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I.

O Contencioso Administrativo no Divã da História

1-Psicopatologia da vida quotidiana do Processo Administrativo. Da “infância difícil” do


Contencioso Administrativo aos modernos “traumas” do Processo Administrativo

No que respeita às relações entre administração e justiça (duas funções que correspondiam
a dois poderes do Estado), aquilo que os revolucionários franceses vão fazer é o contrário daquilo que
vão dizer. Se afirmavam o princípio da separação de poderes, eles criaram, com a Revolução
Francesa, a promiscuidade entre administração e justiça o que causou a confusão total entre o poder
administrativo e o poder judicial. Portanto, a separação de poderes foi feita ao nível das relações entre
poder jurisdicional e poder judicial, poder jurisdicional e poder administrativo. No que respeita às
relações entre tribunais e administração pública, esta realidade não foi separada e, pelo contrário, foi
confundida e misturada – estabeleceu-se um sistema de promiscuidade entre administração e justiça.
Como refere o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva, através de uma metáfora, é este o pecado
original do contencioso administrativo.

Aquilo que, em 1789, os revolucionários franceses fazem é proibir qualquer tribunal de poder
controlar a administração, estabelecendo uma regra segundo a qual a administração se julga a si
mesma. Afirma-se a separação de poderes, mas aquilo que faz é precisamente o contrário.

Esta realidade tem uma expressão de natureza psicanalista. O Doutor Freud falava nas
recordações de cobertura, que correspondiam a uma memória do momento traumático que o paciente
apresenta quando alguém lhe pergunta o que se passou. Só depois de aprender a viver com alguns dos
seus problemas é que ele consegue explicar exatamente aquilo que se passou, porque, a primeira versão
que ele apresenta é uma recordação, que corresponde àquilo que ele gostaria que tivesse acontecido,
apesar do trauma. Ora foi isto que fizeram os revolucionários franceses. Eles diziam, no quadro da
lógica da recordação de cobertura, que estavam a instaurar a separação de poderes a todos os níveis.
Aquilo que eles fizeram foi precisamente o contrário: estabelecer um sistema de autocontrolo da
administração, como diz Maurice Hauriou, criando o sistema de introspeção administrativa. É a
administração que se julga a si mesma e os órgãos administrativos tomaram a decisão de que são
responsáveis pelo julgamento da sua própria decisão.

Este trauma não é apenas um trauma do século XVIII, mas que vem até aos nossos dias, porque
só com a Constituição de 76 é que pela primeira vez os tribunais administrativos foram incluídos no
poder judicial. A constituição, no artigo 111.º, sobre os tribunais administrativos, é que vai incluí-los
no poder judicial. Porque, no quadro da Constituição de 33, como dizia lapidarmente o Senhor
Professor Marcelo Caetano, os tribunais administrativos, mesmo quando tinham esse nome, eram
órgãos da administração no exercício de uma função jurisdicional. Eram organicamente administração
pública, mas exerciam uma função de natureza jurídica e isso estava de acordo com a lógica das regras
jurídicas acerca do contencioso administrativo.

As sentenças só eram executadas se a administração quisesse, pois não havia nenhum processo
jurisdicionalizado para as executar coativamente. Como provou, e bem o Senhor Professor Freitas do
Amaral, a ausência deste processo executivo das sentenças dos tribunais administrativos era mais uma
prova da administrativização da justiça administrativa, porque se dizia que a sentença só era cumprida
se a administração assim o entendesse. Executar ou não uma sentença, era uma gracinha da
administração, uma realidade que tinha a ver com o processo administrativo gracioso. Com efeito, a
administração se concordasse com a sentença executava, se não concordasse não executava e não havia
nada a fazer. Foi preciso esperar pela reforma do contencioso administrativo, a grande reforma, no
quadro da nossa ordem constitucional democrática, que é a reforma de 2002-2004, para que o juiz
administrativo gozasse da plenitude de poderes em face da administração. Isto porque, até 2004 o juiz
só podia anular atos e regulamentos administrativos, não podia condenar nem dar ordens à
administração. Isto tinha que ver com os resquícios da infância difícil do tribunal administrativo em
que o juiz era ministro e o ministro era juiz. Antes disso, tudo se passava no seio da administração
pública e, portanto, havia um recurso para um órgão superior que tinha natureza jurisdicional e este
órgão tomava a decisão sobre aquela. Estávamos no quadro da continuidade do modelo da
indiferenciação entre administração e justiça, mesmo com as grandes mudanças de 76.

E se pensarmos no domínio da responsabilidade civil, o juiz inibe-se muito dos seus poderes
condenatórios. Podemos dizer que é uma autolimitação, enquadrá-la do ponto de vista sociológico
noutras realidades, inclusive com a própria responsabilidade, mas o que é facto é que estes traumas de
uma infância difícil de um juiz que não era juiz e que era o órgão administrativo, acabam por ter
consequências que chegam, praticamente, até aos dias de hoje.

O segundo trauma, alguns anos depois, tem que ver com uma sentença do acórdão Blanco
que foi proferida pelo tribunal de conflitos em 1873. Esta sentença, no quadro da evolução do
contencioso administrativo francês – como é o Português que, hoje, é mais alemão, mas tem matriz
francesa desde a origem – que teve origem em Portugal em 1832 com as leis de Mouzinho da Silveira,
que proibiram os tribunais de controlar a administração, vai ser afirmada no acórdão que pela primeira
vez afirma a necessidade de que o direito administrativo seja um ramo do direito autónomo, um ramo
de direito especial construído a pensar na administração e construído para proteger a administração.

Trata-se do atropelamento de uma criança chamada Agnès Blanco por um vagão de uma
empresa pública em Bordéus. O acidente foi em 71 ou 72, e a sentença é de 73. O que aconteceu foi
que a criança ficou ferida com gravidade, com lesões para toda a vida, porque estava a brincar num
sítio seguro, que até era utilizado pelos filhos dos trabalhadores da fábrica, uma espécie de uma
realidade antecessora da previdência social. Um sítio afastado da linha e, por causa daquele acidente
brutal, o descarrilamento fez com que um vagão saísse não só dos carris mais fosse projetado a uma
distância grande e provocou essa lesão na Agnès, que era uma criança de 5 anos. Os pais da criança
não se conformaram e foram pedir ao tribunal de Bordéus uma indeminização, usando uma ação de
responsabilidade civil.

O tribunal de Bordéus começou por se declarar incompetente, pois não havia um ato administrativo.
Estávamos perante uma simples operação material, logo o tribunal de Bordéus não podia decidir. Mas
o tribunal acrescentou outra coisa que vai marcar a resolução final do litígio: o tribunal vem dizer que
mesmo que quisesse decidir, mesmo que fosse competente, não podia julgar aquele caso porque não
havia lei aplicável. As regras da responsabilidade civil, constantes no código civil o Código de
Napoleão, não se podiam aplicar à administração, ou seja, a administração não era igual a um
particular, pois tinha uma posição de privilégio.

Os pais da criança não se conformaram e dirigiram-se à jurisdição administrativa e, a prova de que


estamos perante uma promiscuidade, é que foi o presidente da camara que se dirigiram, que no quadro
do contencioso administrativo do tipo francês era o responsável por tomar uma decisão de primeira
instancia no quadro da justiça administrativa. E o perfeito seguiu as orientações do tribunal de Bordéus
e, portanto, não se considerou competente e não decidiu.

Enquanto se estava na dúvida se os particulares iam ou não chamar o conselho de estado, órgão da
administração que funcionava como tribunal superior neste sistema que não era jurisdicional, mas um
sistema administrativo. Há uma intervenção do tribunal de conflitos que existe nos sistemas como o
francês e como o português, como o alemão onde há dualidade de jurisdições e que serve para dizer
quem tem razão quando há um conflito de juiz.
Os conflitos podem ser negativos, quando os tribunais se recusam a decidir e podem ser
positivos quando os tribunais andam à guerra uns com os outros para decidir. Na prática, os conflitos
são sempre negativos.

Há um conflito negativo, e é preciso saber quem é que decide. O tribunal de conflitos francês vai
decidir – a decisão que toma, de dizer que a competência é da justiça administrativa, implica que o
tribunal deve julgar também os litígios entre partes desiguais. Até aqui tudo bem, uma questão de
determinação do tribunal de competência. Mas o tribunal de conflitos vai acrescentar: é verdade que
não há norma jurídica aplicável, porque a administração não é igual a um particular e, por isso, é
preciso criar essa norma e todas as normas no direito administrativo, que é um direito da administração
como poder público, e que é um direito dos privilégios exorbitantes da administração. É uma expressão
de Maurice Hauriou, que mostra este modo autoritário que vai presidir ao nascimento do direito
administrativo de matriz francesa. Um direito que é preciso criar para proteger especialmente a
administração cuja autonomia é afirmada para negar uma indeminização a uma criança de 5 anos que
ficou gravemente ferida – é um ramo do direito que nasce da pior maneira possível.

E é algo que não se reporta inteiramente ao passado: veja-se que em Portugal, até 2007 a lei
da responsabilidade civil pública era “esquisoestranha”, pois estabelecia um duplo regime. Um regime
dito de gestão pública regulado pela lei administrativa e da competência dos tribunais administrativos.
E um regime da chamada gestão privada que era regulado pelo código civil e era da competência de
tribunais comuns.

Antes de ir a tribunal, perante uma atuação administrativa lesiva era preciso saber se estávamos perante
um ato de gestão pública ou gestão privada e saber qual era o tribunal competente. Esta distinção não
fazia qualquer sentido, porque ao haver um regime especial para a responsabilidade administrativa, é
para toda. Tanto faz que se trate de uma decisão de um membro do governo, como de um fiscal da
administração pública, como de um motorista, como de qualquer outro. Não faz sentido esta
esquizofrenia.

Se em vez de um vagão de uma empresa pública, pensássemos num carro ao serviço do senhor
Primeiro Ministro – o qual tem um motorista que presta serviço no exercício das funções, responsável
pelo seu transporte – e se pensarmos que há um acidente que envolve esse automóvel, a primeira coisa
que é preciso fazer antes de 2008, para saber desde logo qual era o tribunal competente, era perguntar
se isto é gestão pública ou gestão privada, e não havia critério. A única resposta que o particular poderia
encontrar no seu advogado era: depende. Depende de quê? Depende de saber se o senhor Primeiro
Ministro vai ou não dentro do carro. Porque se ele for dentro do carro pode dar ordens ao motorista,
se ele não for não pode. Isto é um disparate total, porque se o carro está no exercício de funções
públicas, está no âmbito da hierarquia administrativa e o Primeiro Ministro, desde logo, quando vai
ser conduzido no exercício das funções não vai a guiar: não diz vire à direita, vire à esquerda, atropele
essa criancinha miserável. Não é essa a sua função. Pode ir a dormir, pode ir a ler o jornal, pode ir a
consultar os dossiers, pode ir a falar com o telefone e a relação hierárquica é exatamente a mesma
quando ele não está. O automóvel vai buscar o primeiro ministro no final da reunião. Alguém telefona
a dizer: apareça cá às tantas horas que termina a reunião. A relação é uma relação definida com
hierarquia. Há uma realidade em que há inclusive uma possibilidade de ordens diretas, há os walkie-
talkies, os telemóveis, há todas essas coisas que tornam exatamente igual a situação de estar lá o
primeiro ministro ou não estar. O que interessa é que aquele carro está no exercício de funções e
estando no exercício de funções há uma responsabilidade da administração pública.

Nos anos 80 isto foi criticadíssimo e a doutrina e, de alguma forma a lei procurou afastar isto,
enfim, dizer que isto foi um dos cavalos de batalha do Senhor Professor Vasco Pereira da Silva, que
criticou severamente a “esquizofrenia” do direito e do contencioso administrativo que levava a esta
distinção entre gestão pública e gestão privada dentro das acusações administrativas.

Em 2004, o legislador procurou resolver a situação, solucionando pelo menos o problema da


jurisdição competente. Só que o legislador de 2004, nos estatutos dos tribunais administrativos e fiscais
no artigo 4.º foi incompetente porque usou uma expressão vaga que diz: quando há lugar à
responsabilidade administrativa são competentes os tribunais administrativos. Ele julgava que estava
a alargar o âmbito, acreditando no Senhor Professor Mário Aroso, que foi responsável pela opção
doutrinal, mas os tribunais interpretaram no sentido de que só quando há responsabilidade
administrativa e que são competentes os tribunais administrativos, o que é maior disparate possível.
Saber qual é o tribunal competente é um pressuposto processual, saber se a administração é ou não
responsável é a resolução do litígio e não se pode adiar a questão do tribunal competente, dependente
do modo como se resolve o litígio isto é um absurdo total. Mas a jurisdição administrativa teve uma
corrente de jurisprudência muito forte que adotou esta perspetiva mesmo contra toda a doutrina. O que
se dizia é que se a administração tiver sido responsável é competente o tribunal administrativo, se
chegar à conclusão que não é, o processo começa de novo no tribunal judicial ou, se houver
comculpabilidade, a criancinha correu e atravessou-se ao carro ou a criancinha passou num sinal
vermelho e até eventualmente no contencioso administrativo, como no processo civil, até pode haver
o pedido reconvencional. Ora se houvesse pedido reconvencional ou qualquer outra questão da
repartição de responsabilidades então a competência era do tribunal comum e estava tudo a 0, o que
tinha estado a ser decidido no tribunal administrativo, passava para o tribunal comum.

Este problema foi resolvido em 2015, com a “reforminha” de 2015, em que se esclareceu que
era a justiça administrativa que resolvia sempre todas as questões. Portanto, este problema foi
resolvido, mas continuava a haver o problema da lei aplicável. E quando o legislador fez a lei da
responsabilidade civil publica em 2007, esqueceu-se de resolver este problema. Arranjou uma fórmula
vaga da jurisprudência dissesse o que era, exatamente a única questão que ele não podia deixar de ter
resolvido porque ninguém em Portugal tinha feito outra coisa se não discutir aquela norma, pôr em
causa e dizer que aquilo era inadmissível.

A atual lei da responsabilidade civil pública continua a usar uma expressão que é no mínimo uma
expressão equivoca, porque o artigo 1.º/2) da lei da responsabilidade civil pública diz que são da
competência do contencioso administrativo e são regulados por esta lei os atos que correspondam a
prerrogativas de poder público. É a expressão mais canhestra, ainda pior que gestão publica: é a ideia
da administração com uma espada a brandir o machado à cintura, como nos tempos primitivos, como
Maurice Hauriou fala, e haver lei especial quando há prerrogativas de poder público, mas acrescentava
ainda quando à regulação por lei. A lei era o critério que o Prof. Marcelo Caetano indicava para
distinguir a gestão pública da gestão privada, ficávamos na mesma só por aí. E por isso que alguns
acham que o legislador de 2007 fez um grande disparate e não resolveu o principal problema que tinha
de resolver.

O Senhor Professor Marcelo Rebelo de Sousa, enquanto professor de direito administrativo,


diz mal tem toda a razão ao criticar o legislador, e o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva
acompanha todas essas considerações, mas acha, no entanto, que é possível introduzir uma unificação.
Uma unificação dentro de todo o contencioso da responsabilidade civil pública. Porque aquela norma
deve ser interpretada em função do espírito do sistema e há uma norma do CPA que nos vai ajudar. É
o artigo 3.º, que estabelece o âmbito de aplicação do CPA, onde é dito que os princípios da atividade
administrativa são aplicáveis a toda atuação administrativa, ainda que, meramente técnica ou de gestão
pública. É isto que permite unificar o regime da responsabilidade civil. Até porque há um princípio da
responsabilidade que está na constituição e, portanto, há regras que permitem esta unificação. Mas era
desejável que tivesse sido o legislador a fazê-lo e não criar uma dúvida porque se ela é possível, nem
sempre a jurisprudência entende assim e tende muitas vezes a atuar nos termos traumáticos da realidade
do passado. Portanto, retomamos aos traumas da infância difícil de um direito administrativo, enquanto
direito especial para proteger a administração, que ainda tem algumas sequelas nos dias de hoje e é
uma realidade que não está ainda completamente ultrapassada. Coitadinha, não é? Nem sequer pode
estar no seu túmulo sossegada, continua às voltas uma vez que a realidade continua a apresentar uma
dimensão negativa.

Por tudo isto, veja-se que quando falamos em trauma, não é uma realidade do passado, daí não
ser utilizada a expressão “evolução histórica”. Quando se fala em traumas, deve ser feito um juízo
critico, um juízo negativo e esse juízo critico tem uma realidade de natureza psicanalista, é uma forma
de explicar usando a psicanálise. A razão por que o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva faz
referência aos traumas e à psicanálise cultural no contencioso administrativo tem a ver com a sua
leitura pessoal da história à luz de uma realidade que era errada, que era absurda e que não foi ainda
inteiramente ultrapassada. Já foi, na sua dimensão mais negativa, na dimensão patológica, mas não foi
ainda nalguns resquícios que ela deixa no quadro do moderno direito administrativo. Estes traumas
vão chegar até aos nossos dias e vão introduzir realidades distorcidas no âmbito do Direito
administrativo e no âmbito do processo administrativo ou Direito processual administrativo. Para
perceber isto vamos dividir a realidade em períodos. Vamos estudar a evolução que até aos nossos dias
tem 3 grande períodos, que têm alguns subperíodos.

2- A fase do “pecado original” do Contencioso Administrativo. O Estado Liberal e o sistema do


administrador-juiz

O Pecado original assenta nesta ideia de promiscuidade entre administração e justiça. E este
modelo vai andar associado à instauração do Estado Liberal, porque vão ser a revoluções liberais a
importar este modelo francês no quadro das instituições criadas. Como supramencionado, foi em 1832
que Mouzinho da Silveira estabeleceu a proibição dos tribunais comuns controlarem a administração
e criou órgãos de prefeitura, e o Conselho de Estado. Portanto, foi a revolução liberal, pela mão de
Mouzinho da Silveira, aliás ainda nos Açores, quando surgiu essa versão de 32, que estabeleceu este
regime francês da justiça do administrador juiz, de jurisdição meio administrativa, meio jurisdicional.
Já vimos que em Portugal esta realidade só desapareceu em 74, com a Constituição de 76, na sequência
da revolução de 74. Mas nos outros países, em regra, a transição do século XIX para o século XX,
como vamos ver a seguir na análise comparada, trouxe a jurisdicionalização do sistema. O que significa
que há depois um segundo momento, o momento da jurisdicionalização ou da tribunalização dos
órgãos especiais encarregados de julgar a administração. Isto vai corresponder ao período do século
XX, desde os primórdios do século, na maior parte dos países até mais em 59, foi quando surgiu a lei
fundamental alemã, e depois aos anos 70. A partir dos anos 59, esta realidade vai começar a
desaparecer, porque apesar de ter havido jurisdicionalização, o sistema mantinha o essencial da
realidade originária.

O contencioso continuava a ser limitado, limitado no seu âmbito. Não abrangia toda a função
administrativa, mas apenas os atos de poder, o juiz tinha poderes limitados de atuação e havia um
drama entre aquilo que eram as necessidades da sociedade administrativa – aqui também uma realidade
traumática do ponto de vista do funcionamento da justiça administrativa. Podemos dizer que esta fase
andou associada ao Estado Social. Foi o Estado Social que, pelo aumento da função administrativa e
com o aumento dos litígios administrativos, veio introduzir esta necessidade de jurisdicionalização do
sistema. A partir dos anos 60 e depois nos anos 70, com a crise do Estado Social e com daquilo a que
o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva chama de estado pós-social em que ainda vivemos, há um
terceiro período em que, primeiro do ponto de vista constitucional, depois do ponto de vista europeu,
vai haver uma tentativa de superar os traumas de infância. E essa superação vemos na plena
jurisdicionalização dos tribunais, não apenas porque o seu estatuto é judicial, mas também porque o
juiz tem integralidade dos poderes. Pode condenar e pode dar ordens à administração e esse é um
aspeto importante.

O segundo aspeto é o da subjectivização do contencioso administrativo. O contencioso


administrativo é um contencioso para a tutela dos direitos dos particulares, é um contencioso de partes
em que o particular e administração são iguais e esta realidade implica uma relação jurídico processual
que prolonga a relação jurídica administrativa que parte da qualificação do particular como sujeito de
direito. E, portanto, há aqui uma transformação que introduz essa subjectivização no sistema. No
primeiro momento, primeiro com a constituição alemã (lei fundamental alemã), depois com as
constituições (a Constituição portuguesa de 76, a espanhola de 78), com revisões constitucionais, como
em Itália, ou com a intervenção do concílio constitucional, como em França com a intervenção dos
tribunais comuns, ou, como no Reino Unido, houve a afirmação de um principio constitucional de
jurisdicionalização plena e de subjectivização da justiça administrativa. Portanto, há aqui uma
importância constitucional que vai até aos anos 80.

Em Portugal, por exemplo, o célebre artigo 268.º, número 4) e número 5), estabelece este
Princípio da tutela plena e efetiva dos direitos dos particulares no quadro da resolução de litígios
administrativos. Há aqui uma mudança de paradigma importante que surge nesta fase, mas depois, a
partir dos anos 90, sobretudo, e até aos nossos dias há um segundo momento desta fase da
subjectivização do sistema em que, a Europa, o direito europeu, vai ter um papel muito importante.
Vai introduzir a dimensão do contencioso cautelar, que andava limitada ou esquecida nos outros
sistemas, com exceção do alemão. Vai introduzir uma série de outras transformações que
correspondem ao momento da europeização, no qual ainda estamos a viver hoje, enfim, e que abrange
quer o continente, quer o Reino Unido.

O Reino Unido tem uma realidade administrativa que é composta, basicamente, por leis
europeias, que agora vão ter de ser nacionalizadas, transformadas em regras próprias, são regras
administrativas de origem europeia e a lógica do funcionamento de justiça administrativa também tem
acompanhado esta evolução. Enfim, com mudanças, com diferenças, mas tem acompanhado esta
evolução que se tem verificado no ordenamento do contencioso administrativo. E aquilo que,
atualmente, discutem os administrativistas britânicos, é de saber se mesmo com o Brexit a realidade
administrativa não vai manter-se igual. Enfim, há muita coisa que provavelmente se vai manter. Paul
Craig é um dos grandes especialistas e teorizadores do direito administrativo da atualidade e também
do direito administrativo europeu e ele tem escritos nos últimos tempos dizendo que o mais provável
é que ao nível das transformações da administração pública e da justiça administrativa as coisas se
mantenham na mesma.

Vamos começar pelo momento que correspondeu ao surgimento do Estado Liberal na Europa.
A primeira coisa a dizer é: se este modelo andou associado ao Estado Liberal e se foi exportado,
inclusive, através das Revoluções Liberais, o que é facto também é que este modelo não é exclusivo
do Liberalismo, podendo, até, ser considerado pouco liberal, se tivermos em conta a realidade atual,
pois havia aqui a ideia de uma Administração autoritária e a necessidade de proteger a mesma, que, à
partida, não são as duas coisas que associamos a Liberalismo. A prova de que isso é assim dá-se com
o surgimento de um novo Liberalismo: o Liberalismo Anglo-saxónico, que no princípio (sécs. XVIII
e XIX) não aceitava os princípios do modelo administrativo francês, por este ser um modelo muito
marcado pelas circunstâncias francesas – por exemplo não se falava num Estado, apesar da introdução
feita por Maquiavel, pelo que este só surge no Reino Unido no séc. XX. Esta ideia de Estado introduz
esta limitação do poder: como é que se vai limitar o poder da Administração, que é um poder de
Estado? Como é que um tribunal vai limitar outro poder? Isto vai criar, do ponto de vista teórico, uma
ideia de que há aqui uma realidade que não pode ser inteiramente conjugada. Contudo, não era essa a
lógica britânica. Enquanto que em Montesquieu os poderes públicos são integrados no Estado –
Montesquieu fala em poderes de Estado legislativo, executivo e judicial – a lógica britânica é a de que
cada um dos poderes são autónomos e independentes (existe um monarca no topo do poder
administrativo, mas não há Estado a juntar os poderes todos e, portanto, todos os poderes se controlam
uns aos outros).

A aproximação do modelo britânico e do francês acontece com o Estado Social, aparecendo um


sistema em que não havia, nem o modelo do Direito Administrativo, nem o da Justiça Administrativa
e, portanto, ele está ligado ao Estado Liberal de Direito. Por outro lado, não é necessariamente liberal
(basta pensar na Alemanha de Bismarck, que adota este sistema e não é liberal ou o modelo adotado
na Alemanha Nazi). Em que consistiu e como evoluiu este modelo? Houve três momentos na evolução
do sistema: há um primeiro período (1789-1799) em que há a total confusão entre Administração e
Justiça – administrar e julgar era a mesma coisa e, portanto, era o órgão administrativo que ia decidir
se tinha, ou não, tido razão.

Em 1799 vai haver uma primeira mudança, com a criação do Conselho de Estado (órgão
administrativo que não tem poderes decisórios = há uma distinção entre o órgão decisório e o órgão
que julga), que, segundo Napoleão Bonaparte, seu criador, é “um órgão meio administrativo, meio
judiciário”, sendo o órgão de consulta da Administração e o do julgamento da Administração, sempre
que há litígios administrativos. Contudo, o Conselho de Estado tinha de estar subordinado ao órgão
máximo do executivo e, portanto, este período (1799-1872) é chamado Sistema de Justiça Reservada,
porque o Conselho apenas podia emitir um parecer e esse parecer seria promulgado pelo Chefe de
Estado/Governo, não tendo, assim, a última palavra.

Em 1872, dá-se uma transformação importante porque, a partir desta data, o Chefe de Estado/Governo
vai delegar ao Conselho de Estado o seu poder – Sistema de Justiça Delegada. Este modelo ainda é um
modelo de Administração Pública, tendo associados alguns erros: é indiscutível que significou uma
primeira, ainda que ligeira, autonomização da Justiça Administrativa (Conselho de Estado passa a
decidir e a ter a última palavra da decisão governativa), havendo quem diga – Marcello Caetano e
Freitas do Amaral – que foi em 1872 que nasceu a Justiça Administrativa. Contudo, para o Professor
Regente, não têm razão: em primeiro lugar, o Conselho de Estado era e continua a ser um órgão da
Administração e não há nenhuma separação entre a secção consultiva e a secção contenciosa, não
havendo, como vai haver mais tarde, nenhuma distinção entre a função de julgar e a função de
administrar, pelo que estamos perante um órgão administrativo; em segundo lugar, quando falamos
em delegação dos poderes do Executivo, só podemos falar em delegação de poderes executivos; em
terceiro, em França, em 1889 o Acórdão Cadot vai pôr termo ao Ministro-Juiz (até essa data o Ministro
e o Juiz confundiam-se) e esta realidade prova que não foi em 1872 que se mudou o sistema, começou
a mudar em França a partir de 1872, mas verdadeiramente vai ser só no séc. XX, que as leis do
contencioso administrativo reconhecem a independência do Conselho de Estado enquanto secção
judicial, separando-o da secção consultiva em termos materiais, orgânicos e formais e essa realidade
só é afirmada em 1980 numa sentença do Tribunal Constitucional francês. Portanto, não é verdade que
tenha sido em 1872 que tenha surgido a Justiça Administrativa.

O período do Ministro-Juiz (1872-1889) é um período particularmente marcante porque o que se dizia


era o seguinte: é Ministro-Juiz porque o Ministro é a primeira instância do contencioso administrativo
e, por isso, devem ser levadas ao Ministro, enquanto titular administrativo supremo, todas as decisões
dos subalternos e, portanto, tem de haver primeiro um recurso hierárquico jurisdicionalizado para o
Ministro. O legislador português do Procedimento decidiu seguir o exemplo e positivar o recurso
hierárquico necessário – para o Regente é inconstitucional e é um “disparate” porque se uma decisão
administrativa foi tomada por uma autoridade competente é dessa decisão que se recorre, e portanto
haver um recurso hierárquico não se confunde com uma impugnação contenciosa, sendo o recurso
autónomo da impugnação contenciosa, tal como veremos quando falarmos da ação de impugnação.
Por outro lado, a própria ideia do recurso chega aos nossos dias, ainda se falando em França quando
se intenta uma ação administrativa (já não sendo um recurso limitado à anulação). Em Portugal,
também, o principal meio de impugnação dos atos administrativos, até 2004, chamava-se recurso
direto de anulação – apesar de desde 1976 já não ser um recurso, mas sim uma ação, tendo o Regente,
inclusivamente escrito um livro sobre o assunto. Como se considerava que o Conselho de Estado ia
atuar como superior hierárquico do Ministro, o Conselho apenas podia anular em razão da matéria. E,
portanto, até 1889 não é possível falar em tribunalização ou em jurisdicionalização, só podendo mais
tarde (em Portugal apenas com a Constituição de 1976).

Esta realidade marca um momento que os tribunais administrativos eram órgãos da Administração e
existiam para proteger a Administração. É preciso dizer que este modelo estava de acordo com o
ambiente do Estado Liberal do séc. XIX porque na lógica liberal a função mais importante era a
politico-legislativa e, portanto, os liberais preocuparam-se em legislar e estabelecer o principio da
legalidade, sendo este um princípio formal e limitado (aquilo que correspondia à legalidade era uma
legalidade muito limitada, e se era limitada, a ideia de que a Administração podia fazer tudo o que
entendia, desde que não fosse legislado, era uma realidade que vai estar na origem do Direito
Administrativo). Marcello Caetano dizia que “o poder discricionário é uma exceção ao principio da
legalidade” – exceção no sentido de que a Administração podia fazer o que entendia, estava
excecionada havendo uma lógica autoritária de proteger a Administração.
Mas há uma outra razão para isto. É que na lógica liberal, a função administrativa servia apenas
para garantir a segurança interna (liberdade e propriedade) e externa (face aos inimigos exteriores) –
o resto não seria tarefa da Administração – e se o que está em causa é a garantia da segurança, a
Administração pode fazer o que quiser e isso explica, depois, todas aquelas realidades que vão andar
associadas ao Direito Administrativo, como a lógica autoritária do ato administrativo. Este modelo
liberal de introduzir uma lógica de uma Administração autoritária e de uma lógica de proteger a
Administração era algo que tinha a ver com uma filosofia liberal em que os revolucionários
desconfiavam da Administração, queriam limitá-la e queriam que ela não fizesse nada e quando ela
atuasse era para garantir a propriedade e a liberdade, podendo, aí, usar e abusar da força que tinha. Por
isso é que o modelo do ato administrativo foi o modelo do ato polícia e por isso é que, ainda hoje,
temos algumas consequências no moderno Direito Administrativo, por aqueles que não têm a
psicanálise em dia – foi preciso esperar pela revisão de 2015 do CPA para que a expressão
executoriedade saísse do Código (apesar de já não significar nada).

3- A fase do “baptismo” do Contencioso Administrativo. O “milagre” da jurisdicionalização do


Contencioso Administrativo e o advento do Estado Social

Como é que as coisas mudaram? Temos de distinguir entre a realidade francesa, em que as
coisas foram mudando aos poucos, e a realidade dos outros países (Espanha, Alemanha, Itália), em
que essa mudança aconteceu num determinado momento que se pode determinar, por via legislativa.
Em França foi a partir de 1889, mas ninguém sabe quando surgiu o Contencioso Administrativo –
aquilo que os autores franceses dizem é que o nascimento da Justiça Administrativa é “um milagre”
(de uma Administração que podia fazer o que quisesse, surge uma que decide limitar-se – a ideia de
milagre surge desta ideia do poder do Estado que se decide autolimitar). Para o Regente, por um lado,
esta ideia do milagre parece adequada para explicar a realidade francesa, mas o milagre não é
exatamente este, em primeiro lugar porque parece que o Estado é o dono do Direito, quando na verdade
a ele está sujeito, enquanto sujeito de Direito; por outro acha que há 2 milagres em simultâneo porque
há aqui 2 coisas: há a realidade do Estado, que é autolimitado pelo próprio Direito e há o da
transformação do quase tribunal, como era o Conselho de Estado, num verdadeiro tribunal e isso foi
acontecendo a pouco e pouco, a partir do Acórdão CARDO, quando a secção jurisdicional do Conselho
de Estado se separou da secção consultiva e foi adquirindo um estatuto de tribunal, sendo esse estatuto
reconhecido pelas sucessivas leis dos finais do séc XIX e inicio do XX. Portanto, há dois milagres: há
o milagre do Estado de Direito e o milagre do Juiz que se constrói a si mesmo (Conselho de Ministro
enquanto tribunal que se construiu a si mesmo). Aquilo que eram duas funções realizadas pelo mesmo
órgão foram-se progressivamente extinguindo: em termos materiais (porque as funções são diferentes
– uma coisa é julgar, outra é dar conselhos), em termos formais (as regras são diferentes – de um lado
temos regras da magistratura e de outro dos funcionários públicos) e em termos orgânicos (de um lado
temos um órgão da Administração e do outro temos um verdadeiro Tribunal – desde 1980 que a
Constituição Francesa estabelece que a secção jurisdicional do Conselho de Estado é um órgão do
poder jurisdicional, e não do poder administrativo) = HÁ UMA SEPARAÇÃO. Uma separação que
faz com que nas antigas cocheiras do palácio esteja o Tribunal Constitucional (que começou também
por ser um Conselho). Realidade francesa que demonstra que órgãos que começam por ser órgãos
consultivos e que adiante se tornam verdadeiros tribunais, é algo sintomático que não permite perceber
o momento exato em que tudo isto começou. No início do século XX substituíram-se os parceiros,
atribuindo-se a órgãos locais jurisdicionais, tarefas de julgamento. Depois criaram-se os tribunais
centrais (órgão intermédio). Depois estabeleceram-se regras de execução das sentenças (dever de
executar as sentenças). Há uma realidade continuada em França que vai fazer com que o Tribunal
Constitucional venha definir com força constitucional que há um princípio base da Constituição
Francesa segundo o qual a secção contenciosa do Conselho de Estado é o Governo. Há assim uma
transformação, sendo que as sentenças vão ganhando estatuto jurisdicional, reconhecendo a lei esse
estatuto. Em França foi assim, mas em Itália foi em 2005, Espanha em 2006, na Alemanha em meados
do séc.XIX surgiu o tribunal da Prússia que adotava o modelo da justiça homologada francesa, mas no
Sul da Alemanha já existiam tribunais administrativos autónomos (constituição de weimar faz
abranger este sistema para todo o estado alemão).

Em Portugal, como referia o Senhor Professor Marcelo Caetano, os tribunais exerciam função
jurisdicional como órgãos administrativos. A Constituição de 1976 vai proceder à jurisdicionalização
do contencioso administrativo (passa-se do pecado original para o batismo e ao crisma), passando a
haver uma alteração radical do sistema (vítima da continuidade histórica originária de França). O
segundo momento (batismo/jurisdicionalização), vai introduzir uma alteração no sistema britânico que
o aproxima do sistema de tipo francês. Desde os finais do século XIX começa a surgir no Reino Unido
Direito Administrativo e a prova é que desde 1910, nas Universidades começa-se a estudar Direito
Administrativo (consequência do Estado Social). Surgem também os “Tribunals”, que são órgãos
administrativos, a quem a lei atribui poderes de decisão e “ruling”, equivalentes à questão do pecado
original. Têm também poderes de auto-tutela das decisões, podendo executar as decisões. Vai
acontecer no sistema britânico que ao nível da 1ª Instância haja uma especialização jurisidicional, que
começou com o “Queens Bench” do “High Court” que hoje se chama Tribunal Administrativo.
Em suma, vimos o período do “pecado original” - correspondente ao período do administrador-
juiz (séc.XVIII e séc.XIX) e depois o período do “batismo” - correspondente à jurisdicionalização ou
tribunalização do contencioso administrativo e isto como uma mudança de estatuto, uma mudança na
natureza do tribunal (finais do séc.XIX e princípios do séc.XX). Este segundo período vai andar
associado ao modelo de Estado Social ou Estado de Providência.

4- A fase da “confirmação” do Contencioso Administrativo. Tribunais administrativos e tutela


jurisdicional plena e efetiva dos particulares perante a Administração no Estado Pós-Social

Por último, há a situação atual de um modelo plenamente jurisdicionalizado e subjetivizado, a


qual o Prof. Vasco Pereira da Silva intitula como o modelo do “Crisma”. É atribuída esta denominação
porque será nesse período onde se confirma a natureza jurisdicional do contencioso e se subjetiviza o
modelo (à semelhança da confirmação/crisma no âmbito da realidade católica). Dá-se, portanto, uma
mudança de paradigma que vai passar por duas sub-fases diferentes. A primeira é a da
constitucionalização do processo administrativo - que apresenta um primeiro momento a seguir à lei
fundamental alemã “Grundgesetz” (1949) e, mais importante, depois entre os anos 70 e 80 - e a
segunda sub-fase da europeização do processo administrativo - que inicia basicamente nos anos 80.

Vimos na aula passada o significado da lógica traumática do sistema do “pecado original”,


a promiscuidade entre Administração/justiça e as consequências que isso teve até aos dias de hoje. A
ideia de que o Contencioso Administrativo é um contencioso especial (tão especial que pode ser feito
pela própria administração) e as consequências que isso teve nos termos do órgão fiscalizador da
legalidade da administração pública, realidade, correspondente ao sistema do administrador-juiz,
estava relacionada com este trauma do direito administrativo, nascido no séc.XVIII e no séc.XIX, na
medida em que era um Direito Administrativo autoritário, o Direito da Administração agressiva - para
usar a expressão de Otto Bachof “um direito que se preocupava sobretudo com o exercício do poder”,
as tais prerrogativas excecionais exorbitantes que a administração possuía. De alguma maneira a fase
em que vivemos hoje é produto da superação dos elementos principais ou de alguns aspetos principais
destes dois traumas, não obstante à possibilidade de haver alguma continuidade (e há ainda muitos
problemas para resolver como existirão sempre). À imagem da psicanálise, deve existir um constante
esforço, mantido em dia, de modo a perceber no contencioso administrativo, a necessidade de conhecer
melhor as instituições e o seu modo de funcionamento, no quadro da atualidade.
Depois há a já mencionada segunda fase, que nos outros países começa no início do séc. XX,
finais do séc. XIX na Alemanha, que é marcada por esta mudança de estatuto do tribunal. Este torna-
se num verdadeiro tribunal por passar a integrar o poder judicial. Em alguns casos, até originando
realidades diferentes - p.e. (usando um exemplo do direito comparado) em Espanha a lei que introduz
o Conselho de Estado no Supremo Tribunal de Justiça, esta seção administrativa do Supremo Tribunal
de Justiça é integrada num órgão único. Ou seja, há jurisdição especializada ao nível da primeira
instância e ao nível da instancia intermédia, mas ao nível da instância superior, aquilo que era o anterior
Conselho de Estado (desde 1905 ou 1906), há uma sala do Contencioso Administrativo, que é uma
seção especial que correspondia ao anterior Conselho de Estado, mas esta sala integra-se no próprio
Supremo Tribunal de Justiça, portanto significa que aqui o modelo espanhol quando se tribunaliza, ou
seja, quando se jurisdicionaliza, cria também uma realidade especial em que ao nível do órgão superior,
a especialização se atenua. Há uma grande especialização nas primeiras instâncias e atenuasse no final.
Em Portugal, como na França e na Alemanha, esta ideia de especialização dá-se a todos os níveis -
inclusive ao nível superior em que há um Supremo Tribunal Executivo - numa lógica de especialização
continuada. Em Espanha criou-se um sistema intermédio, o que vai também aproximar os sistemas,
porque o sistema adotado (do tipo francês) adquire depois, no topo, uma lógica, podemos dizer,
britânica ou americana. O que se verifica no Reino Unido é que precisamente nesta fase do Estado
Social, há, no quadro desta realidade, uma especialização que vai surgir no âmbito da primeira
instância para julgar. Portanto isto introduz uma outra questão porque atualmente, aquela que era a
questão essencial no séc. XIX e na primeira metade do séc. XX - que era saber se do ponto de vista da
organização judicial havia unidade ou dualidade de jurisdições, e dizia-se que a dualidade de
jurisdições era típica do sistema franco-germânico, ou do sistema continental. e que a unidade de
jurisdições era típica do sistema anglo-saxónico e, portanto, era uma realidade que louvava aquela
unificação jurisdicional - pelo menos aparente no sistema britânico, esta questão hoje esbateu-se.

Hoje a pergunta que faz sentido fazer do ponto de vista do direito comparado é de saber se há
ou não especialização em matéria administrativa e, havendo uma resposta positiva em praticamente
todos os sistemas jurídicos, questiona-se qual o grau e a que nível é que se verifica essa especialização.
Isto porque essa especialização pode existir no quadro de uma jurisdição autónoma como em Portugal,
França e na Alemanha, mas pode também dar origem a um sistema como o espanhol em que há
especialização na primeira e na segunda instância e não há a nível superior ou a esse nível ela é
esbatida. Pode acontecer como no Reino Unido em que há um tribunal de primeira instância, que hoje
em dia é especializado (o “Administrative Court”) mas já não são os outros (os tribunais superiores).
Ou, ainda, pode acontecer como nos EUA e no Brasil em que não há especialização na primeira
instância, mas há especialização a nível federal. Os tribunais federais são verdadeiros tribunais
administrativos, porque basicamente a sua tarefa é julgarem litígios.

Mas neste período do Estado Social em que analisamos, por um lado, se há uma mudança de estatuto
dos tribunais, essa mudança de estatuto não é acompanhada nem do alargamento da jurisdição, nem
de um alargamento dos poderes do tribunal e, portanto, continua-se a manter um contencioso
objetivista (um contencioso que tem por objetivo a defesa da legalidade e do interesse público e não
a tutela dos direitos ou interesses dos particulares). É um contencioso em que não há partes, em que o
juiz não condena ninguém e em que há um controlo limitado da atuação administrativa. Portanto, há
aqui uma mudança do estatuto, mas uma manutenção da realidade tal como ela existia. E, portanto, é
um momento, do ponto de vista da atualidade, intermédio entre a fase do administrador juiz e a atual
fase. No entanto, também é um momento que procura dar resposta a muitos dos problemas do
Contencioso Administrativo e ainda vai encontrar muitas limitações porque o drama começa a ser
sentido sobretudo de uma forma muito evidente a partir dos anos 60 (séc. XX). É que os litígios
administrativos aumentam imensuravelmente e, portanto, transformam-se numa realidade quotidiana
do funcionamento dos tribunais administrativos. E é deste aumento da litigiosidade que é preciso que
os tribunais tenham mais poderes para atuar. Isto gera inúmeros problemas de organização e problemas
de lei. Aqui em Portugal temos procurado resolver a esse nível as coisas, mas coloca também depois
problemas de eficácia do sistema e aí, neste momento, em Portugal, o problema parece ser este: o
sistema não é eficaz. O sistema foi vítima do seu próprio sucesso e, portanto, está agora a passar um
mau período, que corresponde a essa ineficácia da justiça administrativa.

Este período, ou esta fase do “batismo”, da tribunalização, vai durar mais ou menos o
correspondente à durabilidade do Estado social e vai entrar em crise, precisamente, com a crise do
Estado Social - esse modelo vai entrar em crise e, na perspetiva do prof. Vasco Pereira da Silva, não
só em termos de organização da justiça administrativa, mas em termos públicos em geral deu-se uma
mudança. O que se verifica a partir dos anos 70, implica mudança das funções estaduais, mudança da
lógica de Estado que passa a ser regulador, uma administração pública que passa a ser infra-estrutural.
Em vez de ser a lógica da administração prestadora de Otto Bachof, há agora essa dimensão da
administração infra-estrutural, que cria condições para o exercício da função administrativa no âmbito
da colaboração entre particulares e a Administração e isso tem múltiplas consequências: na
multilateridade da atuação administrativa, na complexificação, a fuga para o direito privado. Há uma
série de realidades que surgem e que tem a ver com este Estado pós-social em que vivemos. Mas
também há novos direitos fundamentais: - p.e. direito fundamental em relação à informática e às novas
tecnologias, direitos fundamentais em relação à genética e à necessidade de preservar o património
biológico dos indivíduos, direitos fundamentais de participação no procedimento e no processo. Há
um conjunto de manifestações e é, neste quadro, que surge um momento de crise – e nesta altura com
a crise do petróleo, há uma crise do Estado providência. E, portanto, uma realidade que do ponto de
vista do processo administrativo vai conduzir a uma lógica de superação dos dois principais traumas e
a superação passa em primeiro lugar por tirar todas as consequências - daí a ironia de chamar a
confirmação ou o crisma - da jurisdicionalização. Se o juiz administrativo é um juiz como os outros,
ele deve gozar da plenitude de poderes em face da Administração. Portanto, há uma transformação da
natureza nos estatutos de funcionamento dos tribunais administrativos. Mas ao mesmo tempo a lógica
de que o contencioso administrativo existe para a defesa dos direitos dos particulares. Não é mais para
a defesa da administração, é a defesa dos particulares no quadro das relações jurídico-administrativas.
Porque havendo uma relação jurídica e se o particular tem um direito que corresponde a uma lesão por
parte da administração, a tutela do direito implica que a Administração deixe de cometer a ilegalidade
e passe a agir segundo a lei. Portanto, há aqui uma lógica de inter-relacionamento que liga direitos e
deveres e que, portanto, introduz uma nova filosofia no quadro do processo administrativo.

4.1.- O primeiro período: a constitucionalização do Contencioso Administrativo. Dimensão real


e simbólica da constitucionalização da Justiça Administrativa

Em Portugal, é típico que a Constituição, em duas normas emblemáticas, vai introduzir esta
dimensão nova do Contencioso Administrativo. O art. 202º/3 CRP que está no capitulo da organização
dos tribunais na sua versão atual que é a versão que resulta de 1989, vem dizer que “compete aos
tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por
objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídico-administrativas” - é um tribunal que resolve
litígios das relações jurídico-administrativas. A relação jurídica é a lógica que equipara o particular à
administração. O particular e a administração têm direitos e deveres no quadro do Direito
Administrativo substantivo e são partes no processo administrativo, são sujeitos que intervêm em
condição de igualdade para tutelar a sua pretensão.

Nada disto era assim! A querela objetivismo/subjetivismo que tivemos em Portugal nos anos 80 e que
foi bem resolvida, e bem, no sentido do subjetivismo1, modelo que resulta da CRP. A Constituição que
no art. 268º/4 altera integralmente a lógica do Contencioso Administrativo, o Professor Regente

1
Nota para o envolvimento do sr. Professor nesta discussão, tomando parte da posição e defesa subjetivista.
chama-lhe uma revolução “coperniciana”, à maneira que Copérnico, muda o centro do processo
administrativo e o centro passa a ser a tutela plena efetiva dos direitos dos particulares. O art. 268º/4
diz-se que se garante aos particulares tutela jurisdicional efetiva dos seus direitos em todas as situações.
Em situações em que haja direitos lesados, que impliquem a anulação dos atos administrativos, que
impliquem a condenação da administração, que passe por uma tutela cautelar, ou seja, estes dois
números (que falaremos melhor na próxima aula quando virmos a evolução do Contencioso
Administrativo português) consagram aquela mudança radical que tem a ver com a superação do
segundo momento dos traumas da infância difícil do Direito Administrativo. Mas é preciso perceber
que nada disto era assim. A lógica objetivista era de considerar o seguinte: o Contencioso
Administrativo era objetivo, estava em causa apenas a legalidade dos atos administrativos e para
apreciar essa legalidade não havia partes, nem o particular era uma parte, porque este não tinha direitos
perante a Administração. Ia a tribunal apenas para auxiliar o juiz e a administração - uma espécie de
“bom escoteiro” que fazia a sua boa-ação indo a tribunal sem ter nada a ver com o processo. Teria sido
lesado num direito, porém o que se entendia no processo é que o particular não tinha nenhum direito
em causa e o juiz não vai decidir se ele tem um direito ou não, vai apenas colocar o processo em juízo.
A Administração também não era responsável pelo ato. Estava lá, mas o ato não era feito por ela e, por
isso, ela não podia ser condenada. E nesse processo nem o particular nem a Administração eram parte
em sentido processual, não eram parte em sentido substantivo nem eram partes em sentido processual.
E o juiz que analisava o ato, da expressão de Maurice Hauriou como na Idade Média se analisava um
cadáver, o ato era um cadáver - uma realidade inerte que não tinha pai nem mãe, não sabia nem quem
afetava nem quem a tinha praticado - a anulação deste ato correspondia ao máximo que o juiz podia
fazer em termos objetivos.

Ora tudo isto vai ser afastado por esta nova lógica subjetivista. Porque agora diz-se que o
particular vai a juízo, não para ajudar a administração, mas para defender um direito que foi
lesado e, essa lesão implica uma legalidade por parte da Administração, portanto vai ter de ser
reparada a ilegalidade pela tutela do direito. Portanto, é uma lógica em que o particular atua como
parte. Tem de intervir nos mesmos termos, tem de ter os mesmos poderes processuais, tem que intervir
de uma forma integral em todo o processo. Nada disto era assim, sobretudo em Portugal, até aos anos
80 do séc. XX.

Nos outros países europeus alguns destes traumas foram superados antes, foram superados num
momento anterior ao Estado Social ou ao longo da evolução que se vai dar. Mas em Portugal só
verdadeiramente nos anos 80, embora a Constituição de 1976 (como todas as constituições) tem num
primeiro momento introduzido esta mudança no código.

Também esta constitucionalização, que é o primeiro momento desta fase última, inicia-se
primeiro com a lei fundamental de Bonn, a seguir à guerra. Esta regra estabelece a plena
jurisdicionalização, poderes integrais do juiz e a tutela integral dos direitos dos particulares - e é fácil
de perceber o porquê de ter surgido primeiro na Alemanha, que tinha tido um eclipse do Estado de
Direito e com a nova ordem da lei fundamental, a Alemanha quis que a administração nunca mais
fosse o objeto, ou fosse uma realidade que servisse para por em causa os direitos dos particulares que
e, portanto, criaram-se as condições e competências. Se pensarem no caso da França e da Rússia, que
tinham o sistema francês, portanto a lógica romano-germânica mantém a ideia de que há tribunais
administrativos, mas tinha também o Reino Unido. Aquilo que surgiu na Alemanha foram ações que
permitem ao juiz condenar a Administração, dar ordens, atuar por qualquer falta e, portanto, houve
uma realidade conjuntural que, quer em razão das potências ocupantes de Berlim (que estava dividida
pelo fenómeno do pós-guerra), quer também o facto que obrigou a experimentar algo que estivesse a
meio caminho entre as duas realidade - enfim, os autores alemães dos anos 40 e dos anos 50 fizeram
Direito Comparado e criaram um modelo que assentava nesta lógica. Portanto, o sistema alemão é,
desde a lei fundamental, o sistema completo e adequado para a tutela de direitos de particulares. Ainda
hoje, é o modelo em termos de Processo Administrativo, por causa disto, destas circunstâncias
propícias para esta realidade. Foi a Constituição, designadamente o artigo 19º/4, a conter, aquilo que
chamamos de “norma perfeita do Direito Constitucional e do Processo Administrativo”.

Ora bem, esta realidade passa por um momento da cura psico-analítica de qualquer doente, que
dá um salto qualitativo do seu tratamento a partir do momento em que é capaz de verbalizar aquilo que
aconteceu. É o momento decisivo da análise quando alguém é capaz de dizer e explicar aos outros
(obriga a escrever aquilo que é preciso fazer para superar o trauma), é isso que vai fazer do ponto de
vista constitucional. As constituições escrevem, verbalizam a superação dos traumas iniciais do
processo administrativo. Portanto, as constituições consagram este sistema plenamente
jurisidicionalizado e este sistema virado para a tutela dos direitos particulares. Em alguns casos é a
constituição, noutros são os tribunais constitucionais ou órgãos encarregados da fiscalização da
constituição. Na Alemanha foi a constituição, em Portugal e Espanha também. A Itália foi através de
uma revisão constitucional em adição aos tribunais. Em França, foi o tribunal constitucional,
precisamente numa altura em que se transformou num verdadeiro tribunal constitucional, que veio
afirmar a natureza jurisdicional da seção contencioso e veio dizer que este tribunal servia para tutelar
os bens dos particulares e, portanto, há duas sentenças dos anos 80 (uma de 1980 e outra de 1988),
como encontram no divã, que introduzem esta dimensão plenamente jurisdicionalizada e esta dimensão
subjetiva do contencioso administrativo. Esta realidade também surge no sistema britânico, os
tribunais superiores britânicos também vieram afirmar o principio constitucional de que a última
palavra cabe ao juiz e, portanto, todos aqueles tribunals que têm uma importância muito grande no
funcionamento da justiça administrativa, no quadro promiscuo entre administração e juiz, esses
tribunals são controlados em última análise por um tribunal que em termos constitucionais tem a última
palavra sobre esta realidade. E esse foi o primeiro momento da evolução - o momento da
constitucionalização do processo administrativo, uma constitucionalização que vai introduzir a plena
jurisdicionalização e a tutela efetiva dos direitos dos particulares

4.2- O segundo período: a europeízação do Contencioso Administrativo. O Processo


Administrativo no divã da Europa

Depois há o segundo sub-período dentro deste segundo momento: é que a União Europeia vai
introduzir não apenas aspetos novos do ponto de vista jurídico, mas vai ter uma grande influência no
Direito e no processo administrativo. Isto porque a União Europeia, que começou por ser uma simples
aliança de Direito Internacional, atualmente já não é isso que se verifica. Não é um Estado ou uma
federação, mas aquilo que se passa no quadro da União Europeia é uma realidade interna - porque há
um sistema jurídico próprio da UE e não há nenhum sistema jurídico da ONU ou qualquer outra
organização internacional. Há um sistema jurídico que é comum a todos os Estados-membros. Por um
lado, resulta da atuação dos órgãos europeus, mas esse direito produzido pelos órgãos europeus
mistura-se com os direitos nacionais. Por um lado, prevalece o princípio da primazia e da
aplicabilidade direta, mas, por outro lado, conjuga-se, mistura-se com os direitos nacionais. E aquilo
que é a principal função da Europa, desde os primórdios e, cada vez mais, dos nossos dias é exercer
em conjunto, a nível europeu, a função administrativa através de políticas públicas que vão da
economia à realidade social, à própria cultura - realidades que vão sendo exercidas em comum no
quadro europeu.

Nesta linha, surgem numerosas normas, normalmente sob a forma de diretivas europeias, que
estabelecem regimes comuns, que têm uma dimensão substantiva, procedimental e processual. O que
está agora na moda, o caso da contratação pública, que é neste momento uma realidade que tem um
regime comum europeu e depois é transposto para a ordem jurídica nacional podendo ter alterações
entre os diferentes Estados-membros, mas continua a ser comum e tem ainda de cumprir as regras da
União Europeia, por ser suscetível de controlo por parte das instâncias europeias e dar origem a sanções
ao Estado-membro. Portanto, União Europeia criou, no quadro da contratação pública, um conjunto
de regras processuais, que levaram à criação de um processo urgente para o contencioso e, assim, há
novas regras processuais que provêm diretamente da União Europeia, tal como a noção de ato
administrativo que é o objeto do processo.

O ato administrativo do ponto de vista comunitário não é, como se dizia no manual do prof.
Marcello Caetano e ainda se diz no manual do prof. Freitas do Amaral (entre outros), que não é um
ato necessariamente de um órgão administrativo porque os particulares praticam atos administrativos
quando estão no exercício de funções administrativas. E até no Reino Unido e nos países
anglosaxónicos onde nem existem pessoas coletivas. Portanto, estamos perante atuações de entidades
privadas que exercem uma função administrativa e ao exercerem a função, praticam atos
administrativos - p.e. o concessionário de uma obra pública pratica atos administrativos; o órgão
dirigente do organismo de bombeiros; a Federação Portuguesa de Futebol pratica atos administrativos
- não porque os seus órgãos sejam de natureza pública mas porque desempenham a função
administrativa e no quadro da função administrativa desempenham atos administrativos. Por isso é que
o código português no quadro da reforma (art. 4º ETAF) considera que os atos praticados por privados
no exercício das funções administrativas são objeto do processo administrativo, são dirimidos os seus
litígios no Contencioso Administrativo e estão na competência do Tribunal de Contas - grande
polémica em Portugal - e, portanto, há normas europeias que estabelecem o regime comum europeu
em matéria de processo administrativo, mas há também atuação de órgãos europeus.

A União Europeia descobriu, a partir dos anos 80, que havia em todos os Estados-membros
uma ausência quase total de processos urgentes e tutela cautelar. Em Portugal, havia uma suspensão
da eficácia que nunca era aplicada: era o único mecanismo que existia em Portugal até 2004 e esse
mecanismo nunca foi aplicado e nunca funcionava no sentido de requisitos especiais, portanto não
havia tutela cautelar. Mas também não havia em França, Itália, Espanha e nem no Reino Unido. A
União Europeia veio a descobrir que o Reino Unido tinha, supostamente, tribunais comuns a julgarem
toda a Administração, porém existiam exceções ao controlo da Administração - designadamente ao
que correspondia aos atos do Governo, aos atos da rainha - estando excecionados das providências
cautelares e muitos deles estavam excecionados ao controlo jurisdicional. Portanto, tanto o Reino
Unido, como o Estado Português foram condenados pelo Tribunal de Justiça da União Europeia -
sentenças às quais o prof. Vasco Pereira aprova porque em Portugal o Ministério Publico dizia-se que
era uma parte, mas depois estava na audiência do julgamento ao lado do juiz e a decidir como o juiz.
Sobre esta questão, a União Europeia, veio dizer que podia ser criado um órgão auxiliar do
tribunal, mas se é uma parte não pode participar no julgamento. Foi também condenado o Estado
francês porque era possível, em França, que um indivíduo que mudasse de carreira (deixando de ser
administrador da seção administrativa do Conselho de Estado) e passasse para juiz (fazendo o concurso
da seção contenciosa), podia acontecer que esse novo juiz fosse decidir sobre um caso sobre o qual
tinha dado parecer enquanto administrador. A União Europeia veio pronunciar-se dizendo que esta
situação seria inadmissível porque o juiz não pode ser o administrador: se alguém desempenhou uma
tarefa de administrador não pode julgar esse caso. E isto obrigou a mudar o contencioso francês, o
belga e todos. Ou seja, há uma política dos órgãos da União Europeia, que no quadro da lógica do
processo administrativo veio também dar determinações que são importantes do ponto de vista
constitucional - determinação de que tinha de haver um contencioso cautelar a sério na jurisdição
administrativa. Não seria uma verdadeira justiça, o juiz continuaria limitado nos seus poderes,
enquanto não houvesse processo cautelar.

Depois, na última década do século XX e primeira década do século XXI, deram-se reformas
do processo administrativo em todos os países da União Europeia, que por um lado concretizaram a
lógica constitucional, mas concretizaram também a dimensão europeia. A novidade foram as
providências cautelares - elas transformaram o contencioso cautelar no quadro europeu por causa desta
nova lógica do funcionamento da justiça administrativa e por isso, quando nós discutimos a nossa
reforma em Portugal, tivemos cá franceses, alemães, italianos, espanhóis. O prof. Vasco Pereira da
Silva participou em quatro processos de revisão no estrangeiro: Itália, Espanha, França e Alemanha.
Participou em sessões onde se discutiu aquilo que queriam fazer, foi o sistema em que todos
participaram numa lógica em que não é vertical, mas sim horizontal, pretendiam que fosse criado o
direito unitário. Os sistemas são todos diferentes entre si, mas pretendia-se que houvesse regras
comuns e que essas regras permitissem a assimilação dos diferentes temas e a equiparação dos
diferentes resultados, só assim pode haver uma verdadeira União Europeia.

Isto tem consequências ao nível do funcionamento dos órgãos na lógica do Direito


Administrativo e também ao nível da lógica do processo administrativo. Esta realidade é de tal maneira
importante que o prof. Vasco Pereira da Silva considerou que, tal como no passado se falava numa
dependência ou numa dupla dependência entre o Direito Constitucional e o Direito Administrativo,
atualmente, é preciso considerar essa dupla dependência também no relacionamento entre o Direito
Administrativo europeu e o Direito Administrativo nacional. E que é preciso, tal como a nova lógica
do Direito Administrativo que no quadro clássico - o quadro traumático - correspondia à ideia (de Otto
Mayer) de que o Direito Constitucional passava e o Direito Administrativo ficava - o Direito
Constitucional era uma coisa que não servia para nada, era política e não era relevante enquanto o
Direito Administrativo é que mandava (lógica do séc. XIX e inicio do séc. XX) esta realidade não
podia fazer sentido no âmbito de um Estado de Direito dos nossos dias. Portanto vai se começar a dizer
(tal como foi dito por um juiz do Tribunal Constitucional Alemão) que o direito administrativo tem de
ser Direito Constitucional concretizado.

A construção passou a ser efetiva. Deixou de ser uma realidade meramente política e passou a
ser uma realidade efetiva e o Direito Administrativo concretiza essas opções da Constituição. Quanto
a este aspeto, o Professor Marcelo Rebelo de Sousa costumava dar como exemplo as diferenças entre
o Direito Administrativo e o Processo Administrativo e o sistema semipresidencial, presidencial e
parlamentar. Era um dos seus temas preferidos, porque essa escolha tem consequências em termos do
Direito Administrativo e do Processo administrativo. Há uma realidade de concretização do Direito
Constitucional.

Mas, o Professor Vasco Pereira da Silva vai mais longe, pegando na afirmação de
Betarrébua(?), concretiza que há uma dupla dependência do Direito Administrativo em relação ao
Direito Constitucional, bem como em relação ao Processo Administrativo. Dupla dependência porque
se por um lado o Direito Administrativo depende do Direito Constitucional, por outro lado, o Direito
Constitucional também depende do Direito Administrativo, dado que o Direito Constitucional não se
realiza se aquilo que está escrito na Constituição não for aplicado à prática, não corresponder à
realidade constitucional.

O Professor Vasco Pereira da Silva explica que é preciso considerar também que existe uma dupla
dependência entre o Direito Administrativo Europeu e o Direito Administrativo Nacional: isto porque,
por um lado, o Direito Administrativo português tem que respeitar o direito comum europeu em
matéria administrativa - toda esta polémica acerca da contratação publica tem que ver com saber se as
normas que o Governo está a fazer agora, para esta situação de crise, estão ou não de acordo com as
normas europeias, mesmo as europeias feitas para uma situação de crise. Portanto, há uma dependência
que tem que ver com esta relação direta imediata entre o Direito europeu e o Direito dos Estados-
Membros. Por outro lado, o Direito Europeu também depende do direito dos EstadosMembros,
exatamente porque a União Europeia não existe se as normas comuns não forem aplicadas em toda a
parte, mais precisamente na sua relação com a Administração e com os tribunais dos Estados-
Membros, essencialmente porque são os tribunais dos Estados-Membros que aplicam o direito europeu
no seu dia-a-dia, e se não o fizessem, não estaríamos perante uma concretização do Direito Europeu.
O Professor Vasco Pereira da Silva tem defendido, já há muito tempo, que é preciso também, no quadro
de relacionamento do Direito Europeu e dos direitos dos Estados-Membros, introduzir esta lógica da
dupla dependência, porque efetivamente se isso não suceder, estamos perante uma realidade, do ponto
de vista dos sistemas das fontes de direito, que corresponde a um falhanço do modelo do Estado de
Direito (Estado de Direito ao nível europeu e Estado de Direito ao nível nacional).

O Professor Regente também entende que existe o Direito Constitucional Europeu material. Isto é,
embora não exista uma “Constituição” formal, acabam por existir normas e princípios, tal como direito
fundamentais no quadro da União Europeia. Depois, analisa-se o quadro das regras legislativas, porque
também na União Europeia não se distingue entre lei e regulamento. No quadro da legislação da União
Europeia também há uma lógica de dupla dependência que acresce à lógica que o Professor Vasco
Pereira da Silva referia anteriormente, sendo que tal facto tem consequências no quadro das fontes de
Direito.

Voltando ao processo administrativo, há um conjunto de transformações que conduzem a esta


europeização do processo administrativo. Esta europeização depende da conjugação de realidades
legislativas: quer em matéria de contratação pública; quer em matéria de organização administrativa;
quer mesmo em matéria da defesa jurisdicional; no ordenamento da legitimidade e outras realidades
que resultam de diretivas europeias, resultando da atuação dos órgãos jurisdicionais europeus, e, aqui,
é preciso salientar que ao lado do Tribunal de Justiça da União Europeia, o Tribunal Europeu de
Direitos do Homem também tem tido um papel muito importante.

Acaba por ser curiosa a influência da europeização no Reino Unido, uma vez que o Tribunal
Europeu tem vindo a transformar o direito britânico. Perfilham esta opinião alguns colegas britânicos
do Professor, designadamente Polcray, que refere que tal vai continuar a acontecer no futuro. Portanto,
este autor está convencido que apesar de ter havido o Brexit, o ato neste momento da União Europeia
ainda vai ser de nacionalizar o Direito Europeu porque, de outro modo, ficaria sem Direito
Administrativo. Assim, vai ter de o nacionalizar e de seguida transformá-lo (ou não). De qualquer
modo, vai ter de o começar por nacionalizar. O facto de continuar a haver esta lógica de integração do
Reino Unido no quadro do sistema europeu dos Direitos do Homem, algo que tem tido um papel muito
grande no Direito Administrativo e processo administrativo britânico, em termos de ausência de
exceções, princípio de igualdade de armas entre administração e particulares, vai permitir manter
alguma unidade, mesmo quando ela desaparecer no ponto de vista politico e, também, em alguma
parte, do ponto de vista jurídico. Este aspeto é introduzido por esta lógica do Tribunal.
Isto para dizer que o Tribunal Europeu tem tido um papel muito importante, mesmo em França,
com a ideia do juízo equitativo, uma ideia que tem sido defendida sobretudo pelo Tribunal do Direito
Europeu e tem obrigado a transformações no quadro do Direito Administrativo nacional e do processo
administrativo nacional, de um ponto de vista organizativo. Esta ideia do direito equitativo serviu para
explicar que alguém que tenha sido administrador não podia ser juiz e apreciar o mesmo caso sobre o
qual já tinha tomado posição enquanto administrador. Não sendo o processo equitativo, o Tribunal
Europeu dos Direitos do Homem condenou Luxemburgo, a França e outros tribunais por terem tido
essa atuação, há aqui uma lógica que ainda é vertical de europeização.

