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Desconstituição da característica de

impenhorabilidade do bem de família


pelo negócio jurídico processual
Autores: Luiz Eduardo Aldrovandi Lopes e Miriam
Fecchio Chueiri
1

Publicado por Luiz Lopes


há 4 anos
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1 INTRODUÇÃO

Mediante a publicação do Código de Processo Civil de 2015, surgiram vários institutos


de grande relevância no processo como um todo, dentre eles merece destaque a previsão
do instituto do Negócio Jurídico Processual Atípico, que visa efetivar e dar
prosseguimento ao processo por meio da vontade das partes sem, contudo, ferir
princípios e direitos fundamentais elencados no ordenamento jurídico pátrio.

A princípio é importante transcrever a passagem do instituto no decorrer dos anos, do


mesmo modo demonstrar a sua passagem nos demais países que fizeram uso em casos
concretos, apontando a sua origem.

O referido instituto originou-se, de maneira aprofundada e mais detalhada, da doutrina


alemã, vez que no século XIX, mais precisamente no ano de 1887, o jurista alemão
Josef köhler abordou a temática, abordando sobre as partes possuírem plena autonomia
para negociarem sobre os atos processuais de seus referidos processos, (FARIA, 2016,
p.21).

Entretanto, faz-se imprescindível salientar, tal instituto não fora recepcionado a contento
dos demais juristas alemães, a exemplo de Oskar Von Bülow, o qual era opositor à
possibilidade das partes ditarem as regras do processo, vez que se se tratava, o direito
processual civil, de normas cogentes, de Direito Público, e nas palavras de Cabral,
(2016) “é uma relação pública por englobar Estado-Juiz”, sem qualquer prerrogativa de
alterabilidade dos atos processuais por vontade das partes, ademais tal tese se emanou
até a Europa, atingindo especificamente a Itália, obtendo ênfase pelo jurista italiano
Salvatore Satta. ]

Em dado momento, buscou-se a comparação da aplicabilidade do Negócio Jurídico


Processual em relação aos demais ordenamentos jurídicos estrangeiros. Ademais, há de
se enfatizar o tema em outros países que não o seu de origem, visando uma ampliação
geral de sua utilização.
Na Itália o negócio jurídico processual fora taxado legalmente, onde “A Lei 69/2009
realizou inúmeras alterações no Codice di Procedura Civile em busca de efetividade e
melhora qualitativa da justiça” (FARIA, 2016), vez que abarcou o instituto do negócio
processual com a intenção de imputar eficiência jurisdicional com a influência da
autonomia das partes em poder estipular as cláusulas relacionadas ao seu processo.

Já na França, dando continuidade ao mesmo posicionamento acerca do negócio jurídico


processual, o entendimento é o mesmo, visando dar prerrogativa às partes, e segundo
Almeida (2014, p. 41) “Os civil lawyers franceses concederam maior autonomia às
partes e aos seus advogados, como intuito de possibilitar-lhes a adequação do
procedimento ao caso concreto, denominando-se contrat de procédure”. Isto é,
defenderam que as partes processuais, perante a sua autonomia de vontade, poderiam
modificar os atos processuais otimizando a agilidade e a eficiência do processo, com o
fito de garantir a celeridade e qualidade do rito desenvolvido. Vislumbrou-se pela
primeira vez na década de 80, ao empregar o desenvolvimento do calendário processual
pelas próprias partes processuais.

Realizado todo este enredo, quanto de sua origem até em comparação aos demais
ordenamentos jurídicos, é cabal incluir o instituto ao posicionamento pátrio, e assim,
atente-se que, na verdade não há uma inovação extrema, pois que, na verdade, o aludido
instituto já era previsto no Código de Processo Civil revogado, o CPC/73, a exemplo da
cláusula de eleição de foro, que era e ainda é pactuada pelas partes dentro de uma
relação contratual.

Nesta seara, o Código de Processo Civil de 2015 inovou completamente seu texto legal
com base em alguns institutos a frente do CPC/73, pois que atualmente se pode acordar
dentro do processo cláusulas de maneira atípica, ao passo que na vigência do revogado
código, tão somente era permitido pactuar aquilo que fosse taxativamente previsto em
lei (WAMBIER; TALAMINI, 2016).

