização, já que a jurisprudência alemã tem vindo a afastar-se
da conceção original de Jhering, com base no princípio da reparação integral (Grundsatz
der Totalreparation). Este principio está consagrado no artigo 249º, BGB I (aquando da
entrada em vigor da primeira codificação).

2. França

Ainda hoje a legislação não conta com disposições específicas acerca da


responsabilidade pré-contratual, o que, de certa forma, justifica o fato de serem tímidas
as referências a esta matéria, tanto na doutrina quanto nos Tribunais deste país33.

Em 2016, o Code Civil sofreu uma reforma, reforma essa motivada pela necessidade
de modernização do direito dos contratos. O preceito nuclear em matéria de
responsabilidade civil extracontratual passa a ser o artigo 1240º CC, que determina que
“tout fait quelconque de l'homme, qui cause à autrui un dommage, oblige celui par la
faute duquel il est arrivé à le réparer”, acrescentando o artigo 1241º CC que cada um é
responsável pelo dano que causa, não só pelo seu facto, mas também pela sua negligência
ou imprudência. Tal responsabilidade delitual, que se distingue claramente da sua génese
contratual, prevista nos artigos 1231º e ss do Code, pode ainda provir de um facto de
terceiro, nos termos do artigo 1242º CC, ou de um facto não humano (v.g. artigo 1243º e
1244º).

Não obstante, uma hipótese de responsabilidade objetiva nos artigos 1245º e ss


(responsabilidade do produtor), a partir das normas dos artigos 1246º e ss, com uma
categoria especial de dano: o dano ecológico. Dispõe o artigo 1246º que toda a pessoa

32
Exemplo disso mesmo são os casos de aquisição de uma empresa, em que posteriormente o adquirente
vem a concluir que esta se encontrava com os balanços financeiros adulterados. Mesmo atendendo a difícil
situação patrimonial do bem, o adquirente pode já ter investido muito tempo e capital, podendo assim
continuar a ser viável, a compra do mesmo.
33
No sistema jurídico francês, as hipóteses de responsabilidade pré-contratual são reconduzidas ao
instituto da responsabilidade extracontratual. Cfr. Cordeiro, António Menezes. “Tratado de direito civil,
vol. II – Parte geral”, p. 212; Vicente, Dário Moura, “Da responsabilidade pré-contratual em Direito
Internacional Privado”, p. 256-25.
responsável por um prejuízo ecológico tem de o reparar, acrescentando o artigo 1247º34,
e o artigo 1248º35. Pelo supramencionado, é notável que a lesão cujo ressarcimento se
permite no quadro do Code Civil deixa de estar singularizada num sujeito
individualizado, passando assim a assumir a forma de omissão de um interesse coletivo.

Logo, na medida em que se adere a uma perspetiva dualista, separando a


responsabilidade extracontratual da responsabilidade contratual, não só ao nível dos
respetivos regimes legais, mas também a nível funcional, é nos conclusivo que não se
pode estabelecer entre elas uma qualquer relação de especialidade que permita à segunda,
por ser específica, afastar a primeira, tida como genérica. Esta relação de especialidade
tem sido a posição escorada até agora no ordenamento jurídico francês e apoiada por
alguns juristas portugueses.

3. Portugal

O código Civil português tutela expressamente o principio nuclear da CIC, no


disposto do artigo 227º. Passemos então a uma análise mais profunda deste artigo. Todos
os ditames da CIC funcionam perante qualquer negócio jurídico, atendendo ao espírito da
lei. Entende-se por “negociar”, o seu mais amplo sentido (onde, a simples proximidade
negocial permite que este instituto se manifeste). Há contudo que frisar a distinção entre
“preliminares” e “formação”. Enquanto que a primeira prossupõe a troca de informações
necessárias para se alcançar um acordo consensual entre as partes; a segunda exprime a
formalização do acordo, designadamente quando está em questão uma forma solene que
requer atividade de (re)decocumentação. A boa fé atendida neste artigo é objetiva36. A
BFO presume dois preceitos materialmente exigidos, são eles: a Tutela da Confiança e a
Primazia da Materialidade Subjacente. Por um lado as partes não devem suscitar situações
de confiança que, posteriormente, venham a frustrar. A violação da confiança

