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TRANSCRIÇÕES DAS AULAS TEÓRICAS DE

DIREITO ADMINISTRATIVO I
REGÊNCIA DO PROF. VASCO PEREIRA DA SILVA
TB, 2021/22
Transcrições das Aulas Teóricas TB; 2021/2022
Prof. Vasco Pereira da Silva

INDÍCE

(27.09.2021) - AULA 1 de 2ª feira 3

(29.09.2021) - AULA 2 de 4ª feira 3

(06.10.2021) - AULA 3 de 4ª feira 10

(11.10.2021) - AULA 4 de 2ª feira 14

(13.10.2021) - AULA 5 de 4ª feira 22

(18.10.2021) - AULA 6 de 2ª feira 28

(25.10.2021) - AULA 7 de 2ª feira 37

(27.10.2021) - AULA 8 de 4ª feira 45

(03.11.2021) - AULA 9 de 4ª feira 51

(08.11.2021) - AULA 10 de 2ª feira 59

(10.11.2021) - AULA 11 de 4ª feira 67

(15.11.2021) - AULA 12 de 2ª feira 73

(17.11.2021) - AULA 13 de 4ª feira: 83

(22.11.2021) - AULA 14 de 2ª feira: 90

(24.11.2021) - AULA 15 de 4ª feira: 96

(29.11.2021) - AULA 16 de 2ª feira 102

Lista de Participantes 113

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Prof. Vasco Pereira da Silva

(27.09.2021) - AULA 1 de 2ª feira

Apresentação da disciplina
Desde que acordamos, até ao momento que adormecemos, sem dar por isso, estamos
envolvidos em 1001 relações administrativas e, isto, desde que nascemos e nos foi atribuído
um nome, e fomos registados, até que morremos, terminando uma relação com a
administração pública. Portanto, estamos, permanentemente, em relações
jurídico-administrativas.
Estas relações jurídicas, num Estado de Direito, são reguladas nos termos do Princípio
da Legalidade: a administração só atua porque a lei prevê essa competência por parte do
dever público, no quadro do exercício de determinada função. Essa atuação administrativa
está sujeita aos critérios que resultam da lei e, se há uma ilegalidade, há tribunais que servem
para tutelar os nossos direitos, no quadro das relações jurídicas administrativas.
Por isso, o Direito Administrativo é um mundo com o qual todos vivemos a todos os
momentos e a todas as horas e que merece ser estudado.

(29.09.2021) - AULA 2 de 4ª feira

Psicanálise do Direito Administrativo


As realidades do passado mudaram de tal forma o Direito Administrativo que é
absolutamente essencial perceber como é que elas nasceram, como é que elas evoluíram,
quais as realidades que vêm do passado, quais aquelas que são verdadeiramente novas e de
uma realidade futura.
Nas instituições, tal como nas pessoas, os traumas são uma fonte de problemas para
uma vida inteira e tais podem ser problemas de natureza patológica, gerando “doenças''. O
Direito Administrativo teve várias “esquizofrenias”, que se transformaram em dualidades, já
não esquizofrénicas, mas que ainda andam próximo disso (por exemplo, no domínio da
contratação pública e no domínio da responsabilidade civil). Há muitas áreas em que se fala
de dualidades de natureza esquizofrénica e, se nos dias de hoje essa realidade é uma realidade
do passado, é facto que ainda há vestígios da mesma que se manifestam no dia a dia, naquilo
a que o Doutor Freud chama de “psicopatologia da vida quotidiana do direito
administrativo”.

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Quais foram os principais momentos e questões traumáticas no quadro da infância do


direito administrativo? São, basicamente, de duas ordens.