O acordo processual, também chamado de negócio jurídico processual por parcela dos
doutrinadores, visa à autonomia das partes em celebrarem as cláusulas processuais,
contudo é sabido que em certas circunstâncias, as partes do negócio processual podem
tornar tais cláusulas mais complexas, trazendo consigo a problemática do direito, em
não conseguir o órgão legislativo determinar os limites dos direitos processuais que
possam, legalmente, ser suscetíveis de inclusão na convenção do acordo processual, no
que diz respeito à atipicidade (ARAÚJO, 2017).

A melhor doutrina assevera que o acordo processual, na modalidade atípica, pode ser
celebrado com base nas situações jurídicas existentes no mundo processual, isto é,
aquilo que se versar sobre ônus, faculdades, deveres e direitos, é passível de se acordar
(DIDIER JR., 2016).

Assim sendo, segundo Hatoum, (2016, p. 50) “o art. 190 do CPC/2015 confere às partes
a faculdade de modificar e regular o procedimento, adequando-o ao caso concreto [...].”

Segundo esse entendimento, o referido artigo atribui às partes demandantes o privilégio


de auferirem mudanças no procedimento ou até mesmo no processo, por intermédio de
suas concepções, desde que por amparo legal, sem ferir qualquer situação jurídica
existente na relação processual.
Indispensável se faz mencionar que o art. 190 do CPC/15 assegura o princípio do
respeito ao autorregramento, por se tratar de cláusula geral de negociação sobre o
processo, possibilitando às partes convencionarem os negócios jurídicos processuais
atípicos (DIDIER, 2016, p. 381).

Dessa feita, ante a fundamentação acerca do negócio jurídico processual, o presente


estudo tem como escopo analisar a validade da alteração da característica impenhorável
do bem de família a luz do art. 190 do CPC.

2 DESENVOLVIMENTO

Com a promulgação da Lei 8.009/90, definiu-se a impenhorabilidade do bem de família,


bem este que vem a ser a residência dos cônjuges onde se estabelece o vínculo familiar,
se assentam as suas construções, benfeitorias, plantações e equipamentos profissionais
para fins de trabalho. É sabido que o legislador atribui à referida lei força de norma
cogente, tratando-se de regra que deve ser integralmente cumprida, mesmo que exista
argumento contrário.

Mas o que seria a impenhorabilidade do bem de família senão um direito. Por ser um
direito as partes podem, a luz do art. 190, convencionarem sobre certa característica,
assim preceitua o Enunciado n. 257 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: “O
art. 190 autoriza que as partes tanto estipulem mudanças no procedimento quanto
convencionarem sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais.”

Ora, poderes nada mais são do que os direitos pertinentes a situação jurídica que as
partes se encontram inclusas, bem como litigando. Assim sendo, da análise da
característica da impenhorabilidade do bem de família, vislumbra-se ser tal instituto um
direito, e por ser o direito uma situação jurídica, é suscetível de acordo, quanto desta
característica, no âmbito processual.

Entretanto, ante a atribuição de norma cogente à impenhorabilidade, seria possível


alterá-la diante do NCPC, porém inexiste tipificação que permita a convenção, mas

[...] Não impede que seja realizada uma sistematização perante o ordenamento
processual brasileiro na busca dos negócios típicos, que nem sempre são explicitados
pela lei processual, mas cuja natureza convencional não pode ser negada, com base na
leitura do art. 190 do CPC. (ARAÚJO, 2016, p. 758).

Ou seja, mesmo que inexista previsão expressa em lei sobre a possibilidade de


convencionar determinado direito, analisada a sua natureza e admitindo este a
autocomposição, podem as partes convencionarem tal direito naquilo que entendam ser
melhor a elas, com fulcro no artigo 190 do Código de Processo Civil.

Ademais, no que concerne à característica de penhorabilidade aplicada a maioria dos


bens,

Extrai-se, entre outros, a possibilidade de os demandantes firmarem, para o processo em


que contendem, pacto de impenhorabilidade relativamente a determinado bem. O dito
pacto traduz a manifestação do que se chama de negócio jurídico processual. (STRECK
et al., 2016, p. 1096).
Pode-se firmar o seguinte entendimento, as partes podem estipular, com base, no
negócio jurídico processual, que um bem específico, agregado à natureza de penhorável,
torne-se impenhorável, impedindo que este bem seja suscetível de garantia no processo
de execução.