34
“Le préjudice écologique consistant en une atteinte non négligeable aux éléments ou aux fonctions des
écosystèmes ou aux bénéfices collectifs tirés par l'homme de l'environnement”, in Code Civil
35
“L'action en réparation du préjudice écologique est ouverte à toute personne ayant qualité et intérêt à
agir, telle que l'Etat, l'Agence française pour la biodiversité, les collectivités territoriales et leurs
groupements dont le territoire est concerné, ainsi que les établissements publics et les associations
agréées ou créées depuis au moins cinq ans à la date d'introduction de l'instance qui ont pour objet la
protection de la nature et la défense de l'environnement”, in Code Civil
36
Concretiza-se em 5 institutos, todos eles de filiação germânica. São eles o abuso de direito (334º); a
integração de negócios (239º); a modificação dos contratos por alteração das circunstâncias (437º, nº1); a
complexidade das obrigações (762º, nº2); e por fim evidentemente a CIC tutelada pelo artigo 227º, nº1. A
BFO remete para princípios, regras, ditames ou limites por ela comunicados ou, simplesmente, para um
modo de atuação dito “de boa-fé”; atua como uma regra imposta do exterior e que as pessoas possam
observar, sendo consideravelmente mais palpável que a subjetiva.
fundamentada provoca responsabilidade e gera o dever de indemnizar. Ainda no âmbito
da tutela da confiança, há que atender a alguns pressupostos: tem que ser criada uma
relação; a confiança tem de ser justificada e tem de haver um investimento na mesma; e
por fim tem de ser imputável à outra parte. Por outro, falando agora da primazia da
materialidade subjacente, é verdade que o principio da liberdade contratual37 reconhece e
faculta às partes a possibilidade de negociar livremente, interrompendo assim as
negociações quando o entenderem. Trata-se porem de um valor a aproveitar em sentido
material: a busca livre de um eventual consenso (e não apenas uma conformidade exterior
com o Direito). Qualquer tipo de negociação estranha à autonomia privada é contrária à
boa fé, assim sendo, o Direito procura a obtenção de resultados efetivos, não se
satisfazendo com comportamentos que embora formalmente correspondam a tais
objetivos, falhem em atingi-los substancialmente. Para este preceito, há ainda que atender
a alguns pressupostos; são eles: a presença de um sentido psicológico (estado subjetivo),
onde é irrelevante a necessidade de saber e o sentido ético, onde o dever saber é relevante.

Logo, pela força deste preceito, o âmbito da responsabilidade contratual é alargado à


fase pré-negocial, atendendo aos preceitos da boa fé, cuja violação resulta na obrigação
de indemnizar os danos causados a outrem. Antes da formação do contrato, as partes já
têm diversos deveres a respeitar e, designadamente, deveres de proteção, de lealdade e de
informação. Embora livre, a negociação contratual não deve ser usada para fins danosos,
alheios à finalidade em questão: a de procurar a eventual celebração de um contrato
definitivo. Abordando melhor a temática dos deveres contratuais, comecemos então pelo
dever de lealdade. Este dever vincula as partes em negociação a comportarem-se com a
honestidade devida. Compreende toda a matéria dos deveres de proteção e de
esclarecimento, e este é violado sempre que alguma das partes entre em negociações sem
a intenção de as concluir; quando uma das partes (ou ambas) estipula(m) cláusulas que
sabe(m) de antemão que são inválidas ou impossíveis38, ou ainda quando celebra o
contrato na consciência de dissenso ou de erro por parte da outra.

Quanto aos deveres de informação, estes vinculam as partes a partilhar os dados e


informações de relevância para uma posterior melhor apreciação das circunstâncias do
contrato e das próprias qualidades das partes envolventes. Por fim, sob a alçada de

37
Consagrado no artigo 405º
38
Cfr. artigo 11º, 12º, 15º, 16º, 18º do Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro no âmbito das Cláusulas
Contratuais Gerais, in Código Civil
Menezes Cordeiro, são de frisar os deveres de segurança e proteção. No fundo, são
condições necessárias que tem de ser reunidas para se realizar o negócio. Em ambiente
pré-contratual, ambas as partes devem proteger a contraparte, criando assim o melhor
ambiente possível para o posterior contrato definitivo atingir a sua perfeição.39

iii) Jurisprudência dos respetivos países em questão

1. A jurisprudência alemã

É de frisar que a jurisprudência alemã contribui para as maiores e mais célebres


concretizações do instituto. Menezes Cordeiro começa40 por destacar na sua obra alguns
casos mais relevantes, entre eles, o já supramencionado: “caso do linóleo”.