Temos também a lógica da europeização horizontal, que entende que a existência de uma
União faz com que haja esta tentativa de criar realidades comuns, exatamente porque o direito europeu
é a mistura do direito produzido pelas legislações comunitárias e as leis nacionais. Não é por acaso
que se afirma, no Tribunal de Justiça da União Europeia, a aplicação da regra que, em caso de ausência
de norma e dúvida quanto ao direito aplicável, se aplique as normas dos Estados-Membros da União
Europeia. Há aqui uma mistura de vários direitos no quadro de uma lógica comum de criação de uma
unidade de Direito administrativo e, neste caso, de uma unidade de Processo Administrativo.

Encontramo-nos numa posição singular dado que esta situação nos últimos tempos reconduziu
a uma enorme aproximação de todos os sistemas administrativos e também, em parte, de sistemas
judiciais a sistemas de processo administrativos dos países europeus. Agora, com o Brexit, alguma
coisa vai ter que mudar e, portanto, há uma alteração em termos de direito comparado que é muito
interessante e temos que ver como é que as coisas vão evoluindo.

Esta fase da europeização que ainda é a fase atual em que vivemos, sendo comum a todos os
países membros (e membros com vontade de sair no quadro da União Europeia) é uma realidade que
está num momento de possível mudança e de possível transformação. Saber o que vai ou não se manter.
Para o Professor regente, no domínio da contratação pública, manter-se-á tudo.

A noção de contrato público é uma noção que foi contruída a meio entre a lógica francesa e a
lógica anglo-saxónica (sendo que tem muito mais de direito anglo-saxónico do que tem de direito
francês), isto porque o contrato público já não é um contrato administrativo, nem um contrato de direito
privado de administração. Essa distinção desapareceu, deixou de fazer sentido.

Em Portugal, o legislador gosta de chamar ainda estes nomes do passado, mas já estabeleceu o
regime europeu que passa pela indiferenciação da qualificação como administrativo ou de direito
privado para efeito de aplicação de um regime que é unitário e para um tratamento unitário em ponto
vista processual. Há aqui uma transformação que é evidente em todos os parâmetros. Não obstante,
como refere o Professor Vasco Pereira da Silva, estamos numa fase de saber o que é que se mantém e
o que é que vai mudar no quadro de toda esta realidade.

Isto dito, estamos agora em condições de perceber quer os traumas do passado, quer a realidade
atual. Estamos também em condições de continuar a analisar a realidade - em termos daquilo que pode
vir a suceder no futuro -, bem como em condições de entender o processo Administrativo.

Estes dois primeiros capítulos são introdutórios, de enquadramento geral. São muito importantes
porque permitem criar os quadros mentais que depois vamos utilizar. Mas, depois destes dois primeiros
capítulos, aquilo que vamos fazer é estudar o regime jurídico da lei portuguesa e analisar as normas
portuguesas da disciplina processual. Vamos aplicar também as normas processuais administrativas à
realidade, discutindo-a, e colocando-a em questão, raciocinando sobre ela de um ponto de vista crítico,
adotando esta perspetiva sobre a realidade. O Professor Regente considera essencial, nesta 1º fase,
primeiro entender esta lógica e voltar sempre à psicanálise nos momentos em que ela for precisa para
explicar as realidades atuais.

II - O Contencioso Administrativo no Divã da Constituição

Será igualmente importante mencionar que iremos tratar, no segundo capítulo, aquilo que se passou
com a Constituição de 1976 e a evolução do processo administrativo no quadro da constitucionalidade.
Isto porque, desde de 1976 e até hoje, vivemos numa realidade diferente que teve numerosas
consequências no quadro da evolução do contencioso administrativo. A Constituição de 1976 marcou
uma rutura com a realidade do passado. Até aí, ressalvando pequenos períodos (meia dúzia de anos no
séc.XIX, correspondentes ao tempo da República, mas em que subsistiam dúvidas quanto ao que se
podia fazer), e quase todo o séc.XIX até 1976, a situação em Portugal era a situação do sistema do
administrador jurídico no quadro da sua modalidade última que era a da justiça deles.

Existiam órgãos que se chamavam tribunais, mas independentemente dessa qualificação, esses órgãos,
eram órgãos jurisdicionais. Aliás, o Professor Marcello Caetano dizia, de uma forma lapidar, que os
tribunais administrativos eram órgãos administrativos no exercício do poder jurisdicional. Até à
Constituição de 1976 era a lógica do sistema do administrador jurídico, uma lógica que vinha do Estado
autoritário, dos elementos autoritários do Estado liberal, aqueles aspetos autoritários que tinham a que
ver com a noção de Direito e Processo Administrativo e tal tinha consequências no quadro do
Contencioso Administrativo.

A realidade era tal que os tribunais administrativos estavam regulados na lei orgânica da Presidência
do Conselho de Ministros, como o organismo autónomo da Presidência do Conselho de Ministros, e o
responsável máximo do funcionamento dos tribunais era o Primeiro-Ministro e o Secretário de Estado
que tivesse na presidência do Conselho de Ministros e a quem o PrimeiroMinistro delegasse essas
funções. E, portanto, as decisões de carreira, de sancionamento, de férias e faltas, tudo era da
competência do Conselho de Ministros. Neste sentido, se considerarmos que os tribunais
administrativos em Portugal, à semelhança do Conselho de Estado, tinham uma atuação limitada - o
juiz estava limitado há anulação das decisões administrativas. Anular é o que faz também o superior
hierárquico quando discorda da situação do seu alterno, não pratica atos, nem substitui a atuação do
seu alterno, ele anula. Esta ideia da anulação que vem nos traumas de infância difícil, explica estes
poderes do juiz no contencioso administrativo.

Este era um contencioso limitado, que tinha um âmbito de aplicação bastante restrito. Tudo isto
introduz esta dimensão administrativa que se agravava ainda pelo facto de, depois de haver uma
sentença dum tribunal, a execução dessa sentença era voluntária. A Administração só cumpria uma
sentença se quisesse, se a Administração não quisesse cumprir a sentença não cumpria. Porquê? Porque
era um processo administrativo receoso. Havia uma continuidade entre o processo gracioso e o
contencioso e, portanto, a administração fazia a “gracinha” de não cumprir, não gostava da sentença
do tribunal, não cumpria.

Tal era inadmissível, como explicou o professor Freitas do Amaral. Era condição sine qua non de uma
justiça administrativa que houvesse um processo jurisdicionalizado de execução das sentenças. Uma
sentença proferida por um tribunal tinha de ser cumprida pela Administração, não podendo ficar à
espera que a Administração lhe desse na “gana” para cumprir, não podia ser uma “gracinha” da
Administração.

Ora bem, tudo isto levou o Professor Freitas do Amaral a dizer que era uma espécie de sistema de
justiça delegada a propósito da execução. Os tribunais decidiam e não havia interferência direta no
executivo, mas depois de eles terem decidido, havia uma espécie de homologação da sentença que
tinha que ver com a execução ou não. O poder que a Administração tinha de não cumprir a sentença
era similar à homologação das sentenças do Conselho de Estado na fase do administrador jurídico. E,
portanto, era uma realidade profundamente administrativa, sendo que, do ponto de vista teórico, a
realidade permitia conceber o contencioso administrativo, que era assim um contencioso objetivo. O
contencioso era objetivo porque não havia partes. O particular não possuía direitos, não possuía
direitos que eram iguais a legalidade, não estavam na sua esfera jurídica substantiva e, portanto, não
havia uma relação, nem uma lógica de direitos e deveres entre os particulares e a Administração. Logo,
também não havia partes do contencioso.

Até 2002/2004 a Administração em tribunal chamava-se Autoridade Recorrida (era uma autoridade
para quem se recorria). O nome era o nome do sistema da jurisdição. Havia uma confusão entre
administração e justiça, daí o nome do administrador-juiz. Só a partir de 2004 é que começaram a
haver partes, sendo que a Administração e o particular passaram a ser partes e partes que atuam em
condições legais2.

O professor Freitas do Amaral referia que era preciso de transformar isto num processo claro, uma vez
que subsistia uma dúvida, uma vez que na lei de 1985, embora o legislador tivesse querido estabelecer
um processo de partes, não era claro se depois do particular ter respondido à contestação e ter feito
alegações à contestação, se a Administração também podia fazer alegações, não era claro na letra da
lei. Após um parecer (dado pelo Prof. Vasco Pereira da Silva) a pedido da Administração, passou-se a
atender à igualdade de partes, a partir da defesa da Administração, e isto é defender o particular
também, exatamente porque a igualdade de partes é dos dois, e se há partes tem que haver uma lógica
processual. Embora as partes não se chamassem assim (era o particular e a autoridade recorrida), mas
a autoridade recorrida era uma parte e tinha os mesmos direitos de intervenção de um particular, e ela
perante o juiz defendia-se como o particular num quadro de um litigio que lhe era apresentado.

2
Isto já tinha sido em parte concebido em 1985, pelo próprio professor regente. Foi uma das primeiras coroas de glória
enquanto administrativista do Professor Vasco Pereira da Silva, este era um administrativista recém-licenciado. Isto foi um
momento importante na sua carreira, pois foi convidado a fazer um parecer com o Professor Freitas de Amaral. O parecer
era feito por um assistente estagiário da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e da Universidade Católica e por
um Professor Catedrático, era feito por ambos e assinado por ambos. O professor Freitas de Amaral, pediu ao Professor
Regente Vasco Pereira da Silva para fazer um parecer que ainda por cima, tinha a ver com o processo de partes. O Professor
Freitas de Amaral sabia o que o que o Professor Regente pensava sobre o tema, depois do seu 4º ano, 5º ano e depois no
seu mestrado, estava o Professor Regente na altura já a fazer o seu mestrado. O professor Freitas de Amaral dizia: “A gente
precisa de transformar isto aqui num processo claro”. Porque havia uma dúvida. Pois, na lei de 1985, embora o legislador
tivesse querido estabelecer um processo de partes não era claro se depois do particular ter respondido à contestação, e ter
feito alegações à contestação, se a administração também podia fazer alegações. O Professor Vasco Pereira da Silva que
era estudante disse ao Professor Ferreira de Marques que isto era muito curioso, porque este parecer é pedido pela
administração e portanto, podia-se atender à igualdade de partes, a partir da defesa da administração, e isto seria também
defender o particular, porque a igualdade de partes é dos dois e se há partes tem que haver uma lógica processual. E enfim,
os Professores fizeram um parecer e convenceram o Juiz. O Professor Vasco Pereira da Silva, costuma dizer que esta foi a
sua primeira vitória enquanto, administrativa empenhado na transformação do Contencioso Administrativo, porque a partir
deste parecer nunca mais ninguém disse que a reforma de 1985, não consagrava um processo de igualdade.
Isto, para dizer que a realidade portuguesa foi muito marcada por este trauma e verdadeiramente
a constituição de 1976 mudou muito o que se passou. Porém, e curiosamente, a Constituição não
mudou tudo, mantendo, sobretudo nas versões originárias, muito do processo administrativo, sendo
que aquilo que caracteriza o regime da Constituição de 1976, relativamente ao processo administrativo,
é que a Constituição era compromissória e este compromisso era entre o novo contencioso
administrativo e o velho contencioso administrativo, exatamente porque a Constituição ficava a meio
caminho entre uma e outra. Neste sentido, foram as contantes revisões constitucionais até 1997, bem
como as transformações introduzidas com a prática que introduziram a tal mudança de paradigma do
processo administrativo português. Portanto, antes de começar a estudar a situação da atualidade, o
Professor julga que é muito útil perceber o desenrolar desta evolução.

A Constituição de 1976 criou um processo administrativo novo e vai verbalizar este novo processo
administrativo tal como as outras constituições da altura. Este novo processo administrativo consistiu
em duas coisas ditas duma forma compromissória, mas ditas duma forma inovadora, acompanhadas
duma carga reacionária.

Por um lado, havia uma realidade radicalmente nova porque a partir de agora os tribunais
administrativos eram integrados no poder judicial. Embora o legislador na versão de 1976 não dissesse
que devia haver tribunais administrativos, este dizia que a haver tribunais administrativos (e isso era
uma decisão do legislador) eles integrar-se-iam no poder judicial. Acabava então por deixar o
legislador decidir se queria manter o sistema “à francesa” ou mudar o sistema e implementar um
sistema de natureza britânica. Mas, se houvesse tribunais administrativos (e vai haver) eles teriam
natureza judicial. Isto é uma mudança! Eles estariam integralmente integrados no poder judicial,
deixando de ser órgãos administrativos como referia o Professor Marcello Caetano, mas, para além
disso, o legislador constituinte no art.268º (agora n.ºs 4 e 5) estabelecia um direito fundamental de
acesso à justiça administrativa e, ao conceder esse direito fundamental, ele estabelecia que o
contencioso tinha uma função susséria(?). Portanto, introduzia uma dimensão de subjectivização do
contencioso administrativo.

Mas, se isto era assim por um lado, também o legislador constituinte deixava ficar na Constituição o
velho contencioso administrativo. Criava um novo, mas mantinha o velho. Mantinha o velho porquê?
Em primeiro lugar, porque a existência dos tribunais administrativos era uma possibilidade. O
legislador não se preocupava muito com isso, deixava para o legislador ordinário. Em segundo lugar,
o direito, como o Professor Vasco Pereira da Silva mencionou, não era um direito sem mais, era o
direito ao velhinho recurso contencioso da relação, o meio limitado de controlo da Administração que
vinha dos séculos passados, o modelo do recurso hierárquico jurisdicionalizado. Foi a
jurisdicionalização do recurso hierárquico que depois deu origem ao nosso recurso de anulação, e era
este que se constitucionalizava, era um direito fundamental ao recurso. E era um direito fundamental
ao recurso para a tutela de atos definitivos, ou seja, a noção autoritária do ato definitivo histórico e
uma versão limitada que controla a Administração.

Portanto, estava aqui o novo e o velho. A Constituição de 1976 é conhecida por estes compromissos.
Era a constituição mais democrática - pois todos os órgãos eram iguais (exceto o Conselho da
Revolução que era um órgão revolucionário, e, portanto, tinha a revolução e a Constituição, a
democracia e o órgão não democrático); consagrava todas as liberdades económicas e o regime assente
numa ótica económica, mas consagrava também o princípio da adequação coletiva dos principais
meios de produção, a irreversibilidades das nacionalizações. Tinha sempre uma coisa e o seu contrário.
Era a lógica de todos os partidos. Procuraram colocar o máximo na Constituição e depois esperavam
para ver no que é que dava. Carushnitsh(?) falava do compromisso adiado, ou do litígio adiado, a
lógica de esperar para ver (como no póquer).

“Havia este compromisso dilatório”, uma expressão de Carushnitsh(?), que se manifestava em vários
títulos na Constituição de 1976 e manifestava-se também no direito administrativo e no processo
administrativo. Havia o velho contencioso administrativo que se mantinha e havia também o novo.

É o que vai acontecer no primeiro período de vigência da constituição de 1976 até 1982. Estava
implementada precisamente esta realidade de conjugação entre velho e o novo, sem se saber muito
bem no que isto dará, mas com predomínio do velho. E com predomínio do velho porque durante este
período continuaram em vigor as leis que foram feitas no quadro da Constituição de 1933, que
regulavam o contencioso administrativo. Continua em vigor a lei orgânica do Supremo Tribunal
Administrativo, ou o regulamento do Supremo Tribunal Administrativo, ou o Código Administrativo,
ou seja, continuava tudo em vigor e não houve alteração prática de nada.

Mas mesmo assim, não mudou só a Constituição, houve um diploma que mudou algo em termos de
processo, mas foi um único. Surge logo a seguir à Constituição de 1976, o DL 257. Tirando isso, mais
nada. Ficava tudo na mesma, de acordo com a ótica da prática constitucional do direito administrativo,
sendo esta a velha prática e não correspondendo ao texto constitucional, mas o texto também era
contraditório, portanto tínhamos esta realidade estranha.

O Professor Vasco Pereira da Silva menciona que houve uma exceção. Houve um diploma, o decreto
256-A de 1977, de 25/11, que estabelecia um conjunto de medidas cirúrgicas daquilo que era o mínimo
necessário para mudar sem alterar tudo. Depois dizia-se “logo faremos as grandes alterações, mas
agora é o mínimo possível, é o mínimo sem o qual não é possível haver a realização do modelo
constitucional”, e qual era esse mínimo possível? Assegurar a execução das sentenças.

E aquilo que o legislador de 1977 fez, foi pegar nos mecanismos que tinham sido analisados pelo
Professor Freitas do Amaral, na sua tese de doutoramento, e transformá-los em realidade legislativa,
estabelecendo-se um processo jurisdicionalizado da execução das sentenças. A partir desse momento,
a partir de 1977, sempre que um juiz tivesse de decidir de uma determinada maneira, anulando ou não
anulando um determinado ato, o particular podia ir a tribunal para obter a execução dessa sentença se
a Administração não a executasse voluntariamente. Era o mínimo dos mínimos para um sistema
jurisdiconalizado, para um sistema que realizava uma transformação no quadro do processo
administrativo.

Aquilo que se estabeleceu, foi que havia um sistema de responsabilidade penal, disciplinar e civil,
responsabilizando não apenas as entidades administrativas, mas os órgãos e agentes ao serviço da
Administração que desempenhavam funções dirigentes. Portanto, era possível recorrer a tribunal para
pedir a prisão do ministro X, Y ou Z que não cumprisse a sentença ou também um Presidente da
Câmara que não fizesse o mesmo. Era possível responsabilizá-los disciplinarmente, e era possível
perante uma prestação de facto infungível, tal como no processo civil, permitir que houvesse penhora
dos bens de forma a assegurar o pagamento, bem como permitir o ressarcimento dos prejuízos
particulares e dar qualquer compensação pelo facto da execução não ter sido voluntária. No fundo, é
o que acontece no processo civil quando há uma prestação de facto infungível. E foi esta última nota
que revolucionou tudo, porque ela permitiu que se passasse a poder fazer no processo administrativo
o que há muito tempo se podia fazer no processo civil. Ou seja, se uma entidade pública não cumpria,
nomeava-se a penhora dos seus bens que não fossem de domínio publico e a penhora desses bens servia
para indemnizar o particular e ressarci-lo dos prejuízos e até compensá-lo pela situação em que se
encontrava.

Esta possibilidade de nomear a penhora, os bens que estão ao serviço da administração, os automóveis
ao serviço daquele titular de cargo público, daquele ministro, daquele presidente da câmara, é um
momento persuasor fundamental para obter o cumprimento de qualquer sentença. A nomeação a
penhora de todo o mobiliário que está no escritório do ministro, juntamente com o seu carro que está
atribuído no exercício das suas funções publicas, é um instrumento coercivo fundamental para o
cumprimento da sentença. Isto passou a acontecer, era uma realidade que estava adiada do processo
administrativo, e passou a existir com esta alteração legislativa.3

Ainda neste diploma havia mais duas coisas com importância processual, mas não eram fundamentais:
era o dever de fundamentar, que era um dever procedimental, mas com uma consequência processual
- este dever permitia um controlo mais adequado da administração, designadamente do domínio
discricionário, isto é, se a administração disser o que decidiu nós podemos ver se ela cumpriu, ou não,
os requisitos legais. E havia uma norma que era mais eufemística que outra, mas que teve a sua
importância - abordava pseudo condutas, ou melhor, dizia que aquilo a que se chamava o ato tácito de
indeferimento, era um refúgio legal para permitir que o contencioso de anulação pudesse ter algum
efeito condenatório (mesmo quando isto funcionava, nunca serviu para nada). Dizia-se que isto era
ficção legal e que não havia nenhum ato, porque a lógica tradicional portuguesa, tal como o professor
Marcello Caetano tinha defendido era a de que uma omissão era um ato voluntário e depois tinha que
ser ou anulado ou revogado. E pela primeira vez veio dizer-se que isto não podia ser assim, e que não
havia ato nenhum, o que estava em causa era uma ficção de um ato apenas para efeitos processuais e
evitou-se apenas esses efeitos.

Isto não mudou grande coisa, mas permitiu mostrar que aquela “charada” não podia continuar. Aquela
ideia da anulação dum ato tácito de indeferimento era uma “charada” e acabou em 2004. O que é que
estava em causa? A Administração não tinha dito nada, mesmo que o órgão tivesse em férias, a
Administração não dizia nada e fingia-se que tinha praticado um ato com teor negativo, de modo a
fingir-se que o particular podia ir a tribunal pedir a anulação deste ato, para que o juiz julga-se este ato
e fingisse que havia um ato para depois o anular e para fingir que o efeito da anulação obrigasse a
prática do ato no seu contrário.

É uma realidade que do ponto de vista equitativo é uma charada. É uma sucessão de ficções, que segue
uma lógica do fingidor. O Professor Marcello caetano e todos os administrativistas da escola clássica,

3
O Professor Regente Vasco Pereira da Silva, conta uma historinha que ouviu de alguém e não querendo revelar nomes,
diz que lhe foi contada por 2 grandes administrativistas que não lhe pediram segredo, mas a qualquer dos casos, acha que
não deve divulgar nomes. Esta história conta o primeiro caso em Portugal em que foi executado este mecanismo criado em
1977.
A história é a seguinte: eram 2 administrativas, um deles foi a Ministro e outro continua na sua prática, e um dia aquele
que continuava Advogado telefonou para estes se encontrarem. E, realmente se chegaram a encontrar segundo o que conta
o Ministro. O Ministro conta que não se entendia o pedido urgente da audiência, e achava o advogado muito distraído, a
tirar notas, mais interessado em escrevinhar no papel do que dizer qualquer coisa que justificasse esta audiência. Na semana
seguinte entrou um pedido dum Tribunal Administrativo, o Supremo Tribunal Administrativo a pedir a nomeação à penhora
duma secretária de tipo francês a imitar o séc. XVIII, um tapete de arraiolos, dum quadro da Paula Rego, uma garrafa de
whisky duma boa marca, 2 copos de cristal e por aí adiante, nomeando todos os bens que estavam no gabinete do Ministro.
considera o Prof. Regente, é que fingiam verdadeiramente as coisas. Esta “charada” do ponto de vista
teórico na prática nunca funcionava. Não havia um efeito condicionador da vontade da Administração
em todas as situações em que havia omissões administrativas. Portanto, o legislador mostrou isto, e
isso abriu as portas a que agora surgisse a ação de condenação da administração, na prática de atos
administrativos. Se estamos perante uma omissão administrativa ou perante um ato negativo, um ato
que não satisfaz o pedido apresentado pelo particular, o juiz pode condenar a Administração a praticar
um ato constitutivo. Estamos perante uma realidade sem mostrar a sua dimensão quase paródica das
tais ficções levadas a última potência para, independentemente disso, permitir que o sistema
encontrasse os seus mecanismos.

Como o Professor Vasco Pereira da Silva refere, houve esta alteração em 1977, mas não se alterou
mais nada, tudo continuou na mesma, aplicando-se as leis do passado contraditórias com a nova
realidade e o contencioso jurisdicionalizado subjetivizado, e, portanto, aquela situação mantevese até
a revisão constitucional de 1988.

Resumidamente, viu-se que a Constituição de 1976 instaurou uma nova ordem do ponto de
vista do processo administrativo. Essa nova ordem implicou a consideração de tribunais
administrativos enquanto verdadeiros tribunais, dotados da plenitude de poderes em face da
administração, tirando todas as outras consequências da jurisdicionalização, bem como a ideia de que
o contencioso existe para a tutela dos direitos dos particulares, e não mais, como no passado, para a
defesa da administração como a Administração ‘’todo-poderosa’’. Agora o que está em causa é a tutela
dos direitos dos particulares nas relações jurídico-administrativas, e ainda que esses direitos devem ser
plenos, o particular pode ser titular de todos os direitos, e devem ser efetivos.

Portanto, há aqui uma mudança de sistema, na medida em que agora há um modelo constitucional que
corresponde ao terceiro período: o período de jurisdicionalização e de subjetivação do Contencioso
Administrativo.

No texto originário de 1976, ainda há um compromisso com o velho contencioso administrativo,


compromisso esse que se manteve na legislação ainda durante algum tempo. Viu-se que a primeira
‘’Reforminha’’ do Processo Administrativo foi o Decreto-Lei 256-A/77, e depois houve apenas em
1985 uma reforma que, por um lado, já criou o processo de parte, mas que ainda foi muito tímida no
que respeitava aos poderes do Juiz e quanto ao âmbito da jurisdição.

Assim, a partir desta altura criou-se um problema, porque a partir de 1989 o legislador constituinte
tornou muito claro que deveria haver um contencioso administrativo enquanto processo especializado
para julgar os litígios administrativos, e que havia um direito a uma tutela plena e efetiva dos
particulares no quadro das relações administrativas. O legislador ordinário não dava cumprimento, não
concretizava essa exigência constitucional que é importante, do ponto de vista do Estado de Direito.

Assim, a partir de 1989 começou a haver uma situação de défice constitucional, e, depois, de défice
europeu do contencioso administrativo português, e uma situação que insustentável do ponto de vista
do Estado de Direito.

Com efeito, em 1997 o legislador constituinte decidiu dar outro sinal, ficando o Contencioso
Administrativo, do ponto de vista constitucional, com a configuração que conhecemos hoje: não
apenas o artigo 212º/ nº3 (CRP) estabelece que o Juiz administrativo existe para resolver litígios
emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscal, como também o artigo 268º/nº4 e nº5 (CRP),
de uma forma exaustiva, muito mais exaustiva do que é necessário numa Constituição, mas como
forma de reagir contra o legislador que estava inativo. Aliás, a ideia era concentrar tudo nesse artigo
tudo o que dissesse respeito ao Contencioso Administrativo. E se a doutrina alemã diz que o art.19º/nº4
é o artigo perfeito da constituição alemã, o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva costuma dizer,
usando alguma ironia, que o art.268º/nº4 da Constituição de 1976, depois da revisão constitucional de
1997, é o artigo mais que perfeito.

O que se diz neste artigo é que o Contencioso Administrativo existe para a tutela dos direitos dos
particulares, é garantido aos administrados. É aquela expressão que tem ‘’cadastro’’ e que podia ter
sido utilizada: os particulares não são os administrados, não são objetos do processo, mas têm direitos,
e é-lhes garantida a tutela jurisdicional efetiva dos seus direitos e interesses legalmente protegidos,
nomeadamente, o reconhecimento desses direitos, a impugnação de quaisquer atos que os lesem e a
determinação da prática de atos administrativamente devidos. Ou seja, estão aqui todos os poderes que
o Juiz deve ter: poderes de simples apreciação, poderes de impugnação e anulação e poderes
condenatórios. E depois acrescenta-se as próprias providências cautelares - é uma construção que até
eleva as providências cautelares à norma constitucional. O legislador constituinte, enfim, preocupado
com a situação de défice de Estado de Direito que existia, consagra na Constituição aquilo que
pretendia ser o epítome do novo Contencioso Administrativo4.

4
O Senhor Professor Vasco Pereira da Silva conta que esta norma foi construída num jantar na Faculdade de Direito da
Universidade de Lisboa, em se sentaram à mesa representantes de todos os partidos: o Professor Marcelo Rebelo de
Sousa, administrativista, que era o líder do Partido Social democrata; o Professor Vital Moreira que na Assembleia da
República dirigia a Comissão de Revisão Constitucional do Partido Socialista; o Professor Freitas do Amaral que, nessa
altura, ainda estava ligado ao CDS e a outros membros do CDS; representantes do Partido Comunista e todos os
administrativistas portugueses. Todos consideraram que se tratava de uma situação insustentável e que o legislador tinha
de cumprir a Constituição. Posto isto, cada um começou a ditar aquilo que achava que a norma constitucional deveria
Portanto, o legislador colocou tudo na Constituição, de modo a colmatar um grave problema de Estado
de Direito porque não havia uma norma que concretizasse, do ponto de vista do contencioso
administrativo, esta realidade. Isto marcou um sinal muito forte da parte do legislador, mas também
da parte da doutrina portuguesa que, reunida numa comemoração qualquer que havia na Faculdade de
Direito de Lisboa nessa altura, queria mostrar que esse aspeto era essencial, e que tinha de ser regulado
pelo legislador ordinário.

E aí surge um período que começa nessa altura, em que não imediatamente se inicia o processo de
discussão da revisão constitucional. Existiram uma série de comissões, projetos, alguns nos quais o
Senhor Professor Vasco Pereira da Silva participou, até que finalmente em 1999/2000, o governo põe
em cima da mesa um projeto que ninguém sabia quem é que tinha feito. Descobriu-se posteriormente
que tinha sido a Comissão de Juízes do STA, que o colocou em discussão pública. Na altura em que
este projeto foi colocado em discussão, o projeto era praticamente o mesmo que existia até aí: era
igualmente violador da constituição. Logo, na apresentação pública, os administrativistas chamados a
pronunciar-se disseram ‘’isto não pode ser’’, ‘’isto viola a constituição’’, ‘’é preciso começar de
novo’’, e assistiu-se a um fenómeno muito curioso, do Senhor Ministro da Justiça que estava a presidir
à sessão explicar: ‘’Nós pomos este projeto em cima da mesa porque queremos discutir o processo,
mas nós não nos revemos nestas normas e, portanto, os senhores estão à vontade para alterar tudo o
que quiserem’’ e pediu às faculdades que iniciassem uma discussão sobre o processo administrativo e
sobre aquele diploma que estava em cima da mesa, para estabelecer uma nova legislação do processo
administrativo.

E foi isso que se sucedeu: em todas as faculdades foi discutida a reforma do processo administrativo,
e discutiu-se, não apenas em Portugal, mas no quadro da lógica da União Europeia, porque estamos a
falar do ano 2000, do ano em que já tinha havido a europeização do processo administrativo e em que
a União Europeia tinha dito que os Estados deveriam ter pelo menos uma tutela cautelar e que deveriam
ter um contencioso pleno e efetivo. Houve uma realidade que não apenas no quadro nacional, mas
também no quadro europeu, gerou uma ampla discussão sobre o Contencioso Administrativo, e foi

conter (uns falavam dos poderes de anulação, outros dos poderes de condenação, outros das providências cautelares),
enquanto o Professor Marcelo Rebelo de Sousa ia fazendo de secretário, apontando no seu guardanapo aquilo que cada
um ditava.
Quando pensaram ter acabado, o Professor Barbosa de Melo advertiu para o facto de se terem esquecido dos
regulamentos. Ora, surgiram então dois problemas: introduzir também a referência aos regulamentos significava
aumentar uma linha e diminuir a inteligibilidade deste artigo; por outro lado, o guardanapo do Professor Marcelo Rebelo
de Sousa já estava cheio, não permitindo escrever mais nada.
Neste sentido, consideraram necessário fazer um novo artigo, o que levou a acrescentar-se o nº5, dizendo que também há
tutela de direitos em relação a regulamentos.
esse impulso da discussão, mais importante do que o projeto que estava na base dessa realidade, que
depois deu origem a três diplomas que foram apresentados à Assembleia da República.

Pelo meio tinha havido aquilo a que se chamou a ‘’Declaração de Guimarães’’, porque num congresso
de Justiça administrativa que tinha acontecido em Guimarães, se fez um manifesto de juízes juntamente
com os professores no âmbito de uma revista que ainda hoje existe, que se chama ‘’Cadernos de Justiça
Administrativa’’ – fizeram um manifesto ao poder político no sentido de alteração radical do processo
administrativo. Esse manifesto foi feito pelo professor João Caupers e o Senhor Professor Vasco
Pereira da Silva, e foi proclamado apoteoticamente pelo Professor Freitas do Amaral, o decano dos
administrativistas portugueses, anunciado para todo o país e enviado para os órgãos de poder público.
Nesse manifesto defendia-se que devia haver uma comissão mista com professores, juízes, e
advogados, no sentido de iniciar a discussão e deveria ser apresentado, num curto prazo, um projeto
de reforma.

O governo não adotou essa perspetiva, pôs à discussão aqueles ‘’projetos-diploma’’ que tinha
guardado numa gaveta, mas imediatamente se afastou deles, e em vez de criar uma comissão, o que
fez foi criar um órgão político, uma comissão de revisão legislativa, que ficava encarregado de fazer a
reforma. Teve a inteligência de colocar à frente dessa Comissão um assistente da Faculdade de Direito
da Universidade Lisboa, o agora Professor João Tiago Silveira, que na altura era assistente. O Doutor
João Tiago Silveira, para além de ter assumido a iniciativa política da reforma, sugeriu ao professor
Mário Aroso de Almeida ser uma ‘’espécie de consultor técnico’’ e, portanto, pode dizerse em tom de
ironia, que ambos são ‘’o pai e a mãe’’ da reforma do Contencioso Administrativo, na medida em que
um deu o elemento político enquanto responsável nomeado pelo governo para fazer uma reforma, e o
outro deu o elemento científico porque se tratava de um dos jovens doutores da então realidade
portuguesa, e que assumiu a tarefa de coordenar a reforma.

Posteriormente, houve uma participação de todos os professores. Para continuar a ‘’metáfora


familiar’’, todos foram um bocadinho tios, uns tios mais próximos, outros tios mais afastados, mas
houve uma ideia de participação efetiva no quadro da reforma.

Esta reforma deu origem a três textos. Uma Lei de responsabilidade civil (que não chegou nunca a ser
aprovada nem discutida na Assembleia da República), e dois outros diplomas: o Estatuto dos Tribunais
Administrativos e Fiscais e o Código de Processo dos Tribunais, inicialmente,

Administrativos e Fiscais mas depois, não se sabe bem porquê, ficou apenas ‘’Código de Processo nos
Tribunais Administrativos’’ criando-se uma ‘’trapalhada’’ para o domínio do processo fiscal.
Assim, aquilo que correspondeu à ‘’Grande Reforma’’ do processo administrativo, basicamente
corresponde a dois diplomas que entraram em vigor em 2009, e que efetivamente mudaram a natureza
do processo administrativo e o conciliaram com as exigências constitucionais e europeias. Passou-se
de uma situação de inconstitucionalidade agravada pelo aspeto essencial do Estado de Direito, para
uma situação que correspondia a uma lógica constitucional.

Mas é preciso dizer, para citar Peter Haberle, que em todos os países do mundo há uma diferença entre
o chamado “mínimo constitucional” e o “máximo constitucional”. E se olharmos para os dois
diplomas, eles não são idênticos do ponto de vista da realidade constitucional. Porque no diploma do
Código de Processo (mesmo se for apenas um Código de Processo dos Tribunais Administrativos), o
Processo Fiscal continua com uma regra que persiste nos dias de hoje e continua a manter o ‘’pecado
original’’ da confusão entre Administração e Justiça. Isto porque se trata de um Código de
Procedimento e Processo Tributário, quando uma coisa é o procedimento, outra coisa é o processo; e
em que atribui funções jurisdicionais ao Senhor Secretário da Repartição da Tesouraria da Fazenda
Pública; e que tem uma série de outros atentados ao Estado de Direito, que foram melhorados em 2019,
mas que ainda continua em vigor na nossa ordem. Portanto, o Código de Processo é um bom diploma,
sem prejuízo de o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva considerar que ainda não pertence ao ótimo
constitucional.

Não deixa de ser um bom diploma na medida em que consagra meios principais. Inicialmente existiam
dois: uma esquizofrenia entre a chamada ação comum e ação especial, que terminou em 2015. Ambos
permitiam que o Juiz usasse todos os poderes: o meio da ação comum era para o domínio dos contratos
e da responsabilidade civil, o meio da ação especial era para atos e regulamentos. Ou seja, existia uma
distinção que não fazia sentido, e que o Regente criticou5.

Depois existiam processos urgentes, que asseguravam uma decisão num curto prazo. Esta foi uma
boa decisão do governo, na medida em que existiam na Assembleia um processo de contencioso
eleitoral; uma intimação para tutela de direitos fundamentais; uma intimação para a consulta de
documentos e passagem de certidões; um contencioso pré-contratual por influência da União Europeia,
etc.

Por último, existiam providências cautelares. Anteriormente, a única providência que existia era a
suspensão da eficácia, com requisitos tão complicados que nunca era declarada.

5
Crítica essa que é encontrada, designadamente, no ‘’Divã’’, mas que, na medida em que o Juiz tinha todos os poderes,
em cada um dos meios processuais, correspondia à realidade constitucional.
A partir de 2004, passou a haver uma panóplia grande de providências cautelares e estabeleceu-se o
princípio de que o Juiz poderia criar a providência necessária, um princípio de ‘’cláusula aberta’’
em matéria providência cautelar. Esta é uma boa solução, mas como aponta o Prof. Vasco Pereira da
Silva, não é a solução ideal, que critica e sempre tem criticado.

Aquilo que foi consagrado neste código correspondia, por um lado, às exigências constitucionais e às
exigências europeias, era mais do que o ‘’mínimo constitucional’’ europeu, era o ‘’médio
constitucional’’ europeu, ‘’médio-alto’’, podia ser melhor, mas acabava com o problema que existia
até aí, de deficiência do Estado de Direito. Já o Estatuto dos Tribunais Administrativos e

Fiscais era, para o Professor, um diploma que correspondia ao ‘’mínimo constitucional’’ porque no
último, o legislador, em termos de organização da justiça administrativa e, em termos de âmbito da
jurisdição, tomava decisões que permitiam apenas realizar o mínimo em termos constitucionais.

A visão do Senhor Professor Vasco Pereira da Silva foi, desde o início, crítica em relação aos Estatutos,
e mais entusiástica em relação ao Código, muito embora dissesse que ambos correspondiam à realidade
constitucional6.

O que é que está em causa? A análise destes diplomas serve para introduzir à apreciação das normas
do âmbito da jurisdição administrativa: o que é que faz o legislador no Estatuto?

O Estatuto tem regras acerca do âmbito da organização administrativa (o célebre artigo 4º do ETAF)
e regras acerca da organização dos tribunais administrativos. As regras do artigo 4º estão bem
concebidas, e é o que lhe permite “ter o 9 para ir a oral”4 porque o restante é francamente violador da
realidade constitucional europeia. Isto porque o legislador está a concretizar uma justiça especializada
para a administração, mas este diploma, que consagra a especialização, não tem normas que permitam
que a mesma se verifique.

A especialização existe ou deve existir a três níveis: ao nível da formação dos juízes, ao nível da
carreira dos juízes e ao nível dos tribunais especializados dentro da jurisdição administrativa. Ora, em
relação à formação dos juízes nada se diz neste Estatuto, e sempre que depois há concursos para juízes

6
O Senhor Professor Vasco Pereira da Silva conta que o Senhor Ministro da Justiça, na altura, disse que o Senhor Professor
teria dito, em tom de brincadeira, que o Estatuto merecia 9 valores, para ir a oral, e que o Código de Processo mereceria
15. A verdade é que o Professor não se recorda de fazer tal afirmação, apesar de concordar em absoluto com a metáfora.
Portanto, remetendo para a visualização do filme “O Homem que matou Liberty Valance”, o Professor seguiu a máxima
de John Ford: «quando a lenda é maior que o homem, imprima-se a lenda e não homem», passando a concordar que o
diploma merece realmente 9 valores e o código 15 valores.
dos Tribunais Fiscais faz-se uma lei ad hoc, para haver uma formação ad hoc, quando o CEJ ou outras
instituições encarregadas da formação dos juízes deveriam ter uma formação especializada para os
juízes administrativos. Porque se há uma jurisdição especial é porque o juiz administrativo deve
conhecer da Administração Pública e do Direito Administrativo, caso contrário não vale a pena ser
especializado.

Estes três aspetos deveriam ter sido cuidados pelo legislador. Não há normas acerca da formação dos
juízes, não há normas autónomas acerca da carreira separada dos juízes administrativos e dos juízes
dos tribunais comuns. Com efeito, o que acontece é que como há mais lugares no Supremo, há uma
série de juízes no final da carreira que vão para o Supremo Tribunal Administrativo por ser mais fácil
arranjar vaga do que no Supremo Tribunal de Justiça, só para se reformarem. Não há uma verdadeira
carreira autónoma dos juízes administrativos, e não há tribunais especializados dentro da jurisdição
administrativa como existem na Alemanha, e como deveriam existir em Portugal e agora estão
previstos na ‘’Reforminha’’ de 2019. Há apenas a previsão de que eles podem existir, mas não foi feito
nenhum esforço para a criação dos juízes especializados dentro da jurisdição administrativa. Prevê-se
que haja juízos da contratação pública, em ordenamento e território, urbanismo e ambiente, e segurança
social. São matérias que havendo jurisdição autónoma deveriam ser especializadas e isso faz parte da
eficiência da justiça administrativa.

Em segundo lugar não há - apesar de aparentemente haver uma jurisdição una (Administrativa e Fiscal)
- no Estatuto, na versão originaria, nenhuma ligação entre o chamado Contencioso Administrativo e o
Contencioso Tributário. Inclusive os tribunais tinham nomes diferentes, não havendo a lógica da
uniformização da organização judicial. Por outro lado, há uma realidade incompreensível que é uma
jurisdição com dois processos diferentes, que faz lembrar a lógica de “um país, dois sistemas”. Porque
há uma jurisdição una, mas há regras diferentes para tribunais administrativos e tribunais fiscais, e não
há nenhuma razão para que isso aconteça.

É claro que o Direito Fiscal é autónomo em relação ao Direito Administrativo, mas o Direito Comercial
também não se confunde com o Direito Civil, muito embora as regras de processo sejam iguais. Não
há nenhuma razão para que numa jurisdição única haja duas regras diferentes. E não há nenhuma razão
para que as regras do processo administrativo sejam adequadas à Constituição e as do processo fiscal
não sejam, porque no processo fiscal, o Código de Processo é de “procedimento e processo tributário”.

Deveria haver um código de procedimento tributário e um código de processo tributário, porque haver
um código de procedimento e processo tributário é o “pecado original’’ que vem do século XIX, do
século XVIII de confusão entre Administração e Justiça. Isso explica poderes inadequados dos
funcionários administrativos e poderes do Juiz que não controlam efetivamente e é uma realidade que
não faz sentido e que ainda continua a existir nos dias de hoje. Foi atenuada em 2019, mas ainda não
foi extinta nem resolvida pelo Estatuto. Mas o Estatuto criou também um outro problema: não
distinguiu aquilo que é a competência dos tribunais em 1ª instância daquilo que é a competência dos
tribunais de 2ª instância.

Em qualquer jurisdição, os tribunais da 1ª instância fazem o julgamento do processo e os tribunais da


2ª instância fazem os recursos, as revisões de jurisdição. Ora, no Contencioso Administrativo,
atualmente, tanto o os Tribunais Centrais Administrativos de Lisboa e Porto, como o Supremo Tribunal
Administrativo têm simultaneamente funções de julgamento em 1ª instância e funções de recurso. São
tribunais ‘’esquizofrénicos’’ porque têm funções que são contraditórias o que faz com que a pirâmide
jurisdicional no processo administrativo esteja invertida - que haja mais juízes no Supremo, ou quase
tantos juízes no supremo como na 1ª instância. Isto faz do Supremo um “Super-Tribunal”, com uma
parte com primeira instância, uma parte de revisão e ainda um plenário para resolver e discutir.

Isto é um disparate, e não há razão alguma para se considerar que atos do Governo (enquanto órgão
colegial ou enquanto Conselho de Ministros) e/ou de órgãos do governo (Presidente da República, do
Supremo Tribunal de Justiça ou de Órgãos Superiores do Estado) sejam julgados em 1º Instância no
Supremo. Isto é uma manifestação dos ‘’traumas do passado’’, dos tempos da ‘’infância difícil do
‘’Administrador-Juiz’’. É um privilégio em relação ao Tribunal, sem que este privilégio signifique
tratamento diferenciado, pois as regras processuais são as mesmas, pelo que a existência desta
realidade é que é um contrassenso. Mais, esta realidade já não existe em mais país nenhum do mundo,
nem mesmo na França onde ela nasceu e onde continuam tradições de um processo que vem do
passado. Portanto, há aqui uma realidade que não tem nenhuma explicação e que gera problemas de
funcionamento da justiça administrativa.

Tudo aquilo que diz respeito à organização dos tribunais administrativos, nesta versão de 2004 do
Estatuto, merece uma total reprovação e merece as críticas apontadas pelo professor Regente
relativamente aos três aspetos supramencionados.

Contudo, como anteriormente referido, aquilo que da perspetiva do Prof. Vasco Pereira da Silva
permite salvar este Estatuto é a norma do artigo 4º. Neste preceito, no que respeita ao âmbito da
jurisdição que a Constituição definia como correspondendo às relações jurídicas administrativas, o
legislador consagrou todos os critérios possíveis de qualificação de uma relação jurídica como
administrativa: os critérios restritivos do passado, como o poder, as relações de poder, os poderes de
autoridade, a regulação pelo direito administrativo; mas ao mesmo tempo, os critérios ampliativos, dos
direitos dos particulares, da função administrativa, da realidade do interesse público que está a ser
realizado. Como todos estes critérios existem em simultâneo, tudo cabe no Contencioso
Administrativo.

Assim, resolveram-se os problemas do âmbito de jurisdição, porque a amplitude dos critérios adotados
e a sua comutatividade permite que o Contencioso Administrativo tenha um âmbito de aplicação que
corresponde à integralidade da relação jurídica administrativa. O Senhor Professor Vasco Pereira da
Silva não teria, neste artigo 4º/nº1 do ETAF, acumulado critérios de forma avulsa, apesar de considerar
esta acumulação uma boa solução, na medida em que o resultado desta técnica é a integração de todas
as relações administrativas no Contencioso Administrativo. Veja-se:

o A alínea a) do art.4º/nº1 utiliza o critério dos direitos em sentido amplo: “direitos


fundamentais”, “direitos e interesses legalmente protegidos” e todos os outros direitos.
É um critério ampliativo, que permite considerar todo o universo da função
administrativa dentro do contencioso administrativo.

o Depois fala-se em fiscalização da legalidade de normas e atos jurídicos


realizados por pessoas coletivas. Este é um critério restritivo, uma vez que se está a
pensar em atos e normas. É o critério da autoridade, mas está ao lado dos outros pelo
que não impede que, no Contencioso Administrativo, caibam outras realidades para
além das que têm a ver com ato e regulamento.

o Na alínea c), surge de novo um critério que vem dos critérios clássicos, mas
acrescenta-se que é em relação a “atos materialmente administrativos” (atos praticados
por órgãos não administrativos do Estado), o que implica uma ampliação do
Contencioso a todo o universo da função administrativa.

o A alínea d), quando começa por referir a fiscalização da legalidade normas


aponta para um critério restritivo. Contudo, quando de seguida refere “de
concessionários ou de particulares no exercício da função administrativa” aponta para
um ato de um concessionário. Assim, seja um concessionário de uma autoestrada, de
um hospital, ou de uma universidade, são atos administrativos, da competência dos
tribunais administrativos, pelo que está em causa o exercício da função administrativa.
Com efeito, trata-se de uma norma ampliativa que corresponde à lógica da
administração infraestrutural.

o Em relação aos contratos, o Código acabou com a “esquizofrenia” da distinção


entre contratos ditos administrativos e contratos ditos privados da Administração.
Todos os contratos em que intervêm a Administração Pública correspondem a dinheiros
públicos, ao exercício da função administrativa, e a uma realidade que era
administrativa mesmo que regulada pelo direito privado, pelo que a competência para
o julgamento desses litígios cabe aos tribunais administrativos – isto foi uma norma
ampliativa no quadro da matéria da jurisdição.

o Na alínea seguinte também relativa a contratos, o legislador utiliza um critério


amplíssimo de determinação da qualificação do contrato como pertencente ao
Contencioso Administrativo, incluindo os antes designados como contratos
administrativos e os contratos privados. Isto porque, basta o procedimento ou uma
qualquer regra de natureza pública no quadro de regulação de um contrato - seja o
pagamento de uma despesa, ou uma regra de contabilidade pública - para
automaticamente incluir no Contencioso Administrativo o julgamento nos Tribunais
Administrativos.

o Na responsabilidade civil o legislador pecou por ter querido ser tão amplo, pelo
que as expressões não foram as mais adequadas.

A expressão da alínea g) causou um problema porque o legislador quis incluir no Contencioso


Administrativo todas as realidades da responsabilidade civil – de modo a acabar com a distinção
“esquizofrénica” que também existia e que existiu até 2007 pelo menos, de distinguir entre gestão
pública e gestão privada. O legislador entendeu que isso não fazia sentido e que, do ponto de vista
processual, toda a responsabilidade civil no exercício da função administrativa deve caber aos
Tribunais Administrativos e, com essa intenção, usou esta expressão “quando haja lugar a
responsabilidade extracontratual”.

Ora, esta expressão foi interpretada por alguns tribunais erradamente (pois não corresponde nem à
letra, nem ao espírito do sistema), no sentido de dizer que era preciso saber se a Administração era ou
não responsável, e só depois é que se determinava a competência do tribunal. A jurisprudência
inverteu-se a ordem das coisas, porque a competência é um pressuposto processual e é a primeira coisa
que tem de ser decidida. Saber se há ou não responsabilidade é o resultado da decisão. Não se pode
condicionar a competência de um Tribunal à decisão do fundo da causa, pois isso equivaleria a julgar
a decisão primeiramente nos Tribunais Administrativos e posteriormente estes virem dizer “há aqui
uma questão de corresponsabilidade” ou “há aqui uma situação em que há um pedido reconvencional”,
ou em que a Administração dizia “não senhor, quem me deve pagar é o particular porque quem teve
despesas fui eu”. Isto atiraria o processo para os tribunais judiciais, e começava tudo de novo, o que
não faz qualquer sentido, nem corresponde à lógica das relações administrativas e fiscais porque são
independentes de haver ou não a condenação – não é por não haver responsabilidade fiscal que, em
termos amplos, a relação que está em juízo não se integra no domínio das relações administrativas.

Na Alemanha fala-se das matérias conexas. Sem embargo, não há razão para pôr essa matéria fora do
Contencioso Administrativo, apesar de ter sido uma interpretação feita deste artigo, não sendo essa a
sua intenção. A partir de 2015, o legislador esclareceu e em princípio esse problema acabou, mas houve
durante algum tempo muitas dúvidas quanto ao âmbito de aplicação desta norma.

Depois, aparecem-nos mais formas de responsabilidade civil.

o Na alínea j) fala-se nas “relações jurídicas entre entidades públicas”. As relações


jurídicas é um tema belíssimo que permite integrar tudo no Contencioso
Administrativo.

Posteriormente, foi utilizada uma realidade europeia que vem do direito italiano e que foi recebida
também pelo legislador português, de criar áreas privilegiadas da relação do Direito Administrativo -
domínios especiais do Direito Administrativo.

o Na alínea k) é referido que cabe ao Contencioso Administrativo tudo o que


corresponda à “prevenção, cessação e reparação a violações de valores e bens
constitucionalmente protegidos no domínio da saúde pública, ambiente, urbanismo,
ordenamento do território, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado”.
Ou seja, todas estas matérias tornam-se em princípio matérias administrativas, e todos
os litígios que têm que ver com o património, com a saúde, ambiente, urbanismo, etc.,
são matérias de competência do tribunal administrativo7.

Esta é uma norma ampliativa que o legislador português introduziu por influência do Direito Italiano
e também por influência europeia, na medida em que a Europa também já utilizou este critério
nalgumas das diretivas no domínio da Administração.

o Finalmente, aparece na alínea m) o contencioso eleitoral e a execução das


sentenças no quadro da justiça administrativa.

Assim, a técnica utilizada neste artigo 4º é a da conjugação avulsa de critérios, em vez de os


compatibilizar. Não há um critério lógico, mas há, do ponto de vista, de alguma maneira, próximo da
tópica, uma acumulação de critérios que conduz a uma boa solução 8, pelo que o Professor subscreve
este sistema, escrevendo no ‘’Divã’’ o momento da sua própria psicanálise cultural, da sua própria
psicanálise.

O Senhor Professor Vasco Pereira da Silva afirma que de um ponto de vista formal, de técnica
legislativa, não teria adotado este sistema. Tendo o legislador adotado e tendo cumulado aqui todos os
critérios possíveis e imaginários, esta foi uma boa solução.

Por outro lado, o n.º 3.º deste preceito distingue matérias que não são administrativas. Este artigo
considera que o Contencioso Administrativo não trata de atos da função política legislativa (o que faz
sentido), embora a responsabilidade por atos desta função seja do Contencioso Administrativo, este
não vai decidir questões político-administrativas. O Contencioso Administrativo não decide questões

7
Esta norma surgiu no Direito italiano porque existia, por razões históricas, aquela distinção “esquizofrénica” entre os
direitos subjetivos que eram conhecidos pelos tribunais comuns e os interesses legítimos que eram conhecidos pelos
tribunais administrativos. Para acabar com isto, o legislador italiano concluiu que todas estas relações são administrativas
quando correspondem ao exercício da função administrativa do Estado e, portanto, independente de haver direitos ou
interesses legítimos, são matérias, na expressão italiana, especiais e exclusivas da administração e portanto, pertencendo
ao domínio administrativo.
8
Através de uma breve história de infância, o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva compara o legislador ao organizador
da corrida anual do colégio, que colocava todos os critérios possíveis e imaginários para que toda a gente tivesse uma
medalha. E se, por hipótese absurda, alguém não coubesse em nenhum daqueles critérios, fazia-se um critério ad hoc,
porque todos tinham de ter uma medalha.
jurisdicionais, porque estas são decididas pelos tribunais competentes do quadro do recurso, nem
decide as matérias relativas ao inquérito e à investigação criminal, porque estas são resolvidas nos
processos criminais. Isto é a lógica adequada da delimitação negativa do âmbito da jurisdição.

O Senhor Professor Vasco Pereira da Silva apoia os números 1.º e 2.º do preceito. Opinião diversa tem
do n.º 4, que estabelece limites ao que o n.º 1.º consagra. O n.º 2.º vai ajudar a delimitar o âmbito da
jurisdição, mas não põe em causa as regras do n.º 1.º. Enquanto que as exceções do n.º 4 feitas ao n.º
1.º são desadequadas na opinião do Senhor Professor. Uma das exceções diz respeito à
responsabilidade por erro judiciário (alínea a) nº4 Artigo 4º). O erro judiciário não é da competência
dos Tribunais Administrativos, mas a responsabilidade por haver erro e este ser determinado pela
jurisdição competente já é dos Tribunais Administrativos. Com efeito, não há razão para que a
responsabilidade por erro judiciário não caiba aos Tribunais Administrativos.

Da mesma forma, relativamente aos atos administrativos praticados pelo Presidente do Supremo
Tribunal de Justiça que sejam atos materialmente administrativos (alínea d)), o Professor considera
que não há razão alguma para que estes não devem ser discutidos nos Tribunais Administrativos.

Relativamente à alínea c), se se trata de um privilégio de foro que se está a atribuir aos juízes superiores
e seu presidente, tem de haver um controlo dos atos materialmente administrativos, que deveria caber
aos Tribunais Administrativos, não havendo, por isto, razão para esta exceção.

Quanto à alínea b), esta criou mais uma “esquizofrenia”. Esta alínea vem distinguir, no quadro das
relações laborais, aquilo que seria um contencioso laboral funcionalizado, uma realidade que
corresponde ao antigo funcionalismo público. Atualmente, só é aplicável este regime aos polícias e
aos militares. O que o legislador faz é dizer que, aqueles contratos que correspondem às relações
administrativas tradicionais, os que correspondiam ao antigo funcionalismo público, continuam a ser
da competência dos Tribunais Administrativos, e os outros não, o que não tem razão de ser9.

O que havia aqui a fazer era considerar, como acontece em todos os outros domínios, que o chamado
Direito Laboral Administrativo é constituído por normas de direito privado e algumas normas de
administrativo, o que, aliás, é típico em todas as relações jurídicas que misturam o Direito
Administrativo com o Direito Privado, porque o Direito Administrativo deixou de ser uma realidade
pura, e ainda bem que assim é. Há uma mistura entre as relações públicas e privadas, mas a dimensão

9
Por exemplo: o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva tinha um contrato público quando entrou para a faculdade, que
foi transformado num contrato privado de exercício de funções administrativas. Sendo privado e havendo justificação para
essa realidade, não deixava de estar incluído numa relação jurídica administrativa.
laboral, que é fundamental, não põe em causa a relação administrativa que decorre da integração do
particular no exercício de funções administrativas que justifica os poderes de dar ordens por parte do
superior hierárquico (a lógica da hierarquia administrativa), e outras realidades do género, que
continuam a existir, apesar de ser um contrato privado no exercício de funções públicas. O facto de
ser privado ou público, quando está em causa o exercício da função administrativa, deixa de ser
relevante. O Senhor Professor não compreende o porquê desta esquizofrenia, rejeitando o nº4 do
preceito.

Estamos perante o mínimo constitucional, longe de satisfazer aquilo que se pretendia no quadro da
realidade constitucional, quanto ao Estatuto.

Relativamente ao Código, o Senhor Professor valora-o com 15 valores.

O legislador estabeleceu um conjunto de regras que são adequadas na perspetiva do Senhor Professor,
embora exponha muitas críticas quanto às mesmas. O Senhor Professor é responsável por diversas
mudanças no Contencioso Administrativo, nomeadamente por ter defendido a sua subjetivação.

Apesar das críticas que o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva tece ao Código, considera que o
Código de Processo Administrativo é um bom código porque estabelece aquilo que é a lógica
constitucional do artigo 268º/4.º - que é a de estabelecer um contencioso destinado à tutela dos direitos
dos particulares e um contencioso forense, porque aquilo que o legislador do processo administrativo
faz é, logo no artigo 2.º do Código, consagrar o princípio da tutela jurisdicional efetiva, e dizer que
esta implica o direito de obter em tempo razoável (acréscimo em relação à constituição) e mediante
processo equitativo, uma decisão judicial que aprecie com força de caso julgado, qualquer pretensão
regularmente deduzida em juízo, bem como a possibilidade de a fazer executar e obter as providências
cautelares antecipatórias ou conservatórias destinadas a assegurar o efeito útil da decisão. O Professor
considera esta uma boa regra porque o particular tem o direito a uma tutela plena efetiva, que
corresponde ao princípio do Processo Civil de que, a cada direito, corresponde uma ação.

Aqui, no âmbito do Contencioso Administrativo, como supostamente na versão originária, havia duas
ações e agora há uma só. Isto corresponde a um meio processual adequado, porque cada direito tem
uma ação adequada para a sua tutela. É isto que o legislador deve consagrar. E se continuarmos a
análise deste artigo, verificamos que o legislador estabeleceu duas ações – a ação especial e a ação
comum - em termos que o Senhor Professor considera que não devia ter feito por três razões.
Em primeiro lugar porque a ação comum e especial era o que existia antes. A ação de anulação de atos
e regulamentos era a ação especial, em que o juiz estava limitado nos seus poderes. Quanto à ação
comum, como ninguém se preocupava com os contratos e com a responsabilidade civil, o juiz podia
fazer o que entendesse. O legislador afastou isso dizendo que, em ambas as ações, o particular podia
pedir e o juiz podia decidir em sentido condenatório da Administração, no sentido de anular as decisões
da administração e de reconhecer todos os direitos. Portanto, se o legislador assim o diz, não faz sentido
que depois escolha os dois termos (comum e especial). Não faz sentido se acabou com a distinção
como se evidencia no artigo 2.º. A título exemplificativo, o juiz pode anular, condenar, declarar a
ilegalidade, reconhecer direitos, etc. Ora, se o juiz pode tudo, não faz sentido que uma ação se
denomine especial e a outra comum.

Nos termos do artigo 4.º todos os pedidos são cumuláveis, portanto pode-se cumular o pedido de
anulação de um contrato com um pedido de condenação da administração em matéria de ato de
administrativo, com a anulação de uma regra regulamentar que está no caderno de encargos do contrato
– todos estes pedidos são cumuláveis porque o processo passou a ser como é o processo civil, um
processo em que se conhece a integralidade da relação jurídica, e portanto, se assim é, nem faz sentido
que o legislador consagre esta realidade. O legislador permite-o no artigo 4º, e vai além do processo
civil consagrando que mesmo nos processos urgentes haja cumulação de pedidos, e continua a
funcionar como uma cumulação, não nos termos do processo civil em que o processo deixa de ser
urgente.

Ou seja, o legislador fala numa série de medidas, mas depois engana-se na nomenclatura (comum e
especial). Se o recurso de anulação era uma ação especial porque o juiz estava limitado, e agora já não
está, existem umbrella actiones (expressão norte-americana para uma ação onde cabem todos os
poderes) ou uma ação de banda larga (utilizando uma expressão informática). Mas este não é o único
problema, porque admitindo que o legislador só tinha estes dois nomes, então que não os trocasse…

Isto é, o legislador diz que a ação comum ou ação genérica do contencioso administrativo existe sempre
que não haja nenhuma ação especial, mas a ação especial diz que o contencioso dos atos e dos
regulamentos, mesmo quando esteja misturado com o dos contratos ou com a responsabilidade civil,
é sempre matéria da ação especial. O que significa que o contencioso administrativo está sempre na
ação especial, uma vez que em 99,9 % dos casos cabiam no âmbito das ações especiais – portanto esta
era a ação comum no processo administrativo.
Por último, o legislador em 2015, pensou nas críticas tecidas pelo Senhor Professor, e criou uma única
ação. Mas o Senhor Professor considerava que não fazia sentido misturar critérios processuais com
critérios substantivos – o que não foi entendido pelo legislador. Quanto aos critérios processuais (ações
de anulação, ações constitutivas, ações de simples apreciação e ações condenatórias), era possível usá-
los para estabelecer a regulação do contencioso administrativo à semelhança do que se faz no Processo
Civil.

Mas o que o legislador fez foi juntar estes critérios processuais com os substantivos, ligandoos às
formas de atuação administrativa, falando por isso em anulação de atos administrativos, em
impugnação de regulamentos, em condenação de atos administrativos, criando meios específicos para
cada uma dessas categorias.

E, em rigor, nas duas anteriores ações, havia várias sub-ações. Desde 2015, apesar de, aparentemente
haver uma única ação, que se chama ação administrativa, esta dá origem a 4 subações: a ação de
impugnação e de condenação de atos, de impugnação e de condenação regulamentos (existem dois
critérios processuais – anulação e impugnação - e só um substantivo - regulamento). O legislador como
mistura os critérios processuais com critérios substantivos, quando devia regular apenas o processo em
função das realidades processuais, cria uma confusão, que ainda não resolveu.

O legislador, no quadro do modelo inicial estabelecia regras que permitiam, ainda que com uma lógica
esquizofrénica criticada pelo Senhor Professor, uma tutela plena e efetiva dos direitos particulares. Isto
porque o juiz da ação comum, tanto podia atender a pedidos de simples apreciação, de anulação ou de
condenação, da mesma forma que o juiz da ação administrativa especial também podia atender a todos
esses pedidos e podia emitir sentenças de simples apreciação, constitutivas ou de condenação. Apesar
de tudo, o sistema funcionava.

Para além disso, o legislador criava processos urgentes, realidade aplaudida pelo Senhor Professor
Vasco Pereira da Silva, porque foi uma das inovações do legislador português mesmo em termos de
direito comparado. No direito comparado o que há habitualmente são processos urgentes, providências
cautelares e processos principais. E aqui o legislador criou uma realidade intermédia – há as ações
principais, na altura, a comum e a especial (até 2015), há processos urgentes e há providências
cautelares. O que caracteriza estas duas últimas modalidades de processo é que têm em comum a
urgência, são processos céleres que têm prazos curtos para serem aplicados e conduzirem à sentença
rápida. Em segundo lugar, os processos urgentes distinguem-se das providências cautelares, porque
estes decidem o mérito da causa (decidindo o litígio), enquanto que as providências cautelares se
limitam a acautelar o efeito útil das sentenças. O Senhor Professor considera uma boa distinção,
independentemente das críticas que se possam fazer de forma avulsa a alguma regras processuais.

No quadro dos processos urgentes, existe o contencioso eleitoral, que é tradicional no processo
administrativo, e é um contencioso urgente, embora em França seja algo a meio caminho entre os
processos urgentes; o contencioso pré-contratual, construído pela União Europeia, embora em 2004, o
legislador não tenha estabelecido uma regra essencial que vinha das diretivas europeias – a regra do
stand still. De acordo com esta regra, depois de celebrado um contrato, há um período em que ninguém
pode fazer nada, nem a administração nem o particular, em que se permite apreciar o procedimento,
no prazo máximo de 8 dias a um mês. Dado que depois de celebrar o contrato já não é possível pô-lo
em causa, e o contencioso transforma-se num contencioso de responsabilidade. É por isso que existem
tantos problemas no Estado Português, que contribuem para o défice – celebra-se o contrato e a seguir
o contrato é posto em causa e alterado, tudo isto contribuindo para um contencioso de responsabilidade
civil.

A União Europeia diz que tem que haver um período de situação em que não se faz nada para que a
Administração pondere se quer mesmo fazer aquele contrato e para que o particular possa ir a tribunal
defender os seus direitos num processo urgente. Esta é uma regra essencial não incluída pelo legislador
em 2004. O legislador incluiu esta regra em 2015, mas retirou-a em 2019. No contencioso pré-
contratual, temos o problema de défice administrativo do contencioso português.