Em contrapartida, vislumbra-se a perfeita condição das partes firmarem a


penhorabilidade do bem de família, pois que, se há a possibilidade de inversão da
natureza de penhorável à impenhorável, nada mais justo e lógico seria a aplicação
inversa da teoria.

Por fim, para que haja o exercício da liberdade negocial e que convalide o negócio
jurídico processual, imprescindível se faz atender a dois pressupostos, quais sejam, o
pressuposto objetivo, relacionado à natureza de autocomposição do direito a ser
convencionado e o pressuposto subjetivo, pertinente à capacidade das partes em
convencionarem as cláusulas processuais e, uma vez contemplados ambos os requisitos,
a lei processual deverá permitir a convenção, tornando-a eficaz, tendo em vista aquilo
que dispõe o art. 190 CPC (WAMBIER; TALAMINI, 2016, p. 515).

2.1 AUTOCOMPOSIÇÃO

O art. 190 do CPC/15 em seu caput é claro quanto ao direito discutido nas cláusulas
processuais tendentes a admitir a autocomposição, conforme transcrito abaixo,

Art. 190. Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às
partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às
especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e
deveres processuais, antes ou durante o processo (BRASIL, 2016, p. 268 – grifo nosso).

A autocomposição, como já mencionado, é um dos pressupostos de admissibilidade do


negócio jurídico processual e nada mais é do que o meio pelo qual as partes sanam um
certo conflito sem mesmo depender de uma demanda ou iniciar um certo litígio, abrindo
mão de seus direitos. Por ora, constata-se que o CPC/15 visou dar autonomia às partes
em negociarem o processo, bem como negociar o objeto litigioso. Não restam dúvidas
quanto a isso, pois há no Código Vigente diversos artigos prevendo a solução do
conflito por meio da autocomposição, sem necessariamente utilizar de um processo.

2.2 AUTONOMIA DA VONTADE

Como se sabe, as partes possuem autonomia sobre o processo, bem como nas demais
situações jurídicas, embora possuírem a citada autonomia, parcela da doutrina confronta
a prerrogativa da existência de vontade dentro do processo, ainda mais quando se fala
em impenhorabilidade do bem de família, por se tratar de norma cogente, como dito no
início, sob o argumento de que as partes devem seguir o que está previsto em lei, sem
poder contraditar ou estipular o contrário.

Em que pese o caráter de norma cogente, há grande restrição sobre a estipulação de


acordos com base no negócio jurídico processual e, como salienta,

O caráter cogente da norma jurídica diz respeito à norma processual e à de direito


material. Por este motivo, ainda que o direito material posto em causa admita
autocomposição, tal fato não autoriza que qualquer acordo processual possa ser
formulado (ARAÚJO, 2016, p. 755).

Todavia, esse não parece ser o melhor entendimento, tendo em vista necessitar analisar
o direito que está a ser incluso nas cláusulas processuais e, ademais, cabe ao órgão
julgador a confiabilidade de conferir as cláusulas, devendo interpretá-las,
primordialmente, com ênfase na vontade das partes.

Neste sentido, quanto da autonomia da vontade, há uma certa divergência no que tange
a sua admissibilidade, e por isso,

Argumenta-se que o princípio da autonomia da vontade não é incompatível com a


presença de normas cogentes. Exemplos desta afirmação residiriam no direito de
construir e no direito de vizinhança, que refletem matérias reguladas pelo Código Civil
Brasileiro mas cujo interesse público no regramento é evidente. Por este motivo, a
liberdade e a disposição (freiheitsphäre) não são incompatíveis com normas de caráter
cogente que caracterizam o direito processual civil. E mais: o objetivo do processo é
justamente a realização do direito material, que em sua essência é marcado pelo poder
de disposição. Por este motivo, parte da doutrina posiciona-se pela prevalência no
processo civil da liberdade para a formação de negócios processuais, e sua restrição
deve ser expressa ou por meio de interpretação fixada pela jurisprudência. A plenitude
da autonomia da vontade deve ser garantida sempre que possível, e na dúvida a
interpretação deve ser favorável à manutenção (in dubio pro libertate). Este
posicionamento não deixa de estar em sintonia com o previsto no art. 190 do CPC, por
meio do qual se infere que a proibição há de recair sobre matéria que não admita
autocomposição (ARAÚJO, 2016, p. 750).