Primeiro trauma do Direito Administrativo


O primeiro tem a ver com o modo como surgiu o contencioso administrativo na
realidade francesa. O Direito Administrativo é uma realidade muito antiga, mas é costume
considerar a revolução francesa e o período que vem de 1789 até aos nossos dias como sendo
o de Direito Administrativo moderno, ou verdadeiro Direito Administrativo, porque,
efetivamente, até essa altura só haviam normas dispersas e, uma realidade que pudesse
funcionar tal como nos dias de hoje, como uma disciplina jurídica, é uma realidade que teria
de ter nascido, efetivamente, com as revoluções liberais e, em especial, com a revolução
francesa.
Com a Revolução Francesa, os liberais vieram instaurar um novo modelo de estado, o
Estado Liberal. O liberalismo político assentava em dois pilares fundamentais: a separação de
poderes e a garantia dos direitos fundamentais. Efetivamente, os liberais, na Revolução
Francesa, vieram exaltar esses princípios e vieram consagrá-los na constituição. No entanto,
simultaneamente, os tribunais, que de um ponto de vista sociológico correspondiam à classe
senhorial do passado perante a nova burguesia triunfante, foram proibidos de julgar a
administração. Portanto, aquilo que os revolucionários franceses começam por fazer em 1789
é proibir os tribunais de controlar a Administração, por questões relacionadas com o medo
dos tribunais e os limites ao novo poder.
É por isso que os autores franceses que estudaram esta matéria vêm dizer que a
desconfiança perante os tribunais é uma das razões que está por trás desta distorção ao
Princípio da Separação de Poderes, que vai ser introduzida com a Revolução Francesa e que
vai ser, eufemisticamente, chamada de “Visão Francesa da Separação de Poderes”.
Portanto, enquanto se declarou uma coisa, aquilo que se fez foi precisamente o contrário - foi
estabelecer a promiscuidade entre administração e justiça, foi o pecado original do
surgimento do contencioso administrativo (a administração pública não é fiscalizada por uma
autoridade independente, ela fiscaliza-se a si própria).
Como Maurice Hauriou, um dos pais do Direito Administrativo, vai dizer: “A Justiça
Administrativa é uma forma de introspeção” – é a administração que faz o juízo acerca dos
seus comportamentos e determina ou não a legalidade daquilo que efetuou. Ora, isto é um
trauma terrível e é uma daquelas manifestações detetadas por Freud (é uma daquelas

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situações em que o paciente diz uma coisa e faz outra), a qual ele identifica como
“Declaração de Cobertura”.
No contencioso administrativo, a Administração diz que está a construir a separação
de poderes. No entanto, o que estava efetivamente a fazer era instalar a confusão e a
promiscuidade entre a Administração e a justiça. Este trauma vai chegar quase até aos nossos
dias, porque o resultado desta atitude foi a criação de órgãos administrativos especiais,
responsáveis por fiscalizar a Administração- a introspeção administrativa.
Em Portugal, só com a constituição de 1976 é que, pela primeira vez, os tribunais
foram integrados no poder administrativo.
No quadro do regime da constituição de 1933 dizia, lapidarmente, o Prof. Marcello
Caetano, que os tribunais administrativos eram órgãos do poder administrativo, no exercício
da função jurisdicional. Efetivamente, no quadro da constituição de 1933, os tribunais
administrativos integraram-se na presidência do conselho de ministros, estavam sobre a
dependência direta do primeiro-ministro e as sentenças dos tribunais só eram executadas se
os tribunais assim quisessem.
Como provou o Prof. Freitas do Amaral na sua tese de doutoramento, não havia em
Portugal um sistema jurisdicionalizado de execução das sentenças dos tribunais
administrativos, o que fazia com que estes não fossem verdadeiros tribunais, porque um
tribunal tem de ter um processo de execução das sentenças e estas têm de ser cumpridas, não
podem ser deixadas à vontade do arguido. Qualquer tribunal precisa de meios de execução e
as suas sentenças têm de ser levadas a sério. E, no contencioso administrativo, passaram a ser,
a partir de 1977.
Contudo, se os juízes administrativos passaram a estar integrados no poder judicial,
eles não passaram a ser juízes iguais aos outros, porque até 2005 eles não tinham poderes de
condenação, nem de dar ordens à Administração. Portanto, tudo o que correspondesse ao
poder administrativo, atos administrativos e a regulamentos estava fora do alcance dos juízes
administrativos. Estes não podiam condenar, nem dar ordens à Administração, apenas podiam
anular as suas decisões. Só a partir de 2005 é que os juízes administrativos adquiriram todos
os poderes no quadro de um sistema virado para a tutela dos direitos particulares, permitindo
ao juiz a sua atuação, na medida do necessário, para a tutela desses direitos- artigos 268º/4 e
268º/5 CRP.
Portanto, esta é uma realidade que não é apenas do passado, mas que chega
praticamente até aos nossos dias e é, também, uma realidade que se passou com praticamente
todos os países, embora em Portugal o processo tenha sido mais lento e moroso. A mudança