Relativamente às providências cautelares, se antigamente havia uma, (na urgente também há intimação
para defesa dos direitos fundamentais, consulta de processo e passagem de certidões) o legislador
passou da regra de que só havia suspensão da eficácia, tanto pela lei como pela interpretação
jurisprudencial que dela era feita, para estabelecer uma regra que corre do direito europeu, que
estabelece o princípio de cláusula aberta em matéria de providências cautelares.

O artigo 112.º do Código de Processo dos Tribunais Administrativos, estabelece esta cláusula aberta,
estabelece cláusulas tipificadas, e estabelece também o princípio em que o particular pode pedir tudo
o que quiser, e o juiz pode criar o meio processual adequado para a satisfação desse direito. É uma
regra influenciada pelo processo civil, mas aqui o modo como está contruída vai além da própria lógica
do processo civil. É uma excelente regra na opinião do Senhor Professor. No entanto, há uma exceção
que se prende com o modo como a administração intervém no quadro destes processos. Se o particular
pede ao juiz que lhe conceda uma providência cautelar de suspensão de eficácia, estabeleceu-se um
prazo de 10 dias para a administração em que ela pode alegar um motivo de interesse público para
executar. Ou seja, não se espera pela decisão do juiz, e atribui-se à administração o poder de executar.
Isto não faz qualquer sentido – significa que dizer no processo penal, o réu que foi preso em prisão
preventiva, pode dentro de um prazo de 10 dias chegar a tribunal e dizer que a alimentação na prisão
não o satisfaz e então quer ir para casa. Apesar de várias tentativas, ainda não foi possível afastar esta
lógica.

O juiz pode decidir processos cautelares um ano depois, às vezes dois, o que é um absurdo, mas é a
nota de uma realidade que está menos bem, gera problemas de inconstitucionalidade e de défice na
Europa, no quadro do atual contencioso.

O resto corresponde a um bom Código de Processo, com uma tutela adequada, com uma consagração
de uma forma inequívoca de um princípio não apenas de um processo de partes, como se diz no
processo civil, mas como consagra o artigo 6.º, um processo de igualdade de armas.

Quanto a esta reforma, ela está entre o mínimo e o médio constitucional europeu, resolvendo os
problemas do divórcio entre a realidade constitucional e a prática constitucional. É uma legislação
adequada para a realidade portuguesa, e é uma legislação que acabou com o contencioso administrativo
enquanto realidade especial, que era meio administrativa, meio processual como proteção da
administração, e agora temos um verdadeiro processo administrativo, que se pauta por igualdade de
partes. Pode e deve ser melhorado o panorama geral, mas estamos numa situação sustentável, embora
não seja a desejável.

Por outro lado, o legislador estabeleceu outras realidades, que ficaram a meio. Em primeiro lugar, a
responsabilidade civil. A norma estava prevista para entrar em vigor com a reforma do processo, mas
morreu na Assembleia da República em 2001. Posteriormente, apareceu a atual lei de 31 dezembro de
2007, cujo objetivo principal era acabar com a esquizofrenia de responsabilidade por atos gestão
pública e privada, mas legislador foi equívoco. Há ineptidão do legislador ao fazer uma lei de
responsabilidade civil. Foram acrescentados os princípios de Direito Administrativo, e esta referência
aos princípios com base na norma do artigo 3.º do Código de Procedimento Administrativo – que diz
que os princípios do procedimento se aplicam a toda a atuação ainda que meramente técnica, ou de
gestão privada – permite a unificação de todo o contencioso. O legislador devia ter sido mais claro. É
uma interpretação que não é seguida por todos os tribunais, e isso resulta da sua incompetência em
2007, mas é razoável na medida em que unifica o universo da responsabilidade civil.

O que o legislador não fez em 2004, e ainda não fez hoje, foi o de estabelecer um conjunto de regras
unitárias para todo o processo administrativo. Com efeito, o processo fiscal continua a ter um código
autónomo, e um código que não é apenas de processo, mas de procedimento também, continuando a
adotar um monismo, uma lógica da confusão entre administração e justiça.

É certo que se deram alguns passos na alteração desse código – em 2019 introduziu-se a uniformização
dos tribunais do Contencioso Administrativo e do Contencioso Tributário e adquiriram os mesmos
nomes – mas as regras processuais ainda continuam a ser distintas e, em algumas regras do
Contencioso Fiscal, há uma logica violadora da Constituição, de promiscuidade entre administração e
justiça.

No entanto, os problemas não são tão visíveis porque na maior parte dos litígios tributários, é o tribunal
arbitral que resolve. Não parece que seja essa a solução para a realidade, pois os tribunais arbitrais não
substituem os tribunais estaduais. O que é facto quanto aos problemas do atual código do processo
tributário, acabam por se na prática resolvidos pelos tribunais arbitrais que ainda por cima são céleres
e caros. O resultado disto é uma justiça cara do ponto de vista tributário e que favorece quem pode
pagar bons advogados, não sendo equitativa.

O próprio legislador previa que houvesse um período experimental de 4 anos de aplicação do código
de processo e do estatuto e que, findo esse prazo, se desse uma revisão obrigatória. Talvez fosse
demasiada rigidez, e nos “moldes portugueses” diz-se uma coisa, e ninguém cumpre.

Efetivamente houve duas pequenas reformas, em 2014 e 2019, que foram cirúrgicas, muito pontuais,
feitas a aspetos pouco relevantes do contencioso administrativo. A mudança, a reforma propriamente
dita, foi em 2002/2004.

Quanto à reforma de 2015, foi elaborada por um conjunto de Professores. As normas do Código do
Procedimento Administrativo eram incompatíveis com as normas do processo, e, portanto, era
imperativa a revisão do código de procedimento. O legislador, quanto ao procedimento alterou mais
do que no processo, mesmo não tendo sofrido grandes alterações. Esta comissão foi presidida pelos
Professores Fausto Quadros, Sérvulo Correia, Mário Aroso de Almeida, entre outros.

Em relação à lógica dos professores, a lógica do legislador foi muito mais ideológica, de natureza
emocional, uma vez que as mesmas soluções já adotadas muitas vezes só mudaram o nome. Como
exemplo, o artigo 4.º do ETAF, na matéria relativa aos contratos, na versão original não usava a
expressão contratos administrativos, porque esta expressão dava a entender que todos os contratos no
quadro da função administrativa deviam caber ao processo administrativo. Na comissão de 2015, havia
vários professores que tinham escrito sobre o contrato administrativo e gostavam da expressão, e por
isso o legislador, no novo art.º 4.º do ETAF, fala em contratos administrativos e todos os outros
contratos regulados no Código da Contratação Pública, sendo que a solução é a mesma. Não mudou
nada no ponto de vista material. E não é isso que deve fazer uma comissão de reforma. Quando estamos
a elaborar uma lei, não devemos pensar no membro do júri que criticou aquela ideia, e atuar com base
nisto. Alterar uma norma para ficar tudo na mesma, apenas para melhorar linguisticamente uma
expressão porque se gosta desse conceito, não é uma boa atitude na opinião do Senhor Professor Vasco
Pereira da Silva.

O primeiro comentário que o Senhor Professor faz é que há um toque professoral no quadro da reforma
de 2015, que não é uma boa política do ponto de vista do legislador. O legislador, na reforma de 2015,
alterou pouco quanto ao ETAF, não quis mexer na organização, alterou alguma coisa no artigo 4.º,
uma delas já supracitada, mas não trouxe mudanças materiais.

O legislador fez uma coisa bem: uma proposta ao governo que, embora este não tenha aceite, e por
isso não se tenha transformado numa realidade de natureza legislativa, se prende com o universo de
contraordenações administrativas ou direito sancionatório, que é uma parte do direito
administrativo.

Em Portugal, por tradição dos tempos em que os tribunais administrativos não eram tribunais, as
contraordenações são da competência dos tribunais comuns e os penalistas teorizaram o direito das
contraordenações introduzindo uma dimensão comum ao direito penal. Isto criou uma realidade
portuguesa, de acordo com uma certa influência alemã, que fez do direito das contraordenações uma
matéria do âmbito do contencioso dos tribunais judiciais. Se virmos as relações jurídicas
administrativas, isto não faz sentido. Estamos perante relações jurídicas administrativas, pois é a
administração que aplica uma sanção, pelo que a legalidade da mesma deve ser apreciada pelos
tribunais administrativos.

Da perspetiva do Senhor Professor e que merece todo o seu apoio, em relação às situações que estavam
anteriormente na anterior alínea l) e agora na versão reformada estão na alínea k) – os domínios da
saúde pública, habitação, ambiente, ordenamento do território, urbanismo, qualidade de vida,
património cultural e bens do Estado – todas as contraordenações nestes domínios deviam ser da
competência dos tribunais administrativos. Era um passo no sentido de transferir para os tribunais
administrativos toda esta matéria que é administrativa. É claro que teria problemas práticos do ponto
de vista da justiça administrativa que teriam de ser resolvidos, como o aumento do número de efetivos
nos Tribunais Administrativos.
O governo teve medo por causa desses problemas práticos e, portanto, reduziu aquilo que aparece na
alínea l) às contraordenações em matéria de urbanismo. Foi um pequeno passo que viola aquilo que
devia ter sido feito neste domínio.

2.6- A “reforma da reforma” (2015). Evolução na continuidade?

Em 2004, estabeleceram-se os princípios de um novo sistema de processo administrativo, que, de


acordo com a lógica constitucional e com a lógica europeia, é um sistema plenamente
jurisdicionalizado, em que o juiz goza de plenos poderes em face da Administração, e um sistema
plenamente subjetivizado, em que o contencioso tem como primeira intenção a tutela integral e
efetiva dos direitos dos particulares, tal como resulta dos artigos 288º/4 e 5 da CRP e das normas de
direito europeu aplicáveis ao processo. Isto vai ter consequências nos dois diplomas que são a base do
nosso processo administrativo: Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) e o Código
de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA).

Inicialmente, este último era o Código dos Tribunais Administrativos e Fiscais, mas, como os fiscais
ficaram pelo caminho, temos aquela situação esquizofrénica em que temos uma jurisdição com dois
códigos de processo e temos o problema do procedimento e do processo fiscal estarem unidos em
termos de uma lógica promíscua no quadro do trauma originário da justiça administrativa. Assim, o
Senhor Professor Vasco Pereira da Silva diria que a questão ficou resolvida do ponto de vista
administrativo, mas continua a ter imensos problemas do ponto de vista do contencioso fiscal, dentro
da jurisdição administrativa e fiscal. E, portanto, temos um contencioso que cumpre o que são os
requisitos constitucionais europeus, que afasta o problema do défice do Estado de Direito que existia
em Portugal. Temos um sistema que cumpre os requisitos de forma inequívoca. O ETAF corresponde
a um mínimo constitucional, na medida em que tem um mínimo de realização dos objetivos
constitucionais, uma vez que, em rigor, só a norma do artigo 4º do âmbito de aplicação é que é
adequada ao novo processo administrativo. A organização dos tribunais continua a ser a mesma e
continua a ser uma confusão, em que não há especialização e em que há uma esquizofrenia no quadro
do funcionamento dos órgãos.

Por outro lado, temos um Código de Processo que, do ponto de vista da realidade constitucional
europeia, pode ser considerado bom, que cumpre de uma forma boa aquilo que está estabelecido na
Constituição (CRP) e na lei do processo, mas tem também algumas limitações e merece também
algumas críticas.
Na lógica originária de 2002 a 2004, havia duas ações que permitiam todos os pedidos e davam origem
a todas as sentenças: desde pedidos simples de apreciação, a pedidos de anulação, a pedidos de
condenação. Por isso, a lógica da tutela integral dos direitos do particular decorria através destes dois
meios processuais:

Ação administrativa comum;

E ação administrativa especial.

A distinção esquizofrénica entre estas duas modalidades de ações era criticável, porque ambas as ações
eram comuns, decorriam da jurisdição e, por isso, o nome não era utilizado e também porque o nome
estava mal utilizado, porque aquela que era a mais comum era a ação especial. Mas, as duas ações em
conjunto eram adequadas à tutela plena efetiva dos direitos dos particulares e, ao mesmo tempo, havia
processos urgentes e tutela cautelar. Portanto, era um sistema completo no quadro da realização dos
direitos dos particulares.

Esta reforma previa a necessidade da sua adequação e da realização de outra reforma que adequasse
as novas normas à realidade, sendo que isso foi feito depois com a “reforminha” de 2015.

A “reforminha” de 2015 foi o resultado de um conjunto de transformações legislativas, que


vieram coordenar com a reforma do processo administrativo outros diplomas, designadamente o
Código de Procedimento Administrativo. Houve uma comissão nomeada pelo Governo - presidida
pelo Professor Fausto Quadros e que era integrada pelo Professor Sérvulo Correia, Professor Mário
Aroso de Almeida, o Doutor Rui Machete e outros - que fez o Código de Procedimento Administrativo
e um Código de Processo Administrativo, com alterações mínimas a cada um destes diplomas. Houve
maiores alterações no procedimento. No processo foram relativamente mínimas e foram um bocado
marcadas por uma dimensão ideológica: houve uma grande preocupação em “alindar” as normas,
utilizando expressões mais próximas da teoria clássica e dos trabalhos que alguns autores tinham
escrito. Ou seja, houve mais uma lógica ideológico-científica e não uma lógica que deve ser a de um
legislador, que não se deve preocupar com a ciência. Esta apenas permite que ele consiga encontrar as
melhores soluções para o caso concreto. E, esta reforma, em relação ao Estatuto, não mexeu
grandemente nas coisas: fez alterações a cosméticas, algumas más, as quais o Senhor Professor Vasco
Pereira da Silva critica desde sempre, nomeadamente a dualidade esquizofrénica entre contrato
administrativo e contrato de direito privado da administração, que foi ultrapassada com a noção
europeia de contrato público. Ou seja, no quadro dos contratos públicos, essa distinção esquizofrénica
deixa de fazer sentido, mas o legislador, quando, no artigo 4º, vem delimitar o âmbito da jurisdição
administrativa, fala dos contratos administrativos e dos outros contratos públicos regulados no Código
da Contratação Pública, ou seja, não alterou nada de substancial, porque, em regra, a realidade continua
a ser a mesma: os contratos antes considerados públicos ou antes considerados privados da
Administração são objeto do contencioso administrativo, mas introduziu aquela expressão ideológica
que não fazia grande falta.

Depois o legislador teve uma dose de arrojo, ou melhor, a comissão encarregada de preparar a reforma
da reforma, a “reforminha” de 2015, tomou uma decisão arrojada, que foi a de considerar que o
contencioso contraordenacional, quando estava em causa o direito administrativo sancionatório,
deveria ser objeto de análise pelos tribunais administrativos. E aquilo que fez foi pegar na norma do
ETAF (artigo 4º) que estabelecia certos domínios privilegiados do contencioso administrativo
(domínio da cultura, da saúde, do património, da cultural, do urbanismo, do ambiente) e dizer que
nesses domínios deveria todo o contencioso contraordenacional ser decidido nos tribunais
administrativos, na jurisdição administrativa. Acontece que o Governo teve medo e também não quis
criar as condições para que isso pudesse acontecer, porque isso implicaria um acréscimo de trabalho
para a justiça administrativa que obrigaria a repensar a relação entre os tribunais judiciais e os tribunais
administrativos e, portanto, reduziu ao mínimo essa alteração.

Aquilo que agora existe, no âmbito do nosso artigo 4º ETAF, é a limitação ao domínio do
urbanismo do controlo desta realidade contraordenacional: artigo 4º/1/l) ETAF diz que as
impugnações judiciais por decisões da Administração Pública que aplicam coimas no âmbito do direito
de mera ordenação social, ou no direito administrativo sancionatório, por violação de normas de direito
administrativo em matéria de urbanismo, ou seja, cabem aos tribunais este contencioso das
contraordenações em matéria de urbanismo.

Este é um pequeno passo no sentido certo. Se a CRP estabelece no artigo 212º/3 que a diferença entre
os tribunais judiciais e os tribunais administrativos é que estes últimos se ocupam dos litígios que
correspondem às relações jurídicas administrativas e fiscais, mesmo que se diga que esta regra é
tendencial e que pode haver realidades excluídas desta (o que, à partida, não tinha que ser), a lógica
constitucional e a lógica europeia eram a de considerar que todo o contencioso relativo ao direito
administrativo sancionador corresse nos tribunais administrativos. Do ponto de vista de uma jurisdição
autónoma, como é a nossa, faria sentido que essa jurisdição autónoma do contencioso administrativo
e fiscal integrasse o julgamento de todas as relações jurídicas administrativas e fiscais. E o facto de o
contencioso das meras contraordenações estar atribuído aos tribunais judiciais, viola este princípio do
artigo 212º/3 da CRP. O Tribunal Constitucional (TC) tem dito que este princípio não é pleno e que
pode ter exceções, mas, à partida, é a regra: a menos que haja alguma justificação, não deve haver
exceções, se se diz que as relações administrativas e fiscais são da competência dos tribunais
administrativos, não há razão para haver exeções. Mesmo esta ideia do TC é uma forma de salvar a
face perante uma realidade que deveria ser outra. E, portanto, não se conseguiu fazer isso e é aquilo
que depois o Governo incluiu na proposta de lei que apresentou à Assembleia da República (AR):
limitava ao contencioso do urbanismo este controlo por parte dos tribunais administrativos. É pouco,
mas pode dizer-se que será uma porta aberta em relação a uma transformação futura do contencioso
administrativo para o pôr mais de acordo com a CRP.

Do ponto de vista da eficácia, se o contencioso administrativo já está a funcionar de uma forma tal que
não está a dar conta do recado, que já está a ter problemas em resolver os litígios que lhe cabem, se
calhar, do ponto de vista da aplicabilidade prática da norma, talvez não tenha sido uma má solução.
Mas, o que era preciso, no quadro de uma lógica de organização do contencioso, era primeiro dividir
bem as matérias que cabem a cada um dos tribunais e, depois, criar meios e dividir os meios para não
estarem todos nos tribunais judiciais e para haver uma igualdade com os tribunais administrativos,
criar meios que permitam que ambos os tribunais funcionem e, de preferência, bem. Aqui, a prática
pode sobrepor-se a considerações de ordem teórica.

Depois, o nº3 deste artigo 4º também tem ligeiras alterações, sendo que se mantêm as exceções no
quadro de limitação negativa da justiça e procura-se tornar um pouco mais clara a distinção no quadro
do contencioso laboral entre aquilo que é público, no sentido de ser da competência dos tribunais
administrativos, e daquilo que é “privado” (continua a ser administrativo: estamos a falar de
particulares ao serviço da Administração no quadro de relação jurídica especial em que há hierarquia
e outras realidades do género, mais intensa do que o setor privado), mas procurou-se limitar o âmbito
de competência dos tribunais administrativos no tal caminho errado que tinha sido iniciado até 2004,
sendo que este nº3 do artigo 4º é muito criticável. Mas, procurou esclarecer um pouco melhor e o que
resulta agora da interpretação desta norma é que só cabe ao contencioso dos tribunais administrativos
os conflitos laborais quando haja o estatuto equivalente ao antigo estatuto de funcionário público, ou
seja, em termos práticos, a polícia e as forças armadas e alguns órgãos da Administração Fiscal.
Portanto, o resto corresponde a relações laborais, reguladas pelo contrato administrativo do exercício
de direito público, contrato privado para o exercício de funções administrativas e, na perspetiva do
Senhor Professor Vasco Pereira da Silva, mal, violando a norma constitucional do artigo 212º/3 – é
remetido para os tribunais judiciais. Mais do que isto, a “reforminha” não fez, não alterou mais o
Estatuto e este manteve-se até hoje. Melhorou um bocadinho em 2019, mas manteve-se até hoje uma
realidade que apenas cumpre um mínimo constitucional e, também podemos dizer, um mínimo
europeu, num quadro de uma regra de uma saudável e correta organização administrativa. É preciso
dizer que em termos europeus, as regras são sobretudo de processo, porque a organização dos tribunais
depende de país para país e a União Europeia nisso não se mete. Assim, está a estabelecer normas que
são aplicáveis a países com sistema britânico, com sistema anglo-saxónico (continua a haver a Irlanda
como um dos países centrais, a Holanda, os países do leste que adquiriram sistemas anglo-saxónicos),
sendo que, hoje em dia, são os muitos os países que apresentam um sistema anglo-saxónico. A questão
da organização não é resolvida em termos europeus, porque a Europa não tem de uniformar tudo. O
que é preciso é que haja compatibilidade, e não uniformidade. Desde que os sistemas sejam completos
e organizados, não há nenhuma intervenção no quadro da UE. Agora, é preciso que os sistemas sejam
coerentes e o nosso não é. Há aqui alguns problemas constitucionais que também têm alguma dimensão
europeia, embora esta dimensão se deva colocar antes no quadro do processo administrativo.

Mas, passamos agora para o processo, ou seja, às modificações introduzidas ao Código de Processo
Administrativo, com a “reforminha” de 2015.

Este termo “reforminha” serve para mostrar que esta reforma não alterou substancialmente o regime
anterior e introduziu algumas alterações pontuais, que modificaram ligeiramente o sistema, mas não o
alteraram, não fizeram uma alteração substancial e, por isso, esta expressão “reforminha” para dar a
noção desta realidade. O que está em causa no processo é a realização do princípio constitucional da
tutela plena e efetiva dos direitos dos particulares, sendo que isso pode ser feito de duas maneiras: há
aquela tendência alemã de criar tantas ações quantos os direitos (tendência para aproximar o processo
administrativo do processo civil – sistema que era antes defendido pelo Senhor Professor Vasco Pereira
da Silva, parece-lhe mais adequado, aproximando o processo administrativo do processo civil com
normas especiais que têm que ver com as relações jurídicas administrativas e com o processo
especializado, que faz sentido manter a especialização no quadro da evolução administrativa) e há a
lógica latina ou francesa, que conduz a concentrar num ou, quanto muito, em dois meios processuais
toda a tutela dos direitos dos particulares. O legislador acentuou esta tendência latina, sendo que veio
acabar com a dualidade esquizofrénica entre a ação comum e a ação especial e criou uma única ação:
ação administrativa. É algo, quanto ao Senhor Professor Vasco Pereira da Silva, foi o melhor contributo
desta reforma para o processo administrativo.

O Senhor Professor Vasco Pereira da Silva ficou muito satisfeito com o facto de terem dado
importância às críticas por si tecidas em relação a esta dualidade esquizofrénica. Mas, se isso é verdade,
o Senhor Professor só lamenta que não tenham respondido a tudo o que ele dizia, porque há alguns
problemas que decorrem do facto de não terem atendido a uma das críticas que o Senhor Professor fez
em relação ao sistema instaurado em 2002 a 2004. O Senhor Professor dizia que os nomes “ação
especial” e “ação comum” não eram adequados a um sistema de plena jurisdição, porque o contencioso
administrativo antes tinha uma ação especial que era o recurso em matéria de atos e regulamentos e
uma ação comum que era a outra. Agora, ambas as ações, tanto a comum como a especial, passavam
a ser de plena jurisdição e a ação especial não estava limitada nos poderes do juiz. Por isso, essa
expressão era inadequada e o legislador não a devia ter utilizado.

A segunda crítica era: se só pudesse usar essas duas expressões, ao menos que acertasse e que não
criasse aqui um problema psicanalítico10. Esta realidade correspondia ao facto de a ação dita especial,
que já não era especial porque o juiz tinha todos os poderes, correspondia à maior parte do processo
administrativo e, por isso, era a ação comum. O contencioso do ato e do regulamento não só
corresponde à maioria dos litígios que correm nos tribunais administrativos, como o contencioso do
ato e do regulamento se aplicaria sempre que houvesse um pedido relativo ao ato ou ao regulamento
em cumulação com os pedidos principais em relação ao contrato, à responsabilidade civil. Ou seja, na
prática, tudo ia dar, por causa da norma do artigo 5º do Código do Processo, à ação especial. E, por
isso, não fazia sentido haver uma ação especial que era a ação comum, normal do processo
administrativo e que justificava a sua existência.

Mas, o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva dizia também que aquilo que acontecia na realidade
é que, como o legislador tinha usado critérios processuais e critérios substantivos para criar diferentes
sub-ações em cada uma das ações, este critério estabelecia uma confusão e criava sub-ações que eram
verdadeiras ações. E isso sucedia no âmbito da ação comum e da ação especial e continua a suceder
agora no âmbito desta ação administrativa. Portanto, se o legislador fez bem em ter abandonado a
esquizofrenia e em ter deixado de utilizar expressões incorretas, o legislador fez mal em não
estabelecer regras acerca da ação administrativa determinadas apenas por critérios processuais e em
ter misturado os critérios processuais, como são os critérios do poder do juiz, da simples apreciação,
da anulação e da condenação, com elementos substantivos, porque as arrumou relativamente às formas
de atuação administrativa (aos atos, aos contratos e ao regulamento) e combinou as duas coisas . Era
errado usar critérios substantivos, mas se só usasse estes critérios era errado, mas podia ser lógico. É
errado misturar critérios substantivos com critérios processuais, mas isto depois tem uma consequência

10
Analisado por Oliver Sacks, o homem que confundia a mulher com o chapéu e vice versa
que se mostra no modo como o legislador concebeu estas normas: o legislador aparentemente tem uma
ação administrativa, mas esta verdadeiramente está divida em quatro ações autónomas e
independentes.

Vejamos o que o legislador estabelece. O legislador vem consagrar, nos termos do CPA, uma única
ação administrativa, que está regulada nos artigos 37º e seguintes e, se olharmos para a epígrafe
destes artigos temos regras acerca do objeto, dos pressupostos processuais, do andamento do processo
(modificação do objeto do processo e regras acerca dos poderes dos juízes) que podiam ser gerais e
aplicadas a todas as ações, mas não é assim. Isto porque algumas destas regras são aplicáveis a todas,
outras são aplicáveis apenas quando não exista outra regra e, por isso, são apenas aplicáveis ao domínio
da responsabilidade civil, em parte dos contratos e pouco mais. Isto introduz uma falta de lógica na
organização do processo e quando o legislador devia ter feito normas gerais e depois apenas adaptações
especiais às diferentes sub-ações, o que temos é a consagração de várias subações, que são ações
verdadeiras e próprias, que estão reguladas autonomamente, em termos complexos.

Temos a ação de impugnação de ato administrativo (impugnação é um conceito processual e, por isso,
o legislador devia ter juntado as ações de impugnação, quer fossem relativas a atos, a contratos ou
qualquer forma de atuação, ou seja, juntava-as todas e estabelecia regras especiais depois de ter
estabelecido as regras comuns dos artigos 37º e seguintes) e neste processo de impugnação de ato ele
regula tudo: artigo 50º é acerca do objeto e efeitos da impugnação; artigos 51º, 52º, 53º, 54º, 59º, 60º
relativos aos pressupostos processuais; artigo 61º, temos uma regra acerca da instância que regula a
marcha do processo; regras relativas aos poderes do juiz e aos efeitos da sentença. Ou seja, tudo o que
teoricamente já estava no artigo 35º.

O legislador, em vez de ter normas gerais, e depois se quisesse algumas normas especiais em razão
dos poderes que estavam a ser exercidos em cada um destes meios processuais, adota esta filosofia de
disparar as diferentes sub-ações. Por isso, o legislador é contraditório, porque diz, por um lado, que só
há uma ação, mas depois cria várias sub-ações que cabem nessa única ação.

O mesmo ocorre a seguir: condenação à prática do ato – mistura do critério processual com o
critério substantivo. O que deviam estar aqui, depois das regras gerais, eram as regras específicas de
todos os processos condenatórios, independentemente das formas de atuação. O legislador faz o
mesmo aqui: elenca todas as normas correspondentes a uma ação autónoma e não a uma sub-ação.
No artigo 66º, temos o objeto do processo; nos artigos 67º, 68º, 69º os pressupostos processuais;
alteração da instância; temos aqui a mesma lógica. O legislador regula tudo sobre esta sub-ação de
uma ação e, portanto, ela é uma ação autónoma.

A seguir, nos artigos 72º e seguintes, temos aquilo que aparentemente é uma nova subação, mas
é uma nova ação e aqui ainda se verifica um outro problema adicional: legislador juntou dois critérios
processuais (impugnação de normas e condenação, ou seja, pedidos de natureza constitutiva e pedidos
de natureza de condenação, que geram sentenças de caráter diferente), mas uma única forma de atuação
administrativa: o regulamento. E aquilo que aparece aqui é algo desconchavado e também a repetição
de normas em relação a tudo: artigo 72º relativo ao objeto do processo, artigo 73º relativo aos
pressupostos processuais, artigo 74º relativo a prazos, poderes dos juiz e efeitos da sentença. E depois
no artigo 77º, o legislador diz um pouco de tudo e aplicam-se as normas relativas à impugnação que
não são adequadas para a condenação. Por isso, esta regulação é muito crítica na perspetiva do Senhor
Professor Vasco Pereira da Silva, sendo que o legislador devia ter organizado um Código de Processo
apenas de acordo com critérios processuais.

O mesmo se diga quanto à ação relativa à dualidade de execução de contratos: aqui, o legislador já não
teve para se preocupar com esta ação, porque esta ação, nos termos da lógica tradicional, não era uma
ação específica do contencioso administrativo, era a que cabia no processo comum do passado. Há
ainda regras especiais, mas a sua amplitude não é exatamente igual, mas temos os artigos 77º-A e 77º-
B, relativos a pressupostos processuais. Aquilo que está aqui, diria o Senhor Professor, se só tivessem
sido utilizados critérios processuais, poderia ser adequado, porque é a especialização em relação a um
contrato das regras processuais especiais que resultam da dualidade administrativa que está em jogo.
Agora, o que não faz sentido é dizer que há uma só ação e depois regular autonomamente quatro ações.
Em rigor, até são cinco, porque o que está regulado nos artigos 37º e seguintes, que aparentemente
são cláusulas gerais, vão aplicar-se ao contencioso da responsabilidade civil. Estão formuladas a
pensar no contencioso da responsabilidade civil.

Olhando para os artigos 37º e seguintes, temos, desde logo, a norma de interesse processual, que
corresponde a um pressuposto processual que, de acordo com o Senhor Professor, agora faz sentido
existir autonomamente no processo administrativo. Não existia por razões traumáticas, porque o
interesse era confundido com legitimidade, mas agora o interesse em agir no processo civil é um
pressuposto autónomo, na medida em que a legitimidade tem a ver com a posição da parte e com a
ligação entre o processo e a relação jurídica substantiva. Este artigo está construído em relação à
responsabilidade.
As normas do artigo 39º números 1 e 2 são normas que se aplicam diretamente às ações sobre a
responsabilidade civil. Na perspetiva do Senhor Professor, consistindo num pressuposto geral, devia
estar regulado em abstrato, sendo aplicável a todas as ações administrativas. O legislador misturou
várias coisas e criou um único produto (era como se fosse um “champô” quatro ou cinco em um). Não
faz sentido que este único produto esteja arrumado como se existissem quatro produtos autónomos.

Para além destas alterações, o legislador fez algumas alterações pontuais muito marcadas por uma
lógica de professor. O legislador estava mais preocupado com os aspetos formais e não materiais e,
por vezes, formava a solução tendo em conta essa realidade. O que acontecia com a impugnabilidade
dos atos administrativos?

As normas do artigo 51º/1 adotavam uma noção ampla de impugnabilidade do ato, porque o legislador
de 2004 tinha querido deitar para o lixo o ato definitivista: não havia definitividade horizontal, o
particular pode escolher se quer impugnar o ato no inicio, no meio ou no final do procedimento; não
havia definitividade vertical, o particular pode impugnar o ato do subalterno ou do superior
hierárquico; não havia definitividade material, porque o ato não é definição de direito, por isso, o
particular podia reagir em relação a qualquer ato. Esta é a opção correta, a que corresponde ao ato
administrativo adequado aos nossos dias. Isto estava de uma forma mais ou menos bem expressa no
texto de 2002 a 2004 e continua a estar no de 2015, embora com algumas limitações. Por exemplo, a
ideia de que o particular pode escolher o momento do ato que ataca (pode ser o momento de abertura,
intermédio ou final) e nunca é prejudicado por isso, portanto, o particular tem uma verdadeira
possibilidade de escolha. O que se faz agora é estabelecer um limite prazo, no artigo 51º/3. Não há
razão para existir uma regra deste género. Ou se pode atacar em qualquer momento ou não, não fazendo
sentido que tenha de ser enquanto o procedimento existe. É uma limitação, mas não altera a regra, na
medida em que o particular pode escolher. Mas, tem de impugnar antes de terminar o procedimento.
O Senhor Professor não vê razão para esta limitação, a não ser uma razão ideológica. Esta limitação
não devia cá estar, mas também não é uma grande limitação, porque continua a haver a regra de que o
titular pode impugnar qualquer tipo de ato.

Em relação à definição material, mudou-se a formulação que lá estava acerca dos atos confirmativos.
A ideia que lá estava, da produção do efeito jurídico novo não tem de existir. E continua a haver esta
ideia, mas usa-se a expressão de ausência de caráter inovador para permitir a impugnação de um ato
de execução. Ou seja, a regra está bem.
Não era preciso ter ido buscar a expressão do legislador que não estava na formulação originária.
Aquilo que lá está, por que razão é que ali está? Porque se olharmos para o que escrevem os membros
da comissão, têm noção restritiva do ato administrativo como ato regulador, mas apesar de estar cá
essa versão limitada, a solução consagrada é a de admitir qualquer ato possível de produzir efeitos
jurídicos, não alterou nada em termos substantivos, mas alterou em termos ideológicos. Quanto à
definitividade vertical, desde o segundo ano que sabemos a existência das figuras de recurso
hierárquico necessário, que é insconstitucional porque viola o direito de acesso aos tribunais, o
princípio da tutela plena e efetiva (o particular se não usou o meio administrativo, não pode ir ao
tribunal) e viola o princípio da desconcentração administrativa.

O legislador do Código de Processo em nenhuma das normas, na versão originária e na versão de 2015
estabelece um pressuposto processual de impugnação prévia e, na perspetiva do Senhor Professor,
bem. Não só não estabelece esse pressuposto, como diz que o particular pode, mesmo quando recorre
administrativamente, impugnar contenciosamente e, por isso, o recurso não é necessário, passando a
ser voluntário. Segundo o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva, esta era uma solução adequada.
Acontece que o legislador de 2015 do procedimento (o mesmo que fez o processo), resolveu admitir
que, ainda que de forma limitada, podia haver recursos e reclamações. O Senhor Professor criticou
esta solução, dizendo que era inconstitucional e que não fazia sentido porque o Código de Processo
não estabelece este pressuposto processual. O Senhor Professor disse que era um recurso necessário
que é desnecessário, porque não tem consequências processuais.

Quando foi apresentada a reforma do processo, o Senhor Professor estava à espera que o legislador,
que tinha consagrado no procedimento esse recurso necessário, também o consagrasse no processo e
estava com medo de que isso sucedesse. O sítio onde tal era necessário era no código de processo e
isso não se verificava. O legislador que tinha, através do CPA, estabelecido aquele recurso
administrativo necessário desnecessário, agora reitera a ideia de que ele não é necessário para a
impugnação e não cria nenhum pressuposto processual relativo à necessidade de uma prévia utilização
de um meio administrativo. Não cria e bem. Uma garantia desse género, ou seja, necessária, por um
lado, é inconstitucional (por violação dos princípios constitucionais- tutela plena, sepração entre
administração e justiça e desconcentração administrativa) e, por outro lado, é ilegal, porque o Código
de Processo não estabelece esse pressuposto processual. Mais, o Código de Processo até veio acentuar
a ideia da desnecessidade, porque vem estabelecer uma suspensão nos casos em que o particular utiliza
a garantia administrativa e vem dizer que, mesmo quando o particular usou a garantia administrativa
previamente, pode a todo o momento usar a garantia contenciosa (há uma verdadeira alternatividade
entre utilizar (ou não) previamente uma garantia administrativa- é isso que corresponde à lógica de um
contencioso atual).

Esta “reforminha”, no âmbito do contencioso urgente, estabeleceu regras mais adequadas para o
contencioso eleitoral, que tinha sido feito um pouco à pressa - houve limitações que o Senhor Professor
se percebeu rapidamente. Houve um ligeiro alargamento, na medida em que o contencioso eleitoral
estava concebido como um processo de impugnação, o que é contraditório por dizer-se que é um
processo de plena jurisdição (já se dizia desde o séc. XVIII). Mas, houve uma alteração substancial:
legislador estabeleceu, no contencioso pré-contratual, a regra do standstill – regra europeia que
adequou o contencioso administrativo à lógica europeia.

Contencioso standstill corresponde à consagração de que, depois da celebração de um contrato,


é preciso não assinar imediatamente o contrato e haver um prazo, durante oito dias a um mês,
durante o qual ninguém faz nada.

A administração pensa se é mesmo esse contrato que quer celebrar e o particular vai a tribunal obter
uma sentença se houver alguma ilegalidade. Depois de celebrado o contrato, já não há muito para
discutir, apenas a indemnização se existir alguma ilegalidade. É por isso que há estas indemnizações
milionárias que o Estado tem- esta é uma realidade que a União Europeia se apercebeu, ou seja, terá
que haver um período em que não se faz nada.

É por isso que há estas indemnizações milionárias que o Estado português está sempre e
permanentemente a dever porque celebra e depois há uma legalidade e tem que os reformular,
consequentemente tem que pagar aos particulares e entidades que foram afetados – esta é uma
realidade que a União Europeia percebeu bem e disse que só funcionava se houvesse um período em
que ninguém faz nada, ou seja, em que se vê se aquilo que foi contratado corresponde à lei e aos
objetivos de interesse público, intervindo o Tribunal de Contas e os Tribunais.

Esta ideia essencial do ponto de vista do direito público e que estava nas primeiras diretivas sobre
contratação pública, não estava no Código de Processo Administrativo e passou a estar em 2015.
Infelizmente teve curta duração porque em 2019 ela desaparece outra vez. Cria-se um sistema onde
pode haver medidas provisórias, mas acabou verdadeiramente o prazo de “standstill”, exceto para certo
tipo de contratos e, no prazo de oito dias. Isto é um défice europeu do contencioso português que em
2015 foi em parte resolvido, havendo um progresso porque apareceu consagrado no artigo 103.º o
efeito suspensivo automático decorrente do termo das negociações; mas esta realidade que vigorou de
2015 a 2019 foi substituída nesse ano por um sistema que aparentemente mantém o “standstill” para
casos limitadíssimos sendo algo que corresponde a um défice do processo.

O Senhor Professor Vasco Pereira da Silva entende que, olhando para a versão de 2004, havia uma
violação do direito europeu, que de resto a UE estava a pensar se deveria colocar em causa a atuação
do Estado. Em 2015 esse processo morreu porque efetivamente o processo correspondia ao que estava
consagrado nas diretivas. Em 2019 temos um sistema intermédio e, tanto quanto o Senhor Professor
sabe, a UE está novamente a estudar o caso sobre se há ou não violação das diretivas europeias.

Em 2015 estabelecia-se a lógica de forma mais ou menos intensa do “standstill”, a lógica do “esperar
para ver”, esperar algum tempo para ver se há ilegalidade na negociação, sendo a única forma de evitar
a corrupção – quando se fala da corrupção na maior parte dos países europeus, por trás da corrupção
está a contratação pública e a razão dessa corrupção tem a ver com negociações feitas à pressa,
contratos assinados imediatamente, não cumprimento das regras legais e promiscuidade entre os
sujeitos que intervêm no processo de negociação. O problema é que, havendo todos estes riscos no
quadro da contratação pública, se não houver formas de limitar o risco, como é o caso do “standstill”,
então a corrupção torna-se num sistema – o problema não é só ético da parte dos governantes e da
parte de quem negoceia com as entidades públicas, há também o problema jurídico que o sistema
jurídico permita que aconteça e o “standstill” era uma forma de o evitar porque se criava um meio
processual urgente para discutir se o contrato poderia ou não ser celebrado e se o particular tivesse
dúvidas quanto à legalidade, qualquer particular envolvido no processo negocial poderia impugnar o
contrato e teria uma sentença urgente – a UE estabelecia prazos de sentenças que poderiam ir de um a
dois meses.

Ter acabado com o “standstill” é algo que põe em causa a própria efetividade do contencioso
contratual, porque o que é que acontece? Celebra-se um contrato que tem ilegalidades, não se esperou
e não houve um controlo da legalidade contratual. Celebrado um contrato que corresponde a milhares
de euros, esses milhares de euros são empatados e originam, se houver anulação do contrato,
indemnização11.

11
O Senhor Professor Vasco Pereira da Silva conta aqui uma história: a ligação através de um sistema de TGV – já houve
sucessivos governos, alguns que iniciam o processo e outros dizem que é desnecessário. Já houve 5 ou 6 contratos
celebrados no quadro do TGV porque foi sempre posto em causa o contrato e o resultado foi sempre pagamento de
indemnização em relação àqueles com quem se tinha feito o contrato – resultado: já se gastou mais dinheiro no pagamento
das indemnizações, do que aquele que teria sido necessário para construir o TGV, independentemente de saber se ele é ou
não necessário. O contencioso contratual para ser efetivo tem que ter cautelas, garantias e diz a UE e, na perspetiva do
Senhor Professor Vasco Pereira da Silva bem, uma das garantias é o “standstil”l
Houve também alguma modificação no contencioso pré-contratual: no contencioso cautelar,
houve uma regra com a qual o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva está de acordo, porque na
lógica inicial havia uma série de presunções quer favoráveis à Administração, quer favoráveis aos
particulares, que estabeleciam suspensões mais fáceis de obter, outras menos fáceis e o sistema tinhase
tornado um caos em termos de funcionamento e agora houve algum travão porque desapareceram essas
normas que estabeleciam presunções e, do ponto de vista do Contencioso Administrativo, a tutela
cautelar tornou-se um bocadinho mais racional. Não se resolveu o problema de fundo, tal como não
está resolvido hoje que é o problema de nos processos haver regras que metem em causa, por exemplo,
um dos mecanismos cautelares que é o mecanismo da suspensão de eficácia – essa diz-nos que depois
de um particular pedir a suspensão da eficácia do ato, pára tudo. Mas essa suspensão pode ser posta
em causa sem intervenção do juiz, ou seja, a administração tem um prazo de 10 dias para dizer se acha
que é do interesse público prosseguir com a execução do ato.

Quem decide é, portanto, a Administração, não é o juiz. O juiz vai decidir depois, se a decisão da
administração estaria de acordo com a lei e o interesse público – cria-se desta forma, num processo
cautelar, um pré-processo para discutir o ato de administração que manda executar e só ao fim de 1
ano ou 2 é que o juiz decide, comparando o interesse das partes, se deve ou não conceder a suspensão,
ou seja, a tutela cautelar do processo suspensivo, tornou-se quase tão morosa como a tutela definitiva
e vem fazer com que os processos de decisão final se arrastassem mais tempo. O Senhor Professor
Vasco Pereira da Silva considera que não faz sentido esta regra em que o réu decide que tem interesse
em executar, o juiz é que teria que decidir, se não, não é processo cautelar. Isto segue a mesma lógico
do processo penal - o arguido em prisão preventiva tem um prazo de 10 dias para comunicar ao juiz
que não quer estar na prisão e o juiz não intervém.

Até hoje, melhorou quase tudo em matéria cautelar, mas esta norma continua a existir, sem fazer
sentido. É a Administração que tem o prazo máximo de 10 dias para alegar que há motivos de
interesse público para continuar a executar e continua a executar, independentemente da
questão que está em causa. Isto significa que não há tutela cautelar: quem tinha que dar a resposta é
o juiz, não faz qualquer sentido ser a Administração. Este é um dos problemas que vem da infância
difícil do Processo Administrativo. Mesmo quando aparentemente está tudo bem, há sempre um
“quase” que borra a pintura e poderia estar melhor.

De seguida, vem a “reforminha” de 2019 – enquanto a “reforminha” de 2015 era uma reforma de
professores, esta é uma reforma de juízes. Foram os juízes que no quadro de uma comissão que tinha
sido constituída nos termos do Conselho Superior da Magistratura e que trabalharam durante algum
tempo, houve uma primeira proposta, sobre a qual o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva se
pronunciou.

Essa reforma começou em 2016, dando origem à “reforminha” de 2019 e esta reforma tinha um
objetivo prático e bom porque a ideia era que seria necessário combater a morosidade e é preciso
estabelecer regras destinadas a combater essa morosidade. O objetivo declarado era o de fazer uma
reforma minimalista que permita acelerar o funcionamento dos Tribunais Administrativos porque foi
nesta altura, a partir de 2016, que se começa a sentir a crise do Contencioso Administrativo. Ainda
hoje, quando a Senhora Ministra fala do funcionamento da justiça, acrescenta “com exceção da
Administrativa e Fiscal” e isto tem a ver com problemas de meios, de organização e com algum espírito
reinante que faz com qua produtividade não seja tão boa como aquela que deveria ser.

Haveria quem dissesse que a solução passaria por extinguir a justiça Administrativa e Fiscal, acabando
com a especialização, não fazendo qualquer sentido, porque a razão pela qual existe essa especialização
jurisdicional é porque o juiz administrativo conhece a Administração Pública e o juiz que
simultaneamente resolve um caso de propriedade e de direito de autor e tem um processo
administrativo pelo meio não tem especialização suficiente, nem tem obrigação de ter. Esta
especialização é absolutamente necessária pela especificidade do que está em jogo.

Face a isto, os Professores de Coimbra organizaram uma conferência, na qual se defendeu a autonomia
da jurisdição administrativa e fiscal e se travou a tentativa de projeto de revisão constitucional que
pretendia acabar com a mesma, chegando a haver ainda discussão política sobre o tema.

O objetivo desta reforma era necessário e algumas dessas normas introduzem uma maior celeridade
no andamento dos processos. O problema é que se juntou a essas normas, outras que não têm nada a
ver com a morosidade e normas que não só são supérfluas como são erradas e inúteis.

Em que é que se traduziram estas medidas? Em primeiro lugar, em alterações ao Estatuto dos
Tribunais Administrativos e Fiscais, sendo importante referir que esta “reforminha” de 2019
enfrentou um problema que não tinha sido resolvido nem em 2004, nem em 2015 – o Senhor Professor
Vasco Pereira da Silva tem uma visão bastante crítica em relação ao ETAF e diz que corresponde ao
mínimo constitucional. As críticas relacionam-se com a “esquizofrenia” do STA, que é um Tribunal
que tem um desdobramento funcional como Tribunal de 1.ª Instância e Tribunal de Recurso e isso faz
com que este órgão supremo tenha excesso de trabalho e tenha que ter excesso de órgãos no interior e
um desdobramento de funções, havendo hipertrofia do Tribunal.
O Senhor Professor Vasco Pereira da Silva critica também o facto de não haver nenhuma uniformidade
entre o Contencioso Administrativo e Tributário e, as suas críticas principais, têm a ver com a falta de
uma especialização da justiça administrativa, porque se o contencioso administrativo é especial, então
é necessário que a formação dos juízes seja especial, que a carreia seja autónoma. Porque se temos
uma jurisdição especial, deve haver tribunais especializados dentro da própria jurisdição
administrativa.

Havia uma série de críticas que o legislador decidiu enfrentar, mas não as resolveu todas.

Em relação ao ETAF, no que respeita ao Tribunal Administrativo ficou tudo na mesma – continua a
haver a tal esquizofrenia no desdobramento social.

As grandes mudanças têm a ver com outro aspeto – a organização dos tribunais administrativos e
tributários ficou uniforme, há as mesmas categorias de tribunais para os dois ramos e há uma tentativa
de uniformização das jurisdições, acabando com o sucedido em 2004 dos tribunais terem nomes
diferentes, não obstante as suas composições idênticas.

Mas se há aqui uma uniformização, os essenciais mantêm-se porque no contencioso tributário continua
a haver um Código de Procedimento e Processo e também porque na jurisdição Administrativa e Fiscal
continua a haver dois Códigos de Processo, o que não faz sentido.

No artigo 9.º, vem consagrar-se a tónica da especialização dos tribunais, tanto na justiça
administrativa como tributária. No domínio administrativo prevê-se a criação de tribunais de juízo
comum, de tribunais sociais, tribunais especiais de contratos públicos, urbanismo, ambiente e
ordenamento do território que são os domínios que, em regra, correspondem a áreas especializadas
dentro do processo administrativo e tudo poderia ser mais rápido se houvesse um juízo que fizesse isso
no quadro normal da sua atividade quotidiana, que conhecesse melhor os problemas que estão em
causa. O problema foi que agora se deu um passo na lei, que já previa a existência desses tribunais, e
já estamos em 2020 e não temos cá fora nenhum destes tribunais. Portanto, avançou-se com a criação
legislativa, mas ainda falta a sua instauração. A formação especializada para os juízes destas
jurisdições continua também sem estar regulada pela lei, resultando apenas de legislação autónoma
que se cria cada vez que há um concurso.

O Senhor Professor Vasco Pereira da Silva saúda estas reformas, mas considera que as mesmas ainda
não são suficientes. O que o Senhor Professor não consegue entender é porque é que o legislador quis
mexer no artigo 34.º e estabelecer uma regra que não faz sentido nenhum, que limita aquilo que de
bom havia, nomeadamente o artigo 4.º, que delimitava nos termos mais amplos de todos o universo
das relações administrativas e fiscais - o legislador ao que parece achou que tratar do previsto no artigo
4.º, n.º 4 al. e) dava muito trabalho e os juízes vieram dizer que se deveriam considerar excluídos do
universo do contencioso administrativo realidades que correspondem a litígios administrativos desde
o século XVIII e vem dizer que a matéria das relações de consumo relativas à prestação de serviços
públicos essenciais deve sair do contencioso administrativo. O Senhor Professor Vasco Pereira da
Silva considera o seguinte: quando uma entidade pública presta um serviço público, utilizando regras
e dinheiro públicos, porque é que este conflito, que diz respeito à conta do gás, eletricidade, etc., deve
ficar de fora? Se é um conflito típico do direito administrativo deve ir para os tribunais administrativos.

O legislador, na explicação dos motivos desta alteração, justifica-se com a lei 23/94 de 26 de julho,
reformada pela última vez pela lei 10/2013 de 18 de janeiro que, segundo o legislador, é uma lei que
estabelece um regime de consumo privado. Se formos reler essa lei, não encontramos aí nenhuma
norma de direito privado, encontramos é normas de direito público. O que se regula são direitos e
deveres de utentes de serviços públicos, bem como regras de participação na gestão de serviços
públicos. Ou seja, mesmo o pressuposto que justificaria esta exceção não se verifica porque, as regras
são de direito administrativo e, desde o princípio, não há nenhum país europeu que remeta para os
tribunais judiciais o julgamento destas matérias nem há ninguém que diga que estas relações não são
administrativas.

Temos, portanto, algumas melhorias no âmbito da organização, mas temos esta regra
completamente disparatada na ótica do Senhor Professor Vasco Pereira da Silva.

Em relação às alterações ao Código do Processo Administrativo, temos uma regra que é essencial no
artigo 14.º do CPA que estabelece a regra de que o processo nos tribunais administrativos é
eletrónico e estabelecem-se regras que procuram tornar isso efetivo, sendo esta alteração importante
no âmbito da celeridade.

O problema, para o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva, são as outras normas que o legislador
aproveita para mexer quando isso é supérfluo ou erróneo.

O legislador resolve mexer, por exemplo, no patrocínio judiciário, diz-se que por causa do sindicato
do Ministério Público, contudo, na opinião do Professor a mexida não altera nada e não tem
razoabilidade. Na reforma de 2002/2004, havia uma discussão com posições antagónicas: a Ordem dos
Advogados dizia que tinha que haver sempre a contratação de um advogado, as Entidades Públicas
entendiam que não, porque as autoridades públicas podem ter um funcionário em cada serviço que
funciona como um advogado que vá a tribunal. Esta foi uma guerra que se estabeleceu e a solução
encontrada em 2002/2004 foi a de que a administração, quando quiser, ou contrata um advogado ou
então é representada em juízo pelo responsável dos serviços especializados para essa área.

No entanto, manteve-se o Ministério Público para os contratos públicos e para a responsabilidade civil
- o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva considera que isto não fazia muito sentido porque o
domínio dos contratos normalmente é aquele domínio em que as entidades contratam advogado. A
regra do recurso ao Ministério Público não se adequa e o Professor também não percebe porque é que
o Ministério Público tem que ser patrocinador judiciário – o Ministério Público é parte e se é parte é
para isso que deve existir, não é para ser ao mesmo tempo parte e defensor da Administração, uma vez
que isso até pode criar um problema Constitucional.

Aquilo que se fez nesta reforma foi dizer que o Ministério Público pode ser chamado a intervir – no
entanto, o Ministério Público não deve ter função de advogado.

Estabeleceu-se o que o Ministério Público tem legitimidade para impugnar normas administrativas –
artigo 73.º. e aqui o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva considera que, já que se mexeu no
Ministério Público, também se deveria mexer na regra da ação popular.

Houve também uma alteração que, na ótica do Senhor Professor Vasco Pereira da Silva não faz sentido
e viola o Direito Europeu, que é a alteração do contencioso pré-contratual, pondo-se termo ao efeito
suspensivo, agora só há uma coisa parecida se for pedida no prazo de 10 dias, deixando-se
normalmente passar esse prazo.

O objetivo da União Europeia era evitar o processo cautelar. Agora, o que se faz é transformar um
processo urgente num processo cautelar, vendo se há medidas provisórias que devem ser pedidas. Ou
seja, diminui-se a celeridade e transforma-se o processo urgente do Contencioso Pré-Contratual num
processo ainda mais moroso e complicado.

Por último, mexeu-se na providência cautelar de suspensão de eficácia, mas não se alterou nada de
substantivo, ficando tudo na mesma, nomeadamente o poder da administração de dizer que quer
impugnar. O Senhor Professor Vasco Pereira da Silva pergunta para quê alterar o enunciado da piada,
se a anedota continua a ser exatamente a mesma.

Em 2015, apesar de o legislador formal ter mantido tudo na mesma, a Comissão tinha proposto algo
que era limitativo dos poderes da Administração de decidir executar – isso só poderia acontecer em
casos de urgência e necessidade pública. Isto não evitava o problema de ser o réu a decidir, mas, pelo
menos limitava as condições em que a Administração pede para executar que, nos dias de hoje, são
todas.

Na perspetiva do Senhor Professor Vasco Pereira da Silva, se limitava os casos, não alterava o princípio
– a proposta da comissão, se continuava a ser criticável pelo facto de não alterar o princípio de permitir
o réu executar o ato, era uma proposta que limitava o exercício deste direito.

Há outra questão que não foi resolvida nesta “reforminha” de 2019 que é a questão, falada há pouco,
de haver um único Código de Processo e acabar-se com esta esquizofrenia do Contencioso Tributário.
Esta “reforminha” de 2019 aproximou os dois processos, há uma tentativa de aproximação do conteúdo
das normas, mas essas normas continuam a ser diferentes, o que não faz sentido. Faria sim sentido que
num Código comum houvesse normas especiais para o Contencioso Tributário.

III - “Eros e Thanatos”: Os elementos do processo

Este é um tema comum a qualquer disciplina processual, seja processo administrativo, seja processo
civil, seja processo penal. É preciso saber o que é essencial para que possa haver o processo. A doutrina
costuma referir como elementos essenciais do processo, por um lado, a existência de sujeitos: sujeitos
que ocupam posições diferenciadas no âmbito do processo e, em segundo lugar, a questão do objeto.
Nesta questão do objeto é costume distinguir entre o chamado pedido e a causa de pedir. O pedido é
aquilo que solicita ao juiz e a doutrina, aqui, tende a distinguir, na sequência do ensinamento do
Professor Manuel de Andrade, da Escola de Coimbra, que há um pedido imediato que corresponde
àquilo que o particular, imediatamente, solicita ao juiz, ou seja: a anulação, a condenação, e a
declaração de direitos, havendo um pedido mediato que corresponde à posição jurídica subjetiva que
é alegada pelo autor. Portanto, uma distinção entre aquilo que diretamente se pede e o direito que
justifica o pedido que é feito ao juiz. Depois há a causa de pedir que é a razão ou lesão de direito, razão
jurídica que leva o particular a iniciar o processo, que leva o particular a fazer aquele pedido.

Estes elementos são os elementos essenciais de qualquer processo, tendo no processo administrativo
menção própria, mesmo se hoje em dia e a partir do momento em que já vimos as transformações
verificadas no contencioso administrativo, que se transformou em processo administrativo, há muitos
elementos comuns e muitos aspetos comuns no quadro desta teorização geral do processo
administrativo.
Mas nem sempre foi assim: a tradição, a própria lógica do pecado original de uma justiça especial para
administração, também trazia consequências na teoria do processo, seja ao nível dos elementos
essenciais, quer ao nível dos pressupostos.

Portanto, vamos começar por analisar a questão dos sujeitos processuais, que são determinantes e
essenciais. É uma questão essencial, mas que sofreu grandes transformações, sobretudo em Portugal,
que são aquelas que nos interessam neste momento, com a transição do contencioso administrativo, ou
seja, há na realidade portuguesa uma enorme transformação que resulta da Reforma do Contencioso
Administrativo de 2002/2004, que instaurou um novo sistema processual que temos até aos dias de
hoje, mudando muito da realidade tradicional que estava em causa.

Convém começar por lembrar, de uma forma simples e muito rápida, como é que o Contencioso
Administrativo era olhado antes da Reforma de 2002/2004, pois desde oitenta e cinco já havia alguns
aspetos subjetivistas a entrar no Contencioso Administrativo. No entanto, a grande mudança integral
do sistema, como foi mencionado, resultou dessa Reforma. O que temos de comparar é a existência de
dois modelos, um modelo objetivista, que corresponde ao modelo clássico e tradicional e o modelo
subjetivista que corresponde ao novo modelo, aquele que supera os traumas da infância difícil.
Aconteceu um pouco por toda a Europa, a partir sobretudo dos anos sessenta e vai até aos nossos dias,
numa primeira fase de constitucionalização e depois europeização, como estudámos, e que
corresponde à realidade atual do processo administrativo.

A lógica tradicional era objetiva: o que se dizia era é que o processo administrativo, que curiosamente,
a doutrina só estudava o processo para um lado, era um processo em que o que restava em juízo era
apenas o lado administrativo e os sujeitos processuais não eram partes no processo. Os particulares
não eram partes porque não podiam ter direitos perante a Administração. O particular era o objeto do
poder, dizia Otto Mayer, era alguém em relação ao qual a Administração Pública existia um poder, era
um administrado, segundo a expressão portuguesa de quem não tem a psicanálise em dia. Não era um
sujeito de direito no quadro das relações substantivas e, como não era um sujeito de direito, também
não era parte da relação processual. Portanto, o particular dizia-se, usando uma expressão do Senhor
Professor Marcello Caetano, para ajudar o juiz e administração a descobrirem a legalidade e o modo
mais correto de realizar o interesse público. O

particular não ia a tribunal para defender uma posição justa, não ia a tribunal porque tinha sido lesado,
era sim uma espécie de bom escuteiro, que ia a tribunal fazer uma boa ação para permitir que a
administração funcionasse bem. Isto é uma tradição que vem da Constituição objetivista francesa e de
Maurice Hauriou, o mesmo que dizia que o processo a um ato era idêntico a um processo a um
cadáver, uma realidade inerte, que não afetava ninguém e nem era praticada por ninguém. Era uma
realidade que do ponto de vista do particular, era impugnada e este tinha uma função de Ministério
Público, uma expressão que o próprio Hauriou utiliza.

Há uma expressão que o próprio Hauriou utiliza que ainda hoje, por exemplo, o autor atual francês
diz que o particular no recurso de anulação é o procurador de direito e, enquanto procurador, ele vai a
tribunal para ajudar a Administração, não indo a tribunal por mais nenhuma razão. O resto não
interessa, só vai a tribunal apenas para ajudar a Administração e do lado passivo também não existe
uma parte. A Administração não é parte porque não se considera entidade que praticou o ato; o ato
está ali, mas é a tal realidade inerte, que não tem pai, nem mãe, ninguém o praticou. Por isso, não se
vai julgar a responsabilidade de quem fez o ato, o mesmo caiu do céu aos trambolhões. É uma realidade
gerada, mas não criada. É algo que está ali, mas ninguém sabe como é que lá está e a posição da
Administração não é uma posição de parte: a Administração é uma autoridade recorrida que vai
colaborar com o juiz na descoberta da verdade. Esta expressão de “autoridade recorrida”, em Portugal,
ainda é utilizada para caracterizar a Administração na Reforma de 1985 e só desapareceu com a
Reforma de 2002/2004. É algo que tem uma intensidade de afirmação no quadro da lógica traumática
que chega até ao nosso século.

Era verdade que em 1985 já se atribuíam poderes de parte à Administração e ao particular, mas a
Administração continuava a ser chamada de autoridade recorrida, porque ela era uma autoridade
pública que se integrava no mesmo poder do tribunal - na lógica tradicional da promiscuidade entre a
Administração mista - e que estava ali para ajudar o juiz. Assim sendo, o processo administrativo não
era em primeiro lugar o

processo de partes. Isso trazia consequências do ponto de vista da legitimidade, pois o que estava em
causa era que o particular tivesse alguma ligação ao processo. Inicialmente, a lógica deveria ser a de
uma ação regular: todos poderiam ir a tribunal, não se exigia um direito.

Curiosamente, os juízes nunca quiseram isso e a doutrina nunca construiu o processo nos termos da
ação regular, mesmo quando se afirmava subjetivista.

Portanto, a legitimidade vai usar critérios de limitação e o critério tradicional, que depois encontramos
em Portugal, é o critério da legitimidade definida em torno do interesse, interesse como direto e
pessoal. Mais à frente veremos o que é que isto significa e como é que isto foi superado.
O Senhor Professor Vasco Pereira da Silva acredita que subjetivista quer dizer que o particular e a
Administração são partes, porque há uma relação substantiva, sendo que esta relação substantiva é
levada ao processo e são partes em sentido processual porque têm uma posição idêntica, têm a mesma
possibilidade de se defenderem no processo e decidirem a sua visão acerca do processo. Quem está
em juízo é o particular de uma Faculdade por uma atuação administrativa e do outro lado é a
Autoridade Administrativa que praticou o

ato e que vai defender a legalidade desse ato, vai explicar o que é que praticou e vai defender a
legalidade acerca desse ato. Quanto ao objeto do processo, a lógica objetivista, considerava que estava
em causa apenas a legalidade do ato, aquele processo que não afetava a nenhum direito e que não tinha
sido praticado por ninguém, era apreciado de forma neutra e objetiva: se o juiz chegasse à conclusão
de que havia uma ilegalidade, o juiz apenas podia anular o ato, não podia nem condenar, nem dar
ordens à Administração.

Era uma realidade que era analisada de uma forma completamente objetiva, o juiz limitava-se a
comparar a lei com aquele ato em questão. Quer o pedido, quer a causa de pedir eram entendidos ou
deviam ser entendidos (nem sempre foram) nesta lógica objetivista. A causa de pedir era, sem mais, a
ilegalidade do ato e o pedido era, sem mais, a ilegalidade do ato. Não havia pedido mediato porque
não se admitia a existência de direito e a causa de pedir eram os vícios forma limitada de alegar a causa
de pedir enunciando as ilegalidades do ato) que levavam que o particular fosse a tribunal para ajudar
a Administração a descobrir a legalidade do interesse público. Logo, isto tinha uma lógica que era
puramente objetiva ou objetivista no quadro da realidade processual.

Do ponto de vista subjetivista, o que está em causa no pedido é, por um lado, aquilo que o particular
pretende para a tutela dos seus direitos: ele alega um direito lesado, que foi violado pela atuação
administrativa. Portanto, ele vai pedir ao particular que anule, que condene, que declare um direito,
pois ele tem um pedido mediato, porque ele está a atuar para a tutela de um direito e a causa de pedir
corresponde a

uma lesão que ele sofreu na sua esfera jurídica, a ilegalidade que existiu lesou o particular e essa lesão
ele alega através da causa de pedir. Como vêm existem diferenças essenciais entre os dois modelos de
processo.12

12
Para aqueles que quiserem aprofundar essa matéria, é aconselhada a leitura do que o Senhor Professor Vasco Pereira
da Silva escreveu na sua Tese de Mestrado, que se chama Para um Contencioso Administrativo dos Particulares, em que
procura fazer uma teoria subjetivista dos anos oitenta do recurso de anulação, contrapondo-a à teoria objetivista então em
Há aqui, portanto, dois modelos a contrapor, como vimos a Constituição Portuguesa escolheu o
modelo subjetivista e esta é uma opção constitucional, que vem logo desde 1976, e depois assume a
sua configuração mais completa em 1997 - a que temos hoje. Isto corresponde à transição que se
verificou em todos os países do mundo, à mudança do processo, processo que alargou o âmbito da
jurisdição administrativa, os poderes jurídicos tornando-se o Contencioso de plena jurisdição e
ganhando o processo um novo centro, utilizando uma expressão bem utilizada: os direitos do
particulares. Há agora uma nova lógica de conceber o Contencioso Administrativo que tem por detrás
esta dimensão subjetivista no quadro dessa realidade. Isto é particularmente evidente quando olhamos
para o nosso artigo 268.º/4 e o n.º 5 da CRP, onde se começa por garantir os direitos dos particulares
e diz-se que, para a tutela desses direitos, o juiz goza de todos os poderes necessários e adequados para
essa tutela, quer uma tutela por via declarativa, quer uma tutela por via executiva, quer uma tutela por
via cautelar. E aquilo que o artigo 268.º/4 e 5 fazem é estabelecer de uma forma mais detalhada que
outras constituições, mas que se justifica pela história que já vimos em aulas passadas, da dificuldade
a implantar o processo. O juiz nessa norma, correspondente ao 19.º/4 do direito alemão e normas que
existem em todos os outros países europeus (os alemães falam na “norma perfeita” e o Senhor
Professor Vasco Pereira da Silva ironiza dizendo que a nossa é “mais que perfeita” porque tem mais
coisas). Esta realidade condensa o novo modelo de processo, isto, em termos práticos, significa que a
concretização desta realidade pode ser feita de maneira muito diferente. É este o objetivo, é esta a
realidade: um contencioso integrado para a tutela dos direitos dos particulares; e esta realidade pode
ser organizada de formas diferentes. Há, designadamente, dois modelos: no primeiro, na falta de
melhor designação, é o modelo mais próximo do processo civil, mais processualista em termos civis
que basicamente é o modelo alemão. Este modelo, similar ao do processo civil, cria tantas ações quanto
os pedidos feitos pelos particulares e as sentenças são determinadas em razão dos pedidos.

