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Colaborava, também, para adoção desse princípio, como fundamento único do Direito
contratual, o fato de as relações econômicas serem estáveis, sem as grandes crises que
se começaram a desenhar na primeira metade do nosso século. Por esse motivo, os
códigos não inseriram, expressamente, outros conceitos limitadores da aludida
autonomia, como o da "clausula rebus sic stantibus"; ou ainda, os casos de lesão
enorme ou enormíssimas que continham, p. ex., as Ordenações Filipinas, (L, IV, tít.
XIII), sendo enorme a lesão que viesse a ultrapassar a metade do justo preço, e
enormíssima quando alguém houvesse recebido a terça parte, apenas, do valor de um
bem. Nesse particular, cumpre aludir ao fato de certos códigos, como o Código Civil
(LGL\2002\400) austríaco, no § 934, conterem disposições a esse respeito,
estabelecendo que uma desproposição significativa entre a prestação e a
contraprestação deverá ocasionar a invalidade do contrato.
2. Ainda quando no século passado se tenha a vontade como o valor supremo, ao ponto
de afirmar-se "qui dit contractuel dit juste", ainda assim houve juristas que se
aperceberam que a estrutura contratual pressupõe, para que possa exercer com
normalidade a sua função de troca, uma relação estreita com a realidade econômica
subjacente.
Essa vinculação com a realidade encontrava seus institutos de maior importância nas
condições, suspensivas e resolutivas, e na teoria da impossibilidade, especialmente na
impossibilidade posterior. Havia quem indagasse, se certas hipóteses de dificuldade (
difficultas) não deviam ser equiparadas à impossibilidade absoluta posterior, tendo o
Código Civil (LGL\2002\400) alemão, no § 275, II, feito essa equiparação, pelo menos
quanto à impossibilidade relativa, uma das espécies de impossibilidade.
É óbvio que, presentes essas condições no meio econômico, não se poderia, nos fins do
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século passado e início desse século, cuidar da aplicação da aludida "cláusula rebus sic
stantibus" ou de outro conceito que tivesse a mesma finalidade; depois, porque a
tendência marcada para a generalização dos conceitos, tornava impraticável a aplicação
da aludida cláusula em todo o direito, com o mesmo repertório de significados. Pareceu
ser, assim, a melhor solução não incluí-la nas codificações do século passado e do início
deste século.
4. O princípio "pacta sunt servanda" e a ênfase dada à vontade na teoria dos negócios
jurídicos contribuíram, em grande medida, para que não se adotassem as soluções com
base na mencionada cláusula. h certo que o princípio "pacta sunt servanda" salienta, por
um lado, a obrigatoriedade do contrato, a necessidade de serem cumpridas as
obrigações que dele resultam, o que não merece o menor reparo; por outro, indica, o
que é e sempre foi inexato, a sua absoluta imodificabilidade, ainda quando as condições
econômicas, no curso de sua vigência, se tenham alterado de modo essencial.
5. Seria possível concluir que somente em nosso século é que a questão da base do
negócio jurídico, como atualmente se denomina o conceito relativo à modificação da
realidade subjacente do contrato, teria adquirido autoridade na jurisprudência e na
doutrina.
Porém, ainda no século passado, reacendeu-se a discussão a respeito das relações entre
o contrato e a realidade na qual ele se insere, especialmente quando nela se manifestam
modificações substanciais. A questão parecia ser acadêmica em face da estabilidade da
economia da época; mas ela se realizava dentro do "Direito Comum", ou seja do "Direito
romano atual" à época, propondo-se sempre a questão com base na relevância ou
irrelevância dos motivos, para resolver problemas decorrentes de possíveis alterações do
meio econômico. A solução a essa questão estava, na época, em vinculação íntima com
a teoria do erro. Fazia-se, como ainda hoje se faz, uma distinção nítida entre causa e
motivo, distinção essa, que provém de Baldo, a quem se atribui a criação do termo
causa motivae, em que o termo "motivo" aparece, pela primeira vez, na linguagem
jurídica. Ele se constitui em simples cálculo, probabilidades de que algo venha a ocorrer,
o que, por sua variedade, não pode integrar o conteúdo do negócio jurídico, salvo
menção expressa.
A crítica que se lhe fez, à época, foi a de que pretendia, na verdade, dar relevância aos
motivos, permitindo pudessem ser objeto de anulação os atos em que as circunstâncias
supostas pelas partes não viessem a ocorrer na vigência do contrato.
Os Códigos, como já se mencionou, não dão relevância jurídica ao motivo e, por isso, o
Código Civil (LGL\2002\400) brasileiro, em seu art. 90, exara a regra de que "só vicia o
ato a falsa causa quando vier expressa como razão determinante ou sob forma de
condição".