RG 7 de dezembro de 1911: como já referi, o caso centra-se essencialmente no dano


causado à propensa cliente e à sua filha, pela negligência do empregado, aquando dos
dois rolos de linóleo caíram em cima das mesmas. Menezes Cordeiro considerou estarem
em jogo deveres de segurança, onde as partes devem providenciar as condições
necessárias para que nas negociações, ninguém sofra qualquer tipo de danos, sejam estes
físicos (saúde/ integridade física), sejam patrimoniais. O dono foi posteriormente
condenado por violação dos deveres pré-contratuais de segurança.

BGH 20 de fevereiro de 1967: um instituto bancário financiou, a crédito, a compra de


um automóvel, por um particular. O automóvel, mesmo depois de pago, acaba por ser
retido já que o vendedor entrou em falência. A CIC pretende aqui reaver ao comprador
frustrado, a importância mutuada, onde o vendedor é então condenado por não ter
esclarecido de forma satisfatória o mutuário dos riscos por ele corridos. Quanto a este
caso o professor reitera que se trata da existência da violação de deveres de informação.

O Professor invoca ainda um outro caso. BGH 8 de junho de 1978: uma comuna foi
condenada por se ter verificado a partilha de informações falaciosas à contraparte. O caso
consiste na venda de certo terreno, contrato este com um particular, onde, posteriormente
se deparou com informações inexatas quanto ao plano de construção que depois veio a
modificá-lo. Quanto a este caso, Menezes Cordeiro afirma que neste caso, estamos
perante uma violação dos deveres de lealdade, já que as partes não podem, in contrahendo,
adotar comportamentos que venham a deturpar a finalidade das negociações: a celebração

39
Cordeiro, António Menezes, “Teoria Geral do Direito Civil”, 1999
40
Idem p. 337
do contrato definitivo. Estes deveres são contudo separáveis dos deveres de informação,
já que a lealdade se cinge pela atuação e a informação pela comunicação.

Atendendo à demonstração de alguma jurisprudência, Menezes Cordeiro escreve que


é notável que no período pré-contratual, questões que ultrapassam claramente o âmbito
de uma negociação regula têm sido abordadas. Não está em causa a simples problemática
da salvaguarda do princípio da autonomia privada, que pode ser resolvido quer por um
reafirmar da eficácia jurídica da liberdade contratual, quer uma salvaguarda na medida de
uma compartimentação dos deveres das partes, dessa mesma liberdade41.

2. A jurisprudência francesa

Em França, a despeito das diversas divergências doutrinárias considera-se que,


dominantemente, se deve recorrer à natureza da responsabilidade pré-contratual para a
responsabilidade extracontratual42, intrinsecamente casada com a figura do abuso do
direito43.

Menezes Cordeiro44 destaca aplicações significativas de boa fé no que toca à


resolução unilateral dos contratos, como foi o caso da decisão no CssFr de 31 de janeiro
de 1995, nº57 e apud Jacques Mestre45. Um casal adquiriu uma habitação através de um
crédito bancário de 200.000 francos, em 1975 (sendo que este empréstimo seria pago no
decorrer de um prazo de 15 anos). A outubro de 1983, o marido, à altura desempregado,
obteve uma moratória até 1 de fevereiro de 1984, para posteriormente conseguir pagar as
prestações de novembro, dezembro e janeiro. A 2 de janeiro de 1984, a instituição
bancária, por missiva, avisa que se encontra na obrigação de exigir o reembolso
antecipado e integral do crédito prestado; não chegando, porém, a concretizar tal medida,
vindo os interessados a pagar o essencial do seu saldo. Todavia, em 2 de julho de 1990,
o banco interpelou o casal em questão para o pagamento de 91.434 francos
correspondentes a juros e a penalidades pelo atraso. A CssFr entendeu que a atuação da
cláusula resolutória, seria neste caso, contrária à boa fé.

41
Cordeiro, António Menezes, “Teoria Geral do Direito Civil”, 1999, p. 505
42
Ao contrário de Portugal (artigo 227º), o sistema francês não tem qualquer disposição conreta atendente
à responsabilidade pré-contratual
43
Serra, Adriano Vaz, “Abuso do Direito”, in boletim do Ministério da Justiça, 1959
44
Cordeiro, António Menezes, “A Boa Fé nos Finais do Século XX”
45
Idem; Jurisprudence française en mantière de doit civil / Obligations et contrats spéciaux: RDTCiv 94
(1995), 618-626
O Professor46 no seu artigo destaca ainda casos atendentes ao conceito de faute, já
anteriormente explicitado, como foi o caso CssFr de 28 de junho de 1994, apud Jacques
Mestre. Em que uma sociedade tinha como objetivo inicial assegurar a continuação duma
outra, através da sua retoma interna, adquirindo a totalidade das suas participações, por
um preço simbólico; através de atuações repetidas, ela deixou pensar, aos que concederam
crédito à empresa em dificuldades, que eles seriam integralmente pagos. Surge então, na
decisão judicial a constatação que foi criada e assegurada uma confiança legítima, da
parte dos credores que, através da responsabilidade civil, adquiriram posteriormente
direito ao reembolso.