Portanto, há ações de simples apreciação, ações constitutivas e ações de anulação, e aquilo que
distingue cada uma das modalidades de ação é o pedido feito pelo particular que dá origem a uma
sentença com poderes distintos por parte do juiz. Esta solução, por um lado, tem a vantagem de ser
mais próxima do processo civil e parece ao Senhor Professor Vasco Pereira da Silva, em abstrato, a
melhor das soluções.

No entanto, a solução que foi adotada não foi esta. Embora possua as mesmas características, portanto
é uma boa solução, é a solução latina, correspondendo ao direito francês, ao direito italiano, direito

vigor. O capítulo final põe lado a lado o contencioso objetivista e subjetivista e estabelece todas as semelhanças e
diferenças.
espanhol, e ao direito português. É uma solução em que a tutela plena efetiva dos direitos dos
particulares se realiza através de um único meio processual ou, quando muito, dois meios processuais.
A realidade inicial em 2002/2004 era dois meios processuais - a ação comum e a ação especial. A
partir de 2015, temos apenas uma ação e, portanto, a ideia é concentrar num único meio processual ou,
quanto muito em dois, todos os meios principais do processo administrativo. A lógica consente
racionar, mas no quadro de um sistema pleno, esta ou estas ações permitem todos pedidos e dão origem
a todo o tipo de sentenças, ou seja, o particular pode apresentar pedidos de simples apreciação, pedidos
de condenação, pedidos constitutivos e pode cumular esses pedidos. A sentença aqui nesta ação (que
podemos chamar de ação de “banda larga”, usando a expressão da internet, os americanos falam em
ação guarda-chuva) que permitem a tutela de todos os direitos e ambicionam todas as sentenças numa
lógica combinatória dos diferentes tipos que podem ser tutelados.

Foi esta última solução adotada pelo legislador português e foi adotada primeiro com a dicotomia
ação comum e ação especial, que é para o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva muito
criticável.13 As críticas assentam, basicamente, em 3 questões.

A primeira crítica é quanto aos nomes “comum” e “especial”: são os nomes do passado e não estão de
acordo com a nova realidade que se está a querer fazer, porque antes a ação especial era o recurso de
anulação - modalidade especial em que o juiz estava limitado pelo controle e só podia anular as
decisões. Ora, se isto desaparece e se agora, quer a ação comum, quer a ação especial, se tornam em
ações de jurisdição plena, então não faz sentido usar estes nomes. Portanto, estando o Senhor
Professor Vasco Pereira da Silva de acordo com a transformação na sequência da realidade
constitucional e da realidade europeia, faz de qualquer meio processual o processo administrativo um
meio pleno, um meio de jurisdição plena. Assim sendo, qualquer outro nome seria mais adequado que
“comum” e “especial”, pois estes têm cadastro, correspondendo assim a formas erradas de olhar para
o processo administrativo. Nas palavras do Senhor Professor, mais valia chamarlhe “Maria Albertina”
e “Joaquim Manuel”, qualquer outro nome era preferível ao nome de “ação comum” e de “ação
especial”.

A segunda crítica é que mesmo se admitíssemos, por razões absurdas, que só havia estes dois nomes
e que não havia possibilidade de escolher outros, seria desejável que o legislador acertasse nos nomes,
porque a realidade do Contencioso Administrativo na Reforma de 2002/2004, aparentemente era a

13
A justificação de tal crítica encontra-se no Divã da Psicanálise, por indicação do Senhor Professor Vasco Pereira da
Silva.
realidade do processo civil em que há uma ação comum e depois há ações especiais. A ação comum é
a subsidiária e aplicada a outros casos que não estão especialmente regulados e a ação corresponde à
maioria dos processos. No Contencioso Administrativo aquilo que acontecia era que havia essa e a
ação especial, mas a ação especial, aquela que é regulada por lei, era ação que era determinada,
também, por razões materiais. Portanto, era a ação de contratos e regulamentos, era a ação do poder, a
ação tradicional. Isto tinha como resultado que a ação especial fosse ação comum e que a ação comum
fosse ação especial. Porque a maior parte dos processos que decorrem na justiça administrativa são
sobre atos e regulamentos e, porque se dizia que quando se cumulassem pedidos sobre atos e
regulamentos contra contratos ou realidades diferentes, que se aplicaria sempre a ação dita especial, o
que significava que a ação dita especial se tornava na ação comum do processo administrativo:
comum porque era a mais frequente, comum porque era aquela que caracterizava a justiça
administrativa. Então estes nomes, para além de corresponderem a realidades do passado, estariam mal
atribuídos se considerássemos que só eles é que podiam existir - era de novo um problema
psicanalítico. O homem confundia o chapéu com a mulher e a mulher com o chapéu, o que gerava uma
série de problemas analisados por Oliver Sacks, num famoso livro sobre psicologia. O legislador
enganou-se nos nomes e, portanto, não devia ter escolhido esses, mas ao escolher esses pelo menos
que não se enganasse.

Uma terceira critica que o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva faz a esta distinção é a de que o

legislador misturava critérios substantivos com critérios processuais e que o Código devia apenas
estabelecer regras de acordo com regras processuais. Ou seja, quando o legislador português, na
Reforma de 2002/2004 e depois em 2015, se misturam, critérios processuais, que correspondem aos
efeitos das sentenças (anulação, condenação, declaração de ilegalidade) a elementos processuais
introduzidos na distinção, mas depois simultaneamente se ligam estes elementos processuais aos
elementos substantivos (atos, contratos, regulamentos: formas de atuação administrativa). Esta mistura
não é adequada e leva a que o legislador crie varias ações que apareçam como sub-ações: primeiro da
ação comum e da ação especial, agora da ação administrativa que estão reguladas como se fossem
ações autónomas, e isto não faz qualquer sentido.

O legislador de 2015, da “Reforminha” de 2015, ouviu parte das críticas do Senhor Professor Vasco
Pereira da Silva e o próprio ficou muito satisfeito por se lembrarem dele, sobretudo por numa reforma
se lembrarem das críticas que fez. Agora, na regulação que surgiu na “Reforminha”, os arts. 37.º e
seguintes estabelecem uma única ação, a ação administrativa. Portanto, foi uma boa medida desta
reforma. Contudo, lamenta o Senhor Professor que não tenham ouvido tudo o que disse, porque
também criticava que fossem misturados critérios substantivos com critérios processuais e isso
continuou a existir. O que temos agora é que sobre a aparência de uma ação única que é a ação
administrativa, em rigor há 4, 5 ou 6 (consoante a nomenclatura) ações verdadeiras e próprias, com
regras sobre a integralidade dos respetivos elementos e, portanto, há uma quantidade de sub-ações que
resultam da mistura dos critérios substantivos com os processuais. O que o legislador devia fazer era
usar os critérios processuais, que podem ter diferenças consoante as situações e os pedidos. No entanto,
o que não faz sentido é que as diferenças que resultam deste Código misturem as duas coisas e gerem
situações com grande ilogicidade, do ponto de vista teórico, parecendo uma má decisão causadora de
disfunções no quadro do processo administrativo.

Vejamos, nos artigos 37.º e seguintes que tratam da ação administrativa, aparentemente, o Capítulo
Primeiro tem as disposições gerais, que deveriam valer para todas as sub-ações. Em rigor, o que aqui
se faz não é isso. Não se estabeleceram regras comuns a todas as modalidades da ação: o que foi criado
foram regras avulsas que não cabiam em mais lado nenhum e são utilizadas para todos os casos de
sub-ações que não estão especialmente reguladas. Em vez de termos regras comuns, temos regras que
- sendo comuns - podem ter uma dimensão limitada. Atentemos: o art. 37.º fala do objeto do processo
e esta é uma regra comum, que fala sobre a impugnação, a condenação em várias modalidades,
reconhecimentos de direito, entre outros, e aqui repete aquilo que diz no artigo 2.º do Código de
Processo. Aqui temos uma lógica completa e detalhada tratada nestas matérias.

Contudo, o artigo 38.º só trata do ato administrativo inimpugnável, ou seja, isto é uma regra que tem
a ver com o pressuposto processual, que é relevante sobretudo para a impugnação, aparecendo aqui no
quadro geral, como a regra geral (embora depois ao ler, o legislador preocupa-se mais com a realidade
das situações concretas, designadamente, com a responsabilidade civil). O art. 39.º, idem. O que está
em causa é o novo pressuposto processual, que agora passou a existir porque quando o interesse era
condição de legitimidade, o interesse não era autonomamente considerado e passou a ser. Mas o
legislador escreve este artigo como se o interesse processual fosse o pressuposto exclusivo das ações
de simples apreciação e não é, é o pressuposto genérico.

Depois havia aqui algumas normas que foram aprovadas e, em termos de prazo, basicamente não dizem
nada. A modificação do objeto do processo, o processo vem no art. 45.º, a extensão do regime no art.
49.º e ficamos por aqui, ou seja, estas não são as disposições comuns às ações administrativas, são
disposições que podem ter aplicação geral, mas que, normalmente, estão possuídas em função de
pedidos especiais no quadro de sub-ações e a seguir aparecem regulados. Posteriormente, o legislador
vai tratar de diferentes subações, com uma mistura de critérios, sem uma lógica de tratamento destes
critérios, misturando o substantivo com os processuais e estabelecendo de novo o regime completo,
porque não fez regras gerais dos artigos 37.º e seguintes. Vai, a propósito de cada uma destas ações,
repetir todas as coisas que tratou ou que devia ter tratado nas normas gerais e repete-as em todas as
ações que, verdadeiramente, cria.

Vejamos os artigos 50.º e seguintes, da “impugnação dos atos administrativos”: o que está aqui em
causa é um pedido de impugnação, mas o que o legislador devia ter feito era ter juntado todas as
impugnações, impugnações de atos, de regulamentos, de contratos, está em causa a impugnação e
aquilo que distingue o processo é o pedido de impugnação, esta é a realidade processual, sendo que o
legislador não fez isso. Fala de impugnação só dos atos administrativos e a propósito da impugnação
de atos administrativos estabelece todas as normas, criando uma verdadeira ação autónoma. O artigo
50.º é sobre o objeto e efeitos da impugnação, os artigos 51.º e seguintes são sobre o pressuposto
processual da impugnabilidade, depois há o pressuposto processual da legitimidade, o pressuposto
processual dos prazos e, depois, há regras de processo acerca da instância, dos poderes do juiz, ou seja,
o legislador regulou integralmente esta ação de impugnação de atos administrativos.

Depois temos os artigos 66.º e seguintes: “ação de condenação à prática do ato”. Esta é uma ação
condenatória, muito importante, inovadora, mas é apenas de condenação de atos - prática de atos. Por
isso, aparecem de novo no artigo 66.º as regras do objeto, no 67.º pressupostos, no artigo 68.º a
legitimidade, no artigo 69.º o prazo, e alteração de instância no artigo 70.º, poderes de pronúncia do
tribunal no artigo 71º.

Temos outra vez regras autónomas, uma ação regulada autonomamente.

Nos artigos 72.º e seguintes temos “impugnação de normas e condenação à emissão de normas”.
Aqui são dois pedidos diferentes, que são juntos, acoplados em razão da forma da ação, que é o
regulamento. Portanto, aqui temos o predomínio do critério substantivo sobre o critério processual e
de novo temos normas acerca do objeto, pressupostos, prazos da decisão e efeitos da sentença e depois,
a seguir à condenação, temos apenas o artigo que remete para os outros, mas no fundo remete ou
deveria remeter sobretudo, mas acaba por se aplicar na integração de lacunas para o das ações de
condenação de atos de procedimento, aqui o legislador não se contentou com uma única norma. Depois
temos as ações relativas à validade e execução de contratos. Aqui o legislador já foi mais parco,
preocupou-se sobretudo com os problemas do poder. A tal lógica que vinha do passado e continua a
deixar traumas e, portanto, tem uma norma relativa à legitimidade e aplicamse as outras.
Quanto aos pedidos de responsabilidade ainda se pode dizer que há o pedido especial que justifica a
aplicabilidade das regras que estão no artigo 37.º e seguintes e, que no fundo, sendo gerais, têm
sobretudo aplicação em relação aos processos especiais, ou seja, do ponto de vista da técnica
legislativa, há aqui uma lógica confusa que gera problema e que gera, sobretudo, esta realidade de um
com vários (como os shampoos, na publicidade dos shampoos há o sistema de dois em um: aqui temos
quatro em um ou cinco em um, ainda é mais completo do que as gamas de shampoos que conhecem).
Logo, há aqui uma realidade que continua a não fazer sentido, porque o legislador se, por um lado,
corrigiu os problemas dos nomes (e ainda bem que o fez), não foi capaz de ir além disso e não
uniformizou o tratamento dessas realidades de acordo com critérios processuais no quadro de uma
ordem lógica de tratamento destas questões. No entanto, é preciso dizer que, agora e como antes, o
legislador estabeleceu regras que asseguram a plenitude dos poderes; apesar de não o fazer da melhor
maneira, as soluções correspondem à lógica daquilo que constitucionalmente é imposto e que
corresponde à europeização existente no quadro do Processo Administrativo.

Ora bem, vejamos as diferentes normas do Código do Processo Administrativo e vamos analisar estes
elementos que têm a ver com a lógica de partes. A primeira coisa que o legislador faz, no quadro do
Código de Processo, no artigo 1.º é a de estabelecer que estas normas do Código de Processo
Administrativo, definindo o âmbito de aplicação, são aplicáveis juntamente com o Estatuto e
subsidiariamente as normas de Processo Civil a todas as situações. Portanto, é uma norma delimitadora
da realidade de aplicação que está aqui em causa. Mas é uma norma importante, porque o objetivismo
nos termos dos passos essenciais da sua construção teórica era também monista, há aqui uma distinção
que também é importante e que já ouviram falar, entre monismo e dualismo processual. A lógica
monista era a lógica objetivista, havia continuidade entre procedimento e processo, eram uma e a
mesma coisa. O Senhor Professor Marcello Caetano dizia, inclusive, que no processo gracioso, como
no contencioso, o que estava em causa era a correta, a completa e total realização do direito do caso
concreto e, na verdade, a separação entre a Administração e Justiça obriga a distinguir procedimento
e processo - não são a mesma coisa, nem em termos materiais, nem em termos formais, nem em termos
orgânicos.

Assim, também a realidade que está em causa assenta numa lógica que a partir de agora é dualista, há
regras de processo e de procedimento. Procedimento e processo são realidades diferentes, têm de ser
tratadas de forma diferente e não há uma continuidade. Isto implica também que as regras de
procedimento sejam corretas, detalhadas e efetivas e que as normas de processo também, no quadro
das respetivas funções estaduais que possuem natureza administrativa.
Depois o artigo 2.º estabelece o princípio da tutela jurisdicional efetiva, é o que está nos artigos
268.º/4 e 5 da CRP. Aqui o legislador vai dizer que a cada direito corresponde um meio processual
adequado para a sua tutela: é o princípio equivalente ao do processo civil que a cada direito
corresponde uma ação. Em rigor, só há uma ação e o que ele diz é que há um meio processual adequado
para a sua tutela. Relativamente à disposição constitucional, o legislador refere que lhe vai ainda
acrescentar que a decisão judicial sobre o conteúdo material daquela relação jurídica tem que resultar
de um processo equitativo e tem de ser célere, não podendo ser demasiado morosa, ou seja, o legislador
vai completar, em termos processuais, tudo aquilo que decorria já da lógica constitucional e aqui faz
sentido: o que vem dizer é que pelas razões que conhecem o legislador constituinte meteu “coisas a
mais” na norma constitucional. Fez, mas - em rigor - não tinha de o fazer. Aqui sim, esta realidade tem
de ser devidamente escalpelizada. Depois o legislador vai estabelecer esta completude, esta plena
jurisdição, que agora passa a corresponder à ação administrativa e vai começar por dizer que ela
permite todos pedidos e, no número 2 deste artigo 2.º, o legislador enumera de forma exemplificativa
todos os pedidos que é possível tutelar: a anulação ou declaração de nulidade na alínea a); a condenação
à prática de atos devidos; a condenação à não emissão de atos administrativos e, portanto, proibir a
Administração de ilegalidades; a condenação à emissão de normas; a declaração de ilegalidade de
normas; reconhecimento de situações jurídicas, reconhecimento de qualidades; condenação à adoção
ou abstenção de comportamentos; condenação da Administração às condutas necessárias;
condenamento da Administração aos deveres de prestar; condenação à reparação de danos; problemas
relativos à interpretação, validade ou execução de contratos; restituição de enriquecimento sem causa;
intimações da tutela de direitos; intimações para obter informações; extensão dos efeitos de julgados
e providências cautelares.

O legislador enumera de uma forma ampla para mostrar que agora o contencioso já não é de anulação
- de que o juiz já não está limitado nos seus poderes - de forma exaustiva e, mesmo assim,
exemplificativa a todos os pedidos que podem ser feitos à Administração nos meios processuais de
banda larga, como é o meio processual da atuação administrativa.

Temos aqui uma transformação: o processo passou a ser de plena jurisdição. Mas tão importante quanto
isto é que agora o legislador prevê no artigo 4.º a possibilidade de cumulação generalizada dos pedidos
e uma cumulação de pedidos, não só apenas em relação à mesma forma de atuação, mas pedidos
relativos a formas de atuação diferentes. Este artigo 4.º mostra também que o critério não deve ser o
da forma de atuação, porque agora o objeto do processo é integral e irá reconhecer a integralidade da
relação jurídica administrativa, sendo possível e desejável juntar no mesmo processo pedidos relativos
a um ato procedimental, a um regulamento que precede a um contrato e a um contrato - todos eles
correspondendo à integralidade da relação jurídica do particular que leva a juízo e são analisados num
único processo. Agora a ideia é a de juntar numa única ação tudo aquilo que diz respeito à relação
material controvertida, à relação jurídica entre o particular e a Administração, como se diz no Artigo
211.º, n.º 3 e que agora, no quadro do processo administrativo, vai ser decidido de uma forma conjunta.

Esta é a grande transformação da justiça administrativa, ou seja, tudo o que antes era analisado "às
pinguinhas" agora pertence à integralidade do processo. O que é que acontecia antes? Antes o
particular tinha apenas de impugnar o ato e o juiz só conhecia a legalidade do ato e anulava o ato. Se
o particular depois queria executar essa sentença - que apesar de ser anulatória não corresponderia à
sentença de anulação, porque o ato em regra devia ser executado e o particular que era expulso da
função administrativa não bastava ser colocado de novo no papel em que estava em causa - era preciso,
como dizia o Senhor Professor Marcelo Rebelo de Sousa que houvesse a reconstituição da situação
normal hipotética. Era preciso que o particular ganhasse os salários que ilegitimamente lhe tinham sido
pegados, que pudesse ficar, não só na situação em que estava, mas sim naquela que estaria se tivesse
no cargo e, portanto, teria de se reconstruir essa situação. E isso depois teria de passar por um processo,
supostamente executivo, em que a execução das sentenças significava um novo processo declarativo,
porque no processo de anulação apenas se anulava. As consequências disso tinham de ser retiradas de
um processo de execução, ou seja, oito anos para discutir a legalidade do ato e mais outros oito para a
executar. Se o particular quisesse pedir uma ação de responsabilidade, tinha, depois da decisão do ato,
de iniciar um novo processo. Ainda tínhamos oito anos para se discutir a impugnação do ato no
primeiro processo, eventualmente mais quatro anos no novo processo para se discutir a execução e
teríamos um processo que demoraria, em regra, vinte anos. Aliás, há registos de um que demorou
cinquenta anos sobre responsabilidade administrativa porque, entretanto, já toda a gente tinha morrido
e já não havia responsabilidade a analisar. Só chegava à responsabilidade civil quem fosse muito
resiliente. Ou seja, a lógica era de que estava tudo dividido e o essencial tem a ver com a legalidade
do ato ou do regulamento. E depois de decidida esta, decidem-se as outras. Há aqui uma lógica que
dividia o processo em fatias e obrigava à separação de todas as questões.

Qual é a lógica agora? Tudo deve ser trazido para o processo, a integralidade da relação jurídica
administrativa que está em jogo. E tudo é tudo. O particular pode pedir a declaração de existência do
direito, pode pedir a impugnação de uma norma, a impugnação de um ato administrativo, de um
contrato, ou seja, o que quiser que incida sobre a mesma relação jurídica, que corresponda ao mesmo
direito do particular que é levado a juízo. Aquilo que se diz no artigo 4.º é, precisamente, isso.
O legislador, como isso não acontecia no processo administrativo, resolve ser exaustivo e ainda bem
que é. O legislador diz que é permitida a cumulação de pedidos quando a causa de pedir esteja numa
relação de prejudicialidade ou de dependência, designadamente por se descreverem na mesma relação
jurídica real - n.º 1, al. a) – e, quando seja diferente a causa de pedir, a procedência dos pedidos
principais dependa da interpretação dos mesmos factos ou da aplicação e interpretação das mesmas
regras ou princípios de direito, ou seja, o legislador está a dizer que o que interessa é trazer a juízo a
integralidade da relação jurídica e isso tudo é analisado no mesmo processo - tudo isso agora é processo
declarativo. Antes era “declarativo A + declarativo B e executivo” - a execução, condenação,
reintegração e reparação do particular e tudo mais não cabiam na ação de anulação e só cabiam no
processo executivo. Agora cabe logo tudo na ação principal. E para que não existissem dúvidas, porque
isto era assim, o legislador no n.º 2 vai, na tal lógica de exemplificar todas as coisas (em vez de procurar
a abstração, exemplifica), dar exemplos do que poderia ser esta cumulação de pedidos.

E há uma consideração importante: quais são aqueles pedidos, que o legislador enumera aqui, passíveis
de serem cumulados? Primeiro, anulação ou declaração de nulidade ou inexistência de um ato da
Administração, restabelecendo a situação que se existiria se a violação não existisse, ou seja, algo que
antes corresponderia, na primeira parte, ao recurso de anulação e na segunda ao processo executivo. E
agora não quer apenas anular ou declarar a nulidade, mas mesmo condenar - ele quer o
restabelecimento da situação que existiria se não tivesse havido aquela lesão. Segundo, declaração de
ilegalidade de uma norma ou qualquer dos outros pedidos, contratos, regulamentos, entre outros.
Terceiro, pedido à Administração à prática de um ato devido, como quaisquer dos pedidos
mencionados na alínea anterior: pedido de declaração de nulidade ou um ato ou do contrato; declaração
de nulidade ou de inexistência de um ato ou pedido ou reconhecimento de uma situação jurídica
subjetiva; pedido de condenação da Administração à reparação de danos ou qualquer dos outros
pedidos. Qualquer pedido relacionado com os contratos, com a impugnação de atos no quadro da
relação jurídica administrativa.

Ou seja, esta também é uma enumeração exemplificativa e o legislador vai enumerar aquelas que são
as principais hipóteses que se podem regular e todas as outras são admissíveis. E a primeira coisa que
resulta daqui para um processualista, como nos indica um comentário que fez o Senhor Professor
Miguel Teixeira de Sousa, é perguntar: “será que há alguma conceção diferente acerca da cumulação
de pedidos no processo administrativo e no processo civil?” Porque estes processos têm a ver com
mesma relação material e, pertencendo à mesma relação material, não há cumulação de pedidos. No
processo civil, os casos de cumulação de processos correspondem até, não apenas a realidades
diferentes, mas realidades que correspondem a montantes diferentes, a uma situação de alguma
separação, e aqui é a mesma relação.

Numa conversa com o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva, este último respondeu que o Senhor
Professor Miguel Teixeira de Sousa tinha alguma razão, mas estava a usar a formação de um critério
civilista, porque efetivamente - de acordo com a lógica do processo civil em que se analisa a
generalidade do processo - aqui não havia cumulação; mas para o processo administrativo havia
cumulação, porque antes o processo dividia a anulação da condenação e da reparação - tudo isso eram
pedidos diferentes que tinham de dar origem a ações diferentes. E, portanto, aos olhos de um
administrativista, isto era uma verdadeira cumulação de pedidos. Não era porque não existissem os
outros casos dentro do Código de Processo Civil, mas esses não precisavam de lei especial, a esses
poder-se-iam aplicar seletivamente a lei do Código de Processo Civil nos termos em que a lei
estabelece. Ou seja, não é que não existam, mas é porque no contencioso administrativo esta cumulação
de pedidos, designadamente em termos substanciais, tinha uma cumulação especial.

Mas o legislador não fica por aqui, e bem. Esta também é uma boa alteração da "Reforminha” de 2015.
O legislador permite, também, no artigo 5.º, a cumulação de pedidos nos processos urgentes e aqui vai
além do direito civil - no processo civil, a cumulação de pedidos urgentes transforma-os num pedido
principal, enquanto que aqui o processo continua. O Senhor Professor Vasco Pereira da Silva
considera que é uma boa solução até porque, por razões históricas (e não só) muitos dos processos
urgentes estão organizados em termos de corresponderem a um único pedido, que era o pedido
tradicional. Não houve a mudança que foi feita ao nível dos pedidos principais, ou se quiserem, alguma
incúria no modo de tratamento dos processos urgentes. Por exemplo, o processo do contencioso
eleitoral, que é um processo de plena jurisdição, está construído como um processo de impugnação e
a maior parte das normas que lá estão são de impugnação. Outros pedidos podem ser cumulados sem
que o processo deixe de ser urgente, porque o que está em causa (e isto não viola a realidade do
processo civil), porque o que está aqui mesmo em causa é a relação jurídica. O que vai ser analisado é
aquela relação do processo executivo, mas não vai ser analisada apenas num aspeto delimitado que se
coloca naquela relação.

Estas normas correspondem a uma transformação radical do modelo de processo administrativo.


Depois, temos uma transformação ao que corresponde os poderes do juiz: está regulada no artigo 3.º
numa linguagem mais tradicional, mas que é suficientemente aberta para corresponder a uma nova
filosofia acerca das funções da Administração e da justiça e acerca da separação de poderes, porque
muitos dos mitos do processo administrativo, em particular, tinham que ver com a separação de
poderes. O mito do impedimento de dar ordens e de condenar a Administração era o "saco santo" do
princípio da separação de poderes. Condenar a Administração quando ela comete uma ilegalidade não
é administrar, é apenas condenar a Administração, porque ela não cumpriu o que devia de cumprir.
Isto é o poder judicial e já sabemos que a Administração tem o poder administrativo. É preciso re-
entender, repensar a lógica da separação de poderes. O legislador faz isso neste artigo 3.º.
Curiosamente, era mais aberto na versão de 2004 do que na “Reforminha” de 2015, mas continua, em
termos substanciais, sem grandes diferenças, além de diferenças de pormenor.

No artigo 3.º, n.º 1 se estabelece a regra tradicional de um contencioso ligado ao cumprimento da


legalidade e das normas e dos princípios jurídicos, e não da conveniência da oportunidade: é a ideia
da limitação do contencioso às questões jurídicas e não às questões que não correspondem a uma lógica
meramente administrativa. Mas aqui, apesar de tudo, sendo esta a posição tradicional, o modo como
ela está escrita implica uma nova perspetiva, porque curiosamente não se fala como se falava das
anteriores normas de processo do contencioso de mera anulabilidade ou contencioso de mera
legalidade. Ele é referido aqui a normas e princípios (ideia da subordinação da Administração à lei e
ao Direito no Código de Procedimento e que é a lógica da juridicidade da Administração), mas
estabelece-se como limite a ideia de que questões de mera conveniência, ou se a decisão é melhor do
que aquela ou daquela, não são diretamente levadas a tribunal, a menos que haja uma ilegalidade e,
quanto ao alargamento dos princípios, houve um alargamento da ilegalidades. Por causa disso, houve
uma transformação da lógica do processo administrativo, que corresponde também à transformação
do Direito Administrativo.

No n.º 2, uma regra muito importante que nasceu no processo administrativo e foi depois transportada
para o processo civil, que é a possibilidade de o juiz fixar o prazo para a administração civil, ou seja,
o momento para o cumprimento da sentença, o cumprimento daquilo que a Administração não cumpriu
nos termos da lei e que o juiz obriga a cumprir. Este prazo vai aumentado e aumenta à medida que
aumenta os dias de incumprimento. Esta regra, de alguma maneira, é uma exceção ao n.º 1, que permite
re-entender o n.º 1: o momento em que a Administração age é um aspeto discricionário que tem a ver
com a oportunidade da atuação, que cabe ao juiz decidir. O n.º 1 também tem de ser reinterpretado à
luz do n.º 2, porque nestes casos em que o juiz ordena alguma coisa à Administração, o juiz pode fixar
o momento para a prática de execução.

Isto é algo que corresponde à nova filosofia da separação de poderes. Isto nasceu no contencioso
francês; em Portugal, só depois de 1977 é que surgiram no contencioso e hoje estão generalizadas e,
nos termos da lei da reforma do processo civil, elas também foram alargadas ao processo civil.
Portanto, aqui temos uma realidade que normalmente não acontece: o processo administrativo funciona
de inspiração ao processo civil. Estas sanções pecuniárias compulsórias implicam que o juiz, quando
haja uma ilegalidade, entendida em sentido amplo, possa definir o momento do cumprimento, de
acordo com os termos da lei, ou seja, com a oportunidade da sua atuação e que é suscetível de controlo
jurisdicional. A ilegalidade por determinação da lei ou do Direito não é a lógica tradicional. No entanto,
não a deveremos considerar como uma exceção ao princípio da legalidade, mas sim um controlo
integral da realidade administrativa. Veremos depois, quando falarmos da ação de condenação que o
artigo 71.º, a propósito da condenação de atos administrativos, quando fala sobre os poderes de
pronúncia do tribunal, o artigo diz que a Administração pode mesmo julgar no domínio do poder
discricionário, dizendo não aquilo que a Administração tem que fazer em sentido exato, mas antes
aquilo que ela não pode fazer: qual é a interpretação correta das normas legais àquela situação concreta.
Por um lado, isto pode fazer com que, naquele caso concreto deixa de haver discricionariedade – isto
é aquilo a que o Código de influência alemã chama de "discricionariedade reduzida a zero" – e temos
a possibilidade de dar indicações quanto ao modo correto de exercer a discricionariedade. Ou seja, o
próprio poder discricionário está submetido a controlo jurisdicional.

Depois, estabelecem-se formas de salvaguardar meios coletivos urgentes, meios cautelares (no n.º 3,
uma norma que surgiu depois da “Reforminha”) e, no n.º 4, fala-se também na necessidade de assegurar
a eficácia da execução, afastando-se, não completamente, com o desaparecimento da expressão de que,
neste caso, no processo executivo, poderia haver sentenças constitutivas. Era um passo que agora,
depois de 2015, nesta tal “Reforminha”, que, em certas coisas, andou para trás, mas o modo como este
n.º 4 está redigido não afasta a possibilidade de isso acontecer. Mas, olhando para outras destas normas
essenciais, no artigo 6.º aparece a regra da igualdade entre as partes e que o legislador, agora que
estamos na parte de processo subjetivo - a parte em que atua na defesa dos seus direitos e posições
jurídicas - não se limitou a dizer que há partes no processo civil, estabelecendo mesmo a ideia de que
há igualdade. Isto não causa problemáticas, às vezes é mesmo necessário ser-se enfático, especialmente
porque a situação anterior não era essa. Não sendo preciso, ainda bem que o legislador foi enfático,
porque agora há uma consagração de uma igualdade efetiva de todos os sujeitos envolvidos no
processo, sejam entidades públicas, sejam entidades privadas, independentemente da realidade da sua
natureza.

O que o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva diz sobre o Artigo 6.º é que o legislador poderá ter
exagerado um pouco na maneira com que fez as coisas. Não é que seja desagradável, mas não era
preciso tanto. O legislador, no princípio da igualdade das partes - um princípio essencial - confundiu
o essencial com o acessório. A seguir acrescenta: "isso implica a cominação de sanções processuais
designadamente por litigância de má fé". A litigância de má fé é muito importante, mas deveria estar
na margem do processo. Não é um princípio essencial que devesse estar aqui nos termos destes
elementos essenciais do processo administrativo. O Senhor Professor Vasco Pereira da Silva admite
que possa ter sido responsável em parte por isso, porque a grande discussão que este fazia na sua tese
de mestrado sobre o processo e, ao discutir vários argumentos, criticando a falta de elementos
subjetivistas do recurso da relação, afirmou que era inadmissível que no processo administrativo não
haja o pagamento de custas nem a litigância de má fé. Parece que o legislador não ficou muito satisfeito
com isto, e na reforma de 2002/2004, nestes primeiros artigos, até ao artigo 9.º, n.º 1 e ao artigo 10.º,
n.º 1, decidiu "dar uma colher de chá" e usar os argumentos do Senhor Professor Vasco Pereira da
Silva. Contudo, o Senhor Professor não os usava como argumentos essenciais, mas sim como uma
consequência da igualdade das partes, isto é, a existência do pagamento de custas e da litigância de má
fé não têm a mesma importância, são antes corolários de um grande princípio, embora o Senhor
Professor Vasco Pereira da Silva não mostre problema em considerá-los como parte do princípio.
Este foi um momento essencial de uma discussão dos anos 1980 e, curiosamente, estas normas,
correspondem à discussão dessa altura, o legislador utilizou uma formulação que se aproxima àquela
discussão sobre o direito administrativos dos particulares, designadamente naquele capítulo publicado
pelo mesmo Professor onde faz um apanhado das diferenças entre o contencioso objetivista e o
subjetivista.

Assim, não temos apenas partes, mas igualdade entre as partes e temos não apenas a igualdade em
relação à identidade entre meios processuais, à igualdade de armas, à repetição, à contestação, à
discussão, à tréplica - há uma lógica que é da igualdade e também se acrescenta a parte das cominações
e da litigância de má fé, que ainda bem que está aqui.

Depois, temos o princípio da promoção do acesso à justiça, outra norma essencial que altera
radicalmente aqui o sistema de base do processo administrativo. O objetivo do contencioso é promover
a emissão de pronúncias sobre o mérito processual. O contencioso administrativo não pode ser uma
coerção de formalidade: tem de decidir o fundo da norma. O que acontecia tradicionalmente no Direito
português era que o contencioso administrativo era um processo de formalidade, porque, em vez de os
juízes analisarem as questões administrativas, limitavam-se a verificar se havia algum problema de
formalidade ou de competência e, se havia, anulavam sem verificar os problemas substantivos que
existiam naquele nesse caso. Isso pretendese agora evitar, não apenas com uma formulação genérica,
mas também pelas normas que aparecem nos artigos 95.º e seguintes, em que se diz que o juiz perante
um processo tem de apreciar a integralidade das questões que são trazidas, e não pode deixar de
apreciar todas essas situações! O juiz está numa situação em que não pode escolher umas questões
relativamente às outras e tratar apenas de umas e não de outras. Portanto, o juiz, no quadro do processo,
deve decidir integralmente aquilo que as partes levaram a juízo, e o processo é o processo das partes,
em que o que vai ser discutido é o que as partes alegam em juízo. Afastou-se então aquela ideia de que
o juiz apreciava apenas a questão formal ou de competência, não analisava a questão material e depois,
a seguir, a Administração corrigia essa ilegalidade formal, tendo-se de voltar novamente ao processo,
porque a questão material já tinha sido referida. A violação de lei, o desvio de poder, a ilegalidade de
impugnação de normas materiais, a ilegalidade substantiva que estava em causa não foi apreciada e,
por isso, a sentença acabava por não ter os efeitos úteis necessários que deveria ter tido. Este princípio
é importante, e ainda bem que o legislador o consagrou aqui.

Depois, o legislador, ainda nos termos das normas gerais, acrescenta o artigo 7.º-A, uma inovação da
“Reforminha”; este não é tão essencial, mas faz sentido na lógica da colaboração das partes e do juiz
que ela exista e que haja um poder de gestão processual. O juiz deve procurar com que o processo seja
célere, e há regras para que isso aconteça. Depois, o artigo 8.º introduz a ideia da cooperação e da boa
fé processual.

Também aqui temos a introdução destas normas da tal discussão que falamos anteriormente. Porque
antes, quando não havia partes, a Administração não contestava, e dizia-se que não havia nenhum ónus
contestativo (isto nos processos entre as partes) e que aquilo que a Administração faz é apenas remeter
o procedimento ao juiz, e não precisa de fazer mais nada. Ela, em vez de contestar, manda o processo.
O Senhor Professor Vasco Pereira da Silva dizia na discussão, primeiro com o Senhor Professor
Marcello Caetano e depois, em parte, com o Senhor Professor Freitas do Amaral, que isso não fazia
sentido. Claro que a Administração tem sempre o ónus de contestar, mesmo que não houvesse o ónus
de impugnação especificado, tal como existe no processo civil, ou seja, se não se respondeu
diretamente a um artigo invocado pelo autor, não se tem imediatamente provada essa realidade. Isto
não significava que não houvesse o ónus de impugnação, porque ónus é a necessidade de ter uma
conduta sob pena de a Administração entender como provada a situação principal e isso existe sempre,
quer exista a sanção da impugnação especificada, quer ela não exista. No próprio processo civil, em
relação a pessoas coletivas públicas, considera-se que o juiz usa a sua livre convicção e não há um
ónus de impugnação especial, não tem necessariamente de não ter havido resposta a todos os requisitos,
não se considera que o único requisito é o ter contestado expressamente, embora tenha sido em termos
gerais. Portanto, faz sentido que no processo administrativo o juiz tenha de facto a possibilidade de
formar a sua convicção, e tem de exercê-la em sentido daquilo que foi dito na contestação. E, portanto,
o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva dizia que havia o dever de contestar e o ónus de
impugnação, mesmo que não houvesse impugnação especificada. Dizia, ainda, que a remessa do
processo a tribunal, indicada pelo Senhor Professor Marcelo Caetano, não tinha a ver com a posição
de parte, mas sim com o dever de colaboração. E foi isto que o legislador veio a consagrar.

Agora, a Administração contesta e há um ónus de impugnação do processo administrativo – é um


corolário da existência de identidade de parte - e diz-se neste artigo 8.º, n.º 3 que o dever de remeter o
procedimento administrativo gracioso, usando-se a expressão “processo administrativo gracioso”14.
Aqui, esta referência ao “processo” equivale ao procedimento, e o legislador determinar que a
Administração tem o

dever de remeter a tribunal, porque isso corresponde à colaboração com os particulares. Isto é a
realidade adequada, e isto não tem nada a ver com o sucedâneo da contestação. Não fazia sentido olhar
para este dever e determinar que isto substitui a impugnação que não existe. O ónus de impugnação
não existe, porque a Administração não tem de contestar. O Código andou bem neste quadro.

Passamos ao Capítulo Segundo que fala das partes, dos sujeitos. E surge aqui uma norma introduzida
em 2015 cuja importância também tem a ver para uma discussão que faremos a seguir. O legislador,
de alguma maneira reconheceu algumas das críticas que foram feitas à formulação, sobretudo do artigo
relativo à legitimidade passiva, e resolveu-as distinguindo entre a personalidade e a capacidade
judiciárias. Estas são realidades normais e uma coisa é a personalidade, uma condição jurídica que
faz de alguém sujeito processual, ou seja, a qualidade de possuir todos os direitos inerentes à
possibilidade de intervir no processo, e outra a capacidade, que tem a ver com a possibilidade de
exercer essa realidade que corresponde à tal personalidade, que é o momento da esfera jurídica de cada
um dos particulares. Vamos reservar esta última para quando falarmos do artigo 10.º.

14
Expressão que marca a sua presença no n.º 1 daquele Código de Procedimento em que se procedeu a acabar com a
continuidade do “processo”. Conta o Senhor Professor que o Senhor Professor Freitas do Amaral, durante a realização
da primeira sessão do Código de Procedimento na discussão da designação do Código pretendia manter a expressão
"processo administrativo gracioso" que não poderia ser mantida porque era um elemento de origem monista. Na última
sessão da realização do Código de Procedimento decidiu não se utilizar esta expressão, tendo o Senhor Professor Freitas
do Amaral alterado posteriormente as suas lições para falar de procedimento (um pouco como compensação), surgindo
então uma identificação no n.º 1 daquilo que é o procedimento administrativo, algo que o Senhor Professor Vasco Pereira
da Silva já considera datado, e a norma que indica que "processo é um conjunto de papéis".” É essa expressão que o
legislador diz - já não tendo a sua dimensão monista, a expressão processo pretende designar aquela realidade de
documento, física ou digital.
Primeiro, o legislador fala em legitimidade ativa. O legislador estabelece aqui regras de determinação
dos sujeitos processuais: primeiro em relação ao particular, e depois em relação à Administração. O
legislador, aqui, estabelece uma lógica que parte de uma lógica subjetivista de entendimento do
contencioso, porque agora a legitimidade passa a ser concebida no processo administrativo como em
qualquer processo, como um mecanismo que serve para chamar ao processo os titulares da relação
material controvertida. A legitimidade tem uma função instrumental e destina-se com que estejam em
juízo aqueles que têm uma relação material, que têm direitos e deveres que, no quadro de uma relação
jurídica, estão correlacionados. Aquilo para que serve a legitimidade é para fazer este chamamento dos
titulares de direito, de posições substantivas e também de posições passivas ao processo. E, portanto,
a questão da legitimidade está ligada à questão das partes, da relação dos sujeitos processuais. Isto faz
parte do pressuposto que o processo é um processo de partes e que há uma relação jurídica substantiva.
E há, portanto, partes em sentido substancial - que são aqueles que no quadro das relações jurídicas
têm direitos e deveres definidos - e há depois uma parte em sentido processual - que atribui a esses
titulares da relação jurídica administrativa uma posição processual idêntica.

Isso é o que se diz agora, quer no n.º 1 do artigo 9.º, quer no n.º 1 do artigo 10.º do Código de Processo.
Diz-se que o autor é considerado parte legítima na relação material controvertida. Portanto, ele alega
a titularidade de um direito, alega uma posição que lhe permite ser parte na relação processual,
enquanto parte na relação substantiva. O artigo 10.º, n.º 1 diz que a ação é proposta contra a outra parte
na relação material subjetiva, ou seja, a legitimidade serve para chamar os titulares da relação jurídica
ao processo.

A lógica tradicional não era esta e porquê? Porque não havia partes. A lógica do contencioso
administrativista era a de que nem o particular nem a Administração eram partes no processo, nem em
sentido substantivo nem em sentido processual. E, portanto, este critério corresponde ao novo processo
administrativo. O que é que se dizia então? Dizia-se que, como vimos, o particular estava em juízo
como um “ministério público especial”, o tal procurador de direito que se falou e se fala ainda no
Direito francês e, portanto, o particular não estava ali para defender nenhuma posição de vantagem,
nenhum direito que tivesse sido violado, mas para ajudar a Administração. E, portanto, isto deveria ter
levado, na lógica objetivista, que o contencioso administrativo fosse equivalente a uma lógica
administrativa em que qualquer pessoa, se soubesse de uma ilegalidade, ia a processo. Curiosamente,
desde o início, o Conselho de Estado admitia que isto não fazia sentido. Portanto, era objetivista, mas
não queria ser praticante relativamente a esse aspeto. Começou-se por dizer que os particulares que
iam a juízo eram aqueles que tinham algum interesse fáctico na resolução daquele interesse ativo,
numa posição que seria beneficiada no mero interesse de facto para quem não tinha um direito
subjetivo. E é aqui que o critério do interesse entra para definir o conteúdo da legitimidade: o interesse
era condição de legitimidade. Só que, a partir de determinada altura, este interesse que começou por
ser um interesse fáctico transforma-se num interesse protegido, porque adquire características que
permitem a equiparação a uma qualquer posição subjetiva, mesmo que diminuída. A construção do
interesse como condição de legitimidade do processo administrativo é entendida em termos de
interesse direto, pessoal e legítimo. São as três características depois teorizadas pelo Senhor Professor
Marcelo Caetano em Portugal e que estavam na lei de processo dos tribunais administrativos até
2002/2004.

O que é que isto significava? Isto significava, como explicaram os autores franceses a partir dos anos
50/60, que a doutrina supostamente objetivista, que negava que o particular tivesse direitos, deixava
entrar pelo processo esses direitos, fazendo um filtro que correspondia, basicamente, a esses direitos.
Porquê? No processo civil, quando se fala da legitimidade, o único critério que interessa é que haja
interesse imediato, ou seja, entre a lesão do direito e a ida a tribunal, tem de haver uma logica de lesão
imediata que aquele sujeito deve alegar para que seja considerada parte legítima. O acrescento da
“pessoa” e do “legítimo” tem a ver com a existência de uma posição daquele particular. É pessoal
porque é só ele que a possui, que tem direito, que está na sua esfera jurídica. E é legítimo porque é
tutelada pelo direito. Este acréscimo do pessoal e do legítimo era uma forma de deixar "entrar pela
janela aquilo à qual se fechava a porta". Fechava-se a porta a que os direitos fossem objeto do processo,
o particular era auxiliar do juiz da Administração, mas abria-se a janela e dizia-se que quem entra pela
janela tem de ter um interesse pessoal e legítimo, ou seja, tem de ter uma posição juridicamente
tutelada.

É por causa desta realidade que o interesse começou por ser fáctico e, depois, passou a ser um interesse
jurídico, que surge em torno daquelas lógicas do interesse legítimo do Direito italiano, das conceções
tripartidas do poder, de interesse legítimo, de interesse subjetivo e de interesse difuso. Falaremos disto
a seguir, segundo a perspetiva do Senhor Professor Vasco Pereira da Silva, que defende que estamos
sempre perante um direito subjetivo que deve ser entendido em sentido amplo. No entanto, para
aqueles que ainda falam em “direitos de segunda” e “direitos de terceira”, usando a expressão de
interesse legítimo e de interesse absoluto, isso tinha que ver com esta realidade processual em que
houve uma “substancialização do interesse” no sentido do aproximar de um direito. Curiosamente
aqui, em relação a este aspeto, a doutrina objetivista sempre foi mais subjetiva do que parecia, porque
por trás de uma lógica meramente objetiva da posição do particular, aquilo que se escondia era algo
muito parecido, embora não fosse a mesma coisa, com aquilo que poderia ser a alegação de um direito.
Por causa disto, a teoria da legitimidade, no Direito administrativo tradicional, era o único critério de
alegação, como dizia o Senhor Professor Marcello Caetano, de um contencioso mais ou menos
amplo. Se a legitimidade fosse mais ampla, o contencioso seria mais amplo e se fosse menos ampla, a
legitimidade teria condições mais restritas. Era o critério de determinação de acesso ao juiz.

A legitimidade decorre das posições substantivas. O que está em causa são as posições substantivas
que as partes possuem e, portanto, todas elas devem ser chamadas ao processo. A legitimidade passa
a ter uma função instrumental, enquanto que na lógica clássica a legitimidade era a única condição e,
aliás, a condição essencial do acesso ao juiz. Havia aqui então, numa expressão irónica do Senhor
Professor Vasco Pereira da Silva, a legitimidade "além do chinelo", que deixava de ser o critério de
chamamento da realidade material ao nível do universo administrativo e passava a ser algo que se
substituía a isso e se transformava num único critério de determinação processual.

Olhando para este artigo 9.º, o legislador não só adota uma perspetiva adequada para a determinação
da qualidade de partes, ligando a legitimidade à relação substantiva - como veremos em normas
posteriores em que falam de pressupostos processuais que falam apenas do interesse direto - como
também distingue entre a ação de defesa de direitos do n.º 1 e a ação para defesa da legalidade e do
interesse público no n.º 2. Assim sendo, tem-se a ação para defesa de direitos que corresponde à
titularidade de direitos por parte dos particulares, no contencioso integralmente subjetivo, e a ação
pública e a ação popular, quando o órgão, o Ministério Público ou o particular da defesa da legalidade
ou do interesse público também pode entrar e discutir.

O que é que está aqui por parte do legislador? Em primeiro lugar, quis manter uma tradição do Direito
português, que não era obrigado a manter, mas que o legislador decidiu manter, o que não levanta
problemas segundo o Senhor Professor: a tradição de admitir que no contencioso administrativo
pudesse haver um Ministério Público com esta função. Curiosamente, isto só existe em Portugal,
Espanha e em Itália. Não existe em França. Em França, no contencioso administrativo, não existiu
Ministério Público, nem há Ministério Público na Alemanha, mas há aqui uma tradição latina que fez
com que o Ministério Público surgisse no contencioso administrativo numa posição um pouco
estranha, que falaremos mais tarde. A ação popular também era uma tradição do Código de Direito de
Administrativo que permitia a qualquer membro de uma freguesia ou do município que pudesse atuar
na sua defesa. Perguntou-se, na altura: será necessário manter esta proteção objetiva ao lado da
proteção subjetiva? Esta realidade, no entanto, adota uma forma subjetiva, porque quer o Ministério
Público, quer o particular, são parte com todos os poderes adequados e, portanto, o contencioso
continua a ser, no modo como está concebido, o contencioso subjetivo, em que todos os sujeitos são
partes. Mas o legislador distingue entre ação para defesa de direitos, que merece a consagração
constitucional do artigo 268.º, n.º 4 e n.º 5 e corresponde à essência do processo e à existência de um
litígio, desta outra para a tutela da legalidade e do interesse público que tem uma função complementar.

Em termos abstratos não era preciso e até, se calhar, não deveria ter feito. Se perguntássemos ao
Senhor Professor Vasco Pereira da Silva se colocava a norma presente no n.º 2, este diria que, à
partida, não.

Porquê? Porque se entendermos os diretos em termos amplos, tudo o que caberia neste n.º 2 caberia
no n.º 1 - é o que se faz na Alemanha, Itália e noutros países. Ou seja, a lógica da tutela de direitos é
tão ampla que permite resolver todo o controlo de legalidade da atuação administrativa.

Agora, havendo uma tradição portuguesa e sendo essa tradição portuguesa regulada nos termos de um
contencioso subjetivo, não se vê mal que ela surja como uma proteção suplementar do contencioso
administrativo. Isto acaba por ser uma boa solução, tendo em conta a realidade portuguesa. Não era,
em rigor, totalmente necessária e pode gerar alguns problemas de colisão, mas, de facto, faz sentido
que isto possa existir. Mesmo o que está aqui em causa, através deste desdobramento, já introduziu
uma realidade que tem a ver com uma distinção entre uma coisa e outra. O que não faz sentido é dizer
que o contencioso é objetivo. Em primeiro lugar, estes casos são limitados: foi descoberto, quando se
fez a reforma 2002/2004, que não tinha havido nenhum processo de ação pública e de ação popular
entre 1933 e 2000, sendo tais processos uma realidade que o Código previa, mas que na realidade não
existia.

Atualmente, em termos de realidade, o autor público atua no âmbito do urbanismo, mas, tirando isso,
não atua, bem como o autor popular praticamente desapareceu – há meia dúzia de casos. Por causa
disso, não se pode dizer que o contencioso é objetivo. Por outro lado, este contencioso exige uma tutela
direta da legalidade, organizado em formas subjetivas, tendo uma função auxiliar da defesa de
interesses próprios, que está consagrada do n.º 1 e, portanto, é uma realidade que está a funcionar num
quadro de uma lógica subjetivista. E isto resulta também da evolução do contencioso e da intervenção
da europeização, porque o Tribunal de Justiça da União Europeia condenou o Estado português, porque
o Ministério Público intervinha não como sujeito (titular do direito da ação), mas ao mesmo tempo
como auxiliar do juiz, que participava na própria elaboração da sentença. O Estado português foi
condenado por causa disso. E hoje em dia, embora o Ministério Público ainda mantenha uma posição
algo esquizofrénica, na maior parte dos casos o Ministério Público passou a ser um sujeito processual,
o que foi o objetivo desta reforma, sendo que se entender que há uma ilegalidade, exerce uma ação
pública. A ação pública e a ação popular são consideradas ações em que uma tutela direta da legalidade
objetiva se realiza através de uma reforma subjetiva. E, portanto, foi esta a reforma de conciliar uma
realidade tradicional portuguesa, que o legislador entendeu que quis manter, com uma nova lógica do
processo subjetivista que corresponde à lógica geral do processo. Até porque como todos dizem hoje
o problema não é o de saber se o contencioso é objetivista ou subjetivista, mas a questão é a de saber,
num quadro de contencioso subjetivo, qual é o grau de tutela objetiva que esse contencioso pode e
deve adotar. Aquilo que o legislador português fez foi, através deste mecanismo da ação pública e da
ação popular, introduzir aqui esta realidade que está em causa.

Como visto anteriormente, o Código de Processo nos Tribunais Administrativos (doravante,


CPTA) altera a lógica tradicional do processo administrativo. A lógica tradicional não considerava que
o particular fosse titular de direitos, isto é, um sujeito de direitos e, portanto, não eram esses direitos
que estavam em causa na relação processual. Isto significava que a relação processual era determinada
apenas em função da legitimidade. A legitimidade substituía-se à alegação de direitos na relação
jurídica substantiva, o que levava a carregar excessivamente a legitimidade e a dizer que o particular,
para ser parte legítima, tinha que ter um interesse direto, pessoal e legítimo. Esta posição foi criticada
no quadro da evolução do processo administrativo, porque ela significava, como diz Laligant, “deixar
entrar pela janela aquilo que se recusava deixar entrar pela porta”. Dizia-se “não há direitos”, mas
depois concebia-se o interesse como condição de legitimidade como se fosse um direito. Assim, tinha
de ser um interesse direto, ou seja, tinha de afetar especialmente aquele particular; tinha de ser pessoal,
era a esfera jurídica do sujeito que estava a ser afetada; tinha de ser legítimo, algo reconhecido pela
ordem jurídica. Ora, isto significava que se exigia do interesse que, quem tivesse uma posição em
juízo, fosse o titular do direito, porque o titular do direito é atingido de forma pessoal no seu direito,
direito este que é tutelado pelo ordenamento jurídico.

O repensar desta realidade vai introduzir uma dimensão subjetivista, que já existia de forma
inconsciente (para usar um termo de psicanálise), e vai ser assumido que, à semelhança dos outros
processos, quem está em juízo é o titular de direitos. Esta ideia encontramo-la no artigo 9.º/1 e no
artigo 10.º do CPTA, de onde subjaz a ideia de que a legitimidade não é o critério único de acesso à
justiça, a legitimidade é um critério que permite chamar à justiça os titulares de direito. Portanto,
diferentemente do que dizia o Senhor Professor Marcello Caetano, não é o modo como a legitimidade
é concebida que aumenta ou diminui o número de participantes no processo. A legitimidade tem uma
função instrumental, como em qualquer outro processo (processo civil, processo penal), de chamar à
demanda os titulares da relação jurídica controvertida, os titulares de direitos. Isso é o que existe agora.
O CPTA deixa de falar de interesse direto, pessoal e legítimo, fala apenas em interesse direto, tal como
no Processo Civil. É a lesão direta e imediata que permite ao particular ir a juízo, mas vai a juízo para
alegar a sua posição substantiva. Vai a juízo enquanto titular de direitos, também do lado passivo. O
que está em causa é a defesa de uma posição jurídico-substantiva, uma relação jurídica que é apreciada
de forma integral no âmbito dos seus direitos, deveres, órgãos, poderes, direitos potestativos, em
função daquilo que é a realidade que corresponde a essa razão.

Assim, o artigo 9.º e o artigo 10.º/1 do CPTA tomaram a posição que corresponde a uma lógica
subjetivista de entendimento do contencioso administrativo, uma lógica plena, porque a noção de
direito subjetivo que está subjacente a este Código é a noção mais ampla. O que está em causa não é a
conceção trinitária dos direitos de primeira, segunda e terceira, não é o direito subjetivo e o interesse
legítimo difuso. O que está em causa é a noção mais ampla de direito subjetivo, porque, mesmo as
noções de interesse legítimo e interesse difuso, são formas que correspondem a direitos subjetivos. Os
direitos subjetivos, no direito público, tal como no direito privado, têm conteúdos muito diferentes.
Podem ser direitos a uma conduta de outrem, podem ser direitos de natureza potestativa, podem ser
direitos com conteúdo restrito, com conteúdo amplo, direitos que correspondem a uma multiplicidade
de realidades jurídicas, exatamente como sucede no direito civil e na teoria geral do direito.

Quanto à lógica da teoria da norma de proteção, esta foi surgindo no direito público, a partir do
século XIX com Bauer e depois foi desenvolvida por Bachof nos anos 60 sendo, hoje, assumida
unanimemente. Em Portugal, já começa a surgir, depois do Senhor Professor Vasco Pereira da Silva
ter lançado a ideia do “Em busca pelo ato administrativo perdido”, sendo uma forma de explicação
que é comum ao direito público e ao direito privado. Aprendemos na teoria geral do direito que há um
direito quando há uma permissão normativa de aproveitamento de um bem. É o que se passa no direito
público e essa permissão normativa corresponde a um direito. Há um direito quando a lei diz que certa
pessoa tem um direito subjetivo ou quando a lei estabelece um dever à Administração, que existe, não
só para satisfazer o interesse da própria Administração, mas também para satisfazer o interesse dos
particulares. Nestas situações, estamos perante um direito subjetivo. Não é um direito subjetivo, se
estivermos no direito privado e um interesse legítimo, se estivermos no direito público: isso é a lógica
esquizofrénica de não olhar para a realidade, do ponto de vista de uma dimensão global. É o mesmo
do que uma lei pública dizer que a Administração Pública tem o dever de fazer algo no interesse do
particular e, no outro lado, o particular ter direito a um comportamento por parte da Administração,
isto é, um dever no quadro de uma relação jurídica que corresponde a um direito da outra parte, isto é
o que acontece no direito público. Ocorre o mesmo quando o Código Civil dispõe a realidade das duas
maneiras, por exemplo, o comprador tem o direito a obter a coisa ou o vendedor tem o dever de a
entregar, os direitos e os deveres estão no quadro de uma realidade correlativa. Aquilo que
tradicionalmente se chamava, no direito administrativo, um interesse legítimo, é um verdadeiro direito
subjetivo. É um direito subjetivo que corresponde a um dever da Administração, o conteúdo do direito
é um conteúdo do dever. Não há nenhuma diferença entre o direito público e o direito privado.

O mesmo se diga dos interesses difusos, que é uma explicação difusa teorizada por alguma doutrina,
igualmente difusa, ironicamente. O que está em causa nos interesses difusos é uma proteção individual,
a tal permissão normativa de aproveitamento de um bem, de um bem que é público. Uma realidade é
a permissão individual de utilizar esse bem, outra realidade é a tutela do bem em termos objetivos. A
Doutora Carla Amado Gomes diz, a propósito do direito ao ambiente, que o direito ao ambiente não é
um direito, porque não é suscetível de apropriação. É claro que ninguém se apropria do ambiente no
seu todo, mas não é isso que está em causa. A tutela do ambiente é uma tutela jurídicosubjetiva, mas
cada indivíduo tem permissões normativas de utilizar o meio ambiente em seu próprio benefício. E,
no quadro destas permissões normativas, tem um direito subjetivo. Não é pelo facto de haver uma
proteção de um bem em termos públicos que deixa de haver proteção em termos individuais. Não é
por haver mundos protegidos que deixa de ser direito. O que está em causa é sempre um verdadeiro
direito subjetivo. O mesmo ocorre nas praias. As praias são públicas, todos podem ir à praia, não
podendo ninguém ser proibido de ir a uma praia, mas tal não significa que o banheiro não tenha um
direito de utilizar um bem que é público, através de um contrato de exploração de um bem público em
seu próprio benefício. Portanto, quem quiser ir à praia e apanhar sombra, das duas uma: ou leva o
guarda-sol de casa ou tem que pagar ao banheiro, porque este tem o direito de exploração da sombra
que ele próprio coloca em troco de uma relação jurídica. Deste modo, os chamados interesses difusos
são direitos subjetivos iguais aos outros. Uma coisa é a permissão normativa de aproveitamento de um
bem, outra coisa, completamente diferente, é a tutela objetiva desse bem que existe em simultâneo. No
entanto, não é por existir uma que deixa de existir a outra. O que está em causa é sempre uma noção
de direito subjetivo, uma noção ampla, uma noção que permite integrar, no quadro da figura, todas as
posições de vantagem sobre os particulares, permitindo, simultaneamente, no caso do contencioso
administrativo, do processo administrativo, uma tutela plena e efetiva dos direitos dos particulares,
que é também uma tutela plena e efetiva da legalidade da Administração. Isto porque esta noção de
direito subjetivo é de tal forma ampla que abrange todas as situações necessitadas de tutela e, portanto,
significa que, por outro lado, a tutela do direito implica a verificação de todos os deveres da
Administração, de todas as tarefas da Administração, significa o controlo integral da Administração
pública.

O legislador podia ter ficado por aqui, mas não. O contencioso administrativo pleno assenta nesta
noção ampla de direito subjetivo que está consagrada na nossa Constituição. No entanto, o legislador
português entendeu que, ao lado desta tutela jurídico-subjetiva, que é a razão de ser e o modo de
organização do processo administrativo e que resulta do artigo 268.º/4 e 5 da Constituição da República
Portuguesa (doravante, CRP), havia uma tradição portuguesa de haver, simultaneamente e
acessoriamente, uma tutela objetiva direta da legalidade. Isto é uma tradição portuguesa que não existe
na França, em que não há Ministério Público no contencioso administrativo, tal como não há Ministério
Público noutros países (países da tradição objetivista, em que não era preciso haver Ministério Público
e em que a ação popular, quando existe, é muito reduzida). Na Alemanha também não existe de todo.
Portanto, o legislador do CPTA, em nome de uma tradição, estabelecia um direito de ação popular para
os fregueses, membros de uma freguesia, e para os munícipes, em razão de matéria de interesse
público. Isto vem desde o séc. XIX e, desde o início do séc. XX, que havia um Ministério Público a
atuar no processo administrativo, o que não existia nem na França, nem na Alemanha e, mesmo em
Itália, surgiu tardio. Há uma realidade portuguesa (que depois é uma realidade latina, visto que os
espanhóis e os italianos têm, hoje, alguma intervenção do Ministério Público no processo
administrativo) que levou a que o legislador do CPTA entendesse que devia considerar aqui esta
dimensão objetiva de defesa da legalidade, mas fê-lo nos termos de uma lógica subjetivista, porque o
Ministério Público e o autor popular, quando atuam para defesa da legalidade e do interesse público,
assumem a posição de partes em sentido processual, são partes, pelo que têm todos os direitos e deveres
de uma parte que intervém no processo concebido subjetivamente.

Isto descaracteriza o contencioso administrativo? Não. Em primeiro lugar, como diz Krebz, qualquer
contencioso subjetivo pode ter sempre alguma forma de tutela direta da legalidade. Se olharmos para
o que se passa no direito comparado, é isto que acontece nos outros países. A ótica dominante é a de
uma lógica subjetiva, que pode ser complementada, ou não, por uma lógica objetiva. Assim, o que está
em causa é uma realidade subjetiva, porque a introdução dessas entidades, que atuam para defesa da
legalidade e do interesse público, é uma introdução que segue a forma da titularidade de um direito.
Segue uma dimensão subjetiva, porque as partes, no contencioso administrativo, não defendem
nenhum direito, mas são partes e, portanto, integram-se no contencioso concebido de uma forma
subjetiva. Por outro lado, se quisermos ser realistas e olharmos para a realidade de todos os países e
para a realidade portuguesa, são muito poucos os casos dos processos iniciados pelo Ministério Público
ou pela ação popular. Pela ação popular, nos últimos 30 anos, devem ter sido quatro. Portanto, é uma
realidade que não corresponde à essência do contencioso administrativo, é uma realidade
completamente secundária. E o Ministério Público, desde a Constituição de 1933 até 2000, não tinha
utilizado uma única vez a ação pública. No inquérito que se fez antes da reforma, todos diziam que o
Ministério Público era capaz de defender a legalidade do interesse público. No entanto, desta estatística
não resultou a existência de nenhum caso, o que não faz sentido. Agora já intervém, mas intervém de
forma limitada e, sobretudo, no domínio do urbanismo, pedindo a condenação da Administração a
fazer os planos de diretores municipais que são obrigatórios e que as entidades públicas não o fazem.
O Senhor Professor Vasco Pereira da Silva considera que esta é uma boa intervenção e que devia ter
sido alargada, porque, a ter sido adotada esta conceção, não há problema de que esta proteção objetiva
da legalidade exista, simultânea e acessoriamente, na proteção subjetiva, que é a essência do
contencioso. O Senhor Professor Vasco Pereira da Silva, subjetivista cadastrado e reincidente, não tem
nada contra a que esta tutela direta da legalidade e do interesse público tenha uma função
complementar, podendo até ser um auxílio. Se o Ministério Público, defensor dos “órfãos” e das
“viúvas”, “Dom Quixote da Justiça”, intervier mais vezes, “não vem mal nenhum ao mundo”.