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de sistema, ou jurisdicionalização, em regra, deu-se no início do século XX, por volta de


1905-1906.
Tendo este sido um trauma tão difícil de superar, ainda hoje há vestígios dele, porque
os juízes administrativos muitas vezes pensam duas vezes antes de exercer os seus poderes,
pensam bem se vão ou não condenar a Administração e, de certa forma, ainda se autolimitam,
sobretudo perante uma nova realidade do contencioso administrativo, que verdadeiramente só
surgiu a partir dos anos 70, por causa da União Europeia - surgimento da tutela cautelar
(serve para tomar uma decisão provisória para acautelar os efeitos futuros de uma sentença
-por exemplo, ficar em prisão preventiva é uma medida cautelar). Nesta altura, o juiz
administrativo ainda se autolimita, tendo algum receio de estar a agir de uma forma que
ponha em causa o Direito Administrativo, não tendo razões para tal.

Segundo Trauma do Direito Administrativo


O segundo trauma vai nascer com o caso de Agnès Blanco. Agnès Blanco era uma
criança de 5 anos, que foi atropelada pelo vagão de uma empresa pública de tabaco em
Bordéus, em 1872. Mediante este acontecimento, vai surgir uma célebre sentença, a sentença
Blanco, de 1873, em que o Tribunal de Conflitos vai decidir qual o tribunal competente. Esta
sentença é considerada, pela doutrina francesa, como sendo uma espécie de certidão de
nascimento do Direito Administrativo.
O que está aqui em causa? Uma triste história, e uma triste sentença. Os pais da
criança, quando souberam do acidente - que não devia ter acontecido, pois a criança estava a
brincar longe da via férrea, não havendo, aparentemente, a possibilidade de vir a ser atingida
por um descarrilamento, para além do facto de existir segurança social no local - pediram
uma indemnização ao Tribunal de Bordéus, que começou por dizer que não era competente,
por estar em causa uma entidade administrativa (se fossem dois particulares, já seria
competente) e acrescentava que, mesmo que quisesse decidir, não podia, porque não havia
norma jurídica aplicável. Entendia o juiz de Bordéus que o Código Civil francês regulava
apenas relações entre iguais, e o particular e a Administração não são iguais, logo as normas
da regulação civil não seriam aplicáveis ao caso.
Os pais não se conformam e vão à justiça administrativa – a prova da promiscuidade
que então existia no quadro da justiça administrativa é que o juiz de primeira instância era um
presidente da câmara, um órgão administrativo, e em segunda instância podia intervir o
Conselho de Estado. Nota-se a promiscuidade entre Administração e justiça, e vê-se como ela
se julga a si mesma. O tribunal diz que não era competente, porque não estava em causa um