Por fim, Cfr, que já foi estipulada uma indemnização de 4.000.000 francos por quebra
injustificada de negociações (CApp Versailles de 21 de setembro de 1995, apud Jacques
Mestre). Outra importante decisão judicial a frisar: segundo a qual uma cláusula abusiva
não deixa de o ser, só por ter um uso frequente (CssFr de 31 de janeiro de 1995, apud
Jacques Mestre).

3. A jurisprudência portuguesa

O Professor Menezes Cordeiro reitera que a jurisprudência tem concretizado o


instituto da CIC atendendo ao âmbito dos deveres de lealdade pré-negociais, não obstante
o dever de uma rigorosa e completa informação. Segue então para fazer uma distinção
das 3 correntes doutrinárias pátrias, são elas: a que nega por completo a sua aplicação; a
que faz apenas referência; e a que aplica integralmente o instituto. O Ac. 828/00 de 27 de
março de 2001 do Supremo Tribunal de Justiça evidencia claramente a aplicação da CIC.

O caso em questão opõe duas partes: a autora era uma cooperativa de produtores de
utensílios de pesca, onde se dedicava ainda a trabalhos de reparação e construção naval;
o réu tratava-se de um armador que entrou em contacto com a autora em vias desta
construir uma embarcação de pesca para si. Com esse propósito, a autora procedeu à
realização de estudos, pareceres e projetos, tendo por isso, feito diversas deslocações e
contratado pessoal para auxiliar na empreitada da embarcação, à sua custa. As
negociações deram-se dentro das regularidades, sem que nunca o réu tivesse dado algum
tipo de indicação de que as negociações podiam vir a cessar a qualquer momento. De
facto, o réu acabou por cessar as negociações, alegando que tinha uma melhor e mais
eficiente proposta de um outro construtor. O STJ expandiu este caso à possibilidade de

46
Idem
os preliminares do negócio se configurarem num caso passível de indemnização pela CIC.
Os juízes vêm então a afirmar que atenta a matéria de facto, concluindo que deram lugar
negociações entre o réu e a autora e que estas levaram a autora a formar uma base de
confiança e expectativa na futura celebração do contrato. Reiteraram ainda que o réu
deveria ter prevenido a autora para a hipotética possibilidade de negociações paralelas,
atendendo aos deveres de informação. Se estes deveres tivessem sido respeitados a
contraparte podia ter medido o seu esforço de forma a que os gastos não fossem de
tamanha importância.

Menezes Cordeiro47, neste caso que evidencia apenas a simples referência ao instituto,
reitera que se trata de um fenómeno importante que recorda a estrutura decisória que
dispõe a aplicação do Direito e a natureza de argumento assumida pelos atores jurídico-
legais que orientavam a vontade humana. A adoção do instituto da CIC nos modelos de
decisão contribuirá certamente para o enraizamento dos seus preceitos na cultura jurídica.

No entanto, há casos em que a sua aplicação é afastada, envolvendo determinadas


particularidades, contudo, não vemos utilidade em abordá-lo, já que se o presente trabalho
aborda a aplicabilidade e o pragmatismo da CIC enquanto instrumento jurídico nos
ordenamentos jurídicos.

III (Síntese & Grelha Comparativa)

Culpa in Contrahendo Portugal Alemanha França

Base legal 227º CC 242º e 311º, II 1134º/1382º

Tem vindo a ganhar


Os preceitos da boa fé progressivamente a
têm de ser atendidos? Sim Sim importância devida,
ainda que não seja um
principio necessário a
atender48

47
Cordeiro, António Menezes, “Teoria Geral do Direito Civil”, 1999, p. 342-343
48
Vicente, Dário Moura, “Direito Comparado – Obrigações”, 2013, p. 127
Quais os pressupostos 1. culpa do agente (487º) 1. dano
requeridos para o dever 2. imputabilidade (488º) 2. o dano sofrido in 1. dano
de reparar os danos 3. dano (564º e 566º) contrahendo tem de 2. faute
causados? 4. facto voluntário e resultar da infração de 3. imputabilidade
ilícito (previsto na 1ª algum dever jurídico, em (foram abertas discussões
parte do próprio 483º) prol de ser indemnizável no que toca ao nexo de
5. nexo de causalidade 3. ocorrência de uma causalidade)49
(563º) diminuição patrimonial

Síntese Comparativa e Conclusão

Conclui Dário Moura Vicente50 que, atendendo aos sistemas jurídicos considerados,
existem 3 tipos nucleares de soluções normativas para a questão da ressarcibilidade dos
danos causados por atos ou omissões ocorridos nos preliminares e na formação dos
contratos e do regime a que ela se encontra submetida.