No entanto, é preciso evitar duas realidades. É preciso evitar as limitações excessivas do Ministério
Público, isto é, a ideia de que o Ministério Público não atuava porque tinha que atuar e não atuava,
porque estava ao lado do juiz e participava na sentença, pelo que não precisava de se incomodar a
exercer o direito de ação. Portugal foi condenado, pelo Tribunal de Justiça, por este motivo, pelo que
não pode manter esse sistema, até porque, num sistema de justiça equitativa, não é possível que tal
aconteça. Por outro lado, o Ministério Público, no quadro da legalidade e do interesse público, pode
intervir, mas deve fazê-lo sem substituir os particulares, constituindo este outro limite que não faz
sentido que não exista. O Ministério Público não se pode substituir às partes, quem tem que tutelar os
direitos são as partes e não o Ministério Público, que atua como uma entidade que se substitui aos
particulares no exercício do direito de ação. De um ponto de vista crítico e de direito comparado, o
Ministério Público não deve ter, em Portugal e noutros sistemas de conceção subjetiva, uma solução
idêntica à que tem, por exemplo, no Brasil, em que o Ministério Público extravasa as suas funções e
os particulares recorrem ao Ministério Público para exercer a ação pública ou a ação popular. Isso
parece um exagero e uma supressão da lógica subjetiva do contencioso. No quadro da defesa da
legalidade e do interesse público, o Ministério Público e a ação popular podem ter um papel, não será
um papel muito importante. Se pensarmos no autor popular, as pessoas, em regra, estão preocupadas
em resolver os seus problemas, em salvar-se a si próprias. Apesar de haver sempre alguém que queira
salvar o mundo, não é para esses que o processo está organizado, porque esses são uma realidade que
pode e deve existir, mas não podem constituir a essência do processo administrativo. Da mesma forma,
o Ministério Público tem vários preocupações para além de ter que substituir os particulares, não sendo
a intervenção através do Ministério Público a forma adequada de tutela dos seus direitos. Portanto, em
primeiro lugar, não era necessário haver uma tutela objetiva da legalidade, como não acontece na
Alemanha, mas tendo ela existido por razões de tradição, tendo o legislador consagrado os números 2
e 3 do artigo 9.º do CPTA, tem de ser vista como uma forma complementar e acessória da proteção do
particular e, quando existe, tem uma dimensão jurídicosubjetiva, porque o autor público e o autor
popular têm uma posição tutelada.

Há ainda uma ligeira crítica em relação à formulação do artigo. Quando o legislador criou, ainda nos
anos 90, a ação popular, diz-se que se inspirou no modelo brasileiro, mas o que é verdade é que aquilo
que ele fez não era nem o modelo brasileiro, nem era um modelo autónomo. O que ele estabelecia era
uma verdadeira confusão entre o direito de ação jurídico-subjetiva e o direito de ação popular, que
existe para defesa da legalidade e dos interesses, nesta lógica que estamos a considerar e, portanto,
admitia que podia haver uma intervenção a todos os níveis. Embora limitando a matérias dos valores
e bens constitucionalmente protegidos, em relação ao Ministério Público e, posteriormente, em relação
ao urbanismo, ambiente, saúde pública, ordenamento do território, património cultural e bens do
Estado, relativamente à ação popular, o legislador, nestes domínios, parece considerar que tanto pode
haver ação pública como ação popular, ou seja, estabelece um sistema de confusão entre os dois. Na
altura, o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva e o Senhor Professor Sérvulo Correia defenderam
uma interpretação corretiva deste artigo que continua a ser necessária, agora, em face da formulação
de 2002. O legislador refere “independentemente de ter interesse direto na demanda” e o
“independentemente” pode ser interpretado no sentido de dizer “quer tenha quer não tenha interesse
direto na demanda, pode haver ação pública ou ação popular”. A confusão entre uma coisa e outra não
faz sentido do ponto de vista sistemático, visto que os números 2 e 3 estão separados do número 1, são
modalidades de ação diferente. No número 1, temos a ação jurídico-subjetiva, nos números 2 e 3 temos
a ação pública e a ação popular como modalidades de ação jurídica para defesa da legalidade de acordo
com uma forma de natureza subjetiva. Portanto, é preciso interpretar este “independentemente” no
sentido de se considerar que é apenas para os casos em que não há interesse direto na demanda, porque
se há interesse direto na demanda, já não é ação pública nem ação popular, é ação jurídico-subjetiva
do número 1. Se o Ministério Público tem um interesse direto na demanda, está a agir por interesse
próprio: além disto ser ilegal e ilegítimo, isto é algo que corresponde à defesa de interesse próprio, não
à defesa da legalidade e do interesse público. O mesmo se diga do autor popular. Por exemplo, quando
António, cidadão de Lisboa, impugnou as obras do metro, ele não andava no metro, porque, se andasse,
usaria a ação jurídico-subjetiva e não a ação popular. Os utentes do metro têm um direito enquanto
titulares de um direito à gestão do metro, pelo que, quem não anda no metro, não tem direito. Uma
ação popular feita por uma associação de utentes dos transportes públicos do Porto para as obras do
metro em Lisboa não goza de legitimidade. Pode, eventualmente, usar a ação popular para defesa da
legalidade e do interesse público, mas, mesmo assim, há que ter em consideração quais os interesses
dessa entidade ou dessa associação e se goza ou não de legitimidade. Portanto, uma coisa é ter interesse
direto na demanda, e isso é o critério do artigo 9.º/1 do CPTA, e outra é a defesa da legalidade e do
interesse público, que corresponde ao número 2 e ao número 3 e são outras duas modalidades de ação,
a ação pública e a ação popular.

O CPTA deu um passo em frente relativamente à Lei da Ação Popular dos anos 90, passando agora a
distinguir as três formas, para além de que esta “arrumação” em números separados no preceito vai ao
encontro das críticas feitas à versão originária da Lei da Ação Popular dos anos 90. Esta lei foi muito
criticada por Professores brasileiros, tendo o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva participado em
algumas conferências em que isso aconteceu. Agora, há uma separação entre as duas realidade e há
uma lógica acessória e secundária, não é ação pública e a ação popular que resolvem os problemas do
direito subjetivo. A maior parte dos processos são intentados por particulares que atuam para defesa
dos seus direitos e, em alguns casos, os meios são concebidos para os titulares de direitos fundamentais.

O Doutor José Coimbra fez alusão às intimações para defesa de um direito fundamental que surgiram,
agora, no quadro da pandemia. Estas ações são para quem tem um direito fundamental, quem não tem
um direito fundamental não tem legitimidade para atuar. Portanto, estamos perante um processo
claramente subjetivista, mesmo consagrando, simultaneamente, uma tutela da legalidade e do interesse
público em termos secundários e em termos acessórios.

O Senhor Professor Vasco Pereira da Silva revê-se na filosofia que está no artigo 9.º do CPTA: o
número 1 tem alguma intervenção da sua parte, já os números 2 e o 3 estão no CPTA numa fórmula
que corresponde à lógica da diferenciação. O Senhor Professor não concorda com a expressão
“independentemente” que consta do artigo, seria preferível, do seu ponto de vista, constar do preceito
a expressão “quando não tiver interesse pessoal na demanda qualquer pessoa, bem como associações
e fundações”. É esta a interpretação corretiva, sob pena de ficarmos sem critério. Quando é que havia
ação popular e quando é que havia ação para defesa dos direitos próprios? Como é que se separavam
as duas coisas? O legislador apontou para a separação, mas mantém a formulação do passado, ainda
que corrigida no âmbito da tal lógica corretiva que o Senhor Professor Sérvulo Correia e o Senhor
Professor Vasco Pereira da Silva tinham defendido. Os números 2 e 3 podiam ter uma formulação
melhor, mas são aceitáveis no quadro desta lógica global do processo. O Senhor Professor também se
revê no artigo 10.º/1 do CPTA. Na altura, o Senhor Professor Mário Aroso de Almeida dizia,
ironicamente, que os primeiros artigos do Código (até ao artigo 10.º) tinham sido inspirados
diretamente naquilo que o Senhor Professor tinha escrito e, efetivamente, não está errado. De facto, o
Senhor Professor consegue identificar-se com alguns aspetos, à exceção do artigo 9.º/2 e 3 do CPTA.

Se olharmos do ponto de vista da legitimidade passiva, o legislador colocou bem a questão ao referir
que é parte legítima, do ponto de vista passivo, quem for a outra parte no âmbito da relação jurídica
controvertida. Isto é uma boa forma de colocação da questão, é o chamar ao processo os titulares da
relação material controvertida. O problema é a identificação dos titulares, aí o legislador confundiu-
se. O legislador justifica a escolha dos sujeitos passivos normais como sendo as pessoas coletivas de
direito público. Esta escolha, que está consagrada no artigo 10.º/2 do CPTA, é justificada por razões
subjetivistas. O legislador até referia que, para que não houvesse dúvidas, o contencioso era subjetivo
e tinham que ser chamados à demanda os titulares da relação jurídica material controvertida que, por
causa disso, deviam ser sempre as pessoas coletivas a ser chamadas. No entanto, isto, que, no processo
civil, pode corresponder a uma lógica subjetivista, porque quem atua no quadro do direito civil são
pessoas singulares ou coletivas, são pessoas jurídicas, já no quadro do contencioso administrativo, no
quadro do direito administrativo, isto não faz sentido, porque a Administração está premiada com a
legalidade da sua própria organização interna. Tudo o que a Administração faz corresponde ao
princípio da legalidade, quer seja para dentro da Administração, quer seja para fora da Administração.
Portanto, para além das relações entre pessoas coletivas no quadro da Administração Pública, há
relações dentro da mesma pessoa coletiva, entre os órgãos da pessoa coletiva, entre órgãos de
diferentes pessoas coletivas. A questão complicou-se porque, nos dias de hoje, há órgãos sem pessoas
coletivas, por exemplo, as entidades reguladoras são órgãos que não se integram em nenhuma pessoa
coletiva autónoma. A realidade complexificou-se de tal maneira que o princípio da legalidade se aplica
indistintamente às normas internas e às normas externas.

Em Portugal, nunca vigorou a teoria de Ottomayer das relações especiais de poder, que eram
aquelas relações no seio da Administração em que não havia nem legalidade nem direitos subjetivos.
Por exemplo, a relação de aluno e professor seria uma relação especial de poder, porque o professor
poderia fazer tudo o que quisesse, no quadro das aulas, e os alunos tinham que se submeter. Não é uma
realidade possível, não tinha nenhum efeito, mas era a lógica tradicional dos professores, dos guardas
prisionais em relação aos presos, dos médicos em relação aos doentes. Estas seriam relação especiais
de poder, relações em que não havia nem legalidade nem direitos fundamentais, o que se mostra
absurdo. Em Portugal, o Senhor Professor Marcelo Caetano sempre foi contrário a esta ideia e é o
responsável por não termos adotado esta conceção, que existiu noutros países e teve algum sucesso
nos mesmos. A realidade administrativa é diferente da realidade do direito privado. É certo que, em
determinados domínios do direito privado, já há o princípio peeping tom do “levantar as saias da pessoa
coletiva”, “levantar o véu”, “espreitar por debaixo da saia da pessoa coletiva”. No direito das
sociedades comerciais, no direito comercial, isso sucede: o que se passa numa assembleia geral tem
consequências e é uma realidade que tem a ver com uma tomada de decisão interna que,
posteriormente, tem consequências no quadro das relações externas. Aquela decisão pode ser
contestada, isto é, alguém que não participou na assembleia geral pode contestar a decisão que não foi
corretamente tomada, significando isto uma relação que tem dimensões internas. Esta hipótese é muito
frequente no Direito administrativo. As regras do Direito administrativo são, desde logo, regras de
competência, e essas regras aplicam-se na organização da Administração. Depois, há regras de
procedimento, se algo não é cumprido, estamos perante uma ilegalidade sem que se saia do quadro da
pessoa coletiva. No seio da pessoa coletiva, existem relações entre os órgãos que definem as
competências, definem relações hierárquicas, de subordinação ou de primazia entre os sujeitos que
intervêm, entre o superior hierárquico e o funcionário administrativo ou o titular e o agente da
Administração Pública. Estes têm direitos e deveres no quadro de uma relação que, apesar de se passar
dentro da Administração, é uma relação externa, não é uma relação interna no sentido do Código de
Processo Civil ou do Direito civil. No Direito civil e no Processo Civil, há um conjunto vasto de
exceções que colocam em causa a regra, mas, porventura, algum dia, podem chegar a algum caminho
e aproximar-se do direito administrativo, tal como acontece no Direito do Trabalho e em alguns
domínios do Direito Comercial.

É por essa razão que o Código de Processo Civil estabeleceu exceções e regimes especiais. Uma dessas
exceções tem a ver com as pessoas coletivas, em que diz que são os órgãos que as representam em
juízo. O problema é o da relação entre órgão e pessoa coletiva, porque esta distinção é uma distinção
que veio emprestada do direito privado. A ideia de pessoa jurídica não é uma ideia essencial ao direito
administrativo, não estava na conceção de Ottomayer, veio, posteriormente, por influência do direito
privado e da teoria geral do direito e há, consequentemente, um problema para conceber esta ideia
entre a pessoa coletiva e o órgão. O verdadeiro autor das decisões é o órgão e não a pessoa coletiva.
Numa decisão do funcionário das Finanças de Freixo de Espada à Cinta, quem está em condições de
ir a tribunal defender esta decisão ilegal é o funcionário e não o Estado. Não é o Estado, que tem de
ser representado pelo Governo (órgão máximo do Estado), que tem de ir a tribunal defender o ato do
funcionário das Finanças de Freixo de Espada à Cinta. Isso seria uma lógica objetiva, não tem nada de
subjetivo. Deste modo, o legislador adotou este critério similar ao do Processo Civil e,
simultaneamente, fê-lo com tantas exceções que deixa de haver regra e deixa de haver exceção.

Se atentarmos no n.º 2 do artigo 10.º do CPTA, este preceito refere que “nos processos intentados
contra entidades públicas, parte demandada é a pessoa coletiva de direito público”, que constitui a
regra. “Salvo nos processos contra o Estado ou as Regiões Autónomas que se reportem à ação ou
omissão de órgãos integrados nos respetivos ministérios ou secretarias regionais, em que parte
demandada é o ministério ou ministérios, ou a secretaria ou secretarias regionais”. Portanto,
relativamente ao Estado e às Regiões Autónomas, quem deve estar em juízo não é a pessoa coletiva,
mas o órgão que pratica o ato. Esta exceção é de tal maneira imensa que coloca em causa a existência
da regra. No entanto, não se fica por aqui, visto que o art. 10.º/3 do CPTA refere que “os processos
que tenham por objeto atos ou omissões de entidade administrativa independente, destituída de
personalidade jurídica, são intentados contra o Estado ou a outra pessoa coletiva de direito público a
que essa entidade pertença”. Deste artigo decorre que a pessoa coletiva também pode ser citada, mas
o que é normal é que seja citado o órgão.

Depois, no artigo 10.º/4 do CPTA, refere-se que “o disposto nos n.ºs 2 e 3 não obsta a que se considere
regularmente proposta a ação quando na petição tenha sido indicado com parte demandada um órgão
pertencente à pessoa coletiva de direito público, ao ministério ou à secretaria regional que devem ser
demandados”. Ou seja, o legislador diz que tanto faz. É indiferente citar a pessoa coletiva ou o órgão,
não sendo o órgão, necessariamente, o Ministério, mas sim quem praticou o ato, porque é esse que,
numa lógica subjetivista, deve ser chamado a juízo. Estabelecem-se aqui uma série de realidades que
acabam por colocar em causa a regra e isto não só resulta deste preceito, como resulta, numa fase
posterior, da definição das regras da petição inicial, porque o legislador refere, no art. 78º, no quadro
desta realidade que aparece enunciada no art. 10º nº2 e ss. CPTA que, para o efeito do disposto na
alínea b) do número anterior, a indicação como parte demandada do órgão que emitiu ou deveria ter
emitido uma norma ou um ato administrativo é suficiente para que se considere que a pessoa coletiva
foi demandada, como se fosse necessária alguma referência absoluta. Portanto, é aqui que se encontra
o critério da legitimidade, é este critério do art. 78º nº1 alínea b), que diz que deve ser chamado a
juízo o autor da atuação que está em causa, o autor da forma de atuação administrativa que está em
jogo, seja uma norma que ele devia ter emitido, um ato que ele devia ter praticado ou um regulamento
que devia ter aplicado. O legislador arranjou esta forma arrevesada de resolver as coisas, porque, com
boa intenção, quis aproximar esta situação do processo civil. No entanto, esqueceu-se das exceções do
processo civil e dos problemas da doutrina geral de direito privado do tooping tom, criando esta solução
disparatada. Neste sentido, seria melhor a solução original que, supostamente, não era subjetivista,
mas que mandava estar em juízo o titular do órgão ou o órgão que tivesse praticado o ato. Aliás, o
Senhor Professor Vasco Pereira da Silva usou ironia quando escreveu a sua tese de mestrado, em que
criticava o contencioso objetivista português dizendo que, em certos aspetos, o Senhor Professor
Marcello Caetano era menos objetivista do que fazia crer e do que achava que era. O Senhor Professor
Marcello Caetano dizia que quem devia estar em juízo (e era o que dizia a lei), era o órgão, isso é algo
verdadeiramente subjetivo. Quem praticou o ato ou quem o omitiu é que está em condições de se
defender. Para além das considerações que o Senhor Professor Vasco Pereira da Siva faz no seu divã,
também está de acordo com outras considerações que foram feitas, nomeadamente, pela Senhora
Professora Alexandra Leitão, que também criticava esta lógica do código e aderia à conceção do
Senhor Professor Vasco Pereira da Silva.

Assim, o que temos aqui é uma aparente regra geral que é totalmente contrariada pelas disposições
seguintes, porque ainda se aludem a relações interorgânicas no art. 10º/8 CPTA ao referir que “nos
litígios entre órgãos da mesma pessoa coletiva, a ação é proposta contra o órgão cuja conduta deu
origem ao litígio”. Um litígio interorgânico é um litígio entre órgãos, não é entre pessoas coletivas,
portanto, não faz sentido estar a inventar a lógica da pessoa coletiva. Além disso, no quadro das
relações intra e interorgânicas, isto é muito comum e todas elas são objeto de processos
administrativos. Portanto, o legislador apresenta esta realidade de uma forma veemente. Lembrando a
anedota do Senhor Professor Vasco Pereira da Silva que mostra as diversas contradições da doutrina
portuguesa: qual é a diferença ou a semelhança entre o cão e o gato? Ambos miam, exceto o cão ou
ambos ladram, exceto o gato. A exceção é de tal maneira que põe em causa a regra geral. Não faz
sentido dizer que há uma regra geral e uma exceção, são regras diferentes, não faz sentido utilizar uma
regra que tem mais “buracos que um queijo gruyère”.

Isto tem a ver com uma realidade teórica que é a da colocação em causa, no direito administrativo
atual, da distinção entre pessoa coletiva e órgão. No direito italiano, diz-se que não se devem utilizar
essas expressões, são expressões erradas e arcaicas. O que existe são entidades que, no ponto de vista
do direito público, atuam no quadro da existência de poderes e são essas relações que relevam. Esta é
a versão mais radical e é, para o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva, do ponto de vista teórico, a
mais atual, ao acabar com a distinção entre pessoa coletiva e órgão e com a noção de órgão e pessoa
coletiva. O primeiro autor a referir este aspeto foi Massimo Severo Giannini e hoje, em Itália, continua
a ser, desde os anos 60, a forma correta de organizar a realidade administrativa. O Senhor Professor
Vasco Pereira da Silva concorda com a crítica e não com a solução, porque aquilo que Massimo Severo
Giannini propõe, e é o que corresponde à realidade italiana, é a substituição dos órgãos e das pessoas
coletivas pela noção dos serviços, que são a realidade substitutiva das pessoas coletivas. Isto coloca
muitas reservas, até porque a expressão “serviços” era a expressão que, no quadro da lógica francesa,
era utilizada para designar os aspetos de organização interna do órgão que serviam para preparar as
decisões e a discussão. A adotar uma solução deste género, teria sido possível chamar-lhe um nome
mais adequado, além de que isto seria um problema no nosso ordenamento jurídico, porque o legislador
refere-se a pessoas coletivas e a órgão. O Senhor Professor Vasco Pereira da Silva tem vindo a referir
que a melhor forma de interpretar este enigma sem dar demasiada importância à pessoa coletiva e
dando importância ao órgão (que é aquilo que faz o art. 78º CPTA, bem como os nºs 2 e ss. do art. 10º
CPTA), é recorrer à lógica alemã que considera que o conceito de pessoa coletiva, no direito
administrativo, não é um conceito jurídico, mas um conceito artístico ou cultural. O que tem
importância não é a personalidade judiciária e a personalidade jurídica, mas saber quem atua e quem
atua são os órgãos, pelo que aquilo que interessa é a capacidade de exercício. Portanto, mais relevante
do que falar em pessoa coletiva, no quadro das regras da legitimidade, é falar nos órgãos que têm
capacidade de exercício para atuar em nome da pessoa coletiva, que têm poderes de atuação, que
praticaram os atos e que, por isso, devem ser chamados a juízo. Por uma razão de estética, pode-se
falar em pessoas coletivas, mas isto não é importante, porque a estética não é o essencial, o conceito
operativo é o conceito de capacidade judiciária. O Senhor Professor Vasco Pereira da Siva fazia alusão
a este aspeto na versão que está publicada no seu divã, criticando fortemente estas opções, porque não
correspondiam a nenhuma regra.

O legislador da “Reforminha” de 2015, sem alterar as regras, acabou por introduzir uma cláusula de
flexibilidade (que vai ao encontro da lógica alemã que o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva tinha
defendido), o art. 8º-A CPTA, distinguindo este artigo entre personalidade e capacidade judiciária,
pelo que resolve a questão que o Senhor Professor tinha enunciado. O legislador não teve coragem de
mudar a formulação do art. 10º e do art. 78º CPTA, mas reconheceu que não tem razão, vindo dizer
que o que está consagrado no preceito é a solução de chamar a juízo o órgão que praticou o ato ou que
o omitiu e, então, sendo a personalidade um pressuposto genérico e, do ponto de vista do Senhor
Professor, um pressuposto meramente artístico, o que releva é a capacidade judiciária, porque é esta
que determina a qualidade de estar em juízo. O que se encontra consagrado neste art. 10º nº2 e ss.
CPTA é uma regra que não é regra e um conjunto de exceções que não são exceções. Assim, o que o
legislador devia ter feito, se fosse até ao final daquilo que pensou e daquilo que sabe relativamente a
este problema, era regular esta situação de uma forma diferente, alterando a formulação do art. 10º e
consagrando o que se encontra no art. 78º, acerca da petição inicial: o que releva é chamar o órgão que
praticou ou omitiu a forma de atuação administrativa que está em causa. O legislador refere-se só ao
ato e ao regulamento mas, em bom rigor, é o autor da forma de atuação administrativa que está em
causa. A interpretação à luz das exceções e à luz deste art. 8º-A CPTA faz com que haja um critério
declarado e um critério inconsciente: o critério declarado é a pessoa coletiva e o inconsciente é o órgão
que atua, que tem capacidade judiciária, devendo esta ser adequada à sua capacidade jurídica que lhe
atribui a competência para atuar, sendo essa a realidade que deve corresponder ao chamamento destas
entidades.

É ainda importante referir que o legislador, em relação ao autor popular, refere que este exerce os
poderes de parte, mas há aqui uma alteração que ainda resulta da dificuldade em resolver os traumas
da infância difícil. Nos termos do art. 11º CPTA, relativo ao patrocínio judiciário (que é uma outra
regra em que as partes têm de ser representadas por alguém que seja um especialista em Direito nessas
matérias e que assuma a defesa da parte, enquanto defesa especializada), o legislador manteve (e é
compreensível que o tenha feito) esta lógica em que pode ser um advogado ou pode ser um licenciado
em Direito a prestar funções de apoio jurídico ao órgão. O problema que se coloca poderá ser, do ponto
de vista prático, o excesso de despesas que a Administração poderia ter se tiver que contratar um
advogado. A Administração fá-lo para os casos mais importantes, não para todos, embora a Ordem
dos Advogados proteste e o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva até considere ser razoável. O que
não é razoável é que o Ministério Público possa ser defensor da Administração nos casos que
correspondam ao contencioso contratual e ao contencioso da responsabilidade civil, até porque isso
poderia gerar problemas de manifesta inconstitucionalidade. Suponhamos que é o Ministério Público
que exerce uma ação, estando do lado do autor, e que, posteriormente, aparece do lado do réu, a
defender a posição da Administração. Isto é manifestamente inadmissível, é a violação das regras do
processo administrativo. Portanto, esta norma não deveria existir e, a existir, deve estar limitada e a
mesma não faz qualquer sentido, porque o Ministério Público não tem funções de defesa da
Administração. A defesa da Administração é assegurada, nomeadamente, pela contratação de um
advogado, a menos que se crie um outro sistema, por exemplo, como o sistema do Brasil, em que há
um advogado geral do Estado, ou a lógica espanhola do defensor público, que tem funções de defesa.
No entanto, o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva refere que essas realidades, em regra, e embora
através do mero patrocínio, acabam por desvirtuar a natureza subjetiva da atuação do sujeito que atuou,
que é a que deve verdadeiramente ser preservada. O que não faz qualquer sentido é permitir que o
Ministério Público tenha funções de patrocínio, para além das funções de parte. Se é uma parte, tem a
possibilidade de fazer algo mais como parte, o que não pode é intervir no quadro desta lógica do
patrocínio judiciário.
Uma última questão que importa salientar é que o legislador também chamou à atenção para as
relações jurídicas multilaterais, tendo estabelecido algumas regras que são elaboradas tendo em
conta as relações jurídicas multilaterais e o chamamento de múltiplos sujeitos ao processo
administrativo. O Senhor Professor Vasco Pereira da Silva refere que, aqui, o legislador “pecou por
defeito”, por aquilo que devia ter feito era introduzir, no processo administrativo, as regras do
litisconsórcio necessário e do litisconsórcio voluntário. O legislador não fá-lo de forma direta, mas
configura algumas destas situações: procura, por um lado, chamar à demanda os titulares das relações
multilaterais, de forma a não existir apenas o sujeito que é o direto objeto da atuação administrativa
em causa, bem como alargar o domínio do processo administrativo. Aquilo que acontece, nos dias de
hoje, é que, mesmo atos com uma dimensão individual e concreta que se referem a um sujeito (que é
aquele que é diretamente afetado por uma decisão), afetam outros sujeitos e esses sujeitos devem ser
chamados a juízo. Suponhamos que há um concurso para professor catedrático na Faculdade de Direito
da Universidade de Lisboa e, nesse concurso, concorrem cinco pessoas, sendo selecionado um
candidato e os restantes queixam-se de tal decisão. No processo intentado por aquele que contesta a
decisão da Administração, aquele que é beneficiado pela decisão da Administração tem que intervir,
porque tem um direito que resulta da relação jurídica multilateral. Deste modo, é preciso chamar à
relação jurídica todos os que estão do lado passivo, bem como todos os que estão do lado ativo. O
legislador resolveu esta situação da forma mais simples e adequada, porque considerou que, do lado
passivo, havia, sem qualificar, uma situação de litisconsórcio necessário.

O legislador do art. 57º do CPTA refe uma expressão tradicional do direito português, que há muito
tempo devia ter sido afastada, que são os contrainteressados. Os contrainteressados são, nos termos do
art. 57º do CPTA, partes e têm todos os poderes e deveres da lei. Do lado passivo a Administração
consagrou esta forma de litisconsórcio necessário. Do lado ativo, temos aqui uma situação em que o
legislador foi procurando integrar esta realidade, embora nem sempre de uma forma totalmente clara.
O legislador fala em várias situações do caso de coligação contra vários autores, contra um ou vários
demandados e, também, na situação de dirigir a ação conjuntamente contra vários demandados.
Portanto, realidades que se podem aplicar à dimensão ativa ou passiva. Todavia, não diz muito
claramente quando é que é necessário e quando é meramente voluntário, mas prevê esse chamamento
à demanda. Por sua vez, o legislador no artigo 21º do CPTA quando fala na cumulação de pedidos
também pensa nestas relações jurídicas multilaterais. Mais adiante no art. 28º do CPTA quando
menciona a apensação de processos, ou seja, vários processos separados que são apensados num único,
está precisamente a pensar num caso destes de cumulação de pedidos numa única ação. Isto tem que
ver com razões de solenidade processual, mas também com o chamamento à demanda dos particulares.
Portanto, o legislador estabeleceu aqui algumas normas que, do ponto de vista inconsciente, resolvem
alguns destes problemas do chamamento à demanda destas entidades multilaterais no quadro do
processo.

O Senhor Professor Vasco Pereira da Silva sustenta que o próximo passo na próxima reforma será o
de qualificar estas situações, ou seja, dar um nome certo às coisas e prever aqui a lógica da
multilateralidade. Curiosamente há uma outra regulação que o legislador fez e que ao Senhor
Professor parece correto, embora nem sempre construída nos termos mais adequados. Trata-se, pois,
do processo urgente regulado nos arts. 99º e ss do CPTA que são os processos de massa. Curiosamente
o legislador diz que é o contencioso dos procedimentos de massa, mas o que aí está é um contencioso
de massa, ou seja, um processo de massa. Este processo de massa é para procedimentos em que tenham
intervindo mais de 50 participantes e, portanto, aquilo que se pretende evitar é que na sequência de
uma decisão tomada para 50, 1000, 5000 ou até para vários milhares de pessoas, haja 1000 processos
todos iguais a decorrerem nos tribunais administrativos. Tal acontece na colocação anual de
professores, na colocação de funcionários em termos genéricos, sendo que o legislador vem estabelecer
isso no art. 99º/1/a) do CPTA. Refere que isto se aplica a concursos de pessoal, a procedimentos de
realização de provas e a procedimentos de recrutamento e vem dizer que, neste caso, este processo
que, ainda por cima é urgente, é feito em conjunto com esses sujeitos de natureza coletiva e que o que
está aqui em causa é uma decisão que também toma em conta todos estes sujeitos da relação jurídica
multilateral (tenham ou não intervindo no processo depois eles podem mandar estender os efeitos da
sentença à sua situação quando ela é idêntica). Para o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva parece
uma boa solução. A única crítica que surgiu a este mecanismo foi uma crítica genérica feita pela
senhora professora Carla Gomes a dizer “quando tudo é urgente nada é urgente”. Em geral, faz sentido
como crítica genérica, mas aqui não é tudo, aqui é uma realidade que merece ser urgente. A colocação
de professores não pode ficar à espera até ao final do ano letivo e não pode ser decidida 4 anos depois,
tem de ser decidida logo ou então não faz sentido, daí que este processo tenha de ser urgente. A
colocação anual de professores não pode ser decidida nos termos de um processo normal em que há
1000 processos contra a mesma decisão, invocando o mesmo pedido e a mesma causa de pedir, apenas
havendo uma decisão 4 ou 6 anos depois. Não adianta nada. Portanto, este processo parece ser urgente.
Mesmo que a crítica genérica faça sentido ela não tem aplicação a esta situação, pelo que este
mecanismo parece ser um bom para uma relação jurídica multilateral.

O Senhor Professor Vasco Pereira da Silva suscita um outro problema. Para citar o Doutor João Raposo
que diz que “agora temos os processos de massa e os processos de massinha”, porque estes processos
de massa foram introduzidos em 2015, mas antes disso no quadro de 2002/2004 já se previa uma
situação para processos com mais de 20 pessoas (este é a partir do 50 e os outros era de 20 até 50), em
que para evitar a lógica da existência de uma multiplicidade de pedidos se dizia que, nesses casos, o
juiz que recebia até 18 processos idênticos com o mesmo pedido e a mesma causa de pedir, decidiria
apenas o primeiro. Os outros ficariam à espera da solução desse caso e, depois, os particulares cujos
processos tinham ficado suspensos poderiam aderir à sentença e a questão ficava resolvida, ou dizer
que o seu caso é especial, visto que o pedido e a causa de pedir não são exatamente iguais e, portanto,
a apelar para uma decisão autónoma. Assim, esta categoria dos “procedimentos massinha” não resolvia
integralmente as questões, mas permitia evitar o funcionamento do tribunal. Aqui, de alguma maneira,
esta regra do processo de massa é mais eficaz e até poderia ter acabado com a outra, em vez de haver
esta “massinha” de 20 a 50 procedimentos e os de massa a partir dos 50. Porventura, até se poderia ter
aplicado este regime. Contudo, o legislador manteve essa norma de 2002/2004.

Como vemos, ainda há muito a fazer no quadro das relações multilaterais, já não é mau que o legislador
tenha admitido o chamamento à demanda dos sujeitos nestes domínios, mas ainda há bastante que
fazer. Na perspetiva do Senhor Professor a forma correta de o fazer é chamando “os nomes aos bois”
e distinguindo das situações que correspondem efetivamente a litisconsórcios necessários e voluntários
no quadro do processo, estabelecendo alguns processos urgentes e outros não. Contudo, estabelecendo
sempre mecanismos adequados para a tutela destas relações.

Com isto, é dada por terminada a matéria dos sujeitos e passamos a outra questão dos elementos do
processo que é a questão do objeto. Aqui, também temos um conjunto de transformações que existiram
no processo administrativo e correspondem à tal rutura, mudança do sistema semijudicial e objetivista
para o sistema plenamente judicial e de tutela efetiva dos sujeitos particulares, de natureza subjetiva.

Importa saber como é que as coisas se colocavam antes da reforma de 2002/2004 em termos do objeto
do processo. Primeiramente, a questão só era discutida, quer nos autores clássicos, quer nos autores
atuais em relação ao recurso. Portanto, o processo do poder que era regulado e que era o único que
justificava a existência de regra especial. Relativamente a isso dizia-se que o processo é objetivo, o
que está em causa é a legalidade ou ilegalidade do ato e o juiz vai apreciar esse ato de forma neutra e
imparcial, como era por hábito fazer-se na idade média. Era isto que correspondia a uma lógica
objetivista do processo administrativo. O que se diz hoje na CRP e no CPTA é que o processo se trata
de um processo de partes determinado por uma relação jurídica substantiva. Aquilo que leva o
particular a impugnar um ato, de acordo com o artigo 268º/4 CRP, é o ato lesivo, ato que fere direitos
ou interesses dos particulares e o que está em causa são os direitos e deveres da relação material
controvertida. Temos uma deixa da lógica daquilo que se entende por objeto do processo. Quando
falamos em objeto do processo isso significa, também, que este objeto corresponde a duas realidades
do ponto de vista jurídico, também elas alteradas. A realidade do pedido e a realidade da causa de
pedir. Importa saber o que se entende por pedido e causa de pedir. O pedido é o motivo ou aquilo que
o particular vai solicitar ao juiz, ou seja, aquilo que o particular pretende com aquele processo e,
portanto, é costume, na sequência do Senhor Professor Pires de Lima, dizer que este pedido tem uma
dupla configuração. É um pedido imediato, ou seja, aquilo que se pede imediatamente ao juiz, que
declare, anule ou condene. Por outro lado, há um pedido mediato que corresponde ao direito que se
visa tutelar através desse pedido imediato porque esse pedido de anulação, de condenação ou
declaração é um pedido que existe para a tutela de um direito que o particular alega tendo, portanto, o
pedido imediato e o pedido mediato.

Por sua vez, causa de pedir é a razão que leva o particular a ir a juízo. A lógica tem a ver com a lesão
que o particular sofreu e que é provocada por uma ilegalidade.

No processo civil, é costume discutir entre doutrinas substancialistas e processualistas à cerca do


processo administrativo. No direito administrativo português, há uma discussão entre a escola de
Coimbra e a escola de Lisboa de Barbosa de Magalhães e Castro Mendes que tem consequências
quanto ao modo de valorizar, sobretudo, as qualificações feitas pela prática em particular, ou seja,
valorizar o pedido na dimensão do pedido mediato do direito em particular que corresponde à lógica
substancialista. Por sua vez, a lógica mais processualista que diz que o que releva são os factos
independentemente da qualificação ensinada pelo Senhor Professor Teixeira de Sousa e que
corresponde à escola de Lisboa de valorizar sobretudo a causa de pedir no quadro do processo,
entendendo estes mecanismos. Esta discussão, que é velha, não era discutida no direito administrativo,
até porque a lógica tradicional não tinha a ver com isto. O que estava em causa era o pedido e a causa
de pedir relativamente ao ato administrativo porque as partes não existiam e, portanto, tudo isto não
fazia sentido. A partir do momento em que faz sentido considerar o objeto do processo em termos
subjetivos e que o pedido e a causa de pedir têm a ver com essa relação entre uma atuação
administrativa ou uma omissão, o comportamento da administração e o direito em particular, então aí
é preciso começar também a discutir esta realidade. E de alguma maneira há uma discussão que não
tem a ver com isto, mas que tem existido no direito português e da qual iremos abordar.

Uma questão que divide a doutrina é a da interpretação a dar ao artigo 95º do CPTA. Trata-se de uma
discussão entre o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva e o Senhor Professor Mário Aroso de
Almeida, em que este último relatava, nas suas lições em função da primeira versão do CPTA e que
agora aparece um pouco mais disfarçada na versão atual, uma vez que a reforma de 2015 resolveu
parte da discussão. Mas ainda está presente este impasse.

Com isso, podemos dizer que a interpretação do professor Mário Aroso de Almeida é mais
processualista e a do Senhor Professor Vasco Pereira da silva é mais substancialista, mas o Senhor
Professor entende que quer em termos gerais, quer em termos do processo administrativo, que a
contraposição dicotómica entre pedido e causa de pedir; entre conceção substancialista e conceção
processualista não parece corresponder com a realidade de qualquer forma de processo, seja a de
processo administrativo seja a de processo civil. Por isso mesmo, o Senhor Professor Vasco Pereira da
Silva tende a pender muito mais a posição de Mandrioli em que devemos conjugar as duas perspetivas
(substancialista e processualista) e dizer que as duas são o “verso e o reverso da mesma moeda” que é
o objeto do processo que é preciso analisar, tanto o pedido como a causa de pedir. E isso leva a que,
naquela conceção à cerca da causa de pedir que vai ser depois discutida no artigo 95º do CPTA, o
Senhor Professor Vasco Pereira da Silva entenda que faz sentido uma interpretação ligeiramente mais
substancialista e não uma visão mais processualista adotada pelo professor Mário Aroso de Almeida.
No entanto, em relação aos outros aspetos, o Senhor Professor entende que a dimensão substantiva e
processual, o pedido e a causa de pedir, devem ser concebidos em termos relativamente idênticos, ou
seja, com peso idêntico, no quadro da filosofia do ónus. Isto é uma questão geral que o Senhor
Professor chama à atenção.

Importa agora discutir a questão ao nível do objeto do processo e analisar as diferentes realidades desta
discussão teórica que agora passou a ser feita, também, no processo administrativo.

É uma questão de natureza consensual.

Há que começar pela questão do pedido que é a mais simples. O legislador objetivista do passado
concebia o pedido como sendo apenas o pedido imediato. O que estava em causa era o ato e o
regulamento e por isso só estaremos diante de uma anulação de um ato ou de um regulamento.
Portanto, este é o pedido que pode ser feito no quadro do processo anterior, o pedido era tido como a
realidade essencial. Consideraríamos ainda que o objeto do processo consubstanciaria o pedido. Por
isso, não tinha tanta importância teórica, sendo que antigamente não aparecia enquadrada no quadro
teórico do processo administrativo. Esta conceção clássica está em rotura e foi completamente
contrariada pela lógica do atual contencioso administrativo, já que atualmente é uma lógica que assenta
numa relação jurídica, que tem por base uma lesão de um direito. Assim sendo, não é a ilegalidade
“sem mais” que está a ser apreciada, mas sim a lesão de um direito subjetivo que corresponde à causa
de pedir e tem por base a lógica do contencioso destinado à da tutela jurídica e

efetiva dos direitos particulares. Tal ideia resulta do artigo 268º/4 e 5 CRP e do artigo 2º do CPTA que
estabelece o princípio da tutela plena e efetiva que permite que todos os pedidos possam ser feitos no
quadro do contencioso administrativo e, portanto, introduz essa dimensão claramente subjetivista.
Aparece, também, no artigo 4º do CPTA a propósito da livre cumulação de pedidos. Posteriormente,
aparece no artigo 37º do CPTA quando se fala da ação administrativa. Trata-se da realidade do
contencioso administrativo comum. E, portanto, o que está em causa é um processo que permite todos
os pedidos e sua cumulação e, portanto, faz do pedido uma realidade que tem uma dimensão subjetiva
dizendo que o pedido corresponde a um direito que está a ser tutelado através de um meio processual
correspondente. Aquilo que se diz no artigo 2º do CPTA é precisamente isso, e, inclusive, usa-se a
expressão de que “a cada direito corresponde um meio processual adequado”, assimilando um pouco
a ideia do processo civil que a cada direito corresponde a uma ação. Como supostamente só há uma
ação, diz-se que corresponde um meio processual. Há uma ligação entre o objeto do processo e os
direitos dos particulares, sendo este o verdadeiro cerne do objeto do processo, na conceção subjetivista.
E todos os pedidos são possíveis para tutela de todos os direitos no quadro desta lógica constitucional
que depois está recebida no quadro do processo administrativo.

No entanto, se tal acontece em todas as normas, o legislador estabeleceu um contencioso que tem por
objetivo a tutela efetiva do direito dos particulares. Há uma norma que não devia de estar no CPTA,
ou que não faz falta nenhuma, que é um disparate objetivista que foi adicionado. Estamos a falar do
artigo 50º/1 do CPTA. O Senhor Professor sustenta que é uma norma meramente declarativa e que não
regula nada, até porque seria absurda. Segundo o que está escrito na lei, diz-nos que “a impugnação
de um ato administrativo tem por objeto a anulação ou declaração de nulidade desse ato”. Ora “tem
por objeto” está a cair nos véus da lógica objetivista, isto porque não podemos confundir o objeto
imediato com o objeto do processo. O objeto do processo é identificado com o pedido, ou seja, o pedido
na sua dimensão imediata como se fosse o objeto do processo e a reconduzi-lo apenas à declaração
de nulidade ou a anulação desse ato. O legislador, num momento posterior refere o facto de haver
cumulação de pedidos, toda uma realidade que não tem qualquer limitação e que aparece em
contradição mais aparente, sendo uma norma sem natureza vinculativa. Por isso mesmo é uma norma
que não deve ser considerada por contrariar toda a lógica posterior. Temos aqui um ato falhado, que
corresponde à lógica tradicional objetivista do processo, em que se confundia o objeto do processo só
com o pedido imediato (pelo menos no quadro das formulações tradicionais) e este pedido era apenas
de anulação ou declaração de nulidade, já que estaria limitado os seus poderes. Isto já não existe hoje
em dia, uma vez que tal lógica é contrariada, como vimos, por todos os artigos seguintes, que permitem
o contrário, nomeadamente a tutela de todos os direitos e a formulação de todos os pedidos. É a única
nota que envergonha o legislador e que não devia estar mencionada. Em 2015 o legislador não a quis
retirar, mas o que está no nº2 e nº3 encontra-se noutro sítio.

No que diz respeito à causa de pedir, temos uma discussão que ainda hoje em dia faz sentido e que
tem a ver com a lógica do processo quer em termos objetivistas quer em termos subjetivistas. Ora, há
que atentar ao que deveria ser, numa perspetiva objetivista, a questão da causa de pedir. Se o que está
em causa é a validade ou a invalidade de um ato administrativo, a causa de pedir deveria ser, sem mais,
a legalidade ou ilegalidade do ato, regulamento, de um contrato ou de qualquer forma de atuação
administrativa. Era isso que se esperaria de um contencioso objetivo. Portanto, a causa de pedir é não
apenas aquilo que as partes invocam quanto à legalidade ou ilegalidade do ato, mas é, sem mais, todas
as legalidades ou ilegalidades possíveis e imaginárias. Nessa perspetiva, o juiz não deveria de se limitar
apenas quanto à legalidade de um facto em concreto, mas sim ir à procura do quadro de todas as
ilegalidades possíveis. Curiosamente isto, que era a realidade lógica que deveria corresponder a um
contencioso objetivo, desde os primórdios, ou seja, finais do século XVIII, séculos XIX e XX vai ser
sempre afastado de acordo com o critério prático de que isto não poderia ser assim porque não podia
funcionar. A explicação mais elaborada é a chamada teoria das hipóteses do erro. O próprio Senhor
Professor Marcello Caetano veio introduzi-la no direito português. Estes autores objetivistas sustentam
que, em abstrato, pode ser a legalidade ou ilegalidade da causa de pedir. Só que isso é impossível de
realizar porque teria como consequência que o juiz se enganasse muitas vezes. O juiz teria de ir à
procura de factos e qualificações que não são feitas por ninguém, perderia a sua dimensão passiva e
não teria meios para conseguir descobrir todas as possíveis e imagináveis ilegalidades no ato
administrativo. Como o objeto do processo tem como reverso o caso julgado, teria como consequência
que isso se tornaria caso julgado e não poderia apreciar mais a legalidade daquele ato ou regulamento.
Tornava-se caso julgado sobre a questão da ilegalidade. Portanto, se o juiz considerasse em função da
análise que fazia que não havia ilegalidade, isso valeria para todo sempre e não seria possível no outro
processo pôr em causa aquele ato porque tudo já teria sido considerado no quadro em causa. Por causa
da vertente prática desta teoria das hipóteses do erro, Gaston Jèze diria que as hipóteses de erro eram
muitas e as ilegalidades são tantas e complicadas de decorar que se o juiz tivesse de fazer esse esforço,
não só demoraria mais tempo a decidir como poderia errar com frequência. A acontecer, isso teria
consequências em termos de caso julgado e, portanto, não poderia funcionar dessa forma. Aqui
também a doutrina objetivista é mais subjetivista do que parecia inicialmente, embora não o seja
completamente. O modo como a doutrina vai conceber esta questão da causa de pedir é ir construindo
a figura dos vícios do ato administrativo. E estes vícios eram realidades tipificadas a partir da
construção histórica. Nasceram por razões históricas e não por razões lógicas. Tudo foi-se alargando
e os vícios foram sendo progressivamente maiores e construídos pelo conceito histórico. Em Portugal
também houve alguma evolução, mas aqui houve uma fixação legislativa que inicialmente estava em
todas as normas do contencioso administrativo e uma enumeração taxativa dos vícios. Essa
enumeração manteve-se depois da CRP de 1976 e esteve na lei ordinária no final dos anos 80 numa
disposição da legislação autárquica. O único diploma que manteve até aos anos 80. A teoria dos vícios
enumerava os vícios como a doutrina costuma, hoje em dia, construir. Falava em vício de usurpação
de poder, em vício de competência, em vício de forma, de desvio de poder e de uma invalidade material
relativa aos pressupostos. Aqui o que refere a doutrina clássica é que, atualmente, esta classificação
desapareceu e tornou-se desnecessária. Contudo, ela vem dizer para ligar cada ato aos vícios e reforçar
que esses vícios correspondem a uma ilegalidade resultante de um ato administrativo.

O Senhor Professor Vasco Pereira da Silva entende que a teoria dos vícios é um total disparate. Isto
porque esta a teoria é, como diria o Senhor Professor André Gonçalves Pereira, ilógica e incompleta.
Não só deve ser desconsiderada porque é ilógica e incompleta, como também não está prevista
nenhuma norma do CPTA, nem nenhuma norma das autarquias locais. Portanto, no nosso ordenamento
jurídico não há qualquer referência à teoria dos vícios. Mesmo que os particulares continuem a ir juízo,
mesmo que ela seja seguida quer pelas partes quer pelos juízes, não há nenhuma razão de ser para a
sua manutenção e há todas as boas razoes para o seu afastamento. Até porque, no ponto de vista
constitucional, o que está em causa é a relação jurídico-administrativa e a impugnação em razão de
atos devidos. O que se diz no CPTA é que aquilo que as partes têm de alegar é o pedido e causa de
pedir. Se olharmos ao artigo 78º do CPTA este refere que, na petição inicial, cabe ao autor formular o
pedido e expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem
de fundamento do ato. Ou seja, tem que explicar o facto e as razões que servem de fundamento. Não
se fala aqui, em momento algum, em vícios do ato administrativo, nem na teoria tradicional dos vícios
do ato administrativo, usurpação de poder, incompetência, etc. Portanto, do ponto de vista legal, esta
consagração da teoria geral dos vícios desapareceu da ordem jurídica portuguesa, o que significa que
quem quiser utilizá-la estará a fazê-lo de forma desnecessária. O Senhor Professor, inclusive, tem
alguma dificuldade em perceber o porquê de aos juízos ainda a usarem para identificar a causa de
pedir. É uma forma incorreta. Isto porque a equiparação lógica entre vícios que nasceram da realidade
histórica introduz uma ausência de critério quanto à sua conduta. Portanto, as ilegalidades no direito
administrativo como em qualquer outra realidade, podem corresponder a problemas de competência,
procedimento, formais e, também, a problemas materiais. É isto que qualquer tribunal faz quer seja o
Tribunal Constitucional, tribunais judiciais e o que os tribunais administrativos também deveriam de
fazer. Quando muito, se quiséssemos falar numa moderna teoria dos vícios, ela deveria de incluir estas
situações. Contudo, em bom rigor, a teoria dos vícios é desnecessária e incompleta, porque se
eliminarmos o elemento da competência damos origem a dois outros vícios: usurpação de poder
(incompetência agravada pela violação da separação de poderes) e uma incompetência que pode ser
absoluta ou relativa. Por outro lado, temos um vício que é chamado vício de forma, que serve para a
forma e para as formalidades do ato. Ora, forma e formalidades não são a mesma coisa. A forma é o
modo como o ato se exterioriza, ou seja, se está com calça de ganga, sendo um despacho, ou com fato,
sendo assim uma forma mais solene de atuação (até pode ser um decreto). Isto não se confunde com o
procedimento que é um conjunto de regras, não apenas formalidades, mas regras que a administração
tem de cumprir para praticar uma atuação administrativa. Portanto, aquilo a que chamamos de vicio
de forma, que abrange as formas e formalidades, corresponde a dois aspetos diferentes do ato. Isto está
a esquecer e desvalorizar a tramitação procedimental o que, ainda por cima, na nossa ordem jurídica,
em que há um CPTA é um disparate. E, portanto, temos aqui uma confusão. Os autores franceses
dizem isso claramente, pena que em Portugal não seja dito sempre. Isso significa aquilo que dizia o
Senhor Professor Gonçalves Pereira, que também o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva
acompanha, em que esta teoria dos vícios nasceu por razões de ordem histórica e não ideológica e que
é preciso, pelo menos, autonomizar o vício do procedimento. A tal lógica de que a lista é ilógica e
incompleta, obrigaria que, pelo menos, deveria ser criado um vício do procedimento se fosse preciso
continuar a utilizar a teoria dos erros.

Posteriormente, temos, no quadro de uma realidade tradicional, o vício de desvio de poder, que é o
único vício do ato no quadro do exercício dos poderes discricionários. Por sua vez, temos o vício da
violação de lei que é um vício típico da vinculação e que, para além disso, tem uma dimensão
subsidiária porque corresponde a todos os casos que não estão eventualmente considerados. O Senhor
Professor Vasco Pereira da Silva sustenta que são outros dois disparates. Um disparate porque o poder
discricionário, nos dias de hoje, não é uma exceção ao princípio da legalidade e, portanto, qualquer ato
com aspeto discricionário tem sempre aspetos vinculados e esses determinam, também, o
funcionamento e controlo do poder discricionário, quando se fala da subordinação da
discricionariedade, aos princípios da proporcionalidade, boa administração, igualdade e
imparcialidade. Estas são vinculações autónomas ao exercício do poder discricionário e são suscetíveis
de controlo, que não geram desvio de poder, geram sim violação de lei. Temos poderes
discricionários que não são necessariamente incluídos no quadro dos desvios de poder, que têm a ver
com a divergência de intenções entre a vontade legal e a vontade que é cedida pelo autor do ato
administrativo. A diferença entre o fim legal é determinante na decisão por parte do funcionário,
portanto uma pessoa. Por outro lado, esta violação de lei entendida nesses termos, não corresponde
apenas aos requisitos materiais da legalidade de um ato, mas também a requisitos da lei. Em vez
de ser violação de lei é violação da lei. Para além de ser ilegal e ilógica é, também, incompleta porque
falta o vício do procedimento. Para o Senhor Professor Gonçalves Pereira faltava o vício de causa que
correspondia ao erro do ato administrativo e faltavam todos os outros aspetos vinculados que podem
ser considerados autonomamente e não precisam de ser considerados nessa perspetiva. Portanto, ao
haver alguma qualificação, esta qualificação deveria ter apenas como critérios de determinação da
ilegalidade e, portanto, os vícios, os critérios orgânico, procedimental, formal e o material. Essa seria
uma enumeração lógica, mas não é necessária. Aliás, o que se tornou desnecessário no quadro da
realidade portuguesa foi que se utilizasse para identificar o vício a causa de pedir entendida nos termos
dos vícios tradicionais.

Portanto, este modo de determinar a causa de pedir, que era um modo que procurava corresponder a
uma dimensão subjetiva no quadro do contencioso objetivo, está atualmente afastada da nossa ordem
jurídica. De resto, é essa a tomada de posição do legislador quando fala no objeto e limites das decisões
do juiz do artigo 95º do CPTA. Importa, agora saber a quê que isso se refere. É que a sentença deve
decidir sobre todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação e não pode ocupar
senão das questões suscitadas. Portanto, isto é uma realidade que introduz uma lógica que é subjetiva
da teoria da causa de pedir. E é também uma lógica que determina o princípio contraditório no quadro
do contencioso administrativo. Portanto, isto põe em causa a teoria tradicional dos vícios. Para além
de todas as razões que o Senhor Professor alegou (ser ilógica, irracional, incompleta e até ilegal) há,
também, um ponto de vista puramente processual que é enunciado nos anos 70 e 80 pelo doutor Rui
Machete que quer dizer que a teoria dos vícios era uma forma limitada de aceder à ilegalidade de uma
atuação dos vícios. Portanto, em vez de ser uma janela aberta, que era metáfora do doutor Rui Machete,
era uma fresta que era utilizada para defender o ato administrativo. Ora bem, o Senhor Professor Vasco
Pereira da Silva sustenta que o modo como o processo administrativo está construído assenta não nas
frestas, mas num controlo através da janela aberta, um controlo integral da ilegalidade. Esta
integralidade tem uma dimensão basicamente subjetiva porque o princípio que resulta deste artigo 95º
do CPTA é o princípio do contraditório. Princípio em que o juiz vai apreciar todas as questões que
foram suscitadas pelas partes e vai ocuparse das mesmas. Há uma lógica que não é a lógica objetivista
tradicional de uma causa de pedir que correspondia à legalidade ou ilegalidade. Já não tem a ver com
a lógica intermédia, objetivista nem subjetivista que depois veio a prevalecer com base na teoria do
vício administrativo. Atualmente, estamos perante uma realidade em que a ilegalidade vai ser
integralmente apreciada, independentemente das frestas dos vícios e isso simplifica muito as coisas,
do ponto de vista da integralidade da apreciação e, também, do ponto de vista dogmático. Não é preciso
inventar invalidade para os vícios do ato, como elucidou o Senhor Professor Freitas do Amaral. Não é
preciso, também, para o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva buscar mais nada que não seja
apreciar a ilegalidade tal como ela existe. Até porque é isso que artigo 78 º do CPTA estabelece quando
fala do pedido e da causa de pedir e quando estabelece a causa de pedir nesses termos.

Importa, agora, introduzir apenas uma discussão. A questão que se coloca é saber como é feita a
interpretação do artigo 95º do CPTA. Antes, constava do manual do Senhor Professor Mário Aroso
de Almeida que o artigo 95º/1 do CPTA tinha uma formulação idêntica, mas, no final, dizia

“sem prejuízo do disposto no número 3” e este excerto levava o Senhor Professor Mário Aroso de
Almeida a dizer que o número 3 era uma exceção em relação ao número 1, exceção esta que podia
introduzir uma outra visão à cerca da causa de pedir. O aspeto formal dessa discussão desapareceu e
deve ter sido por isso que o Senhor Professor Mário Aroso de Almeida deixou de referir-se a esta
situação como uma discussão polémica, mesmo que o modo como se interpreta o número 3 continue
a dar razões para divergir. O problema não é o que está na primeira parte, que é uma lógica repetitiva
e, portanto, o que ele diz no número 3 no início era o que estava no número 1 e é bem, na opinião do
Senhor Professor. Vem dizer-se que nos processos impugnatórios deve pronunciar-se sobre todas as
causas de invalidade que tenham sido invocadas contra o ato impugnado. Esta primeira parte, no fundo,
é o que já estava no número 1. Isto visa evitar a transformação do processo administrativo num
processo de mera formalidade, como às vezes é tratado, em que se faz tudo para não discutir o fundo
da causa e que não se discutem todas as ilegalidades que integram a causa de pedir. De acordo com o
Senhor Professor, isso não faz sentido porque o que acontecia muitas vezes é que o juiz apreciava
apenas uma causa formal, procedimental ou orgânica e não uma causa material. Anulava, a
administração corrigia e o particular poderia ir novamente a juízo, para o mesmo ato, já tendo alegado
a validade. Pretende-se que isso não aconteça e bem. Contudo, o problema que ainda persiste e que
deixamos para próxima aula é a segunda parte quando se diz que o juiz pode identificar causas de
invalidade diversas das que tenham sido alegadas. Aqui o que está em causa é o modo como se
concebem estas causas de pedir.

Para o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva, estas causas de invalidade têm a ver com o juiz que
conhece o direito, poder qualificar diferentemente os factos e poder tratá-los de uma forma aberta e
sem os limites da teoria dos vícios. Para o Senhor Professor Mário Aroso de Almeida, por razões que
serão explicadas na próxima aula, ele entende que o juiz pode carregar factos novos no processo. E
isto, para o Senhor Professor, é uma violação da própria função enunciada. Entretanto, o professor
Mário Aroso de Almeida já reformulou a versão que apresenta nos dias de hoje no manual, posição
essa que já não é tão aberta e menciona uma pretensão ou afastamento da validade. É uma formulação
que, para o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva, não é adequada nem do ponto de vista do pedido
nem da causa de pedir e, portanto, há aqui duas visões antagónicas à cerca do objeto do processo que
merecem alguma discussão.

O que está em causa, do ponto vista teórico, é a contraposição entre o modelo objetivista e o
modelo subjetivista de organização do objeto do processo. No modelo objetivista, o objeto do processo
é o ato administrativo. Confundia-se o objeto do processo com um pedido imediato, o objeto era a
averiguação da legalidade, sendo o pedido de anulação ou declaração de nulidade do ato
administrativo. Quanto à causa de pedir, devia ser a legalidade sem mais, mas, através da teoria dos
vícios (que foi uma construção jurisprudencial juntamente com a teoria das hipóteses de erro) se
justificava que a causa de pedir não fosse tão ampla, havia a ideia de que a causa de pedir era
determinada pelos vícios do ato administrativo.

A contrário, a lógica subjetivista assenta na ideia de que o objeto do processo é a relação material
controvertida, é tanto a atuação da administração como o direito do particular. Assim, isto tem
consequências no modo como se concede o pedido: tanto o pedido imediato, que solicita direta e
imediatamente, como o pedido mediato, o direito subjetivo lesado que justifica o pedido que é feito ao
juiz. A causa de pedir é determinada em relação de uma conexão de invalidade. O que está em causa
é uma invalidade do ato, tal como configurada pelo particular: há aqui uma lógica que se assenta no
princípio do contraditório e no modo como aquela relação jurídica lesou o particular, e a junção dessa
lesão no modo como ela configura o objeto do processo.

As opções gerais do código assentam na lógica subjetivista, respeitando a lógica que subjaz a CRP
(artigo 268.º/4 e 5) e CPC (artigo 2.º, 4.º e 37.º). Isto tem consequências:

O pedido deve ser configurado como mediato ou imediato, para intentar por um lado a atuação da
administração e por outro a lesão do direito legal.

No que diz respeito à causa de pedir, o artigo 95.º estabelece um conjunto de regras que, na opinião do
Senhor Professor Vasco Pereira Da Silva, concebe uma causa de pedir ampliada, combatendo as
"frechas" que antes permitiam uma análise da legalidade, mas não completa. Desta forma, o que está
em causa na perspetiva constitucional é que a causa de pedir será alegação dos factos que lesam o
direito. O artigo 95.º/1 diz ainda que a sentença deve decidir todas as questões das alegações da parte,
não podendo ocupar-se para além destas — ou seja, o juiz não tem de ir à procura de factos novos,
limitando-se a analisar o que as partes concebem na causa de pedir.

Existe uma discussão que o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva achava que estava morta com a
“Reforminha de 2015”. No entanto, nas últimas edições do processo administrativo o Professor Mário
Aroso de Almeida mantém viva esta questão, e com alguns argumentos novos. Desta forma, o ato
polémico desapareceu, estando nas notas de rodapé e a posição do professor Mário Aroso de Almeida
é central, unilateral e reafirmada no seu livro. O direito assenta na polémica do confronto, invés de
esconder, sendo, por isso, relevante trazer à colação a discussão. A polémica nasceu porque
inicialmente o n.º 1 do artigo 95.º fazia uma remissão para o n.º 3, apresentando-se o último como uma
exceção, devido à "falta de regulação no n.º 3”. O Professor Mário Aroso de Almeida perfilha a
posição de que o n.º 1 é a regra geral e o n.º 3 a exceção, destinado aos processos de impugnação. O
Senhor Professor Vasco Pereira da Silva afirma que temos de ler de modo a analisar se existe uma
exceção à regra do contraditório, que, segundo a qual, a causa de pedir é configurada segundo a lesão
do seu direito. O Senhor Professor Vasco Pereira da Silva discorda, defendendo que no n.º 3, nos
processos impugnatórios, o tribunal deve pronunciar-se sobre todas as causas de invalidades que foram
invocadas contra o ato jurídico, ou seja, a causa de pedir é a configuração dada pelo particular e
segundo a configuração dada pelo tribunal. Assim, o n.º 3 é uma exceção limitada já dada pelo artigo
95.º/1, exceto quando possa dispor dos elementos essenciais para o efeito.

Contudo, admite-se as questões de conhecimento oficioso, o que não coloca em causa o direito ao
contraditório, fazendo sentido em qualquer domínio processual. Mesmo que fosse admitido que esta
segunda parte fosse uma exceção, temos sempre de ouvir as partes e respeitar o contraditório.
Identificar a existência de causas de invalidades diversas que foram alegadas não significa investigar
causas que não foram alegadas, significa só que foram qualificadas erradamente. Neste caso, o juiz é
competente pelo direito, pelo que este tem o poder de corrigir alegações erradas pelos particulares, a
qualificação pertence ao juiz. Garantimos por este meio que o juiz controla integralmente a ilegalidade
do ato. Isto não vai contra a lógica do processo administrativo do 95.°/1, a regra será sempre pelo
respeito do contraditório.

O Professor Mário Aroso de Almeida defende uma causa de pedir objetivista, aparecendo numa ótica
subjetiva. Isto aparentemente é inexplicável, nada na letra nem do espírito da lei leva a esta conclusão.
O que está em causa é o conhecimento do que o particular alegou. Esta conclusão advém de razões
subjetivas: na teoria do reativo está em causa direitos subjetivos públicos, surgindo nos anos 1980 por
Garcia de Tierri, esta conceção unitária levou a muitas adesões. O Senhor Professor Vasco Pereira da
Silva escreveu sobre isto nos anos 1980, mudando mais tarde a sua posição pela doutrina alemã,
defendendo a teoria da não proteção, sendo uma lógica similar à teoria do geral civil. A posição
perfilhada por Garcia de Terri, assentava no seguinte: no Direito administrativo existe uma posição
de vantagem só a partir do momento em que existe lesão e o particular reage contra esta; não é muito
claro que o direito surge no momento da lesão ou no momento em que o particular reage. Resulta daqui
que o Professor Mário Aroso Almeida, assenta o direito de reagir, como direito subjetivo, e o Senhor
Professor Vasco Pereira da Silva diz-nos que, de facto, existe o direito de agir, mas não é o único, e
existem outros direitos para tutelar. Para além disso, existe uma confusão jurídica entre a relação
substantiva e a relação processual. É a última que vai determinar a primeira, numa lógica a contrário.

Esta contribuição do professor Mário Aroso - de considerar a causa de pedir como a ilegalidade - não
só não cabe nem na letra nem no espírito das normas, como ele não tem a quem se queixar porque
participou da comissão que realizou a Revisão de 2004 e, mais recentemente, da que fez a Reforma.

Além disso, do ponto de vista teórico, parece uma solução errada.