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ato administrativo, mas sim um acidente fortuito, não cabendo na competência do tribunal
administrativo; acrescenta ainda que não há norma aplicável.
O que aconteceu de seguida, e que acontece em todos os países em que há dualidade
de jurisdições, é que nestes casos de conflitos entre jurisdições, quando os tribunais se
declaram incompetentes para resolver o conflito, é chamado o Tribunal de Conflitos, cuja
missão é apenas dizer quem tem razão – dizer qual o tribunal que deve decidir o caso. Por um
lado, este tribunal vem esclarecer a situação, tomando uma decisão que é contestável, mas
que tem lógica: diz que o competente para decidir todos estes casos deve ser o tribunal
administrativo e adota, para esta posição, a chamada ‘’teoria do serviço público’’ de Maurice
Hauriou (segundo a qual o serviço público é aquele que é promovido por uma entidade
integrada na Administração Pública e que tanto pode exercer funções de autoridade, como
funções comerciais, como funções industriais, etc).
Essa é a parte positiva, já que o juiz clarificou a situação, mas há outro aspeto
traumático nesta sentença: o juiz do tribunal de conflitos reafirma que não há nenhum direito
a regular aquela situação, pelo que é preciso criar um novo direito para proteger a
Administração. Ora, tal significa que o novo direito, o novo ramo de Direito Administrativo,
que vai nascer na sequência da sentença Blanco, é um Direito Administrativo que se justifica,
que nasce, para negar uma indemnização a uma criança de cinco anos, que ficou com lesões
para a vida inteira. O Direito Administrativo teve um nascimento traumático – começa da
pior maneira possível.

A construção autoritária do Direito Administrativo


Esta realidade é sintomática de uma certa forma de ser do Direito Administrativo
clássico, porque este, que nasce deste ambiente de promiscuidade entre Administração e
justiça, é um direito autoritário. Na lógica de um liberal do séc. XIX, a Administração
Pública tinha uma única função: a função de garantia da segurança, da liberdade e da
propriedade, através da polícia e das forças armadas, ou seja, esta servia para exercer o poder.
E esta realidade autoritária, a que o autor alemão Adolf Schülle chamava “Administração
agressiva”, por mais paradoxal que pareça, correspondia ao modelo do Estado Liberal do
século XIX e, portanto, há aqui uma tendência para que o Direito Administrativo seja visto,
exclusivamente, como uma manifestação de autoridade. Tal fará com que a teorização do
ato-polícia seja a teorização do ato administrativo.
Ainda hoje, se pegarmos em algum manual português de Direito Administrativo,
escrito por algum autor que não tenha a psicanálise do Direito Administrativo em conta,

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encontramos algumas referências a esta ideia autoritária de ato administrativo, que era
descrito como um ato terrorista, tendo a Administração muitos privilégios.
Como é que um estado liberal, destinado a garantir a separação de poderes e a tutela
de direitos individuais, cria um sistema administrativo que é autoritário? Um sistema que,
portanto, pode muito bem ser utilizado, como foi em tempos históricos, quer por governos
autoritários nos séculos XVIII e XIX, quer por governos autoritários no século XX (o
fascismo italiano adotou a lógica deste sistema, os países autoritários e totalitários, também, e
Portugal também o fez, a certa altura).
Este trauma vai-se manifestar em diversas coisas que chegam aos nossos dias. Por
exemplo, os particulares no estado liberal e os particulares até aos anos 60 do séc. XX não
eram considerados sujeitos de direito, eram objetos do poder, não tinham direitos em face da
Administração. Falar em direitos subjetivos dos particulares em face da Administração
Pública era uma realidade impossível. Esta construção autoritária do Direito Administrativo é
mais um dos seus traumas.
Portanto, há aqui um direito autoritário que, de alguma maneira, se manifesta através
da sentença do caso Blanco, a qual determinou a necessidade de criar um direito especial para
a Administração – especial no sentido de especial proteção da Administração, no quadro da
realidade jurídico-administrativa.
Otto Mayer, na transição do séc. XIX para o séc. XX, definia o ato administrativo
como “o ato que define autoritariamente a situação do súbdito”. Na verdade, há leis atuais
que ainda usam expressões que já não têm sentido, mas que vêm do passado – ‘’o
administrado’’, no artigo 268º da Constituição da República Portuguesa, é um exemplo. O
particular era um súbdito, um objeto, e não um sujeito de direito. É por isso que o surgimento
dos Direitos Administrativos se começou a generalizar, na doutrina germânica, nos anos 50 e
60, mas só chegou verdadeiramente a Portugal nos anos 80, tal era a influência dos traumas
do passado. Em suma, particulares e Administração não eram vistos como juridicamente
iguais, com o mesmo estatuto.