Podemos começar por abordar a primeira corrente defendida pelo professor: onde a
responsabilidade pré-contratual é entendida como uma responsabilidade obrigacional,
atendendo a deveres de conduta e aos preceitos da boa fé; nesta primeira categoria, em
traços gerais, enquadra-se o sistema alemão.

A segunda corrente concretizada por Dário Moura Vicente é onde se enquadra o sistema
francês, entre outros, como os países de Common Law. Esta segunda corrente, da
responsabilidade pré-contratual assume a feição de uma responsabilidade
extraobrigacional: rejeitando a existência de um vinculo obrigacional entre as partes que
ambicionam a conclusão do contrato, admitindo antes e apenas a imputação dos danos
causados in contrahendo nos termos das normas da responsabilidade extracontratual.
Dado o supramencionado aquando do descrito do ordenamento francês, é-nos sabido que
dada a amplitude da cláusula geral da responsabilidade extracontratual; a compreensão
da própria violação de obrigações; e pelo entendimento que sem contrato, não há

49
Cfr. Hassen, Aberkane, “Du dommage causé par une personne indéterminée dans un groupe déterminé
de personnes”, Revue Trimestrielle de Droit Civil, tome cinquante-sixième, 1958, p. 518-519
50
Vicente, Dário Moura, ”Direito Comparado – Obrigações”, 2013, p. 126-128
responsabilidade contratual, este país, em relação aos restantes, é consideravelmente mais
conservador e tradicional no que toca a conceitos um quê de ultrapassados do Código
Napoleónico.

Por fim, o professor aborda ainda uma terceira categoria: a responsabilidade pré-
contratual é uma figura híbrida. Ou seja, atende aos preceitos da boa fé e ao cumprimento
dos deveres pré-contratuais, contudo, o que a distingue do sistema alemão é que nem
sempre o dever de indemnizar e um posterior ressarcimento dos danos advêm das regras
de responsabilidade contratual. É então possível neste terceiro entendimento, estando
Portugal incluído, que para além da conceção germânica, ainda são atendidas normas de
uma ou de outra das duas espécies fundamentais de responsabilidade, consoante a
natureza do respetivo facto indutor e do caso concreto.

Deste modo, pode concluir-se que a Alemanha e Portugal apresentam ordenamentos que
têm em comum a permeabilidade necessária às exigências de índole ética e social, que se
traduzem exatamente na delimitação do maior principio do Direito Civil: a autonomia
privada. Ambos atentam vivamente ao principio da boa fé e a todas as suas nuances, o
que resulta não só na estipulação de um contrato querido pelas partes, mas também num
contrato socialmente aceitável. Este instituto veio a dar a devida relevância às requeridas
circunstâncias e comportamentos no ambiente pré-contratual, por ambas as partes. O que
nos levou a constatar o seguinte: a rutura das negociações pode e deve dar azo a uma
situação de responsabilidade, aquando o principio “pactum de tratando” fosse violado.
Mota Pinto explicita o princípio da seguinte forma: “trata-se dum facto, surgido no
decurso das negociações, gerador de confiança de que a outra parte preserve nelas até ao
acordo negocial ou até que, pela troca de pontos de vista e pelo exame conjunto do projeto,
o acordo se afigure impossível”.

É de frisar que França tem vindo a manter como ponto de partida e de chegada o conceito
de faute. Não obstante, as referências não muito felizes aos fundamentos consensuais da
responsabilidade (ilicitude e culpa), o ordenamento francês opta por uma notória linha de
continuidade entre as construções da doutrina e da jurisprudência. Dito isto, os tribunais
franceses procuram manter-se fieis à tradição doutrinal e jurisprudencial, não obstante
alguns momentos de cedência, conduzidos pela influência da família germânica.
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→ RG 7 de dezembro de 1911, RGZ 78 (1912)

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→ Ac. 828/00 de março de 2001, STJ

→ CssFr de 31 de janeiro de 1995

→ CssFr de 28 de junho de 1994

→ CApp Versailles de 21 de setembro de 1995

→ CssFr de 31 de janeiro de 1995

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