Aliás, estes argumentos que vêm na última lição chegam inclusive a dizer que esta realidade peculiar
do Direito Administrativo faz com que haja uma espécie de mudança de papéis entre o particular e a
Administração. Faz da Administração autora em vez da demandada pelo âmbito do processo
impugnatório, e a pergunta é: Como? Como é que o processo impugnatório relativo à pretensão, diga-
se usando a expressão do professor Mário Aroso, à pretensão de impugnação do ato que é apresentado
pelo particular para afastar atos administrativos da ordem jurídica, faz da Administração a autora do
processo em vez de a ré? Isto é incompreensível. Digamos que o professor Mário Aroso em vez de
discutir a questão do ponto de vista da razoabilidade arranjou um argumento que é, nas palavras do
Senhor Professor Vasco Pereira da Silva, ainda pior que os outros. O que está em causa é sim a
impugnação de um ato administrativo, mas, porque este ato administrativo lesou o direito de um
particular e, portanto, o que está em causa não é a ilegalidade sem mais, é a ilegalidade com uma
conexão com o direito do particular. É a ideia da lesão do direito do particular consagrada na CRP que
está por trás da causa de pedir e é isto que resulta desta norma que concretiza a realidade constitucional,
tal como este Código de Processo concretiza esta realidade.

Ainda por cima, esta posição do Professor Mário Aroso seria contraditória a todas as outras posições
que ele defende acerca do pedido, dos deveres das partes, e da ideia de contraditório. Poderse-ia
perguntar se isto não é apenas uma discussão teórica: tem sido e pode ser só isso, mas pode ser mais
que isto, porque o resultado desta posição ser aceite era a de que esta fórmula da pretensão ao
afastamento da ilegalidade significaria que o juiz poderia inquirir o facto próprio para o processo e que
o processo seria um processo inquisitório a cargo do juiz. Nem sequer está aqui em causa o poder
inquisitório realizado pelo Ministério Público como acontece, por exemplo, em Processo Penal. Aqui
o inquisitório caberia ao próprio juiz. Ora, o juiz do ponto de vista da nossa ordem jurídica é uma
entidade passiva e imparcial, que espera que os conflitos sejam levados e que não vai à procura dos
factos; o juiz analisa os factos que são levados a processo e julga-os. É esta a lógica do contraditório
que está no n.º 1 e é reafirmada pelo n.º 3; é isso que se pretende com este mecanismo que, na verdade,
altera a lógica da causa de pedir, introduzindo uma ampliação da causa de pedir. No entanto, isto não
tem nada a ver com a transformação de um juiz administrativo que violaria todas as regras de Direito
Constitucional, de Direito Internacional Público, de Direito Europeu. Inclusive, o Tribunal de Justiça
da União Europeia tem condenado vários países por não terem um sistema de justiça equitativa. Esta
conceção iria levar o juiz a procurar todas as fontes possíveis e imaginárias do ato administrativo e
teria como consequência, tal como diziam os autores clássicos, a formação de caso julgado sobre aquilo
que o juiz tinha apurado sem que o juiz pudesse apurar todas as coisas e isto teria um efeito
incomportável do ponto de vista do caso julgado. Curiosamente, os tribunais não tiraram daqui esta
interpretação. Os tribunais quando há uma discussão deste género, pelo menos no Direito
Administrativo, procuram “dar uma no cravo, outra na ferradura”. As poucas sentenças que fazem
referência a esta polémica dizem que há aqui uma pretensão que está a ser exercida na causa de pedir
e usam a formulação do professor Mário Aroso, mas depois dão razão ao Senhor Professor Vasco
Pereira da Silva ao dizerem que isto não significa fazer do juiz parte e que de facto o juiz tem que se
limitar aos factos alegados. Os tribunais não tendem a discutir muito esta matéria, porque estão mais
preocupados em aplicar as regras (a matéria de direito), mas quando explicam as razões da formulação
da causa de pedir costumam falar em pretensão de direitos subjetivos como uma pretensão que conduz
ao afastamento de atos inválidos sem que o juiz possa deixar de trazer factos novos à ação.
Materialmente a solução que está consagrada e a praticada pelos tribunais é a solução defendida pelo
Senhor Professor Vasco Pereira da Silva. O uso do conceito pretensão não choca o Senhor Professor
Vasco Pereira da Silva, que considera este um conceito com um sentido subjetivista, uma formulação
alternativa para os direitos subjetivos de caráter pessoal.

IV - “Ego e Id”: A Ação Administrativa


Passa-se à análise da ação administrativa que é, segundo esta Reforma de 2015, o único meio
processual principal atualmente existente no quadro do Processo Administrativo. Esta ação
administrativa está regulada nos artigos 37.º e seguintes e aparece como sendo uma ação unitária.
Esta solução é, do ponto de vista legislativo e lógico, mais adequada do que aquela que existia em
2004 e que criava aquela distinção esquizofrénica entre dois meios processuais: o meio processual
comum e o meio processual judicial.

São conhecidas as críticas do Senhor Professor Vasco Pereira da Silva a esta dicotomia e a este nome
dos meios processuais. Em primeiro lugar, geral, comum e especial é algo que corresponde aos traumas
da infância difícil do processo administrativo. O processo de impugnação era um processo especial,
tão especial que o juiz não podia condenar a Administração, o juiz estava limitado à anulação dos atos
administrativos. O outro processo era o comum. Esta distinção que agora se afasta de forma
inequívoca, porque quer na ação comum, quer na ação especial, o juiz goza de plenos poderes quer
para anular atos administrativos, quer para condenar a administração. Ora se isto é assim, não faz
sentido usar as expressões do passado para distinguir duas formas de processo que já não eram aquilo
que inicialmente tinham sido.

Para além deste primeiro argumento, temos o argumento de que só podendo utilizar esses nomes a
lógica está invertida. Se quisermos usá-los independentemente das suas conotações antigas, aquela
ação, que é comum no Contencioso Administrativo porque é aquela que corresponde à maior parte dos
casos e aquela que justifica a existência de normas especiais para todo o Contencioso Administrativo,
era a chamada ação comum. A ação comum era a ação em matéria de atos e regulamentos, para além
de ser a ação em que estivesse em causa o contrato ou qualquer outra forma de atuação, mas que
houvesse simultaneamente um pedido relativo a ato ou regulamento, ou seja, 99,9% dos casos do
processo administrativo correspondiam à ação administrativa dita especial que era a ação comum do
Contencioso Administrativo. Ao que parece, e para satisfação do Senhor Professor Vasco Pereira da
Silva, o legislador pensou nas críticas do Professor quando modificou. Contudo, o Senhor Professor
fazia também uma terceira crítica e essa não só não foi considerada como se mantém em relação ao
que agora temos. O legislador em vez de regular esta matéria apenas em função de critérios processuais
mistura os critérios processuais com os critérios administrativos e, portanto, o legislador acaba por
criar voluntariamente subações determinadas pela mistura dos critérios processuais com os critérios
administrativos que poderiam ser ações. Logo, onde se diz que há uma única ação podemos dizer que
há quatro ou cinco ações administrativas que o legislador regulou de uma forma completa cada uma
destas modalidades de subações que se podiam transformar em verdadeiras ações. A razão porque o
fez foi porque usou o critério errado de misturar as características de natureza processual com os
critérios de natureza substantiva.

Nos artigos 50.º e seguintes CPTA temos a ação de impugnação de atos administrativos, portanto, aqui
temos a impugnação que é um critério processual com o critério substantivo, ato administrativo.
Depois aparece a impugnação de normas e condenação à admissão de normas. Aqui temos dois
critérios processuais: impugnação e condenação; e só um critério substantivo. O que devia estar
regulado eram todos os processos impugnatórios, todos os processos condenatórios, todos os processos
de simples apreciação independentemente da realidade substantiva. Para o Senhor Professor Vasco
Pereira da Silva esta era a lógica adequada para o Código de Processo, até porque não há diferenças
entre todas as impugnações: a lógica do funcionamento do tribunal é idêntica ou quase idêntica.

A seguir seguem-se os artigos 77.º e 78.º, duas normas relativas à ação contratual. Isto pode levar a
que tenhamos aqui uma única ação aparente e temos na prática várias ações. Realmente, se olharmos
para a regulação que o legislador aqui estabelece podemos ver que o legislador legisla tudo e, portanto,
temos uma realidade que por um lado podia ser repetitiva e por outro lado é contraditória, porque o
artigo 37.º e seguintes tem supostamente as regras comuns à ação administrativa, mas a maior parte
das regras que cá estavam foram revogadas e as que estão algumas podem ser comuns, outras são
específicas de subações e estão regidas não em termos comuns, mas em termos de se aplicarem
especialmente a uma determinada realidade, por exemplo, esta norma acerca da inimpugabilidade dos
atos que está no artigo 38.º é uma norma geral. O que está aqui em causa é admitir que o juiz possa
conhecer a título incidental da legalidade de um ato administrativo que já não pode ser impugnado - já
passou o prazo. Esta norma, que é uma norma genérica, está escrita como se fosse uma norma de ação
responsabilidade civil. O mesmo se diga do interesse processual, que é uma regra genérica, mas está
escrito aqui a pensar nas ações de simples apreciação. Portanto, as normas mesmo gerais que aqui
aparecem estão construídas como se fossem normas limitadas a uma modalidade de ações, e estas
normas não estabelecem as tais regras comuns a todas as ações administrativas.

Depois temos cada uma das subações reguladas com uma regulação autónoma, sendo que a estrutura
é sempre a mesma: começa-se com um artigo sobre o objeto e o efeito da subação, depois estabelecem-
se os pressupostos processuais, os poderes do juiz e a máxima. O legislador faz isto à propósito da
condenação e impugnação de normas, da responsabilidade civil, da contratação pública, entre outros.
Para o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva isto não faz sentido.
Mas há outra coisa que o legislador também faz que nos interessa analisar do ponto de vista
psicanalítico e procurar explicar porquê: o legislador criou meios processuais radicalmente novos e, se
repararmos bem, o legislador preocupou-se mais em regular o que já existia do que aquilo que é novo.
No que já existia o legislador é exaustivo, mas naquilo que, enquanto meio processual é uma realidade
nova, ele parece que se desinteressa. Repare-se: a ação de impugnação aparentemente é aquela
modalidade de subação que já existia, correspondia ao anterior recurso de anulação. Ele está
modificado, mas corresponderia a algo que já se conhece. Portanto, como já se conhece, o legislador
estaria mais à vontade para o tratamento desta matéria do que de outras radicalmente novas. Apesar de
ser a matéria mais conhecida, é a modalidade de subação que tem mais artigos. Do artigo 50.º ao artigo
65.º, o legislador vai de uma forma exaustiva regular esta ação. O que não se percebe é o depois, com
a criação de algo verdadeiramente novo, original, que nunca existiu antes e que põe em causa a lógica
tradicional do processo administrativo e é tratada nos artigos 66.º ao 72.º. Aqui temos 5 artigos – o que
não tem lógica porque aquilo que é novo é que merecia ser regulado com mais detalhe, precisamente
porque os problemas vão surgir nesta matéria ou seria natural que surgissem aqui. Logo era preciso
mais atenção e maior detalhe.

Em relação às normas, temos a ação de impugnação e ação de condenação que é uma realidade nova.
Vendo os artigos 72.º ao artigo 77.º: os artigos 72.º a 76.º dizem respeito à impugnação, que era o que
já se conhecia; e temos apenas um artigo, o 76.º, relativamente à condenação. Aquilo que é novo é
regulado em apenas um artigo, deixando o trabalho para o juiz. O Senhor Professor Vasco Pereira da
Silva critica esta medida, considerando-a como a menos adequada por parte do legislador. O
tratamento de subações como ações, regulando sempre todas as coisas e privilegiando o velho sobre o
novo, é algo indesejável e que cria enormes problemas para esses meios que começam a ser usados.

Estes meios não são tão utilizados tanto quanto deviam ser, sendo que há sempre resistência das partes,
mas sobretudo dos advogados acostumados aos meios tradicionais. Logo, a tendência é tentar encaixar
tudo na ação de impugnação. Isto deveria obrigar o legislador a ter muito mais cuidado com a formação
daquilo que é novo para que pudesse ser uma realidade e efetivamente automática.

Se olharmos para a ação de condenação, há regras dessa ação que estão tratadas nas regras específicas
da ação de anulação ao invés de estar nas regras gerais. Quando o particular se engana e se, por erro,
ao invés de colocar um pedido de condenação, coloca um pedido de anulação, a resolução da questão
não está em matéria das normas de condenação como deveria de estar, mas está no quadro das normas
de anulação em que o juiz convida as partes a substituir o pedido de anulação por um pedido de
condenação. Ou seja, o legislador, inclusive na lógica tradicional, ao invés de regular de forma
detalhada a ação de condenação, prefere ter normas a usar as normas de impugnação. Há aqui uma
realidade aparentemente utilitária, mas que na prática não é, embora a unidade tenha sido desejada. Há
uma razão para a preocupação com a ação de condenação. O legislador queria mostrar
inconscientemente que aqui corresponde, hoje, à ação de impugnação, e já não tem nada a ver com o
que correspondia o recurso da anulação. Com isto, o Senhor Professor Regente tem um artigo sobre a
evolução do chamado recurso de anulação. Acerca disso, existe primeiro uma tese, onde é defendido
que há recurso direto de anulação e que este não é um recurso. Já numa segunda tese, menciona-se que
o recurso direto de anulação não era nulo. Nisto, o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva defende
que a crise que se falava não era atual e era preciso resolver isso no quadro da reforma. O legislador
de 2004 procurou resolver isso e dar a solução com a superação do modelo da anulação. Por isso, na
primeira tese que se referiu, o recurso não é propriamente um recurso, sendo mais uma ação.

Além disso, o Professor refere que a ação de condenação é a uma realidade nova, onde os artigos 72.º
a 75.º irão frisar sobre essa matéria, ao contrário da ação de impugnação, que é mencionada no artigo
76.º. Por isso, há razões para o legislador se preocupar com o condenado, como refere o Senhor
Professor Vasco Pereira da Silva.

Houve uma mudança de “recurso” para “ação” porque a realidade do processo administrativo mudou:
passou a ser apreciado um litígio por uma entidade neutra e independentemente, que é o tribunal.

Em tempos de crise, houve duas teses em relação ao recurso de anulação. Antigamente, falavase no
processo executório, que no Processo Civil não existe. A razão é para a Administração indemnizar o
lesado, onde, por exemplo, teria de ser restituído o particular para a situação onde se encontrava se o
dano não tivesse acontecido. Para além disso, há uma realidade que muda no Contencioso
Administrativo: os pedidos são cumulados e o particular pede simultaneamente a anulação do ato. A
doutrina mais moderna dizia que havia um objeto do processo, mas os efeitos da sentença não
correspondiam ao objeto do processo, que obrigavam à execução e, por isso, se falava num processo
executório. Para usar uma metáfora do Costa Rosário, se as sentenças se confundiam com o objeto do
processo, ou se era uma realidade à parte. Isto fazia com que os efeitos da sentença fossem mais
importantes que o objeto do processo. Por um lado, a prova de que no Contencioso Administrativo as
decisões da Administração produzem logo efeitos e esses efeitos têm de ser afastados.

O legislador criou agora um novo processo de impugnação (nova ação de impugnação, e já não ação
de anulação). A referida ação é mais que impugnação porque agora, nos termos do n.º 2 do artigo 4.º
ETAF, nesta ação de impugnação são cumuláveis todos os pedidos e o particular tanto pode pedir a
anulação como a condenação da administração e tudo isto neste mesmo processo, ou seja, a sentença
tem todos estes elementos. O que significa que a ação de impugnação não é uma simples modalidade
de ação constitutiva, é uma modalidade de uma ação de natureza mista que admite todo o tipo de
pedidos: de anulação, declaração de direitos e de condenação. Isto é radicalmente diferente do que se
passava até este momento, logo, marca a transformação.

Quem previu isto foi Maurice Hauriou, um dos pais/teóricos do recurso de anulação, que no final da
vida escreveu que as complicações do recurso de anulação no início do seculo XX, em França, eram
de ordem tal que ele achava que no futuro todo contencioso se tornaria de plena jurisdição. Esta
afirmação era a prova de que um dos pais da teorização do recurso de anulação conseguia ser ao mesmo
tempo utopicamente visionário e dizer que isto iria desaparecer porque não fazia sentido e era uma
realidade transitória. De facto, tinha razão. Portanto, de alguma maneira aquilo que o juiz faz é regular
este processo de impugnação de forma radicalmente diferente da do recurso de anulação e, portanto,
para mostrar que isto é assim numa regulação dentro da lógica de “o rei morreu, viva o rei”.

Portanto, o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva diz que é capaz de perceber isto, embora não ache
que seja a realidade correta - o problema do legislador não é o de ter regulado detalhadamente esta
ação de impugnação “o velho”, mas sim o de não ter regulado da mesma forma o tratamento das outras
realidade “o novo” - , a ação de condenação e as diferentes modalidades de subações. Além disto, o
Senhor Professor Vasco Pereira da Silva mantem a sua crítica anterior de que sendo um código de
processo, as normas apenas são determinadas por critérios processuais, logo o legislador devia ter
criado uma única ação administrativa, estabelecendo regras gerais comuns a todas as ações
administrativas e depois estabeleceria regras especiais em razão dos critérios processuais (regras
especiais para todas as ações de natureza condenatória, regras especiais para todos os pedidos de
natureza constitutiva, regras especiais para todos os pedidos de natureza declarativa).

Esta nova realidade ligada a ação de anulação tem 2 consequências: todos os pedidos tornamse
possíveis e reguláveis, o que significa que no quadro da ação apreciativa todas as modalidades de
sentença podem ser emitidas. É a logica de uma ação de amplo alcance. Se isso é assim e a maior parte
das ações de impugnação passam a ser ações de natureza mista (o particular quer o reconhecimento
integral e apresenta os pedidos de forma compósita e o que é normal é que o juiz anule mas também
condene e também determine a apreciação de determinados atos), será que não poderão haver no
processo administrativo de simples anulação que conduz a sentença de natureza de simples apreciação?
Pode, mas são poucas. Estes casos, são os que, no quadro da sentença de anulação, os pedidos
constitutivos correspondem à satisfação integral das partes; são os daquela situação em que ato
administrativo não foi executado e em que basta ao particular pedir a anulação. Se tiver sido executado
são os casos em que administração praticou um ato declarativo e suspendeu a sua aplicabilidade e aí a
sentença pode ser constitutiva, tal como nos casos em que o tribunal suspende a eficácia da
declaração/decisão da administração.

O legislador regula as diferentes subações e a primeira a ser regulada, nos artigos 50.º e seguintes, é a
modalidade da ação de impugnação.

No artigo 50.º há uma norma que está mal formulada, confundindo o objeto e os efeitos da impugnação
com anulação e declaração de nulidade. É uma declaração que contraria a discussão anterior e contraria
toda lógica do processo administrativo em Portugal e das normas que constam do CPTA, assim como
normas constitucionais e europeias. Esta declaração, por não ter valor de regulação de determinada
realidade, é uma declaração errática que corresponde, do ponto de vista psicanalítico, ao ato falhado,
mas que não tem consequências efetivas.

De seguida, o legislador trata, para cada uma das modalidades de subação, dos pressupostos
processuais: as condições que têm de se verificar para que juiz possa decidir sobre o processo que lhe
é levado. Se não existirem, conduzem a absolvição da instância.

O legislador trata dos pressupostos específicos da impugnação. O primeiro pressuposto é o da


impugnabilidade. Do artigo 50.º ao artigo 54.º temos as regras acerca da impugnabilidade do ato,
determinando as condições que de devem verificar para que ele possa ser impugnado. Qualquer ato,
do ponto de vista constitucional, é suscetível de impugnação, desde que seja lesivo; mas para que possa
haver uma decisão judicial é preciso que esse ato cumpra o pressuposto da impugnabilidade. O
segundo pressuposto é o da legitimidade das partes. Este pressuposto vem regulado no artigo 55.º. O
terceiro pressuposto diz respeito aos prazos e vem regulado nos artigos 58.º e seguintes no quadro do
processo administrativo.

A impugnabilidade faz a ponte entre direito substantivo e direito processual. Está aqui em causa a
noção de ato administrativo e a relação desse ato com o processo — e a lógica tradicional do ato
administrativo foi a de construir uma noção substantiva de ato a partir do processo e considerar que
este ato, que aparentemente era uma realidade genérica e correspondia a qualquer atuação
administrativa produtora de efeitos jurídicos, depois transformava num ato impugnável (ato recorrível)
e depois este ato recorrível era definitivo e executório. Em razão da definitividade desse, em que se
criava um conceito dentro do ato produtor de efeitos jurídicos, que era a do ato mais que perfeito (todas
as caraterísticas administrativas do direito administrativo) e era esse ato a figura substantiva objeto do
processo.

O Senhor Professor Vasco Pereira da Silva diverge deste conceito, considerando que o ato
administrativo que existe e existiu sempre: é qualquer ato produtor de efeitos jurídicos, e que
Administração não tem por missão definir o direito e os seus atos correspondem aos poderes que estão
estabelecidos na lei. Logo, não são definitivos e executórios e qualquer ato produtor de efeitos jurídicos
é suscetível de impugnação desde que lese um particular, e aqui a lesão é o que determina a qualidade
do ato que pode ir a julgamento. Logo, um pressuposto processual é a lesão do particular através do
ato. Um ato lesivo dentro da generalidade dos atos administrativos é suscetível de ir a tribunal.

Portanto, o Senhor Professor defende que este pressuposto processual é um mero pressuposto
processual, não é uma categoria de atos, nem há atos administrativos com caraterísticas diferentes que
correspondem as caraterísticas do ato impugnado. E acrescenta que a noção de atos definitivos e
executivos não faz sentido, nem corresponde à realidade do passado, nem do ponto de vista do processo
põe em causa a natureza jurídica do ato. O ato de impugnar é igual aos outros atos na medida
conjuntural - não faz sentido teorizar à parte, como fazia Marcello Caetano, o ato executivo executório.

Portanto, o que resulta do artigo 51.º é que o legislador afastou definitivamente esta realidade - a ideia
de que o ato tinha de ser definitivo e executório. O legislador preocupou-se em afastar do artigo 50. º
ao artigo 54.º qualquer realidade que tivesse que ver com a efetividade e executabilidade. Só com
análise do artigo 51.º/1 vemos como isso aconteceu: qualquer ato em qualquer momento do
procedimento, ato inicial ou intermedio, é suscetível de ser impugnado. Depois remete-se para o
conceito material de ato e carateriza-se o elemento da produção do efeito jurídico. Os efeitos do ato
não têm de ser reguladores, não tem de ser novos, nem tem de corresponder a uma definição do direito,
basta a produção de efeitos jurídicos. Mesmo se alguns ainda querem manter a noção de ato regulador
como realidade limitada, não é a essa a lógica nem do CPA, nem do CPTA. Pelo contrário, a lógica é
a de adotar a noção de ato administrativo e permitir que qualquer ato suscetível de produzir efeitos
jurídicos seja impugnado.

O privado também pratica atos administrativos que podem ser impugnados: é a lógica da participação
dos particulares na atuação da administração, por exemplo, por via do contrato (concessão) com
exigências europeias. Logo, no artigo 51.º encontramos um afastamento de tudo
aquilo que era tradicional no Direito português e que correspondia ao ato definitivo. Se houvesse
alguma dúvida, ela é afastada pelo artigo 54.º, que permite a impugnação até mesmo do ato ineficaz.
Concluindo: o legislador, em termos muito imediatos, afastou de forma inequívoca os critérios que
anteriormente estavam por trás da determinação do critério de impugnabilidade.

Quanto à modalidade de ação administrativa em matéria de impugnação de atos


administrativos, é importante falar em impugnação e não em anulação. Não só porque está em causa
tanto a anulação como a declaração de nulidade, como também, como já sabemos, todos os pedidos
são possíveis de ser cumulados com este pedido de impugnação. Portanto, podem existir:

Pedidos de natureza contraditória;

Pedidos de natureza mista; e

Pedidos de simples apreciação.

Ou seja, a integralidade do direito que o particular faz valer em juízo justifica que ele possa utilizar
todo o tipo de pedido.

Quanto ao objeto do processo, o artigo 50º, CPTA, coloca-nos um problema, mas que não é
particularmente essencial, uma vez que é uma mera declaração proclamatória que não tem eficácia
jurídica, visto que todas as outras normas dizem o contrário. É, por isso mesmo, uma afirmação que
corresponde a um ato falhado do legislador, mas depois temos os chamados pressupostos processuais.

Como dito em sede anterior, o pressuposto processual mais importante, aquele que é específico desta
realidade e que tem a ver com a atuação administrativa que vai ser impugnada: é o pressuposto
processual da impugnabilidade.

Ora, tradicionalmente a impugnabilidade era definida em razão da noção de ato definitivo executório.
A noção de ato definitivo executório foi criada no sentido de limitar o controlo apenas a certos atos.
Posteriormente, a primeira doutrina de direito administrativo teorizou esse ato definitivo executório
como sendo o centro não apenas do processo administrativo, mas também do direito administrativo.

Decorre, então, do quadro destas conceções ato-cêntricas, que o ato impugnável tornava-se uma noção
substantiva, o ato que tinha todas as características essenciais, aquele que era definitivo, porque defina
a posição dos particulares no caso concreto. E era executório, porque era susceptível de execução
coativa contra a vontade dos particulares.
128
Tudo isto deixou de fazer sentido com o Estado Social - com a ideia de Estado favorável, de ato
administrativo favorável; com o Estado pós-social e o ato com eficácia múltipla. Tudo isto originou
transformações substantivas no conceito de ato.

Atualmente, assistimos ao desaparecimento do ponto vista teórico dessa categoria de ato definitivo
executório. Até mesmo o Professor Freitas do Amaral diz que esta figura foi muito importante. Mas
hoje, desapareceu da nossa realidade jurídica.

A razão pela qual esta figura desapareceu, deve-se ao facto de a Constituição da República Portuguesa,
que falava no ato definitivo executório se ter libertado desse conceito, pondo-o fora do sistema jurídico.
Com a Reforma de 2004 do CPTA, e com o CPA, essas realidades despareceram efectivamente.

Coloca-se, agora a questão: o que é que caracteriza o ato administrativo? O CPTA define que o que
caracteriza o ato administrativo é a produção de efeitos jurídicos e, portanto, é um ato jurídico, isto
é, uma atuação jurídica que produz efeitos jurídicos numa situação individual e concreta.

As ideias de definitividade e de executoriedade deixaram de fazer sentido, não aparecendo nunca. São,
aliás, afastadas pela realidade que agora corresponde quer ao novo direito substantivo, quer ao novo
direito processual.

Passando aos artigos 51º e ss. do CPTA, o legislador dá a entender que procurou afastar expressamente
todas as características que anteriormente estavam associadas ao ato definitivo executório. Fê-lo, em
alguns casos, deliberadamente, e noutros casos, através da conjugação com outras normas. O Senhor
Professor Vasco Pereira da Silva entende, verdadeiro e incontestável, que isso é assim no quadro da
nossa ordem jurídica.

Em primeiro lugar, no artigo 51º, nº1 do CPTA fala-se em atos que produzem efeitos jurídicos, efeitos
externos numa situação individual e concreta. Sendo que aqui, o legislador acha que o efeito externo
é muito importante, porque o “externo” dá uma noção um bocadinho restritiva e segundo o Senhor
Professor Vasco Pereira da Silva não dá nada. Um ato produz, simultaneamente, efeitos internos e
efeitos externos e não há nenhum ato interno que não tenha também efeitos externos.

129
Portanto, o que está, realmente em causa é a capacidade de produção de efeitos numa situação
individual e num caso concreto. É esse ato que aparece no art.51º/1 CPTA e que está conforme à
noção de ato administrativo do artigo 121º do CPA. Portanto, é um ato que não é necessariamente um
ato de definição do direito.

No Direito Administrativo haverá muito poucos casos de atos que são definição do direito, porque a
administração usa o direito para satisfazer necessidades coletivas. É um ato de satisfação de
necessidades coletivas que é jurídico – não é um ato de definição de direito, pois tal consubstanciaria
uma sentença. Isso poderia levar à confusão tradicional entre ato administrativo e sentença, daí essa
ideia de definitividade ter deixado de existir.

Mas o legislador não se fica por isso, porque tradicionalmente dizia-se que havia aquilo a que, por um
lado, em primeiro lugar, o Professor Marcelo Caetano e depois o Professor Freitas do Amaral
chamavam a tripla-definitividade, ou seja, a definitividade horizontal. Tal significava que só era
impugnável um ato que punha termo a um procedimento, e os restantes eram irrelevantes; estes
podiam ser conhecidos a propósito desse ato, mas não podiam ser autonomamente impugnados. Por
outro lado, a definitividade vertical significava que o ato tinha que ser praticado pelo órgão do topo da
hierarquia, e portanto era a última palavra da Administração em termos hierárquicos.

E a definitividade material que correspondia à definição de direito realizada pela Administração.

Ora, se analisarmos as normas do CPTA, cada uma dessas características é expressamente afastada.
Nesse sentido, o artigo 51º prevê que, ainda que não ponham termo a um procedimento, são
impugnáveis todos os atos administrativos. O que significa que o particular agora tem um direito de
escolha - pode escolher impugnar o ato inicial do procedimento, o ato intermédio ou o ato final.
Qualquer ato, desde que lesivo (é o critério constitucional) é suscetível de ser impugnado. A lesão não
é uma característica substantiva do ato, é algo que resulta da posição do ato.

O ato que lesa independentemente de qual seja ele é susceptível de impugnação e, portanto, não há
aqui nenhuma categoria substantiva, logo não há que “substantivizar” o ato processual. Acrescenta-se
que não há sequer necessidade de se falar em ato regulador, como refere alguma Doutrina,
designadamente, o Professor Sérvulo Correia e o Professor Viera de Andrade.

130
Já o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva entende que não há que teorizar sobre o ato processual.
O ato processual é o ato administrativo sem mais, que no momento está a lesar o direito do particular
e, portanto agora há uma possibilidade de escolha do particular.

Para que essa possibilidade de escolha seja real é preciso fazer com que valha a pena o particular
impugnar o momento que quiser - aquele que for o mais chamativo, aquele que for o mais lesivo dos
seus direitos. Dado que, se o particular impugnar um ato inicial ou um ato intermédio no procedimento,
é possível, posteriormente, chamar os atos futuros ao processo e este nunca será prejudicado por
impugnar esse ato inicial porque o ato subsequente do ato anulado é nulo e, portanto, o particular pode
fazer essa escolha

Mas, era preciso garantir também a situação contrária: se o particular não tivesse impugnado um
ato, ele não seria afastado da possibilidade de impugnar - caso, por exemplo, tivessem passado os
prazos de impugnação dos atos anteriores, pelo que já não poderia ser apreciado. O nº4 do artigo 51º
define que o particular pode sempre impugnar o ato final, mesmo quando não tenha impugnado
os atos anteriores e a propósito desse ato final, o particular vai analisar todas as situações que
resultam daquela situação jurídica que foi provada.

No âmbito da versão original de 2004 essa opção era total. Com a reforma de 2015, o legislador decidiu
introduzir uma ligeira limitação que, apesar de não ter alterado a regra, introduziu uma nova limitação,
que o Professor Vasco Pereira da Silva entende que é desnecessária.

Esta limitação é relativa aos atos que não são finais. E estabelece que, os atos que não são finais só
podem ser impugnados durante o procedimento e, caso termine o procedimento e for, mesmo assim,
for praticado o ato final, o particular deixa de ter escolha e passa a ter de impugnar obrigatoriamente
unicamente o ato final - apesar de, a propósito desse, ato final poder suscitar questões de invalidade
relativas aos atos anteriores – (51/3 14).

Na perspectiva do Professor Vasco Pereira da Silva, esta limitação não faz qualquer sentido. Contudo,
tal limitação não põe em causa a regra de que qualquer ato, em qualquer momento do procedimento,
na medida em que seja lesivo, é susceptível de impugnação contenciosa. O que o legislador optou por
fazer foi, verdadeiramente, afastar a regra da definitividade horizontal.

131
Diferentemente, existe bastante discórdia e discussão quanto à definitividade vertical. Desde a
Revisão Constitucional de 1989, que o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva entende que exigências
como a do recurso hierárquico necessário ou da reclamação necessária são manifestamente
inconstitucionais.

E são manifestamente inconstitucionais, porque, primeiro violam o princípio do acesso à justiça, ao


estabelecerem um pressuposto, ou seja, uma condição que a Constituição da República Portuguesa não
permite. Esse pressuposto é: primeiro tem que esgotar a via administrativa. Para o Senhor Professor
Vasco Pereira da Silva, não faz sentido estabelecer este pressuposto, que veio de uma lógica de
confusão entre a Administração e a Justiça (no tempo do administrador-juiz), se tal colocar em causa
o direito de acesso. Isto porque a consequência a retirar deste pressuposto era a de que, se o particular
não tivesse impugnado administrativamente, não podia impugnar contenciosamente.

Para além disso, tais exigências limitam de forma inconstitucional o exercício do direito de acesso à
justiça – estabelecem uma restrição inadmissível ao conteúdo do direito – pois a exigência do recurso
hierárquico necessário significa que o prazo normal de impugnação, que é de dois meses, fica
reduzido a um mês, que é o prazo da impugnação necessária. Portanto, se o particular não
impugnava pela via administrativa dentro de um mês, não poderia impugnar contenciosamente. Em
virtude deste argumento, tais exigências são inconstitucionais e violam o princípio da tutela efetiva do
direito de acesso aos tribunais (consagrado no art. 268º/4 CRP), segundo o pensamento do Professor
Vasco Pereira da Silva.

O Professor Vasco Pereira da Silva explica ainda que considera tais normas inconstitucionais pelo
facto de violarem o princípio da separação de poderes, ao fazerem depender uma possibilidade de
interpor uma ação, da prévia interposição de uma garantia administrativa - essa garantia é facultativa,
mas pode não ser necessária, sob pena de pôr em causa o princípio da separação entre a Administração
e os Tribunais.

O quarto argumento é que essa disposição também viola o princípio da desconcentração


administrativa. Se há desconcentração administrativa, então o subalterno praticará o ato que produz
todos os efeitos jurídicos, incluindo o efeito da possibilidade de impugnação.

Não há, do ponto de vista constitucional, nenhuma razão para que essa realidade se mantenha. O CPTA
- que era o local adequado, caso se entendesse que isso correspondia à Constituição, para consagrar

132
esse pressuposto processual - não inclui nenhuma destas normas. Nos artigos 51º e seguintes do CPTA,
não é feita nenhuma referência à necessidade de impugnação administrativa e, perante isto, o
Professor Vasco Pereira da Silva, que anteriormente já defendia a inconstitucionalidade dos
recursos hierárquicos e das reclamações necessárias, diz, agora, que estas também são ilegais
porque não estão consagradas no CPA.

Por seu turno, os Professores Freitas de Amaral e Mário Aroso de Almeida, - embora concordassem
com o Professor Vasco Pereira da Silva, quando este defende, que o recurso hierárquico necessário
e a reclamação necessária tinham sido afastadas pela nossa ordem jurídica, por não terem sido
recebidas no CPTA - entendem que, a título excecional, quando o legislador expressamente o
dissesse, que havia lugar a uma dessas garantias administrativas. Em suma, que estas poderiam
continuar a ser exercidas. O Professor Vasco Pereira da Silva não concorda com esta posição, na
medida em que, se o legislador afasta fá-lo para todos os casos e ainda por cima porque, se
tratava de uma realidade inconstitucional.

Mas estávamos no quadro desta discussão, quando surgiu a Reforma de 2015, que correspondeu a uma
alteração do CPA e uma alteração do CPTA, neste último não se fez qualquer referência ao recurso
hierárquico necessário ou à reclamação necessária, mas no CPA fez-se.

Em 2015, o CPA determinou que em termos limitados e excepcionais, que em casos expressamente
previstos pelo legislador, poderia haver recurso hierárquico necessário ou reclamação hierárquica
necessária. Perante isto, a reacção do Senhor Professor Vasco Pereira da Silva foi defender que esta
norma do CPA é inconstitucional. Ademais, defende que isto deve ser afastado.

Embora o CPA tenha surgido consagrando esta “exigência”, a seguir o CPTA, que é o sítio onde esse
pressuposto processual deveria estar contemplado, não o contemplou. Conclusão a retirar: o legislador
se arrependeu e decidiu ”remediar” o seu erro. Por outras palavras, o legislador revogou o pressuposto
processual que tinha incluído na reforma do procedimento.

Portanto, para além de inconstitucional, na nossa ordem jurídica, a reclamação e o recurso


hierárquico necessário são também ilegais, uma vez que não estão previstos como pressuposto
processual de impugnabilidade e era essa a única razão que sustentava a impugnação necessária.

A impugnação de atos só é necessária para permitir o acesso à justiça, se não for prevista como
pressuposto processual no CPTA, feito a seguir ao CPA, é sinal de que se tornou desnecessária.

133
Não deixam de existir casos excecionais, em que o CPA consagra essa impugnação necessária. O
professor Vasco Pereira da Silva considera que esses casos além de inconstitucionais, são casos de
impugnação desnecessária porque a sua única necessidade era a abertura do processo e essa
necessidade não se verifica. (23)

Mas o legislador não ficou por aqui e por isso é que o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva entende
que se pode dizer que a impugnação e o recurso hierárquico necessário são ilegais. Dado que, se lermos
as normas seguintes, que falam dos prazos de impugnação, estabelecesse-se que quando o particular,
nos termos do artigo 59º/4, pede a impugnação administrativa antes de pedir a impugnação
contenciosa, estabelece o que não se fazia antes: que isto tem o efeito suspensivo da contagem dos
prazos para a impugnação contenciosa, o que significa que não só a impugnação administrativa e
contenciosa são alternativas, como há vantagens em impugnar pela via administrativa, porque
suspendem os prazos da impugnação contenciosa.

Para o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva há algum sentido útil na tal “necessidade” que refere
o CPA. Não se trata, contudo, de uma necessidade para impugnar contenciosamente, mas sim de uma
possibilidade. Ou seja, isso permite ao particular que haja um efeito de natureza suspensiva. Mas o
que é o mais importante, é o que se diz no nº5 do art. 59º, que mostra a alternatividade e a irrelevância
da necessidade. O nº5 diz que a suspensão de prazo prevista no número anterior (ou seja, no nº4 do
art. 59º) não impede o interessado de proceder à impugnação contenciosa. Ou seja, o particular não
está nunca impedido quer use a garantia administrativa, quer use a garantia contenciosa, de
usar apenas a garantia contenciosa. Mais, caso tenha usado a garantia administrativa não precisa
sequer de esperar pela resposta da Administração e pode imediatamente ir a tribunal para pedir a
impugnação do ato, bem como a adoção de medidas cautelares - como estabelece o artigo 59º/5

Isto é a prova provada de que na nossa ordem jurídica as reclamações e os recursos hierárquicos não
apenas são inconstitucionais, mas são também ilegais15. Além de não serem um pressuposto
processual, aquilo que o CPTA consagra a este respeito é a ideia da alternatividade, ou seja, a ideia de
que, mesmo quando o particular use a garantia administrativa, nos termos do artigo 59º/5, não fica
impedido de usar apenas a garantia processual, sem a necessidade de ter que esperar por uma resposta
da Administração.

15
Segundo o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva

134
Reitera-se, mais uma vez, que estas impugnações necessárias são inconstitucionais, ilegais,
desnecessárias e inúteis, pois não produzem efeitos. E a razão porque não produzem efeitos é que, se
olharmos para a prática dos órgãos para quem se reclama ou para quem se recorre, visto que se tratam
dos órgãos dotados de competência que anteriormente emanaram o ato, é previsível que nunca alterem
a decisão inicial. Portanto, tais impugnações não produzem quaisquer efeitos de proteção do particular
ou sequer de evitar que o caso vá a juízo, porque a Administração corrige as principais ilegalidades.

Segundo o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva, se os responsáveis pela elaboração do CPA,
queriam dar alguma importância às impugnações administrativas, mesmo sendo voluntárias, não
deveriam ter insistido nesta ideia de que as reclamações e os recursos são decididas pelos órgãos
dotados de competência. Uma vez que, estes já decidiram e não vão mudar a posição, quanto mais não
seja para não dar a face de estar a criar problemas; para “fingir” que mantém a decisão que foi
“correta”, mesmo quando sabem que foi ilegal. É, infelizmente, uma realidade que é genérica em face
da realidade portuguesa e da administração portuguesa16.

Se os ditos responsáveis queriam dar alguma importância às impugnações administrativas, fazer com
que elas fizessem algum sentido, mesmo sendo voluntárias, o que deveriam ter feito não era estabelecer
a necessidade. Era estabelecer que essas impugnações administrativas, à semelhança das garantias
administrativas do sistema anglo-saxónico, são posta perante órgãos independentes, porque são órgãos
independentes como tribunals e agency norte- americanas que reapreciam a atuação anterior. Se são
os mesmos órgãos que atuaram ou que poderiam ter atuado e o responsável máximo pelo exercício
daquelas competências, a fazer a reapreciação, nunca há uma reconsideração. Portanto para além de
inconstitucionais e ilegais , estas impugnações administrativas necessárias são inúteis, segundo o
Senhor Professor Vasco Pereira da Silva.

O Senhor Professor Vasco Pereira da Silva entende que não há nenhuma razão (a não ser os traumas
da infância difícil) para se defender que, ainda a título muito excepcional, quando o legislador o diz
expressamente e só em casos em que o seja admissível do ponto de vista constitucional, que pode haver
impugnar necessária. O CPTA, por seu turno, afastou de forma inequívoca essa necessidade. Não há
nenhuma referência às impugnações administrativas, o regime legal constante dos artigos 51º e
seguintes e, em especial os artigos 59º/4 e 5 demonstram de forma clara que tais instrumentos são
ilegais.

16
Segundo o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva

135
Quanto à matéria da definitividade material, o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva entende mais
uma vez que não faz sentido algum. A Administração não define o direito, a Administração usa o
direito para satisfazer necessidades coletivas. Esse equívoco provém dos traumas da infância difícil,
da confusão entre Administração e Justiça. Aqui, o que faz o ato administrativo é a produção de efeitos,
nem sequer é ser regulador.

A Escola de Coimbra e a Escola de Lisboa17 falam na ideia de ato regulador, para se referirem
ao ato que produz novos efeitos/efeitos criadores.

Por outro lado, o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva entende que, nada disso é relevante, e
que qualquer atuação, mesmo que não tenha conteúdo jurídico – o ato do operador aéreo que está
na tutela e que não faz a mínima ideia que está a praticar um ato administrativo, nem qual é o regime
jurídico que ele está a praticar ao autorizar que os aviões aterrem e desloquem, em razão do controlo
de regras meteorológicas e em razão do funcionamento da pista. Ora, para o Senhor Professor Vasco
Pereira da Silva, não estamos aqui perante uma definição do direito, pois no exemplo o senhor não faz
a mínima ideia do que é o direito e não tem nenhuma obrigação de saber. A Administração tem de
satisfazer as necessidades colectivas. Efectivamente, a Administração pratica atos jurídicos, que
produzem efeitos jurídicos, mas não o efeito regulador.

Surpreendentemente, o Professor Mário Aroso de Almeida veio retificar que afinal a sua posição
é mais próxima da tese do Senhor Professor Vasco Pereira da Silva, do que da tese do ato
regulador, com a qual no passado tinha concordado, aquando dos textos de homenagem do Professor
Rogério Soares. O Professor Vasco Pereira da Silva considera que, o Professor Mário Aroso de
Almeida, está numa posição intermédia, que já não é a do ato regulador, mas que também não é apenas
a do ato produtor de efeitos jurídicos. Aliás, nos textos referidos18 e no seu próprio Manual, o Professor
Mário Aroso de Almeida refere que, o principal problema tem a ver com os projetos de arquitetura,
que segundo ele não constituem atos. Em resposta a tal posição, o Senhor Professor Vasco Pereira da
Silva não percebe tal justificação, já que a aprovação de um projeto de arquitetura é um ato intermédio
de um procedimento urbanístico. Mas então, porque é que esse não é ato e os outros são?

O Senhor Professor Vasco Pereira da Silva queria encontrar uma diferença entre a sua posição e a
posição do Professor Mário Aroso de Almeida e considera, ainda, que se for apenas a supra
mencionada, não é uma grande diferença.

17
Professor Sérvulo Correia
18
Textos em Homenagem do Professor Rogério Soares

136
Portanto, talvez esta ajuda teórica, desta conversão à noção ampla de ato administrativo do Professor
Mário Aroso de Almeida, tenha contribuído para que não resulte das disposições supra mencionadas
nenhuma consagração dessa dimensão restritiva.

O Código, também, de alguma maneira afasta essa ideia de que o ato tem que ser definição de direito
ou que tem que ter um conteúdo regulador, precisamente pelo que estabelece o artigo 53º. O artigo
estabelece, que os atos de execução (os atos que executam o ato anterior. Onde é que está a

decisão? No ato anterior.) podem ser impugnados. Tal como, os atos confirmativos que não sejam
meramente confirmativos, mas os atos que confirmem um ato anterior e consequentemente os seus
efeitos não são novos, nos termos do artigo 53º são impugnáveis. A definição de direito deixou de ser
um critério relevante em matéria de impugnação.

Por último, quanto à executoriedade, tal referência desapareceu da nossa ordem jurídica há muito
tempo. O seu desuso deveu-se à sua inconstitucionalidade, mas também pelo facto de a Administração
hoje em dia gozar dos poderes de execução quando a lei expressamente os atribui, como há casos de
execução proibida. Essa discussão já desapareceu, segundo o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva.

O CPA afastou completamente qualquer expressão que tivesse a ver com o ato executório.
Anteriormente,19 havia uma norma que previa a executoriedade, mas terá sido eliminada do CPA e,
por isso mesmo, não se fala na executoriedade, nem no CPA, nem no CPTA, até porque não é uma
característica do ato administrativo, embora este seja susceptível de imposição coativa contra a vontade
do particular. Segundo, o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva é algo que não faz sentido como
característica.

Havia no Manual do Professor Marcelo Caetano, quando explicava o ato definitivo executório, algo
que estava no texto e que era escrito pelo próprio e que dizia “o ato executório é um ato obrigatório
suscetível de execução coativa contra a vontade do particular”. E depois havia no âmbito das edições
posteriores do Manual, uma anotação em letra diferente20, na qual estavam os cometários do Professor
Freitas do Amaral. E se no texto se mantinha esta lógica do carácter executório, nas entre linhas deste
tal comentário do Professor Freitas de Amaral, dizia-se que havia no entanto um outro sentido pelo
qual podia ser entendida a questão da executoriedade, que é o sentido do Professor Rogério Soares21,
dizendo que a executoriedade corresponde apenas à eficácia do ato e, portanto, esse era o único

19
Na versão dos anos 90 do CPA
20
Aspetos que acrescentavam ao texto, mas com um tipo de letra diferente
21
Da Escola de Coimbra

137
sentido, que talvez em muitos casos ainda fizesse sentido, embora a executoriedade aconteça na
maioria dos casos.

Tal referência correspondeu à uma adoção de uma lógica intermédia, em que se admite que existe uma
situação que já não é aquela definida tradicionalmente, mas que mesmo assim implica uma limitação
relativamente a esta matéria.

Como o legislador não quis que ficassem dúvidas quanto a essa ideia de executoriedade correspondente
à eficácia do ato, plasmou no artigo 54º CPTA que são impugnados os atos ineficazes, (os atos que
não produzem efeitos jurídicos). Com isto, o legislador afasta de forma exata e determinada todas e
cada uma das características do ato que, até então se considerava o ato impugnável que é objeto do
processo administrativo. Com tudo isto, tem-se que, o legislador respeitou o preceituado no artigo
268º/4 CRP, que estabelece que a impugnabilidade em razão da lesão, ao usar tal preceito como critério
a utilizar no quadro desta matéria.

Segundo o Professor Vasco Pereira da Silva, curiosamente, o legislador não resiste em ter algumas
dimensões ideológicas de vez em quando. Como dito anteriormente22, a “reforminha” de 2015 é uma
reforma de professores e estes gostam muito de ver as suas ideias comtempladas na lei.

Ora, olhando para o artigo 51º do CPTA na versão de 2015, aprece a ideia do ato produtor de efeitos,
que corresponde a uma lógica não reguladora. Por sua vez, não aparece tal ideia, quanto ao ato lesivo.
Como referimos anteriormente, o ato lesivo encontra-se consagrado no artigo 268º/4 CRP, e, no
passado, também era consagrado na versão original do artigo 51º do CPTA – pergunta-se, então, qual
a razão de tal eliminação. A razão: o Professor Sérvulo Correia escreveu um artigo, no qual defende
que a lesão não é uma característica do ato, mas sim uma característica da legitimidade e que, a ideia
do ato lesivo só serve para efeitos de legitimidade.

O Senhor Professor Vasco Pereira da Silva não concorda com tal argumento, visto que uma coisa é
uma característica do ato, um aspeto do ato e isso tem a ver com a impugnabilidade, bem como dizer
que o ato que lesa tem a ver com a situação do ato relativamente ao particular. Outra coisa é a categoria
do particular que é lesado e que pode exercer no quadro da legitimidade o seu direito em juízo. Não
há razão para confundir estas duas coisas. Assim, se o particular é afetado por um ato que o lesa, esta
lesão decorre do ato e esta lesão torna-o parte legítima, por lhe permitir ir a juízo em razão dessa lesão.
Isto são duas realidades diferentes. A lesão em si decorre do ato e portanto, ponto de vista processual

22
Pelo Senhor Professor Vasco Pereira da Silva

138
é algo relacionado com a impugnabilidade do ato. A ideia de legitimidade respeita à categoria em que
o particular se encontra e que, no quadro de uma relação com aquele ato, que o lesa lhe permite ir a
juízo.

Tendo em conta o que o Professor Sérvulo Correia escreveu a este respeito, o legislador decidiu retirar
a menção da lesão do artigo 51º, para a colocar no artigo 55º, com isto, a lesão passou a ser caraterística
da legitimidade e não da impugnabilidade.

A este respeito, o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva discorda de tal alteração legal e entende
que esta alusão deveria estar inserida no artigo 51º, onde estava na Reforma de 2004. Apesar de a lesão
constar no artigo 55º, segundo o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva, na prática nada se altera,
visto que todo o regime está construído em função dessa lesão e se não estivesse mencionada nesta
sede, estava mencionada na Constituição.

Coloca-se a questão, então porque é que houve essa mudança? Devido à tal “reforma de
professores”. O que ocorreu foi que, o Professor Sérvulo Correia achava que aquela crítica era
fantástica e aproveitou o facto de fazer parte da reforma para a incluir no texto da mesma. O Senhor
Professor Vasco Pereira da Silva entende que o legislador não deve fazer isto. O legislador deve
estabelecer as melhores soluções possíveis e a doutrina é que as discute e as qualifica, mas infelizmente
muitos legisladores caem nessa tentação23.

Para além da impugnabilidade, existem outros pressupostos processuais que iremos analisar, sendo a
legitimidade um deles.

A legitimidade vem regular nos artigos 55º e seguintes do CPTA. No artigo 55º existe uma cláusula
de legitimidade ativa e, depois, nesta mesma secção da legitimidade parece-nos a questão da aceitação
e dos contrainteressados.

Em primeiro lugar, quanto à legitimidade ativa, o legislador repete praticamente tudo o que já tinha
dito no artigo 9º, portanto do ponto de vista formal, esta norma não devia existir24, uma vez que a
cláusula geral define a legitimidade em termos gerais, não havendo necessidade para se repetir tal
ideia. No entanto, o legislador aproveita a repetição para identificar, especificamente, os casos de

23
Que o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva entende ser Humana
24
Na opinião do Senhor Professor Vasco Pereira da Silva

139
legitimidade que são comuns a todas as outras situações e que talvez devessem ter sido consideradas
antes, não acrescentando, em regra, deste modo, nada. O Senhor Professor Vasco Pereira da Silva
menciona a palavra “regra”, porque também há um caso novo que devia estar qualificado antes, mas
que também aparece aqui.

Tem legitimidade para impugnar o ato quem tenha direito- tal como no artigo 9/1 CPTA; o
Ministério Público- (tal como no artigo 9/2 CPTA) a legitimidade no quadro da ação pública, que
cabe ao Ministério Público, “enquanto defensor de órfãos e viúvas”, segundo o Senhor Professor Vasco
Pereira da Silva; às entidades públicas e privadas, quanto aos direitos que defendam; estamos
também aqui na legitimidade da defesa de direitos, tantos as pessoas individuais, como as pessoas
colectivas tem direitos e tem interesses e portanto atuam para a tutela desses direitos e desses
interesses, não havendo aqui nada de novo. Também os órgãos administrativos têm legitimidade,
segundo o artigo 55º al.d) - naturalmente há relações interorgânicas.

O legislador aqui corrige o que tinha no artigo 10º e isto vale tanto para a legitimidade ativa, como
para a passiva. Para não existirem críticas de que o legislador decidiu contrariar a regra do artigo 10º,
de que decidiu incluir apenas na legitimidade ativa que os órgãos administrativos têm legitimidade
para impugnar atos praticados por outros órgãos da mesma pessoa coletiva pública, mas isto vale para
qualquer forma de legitimidade. Tal ressalva apenas institui que, nas relações interorgânicas, os órgãos
defendem os seus direitos e deveres no quadro da relação jurídica administrativa. Mais uma vez, não
há aqui nada de novo.

A alínea e) do artigo 55º é a única novidade deste preceito 25. Ao referir que os presidentes dos
órgãos colegiais são revestidos de poderes para impugnar as decisões dos órgãos que achem que são
ilegais. Esta norma é importantíssima12, pois a ideia de que o presidente tem que executar uma decisão
que considera ilegal, não faz sentido para o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva

Quem contribuiu para tal ideia foi o Professor Freitas do Amaral, talvez não pelas melhores razões. O
Professor Freitas do Amaral teve uma experiência enquanto presidente de um órgão colegial, que
considerava traumática. O órgão em causa era o Conselho Científico da Faculdade de Direito da
Universidade de Lisboa e nele o Professor Freitas do Amaral era confrontado com decisões que

25
O Senhor Professor Vasco Pereira da Silva considera-a ainda assim uma ligeira novidade
12
Segundo o Senhor Profrssor Vasco Pereira da Silva

140
considerava manifestamente ilegais. O Professor explica que por existir um presidente, esse não tem
apenas que executar as decisões, devendo também ter o poder de suscitar a apreciação pelos tribunais
do controlo da legalidade dos atos, quando considerar necessário.

Portanto, o que a alínea e) do artigo 55º vem consagrar é uma modalidade especial de ação pública –
isto acrescenta alguma coisa ao artigo 9º/2. Há aqui uma ação pública, dado ser a defesa da legalidade
e do interesse público que está aqui em causa, não é nenhum interesse subjectivo do presidente. Ou
seja, é uma modalidade especial e segundo o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva isto podia estar
contemplado no artigo 9º/2, não tendo que estar nesta sede (art. 55 al. e), até porque isto vale para
todos os casos e para todas as ações.

Por fim, a alínea f) limita-se a fazer uma remissão para o artigo 9º/2.

Em seguida o legislador esclarece que se mantém uma modalidade especial de ação pública, que era a
que tradicionalmente existia no nosso ordenamento. Dizia-se tradicionalmente, desde o século XIX,
em Portugal, que os habitantes de uma freguesia de um município gozavam do direito de ação pública,
em relação às decisões tomadas pelo Município. Para que não houvesse dúvidas que isso se mantinha,
o legislador manteve-a no artigo 55º, apesar de dever estar prevista na lei de ação popular. Não era
necessária estar plasmada no artigo 55º, quanto à legitimidade ativa. Além de que, ela está aqui em
termos mais restritivos – impõe alguns requisitos, nomeadamente que tem que ser titular de direitos
civis e políticos e cidadão eleitor e inscrito naquela autarquia local. Assim, estabeleceu-se restrições
para esse tipo de legitimidade, que já vinha do passado, mas que agora é uma modalidade especial de
ação popular. O Professor Vasco Pereira da Silva considera que o legislador não acrescentou nada.

O número 3 do artigo 55º acrescenta que “a intervenção do interessado no procedimento em que tenha
sido praticado o ato administrativo constitui mera presunção de legitimidade para a sua impugnação”
– estabelece, portanto, uma presunção de legitimidade. O Senhor Professor Vasco Pereira da Silva
entende que este preceito não faz sentido nenhum, uma vez que o legislador, no restante artigo, estava
a pensar em termos monistas e apenas quanto a este número adota uma perspetiva dualista. Assim,
como legislador não pode dizer que há continuidade26, porque tal seria uma violação constitucional,
opta por referir uma presunção. Isto é, na perspetiva do Senhor Professor Vasco Pereira da Silva, um
disparate absoluto.

26
Quem atua no procedimento, atua no processo

141
As regras da legitimidade procedimental e da legitimidade processual são autónomas e, o particular
que intervém no procedimento pode não estar interessado em intervir no processo. Além disso, pode,
também, intervir apenas no processo sem ter que intervir no procedimento, ou pode intervir em ambos.
Em cada uma destas realidades, perante a Administração primeiramente e depois perante o Tribunal,
de acordo com as regras do CPA, se estiver em causa o procedimento administrativo, ou de acordo
com as regras do CPTA, se estiver em causa uma realidade processual, a legitimidade é aferida caso a
caso e em função das regras aplicáveis, não existindo nenhuma necessidade de se falar em presunções,
porque isso não é nunca aplicado.

Relativamente à norma que trata da aceitação do ato - artigo 56º CPTA, o professor Vasco Pereira da
Silva expressa grande agrado, porque não concorda com ela. Tal preceito define que, se alguém aceitar
um ato, quer seja uma aceitação tácita quer seja expressa, não pode impugná-lo. Nesta sequência, o
Senhor Professor Vasco Pereira da Silva pergunta o que é que se entende por aceitação expressa e o
por aceitação tácita?

Com tal preceito, o legislador diz “não pode impugnar um ato administrativo com fundamento na sua
mera anulabilidade quem o tenha aceitado expressa ou tacitamente depois de praticada” e a seguir
define ambas as aceitações. A aceitação tácita deriva da prática espontânea e sem reserva de facto
incompatível com a vontade de impugnar.

O Senhor Professor Vasco Pereira da Silva pergunta o que é este facto incompatível com a vontade de
impugnar? Porque é que o Professor considera que isto não faz sentido? Porque a

administração exerce direitos potestativos e, portanto, os atos produzem imediatamente efeitos


jurídicos na esfera do particular. Suportar o ato é o que faz qualquer cidadão - o cidadão não tem que
aceitar ou deixar de aceitar, visto que os efeitos se produzem imediatamente na sua esfera jurídica-
não estamos perante um ato reptício. Segundo o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva, se a polícia
me diz “faz isto”, eu tenho que fazer, depois de fazer é que posso dizer “isto é um disparate, vou a
tribunal”.

O Senhor Professor Vasco Pereira da Silva considera que não há nenhuma necessidade de criar um
pressuposto processual, que pode fazer sentido no direito privado, mas que não faz no direito público,
reiterando ainda que tal não é aplicável e que não tem qualquer sentido estar plasmada tal norma no
âmbito do processo administrativo.

142
Importa ainda acrescentar algumas notas acerca da defesa, que o Professor Vieira de Andrade faz a
esta norma27. O Professor Viera de Andrade entende que isto é algo novo, relativo à tal dimensão
subjetiva que não existia antes, e que tal é muito relevante. Segundo o professor, o particular tem de
demonstrar se concorda, tácita ou expressamente, mas que isto realmente não tem nada a ver com
legitimidade, é antes um pressuposto processual atípico, ou seja, um pressuposto processual novo que
o código criou e que tem um grande interesse e grande aplicabilidade.

Todavia, segundo o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva, o Professor Viera de Andrade não
raciocina, contudo, sobre a questão de estarmos perante um direito potestativo, nem equaciona
exemplos que possam corresponder à aplicabilidade efetiva desta norma.

O Senhor Professor Vasco Pereira da Silva concorda com o Professor Vieira de Andrade, quando este
menciona que isto não tem nada a ver com legitimidade. Uma vez que a legitimidade é uma situação
do particular que perante aquele ato que o lesa lhe permite ir a juízo e, portanto, isto não tem nada a
ver com legitimidade. Por seu turno, se admitíssemos que tal ideia faz sentido, também não era preciso
inventar um pressuposto processual atípico – se assim fosse, tal corresponderia ao pressuposto da falta
de interesse processual, porque o particular que tinha interesse em impugnar vinha dizer que não tinha
interesse em impugnar tal ato. Se esta orientação fosse válida seria enquadrada nos termos do artigo
39º e corresponderia ao pressuposto processual do interesse em agir, mas o problema não é esse. O
problema é que não faz sentido admitirmos que existam factos incompatíveis com a vontade de
impugnar, por estarmos perante direitos potestativos, em que a possibilidade de o particular impugnar
um ato corresponde a um direito fundamental. O particular tem um direito fundamental de
impugnação, que pode corresponder a direitos fundamentais que foram anteriormente alegados. Tais
direitos são indisponíveis, pelo que mesmo que o particular aceitasse, nada impedia o Ministério
Público de substituir do particular e de levar o processo a tribunal.

Esta ideia de que isto pode valer como pressuposto processual é algo que, do ponto de vista do processo
administrativo não faz sentido, porque os direitos de que estamos a falar, são de natureza potestativa
– produzem imediatamente efeitos na esfera do particular e portanto o particular suporta sempre na
sua esfera os resultados da atuação administrativa. Em alguns casos, a lei considera mesmo que o

27
Feita em nos estudos de Homenagem ao Professor Rogério Santos

143
particular tem de os suportar. Qualquer particular tem, no âmbito de uma relação protestativa, de
aceitar os efeitos que decorrem do ato.

O artigo 57º CPTA é um exemplo de um preceito que define uma boa solução legal, mas que foi
erradamente apelidado. Conforme a norma, quem se colocar do lado da administração é uma parte – o
particular que tenha um direito similar à administração. “Contrainteressados” é um título que pouco
diz sobre o preceito, mas não deixa de constituir uma solução boa.

Depois, em relação aos prazos, os artigos 58º e seguintes do CPTA tratam de tal matéria. É importante
ressalvar que, a matéria dos prazos de impugnação foi, em tempos, um assunto “tabu”28 no direito
contencioso administrativo. Em consequência, dos prazos legalmente impostos, perderam-se imensos
processos, pois bastava entregar-se a impugnação no dia a seguir ao prazo para não ser válida tal
impugnação.

É um tabu inultrapassável do processo administrativo, que deixou de fazer sentido a partir do momento
em que se passou a utilizar o formato digital ou eletrónico para realizar o envio das impugnações.
Efetivamente, isto era um tabu e gerou problemas graves de casos perdidos porque o carimbo dizia
“meia noite e um minuto”.

É preciso dizer que os prazos eram curtos e, quando toda a gente fala da Reforma e das vantagens que
esta traz em termos de prazos, toda a gente diz apenas que se aumentaram os prazos, não se
acrescentado mais nada. Segundo o Professor Vasco Pereira da Silva, efetivamente houve um ligeiro
aumento, no sentido em que, se olharmos para estas regras dos artigos 58º e seguintes, diz-se aqui que
o prazo normal é de 3 meses ou de um ano, quando se trate do Ministério Público e, anteriormente, o
prazo era de 2 meses, o que significa que, se passou de 2 meses para 3, mantendo-se o prazo de um
ano aplicável ao Ministério Público, havendo aqui uma ligeira diferença.

Mas, não é isto que é importante, pois o que importa realmente é que passou a ser possível entregar,
por exemplo, à meia-noite e um minuto ou no dia seguinte, ou até mesmo na semana seguinte, desde

28
Quando um estagiário chegava a um escritório que fizesse contencioso administrativo, a primeira coisa que era feita,
era explicar-lhe todos os prazos, mostrar-lhe as tabelas e destacarem-se esses estagiários para irem aos correios no último
dia de entrega do prazo para obterem um carimbo dos correios. Tinha que entrar até às onze horas e cinquenta e nove
minutos porque se entrassem às doze horas tinham apresentado fora do prazo a impugnação. E perderam-se imensos
processos por causa desta realidade.

144
que haja razões justificadas e, anteriormente, nunca havia razões que justificavam esta ultrapassagem
do prazo.

Assim sendo, aquilo que verdadeiramente corresponde à mudança introduzida pela reforma em termos
de prazos é o facto de se dizer neste artigo 58º que se admite, nos termos do nº3, que a impugnação
seja apresentada fora do prazo, desde que existam razões justificativas: como o justo impedimento
nos termos da lei processual civil, como nos casos em que, no prazo de três meses, contado da data da
cessação do erro (quando houver um erro), se demonstre a tempestividade da apresentação e ainda
quando, não tendo ainda decorrido um ano sobre a data da prática do ato ou da sua publicação, o atraso
deva ser considerado desculpável, considerando a sua ambiguidade, o quadro normativo a aplicar e as
dificuldades no caso concreto. Ou seja, agora para além deste prazo de três meses, o prazo que é
verdadeiramente importante é o prazo de um ano porque entre três meses e um ano, o particular pode
invocar as causas de desculpabilidade do processo civil, da situação expressamente aqui prevista. Ou
seja, para o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva desapareceu o “tabu” dos prazos.

Isto ocorre não só porque os meios passaram a ser eletrónicos ao invés de manuais (já não sendo
necessário o carimbo que os estagiários tinham de colocar), mas também porque agora se permite que,
efetivamente, a impugnação decorra dentro do prazo de um ano. E, portanto, esta é a principal
alteração.

Mas, há outra29, de natureza substantiva30, pois no direito administrativo estava presente a ideia de que
o ato anulável tem um prazo para ser impugnado. Mas até aqui tudo bem, pois o prazo é um prazo
processual que se exerce ou não nos termos definidos pela lei. O problema é que se acrescentava (no
Direito Administrativo) a esta regra, uma outra regra que, nas palavras do Professor Vasco Pereira da
Silva é verdadeiramente inadmissível e que consistia na regra, de que o facto de ter deixado passar os
prazos tinha um efeito substantivo: o ato convalidava-se ao fim de um ano, independentemente da
sua ilegalidade, o que para o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva é uma coisa inacreditável.