Com fidedigna reflexão do posicionamento citado pelo autor supra, é concebível a


possibilidade da realização do negócio jurídico processual que tenha como objeto a
inversão da característica de impenhorabilidade do bem de família, tornando-se
suscetível de penhora. Logra êxito a tese mencionada, vez que o processo, normalmente,
necessita da vontade das partes e, como se percebe, a vontade é meio essencial para a
consumação do processo. Seguindo o mesmo raciocínio, o direito processual surge por
intermédio da violação de um direito material, pois que sem este não haveria aquele. Em
dado momento, o autor aduz acerca da delimitação da matéria a ser discutida nas
cláusulas processuais, enfatizando que somente existirá um caráter cogente do direito
quando pacificado por entendimento jurisprudencial ou por expressa previsão legal.

Sustenta-se que até o presente momento não há previsão expressa acerca da restrição do
bem de família em ser objeto do negócio jurídico processual, entretanto há
entendimento jurisprudencial neste sentido, que o nega dar-lhe a constrição, todavia,
resta observar que a referida decisão fora elaborada antes mesmo da vigência do Código
de Processo Civil de 2015, constatando-se a falta do art. 190, que admite a possibilidade
de negócios jurídicos processuais atípicos, por vez, interpreta-se no sentido de se tornar
válido o ato da desconstituição da impenhorabilidade do bem de família, fazendo-se
imprescindível formar um novo entendimento, com o propósito de atuar o
posicionamento jurisprudencial em consonância as regras previstas em lei.

Ressalte-se que permanecendo dúvida quanto a matéria a ser discutida nas cláusulas
processuais, sua interpretação deve ser favorável as partes, pois que são as mais frágeis
dentro do processo, admitindo-se o negócio processual, com base no instituto do in
dubio pro libertate.

2.3 POSICIONAMENTO JURISPRUDENCIAL

Em que pese a prerrogativa em dar à constrição o bem de família, o entendimento do


Superior Tribunal de Justiça segue no sentido de que mesmo preenchido todos os
requisitos inerentes à concessão do negócio jurídico processual, é inviável o acordo em
questão, devendo assegurar a característica de impenhorabilidade,

CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. LEI N. 8.009/1990. BEM DE FAMÍLIA. ACORDO


HOMOLOGADO JUDICIALMENTE. DESCUMPRIMENTO. PENHORA.
POSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE BOA-FÉ.

1. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça inclinou-se no sentido de que o bem


de família é impenhorável, mesmo quando indicado à constrição pelo devedor.

2. No entanto, verificado que as partes, mediante acordo homologado judicialmente,


pactuaram o oferecimento do imóvel residencial dos executados em penhora, não se
pode permitir, em razão da boa-fé que deve reger as relações jurídicas, a desconstituição
da penhora, sob pena de desprestígio do próprio Poder Judiciário.

3. Recurso especial a que se nega provimento.

(REsp 1461301/MT, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, TERCEIRA


TURMA, julgado em 05/03/2015, DJe 23/03/2015 – grifo nosso).

Ou seja, segundo esse julgado, independentemente da parte, por livre e espontânea


vontade, dar à constrição o bem de família a fim de satisfazer a dívida contraída, este
ato é inadmissível, pois desprestigiará o poder judiciário como um todo. Diante dessa
análise seria impossível dar a penhora o bem de família mediante a vontade das partes,
contudo, atente-se, que a decisão em apreço é anterior a vigência do Código de Processo
Civil vigente, e ademais, deve-se esperar compreensivamente, que os Tribunais
Superiores decidam de maneira diversa, tendo em vista a existência da flexibilização
dos entendimentos dos órgãos julgadores, que por vez, finalizam o entendimento
mediante jurisprudência.