A distinção “esquizofrénica” entre atos de gestão pública e privada


O caso Agnès Blanco ainda é mais sintomático, porque o domínio da responsabilidade
civil da Administração ainda hoje é, em Portugal, uma questão por resolver. Do ponto de
vista dos tribunais, até 2004, havia a dúvida quanto a saber qual o tribunal competente. Em
Portugal, havia uma conceção, que alguns, para espanto de muitos, ainda defendem hoje, que

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distinguia, dentro da função administrativa, os atos de gestão pública dos atos de gestão
privada.
Os atos de gestão pública correspondiam ao exercício do poder, e a gestão privada
correspondia às funções da Administração de pura execução. Hoje em dia não há distinção
entre os dois, a Administração deixou de ser um poder no sentido tradicional. Todos os
poderes da Administração resultam da lei, não se tratando de um poder pré-existente.
Estamos num Estado de Direito - logo, a Administração tem apenas os poderes que a lei lhe
atribui - a lei é fundamento e limite da Administração.
Na verdade, a questão de estar ou não em causa uma ordem não faz sentido, pois
realmente importante é saber se aquela entidade ou agente faz ou não parte da Administração.
Um exemplo esclarecedor, nesta matéria, é o sucedido com o Ministro da Administração
Interna, Eduardo Cabrita, que circulava num veículo que provocou um acidente mortal. Ora,
naturalmente que não foi o Ministro a ordenar ao seu motorista que provocasse o acidente. O
condutor estava a exercer funções administrativas. Racionalmente, não há nenhuma razão
para, do ponto de vista da responsabilidade, afirmar que os atos de gestão pública eram da
competência dos tribunais administrativos e regulados pelo Direito Administrativo, enquanto
os atos de gestão privada eram da competência dos tribunais judiciais e regulados pelo direito
civil. Este é um exemplo da “esquizofrenia do Direito Administrativo''.
Em 2007, o legislador pretendeu, aparentemente, acabar com ela, mas fê-lo de uma
forma pouco esclarecedora, pois substituiu a expressão ‘’gestão pública e privada’’ no artigo
1º da lei da responsabilidade civil pública, que distingue a competência pública da privada,
passando a estatuir que o diploma se aplica aos casos em que haja ‘’prerrogativas de poder
público’’. Ora, expressão mais “canhestra” não podia ter sido usada pelo legislador.
Se analisarmos o Código de Procedimento Administrativo, no seu artigo 3º, quando se
define o âmbito de aplicação das suas normas, diz-se que os princípios de Direito
Administrativo obrigam tanto a atuação técnica como a de gestão privada da Administração.
A regência optou pela expressão ‘‘gestão privada’’, para conseguir que a norma fosse
aprovada em 1991, mas admite hoje que o que faria sentido seria ter estabelecido uma norma
que unificasse toda a Administração Pública e que permitisse a aplicação geral dos princípios
do código a toda a atuação pública. É por haver um apelo aos princípios que podemos afirmar
que as regras da responsabilidade civil pública são aplicáveis a toda a atividade
administrativa, acabando com a distinção entre a gestão pública e privada.

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Até 2007, isto não era possível. O legislador de 2007 quase pôs em risco esta
interpretação unificadora e no quadro do contencioso ainda são muitos os problemas por
solucionar, alguns deles resultantes da autolimitação dos juízes.