Acresce que, além da lacuna do contrato, havia, também, a lacuna da própria ordem
jurídica, pois esta não havia exarado nenhuma norma a respeito. Contudo, parecia certo
que, não se tratando de contrato aleatório, havia necessidade de se distribuírem os
riscos normais do contrato entre os figurantes.
9. Como se cuida de regular o risco nos contratos, logo veio a idéia de considerar as
modificações das circunstâncias como espécie da impossibilidade, a qual, como ninguém
ignora, tem precipuamente essa função. É, aliás, o que sustenta K. Larenz (
Geschäftsgrundlage und Vertragserfüllung, Berlim, 1957, pp. 18 e ss.) ao afirmar que o
conceito objetivo da base do negócio jurídico se vincula com a finalidade real do contrato
e procura responder à questão de saber se a intenção geral dos contratantes pode ainda
efetivar-se, em face das modificações econômicas sobrevindas. Por isso, ela se vincula
com a teoria da impossibilidade.
Ainda que não conste de preceito expresso, ninguém ignora a existência em nosso
Direito do princípio da boa-fé aplicável às relações obrigacionais e limite importante ao
princípio da autonomia da vontade (v. nosso ensaio "A obrigação como Processo", São
Paulo, 1976, pp. 29 e ss.). São amplas as suas funções, pois, como princípio
fundamental, ele confere ao juiz poderes para criar novas soluções, dando-lhe um
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suporte sistemático que afasta o simples julgamento por eqüidade, e determina uma
profunda objetivação no conceito de negócio jurídico. Pode-se concluir que a tendência à
objetivação do negócio jurídico acabou por determinar a criação do conceito de "base
objetiva do contrato".
Como relação de polaridade entre o contrato e o seu meio, ou entre o seu aspecto
subjetivo e o institucional, não atua ela de modo automático, como sucede com a
"cláusula rebus sic stantibus", pois supõe, sempre, um juízo de valor a respeito da
importância das modificações do meio econômico em que o contrato se situa.
12. Um dos setores mais importantes da aplicação da base objetiva do negócio jurídico,
é o da alteração das prestações em razão da inflação, e também o das modificações
resultantes dos atos de Estado de intervenção na economia, como sucede com a fixação
dos preços máximos e mínimos.
Essa matéria foi, aliás, objeto de decisão pela 6.ª Câmara Cível do TJSP (Ap. cível
586056548, in RT 630/177 e ss.) e nela afirma-se, excelentemente: "Como quer que
seja, ao menos em teoria, a aplicação das tabelas de conversão limita-se a inverter o
processo bem conhecido dos povos que convivem habitualmente com uma economia
inflacionária; ao invés de aumentarem-se, mês a mês, dia a dia, os valores nominais,
deles deduz-se o que não representa verdadeira mais-valia mas simples aspecto
compensatório da desmonetização. Não tivesse sobrevindo o "Plano Cruzado", no que diz
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com este caso concreto, pode-se ter como certo que, assim mesmo, o presente litígio
surgiria, porque ao tempo do pagamento o preço fixo estabelecido situar-se-ia em nível
inferior ao dos preços mínimos de garantia".
13. No caso de o Estado haver determinado preços mínimos para certos produtos,
salienta Gerd Rinck ("Preisherabsetzung von Hoher Hand", in Archiv für die civilistiche
Praxis, v. 152/503) que "a lei obriga o comprador a cumprir um contrato em condições
diversas das que foram convencionadas. A fixação dos preços modifica o conteúdo do
contrato em seu ponto mais sensível, na relação de equivalência entre a mercadoria e o
preço. A vinculação do comprador no contrato não decorre mais da vontade das partes,
mas da lei; e, pois, ele se configura como um contrato cogente, ou melhor, como um
contrato corrigido".
Pode suceder, entretanto, que o contrato seja realizado em obediência ao preço mínimo,
e, posteriormente, por ato de intervenção do Estado, através de planos econômicos
setoriais, venha o aludido preço mínimo a cristalizar-se, ficando muito abaixo dos preços
dos insumos necessários. Como se há de resolver o problema?
Em conclusão, feitas estas considerações, podemos afirmar que, fora de dúvida, o nosso
sistema jurídico adota a teoria da base objetiva do negócio jurídico, em razão de a
relação jurídica apresentar aspectos voluntarísticos, ou subjetivos, e objetivos, ou
institucionais, resultantes da tensão entre o contrato e a realidade econômica. Esta
tensão constitui, precisamente, a "base objetiva" do contrato.
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* Extrato de parecer.
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