Por ora, a tese alegada pelo STJ é pacífica, porém a possibilidade de dar à constrição o
bem de família, certamente há de ganhar força, mediante a aplicação do art. 190 do
CPC/15, fazendo-se imprescindível que o aplicador do direito, isto é, o juiz, identifique
e compreenda que a vontade das partes no processo é de grande relevância, devendo
colocar de lado o motivo dos órgãos julgadores atuarem em prol das partes e julgarem
com base na inexistência de qualquer ato lesivo em decorrência do direito alegado e
fundamentado, fossilizados na percepção de protetores das partes processuais,
presumindo-se certa vulnerabilidade destas em referência ao direito propriamente dito e
pleiteado.

Por outro lado, o Supremo Tribunal Federal decidiu de maneira diversa, ensejando uma
exceção à regra da impenhorabilidade do bem de família, uma vez que fiador de
contrato de locação está sujeito a penhora de seu bem de família, assim segue a decisão,
AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. 1)
CONSTITUCIONAL. PENHORABILIDADE DO BEM DE FAMÍLIA DO
FIADOR DE CONTRATO DE LOCAÇÃO. POSSIBILIDADE. 2) ALEGADA
CONTRARIEDADE AO ART. 5º, INC. LV, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA.
OFENSA CONSTITUCIONAL INDIRETA. AGRAVO REGIMENTAL AO QUAL
SE NEGA PROVIMENTO.

(STF - AI: 798668 RJ, Relator: Min. CÁRMEN LÚCIA, Data de Julgamento:
13/04/2011, Primeira Turma, Data de Publicação: DJe-083 DIVULG 04-05-2011
PUBLIC 05-05-2011 EMENT VOL-02515-02 PP-00263 – grifo nosso)

Dessa maneira, o STF relativizou a circunstância cogente da impenhorabilidade do bem


de família definida em lei, do mesmo modo que, outrora, buscou dar satisfação à
vontade das partes no processo, vez que deixou de se ater tão somente às regras ditadas
pela lei. Oportuno se faz salientar, desde que vislumbrado a decisão acima, pela
viabilidade da concessão do negócio jurídico processual que tenha como objeto a
desconstituição da impenhorabilidade do bem de família, tendo em vista a sua
verdadeira relativização, deixando a mercê da vontade das partes escolherem aquilo que
melhor lhes convêm.

É relevante mencionar que mesmo constatando divergência quanto ao posicionamento


jurisprudencial em relação à matéria, o direito é flexível e, por vez, necessita do avanço
do órgão jurisdicional em julgar de acordo com o direito, não podendo permanecer
inerte e fossilizar um mesmo contexto fático, sem superar e posicionar-se de maneira
diversa e em consonância ao atual direito, garantindo às partes a segurança jurídica e,
mais, a previsibilidade das decisões originárias dos órgãos julgadores.

2.4 HIPOTECA DO BEM DE FAMÍLIA

Seguindo o raciocínio, em caráter de exceção, a própria Lei 8.009/90, em seu art. 3º,
inciso V, exclui da impenhorabilidade o bem que outrora fora dado a hipoteca como
forma de garantia, isto é, quem der o bem de família a hipoteca não fara gozo do direito
de impenhorabilidade, presumindo-se ter aberto mão da garantia estendida pela lei em
específico.

A fim de dar entendimento ao instituto, hipoteca nada mais é do que uma forma de
garantia real de bem imóvel, podendo ser motivada pelo proprietário do bem. Ora, não
seria a hipoteca uma forma de acordo entre as partes, onde o devedor da relação
negocial concede o seu imóvel a penhora, com o intuito de satisfazer a dívida contraída?
Por ser uma forma de acordo, resta provado a similitude a ser aplicada ao negócio
jurídico processual atípico em comparação ao instituto da hipoteca. Cumpre ressaltar
que nas falas de Pereira (2013, p. 314) “hipoteca é direito real de garantia de natureza
civil, incidente em coisa imóvel do devedor ou de terceiro, sem transmissão da posse ao
credor.”