Ora, isto não está correto, porque mesmo havendo um prazo para a impugnação, esse prazo apenas
produz efeitos processuais e não permite o uso da ação de anulação mas, não pode impedir o tribunal
de julgar ilegal aquela realidade que está em causa, sendo que, isto é o que se diz agora nos termos do
artigo 38º. Este artigo corresponde àquilo que o Professor Vasco Pereira da Silva defendia em razão
de uma série de casos que surgiram nos anos 80 e que, eram casos que vinham dos anos 70, de

29
Alteração
30
Que agrada bastante ao Senhor Professor Vasco Pereira da Silva

145
funcionários públicos que, no dia das greves universitárias em Coimbra, faltavam ao serviço e tinham
justificado a falta, mas que tiveram falta injustificada durante vários dias como punição e estes não
souberam, só descobriram quando pediram a contagem do tempo para a reforma porque julgavam que
tinham 40 anos e, afinal, só tinham 38 pois aquilo, associado a outras regras, tinha diminuído o prazo.
Portanto, ficariam sem a possibilidade de terem reforma o que, na visão do Professor Vasco Pereira da
Silva, é inadmissível.

Isto gerou um movimento, com uma série de pareceres, que referiam que o tribunal poderia a todo o
tempo julgar a ilegalidade mesmo que já tenha passado o prazo de um ano, sendo isto o que se diz
agora no artigo 38º. Tal artigo, estipula que, mesmo quando um ato se torna impugnável, pode ser
conhecido pelo tribunal. O tribunal pode conhecer sempre, a título incidental, da realidade que está
aqui em causa. Diz-se que nos casos em que a lei substantiva o admita, nomeadamente no caso da
responsabilidade civil, ou seja, nos casos em que se dizia que se o particular não tivesse impugnado
primeiro o ato, depois não poderia invocar a responsabilidade e tal não faz sentido porque não há
nenhum efeito convalidatório e, portanto, o particular pode pedir responsabilidade a qualquer tempo.
Mas, não é só nos casos da responsabilidade civil – o exemplo da reforma enquanto relação duradoura,
sendo tais atos ilegais, o tribunal poderia decidir que aquela falta como sanção não valia e, portanto,
os prazos deveriam ser contados tal e qual como seriam se não tivesse existido a prática de tal ato.

Posto isto, o Professor Vasco Pereira da Silva aprecia bastante o artigo 38º pois este retrata
exatamente aquilo que o Professor tem vindo a defender.

As consequências do artigo 38º são, que estamos perante um efeito meramente processual e, portanto,
este efeito processual impede o uso da ação de impugnação, mas não impede o uso de uma outra forma
de ação, como por exemplo, o uso da responsabilidade civil, não impede que noutros processos a título
incidental se verifiquem consequências de um ato administrativo ilegal anterior e não impede que o
juiz, a todo e qualquer tempo, se pronuncie sobre este ato.

Isto tem consequências processuais, dado que significa que não se pode dizer que o ato ao fim de um
ano se convalidou pois não houve, de facto, uma convalidação, no sentido em que, o ato continua a ser
ilegal mesmo que o particular já não possa impedir diretamente a sua atuação, pois mesmo não
podendo utilizar a ação de impugnação, este pode utilizar todas as outras ações e pode tutelar os seus
direitos. Não fazia sentido esta lógica de “milagre” que correspondia ao efeito de caso decidido. Uma

146
realidade que, de novo, era copiada do processo, mas que não tinha aplicabilidade, nem razoabilidade
no âmbito de uma realidade administrativa e de um procedimento administrativo.

Vejamos agora a condenação à prática do ato administrativo enquanto outra modalidade da ação
administrativa.

Também aqui temos a mesma lógica do legislador, no sentido em que regula todas as coisas e regula
como se fosse uma ação nova, ainda que, regule pouco. Segundo o Professor Vasco Pereira da Silva,
não faz sentido que as coisas sejam reguladas desta maneira , pois deveriam existir mais normas
comuns e, depois, normas mais especificas em relação a todas as ações de condenação. E, pode dizerse
que o legislador aqui, diferentemente do que fez em relação à impugnação, deveria ter estabelecido
mais normas.

Agora, aquilo que o legislador fez, fez bem pois este inspirou-se largamente no mecanismo do
processo alemão - “ação que cria um direito/obrigação” – esta ação, pela sua simples existência, cria
uma série de problemas em termos de processo administrativo, porque um dos princípios base que
estava por trás disto e que proibia tal ação, era o princípio da separação de poderes que era invocado a
“torto e a direito”, no sentido em que, a doutrina clássica usava e abusava deste princípio.

Ora, esta visão da separação de poderes não deveria ser invocada nestes casos porque o que aqui
acontece não é o juiz a praticar atos em vez da Administração. O principio da separação de poderes
era violado se o tribunal praticasse atos que não devia. Agora, quando o tribunal condena a
administração, que cometeu uma ilegalidade, a praticar um ato que esta já deveria ter praticado31, não
há aqui nada que esteja relacionado com a violação do princípio da separação de poderes, Portanto,
este mito que vinha dos tempo da infância difícil do Contencioso Administrativo é agora ultrapassado
por esta lógica das ações condenatórias.

É verdade que, mesmo na lógica clássica, se dizia que havia uma situação especial, que era quando a
Administração tinha o dever de praticar um ato sobre algum particular e esta preferia nada fazer. Se a
Administração fizesse um ato contrário à lei, este poderia ser impugnado e, portanto, ela prefere não
fazer nada. Assim sendo, aqui temos uma situação de desproteção do particular nos termos legais de
um processo que era meramente impugnatório, visto que estamos perante uma omissão por parte da

31
Ou que deveria ter praticado com um determinado conteúdo.

147
Administração. Questionava-se então como é que se resolviam estes casos em que a administração
prefere não praticar o ato32 e, nesta lógica inventou-se uma ficção do ato tácito de indeferimento: finge-
se que não praticar um ato, é praticar um ato de conteúdo negativo, finge-se que o particular pode
impugnar este ato de conteúdo negativo. Finge-se que o juiz olha para o nada, fingese que este vê um
ato negativo e anula este ato que não existe e, finge-se que, depois de anulado, a Administração pratica
o ato – isto era uma sucessão de ficções que não fazia sentido. E, precisamente porque isto era uma
sucessão de ficções, que não faziam sentido, eram muito raros os casos em que o

juiz decidia favoravelmente e, quando tal acontecia, não servia de nada porque a Administração
continuava a não praticar o ato. Assim, mesmo nesses termos limitados, isto era algo que não resolvia
os problemas.

Mas, o problema era outro e a solução do Código é mais adequada, porque a primeira interpretação,
quando se começou a falar na Reforma, era a de substituir esta ficção do ato tácito de indeferimento e
fazer uma ação de condenação perante atos omissivos. Contudo, não é isto que faz o legislador. Este
considera que esta ação tanto existe quando estamos perante uma omissão de praticar o ato que é ilegal,
como quando estamos perante um ato de conteúdo negativo. Assim, o legislador, à semelhança do
Direito Alemão, estabelece esta modalidade de condenação, não só para os casos de omissão, como
também para os casos de um ato de conteúdo negativo.

Para além disto, o legislador diz e bem, de acordo com o Professor Vasco Pereira da Silva, que se o
ato é parcialmente positivo, na parte em que é parcialmente negativo deve dar origem a uma sentença
de condenação e, portanto, nos termos do artigo 67º, nº1, c), o ato de conteúdo positivo que não
satisfaça integralmente a pretensão do interessado, na parte em que não satisfaz a pretensão do
interessado, é um ato de conteúdo negativo e portanto o particular deve usar de uma ação de
condenação. E portanto, “alargou-se” na sua máxima amplitude esta modalidade de ação, segundo o
Senhor Professor Vasco Pereira da Silva.

Na ótica do Senhor Professor Vasco Pereira da Silva, o legislador procedeu bem, com base no Direito
alemão, ao considerar que se está perante uma ação de condenação sempre que a Administração tem

32
Para fugir ao cumprimento da lei. Ou seja, esta para fugir ao cumprimento da lei preferia cometer a ilegalidade de não
praticar o ato.

148
o dever de praticar um ato e de dar uma resposta de conteúdo positivo, quando esta só é parcialmente
positiva.

Mas, há aqui um problema em relação a estes atos, que a Administração pratica e que não são omissões,
pois se esta pratica o ato, poder-se-ia dizer que há aqui um conflito entre a impugnação e a condenação
ou que há ou pode haver alternatividade entre uma e outra. Assim, o legislador decidiu tomar uma
posição acerca disto, posição esta que, na opinião do Professor Vasco Pereira da Silva, é correta,
porque o legislador vem dizer que no caso do particular, perante um ato de indeferimento parcial,
apresentar um pedido de anulação, quando devia ter apresentado um pedido de condenação, então nos
termos do artigo 51º, nº4, o tribunal convida o autor a substituir a petição, para o efeito de deduzir o
referido pedido de condenação.

Ou seja, nos casos em que o particular está perante uma ato de conteúdo negativo, ainda que
apenas parcialmente negativo e se incitou a impugnação, o juiz convida o autor a reformular a
petição e a substituir o pedido. Assim sendo, da perspetiva do Professor e em todos os casos, aquilo
que prevalece é o pedido de condenação, havendo aqui algum consenso doutrinário, embora existam
exceções.

O Professor Mário Aroso de Almeida diz que podem existir exceções a esta regra 33: são as situações
de uma relação jurídica continuada e, que, em situações excepcionais, segundo o mesmo, se justificaria
essa realidade. Nesta sequência, o Professor dá o seguinte exemplo: o particular recebeu um ato de
recusa de passagem de uma licença de construção e pretende construir, ainda que não imediatamente
e portanto, não precisa de pedir a condenação, pode pedir apenas a impugnação. No Direito Alemão,
isto é justificado para garantir que o particular não é absolvido da instância e nos casos de já ter passado
o prazo de condenação esta absolvição da instância ter o efeito de verdadeira absolvição do pedido do
pedido

Ora, a primeira coisa que é preciso dizer, antes de olhar para o caso, é que este prejuízo do particular,
por ter errado quanto ao pedido não se produz na nossa ordem jurídica, pois nesta só há uma ação e,
portanto, entre pedir a anulação ou a condenação, estamos dentro da mesma ação. E, portanto, as
razões que levam o Direito alemão a procurar salvar a anulação quando já se perdeu o direito a pedir
a condenação, não valem no Direito português, porque o particular apresentou o pedido, o pedido é é
errado. Assim, o que é preciso fazer, é assegurar que o particular possa substituir o pedido.

33
As situações que o Professor aponta são baseadas no Direito Alemão.

149
Também aqui a versão inicial do Código era diferente, porque dizia-se que o juiz a substitui, mas tendo
em conta que estamos no quadro do contraditório nos termos do artigo 95º, o juiz só pode convidar o
particular a substituir o pedido. Isto, por um lado, faz com que o particular substitua mas, por outro
lado, não põe em causa o princípio do pedido e, portanto, funciona nos termos habituais do
contraditório.

Agora, no caso de o particular requerer uma licença de construção, porque quer construir, mas não
querer construir logo, não ganha nada em pedir a anulação visto que, se tem a condenação, pode
construir quando quiser mas, se este anula, depois tem de pedir novamente a autorização no momento
em que quiser construir. E, portanto, pedir o menos não resolve o problema, porque pode pedir o mais
e isso é o que tutela integralmente a sua expectativa. Pedir o menos para não perder o direito faz sentido
apenas no Direito alemão, mas não no direito português em que a ação é una. Para o Professor Vasco
Pereira da Silva foi positivo terem acabado com a esquizofrenia das ações, e a vantagem é esta: estamos
no quadro da mesma ação, o que significa que, mesmo nas situações excepcionais em que podia haver
alguma alternatividade ainda que limitada, não são, para o Professor justificadas, nem justificáveis e,
por isso, tal não se verifica no quadro da realidade que está em causa

Mas, há ainda uma outra coisa, que faz com que o Professor aprecie bastante esta ação de condenação.
Está relacionada com o facto de não haver qualquer dúvida que o objeto do processo é o direito
do particular, porque se diz, designadamente, quando se define no artigo 67º, nos pressupostos
relativos ao comportamento da administração, que correspondem à regra da impugnabilidade, mas
aqui é os pressupostos relativos à situação de condenação, que é preciso distinguir os casos em que se
pede que a Administração pratique o ato e, portanto, o pressuposto é que não tenha sido proferida
decisão dentro do prazo legalmente estabelecido, prazo este que varia consoante o procedimento mas,
a regra na nossa ordem jurídica é o prazo de 90 dias. Além disso, dizse também que a ação pode
acontecer no âmbito de um ato de conteúdo positivo e aqui o que legislador diz, e que é
verdadeiramente importante, introduzindo esta dimensão subjetivista integral deste mecanismo
processual, é que, nos termos do artigo 66º, nº2, se diz que o objeto do processo é a pretensão do
interessado e não o ato de indeferimento, cuja eliminação da ordem jurídica resulta diretamente da
pronúncia condenatória. Ou seja, quando há um ato de conteúdo negativo, o juiz não se preocupa com
ato e não tem sequer de olhar para este e anulá-lo, tem é que perceber se este constitui o objeto do
processo e se este direito existe. Não é preciso anular o ato, ignorando o juiz este ato, pois o processo
é sobre a pretensão do interessado, não tendo de se ver se este é legal ou ilegal, sendo apenas importante
perceber se o interessado tem direito ou não e tem que condenar em relação a isso.

150
Esta é uma nova regra subjetivista integral, mas se isto é assim, então, ao falarmos de um outro
pressuposto que vem a seguir, que é o pressuposto da legitimidade, há restrições que o legislador devia
ter feito e ainda não fez. Isto erradamente porque, se o que está em causa no objeto do processo é o

direito do particular, isto significa que este processo, do ponto de vista da legitimidade, devia estar
limitado aos titulares de direitos/interesses legalmente protegidos e, o professor Vasco Pereira da Silva
até admite que pudesse haver ação pública, quando o Ministério Público, em caso de inabilitados
pudesse substituir-se ao particular no quadro da sua logica de tutela dos órfãos e das viúvas e atua-se
em nome de um direito, mas se não há direito não pode haver um processo que tenha por base um
direito do particular, pelo que, não faz sentido que haja ação pública generalizada. Mas, o legislador
aqui não foi coerente , em primeiro lugar porque neste artigo 68º refere a titularidade de um direito e,
apesar de tudo, limita ao Ministério Público, mas não tanto como o Professor Vasco Pereira da Silva
gostaria. O Ministério Público tanto pode atuar quando estamos perante uma omissão, quando estamos
perante um ato e, quando estamos perante uma omissão, este não precisa de fazer um requerimento.

No entanto, o problema do Senhor Professor Vasco Pereira da Silva quer em relação a esta
possibilidade Ministério Público, quer em relação à cláusula do nº1 al.f), é que esta legitimidade que
aqui aparece não é adequada para o processo nos termos do artigo 66º, nº2, dado que este tem como
objeto a pretensão do interessado/ um direito ou interesse para o particular. Pelo que, da perspetiva do
Professor, este alargamento da legitimidade faz com que, nestas situações, exista um objeto ilegal ou
impossível e, portanto, o Professor entende que, apesar de o legislador ter consagrado esta regra de
legitimidade, esta não permite que o autor popular atue, dado que o autor popular não tem direito e
não tendo direito não faz sentido que ele peça a ação- ele tem legitimidade para a pedido de
impugnação, mas não tem legitimidade para o pedido de condenação, porque nem o Ministério
Público, nem o particular atuam na defesa de um direito. De resto, esta formulação mostra que faz
sentido distinguir ação para defesa de direitos, nos termos do art. 9 nº1, e ação para defesa da
legalidade e interesses públicos, nos termos do nº2 e, portanto, confirmam aquela ideia de que faz
sentido a interpretação correctiva.

O Professor Vasco Pereira da Silva não vê que o mecanismo construído para a tutela dos direitos possa
ser utilizado para a ação pública e para a ação popular, em que não tutela dos direitos, pelo que temos,
nestes casos, uma situação de impossibilidade fáctica-jurídica que conduz à absolvição. Assim, o
pedido tem de ser apresentado pelo particular, pelas pessoas públicas ou privadas, pelos órgãos
administrativos, não podendo ser apresentados pelos presidentes de órgãos colegiais, visto que estamos
aqui perante uma modalidade especial de ação pública e, portanto, não é o presidente que tem um

151
direito34. Por tudo isto, o Professor entende que, nestes casos, estamos perante situações que levam à
absolvição do pedido, e não à absolvição da instância.

Depois, em termos de prazo, há esta equiparação entre o processo de impugnação que manda aplicar
o prazo de um ano e, segundo o Professor Vasco Pereira da Silva, tal não tinha de ser assim, mas, o
facto de o ser, havendo aquela cláusula do artigo 38º, não impede que por não ter apresentado o pedido
de condenação, dentro deste prazo deste ano, que o particular fique impedido de tutelar
jurisdicionalmente os seus direitos.

Para terminarmos a questão da condenação, há também uma norma que, para o Professor Vasco Pereira
da Silva é fundamental e mostra também que, para além do tabu da separação de poderes é preciso
enfrentar a ideia de que o juiz está limitado e de que há uma reserva da Administração no sentido de
dizer que esta está livre e que o juiz não poderia controlá-la.

Contudo, a verdade é que pode e pode fazê-lo de duas maneiras: em primeiro lugar, a lógica da
discricionariedade nos dias de hoje já não pode ser vista como uma exceção à lei e, portanto, havendo
qualquer vinculação o tribunal pode conhecer dessa situação e, o que se diz no artigo 3º, nº1 é
precisamente isso, ou seja, o juiz não pode conhecer de uma questão de mérito desgarrada da realidade,
mas quando essa questão mérito esteja associada a uma questão de ilegalidade, o juiz tem de a julgar.
Mas, aqui há mais do que isso, porque há possibilidade de o juiz julgar também no domínio do poder
discricionário, porque senão, vejamos o que se diz no artigo 71º quanto aos poderes do juiz – este
refere que quando a emissão do ato pretendido envolva a formulação de valorações próprias do
exercício da função administrativa e a apreciação do caso concreto não permita identificar apenas uma
solução como legalmente possível, ou seja, no domínio dos poderes discricionários, para além do juiz
poder sempre apreciar os aspectos vinculados do exercício desse poder, em relação aos aspectos
discricionários, começa por dizer-se que o juiz não pode determinar o conteúdo do ato a praticar35,
mas deve explicitar as vinculações a observar pela Administração na emissão do ato devido – aqui o

“mas” é que é importante, porque mesmo nos casos de poderes discricionários, apesar de o juiz não
poder determinar o conteúdo do ato a praticar, este pode dizer o que se pode ou não fazer, o que é ou
não é ilegal e pode até mesmo dizer que não há mais discricionariedade (aquilo a que se chama
discricionariedade reduzida a zero). No sentido em que a lei aparentemente estabelece uma
possibilidade de escolha e em razão das circunstâncias do caso concreto, essa escolha desapareceu.

34
O Presidente que tem um direito é um particular e portanto usa a ação para defesa de um direito
35
Que é poder discricionário

152
Assim, o juiz determina o modo de exercício do poder discricionário : dá orientações e indicações que
estabelecem regras contra o exercício do poder discricionário e, essas regras constam da nossa lei e,
portanto o legislador estabeleceu aqui uma realidade que permite o próprio controlo do poder
discricionário. O Professor Vasco Pereira da Silva aprecia esta ação de condenação, só tendo pena que
esta não tenha uma amplitude maior, que os particulares não façam mais jus desta e que também, às
vezes, os juízes se inibam de condenar, mas esta faz todo o sentido e é o pilar do novo processo
administrativo.

Depois, quanto à modalidade de impugnação de normas e de condenação à emissão de normas, estão


aqui dois pedidos, havendo por isso uma realidade estranha do ponto de vista da construção destas
normas. No entanto, há aqui duas coisas que são positivas: em primeiro lugar, é um ponto positivo o
legislador ter procurado regular a impugnação de normas em termos amplos e ter posto termo a uma
realidade esquizofrénica que existia na Reforma de 85 e que criou uma declaração de ilegalidade com
efeitos genéricos e uma impugnação administrativa em relação a regulamentos das autarquias locais.
E, portanto, agora temos uma impugnação administrativa de normas e a expressão “normas” até é uma
expressão mais ampla.

Na reforma de 2015, a propósito do regulamento, diz-se que este é geral e abstrato, ainda que, na
perspetiva do Professor Vasco Pereira da Silva, fosse melhor a versão anterior porque há, na nossa
ordem jurídica, atuações que devem ser normativas e cabem na expressão “de norma”, mas que não
são gerais e abstratas, são só gerais ou são só abstratas. Por exemplo, uma disposição que diga que, no
dia 25 de Abril, os comerciantes de Lisboa devem colocar um cravo na montra, é uma norma genérica,
porque se aplica a todos os comerciais, mas é concreta porque só se aplica no dia 25 de Abril. Assim,
as normas podem ser gerais e concretas, tal como podem ser concretas e abstratas. Por exemplo, uma
norma que estabelece as subvenções a atribuir ao Presidente da Câmara, neste caso estamos perante
um órgão unipessoal, a norma é individual, não é geral, mas é abstrata porque não se aplica apenas a
um Presidente da Câmara, como a todo e qualquer Presidente de Câmara. O legislador, ao falar em
normas, corrige o erro do CPA e o Professor propõe uma interpretação correctiva. Mas isto está
subjacente, a esta interpretação de norma, até porque um dos objetos principais do processo, que cabe
nesta referência às normas são os planos e estes ou são concretos e correspondem a uma propriedade,
mas sumidos em termos de generalidade, ou são individuais mas gerais e, portanto, quando olhamos
para o plano temos uma situação de um bem, é aquele bem concreto que está a ser regulado em termos
abstractos, ou o contrário, numa lógica de alternatividade entre a generalidade e a abstração

153
Ora, isto é correto e permite que, no âmbito da aplicação do processo, não haja dúvidas quanto aos
planos, pois, por vezes, estes têm normas individuais e concretas e essas são separadas. Esta é uma
regra que resulta da Constituição, e o artigo 72º e os artigos seguintes, distinguem a impugnação
de uma norma e a impugnação de um ato administrativo contido nesta. Porque, se for individual
e concreto, é um ato administrativo e então é impugnado nos termos das regras da impugnação e o
resto de acordo com as regras das normas, sendo este um aspeto concreto.

E é correto que se fale em condenação à emissão de normas, porque na versão de 2002 e 2004, havia
prurido em usar a expressão condenação na prática do regulamento e portanto dizia-se que era a
declaração da ilegalidade da omissão. E o Professor Vasco Pereira da Silva não concordava, dizendo
que isto era uma ação condenatória como outra qualquer.

Assim, os dois aspectos correctos são o facto de se falar agora em normas, e não em regulamentos, e
o facto de se falar em condenação à emissão de normas no artigo 77º.

Mas, se isto é correto, existem algumas outras coisas que ficam confusas no quadro desta reforma
porque há duas realidades que o legislador confundiu. Há uma realidade, que é a impugnação direta e,
portanto, aquilo que o particular vai pedir é que o juiz anule, e qualquer beneficiário que é afectado ou
que venha a ser afetado por aquele regulamento pode pedir a sua declaração de ilegalidade. Isto é algo
em que há um processo que tem uma legitimidade alargada e que vai decidir em razão daqueles
pedidos, a ilegalidade de uma norma que é geral e abstrata. Sendo este um processo que tem uma
componente necessariamente mais objetiva do um processo relativo ao ato que é individual e concreto.
Podendo o particular pedir diretamente a declaração de ilegalidade, tendo isto como efeito o
afastamento da norma da ordem jurídica nos termos do artigo 66º - com força obrigatória geral, ainda
que seja possível limitar os efeitos em termos similares ao que faz o Tribunal Constitucional quando
declara a inconstitucionalidade de uma norma. Esta é a primeira coisa que se pode fazer. E é aquilo
que pode ser invocado pelos intervenientes da simulação que querem impugnar as normas constantes
da declaração do Estado de Emergência. E, portanto, o que está aqui em causa é uma ilegalidade com
efeitos gerais ou abstractos que é impugnada e que tem efeitos também de afastamento dessa norma
da ordem jurídica

Mas, há uma outra possibilidade de reagir contra os regulamentos: que é o particular que impugna
o ato, mas este corresponde à aplicação de um regulamento e, portanto, o particular, para impugnar o
ato, vai pedir que seja apreciada a título incidental a ilegalidade do regulamento para a anulação do
seu ato.

154
E, neste caso, o juiz não afasta o regulamento da ordem jurídica. Portanto, não há este efeito
geral e abstrato da sentença. Neste caso, o que o juiz faz é considerar a ilegalidade do
regulamento para aquele caso concreto e anular o ato que aplica o regulamento e que, por isso,
é ilegal. Contudo, o legislador não viu isto e confundiu a apreciação a titulo incidental da ilegalidade
do regulamento com a declaração de ilegalidade, porque este refere, nas normas do artigo 75º que é
possível haver uma apreciação da ilegalidade que não produz efeitos gerais e abstratos e que produz
efeitos só para aquela situação em concreto o que, na ótica do Professor Vasco Pereira da Silva, é uma
visão estranhíssima, na medida em que, uma declaração para efeito do caso concreto não faz sentido.
E, o que o legislador deveria ter dito é que nestes casos esta apreciação incidental não se confunde
com a apreciação da ilegalidade. E, portanto, nestes casos há efeitos concretos, mas não há declaração
de ilegalidade.

Ora bem, isto era muito óbvio na versão de 2004 que, de resto, mereceu críticas generalizadas e a
“reforminha” de 2015 aqui teve alguma dimensão positiva, porque corrigiu alguns dos aspetos mais
nefastos desta realidade, embora não tenha resolvido integralmente o problema.

Se, agora o legislador já estabelece que a regra da declaração de ilegalidade é a produção de efeitos
gerais e abstratos, este mantém, no artigo 73º, nº2, que o particular pode obter a desaplicação da
norma pedindo a declaração da sua ilegalidade com efeitos circunscritos ao seu caso, sendo que isto
não faz sentido e aqui é que está a confusão entre a declaração que corresponde ao afastamento da
norma da ordem jurídica e a apreciação a título incidental. O que faz com que a sentença de anulação
do ato só produza efeitos no caso concreto, precisamente porque aqui o objeto imediato do processo é
uma norma36, sendo esta geral ou abstrata e, assim sendo, a declaração de ilegalidade tinha de ter
sempre efeitos gerais e abstratos, algo que o legislador não fez e deve ser criticado porque gera
indefinição.

Apesar de tudo isto ter melhorado, diz-se que o particular pode pedir a declaração de ilegalidade
quando a norma seja diretamente aplicável e torna-se esta uma realidade extensiva a todas as
modalidades de legitimidade. Além disso, também se permite que, à semelhança da declaração de
inconstitucionalidade, se tiver havido três casos concretos da não aplicação da norma a uma situação
jurídica, que o particular, tal como na fiscalização da inconstitucionalidade, pode pedir a declaração
de ilegalidade, tal como se diz que o Ministério Público e o Autor Popular também podem. Agora, o
que não faz sentido é que se continue a dizer que pode haver o pedido de declaração de ilegalidade

36
Enquanto que no outro caso é um ato, o ato é individual e concreto

155
com efeitos no caso concreto porque nesse caso, não há nenhum pedido, o que está em causa é a não
aplicação da norma para efeitos da impugnação do ato em questão.

Depois, em termos de realidades diferentes do habitual, temos os prazos em que pode ser pedida a todo
o tempo. Acresce ainda que temos uma regra37 quanto à declaração de ilegalidade que vem dizer que,
em princípio, o efeito é geral e abstrato e implica que seja possível retroagir ao momento anterior ao
da ilegalidade, mas que, por vezes, o juiz, se houver razões justificadas, pode limitar os efeitos da
retroatividade – é um esquema que se baseia naquele que existe em termos da fiscalização da
constitucionalidade.

Quanto à condenação à emissão de normas, aqui também havia um tabu e por isso é que não se
falava em condenação, mas a situação é exatamente igual pois, tal como na condenação à prática do
ato devido, há que distinguir duas situações. A situação em que o particular tem direito a uma atuação
da administração, isto é, tem direito a um ato administrativo, aqui tem direito a um regulamento. E,
portanto, há um dever de imitir um regulamento (exemplo: são os PDM’s). E, há um direito de obter
um ato com um determinado conteúdo. E, o facto de ser um ato ou um regulamento não afeta a
realidade que está em causa.

O legislador, no entanto, na primeira vez afirmava que isto era uma declaração de ilegalidade por
omissão, porque o particular não tem direito a um regulamento com um determinado conteúdo. Mas,
segundo o Professor Vasco Pereira da Silva, o particular pode ter direito, dependendo da configuração
legal – há duas realidades diferentes: o direito à pratica do regulamento e o direito à prática de um
regulamento com um determinado conteúdo. O particular pode pedir ao Tribunal Administrativo
competente que aprecie e verifique a existência de situações de ilegalidade por omissão, mantendo a
mesma formulação e a mesma regra, embora agora fale em omissão. Contudo, diz-se que quando
verifica essa ilegalidade, o tribunal condena a entidade competente à emissão do regulamento em falta,
fixando um prazo para que a omissão seja suprida. O que significa que, aqui não se trata apenas de
verificar, condenado o juiz à emissão do regulamento: pode ser apenas à emissão propriamente dita do
regulamento, como pode ser emiti-lo com um determinado conteúdo se o particular tiver, nos termos
da lei, direito a esse conteúdo.

37
Artigo 76º CPTA

156
Retomando a aula passada, estávamos no âmbito da ação administrativa relativa a normas jurídicas e
a regulamentos administrativos. Vimos que esta subespécie de ação era regulada através da junção de
dois pedidos: o pedido de anulação e o pedido de condenação, fazendo-a referir a normas
administrativas.

Ora, o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva saúda duas coisas na “reforminha” introduzida em
2015 e que alterou ligeiramente o texto inicial: por um lado, ter-se chamado “ação de condenação em
matéria de regulamento” àquilo que, na versão de 2004, se chamava eufemisticamente de “ação de
coação do regulamento omitivo”, ou seja, fazer de uma realidade que até aí era considerada meramente
símbolo de apreciação, como a sentença de apreciação, e transformá-la numa verdadeira ação de
condenação, admitindo pedido de condenação. Era algo que o Senhor Professor já defendia antes e
que o regulador veio a corrigir. Também o regulador, em 2015, resolveu algumas confusões que tinha
feito em 2004, embora não todas. Vejamos:

Melhorou as regras em matéria de impugnação. Para além disso, também parece correta, para o Senhor
Professor, uma opção que já vinha de 2004, de, por um lado, falarem em impugnação – e não falarem
na simples anulação de regulamentos – porque a noção de impugnação tem um conteúdo mais amplo
do que a simples anulação e permite as tais sentenças de caráter misto de que falámos a propósito da
ação de impugnação e, por outro lado, também parece correta a utilização da expressão

“norma” e da expressão “regulamentos”, sobretudo porque, na reforma de 2015, no Código do


Procedimento, o regulador alterou a definição do regulamento e diz que este tem que ser geral e
abstrato – na perspetiva do Senhor Professor Vasco Pereira da Silva isto não é correto, na medida em
que se deveria dizer “gerais ou abstratos”, porque basta uma dessas realidades.

A generalidade diz respeito aos destinatários e a abstração diz respeito às situações da vida. No entanto,
ninguém tem dúvidas de que, por exemplo, no regulamento que estabelece as ajudas de custo do
Presidente da República ou do Presidente da Câmara, ajudas de custo é uma norma. Enfim, não se
aplica apenas ao Professor Marcelo Rebelo de Sousa ou ao Dr. Henrique Medina, mas a qualquer
titular do cargo que esteja naquelas condições: é norma que, apesar de ser individual, é abstrata.

Também, ninguém dúvida que uma postura municipal que diga que, no dia 25 de abril, as lojas de
Lisboa devem colocar um cravo na montra, ou que, na véspera de Santo António, devem colocar uma
imagem do santinho na montra para festejar o Santo António, o Santo de Lisboa, é também é uma
norma, apesar de aqui ser concreta, é geral. Portanto, a noção de norma é uma noção que deve de ser
entendida em termos amplos. E, no caso do contexto administrativo, é particularmente importante,

157
porque a maior parte das normas que, por exemplo, dão origem às ações de condenação, são as relativas
a planos: planos diretores municipais, ações de condenação, etc. Para a emissão de planos diretores
municipais, o Ministério Público usa – e bem – da ação pública em todos esses casos.

Ora, a maior parte dos planos não são gerais e abstratos, sendo apenas gerais ou apenas abstratos,
porque, ou correspondem à situação jurídica do terreno para o futuro e, portanto, são concretos, mas
gerais (situações que regulam em termos genéricos de uma determinada situação, mas aplicam-se a
um momento concreto, a uma situação concreta); ou, na situação oposta, são individuais, mas
abstratos.

E ninguém põe em causa que estamos perante realidades de natureza normativa, portanto, mesmo
aqueles que, como o Senhor Professor, não fazem uma interpretação corretiva da norma do

Código Administrativo, estão habilitados no mundo da expressão “normas” – impugnação de normas


– a estender este mecanismo jurisdicional para além daquilo que é a noção restrita de regulamento.

É preciso salientar, também, que estes mecanismos, em matéria regulamentar, são relativamente
originais do Direito Português, porque em regra eles não existem ou só existem em termos muito
limitados.

A tradição francesa trata os regulamentos comuns aos atos administrativos e, portanto, usa os meios
de reação jurisdicional – contratos também contra regulamentos.

A tradição alemã faz com que não haja nenhum meio processual genérico em matéria de regulamento.
Há um meio específico em matéria de regulamento de urbanismo e da construção, mas, fora este
domínio restrito do Direito Alemão, não há nenhum instrumento genérico em matéria regulamentar,
pelo que ao proceder à sua consagração, o regulador português da reforma de 20022004 teve uma boa
ideia.

Para o fazer, o regulador indicou a Ordem 85 e duas fontes.

Em primeiro lugar falou de uma tradição que tinha sido interrompida no quadro da Constituição de
1933, que vinha do século XIX e permitia, nos diferentes Códigos Administrativos, a possibilidade de
impugnação de regulamentos autárquicos, o que significaria uma tradição do nosso ordenamento
jurídico para regular esta matéria. Veja-se que em 1933 houve tantos limites à impugnação que esta
tradição foi interrompida. Mas, há uma outra tradição que é invocada mais recentemente, se calhar,

158
mais efetiva, de fiscalização concreta da constitucionalidade e, mais do que isso, a possibilidade de se
passar da fiscalização concreta da constitucionalidade para a fiscalização abstrata.

Como se sabe, os tribunais julgam todos os casos em que consideram que há inconstitucionalidade,
sendo certo que haverá a intervenção do Tribunal Constitucional. Também há a possibilidade de o
Tribunal Constitucional declarar com força obrigatória geral – com efeitos para aquele caso concreto.
Por outro lado, há a possibilidade de o Tribunal Constitucional julgar com força obrigatória geral,
existindo três casos de não aplicação de uma norma que seja considerada inconstitucional. Na
sequência do pedido feito pelo Ministério Público, pode suscitar a questão da fiscalização abstrata da
constituição.

Ora, o mecanismo que se estabeleceu neste Código é muito similar ao que vigora no quadro da
constitucionalidade. De resto, o legislador faz referência expressa a isso, quer o Artigo 72.º, n.º 2,
quando distingue esta declaração por legalidade da declaração, quer noutras normas quando vai apelar
para as regras da declaração da inconstitucionalidade, havendo uma remissão, que também faz com
que no Artigo. 76.º se estabeleça, no âmbito da eficácia da sentença, declaração de legalidade, que é
similar àquela que o Tribunal Constitucional pode estabelecer. Se há uma declaração de ilegalidade de
força obrigatória geral, apaga todos os efeitos produzidos pela norma até esse momento. Se há essa
eficácia em termos genéricos, também se prevê a possibilidade de o juiz graduar os efeitos da sentença,
em razão de outros valores como a segurança jurídica, a equidade, o interesse público, excecional
relevo, podendo o juiz graduar os efeitos. Isto significa que estamos perante um sistema que se inspira
diretamente no sistema de fiscalização da constituição do direito.

Isto dito, há um problema que vem desde o início na relação deste mecanismo de impugnação, que
assenta no equívoco que foi melhorado na “Reforminha de 2015”, mas não foi ainda completamente
resolvido. Existem duas realidades que aparecem misturadas na declaração de legalidade, mas que são
realidades diferentes: uma ação de declaração de legalidade cujo pedido e a causa de pedir têm a ver
com a lesão, mas com a existência de uma ilegalidade numa norma, o que introduz uma lógica mais
objetiva neste tipo de contenciosos, o que é algo que não poderia deixar de ser assim – não é porque
estamos a impugnar um ato individual e concreto, mas um ato que é geral ou abstrato e, portanto, se
aplica a uma multiplicidade, pelo que é natural que a realidade do processo tendo terminado em termos
subjetivos tenha aqui uma componente objetiva muito grande. Até o Senhor Professor é capaz de
reconhecer isso. Ora, se assim é, o que está em causa tem a ver com as ilegalidades, mas essas
ilegalidades produzem efeitos numa decisão que é geral ou abstrata e, portanto, são efeitos mais amplos
do que se tratasse de uma impugnação do lado administrativo. E o resultado disto é, que quando

159
falamos em declaração de legalidade, a sentença deve ter força obrigatória geral. É um regime que está
produzido no Artigo 76.º como correspondendo aos efeitos deste mecanismo processual. Pode haver
posteriormente graduação de efeito, mas a regra é a força obrigatória geral. Estamos a falar de uma
norma jurídica, mas há outra coisa distinta, que corresponde a o particular pôr em causa um ato
administrativo que aplica um regulamento e, para avaliar acerca da validade do ato administrativo, ser
necessário verificar a legalidade do regulamento.

O Tribunal nestes casos aprecia, diretamente o ato e, indiretamente, o regulamento. Mas se considerar
que o regulamento é ilegal, o Tribunal não o afasta da ordem jurídica e não o aplica ao caso concreto,
mas anula o ato administrativo. Esta sentença é uma sentença que só produz efeitos para aquele caso,
mas isto não é uma declaração de invalidade, mas uma apreciação da ilegalidade para efeito da solução
do caso concreto. Isto não se confunde – ou não se devia confundir com a declaração de ilegalidade.
A declaração da ilegalidade é sobre as cláusulas regulamentares, incide sobre a norma administrativa
que está em causa, ainda que, incidentalmente, o juiz vá apreciar a validade do regulamento para efeito
do julgamento daquele ato administrativo.

Portanto, aqui estamos perante uma sentença no caso concreto e é isto que permite a tal ponte entre a
fiscalização concreta e abstrata. É que, se existirem três casos concretos de não aplicação de um
regulamento por ter sido considerado ilegal, então os particulares, ou o Ministério Público, podem
suscitar a apreciação desse regulamento. Portanto, há uma ligação entre as duas coisas, mas não há
confusão.

Desde 2004 que o legislador confunde as duas coisas – é ilógico porque, se está em causa a ilegalidade,
não é para o caso concreto. É para todos os casos que estão relacionados com a aplicação daquele
diploma. Esta conclusão, que era mais obvia em 2002/2004, levava a um absurdo que começava por
ser lógico. É um princípio de coerência e de consideração de que o legislador não diz coisas que não
estão corretas e que, quando as diz, é inconstitucional. Viola, também, o Direito da União Europeia.

Portanto, era um disparate, que o legislador corrige em parte. Agora permite a declaração de
ilegalidade em termos alargados. Diz-se no Artigo 73.º que, do ponto de vista da legitimidade
processual, pode ser impugnada uma norma por aquele que seja prejudicado pela norma – o
prejudicado alarga-se aos que possam vir a ser futuramente prejudicados, existindo, assim, uma ideia
de que o critério de interesse imediato pode ser futuro.

160
Portanto, diz-se – e bem –, de acordo com a lógica mais objetiva deste mecanismo, que a parte legítima
é aquele que é diretamente interessado ou que possa ser previsivelmente afetado com a norma num
momento próximo e, portanto, uma lógica que abrange também um interesse futuro.

Depois, o Ministério Público e os presidentes dos órgãos colegiais são referidos no n.º 2 do Artigo 55.º
– a lógica é a lógica geral de permitir que quer os interessados, no âmbito da ação de defesa de direitos,
quer ação publica, quer ação popular, possam atuar para pôr em causa os regulamentos. E esta realidade
também depende de estarmos perante uma norma que é imediatamente aplicada ou mediatamente
aplicada, dependendo de um ato de aplicação ao caso concreto. No n.º 2 o legislador de 2015 continua
a confundir a declaração com a aplicação no caso concreto.

Pode obter a declaração da norma com efeitos circunscritos ao caso concreto – um disparate segundo
o Senhor Professor. Ainda para mais, porque o legislador quis corrigir de 2015 e fala em desaplicação
da norma.

A apreciação incidental da norma é feita para impugnar diretamente pelo que o legislador confundiu
as coisas – tem interferências em termos de legitimidade e, porque se prevê que estas situações se
distingam consoante a norma, é diretamente aplicada. O particular está limitado à existência de três
casos concretos pelo que o legislador deveria ter distinguindo a desaplicação de invalidade.

Há um conjunto de regras em que continua por encontrar a sua formulação adequada e é uma pena,
pois sendo esta uma originalidade do Direito Português que faz todo o sentido, esta originalidade devia
ser coerente.

Já não aparece no Artigo 73.º nem no Artigo 72.º, mas volta a aparecer nos números 1, 2 e 3 e aparecia
em normas que já foram incidentalmente apreciadas naquele caso concreto.

O professor Mário Aroso só propôs alterações ao que está vigente quando as pessoas tivessem
discutido porque não tinha mandato para fazer isso. É discutível.

Na altura, ninguém discutiu o outro diploma que estava na base da discussão pública relativamente
aos regulamentos porque estava toda a gente mais preocupada com outros aspetos essenciais. O
legislador não tinha sido tão cuidado e tinha cometido esta incoerência no tratamento desta matéria.

Entre 2015 e 2019, alteraram isso, mas não assumiram o erro e a prova disso aparece na referência ao
Artigo 281 da Constituição da República Portuguesa, ou seja, parece que o problema é da Constituição
e não destas normas de impugnação da legalidade.

161
Não se discute a discussão constitucional, mas a dimensão normativa e uma maior realidade objetiva.
Continua a haver esta incongruência resultante da confusão entre declaração para o caso concreto –
que não faz sentido porque é inconstitucional e ilegal a apreciação com força para o caso concreto.

São coisas distintas que o legislador confundiu com o terceiro aspeto da declaração de ilegalidade.
Diferentemente do que se passa em matéria de contratos, a impugnação de regulamentos pode ser feita
a todo o tempo – algo que vem do passado. O Senhor Professor Marcello Caetano inclusive dizia que
isto corresponde a uma sanção jurídica que era a nulidade tradicional – que já não faz muito sentido
nos dias de hoje.

É um regime que fica a meio caminho. Porquê? Se se produz uma declaração com força obrigatória
geral, não há dúvida que estamos perante uma anulabilidade. E considera-se que o ato não produziu
efeitos e os efeitos que existiram foram todos afastados pela sentença, para além de haver o efeito
repristinatório e o efeito retroativo. É essa a regra geral.

Só que – e aqui o regime começa a aproximar-se do da anulabilidade – só se prevê, também nos termos
do n.º 2 do Artigo 76.º, que, quando existirem situações de segurança jurídica, equidade ou interesse
publico de excecional relevo, o legislador pode graduar os efeitos da sentença, pode determinar que
ela só entre em vigor a partir de um determinado momento, e pode-se dizer que não se produz efeito
repristinatório. Pode-se dizer que o efeito retroativo está limitado, exatamente como no quadro do
Tribunal Constitucional.

É possível afirmar que o regime está mais próximo do da anulabilidade. É um regime sui generis.

O Senhor Professor Marcelo Caetano tinha razão quando dizia que há aqui uma regra que basicamente
corresponde à nulidade do regulamento.

Por último, relativamente à emissão do Artigo. 77.º, o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva
concorda com o legislador. O que estava na versão inicial foi o medo de afrontar, sendo que esse medo
era maior porque não podia haver condenação. Há aqui, no fundo, uma simples apreciação da
ilegalidade, e o argumento é novamente a inconstitucionalidade. A única coisa que o Tribunal
Constitucional faz é verificar se existe ou não ilegalidade, e quem tira daí consequência é o legislador.
Em relação ao Tribunal Constitucional, é discutível, mas depende se o poder é vinculado ou não,
embora não se afigure necessária essa discussão.

162
O legislador diz, desde 2002/2004, que o Tribunal não aprecia, e verifica apenas a existência de
situações de ilegalidade por omissão, mas, mantendo a formulação tradicional, condena a entidade
competente. A emissão do regulamento em falta faz com que fixe prazo para que a omissão seja suprida
e pelo que o juiz diz que tem de ser realizado o regulamento, e ainda por cima dentro de um prazo que
ele fixa, e que pode ter uma sanção pecuniária logo na ação declarativa, ao referir, por exemplo: “a
partir deste dia, este incumprimento passa a contar, a cada dia, em que não se pratique… a
Administração está condenada e vai aumentando o montante da indemnização”.

Mais condenatório que isto não é possível. A omissão é reconhecida e condenada – se se reconhecesse,
havia uma sentença de apreciação. É fixado o momento para praticar o ato e fixado prazo para praticar
o ato. Está relacionado com o Princípio da Separação de Poderes – havia medo de se interferir na
separação de poderes porque existem duas situações jurídicas que correspondem a dois pedidos
diferentes.

Há o pedido de condenação à emissão de um regulamento, tal como havia de um ato, algo que acontece
em todos os casos em que o regulamento seja devido – por exemplo: nas autarquias locais, é preciso
haver um PDM, e, se não existir há uma violação da norma.

Mas o pedido pode ser o pedido de condenação à emissão de um regulamento com determinado
conteúdo que é legalmente obrigatório, que é legalmente pedido – aqui o pedido é a prática de um
regulamento com um conteúdo que é favorável. Isto depende da vinculação.

É a lei que estabelece a vinculação que pode, ou não, ter determinações quanto ao conteúdo do
regulamento. Isto não implica violação da separação dos poderes porque o que o juiz faz é apenas
verificar se aquele regulamento está vinculado no seu conteúdo pela norma e, se está vinculado no seu
conteúdo, não está em causa apenas a emissão de um regulamento, mas a emissão de um regulamento
com o conteúdo que está pré-determinado na norma, não havendo problema algum. Não há aqui
nenhuma invasão do poder regulamentar, não há nenhum desses tabus que têm a ver com a invocação
arbitrária do Princípio da Separação de Poderes. O que aqui está é ver em concreto qual é a situação e
saber se há um dever de praticar o regulamento ou não há.

O pedido é mais ou menos amplo em função desta realidade e a sentença tem também poderes
diferentes em razão do objeto. Andou bem o legislador, apenas não tendo ainda corrigido a forma do
Artigo 77.º, n,º 1, porque esta verifica existência de ilegalidade por omissão e, agora, o que daqui
resulta é que o tribunal condena a autoridade a praticar.

163
Aquilo que na norma for vinculado o Tribunal pode condenar, na medida em que isso resulte da norma
e, também, no quadro do poder discricionário, o tribunal também pode verificar os conteúdos que são
ilegais e que não podem ser realizados pela autoridade administrativa – aplicamse, supletivamente, as
regras de ação de condenação, até porque aqui só temos uma norma. O legislador, em relação àquilo
que é novo, restringe-se, e em relação àquilo que é velho alarga-se. Uma vez que adotou essa técnica
legislativa, aquilo que temos de fazer é aplicar as normas que correspondem aos poderes de
condenação – aplicam-se as regras do Artigo 71.º.

Com isto, terminamos a questão da ação em matéria regulamentar e passamos para a ação em matéria
de contratos, que também tem direito a duas normas que o legislador consagra e que permitem falar
na tal sub-ação no artigo 77.º-A e 77º-B, que tratam questões de legitimidade e de prazos,
respetivamente.

Mas há ainda um problema prévio que resulta do Artigo 4.º do Estatuto, que tem a ver com a realidade
material a que esta ação se aplica – o contencioso contratual e a noção de contrato que é incluída na
jurisdição dos tribunais administrativos.

Vimos que o Estatuto, no Artigo 4.º – e bem –, alarga a todos os contratos, no exercício da função
administrativa, o âmbito da jurisdição administrativa, e afasta aquela distinção esquizofrénica que tão
criticada foi do ponto de vista substantivo, entre contratos ditos administrativos e contratos ditos
privados da Administração. O contrato público, na sequência do Direito Europeu, abrange não só os
tradicionalmente contratos administrativos.

Houve uma polémica, nos anos ’80, que colocou, de um lado, a Professora Maria João Estorninho, o
Professor Marcelo Rebelo de Sousa, o Doutor André Salgado Matos e o próprio Senhor Professor
Vasco Pereira da Silva. As coisas mudaram por força da União Europeia, que quis estabelecer um
regime para todos os contratos públicos, e a noção de contrato administrativo era apenas conhecida em
França, Itália, Espanha e Portugal.

Portanto, a União Europeia esqueceu-se desta realidade. A forma utilizada em 2002/2004 era aquela
em que o legislador apenas falava de contrato. O legislador de 2015, da Reforma de 2015, é um
legislador doutrinário – está preocupado com a doutrina e, como na comissão havia um conjunto de
Professores que defendiam o contrato administrativo, resolveram colocar a expressão “contrato
administrativo” no Artigo 4.º, mas meteram não consagrando o regime passado. Dizem “contratos
administrativos e todos os outros contratos regulados pelo Código dos Contratos Públicos”, ou seja,
todos os contratos da função administrativa e todos os não-administrativos.

164
Isto decorre de o legislador não ter mudado o nome dos antigos contratos administrativos. Antes, eram
os únicos que tinham regime público e, agora, todos os contratos públicos têm regime público e todos
eles são da competência dos tribunais administrativos.

A propósito das normas dos Artigos 77.º-A e 77.º-B, cumpre referir que quando se elegeu os estudos
dos contratos na Escola de Lisboa, uma das questões principais era saber quem é que devia ser parte
legitima nos contratos. Porque a lógica tradicional é que seriam apenas as partes e as partes em sentido
restrito, ou seja, aqueles que celebravam o contrato – a autoridade administrativa e o particular que
celebrava o contrato. Ora, isto era insuficiente, pelo que era preciso alargar o âmbito da legitimidade,
e essa foi a discussão que surgiu nos anos ‘80 e ‘90 em Portugal.

No Artigo 77.º-A, a primeira questão que estava em causa prendia-se com o facto de se ter de alargar
o mesmo, fazendo com que todos aqueles que não participaram, mas que deviam ter participado,
também fossem partes legítimas, e, depois, em relação à execução dos contratos de serviços público –
por exemplo, um utente da Carris e do metro também é parte interessada no que respeita à execução
do contrato e, portanto, deve ter legitimidade para impugnar as cláusulas do contrato. Devemos chamar
a juízo todos aqueles que são lesados, independentemente de terem assinado ou não o contrato. E o
legislador agora faz isso, sobretudo por influência do Direito da União Europeia.

O legislador faz mais que isso, porque, se lermos o Artigo 77.º-A, vemos que, ao lado destas partes
entendidas em sentido amplo, estão aqui dotadas de legitimidade processual entidades que não são
partes, como o Ministério Público, que é enunciado na alínea b) deste artigo e aparece na alínea h). E,
em relação ao n.º 3, o legislador, na alínea d), repete estas pessoas e entidades proferidas nos termos
do n.º 2 do Artigo 9.º.

Neste ponto, o Senhor Professor tem dúvidas que seja uma solução acertada. Primeiro, temos de
perceber a lógica deste Artigo 77.º, que foi alvo de discussão, e esta discussão levava a que se dissesse
que é preciso alargar e que este alargamento deve ser determinado por duas coisas: questões da
validade do contrato e questões da execução do contrato.

A lógica era que, sobretudo se se tratar de um contrato de serviços públicos, como tem um âmbito de
aplicação mais amplo, devia haver maior legitimidade no domínio da execução que no domínio da
validade. Não faz sentido porque a validade do contrato é uma questão que diz respeito àqueles que,
ou são verdadeiramente as partes, ou poderiam ter sido; já a execução diz respeito a todos os utentes,
tal como no exemplo da carris e do metro.

165
Curiosamente, o legislador parece ter alargado mais a questão da validade do que a da execução. Só
que, se lermos bem as cláusulas, o legislador arranjou cláusulas mais amplas no n.º 3, e elas
correspondem às questões do n.º 2. Portanto, é mais uma aparência do que uma realidade. Do ponto
de vista lógico, o alargamento deveria ser maior na legitimidade e o alcance ao nível da execução. Mas
qual é esse alargamento?

Em primeiro lugar, aqueles que foram publicados por não ter sido adotado o procedimento pré-
contratual exigido, logo, aquele que teria participado no concurso, se tivesse sido adotado o
procedimento correto, deve ter legitimidade processual, porque foi lesado no quadro daquela relação
jurídica. Quem participou no procedimento e diz que o clausulado não pertence aos termos, é algo que
acontece muitas vezes e que corresponde não apenas a más práticas administrativas, mas a outras,
porque celebra-se com determinado clausulado, afasta-se uma série de concorrentes e depois mudase
o clausulado e já se afastou os outros.

Depois, também quando o clausulado não responde aos termos inicialmente estabelecidos e, por isso,
fizeram com que ele não tivesse participado no regime pré-contratual. Isto é um âmbito um bocado
maior, mas que ainda corresponde a alguém que é o lesado, não sendo estabelecidos uma série de
parâmetros para o procedimento que não foram cumpridos. Como não foram cumpridos, ele não
participou no procedimento, mas poderia ter participado se soubesse qual era o resultado.

A alínea g) parece um pouco estranha porque há esta cláusula genérica em relação aos lesados e,
depois, está também, no n.º 3, uma cláusula idêntica para todos aqueles que forem lesados, sendo, por
isso, uma forma de substituir todas estas hipóteses que aparecem anteriormente. Falsos são os lesados
também com a execução e a execução parecia estar no n.º 3. Portanto, há aqui ainda alguma
incoerência.

Todavia, o problema não é esse, o problema é precisamente que o negócio jurídico bilateral seja uma
realidade que possa ser impugnada por alguém que não tenha interesse direto na demanda. Um cidadão
que venha alegar a legalidade do interesse público para pôr em causa um contrato, é precisamente o
tenho dificuldade em perceber, porque, sendo assim, teríamos um contrato bilateral, mas erga omnes.
Este iria produzir efeitos, não apenas em relação aos sujeitos entendidos em termos amplos da relação
jurídica contratual, mas toda e qualquer pessoa e isso não faz sentido num quadro de um contrato. Se
o alargamento às partes, entendidas em sentido amplo, é o alargamento correto, o Senhor Professor
não consegue perceber de todo a ação.

166
O n.º 3 adota aquela fórmula ampla e tem menos hipótese em relação às que estão no n.º 1, mas ainda
é razoavelmente ampla e podemos dizer que o legislador, como regulou dois em conjunto, as hipóteses
do n.º 1 valem também para o n.º 3 – tudo isto é acertado.

Embora o Ministério Público também não tenha interesse direto na demanda, este, enquanto Dom
Quixote da justiça, também atua para defesa dos órfãos e das viúvas e, por isso, pode defender
interesses de outrem.

Portanto, atendendo à importância dos contratos, ao valor elevado que está em causa, à importância
que isto tem para evitar a confusão e tudo o mais, o Senhor Professor considera que, podendo ter
alguma limitação em concreto, a intervenção do Ministério Público está bem consagrada e esta sua
separação do autor faz sentido.

Relativamente a uma ação popular generalizada em matéria de contrato, que é por natureza de um
contrato bilateral, mesmo que resulte numa relação multilateral e que os sujeitos dessa relação
intervenham muito bem, e um sujeito que não tenha nada a ver com essa relação possa atuar, o Senhor
Professor considera que estas situações não fazem sentido. Apesar de esta previsão se ver por aqui,
não obstante as críticas, isso significa que, neste caso, como o caso de uma ação popular efetuada em
relação a um contrato público, se deve considerar que a ação anule o efeito e deve dar lugar à
absolvição do pedido porque é uma ação impossível.

Do ponto de vista do objeto do contrato, não faz sentido este alargamento e, portanto, passouse do oito
para o oitenta. Para o Senhor Professor, é excessiva esta realidade ou, então, estamos a pensar em algo
que não incide sobre um contrato, passa a ser um regulamento. E se num procedimento contratual há
muitos elementos regulamentares, o contrato em si não é um regulamento, e há dimensões individuais
e concretas, e não apenas lesados em matéria de procedimento pré-contratual, como nos atos que
correspondem à execução do mesmo.

Quanto ao prazo, o legislador agiu bem e estabeleceu que enquanto houver um direito, aplicase a regra
similar à do Processo Civil, no sentido que qualquer ação é possível. Mas, o Artigo 77.º-B n.º 1
apresenta uma cláusula limitativa que decorre de um certo preconceito ideológico, porque o Professor
Santos Correia construiu e trouxe para Portugal a figura do contrato com objeto passível de ato
administrativo.

167
Este nome resulta da tradução romana. É defendido pelo Professor Ferrer Correia – e bem –,
correspondendo àquelas situações em que a Administração escolhe se quer praticar o ato ou se quer
praticar o contrato – tem assim poder discricional.

Este poder não condiciona o resultado da escolha, portanto, o facto de a Administração poder escolher
e, se ela escolhe praticar um contrato, então aplica-se as regras do contrato. Não faz sentido, nesse
caso, aplicar as regras do ato apenas para efeitos de prazo. O Senhor Professor confessa que, do ponto
de vista da realidade, esta é uma limitação que não faz sentido, porque, se é verdade que a
Administração podia ter praticado o ato, o que é verdade é que ela decidiu celebrar o contrato, e, ao
celebrar esse contrato, submete-se às regras dos outros contratos, designadamente a regra geral do
prazo. Portanto, só por haver a discricionariedade não se justifica que haja esta regra. Perceberia
melhor se se identificassem, por exemplo, causas especiais em razão de interesses públicos, matéria
de segurança nacional, administração interna, situações graves do ponto de vista de segurança do
Estado que implicassem uma limitação. Agora, só por ser um contrato com objeto passível, ou seja,
um contrato que poderia ter sido um ato, mas não foi, não parece que isso justifique a modificação de
uma regra de natureza processual, parecendo criticável esta realidade.

Para terminar a ação, uma última referência à responsabilidade civil38. A responsabilidade civil
coloca mais problemas substantivos que processuais. É uma realidade importante do ponto de vista do
direito administrativo.

A questão principal que se coloca é a questão de saber qual o tribunal competente. Essa questão foi
resolvida – e bem –. em 2004, sendo confirmada em 2005. Independentemente do que está em causa,
da atividade alusiva, de ser um ato administrativo, uma operação material ou outra coisa, competente
é apenas o tribunal administrativo de acordo com o Artigo 4-º.

Contudo, a forma do Artigo 4.º pretendia ser muito ampla e causou um problema processual porque
houve uma corrente jurisprudencial que falava nos casos em que seja possível invocar a existência de
uma responsabilidade civil da Administração, apontando para o resultado do processo. Assim, só se
houvesse responsabilidade da Administração é que a ação é do tribunal administrativo.

Se houver um pedido reconvencional, ou seja, se a administração disser “não senhor!” – pensando no


caso do acidente, em que a culpa foi do peão que se atravessou à frente pelo que ele é que é responsável
pelos prejuízos – aí já se punha a questão da dúvida contra o tribunal competente. Não faz sentido que

38
A lei que estabelece o regime da responsabilidade civil pública é Lei 67/2007, de 31 de dezembro.

168
a questão da competência do tribunal, que é um pressuposto processual, seja decidida depois da decisão
da causa, portanto, a questão processual é uma questão prévia.

Isto significa que a questão se resolve do ponto de vista processual com a ideia de que as questões
conexas são julgadas por aquele tribunal – é a logica alemã e é a logica adequada para tratar estes
casos. O legislador teria querido fazer isto em 2004, mas a jurisprudência compreendeu mal e houve
essa tendência exponencial que fazia com que se houvesse dúvida quanto à responsabilidade da
Administração e houvesse pedido reconvencional. Mandava-se para o tribunal judicial e depois
mandava outra vez para o tribunal administrativo, e tínhamos a “dança das cadeiras”.

Ora, agora, em 2015, pretendeu-se eliminar esta questão. Fala-se apenas de alegar a responsabilidade
civil extracontratual, desaparecendo a esquizofrenia que existia em matéria de tribunal competente.

Por falar em prerrogativas de direito público e por falar de normas de direito público, gera a dúvida se
se mantém ou não a esquizofrenia legislativa. Na opinião do Senhor Professor, ela desapareceu porque
fala-se também em princípio e, nos termos do CPA, no Artigo 2.º, vemos os princípios da atividade
administrativa que se aplicam também à gestão privada pelo que não faz sentido essa distinção, mas
este continua a ser um problema que se discute no direito administrativo.

O problema processual está resolvido. Então, que normas aparecem aqui no quadro do código que se
ocupam também de questões que têm a ver com o pedido da responsabilidade civil?

Em primeiro lugar, há aquelas normas que já fizemos referência, que dizem respeito à questão da
legitimidade – aqui o velho problema de saber se é pessoa coletiva, se é um órgão (Artigo 10.º permite
alternatividade). Enfim, em relação à realidade normal, diz-se que se o pedido era de responsabilidade
civil. Havendo uma pessoa coletiva que detém património, deve ser a pessoa coletiva, mas isto tem
exceções, porque, se se tratar de um órgão independente ou uma entidade administrativa independente
a nível reguladora, é um órgão de bastante património, portanto, aqui o Senhor Professor diria que faz
sentido a alternatividade e que não é a ideia que tem de ser sempre a pessoa coletiva, embora por causa
do património, a pessoa coletiva seja mais vezes necessitada a juízo do que em geral é, em relação aos
outros pedidos que estejam em causa.

Depois, há a questão da cumulação de pedidos, porque, agora, não apenas se permite a cumulação do
pedido de condenação em matéria de responsabilidade. O particular que não impugnou a legalidade
do ato administrativo pode, na mesma, ir a tribunal para pedir a indemnização que foi provocada por
aquele ato administrativo.

169
Portanto, separaram-se os dois pedidos. Isto significa valorizar a responsabilidade civil e a prova disto
resulta do Artigo 38.º. Esta norma estabelece que a responsabilidade civil pode existir mesmo no caso
dos atos inimpugnáveis. Estes atos não se transformam num ato válido. Portanto, mesmo quando não
foi afastado da ordem jurídica, o particular pode obter a sua apreciação, nomeadamente para efeitos
de responsabilidade civil extracontratual. Deixou de haver a necessidade de ligação entre o pedido de
condenação por responsabilidade civil e uma prévia impugnação.

V – “Totem e Tabu”: Os Processos Urgentes39

Os processos urgentes caracterizam-se, tal como as providências cautelares, pela urgência.


O primeiro desses processos urgentes é o contencioso eleitoral. No sistema francês distinguia-se entre
um contencioso do poder e um contencioso de plena jurisdição. O contencioso, por natureza, era um
contencioso do poder diferente do contencioso por atribuição, neste último podia haver partes e
dedução de pedidos. O contencioso eleitoral sempre foi um contencioso de plena jurisdição: assim,
permitia-se aos particulares que apresentassem outros pedidos, para além do pedido de anulação e
permitia aos tribunais não apenas anular decisões, mas também condenar e apreciar direito. No entanto,
há uma contradição: o legislador consagra este contencioso como contencioso de impugnação, uma
ação de impugnação relativa a atos que tenham a ver com a inclusão, exclusão ou omissão de eleitores
dos cadernos eleitorais e aos demais atos com eficácia externa anteriores ao ato eleitoral. O legislador,
num processo que aparentemente seria de plena jurisdição, parece limitar a impugnação, os pedidos e
os efeitos.
É um absurdo porque se deveria admitir todos os pedidos e não faz sentido que um processo
urgente nos termos das normas deste código que se regula segundo as normas dos processos principais
– havendo nos processos principais um princípio de plena jurisdição - não faz sentido limitar este
processo à anulação. Para além disso, não faz sentido falar de uma impugnação contra uma omissão
pois o ato tácito de indeferimento desapareceu. Logo, quando se fala em impugnação de uma omissão
num caderno eleitoral, deverá entender-se que se trata de um pedido de condenação. O legislador
“informal” avançou, publicamente, que não tinha propositadamente tratado o tema porque entendeu
que não era relevante pois ninguém se iria preocupar com isso.

39
Devido a uma falha na gravação da presente aula, os apontamentos que se seguem a propósito desde capítulo resultam
integralmente das transcrições efetuadas no ano de 2019/2020.