(06.10.2021) - AULA 3 de 4ª feira

Portanto, no que diz respeito à evolução na justiça e do Direito Administrativo, esta


pode ser dividida em três fases:

1ª fase: modelo de Estado liberal

● Modelo de organização estadual correspondendo ao Estado liberal: Em muitas


das regras que tinham a ver com a AP e o seu controle, estava em causa uma realidade
autoritária - trauma do DA. Este trauma é caracterizado pelo Professor, como "pecado
original", no séc. XVIII e XIX, correspondendo ao Estado liberal, na lógica da
afirmação de uma separação de poderes que, na prática, correspondia à promiscuidade
entre o DA e a separação de poderes;

O modelo de organização administrativa era entendido como um modelo do Estado de


polícia - garantia a segurança interna (forças policiais) e segurança internacional - e a
principal função do estado liberal era a garantia da segurança e da propriedade, através
de uma administração que era autoritária.

O estado deste primeiro momento correspondia a uma lógica de uma "administração


agressiva, que atuava para agredir os direitos dos particulares. É verdade que o DA
trouxe muitas realidades novas delimitadoras do poder de administração, mas para além
destas realidades que tinham "uma costela autoritária" (Hobbes e Rosseau) e uma
"costela liberal" (Locke e Montesquieu), há aqui uma conjugação de realidades e,
curiosamente, aquilo que cabe à AD é esta dimensão da força, do exercício do poder e
de uma realidade que corresponde a esta administração agressiva.

● DA construído com base nesta "máquina autoritária": A "máquina autoritária" que


está por trás, por exemplo, da noção ato administrativo (aquele que define
autoritariamente a posição dos súbditos no caso concreto). A administração define
autoritariamente uma situação jurídica e define a autorização de objetos do poder, os

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particulares não têm direitos subjetivos- são um objeto do poder. Os particulares têm
direitos subjetivos no quadro dos direitos comunitários, entre outros, mas perante a
administração não têm direitos, portanto, é um objeto do poder administrativo. Ainda
hoje, numa realidade diferente, de Estado de direito, ainda a lei admite o sujeito como
"administrado". O professor regente critica a caracterização dos particulares enquanto
"administrados".

Do ponto de vista da organização administrativa, estávamos perante um estado


concentrado e centralizado:

● Concentrado - tudo dependia do Governo - era o centro desta realidade e irradiava


para todo o território as suas decisões na lógica continental de organização
administrativa. Só um centro/foco de poder, transformado em modelo de organização
política, em que havia "um coração que palpitava e um cérebro que corresponde à
lógica da centralização".
● Centralizado - tudo se resumia à pessoa coletiva Estado - 1 só pessoa particular.

2ª fase: momento do Estado social (finais do séc. XIX inícios do séc. XX)

Começando pelos tribunais, este momento é caracterizado pela


tribunalização/judicialização dos tribunais - corresponde à mudança de estatuto dos tribunais
no quadro da justiça administrativa.

No que corresponde ao direito administrativo, o sistema francês, não é o sistema


tradicional cartesiano, mas sim um sistema jurisprudencial. O que aconteceu foi que, a partir
de 1889, a partir do Acórdão Carlot, a pouco e pouco, o Conselho de estado foi-se
transformando num verdadeiro tribunal, e foi sendo visto pelos outros órgãos do poder
político como um verdadeiro tribunal. Este processo começou a partir desta sentença, mas
não se precisa quando se transformou.
Houve uma transformação designada pelos autores franceses como sendo um
fenómeno de um milagre: a administração toda-poderosa, o estado todo-poderoso admitiu
que tinha limites e, consequentemente, admitiu o seu controle através da lei. Portanto, surge a
ideia de um Estado que descobre que tem de ter limites e, assim, autolimita-se e auto
organiza-se.

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Todavia, o modo como o autor Prosperee coloca o milagre deixa o Professor


insatisfeito: em primeiro lugar, o milagre não é o da auto delimitação; não é só o milagre da
limitação jurídica, é mais ainda o milagre de um órgão quase administrativo que se
transforma num verdadeiro tribunal - "esse é o verdadeiro milagre", porque o Conselho de
Estado passa a assumir-se a pouco e pouco como um verdadeiro tribunal e passa a ser
reconhecido como tal - self made cup.