Assim sendo, pode o próprio devedor entregar seu bem de família a hipoteca, a fim de
dar garantia a dívida existente, tornando suscetível de penhora. Diante de tal situação,
assemelha-se a hipoteca ao instituto do negócio jurídico processual quanto da
possibilidade de dar o bem de família a constrição, fato é que o referido instituto –
hipoteca – pode-se originar através de ato convencional entre as partes, do mesmo modo
em que as partes podem discutir as cláusulas processuais.

Ainda, Pereira (2013, p. 323) continua a asseverar acerca do instituto que “constitui-se a
hipoteca por força de contrato (hipoteca convencional) [...].” Isto é, as partes mediante o
acordo de vontade podem estipular a existência da hipoteca, por meio de contrato,
assegurando-lhes o princípio da autonomia da vontade na relação jurídica.

Dessa feita, vislumbra-se a perfeita condição da aplicação do negócio jurídico


processual em alterar a principal característica do bem de família, de impenhorabilidade
para penhorabilidade, vez que a autonomia das partes deve prevalecer.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto, é notório que o ordenamento jurídico incluiu em seu contexto um


instituto novo, cabendo à interpretação do órgão jurisdicional regulá-lo e aplicá-lo de
maneira mais viável e eficaz às partes do processo. Correspondendo aos ditames da lei,
o legislador à época da elaboração do CPC/15 ampliou as atribuições do poder
jurisdicional, deixando, via de regra, ao juiz aplicar o direito conforme melhor entender,
pois que é explícito a inserção de cláusulas gerais no texto legal.

Atualmente é ironia admitir que todos os direitos são passíveis de serem objetos do
negócio jurídico processual, ainda mais aqueles que se referem à dignidade da pessoa
humana, vez que não se pode ir contra aquilo ditado como direito fundamental,
imputando o papel da doutrina e da jurisprudência delimitar o que se poderá acordar.

Por essa razão, o fato de dar à constrição o bem de família pela vontade da parte em
razão de estar diante de norma cogente, não é meio suficiente de impugnar a sua
concessão e, assim, diante da análise das citações acima mencionadas e consonantes a
súmula 549 do STJ: “É válida a penhora de bem de família pertencente a fiador de
contrato de locação”, a qual amplia a interpretação ao caso sob estudo, é perfeitamente
possível o inverso da teoria; isto é, sabe-se que o pacto de impenhorabilidade é admitido
pela autocomposição e, nada mais justo seria outorgar a validade ao interesse processual
da parte em ceder o seu único bem, sendo este o de família, em garantia da dívida que
veio a constituir, desde que regularmente acordado e aceitável pela parte cedente o fato
de dar-lhe o bem de família a penhora, ensejando a satisfação do interesse processual de
ambas as partes que convencionaram o processo, pois que sem elas este não aconteceria.

4 REFERÊNCIAS

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convenções processuais no processo civil, São Paulo: LTr, 2014;

ARAÚJO. Fabio Caldas de. Curso de processo civil. Tomo I. Parte geral. São Paulo:
Malheiros, 2016.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo regimental no agravo de instrumento


nº AI 798668. Sergio Aureliano Ferreira. Relatora Min. Carmen Lúcia, 13 abr. 2011.
DJe, Brasília,1240, p. 263, abr. 2011. Disponível em:
https://jurisprudencia.s3.amazonaws.com/STF/IT/AI_798668_RJ_1304688981880.pdf?
Signature=CQDhkQD4gUs1iIL6EBQ8G6zxPJA%3D&Expires=15d7cc5a53. Acessado
em 08/09/2017.

_________ Superior Tribunal de Justiça. Acordão no Recurso Especial n.1.461.301 –


MT. Relator: NORONHA, João Otávio. Publicado no DJe. 23/03/2015. p. 1123.
Disponível em https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?
num_registro=201102007032&dt_publicacao=23/03/2015. Acessado em 08/09/2017.

CABRAL, Antonio do Passo. Convenções processuais, Salvador: JusPodivm, 2016.

DIDIER JR. Fredie. Curso de direito processual civil. Introdução ao direito civil, parte
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FARIA, Guilherme Henrique Lage. Negócios processuais no modelo constitucional


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WAMBIER, Luiz Rodrigues.; TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de processo civil,


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