170
O legislador consagra a plena jurisdição, mas não corrige o artigo 98.º CPTA – pelo menos
relativamente à omissão não faz sentido falar de impugnação relativamente a uma omissão pois é uma
verdadeira condenação. Em 2015, o legislador corrigiu em parte a sua primeira orientação demasiado
limitativa e passou a admitir-se todos os pedidos. Mas vejamos esta alteração do artigo 4.º, da
cumulação de pedidos urgentes: cria uma regra especial para o contencioso administrativo que é
diferente da regra que vale para o processo civil. No processo civil é possível haver cumulação de
pedidos nos processos urgentes, mas se isso acontecer o processo transforma-se num processo normal,
deixa de ser urgente. No contencioso administrativo continua a ser urgente. Isto corresponde à verdade
e à lógica do processo administrativo e, por uma razão simples: no contencioso administrativo havia
historicamente aquela ideia de que tudo o que estivesse para além da anulação era cumulação de
pedidos e no processo civil isso não acontece. No processo civil para que haja cumulação de pedidos
é necessário que os pedidos correspondam a uma nova realidade do ponto de vista económico e
substantivo. Ora bem, não é isto que se passa no contencioso administrativo. Ainda assim, apesar de
se louvar a alteração de 2015, teria sido importante que o legislador tivesse alterado também o artigo
98.º CPT porque tal contraria a nova regra da cumulação de pedidos. O legislador foi demasiado
escasso neste único artigo – o 98.º CPTA - que trata do contencioso eleitoral.
Estabeleceu-se, no seu número 3, que ele só abrange a impugnação e a atos administrativos e
tal é demasiado limitativo. Não faz sentido no quadro da lógica da plena jurisdição introduzir esta
limitação. Pelo contrário, este contencioso deve ser ainda mais amplo do que os demais. Os prazos no
contencioso eleitoral são muito curtos. Não faz sentido que se espere, por exemplo, 2 meses para que
se homologue um resultado eleitoral. Não é possível esperar tanto. É necessário que haja decisões
expeditas. O prazo de propositura de ação é de 7 dias a contar da data em que seja possível o
conhecimento dos factos. Os outros prazos são também limitados: 5 dias para a contestação, 5 dias
para a decisão do juiz e 3 dias para os restantes casos. E embora olhando para a prática, podemos dizer
que há algum desvio relativamente ao cumprimento dos prazos, mas não muito. É possível obter uma
sentença ou no prazo estabelecido ou um pouco depois, mas não muito. É possível obter uma sentença
a tempo de resolver o problema que aqui se coloca.
Apesar destas limitações de cumulação, a afirmação da plena jurisdição e a existência de outras
regras nos termos do processo e agora a admissibilidade da cumulação de pedidos permite que este
processo seja utilizado em todas as situações que se possam colocar num qualquer processo eleitoral
e que permite todos os pedidos possam punir todas as sentenças. A última coisa a dizer, também claros
problemas de maior, no fundo as mais regras por regra nos processos principais é dizer que eu tenho
que dar tudo em Portugal no âmbito militar porque não se aplica às decisões para jurisdições de
entidades políticas e órgãos de poder político e poder legislativo. E se podemos dizer que há uma
171
tradução dos meios … para a Assembleia da República, serem, terem um processo diferente de
competência dos tribunais judiciais e prevenção do Tribunal Constitucional eu diria que não há
nenhuma uma razão para que não fosse o tribunal de escopo legislativo, isso tem a ver ainda com os
traumas da infância difícil, quando o contencioso administrativo era um verdadeiro tribunal.
Mas em relação às autarquias locais, que se trata de órgãos de reserva legislativa, aqui eu julgo
que é uma realidade que distorce a cláusula constitucional de considerar que as relações
administrativas são da competência do contencioso administrativo, não atribuir aos tribunais
administrativos a competência para as regular. Se são capazes de admitir que em relação à Presidência
da República e outras realidades de alta, e a Assembleia da República existam regras no Governo,
mesmo, não é necessário, mas posso dizer que é uma tradição. Já em relação ao órgão da função
administrativa, como são as Autarquias Locais não faz sentido, deveria ser esse contencioso eleitoral
a aplicar-se.
O que significa que este contencioso eleitoral se aplica apenas às eleições internas, às eleições
dentro dos órgãos da administração, na maior parte dos casos são eleições na faculdade e eleições em
escola, eleições em institutos públicos, todos os órgãos que tenham no seu seio algum órgão de
natureza eletiva, algum órgão legislativo, pois se houver algum litigio cabe ao contencioso eleitoral,
julgo que poderia haver um alargamento de um membro às eleições de um órgão eleitoral. Passamos
a outro processo urgente, o dos processos massa, enfim, o legislador aqui, posso falar em
procedimentos massa, é preciso explicar ao legislador que o procedimento é o que se passa antes do
litigio e depois a partir daí há um processo, processo da função judicial que se chama procedimento.
Mas tirando o nome, eu julgo que o surgimento deste processo urgente, com a reforma de 2020
corresponde a um desiderato correto daquilo que se pretende resolver com um processo urgente,
virando-me para a prática eu diria que estes processos urgentes têm... E, portanto, acolhem aqui
críticas, nomeadamente as críticas da Doutora Carla Amado Gomes, que diz que quando tudo se torna
urgente nada é urgente.
Isto é um eufemismo verdadeiro, ao qual toda a gente está de acordo, mas ele não se aplica a
este caso, que por um lado tem por objeto, temos um número limitado de processos urgentes e estes
casos que aqui estão destes processos massa precisamente pela sua natureza limitada e a sua
aplicabilidade limitada, não fazem com que tudo se torne urgente, e há razões especificadas para este
processo ser urgente. O que é que está aqui em causa? Está aqui em causa aquelas nomeações, através
de um ato plural, que se sucedem todos os anos no Governo por exemplo na contratação dos
professores, na nomeação dos professores. Há milhares, há milhões de atos legislativos a cautelar no
único momento que gere a regra do processo judicial, e este processo judicial tem de ser decidido
rapidamente, por que está em causa o coletivo e está em causa a situação dos professores, e o que
172
acontece é que os pedidos já quase estão sobrepostos, e o que aqui está é a ideia, reúnem-se estes
pedidos todos num processo e decide-se de uma forma reta, só nos casos relativos à contratação do
pessoal do quadro dos professores. E, portanto, há razões justificadas para isso, há razões do instituto
público que têm a ver com o número de candidatos, com o número de professores que estão no âmbito
do concurso. Enfim, para vos dar só alguns exemplos de coisas que li no jornal recentemente, agora
há um tema que está na ordem do dia que tem a ver com a falta de contínuos na escola, e, portanto,
quase dia sim dia sim há alguma instituição da escola a dizer que há falta de contínuos. Eu ouvi o
senhor Ministro da Educação dizer que nos últimos três meses foram admitidos 3000, ora admitidas
3000 pessoas é um número muito elevado e, portanto, este processo de recrutamento que está na ordem
do dia cabe moderá-lo nestes processos deliberais… Porque o pressuposto processual que aqui está
em causa, por um lado tem que ver com a matéria, matéria de pessoal realização de prova e
recrutamento, que está no nº1 das alíneas a), b) e c), que são os únicos casos aqui a aplicar e, por outro
lado, tem a ver com a necessidade urgente de arranjar uma solução para aqueles casos, há uma
inevitabilidade de litigio, porque nestes casos normalmente ao lado dos processos intentados por os
particulares o que é que acontece? Acontece que a maior parte dos processos são apresentados nas
centrais sindicais e nos sindicatos.
Os sindicatos são pessoas coletivas que atuam para o exercício dos direitos, e há direitos que
tem que ver com a proteção de uma determinada classe que está inscrita no sindicato, e portanto faz
parte função do sindicato apresentar, já se sabe que há pedidos destes todos os anos, todos anos no mês
de agosto, quando é feita a nomeação dos professores há processos contra essa nomeação, os sindicatos
convém analisar, o departamento jurídico, sai o direito administrativo, o político, ele tem reparado que
a qualidade tem limitado e todos os anos apresentam um processo, vários processos contra aquele ato
plural de nomeação de milhares e milhões de professores tal como acontece a propósito do … Portanto
é inevitável criar um processo urgente, e é inevitável também que estes processos precisem de uma
resposta e quem diz essa resposta introduz a necessidade de modificar coisas que não acordam
devidamente consagradas na ação judicial, e também é preciso que as aulas comecem no tempo certo.
Há aqui várias coisas que cumprem para a necessidade de processo judicial. E portanto acho
que a Doutora Carla Amado Gomes não tem razão nenhuma, é uma frase certa, bonita mas não se
aplica à realidade que aqui está, este processo também tem razão de ser urgente, há fenómenos que
têm essa urgência e este processo é um desses casos, admitiu que na realidade dos nossos dias sejam
corrigidas as ilegalidades que por vezes acontecem, normalmente são de carácter procedimental ou de
carácter orgânico, mas às vezes também há realidades materiais e há engano que tem que ser corrigido,
naqueles momentos em que o ministério enganou-se, acontece não é, e portanto as coisas têm permitido
no sentido de acautelar os interesses de todos e portanto faz sentido os processos urgentes e, portanto,
173
eu não, aqui curiosamente há um corpo crítico de … processual, na minha perspetiva há uma razão,
pelo contrário é justificável esta natureza urgente, em razão da matéria e em razão da urgência que
estas decisões têm. Já quanto à colocação de um funcionário, de um professor, de um só professor, de
um juiz, não faz sentido, aí obviamente não há … agora neste caso há razões de prova. E o que é que
acontece? Acontece que havê-lo pressupostos, verificando-se os pressupostos que aqui estão em causa,
num processo com mais de 50 participantes, decide-se tudo num só caso, em que os pedidos e a causa
de pedir vão ser acautelados, os pedidos individuais juntamente com os coletivos, com aqueles que
resultam da indignação dos sindicatos e o juiz vai decidir integralmente acerca daquela realidade
urgente decidindo de uma maneira. Portanto, é algo que corresponde a uma exigência da massificação
dos processos, da massificação do procedimento da administração, e que obriga a criação de
mecanismos que deem uma resposta adequada a este processo. E, portanto, é obvio que devem então
dizer, não só para criticar como …. Todo o serviço que existe.
E lembro, como já referi estou a falar dos sujeitos processuais há um regime médio do nosso
ordenamento, que é aquele que utilizei parafraseando o meu querido colega e amigo Dr. João Raposo,
aquilo que ele chama processos de massinha. Porque há os processos normais, e pode haver
comunicação das outras partes, mas o legislador estabeleceu regras sociais para os processos com mais
de 20 intervenientes, ou seja, aqueles que têm entre 20 e 50, esses são os processos de massinha, como
é que as coisas funcionam então nos processos de massinha? É que aí só vai até ao fim o primeiro
processo, os outros ficam à espera, ficam em standby, o juiz não tem de decidir do conflito que está
em causa. E, os outros ficam à espera para saber a decisão do processo que foi intentado em primeiro
lugar, os shreds desse processo podem extensão dos efeitos da sentença. Estão satisfeitos com a solução
encontrada naquele primeiro momento. Se pelo contrário, disseram “ah” ou que há razões específicas
para o seu caso, ou tenham um pedido e uma causa de pedir diferente, então eles podem continuar com
o processo que, entretanto, esteve interrompido. Mas, se não o fizerem, o que é normal, podem pedir
a extensão dos efeitos da sentença, normalmente o que o tribunal decidir está decidido, não é. Portanto
temos três regimes, o regime normal, que deve rever a situação correta, a apensação correta. Temos os
processos de massinha, para aqueles processos com mais juízos e temos o regime dos processos de
massa, que é os processos que afetam mais o cidadão comum. Só nestes, nos processos de massa é que
é o legislador …. Concentra-se tudo num processo e é decidido com breve urgência. Ora bem,
determinam-se aqui as mesmas regras que já vimos, apaga os outros casos não é, e portanto aquilo que
se diz é que para impugnar destes processos urgentes há um prazo máximo de um mês, depois há 20
dias para a contestação e 30 dias para a decisão do juiz ou 10 dias nos restantes casos em relação à
decisão.

174
Portanto temos o processo organizado em termos urgentes. Eu diria aqui talvez que, à
semelhança do que se passa no contencioso eleitoral, talvez ainda fosse possível tornar mais urgente,
mas o que é facto é que este mecanismo tem funcionado em termos relativamente regulados, sem pôr
em causa o funcionamento de juízos, sem pôr em causa o início do ano letivo e tem funcionado no
quadro da realidade portuguesa.
Também aqui aplicam-se outras regras, podem ser feitos todos os pedidos, pode haver
cumulação de pedidos, e a ideia é fazer deste processo um processo-quadro, em eu se juntam todos os
pedidos e todas as causas de pedir e todas elas são canalizadas conjuntamente. Podemos dizer que aqui
em termos de realidade sociológica, estes processos são, em regra, intentados através de sindicatos,
que defendem os interesses das pessoas coletivas associadas, pelos quais por vezes também se
associam particulares nos atos especialmente com esta realidade.
Depois temos obvio dos processos urgentes, que nasceu com a União Europeia, que regula o
chamado contencioso … e que tem sido alvo de tratos. Em primeiro lugar, a transposição das diretivas
comunitárias ainda antes da reforma, aquela que resulta dos anos 90, não transpõe o que se estabelecia
nos termos da liberdade comunitária, só em 2015 é que o processo, tal como está conhecido em
Portugal se aproxima do processo da União Europeia, designadamente só em 2015 é que se estabeleceu
a cláusula Standstill, mas para nossa vergonha, agora em 2019, que portanto entrou em vigor há meia
dúzia de dias, voltou-se outra vez a criar exceções à clausula do Standstill e portanto, na minha
perspetiva, estamos perante uma violação do direito europeu.
O que é que aqui está em causa? A União está desde os anos 80 preocupada em estabelecer um
regime comum para todos os contratos públicos que acontecem no seio da União, são essenciais para
a organização da comunidade, a existência de liberdade de circulação permite que qualquer pessoa se
possa candidatar a ser parte nestes contratos. A união está preocupada em estabelecer regimes especiais
para estes contratos e, por causa disso houve todas as reformas que obrigaram Portugal por exemplo
ao desaparecimento da distinção esquizofrénica entre contratos administrativos e contratos ditos
privados, a União criou o regime comum para todos os contratos celebrados pela função pública. Os
montantes elevados destes contratos obrigam a que haja meios de tutela adequados e é preciso que este
contencioso funcione e seja eficaz. O contencioso pré-contratual destina-se a que depois de negociar
um contrato haja um período de nojo curto, a diretiva fala em 15 dias, em que os sujeitos pensam no
que fizeram e se verifica se há alguma ilegalidade. Este mecanismo destina-se a nesse prazo verificar
se há ilegalidade, e para que não se perca tempo a discutir questões de natureza cautelar, há uma
suspensão automática e depois o que se pretende é que não se perca tempo a discutir providencias ou
decisão provisória.

175
Se não houver standstill o contencioso dos contratos torna-se contencioso da responsabilidade
civil, pois das duas uma, se o Particular celebra contrato com a administração e a administração tem
de pôr termo ao contrato tem de haver indemnização. Para além do dinheiro gasto com o novo
concurso. Por outro lado, se foi celebrado contrato e a administração entende que há ilegalidades mas
tem de se safar de problemas então responsabiliza-se os sujeitos e o que acontece é que estes casos de
responsabilidade contratual do ponto de vista da despesa são sugadores de dinheiros públicos.
Transformam-se em contenciosos de responsabilidade quer se mantenha o contrato quer seja anulado,
os sujeitos diferentes, mas é contencioso da responsabilidade que leva a um aumento das despesas
incontrolável no quadro da administração e é algo que torna ineficaz o controlo da validade material
dos contratos.
A única forma de funcionarem é com a regra do standstill. No momento de aflição os pais
fazem isto, ou estas quieto ou caladinho e levas no focinho. É a ideia de que não se faz nada, depois
então celebra-se o contrato. A União também sabe de outra realidade, que este contencioso é o domínio
onde se verifica mais a corrupção, em que se viciam as peças contratuais, e depois há indemnizações
absurdas para além da legalidade.
Por isto é que em Portugal já por quatro vezes se abriu a construção de uma linha de alta
velocidade de ligação à Espanha e por quatro vezes se voltou a trás. O dinheiro gasto na abertura do
concurso foi um absurdo. E as indemnizações dava para pagar tudo, já se gastou quatro vezes mais o
dinheiro. Já não é questão de saber se é bom ou mão, é só uma estupidez. Isto é a realidade do
contencioso pré-contratual. É uma fonte de proventos. Introduz uma realidade que a união quer. A
norma dos anos 90 e de 2004 não tinha tal norma, em 2015 Mário Aroso mudou de opinião e foi
responsável pela redação de 103ºA, o texto sobre isso está publicado no E-Book do ICJP. Apesar de
tudo o legislador dizia que podia ser suspenso, o que também não fazia sentido na lógica europeia.
Agora em 2019 o efeito suspensivo só existe em casos muito limitados e com exigências de prazo
muito curtos. Permite-se até a suspensão deste efeito por medidas provisórias, não se vai discutir a
validade. É suposto que isto seja rápido, mas o que acontece em Portugal é que a administração pública,
pode continuar com a sua atuação. Durante o ano entre o momento do pedido e a decisão, o juiz tem
de verificar se a decisão da administração está dentro da lei. Repete-se aqui qual a medida provisória
mais adequada.
Dois problemas desta realidade: não se aplica a todos os contratos públicos, se olharem para
o 100º1, estão os tradicionais contratos administrativos e tradicionais contratos ditos privados. Fala
em empreitadas de obras públicas e concessões de obras e serviços públicos. O legislador deixou de
atender à realidade esquizofrénica, em relação ao artigo 4º. Curiosamente não diz o que devia dizer de
que se aplica a todos os contratos públicos, há contratos públicos aos quais não se aplica esta norma.
176
Eu acho que há razoes para fazer interpretação alargada, já vem de 1998 e podia ser alterada e
interpretada, mas a maior parte da jurisprudência não faz isso. O segundo aspeto é que o legislador
acabou com a ideia de atos definitivos. É possível impugnar qualquer coisa, o 103º, nº1 fala do
programa de concurso, que é um regulamento e qualquer outro. Esta é a orientação atual. É suscetível
de impugnação. A forma não é a melhor, o documento é apenas a forma do ato, o legislador confunde
as más notícias com o carteiro.
Depois há duas intimações e digo só a primeira: a uma intimação para quando a administração
informa o direito de acesso a informação e de documentos. Foi criado em 85 e juízes seguindo a
doutrina, como a professora Raquel Carvalho, que através dos estudos entenderam que deviam alargar
isto à informação e os tribunais fizeram-no. Em 2004 consagrou tal regra para consulta de processos e
obter informações no quadro da Administrativa. Funciona muito bem, a palavra intimação significa
ação de condenação urgente e o que aqui está é que se demanda a administração a fornecer informação
e o tribunal faz isto com rapidez e eficácia, funciona muito bem e com decisões muito rápidas. Nem
calculam as vezes em que surgem tais intimações.

VI – “Mal-estar na Civilização”: A tutela cautelar

Vamos, a partir do que vimos na aula passada acerca dos processos urgentes, fazer a ponte para as
providências cautelares, que vai constituir o objeto desta última aula.

Falámos, na aula passada, de um procedimento urgente extremamente importante: a intimação para a


tutela dos direitos fundamentais. Trata-se de um instrumento nascido no Direito francês, a que
corresponde o référé liberté, que tem, nesse quadro, uma aplicação enorme, amplíssima. De resto, em
França, havendo ainda algumas limitações quanto ao contencioso ou processos principais, aquilo que
o Conselho de Estado, juntamente com a doutrina e com a jurisprudência conseguiram fazer, foi criar
esta figura do référé liberté, que funciona em todos os domínios e que permite ao juiz fazer tudo e de
uma forma rápida, condenar a Administração em 48h. O último référé liberté aconteceu este fim-
desemana e durou 48h. Estava em causa uma restrição às cerimónias religiosas que não permitiam que
houvesse mais de 30 participantes por igreja. A igreja católica protestou, explicou que, comparando as
lojas com uma igreja, e o exemplo foi a catedral de Saint-Sulpice, cabem muito mais pessoas na igreja
que numa loja, pelo que, respeitando todas as regras de segurança, era inadmissível que a SaintSulpice,
que tem o tamanho que corresponde a um quarteirão, só pudesse ter 30 pessoas. O Conselho de Estado
considerou que esta medida decretada no Estado de Emergência era desproporcional e condenou a

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Administração a mudar este limite e adequar a lotação das igrejas à lotação dos supermercados, à
lotação das lojas, e não estabelecer um regime desproporcional e desequilibrado. Foi uma sentença
tomada em menos de 48h, uma sentença de condenação da Administração, e isto é fundamental para
que se veja que o contencioso francês não é como em Portugal se imagina. O contencioso francês,
hoje, passado o divã da Constituição, é uma realidade completamente transformada e permite um
controlo integral da Administração. De resto, Dominique Rousseau escreveu há pouco um artigo em
que introduz a função daquilo em que francês se chama o numérique, que tem a ver com todas as
aplicações informáticas, mostrando como o référé liberté tem sido um instrumento de defesa das
liberdades e dos direitos fundamentais no quadro da informática. Este é um mecanismo que tem uma
amplitude muito grande e, no quadro da nossa ordem jurídica, essa amplitude deveria ser maior ainda
do que é.

O legislador, do ponto de vista da previsão legal, previu que esse mecanismo tivesse uma aplicação
que ultrapassa os casos que, por circunstâncias causais, acontecem num único momento e que são
irrepetíveis. Esses são os casos principais de aplicação desse mecanismo, mas o legislador estabeleceu
no 109.º, nº1 do CPTA que, nos casos em que a tutela normal (providências cautelares e ações
principais) não fosse suficiente, esse mecanismo também era possível. E, portanto, isto é uma via que,
à semelhança da francesa, permite a ampliação deste mecanismo. E a prova de que isso é assim, é que
o legislador prevê uma alternatividade entre o uso do processo urgente e a providência cautelar para a
tutela de direitos fundamentais, ou seja, o que está aqui em causa é um mecanismo que, em primeiro
lugar, depende de uma opção do advogado e da pessoa que é lesada quanto a saber se quer uma resposta
rápida, tem meios de prova suficientes para a obter essa resposta rápida, por parte dos tribunais ou
quer eventualmente criar um efeito na opinião pública. Se assim for, deve optar por este processo
urgente. Se, pelo contrário, a prova é difícil e não tem elementos suficientes para provar aquilo que
pretende e está interessado apenas em obter a justiça, em termos normais, então deve utilizar a
providência cautelar. Está, então, inerente a este mecanismo uma lógica de alternatividade, que
também contribui para o seu alargamento, já que se aplica a qualquer direito fundamental e, na nossa
ordem jurídica, os direitos fundamentais têm uma amplitude muito grande, que abrange direitos,
liberdade e garantias, direitos económicos, culturais, etc. A dimensão ampliativa deste mecanismo, por
sua vez, deve conduzir a decisões céleres. Também aqui se fala, à semelhança do que se fala em França,
de decisões tomadas em 48h e é possível ainda diminuir o prazo para a tomada de decisões, como se
estabelece neste artigo 110.º. Efetivamente, pretendem-se decisões rápidas, que não impliquem
análises detalhadas; o objetivo é tomar decisões com celeridade, sendo que, depois, poderá sempre

178
fazer-se uso do mecanismo do recurso para corrigir eventuais erros tomados pelo juiz na apreciação
das causas.

Na "reforminha de 2015", essa dimensão da alternatividade tornou-se ainda mais evidente. O Senhor
Professor Vasco Pereira da Silva já antes defendia que isso devia acontecer, baseado naquilo que era
a experiência francesa. O legislador da "reforminha", neste artigo 110.º/a) permitiu consagrar esta
alternatividade porque diz que quando as circunstâncias do caso não permitam ao juiz decretar uma
intimação, este pode no despacho liminar fixar prazo para o autor substituir a petição inicial para o
efeito de requerer a adoção de providência cautelar seguindo, se a petição for substituída, os termos
do procedimento cautelar, ou seja, prevê-se aqui que o juiz, quando considere que aquele processo não
se coaduna com as exigências da intimação, possa convidar à substituição da petição inicial. Ora bem,
serve isto para fazer a ponte do que vamos falar hoje: as providências cautelares.

A diferença entre o processo urgente e as providências cautelares tem a ver com o facto de nos
processos urgentes haver uma solução, uma decisão acerca do fundo da causa, ou seja, a causa fica
desde logo decidida e nas providências cautelares haver apenas uma decisão provisória destinada a
acautelar os efeitos de uma sentença futura. Enquanto a intimação conduz a uma decisão de mérito, na
providência há apenas uma decisão provisória para uma circunstância que se manterá até à sentença,
ou seja, uma decisão transitória que visa salvaguardar os efeitos de uma sentença, no caso do exercício
do direito de ação.

As providências cautelares estão reguladas nos artigos 112.º e ss. do CPTA e elas correspondem a uma
transformação radical da justiça administrativa porque, já sabemos, não apenas em Portugal, mas
também nos outros países, nos anos 90 a jurisprudência europeia condenou os diferentes Estados da
UE por não terem uma adequada tutela cautelar dos direitos no quadro da aplicação de normas
europeias. E, portanto, aquilo que a UE fez foi reconhecer aquilo que era manifestamente evidente,
porque olhando para a realidade portuguesa, o único mecanismo que existia, até 2004, era a suspensão
da eficácia, o qual estava construído de uma forma limitativa porque era muito difícil conseguir a
verificação dos pressupostos necessários à tutela cautelar. Mais, e pior do que isso: o modo como
aqueles pressupostos eram interpretados pela jurisprudência e as exigências feitas pelos tribunais para
a obtenção dos mesmos levava a que na prática nunca existisse uma verdadeira sentença de suspensão
da eficácia - o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva até costumava dizer, antes de 2004, que era
mais fácil encontrar um tigre na Serra da Malcata do que encontrar uma sentença de um tribunal
administrativo que suspendesse a eficácia de um ato administrativo. E, portanto, havia apenas um meio
e esse meio nunca funcionou. Era uma situação gravíssima, não havia tutela cautelar efetiva em

179
Portugal. E a União Europeia veio dizer, e bem, que não é possível existir justiça administrativa sem
tutela cautelar. Era preciso criar sistemas transitórios que acautelem os efeitos da sentença, senão as
sentenças surgem tarde, 4/5 anos depois de se terem passado os factos e já não produzem efeitos porque
a situação se alterou de uma forma tal que a única solução é recorrer à indemnização de compensação
de natureza pecuniária. Esta transformação do contencioso, no sentido de aumentar a tutela cautelar,
foi uma exigência da União Europeia e introduz-se no quadro daquele último período que estudámos
da europeização do processo administrativo, a qual, entre outras coisas, justificou que tivesse havido
reformas do processo em todos os países da União Europeia, iniciadas em 1997. O primeiro país a
implementar essas mudanças foi o Reino Unido, que era aquele que tinha sido mais condenado, o que
é muito curioso porque se entendia que no Reino Unido os tribunais podiam fazer tudo, e temos o
TJUE a condenar o Reino Unido porque não há tutela cautelar dos atos da Administração central - não
apenas os atos de Governo, mas dos atos da Administração central, porque havia uma exceção ao
exercício da tutela cautelar, o que nos diz muito acerca do Direito britânico, e a sentença vai condenar
“os britânicos a serem britânicos”. Houve alterações introduzidas pelo Direito Europeu em todos os
outros países, até na Alemanha, onde havia processo cautelar.

Em Portugal, nos últimos anos antes da Reforma, a doutrina, procurando conseguir o apoio da
jurisprudência, tinha conseguido algum alargamento, mas era muito limitado. Aquilo que o legislador
processual vai fazer, em 2004, é alargar o processo cautelar. O artigo 112.º CPTA é sintomático dessa
transformação: até 2004, havia uma única providência cautelar restritiva e limitada e desde essa data
há uma substituição dessa lógica limitada por uma cláusula aberta, a plasmada no artigo 112.º/1 CPTA
e que é completada, nos termos do nº2, por uma enumeração exemplificativa muito alargada de várias
hipóteses possíveis em que o legislador se preocupou em consagrar hipóteses que, no passado, tinham
sido sugeridas pela doutrina administrativista para alargar o domínio da tutela cautelar. Passamos,
então, de uma fase em que só havia um meio tipificado e limitado, para uma fase em que se
consagram todos os meios possíveis e necessários para a tutela do direito e, assim, passa a existir
uma tutela cautelar completamente aberta que prevê todas as hipóteses possíveis. O artigo 112.º/1
CPTA é muito claro a propósito disto, vai mesmo além daquilo que prevê o processo civil. Vem dizer
que qualquer particular, dotado de legitimidade para intentar um processo jurídico, pode solicitar a
adoção da providência ou das providências cautelares, antecipatórias ou conservatórias, que se
mostrem adequadas a assegurar a utilidade da sentença a proferir: todos os pedidos adequados a
assegurar a utilidade da sentença. É uma cláusula aberta que modifica radicalmente o regime. E é algo
que decorre do Direito Europeu e que foi muito criticado, sobretudo pelo Governo e por entidades
administrativas, que se manifestavam contra o facto de os tribunais poderem agora mandar parar uma

180
ação administrativa. No entanto, estes protestos que às vezes ainda surgem estão condenados ao
fracasso porque, isto é uma exigência europeia, não é possível voltar atrás enquanto Portugal estiver
na União Europeia. A este respeito, há que notar que a integração na União Europeia tem várias
consequências, muitas ligadas à própria ideia de Estado de Direito, o que tem constituído vários
problemas para os húngaros e para os polacos, por exemplo.

Não se percebe porque é que não havia tutela e, agora, não é possível voltar atrás, no quadro da União
Europeia; é possível mudar as regras da tutela cautelar, criar outros mecanismos mais eficazes, aliás,
do ponto de vista da suspensão de eficácia há ainda, como veremos, uma realidade aberrante que deve
ser melhorada, mas eliminar a tutela cautelar não é possível, trata-se de uma regra essencial do Estado
de Direito, como admitido pela União Europeia. Protestos apareceram sempre e justificaram até o tal
regime aberrante, de que já falaremos, mas a existência em si de um contencioso cautelar é uma
dimensão essencial de qualquer processo. Não vai ser alterada.

Voltando à cláusula aberta, o legislador não ficou por aqui. Para que não houvesse dúvidas, veio nas
alíneas a) a i) deste n.º 2 do artigo 112.º CPTA, fazer uma enumeração exemplificativa. Em primeiro
lugar, surge a suspensão de eficácia, que era inevitável e, curiosamente, é a que levanta mais
problemas: como é aquela que normalmente é a mais utilizada, foi aqui que se introduziram as maiores
limitações para proteger as autoridades administrativas, mesmo quando não há razões para isso porque
quem vai decidir é o juiz, que vai comparar os interesses em presença no quadro desta realidade. Mas,
depois, cada uma destas alíneas corresponde àquilo que a jurisprudência e a doutrina começavam a
enquadrar e que a doutrina tinha defendido antes da Reforma. Podemos até olhar para cada uma das
disposições e ver uma "cara" atrás dela, ou várias, correspondentes aos autores que já defendiam a
introdução dessas alíneas:

Alínea b): “Admissão provisória em concursos e exames”. Trata-se de algo que é profundamente
essencial, quem defendeu isto em Portugal pela primeira vez foi a Professora Maria da Glória Garcia.

Alínea c): “Atribuição provisória da disponibilidade de um bem”. Aqui a pessoa alega que um bem
deve estar na sua titularidade e a tutela cautelar permite-lhe isso mesmo, de forma provisória. Podemos
encontrar nesta alínea refletida a postura do Professor Vieira de Andrade, que tinha defendido isto a
propósito de algumas situações concretas no quadro do Direito português.

Alínea d): “Autorização provisória ao interessado para iniciar ou prosseguir uma atividade ou adotar
uma conduta”: isto parece-se muito com a hipótese da alínea b), é uma autorização provisória para
iniciar ou prosseguir uma atividade que estava a ser exercida e, por qualquer razão, foi descontinuada

181
por decisão da autoridade pública. Só é possível salvaguardar o efeito útil de uma decisão sobre isso
se se recorrer à tutela cautelar. Aqui também podemos encontrar as "caras" dos Professores Vieira de
Andrade e Maria da Glória Garcia.

Alínea e): “Regulação provisória de uma situação jurídica, designadamente através da imposição à
Administração do pagamento de uma quantia por conta de prestações alegadamente devidas ou a título
de reparação provisória”. Sobre isto, houve um caso português muito badalado nos órgãos da
comunicação social: alguém que tinha sido burlado por um banco, que tinha ficado sem dinheiro
nenhum, um emigrante que voltou e que, tendo ficado numa situação por burla que envolvia também
a falta de controlo das autoridades públicas, pediu o correspondente a uma pensão mínima de
sobrevivência até ser decidido se ele devia ou não ter direito àquilo que correspondia aos montantes
de depósito que ele tinha efetuado no banco e que tinha sido alvo de burla. É um caso que tem a ver
com esta situação e que faz todo o sentido.

Mas mais do que isso, um dos aspetos que tinham sido discutidos, antes da reforma, era a aplicabilidade
das providências do processo civil também no processo administrativo. Isso explica as hipóteses que
vêm a seguir: o arresto, o embargo de obra nova, e a propósito destas alíneas podemos identificar as
caras dos Professores Vasco Pereira da Silva, Gomes Canotilho e Freitas do Amaral, já que os três
tinham defendido, a propósito de problemas no quadro do contencioso ambiental, que o embargo de
obra nova e o arresto - alíneas f) e g) - fossem utilizados para a proteção do direito do ambiente, no
âmbito da lei de bases do ambiente. Havia uma previsão genérica da lei de bases que não era
completada por mais nenhuma norma e, portanto, os Professores entendiam que era possível fazer
coincidir essa norma com as normas do processo civil e aplicá-las no quadro do processo
administrativo. O mesmo se diga do arrolamento (alínea h).

Por último, surge aqui uma realidade nova que é uma intimação para adoção ou abstenção de uma
conduta, por parte da Administração, quando haja um alegado receio da violação (alínea i). Esta norma,
no início, dizia apenas respeito ao Direito português. Depois da "reforminha de 2015" acrescentou-se
“do Direito da União Europeia”. E foi um bom acrescento: já sabemos que o Direito Administrativo é
também Direito Europeu concretizado, em que há a dupla dependência entre o Direito da União
Europeia e o Direito do contencioso administrativo português e, portanto, há que reconhecer o mérito
ao legislador de 2015, neste ponto.

Esta última cláusula é a mais discutida no quadro da reforma, até porque o Professor Freitas do Amaral,
num artigo publicado nos cadernos de Justiça Administrativa, faz aí o elogio destas normas, dizendo

182
que também contribuiu para estas e que era profundamente essencial o alargamento da tutela cautelar.
O Professor, que faz este elogio genérico do artigo, guarda um conjunto de críticas muito fortes para
esta última alínea. O Professor usa mesmo a expressão “in cauda venenum” ao falar do artigo,
procurando expressar, aludindo a esta última alínea, como "o veneno está na cauda da serpente", e este
"veneno" é algo que põe em causa o contencioso administrativo. Para o Professor Freitas do Amaral,
e com algum exagero, trata-se de uma norma perigosíssima porque transformaria a realidade
portuguesa no contencioso britânico, em que qualquer autoridade pública tinha de ir a qualquer tribunal
justificar-se, através da providência cautelar, antes de tomar qualquer medida, o que implicaria alterar
e subverter o processo administrativo. Para o Professor Vasco Pereira da Silva, o Professor Freitas do
Amaral não tem razão nenhuma. O que está em causa é algo que era há muito querido pela doutrina,
não apenas no Portugal, mas também no estrangeiro. Os primeiros a falar disto foram os autores
italianos, como Mario Nigro, nos anos 70, ou Sabino Cassesse, nos anos 80, que defendiam que o
processo, designadamente a tutela cautelar, tinha de prever medidas antecipatórias das agressões,
quando essas agressões eram iminentes e violassem direitos subjetivos dos particulares que seriam,
dentro de algum tempo, de certeza absoluta afetados.

Refutando a argumentação do Professor Freitas do Amaral, o Professor Vasco Pereira da Silva recorre
ao seguinte argumento: no quadro destas situações cabem as que, no âmbito dos planos de urbanização,
nomeadamente o PDM, lesam imediatamente um direito do particular, que tem a ver com a propriedade
e só produzem efeitos quando houver um ato administrativo que aplique essas normas à situação do
particular. Portanto, existe a ameaça da lesão, o fundado receio de violação do Direito Administrativo,
uma imediata agressão do direito que ficou limitado, por exemplo, a proibição de construir em terreno
urbano. O titular do prédio urbano está imediatamente ameaçado no seu direito, mas esta ameaça só
se vai concretizar quando houver um pedido de construção. E, portanto, há um ato administrativo que
vai concretizar esta situação. O que se prevê aqui é que o particular use, imediatamente, esta
providência cautelar para procurar reagir contra a agressão que sofre no quadro da sua esfera jurídica.
E o mesmo se diga quanto a todas as relações duradouras em que há atos que limitada ou
provisoriamente ferem parcialmente o pedido do particular e esses atos só vão surgir no final da
sequência de um procedimento completo. Por exemplo, a regra da avaliação de impacto ambiental,
tem consequências depois no ato da autorização final e vai produzir efeitos no futuro. Mas, a partir do
momento em que essa avaliação de impacto ambiental tem efeito desfavorável ao particular, ainda que
este só venha a ser afetado de uma forma direta depois de haver a decisão final, está em condições de
utilizar a providência cautelar para tutelar o seu direito que foi, desde logo, posto em causa, porque há
o receio da sua violação. Por aqui se percebe como não se pode dar razão ao Professor Freitas do

183
Amaral: este mecanismo é um mecanismo adequado de proteção cautelar e que, de resto, existe na
maior parte dos países com sistema francês. Temos aqui uma transformação que foi fundamental e que
é irreversível. Não no sentido que todos os aspetos têm de ficar assim para sempre, nem que não se
podem formular novas regras. É irreversível no sentido em que não é possível acabar com a tutela
cautelar.

Esta tutela cautelar é uma tutela acessória da tutela principal e o artigo 113.º e ss. introduzem esta
dimensão da acessoriedade. É um processo urgente e tem tramitação autónoma relativamente ao
processo principal, que o vai acompanhar e lhe é anexada.

Do artigo 114.º retiram-se os requisitos que deve ter um requerimento cautelar, que pode ser interposto
previamente à instauração do processo principal (o que constitui outro alargamento da tutela cautelar
introduzido pela Reforma). Pode ser apresentado juntamente com a petição inicial do processo
principal ou na pendência do mesmo. Estas variadas possibilidades também vêm tornar efetiva a tutela
cautelar, enquadrada na lógica europeia.

Estabelecem-se também regras relativas às petições iniciais: há que indicar o tribunal, o nome, as
entidades demandadas, os contrainteressados, os outros sujeitos, etc. Prevê-se a existência de um
despacho liminar e estabelecem-se regras quanto à decisão. Uma regra que é muito importante referir,
porque nunca é cumprida, é a do artigo 119.º, que postula o prazo de cinco dias úteis para decidir. Se
olharmos para a realidade portuguesa, os processos cautelares estão a durar, neste momento, à volta
de dois anos, o que é muito grave quando estamos no domínio da tutela cautelar e olhamos para a
diferença entre o prazo previsto na lei e aquele que é efetivamente adotado. Essa demora pode ser
explicada pelas regras da suspensão da eficácia, que introduzem aquilo a que se chama um
“préprocesso”, em termos inconstitucionais que a seguir iremos referir.

Quanto aos critérios da decisão, no artigo 120.º, o legislador estabelece a regra que é típica de qualquer
processo cautelar e que obriga a repensar os limites dos poderes do juiz, nomeadamente tendo em
conta o artigo 3.º, que estabelece, em geral, os poderes do juiz, porque havia lá uma exceção que agora
aqui tem de ser invocada. É que estes critérios de decisão vão fazer um juízo relativo entre duas coisas:
as providências cautelares são adotadas quando haja fundado receio da constituição de uma situação
de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o
requerente visa assegurar no processo principal.

O que está em causa é o fundado receio de um facto consumado, algo que não se possa resolver a
seguir, e a existência de prejuízos de difícil reparação para os interesses do particular - isto do lado do

184
particular. Da parte do juiz, o que lhe cabe fazer é comparar estes interesses com os interesses da
Administração. No n.º 2 estabelece-se que a adoção da providência ou das providências cautelares é
recusada quando, devidamente ponderados os interesses públicos e privados em presença, os danos
que resultariam da sua concessão, se mostrem superiores àqueles que podem resultar da sua recusa.
Ou seja, quando o prejuízo para o interesse público seja manifestamente superior ao prejuízo dos
particulares. Aquilo que o juiz faz na tutela cautelar é comparar os interesses relativos em presença, o
que implica determinar quais são os interesses da parte que são mais lesados naquele processo, se não
for conferida aquela tutela cautelar. Estamos perante um juízo de comparação, um juízo de mérito.
Quando o artigo 3.º dispõe que o juiz administrativo decide em questões de legalidade, e como já tinha
sido referido, em aula anterior, pelo Professor Vasco Pereira da Silva, há também aí um controlo do
mérito. No quadro da legalidade, as transformações do princípio da separação de poderes implicam
que o juiz administrativo também controla o mérito, quando esse mérito e questões de conveniência
se transformaram em problemas de legalidade por serem enquadrados no âmbito de um princípio. A
outra exceção que não surge referida, mas devia surgir, é a tutela cautelar, porque aquilo que o juiz vai
comparar é o mérito relativo das duas pretensões: a pretensão do particular e a pretensão da
Administração.

De resto, isto é reconhecido, há muitos e muitos anos, no contencioso italiano. Na jurisdição italiana
diz-se que o contencioso cautelar é uma jurisdição de mérito. E, efetivamente, o que está em causa é
um juízo de mérito e não de legalidade. O juiz não vai apreciar a legalidade da conduta da
Administração, porque lesou o direito do particular, isso é apreciado no processo principal. Aqui, ele
vai apenas comparar os interesses relativos. E é por isso que a decisão é provisória e, por isso também,
há aqui um juízo que tem de ser feito pelo juiz e é esta a razão de ser, a base da sustentação do
contencioso administrativo. Sejamos claros: não há aqui uma lógica de duas vontades contraditórias,
não há aqui uma lógica da prossecução do interesse público, da defesa da legalidade. Não há aqui nada
disso. Há aqui a ideia de ver quem é mais prejudicado pela produção de efeitos do ato administrativo.
E, portanto, temos aqui uma realidade que introduz uma nova dimensão do procedimento cautelar, e
faz com que ele seja verdadeiramente provisório, porque o particular pode ganhar a providência
cautelar, porque é o mais prejudicado, mas depois não obter ganho de causa no processo principal e
vice-versa, porque são dois juízos diferentes. O que está aqui em causa tem apenas a ver com a
comparação das duas situações. É por isso que não se compreende a lógica do artigo 126.º. Este artigo
fala da utilização abusiva da providência cautelar, e estipula o n.º 1 que o requerente é responsável
pelos danos que, com dolo ou negligência grosseira, tenha causado ao requerido e aos
contrainteressados. Mas, causou prejuízo porquê? Quem decidiu foi o juiz! Foi o juiz que comparou

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os interesses e que os decidiu. Então, como é que o particular é responsável? Isto tem a ver com os
traumas de infância difícil do contencioso administrativo. No quadro de uma guerra entre particulares
e Administração, como se o juiz não tomasse uma decisão com base na comparação dos efeitos que
estão em causa. Isso é manifestamente aberrante e é um dos traumas da infância difícil. Há ainda uma
manifestação de que o foco era a necessidade de proteger a Administração. Estas providências
cautelares eram uma realidade completamente excecional e se houvesse algum erro nesse juízo, então,
o particular era responsável, porque ele é que é o "malandro que estava a pôr em causa o exercício da
função administrativa". O que o juiz administrativo deve fazer é ponderar esse interesse, e se há uma
decisão judicial, a haver responsabilidade, é do juiz. Nunca ninguém intentou a este processo, mas se
alguém o fizesse, o que deveria acontecer era responsabilizar o juiz por ato da função judicial. Perante
uma decisão do juiz, é ele o responsável. Se o particular cometeu fraude, se mentiu, aí sim, a
responsabilidade é do particular. Mas, responsável pela suspensão nunca! O particular vai a tribunal,
o juiz dá-lhe razão e o particular é que tem a culpa se houver prejuízos? Isto não faz qualquer sentido!

Mas, isto vem preparar o disparate maior, que é o que vem previsto no artigo 128.º e que é um disparate
que põe em causa o Estado de Direito, porque o legislador, naquela forma arrevesada que tem de
construir os disparates, começa primeiro por dizer uma coisa boa e, depois, a seguir estabelece uma
exceção a essa coisa boa. A exceção é maior que a regra geral e põe completamente em causa a mesma,
acaba por consumi-la, pode até dizer-se que deixa de existir regra geral. É uma realidade típica do
legislador, principalmente do Direito Administrativo.

O artigo 128.º intitula-se “proibição de executar o ato administrativo”. Ora, isto faz todo o sentido, se
há um pedido de suspensão da eficácia, a apresentação do pedido obriga a suspender. Porquê? Porque
não existe privilégio de execução prévia e, portanto, se alguém alega a ilegalidade, a Administração
tem de suspender a aplicação dos seus atos. De resto, esta regra, enquanto regra geral, é aquela que
deveria existir em todos os casos, como já defendia o Professor Vasco Pereira da Silva, no quadro da
Reforma, e que corresponde à lógica alemã. Se alguém se queixa de uma atuação administrativa,
suspende-se a mesma. Mas, a providência cautelar, que é a seguir determinada pela Administração, é
para executar e o tribunal tem o tal prazo de 5 dias para lhe dar razão e executar ou então não lhe dar
razão e manter a suspensão. Esta regra é uma boa regra e dá um ar mais moderno. Portugal adotou o
sistema alemão de estabelecer a suspensão da eficácia a partir do momento em que existe o pedido.
Mas, a seguir vem a exceção. E a exceção põe em causa a regra, em todos os casos. E, portanto, a regra
não existe! Diz-se “salvo quando a autoridade administrativa remeta a tribunal resolução
fundamentada na pendência do processo cautelar, reconhecimento que o deferimento da execução seria

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gravemente prejudicial para o interesse público.” Ou seja, se a administração diz que é prejudicial para
o interesse público suspender a execução, e só porque a administração o diz, não é por o juiz entender
que esta tem razão no que diz, a administração diz que deve ser suspensa e fica imediatamente
suspensa. Isto significa que em 99,9% a 100% dos casos, em que alguém pede a suspensão de eficácia,
a administração, no prazo de dez dias, que é o prazo estabelecido no CPA para estas normas, pede
sempre a declaração de prejuízo, entregando um formulário, para o qual já existe um modelo que está
em todas as repartições públicas, e sem justificar diz que há razões de lesão grave para o interesse
público, logo eu devo poder continuar este processo. E, portanto, o belo princípio da primeira parte do
artigo 128.º é posto em causa, pela exceção que passou a ser a regra geral. Em todos os casos, em que
há este pedido de suspensão da eficácia, a administração vem dizer “eu quero executar, eu posso
executar”. O que está aqui em causa, e que põe em causa o princípio, é esta possibilidade de a
administração dizer: “eu quero executar”.

Repare-se que a administração é a ré, e estamos num processo cautelar, e é a ré que diz: “não me
apetece executar” e o juiz não vê mais nada. É um absurdo considerar que o processo cautelar é uma
realidade que se passa entre os sujeitos, o autor e a ré, sem intervenção do juiz. É o mesmo absurdo
que justificava, há pouco, a responsabilidade administrativa. Aqui este absurdo diz que a
administração, que goza de poderes de executivo, porque o nosso sistema é de execução, desde que a
lei lhe dê esse poder, diz: “eu quero executar” e executa. Isto é o mesmo que, no processo penal, o réu
que foi preso, preventivamente, dizer ao juiz que não gosta da comida da prisão e que, por isso, o juiz
devia mandá-lo para casa, porque vai de certeza ser absolvido, e o juiz manda. E, portanto, no âmbito
da decisão cautelar, de saber se há ou não prisão preventiva, quem decide acerca do resultado dessa
“providência” é o réu! É isto que o legislador diz aqui! A administração diz que há interesse público e
que, por isso, pode e quer executar. Isto tornou-se a regra no Direito português, dos tais 10 dias para a
apresentação deste pedido pela Administração que diz: “eu quero executar”. E, portanto, na prática,
quando ouvimos uma notícia em que o processo entra em tribunal e foi suspendida a eficácia, não
podemos acreditar, pois, o suspendido é só a parte do início do n.º 1 do artigo 128.º, isso é que foi
suspendido, mas dentro de 10 dias a administração apresenta o pedido para executar e, por isso, vai
executar o processo. Portanto, é esta a regra, não é a outra. A outra era adequada, esta não faz sentido
absolutamente nenhum. É um disparate no quadro do contencioso administrativo português! Este
disparate faz com que só se deva pedir a suspensão da eficácia em desespero de causa, porque não é
preciso pedir a suspensão da eficácia. Era necessário quando só havia esse meio, agora há uma cláusula
aberta no contencioso cautelar. E, portanto, pode-se pedir aquilo que se quiser, pode-se pedir a
condenação da administração, a uma atuação ou uma omissão, pode-se pedir a condenação numa

187
utilização provisória de um bem, pode-se pedir aquilo que se quiser. Importa ultrapassar este obstáculo,
que é um obstáculo inadmissível e que não tem nenhuma razão legal.

Nos últimos casos relevantes que têm sido discutidos na televisão, normalmente, aparece sempre um
grande especialista em contencioso administrativo a explicar o regime da suspensão da eficácia e a sua
superação, através da vontade da administração, e depois descobre-se que não tinha havido suspensão
da eficácia e que, portanto, o processo tinha sido decidido. O último caso foi no âmbito da tutela
cautelar, antes da declaração do período do estado de emergência, alguns excessos dos regimes
anteriores de natureza excecional que correspondiam à Lei de Bases da Proteção Civil e que os
tribunais afastavam por serem desproporcionados, por um lado, mas afastaram, no âmbito do processo
cautelar, considerando que era irrelevante a vontade da administração. Assim, o Senhor Professor
Vasco Pereira da Silva aconselha os seus alunos, por causa desta irracionalidade suscetível de pôr em
causa o Estado de Direito, que usem a sua criatividade, criem outras providências cautelares e não
peçam, apenas, a suspensão da eficácia, essa é a explicação mais preguiçosa, a explicação que permite
que a Administração se oponha e que isso seja discutido, ou que isso não seja discutido sequer, e que
produza efeitos em termos que são um absurdo.

Isto também é responsável por outra coisa: o processo cautelar transformou-se quase num processo
principal, porque os juízes pensando na suspensão da eficácia, dizem que está aqui um préprocesso,
porque o que este artigo 128.º prevê é que, depois, o juiz vá verificar a validade da declaração da
Administração e só depois de considerar que a Administração tem argumentos para pedir esta
declaração (os tais dois anos) é que ele vai finalmente decidir, comparando os interesses, para verificar
qual é prevalecente: se é o da Administração ou o de um particular. Ou seja, a Administração, por sua
vontade unilateral, diz “eu quero executar o ato”, apesar de o particular ter pedido a suspensão da
eficácia, esta declaração da administração permite passar à execução, o juiz vai passar os próximos
dois anos a saber se a decisão está bem fundamentada, se foi um ato administrativo que foi tomado de
acordo com a lei, vai discutir a questão do ato e só depois de discutir a questão do ato é que o juiz vai
dizer: “bem, mas isto veio a propósito de uma tutela cautelar, vamos lá aqui comparar os interesses do
particular e da Administração”, ou seja, aqui o que era cautelar é relegado para segundo plano e este
processo que devia ser um processo cautelar e a decorrer rapidamente, transforma-se num segundo
processo principal que não conduz a nada. Daí o conselho do Senhor Professor Vasco Pereira da Silva,
aos seus alunos, para que evitem a suspensão cautelar, aleguem tudo aquilo que podem alegar, no
quadro do artigo 112.º, mas evitem a tutela cautelar. Já se assistiu à seguinte situação engraçada: um
especialista em contencioso administrativo foi à televisão explicar a separação de poderes, dizendo:

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“julgam que ganham alguma coisa com este pedido cautelar, não ganham absolutamente nada, a
administração vai imediatamente justificar um pedido de interesse público”, no dia seguinte, alguém
que foi ver o processo explicou: “não, o que foi pedido não é a suspensão da eficácia, foi outra
providência cautelar”, designadamente aquela última de que falámos há pouco do alegado receio da
lesão de direitos fundamentais e, portanto, como havia o alegado receio, o juiz não utilizou as regras
da suspensão da eficácia. E, de acordo com o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva, fez bem e,
portanto, conduziu a uma decisão rápida.

Depois, temos normas especiais que se aplicam aos diferentes meios processuais, temos a regra da
suspensão da eficácia do ato já executado, que tem a ver ainda com a suspensão. Temos a suspensão
da eficácia de norma, e, portanto, esta previsão, no fundo, o que justifica é a aplicação do processo
cautelar ao contencioso dos regulamentos. Mas, ela tem os mesmos problemas da suspensão de eficácia
de atos, mas aqui colocam-se todas as hipóteses que, há pouco, referimos nos termos do artigo 112.º
e, portanto, o legislador vai aqui regular esta aplicabilidade e, curiosamente, veio repetir o disparate
que já se analisou quando falámos do processo principal. Esta suspensão da eficácia tem efeitos
circunscritos ao caso concreto, ou seja, a tal confusão do legislador entre o pedido de anulação de um
ato administrativo que aplica o regulamento, tem efeitos ao caso concreto e o pedido da declaração de
ilegalidade e, portanto, se o que está em causa é a declaração de ilegalidade, mais uma razão para não
se usar a suspensão de norma e se usar as intimações sobre forma cautelar, pedidos de condenação da
Administração a condutas determinadas para se obter, também, uma suspensão com eficácia geral,
porque como se está perante um ato normativo, deve haver uma eficácia geral da providência cautelar.

Depois, estabelecem-se regras em relação ao decretamento provisório da sentença. Enfim, temos aqui
uma lógica, de novo, de permitir providências provisórias em relação à tutela cautelar, mais uma
realidade para introduzir uma discussão para “meter mais areia na engrenagem”, a possibilidade de
haver uma situação de especial urgência, de haver medidas provisórias. Estas medidas provisórias que
fazem algum sentido se corresponderem a uma tutela imediata necessária, podem também significar
mais um fator de discussão que põe em causa a tutela cautelar, que é o efeito dissuasor e de discussão
de algo que é colateral e que é um divertimento para não haver preocupação com a questão principal
e, enfim, são um mecanismo da presença dilatória que, na perspetiva do Senhor Professor Vasco
Pereira da Silva, também não faz muito sentido. Era preferível concentrar esta tutela cautelar naquilo
para a qual ela serve, que é a de acautelar os efeitos úteis da sentença. Era preciso pô-la a funcionar e
respeitar os prazos de funcionamento e fazer com que ela fosse verdadeiramente cautelar e deixar para

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a decisão aquilo que tem de ser decidido no final. Aparecem, ainda, duas outras coisas, antes de haver
um último aspeto importante com o qual terminará esta matéria.

O artigo 132.º fala dos procedimentos relativos à formação do contrato. Nos termos do contencioso
pré-contratual, o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva criticou o facto do legislador, no contencioso
pré-contratual, não ter incluído todos os contratos regulados no Código da Contratação Pública, ou
seja, todos os contratos públicos. Aquilo que fazia sentido, havendo um regime dos contratos públicos,
era que o regime do contencioso pré-contratual fosse aplicável a todos os contratos e não apenas
àqueles que vêm referidos nos artigos 100.º e 103.º-B. Mas, o legislador preferiu manter a
esquizofrenia e, portanto, para esses casos prevê processos cautelares que se associam ao processo
principal. E, portanto, esta esquizofrenia faz com que os casos que estão previstos no artigo 100.º,
casos de anteriores contratos administrativos (como a empreitada ou a concessão), mas também de
anteriores contratos de cuidados (como a locação, o arrendamento, a compra e venda de imóveis ou o
fornecimento), têm o regime do contencioso pré-contratual e, portanto, dão origem a um processo
urgente que, depois, pode ou não ser acompanhado na ação relativa ao contrato. Em relação aos que
não estão incluídos, nestes artigos 100.º e 103.º, mantém-se o regime tradicional, ou seja, estas
questões são resolvidas através do processo cautelar e, depois, acompanhadas de um processo
principal. Tratase de uma esquizofrenia que não tem nenhuma razão de ser e que também põe em
causa, se não a forma e a letra, o espírito europeu que está subjacente às diretivas em matéria de
contratação. Esse espírito diz que o contencioso pré-contratual deve ser concentrado e decidido
imediatamente, havendo, por isso, uma suspensão imediata, o tal princípio do “quieto calado”, “virado
para a frente” que não permite que se faça nada e que tem uma eficácia suspensiva autónoma e
completa e só depois de decidido esse contencioso pré-contratual é que se pode celebrar o contrato.
Portanto, a ação em matéria de contratos deve ser reservada para o que se passa a seguir, no âmbito da
execução do contrato, para as questões verdadeiramente contratuais. Esta lógica portuguesa de criar
uma outra esquizofrenia no contencioso da contratação pública, em que há os processos que, nos
termos do Direito europeu, dão origem a um processo urgente, mesmo assim, já com o “stand still”
limitado e, depois, há um contencioso contratual e os outros que não têm direito a esse regime e,
portanto, têm a providência cautelar que serve para resolver questões pré-contratuais e depois têm a
ação principal em que é discutido tudo, em que são discutidas as questões pré-contatuais e as questões
contratuais, não faz sentido! Agora, percebe-se melhor porque é que o Senhor Professor Vasco Pereira
da Silva critica essa norma que enumera os contratos e diz que, na sua perspetiva, o artigo 100.º se
deveria aplicar a todos os contratos públicos.

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Depois, aparece uma cláusula, pela qual o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva tem muito
interesse, acerca do pagamento de quantias, o modo como esta relação provisória é decretada e
estabelecem-se regras acerca da condução antecipada de prova, quando esta produção antecipada de
prova é necessária, por razões de saúde ou por razões que têm a ver com a idade, é preciso recolher
depoimentos de forma antecipada.

Mas, há uma outra regra com a qual se terminará a análise deste estudo sobre as providências
cautelares, que é uma regra que foi criada com boas intenções, baseada numa regra similar que existe
também no Código de Processo Civil, e que é fonte de muitos males, enfim, de muitos efeitos negativos
secundários que resultam numa forma não intencional e que resultam de o funcionamento da justiça
administrativa, em tempos, contribuir para diminuir a celeridade do processo administrativo. O que é
que está aqui em causa? A causa é a norma do artigo 121.º CPTA. O objetivo deste artigo 121.º é o
objetivo de celeridade; o que está aqui em causa é a possibilidade, quando alguém apresenta um
pedido de natureza cautelar, a possibilidade de o juiz entender que aquilo que lhe é trazido a si é de tal
maneira completo, que não tem dúvidas quanto ao resultado daquele processo, que o juiz pode convolar
a providência cautelar num processo principal, desde que ouça as partes, e emitir uma decisão, no
prazo de 10 dias. Teoricamente, esta é uma boa regra de agilização processual. O que o particular está
a fazer é a apresentar um pedido de natureza cautelar, mas esta apresentação do pedido já tem
elementos suficientes para que o juiz se sinta em condições de decidir e, portanto, a título excecional,
ele pode, depois de ouvidas as partes, imediatamente proferir uma decisão. O legislador, apesar de
tudo, diz que ele pode antecipar, desde que se verifique que foram trazidos ao processo cautelar todos
os elementos necessários e a simplicidade do caso ou a urgência da sua resolução definitiva o
justifique. São duas condições que correspondem a previsões abstratas e que são de difícil verificação.
Em primeiro lugar, a simplicidade do caso, pois os casos não costumam ser simples e o Professor
Vasco Pereira da Silva desconfia desta expressão “simplicidade”, porque a simplicidade muitas vezes
é aparente. Portanto, aquilo que aqui estaria, subjacente a esta norma, era uma situação absolutamente
excecional, em que, apesar de estar a ser apresentado um pedido cautelar, este pedido permite uma
resposta rápida. Isto é algo que raramente acontece. De acordo com o Senhor Professor Vasco Pereira
da Silva, não haverá mesmo nenhum caso, nos últimos dezasseis anos, desde que está a ser aplicado o
CPA, em que isto se tenha verificado e, portanto, isto é algo absolutamente excecional. Mas, isto faz
com que a tendência, nos casos mais importantes, seja a de que os processos cautelares sejam
apresentados pelo autor, e aqui a culpa é do autor e dos patrocinadores do autor. Portanto, a culpa não
é dos juízes, é dos advogados que também não sabem o suficiente de processo administrativo e
interpretam esta norma excecional como se fosse uma norma geral e, portanto, fazem um pedido

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cautelar, em que o juiz tem apenas de comparar os interesses relativos do particular e da administração,
onde fundamentam tudo o que tem a ver com o processo principal, apresentam inclusive pareceres. Já
aconteceu ao Professor Vasco Pereira da Silva, nos casos em que lhe pedem pareceres, ainda que estes
sejam raros dizerem: “ah Senhor Professor temos um problema, tem 15 dias para fazer o parecer”,
“mas 15, porquê?, está a falar-me do final da impugnação? O prazo são três meses”, “não senhor
doutor! É que estamos a pensar em interpor um pedido cautelar e queremos ter lá tudo”. Isto faz com
que os tais processos cautelares que precisam de ser decididos, em cinco dias, tenham petições iniciais
de três mil páginas e, portanto, nenhum juiz lê três mil páginas para decidir em cinco dias úteis.

Assim, esta regra que, aparentemente, correspondia a uma forma de agilizar o processo, que
aparentemente era boa, que em abstrato é excelente, que tem as luas do Professor João Tiago Silveira,
na sua tese de doutoramento, que aliás é um dos pais desta norma e estava convencido que isto
resolveria todos os problemas do processo administrativo, o que aconteceu é que isto contribuiu para
matar a norma. Porque um processo que tem três mil páginas não pode ser decidido em cinco dias. Se
o juiz vai decidir também a questão principal, ou vai que ter que a apreciar para ver se tem que decidir,
e se isto acontece em todos os casos, acabou a tutela cautelar. O Professor Vasco Pereira da Silva tem
assistido a muitos juízes, normalmente, que foram seus alunos, que lhe dizem: “professor não consegui
cumprir o prazo, tinha três, cinco mil páginas para ler”. E, depois, esta ideia de quanto mais páginas
melhor, também é uma realidade que contribui para a morosidade processual. Quando se queixam que
a justiça administrativa não funciona, ela também não funciona, em muitos casos, porque as regras não
são adequadas e não permitem a celeridade processual, porque esta lógica de que os processos são
processos a peso, de que um processo corresponde a várias pens grandes, a várias milhares de páginas,
isto é algo que faz com que os processos não se possam decidir nos prazos que estão em causa.
Portanto, aqui, a lógica tem de ser contrária.

No quadro de outros países acontece haver limitação do número de páginas ou caracteres, o que merece
a concordância do Senhor Professor Vasco Pereira da Silva, porque o espírito de síntese é
absolutamente essencial. Um processo, tal como uma tese, não é feito na lógica do “encher chouriços”,
porque se tudo for colocado, mesmo sem ter a ver com as regras do processo, isso faz com que se
discuta tudo: discutem-se questões de nulidade, competência, discutem-se todas as ilegalidades do ato
principal, discutem-se diferentes teorias, metem-se lá muitos pareceres, porque também há essa lógica
típica dos pareceres. Toda esta realidade, ao invés de simplificar o processo, torna o processo moroso
e complicado, e, portanto, quando num processo principal se introduz uma petição inicial que tem
cinco mil requisitos e tem quatro pareceres mais doze folhinhas, mais pareceres de adesão e outras

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coisas do género, esta lógica é de anticeleridade e é uma lógica que, ao invés de introduzir a
harmonização, introduz a morosidade.

Portanto, é preciso estabelecer limites para os processos, mas isto não é só no processo administrativo,
está cada vez a ficar pior, em qualquer realidade processual. No caso da operação Marquês, só para ler
aquilo são vários anos e, depois, para emitir uma sentença pior ainda. O que é preciso é que haja cada
vez mais espírito de síntese a todos os níveis e que as alegações não sejam feitas para ocupar espaço,
para justificar a cobrança de salários ao cliente e o tempo que se perde. É necessário que as alegações
sejam sucintas, corretas, bem elaboradas e coerentes. É preciso que as decisões também não têm de
estar a copiar milhares de coisas anteriores, que estão anexas ao processo; é preciso estabelecer regra.
A União Europeia, nos termos do funcionamento do Tribunal de Justiça, estabelece limites: a petição
inicial, tantos caracteres; a contestação, tantos caracteres; a decisão, tantos caracteres. Temos de
avançar para uma coisa destas, porque se não avançarmos para isso, nunca mais temos processos
administrativos a funcionar, mas não só os processos administrativos, não temos o processo civil
célere, como deve ser qualquer processo, se não houver limites às partes e limites ao juiz, no âmbito
da decisão.

Portanto, é um bom exemplo de uma medida aparentemente boa, mas que teve o efeito contrário, de
em vez de agilizar o processo, ter contribuído para a sua demora cada vez maior e mais injustificada.
Isto para que a solução, tal como dizia o Bastonário da Ordem dos Advogados, de pôr em causa a
justiça administrativa, porque ela era muito morosa. Efetivamente, é muito morosa, é preciso fazer
com que ela funcione mais celeremente. A justiça administrativa é absolutamente necessária e acabar
com esta justiça administrativa traria uma maior morosidade a qualquer processo, porque iria entupir
os tribunais judiciais com processos especializados difíceis, com ploblemas complicados que o juiz de
família ou que o juiz comercial ou de civil não está habituado a lidar e, portanto, aparentemente a
solução de eliminando os tribunais para resolver os problemas da morosidade da justiça, conduzem ao
resultado contrário. Agora, sim à justiça administrativa! Sim, às especificidades de um processo
administrativo! Mas, não à morosidade, não há falta de regras adequadas, nem à falta de organização
de tribunais, de modo a permitir que a justiça funcione!

Com isto, demos todo o processo declarativo.

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