● Lei sobre execução de sentenças;


● Transformação dos órgãos;

Este fenómeno tem o seu cume quando um outro tribunal, o Tribunal Constitucional,
nos anos 80, em duas sentenças criadoras da justiça administrativa, vem dizer, primeiro, que
o Conselho de Estado se integra no poder judicial e não no poder administrativo, rompendo
as amarras entre os tribunais e a administração pública; e, segundo, havia um direito
fundamental a ir ao tribunal para a tutela dos direitos dos particulares, que os tribunais
servem para tutelar os direitos dos cidadãos. Este fenómeno já corresponde ao terceiro
momento da evolução do Direito Administrativo, ou seja, a ideia de que os tribunais servem
para tutelar os direitos dos cidadãos. No caso da comunidade francesa temos uma realidade
de promiscuidade que só se esgota nesta altura dos anos 80, neste "milagre renovado".
Paralelamente, nos outros países, tinha-se importado o sistema do contencioso
administrativo francês com as Revoluções liberais, e também vai ser através da lei que estes
países vão transformar os órgãos em órgãos de jurisdicionalidade. Desta forma, de 1905 a
1907 surgiu esta jurisdicionalização em Espanha, Itália e outros países europeus.
Do ponto de vista da criação dos tribunais administrativos, o que acontece durante
este segundo período da evolução (período do Estado social), é que vai haver uma
transformação da natureza dos órgãos encarregados de fiscalizar a administração, embora,
curiosamente, as coisas relativas ao processo no âmbito da jurisdição, os poderes do juiz
continuassem similares (poder da relação e um âmbito de aplicação do processo ainda
relativamente pouco).

O que é o Estado social?

Significou uma transformação radical do modelo de organização do poder político,


mas também uma transformação que implicou mudanças profundas na administração pública
e no direito administrativo.

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Para responder à crise social dos finais do séc. XIX (miséria operária), o Estado
começou a chamar a si o poder de intervenção (teoria keynesiana - necessidade da
intervenção do estado para equilibrar a oferta e a procura). Isto, para o direito administrativo,
significa que mudou tudo.

Administração agressiva vs. prestadora

A administração deixou de ser agressiva e torna-se prestadora (de bens e serviços). É


a administração que vai desempenhar estas tarefas da vida económica e social do Estado, que
estão estabelecidas na Constituição. Neste período, a função mais importante do Estado é a
função administrativa - Estado de administração.

Desta forma, surgem inúmeras entidades que vão desempenhar todas estas tarefas, ou
seja, significa que implica que o Estado tenha de, forçosamente, se desconcentrar. O Estado
liberal, concentrado e centralizado, já não existe mais, a partir do momento em que passamos
para o modelo do Estado social, não só do ponto de vista da organização, mas também do
próprio funcionamento da administração. A administração prestadora é caracterizada pelo
facto de, ou fornecer direitos, ou fornecer bens e serviços aos particulares no exercício das
suas funções. Portanto, é uma realidade que se transforma: os particulares passam a intervir
no processo de tomada de decisão da administração (através do procedimento).

Transformação radical da forma de atuação da Administração

O Estado social é uma realidade que não abrange apenas o continente europeu, por
isso, todo o direito anglo-saxónico vai ser "apanhado" por estas transformações e há uma
aproximação dos modelos que vem desta realidade.

As três realidades que eram diferentes da realidade francesa (não havia direitos, não
havia poderes especiais para a administração e não havia tribunais), deixam de existir, ou
seja, passa a haver tudo isto. Em primeiro lugar, passa a haver direito administrativo.

Surgem também poderes de administração - "tribunals" (órgãos da administração


courts), nos quais se inserem os poderes de julgamento e poderes de execução. No quadro do
sistema britânico a evolução deste modelo vai fazer com que se passe a dizer que a última
palavra tem de ser dos tribunais (courts) - judicialização. Esta é a ponte dos dois modelos.

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Por último, no âmbito dos tribunais administrativos - "administrative courts" - os atos


da Rainha começaram a ter, precisamente a partir do Estado social, um tribunal onde eram
analisados. Indiretamente, este tribunal é um tribunal administrativo. Diferente do que se
passa em França, Itália, Espanha, Portugal, este tribunal é só de primeira instância.

Os atos da rainha e os atos do rei passaram a ter um tribunal em que eram analisados -
administrative courts.
Portanto, este estado social é uma realidade que vai ter numerosas consequências no
quadro do direito administrativo. E pensando nas formas de atuação, aquilo que acontecia no
quadro da órbita do Estado liberal, que era o protagonista exclusivo do direito administrativo,
porque tudo se reduzia ao ato administrativo, este perde essa centralidade e passa a ser uma
das formas de atuação administrativas e não "A". Ao lado dos atos, surgem:
● Regulamentos;
● Contratos;
● Planos;

E todas estas formas de atuação são direito administrativo.

A importância do ato administrativo introduz a necessidade de considerar o


procedimento, e não só apenas o resultado da ação administrativa. O procedimento surge no
quadro da lógica italiana, como alternativa ao ato administrativo. Mais importante que o ato
(realidade comum a todas as formas de atuação), é existirem relações jurídicas entre sujeitos,
que têm direitos e deveres diferenciados e, por outro lado, dessa diferenciação estabelecer
relações jurídicas/tuteladas pelo direito.

(11.10.2021) - AULA 4 de 2ª feira

3ª fase: o Estado pós-social

Limitações do Estado Social:


O modelo do Estado providência e de administração prestadora encontrou algumas
limitações. Se este modelo tinha sido preparado para trazer crescimento e desenvolvimento
económico, através do chamado “efeito multiplicador das despesas públicas”, o que é facto é
que, depois de um momento inicial, em que as coisas correram bem e em que houve

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crescimento e desenvolvimento, a partir dos anos 70, começaram uma série de crises do
funcionamento da realidade económica, que afetaram o modelo Keynesiano, que tinha sido
até aí utilizado sem problemas.
Acontece que o “efeito multiplicador”, além de introduzir crescimento, veio trazer
estagnação e inflação, levando a situações de déficit do mecanismo que fizeram com que
surgisse um “monstro” que os economistas designavam de "monstro da estagflação”, uma
mistura de estagnação com inflação.
Ora, esta realidade económica obrigou a prestar atenção, pela primeira vez, às massas
monetárias e aos desequilíbrios monetários e financeiros; obrigou a prestar atenção não
apenas à procura, mas também à oferta. E, portanto, no quadro económico, começaram a
surgir receitas alternativas ao modelo do Estado Social. - Ou porque combinavam o modelo
Keynesiano com modelos que tomavam em atenção também os aspetos da oferta e aspetos
que têm a ver com as massas monetárias da circulação, no âmbito da economia, ou porque
optavam por lógicas monetaristas.
Havia, então, uma série de movimentos, uns neoconservadores, outros liberais
extremos, que adotavam uma lógica exclusivamente monetarista, pondo em causa a receita
Keynesiana, e outros que procuravam manter um sistema tal como existia em termos
Keynesianos, ainda que introduzindo componentes novas.
Nesse sentido, surgiu, enquanto realidade económica, a necessidade de considerar
outros fatores além do fator despesa pública, tendo surgido, em simultâneo, com outras
crises, designadamente a crise do petróleo1.

Sociedade dos anos 70


São os anos 70 que trazem a destruição do muro de Berlim e uma crise das ideologias
de natureza comunista, originando fenómenos de natureza cultural e mesmo social.
É nos anos 60 e 70 do séc. XX que surge a questão ecológica, obrigando todos os
Estados a ter preocupações ambientais, que podendo ser mais ou menos fortes, estão sempre
presentes enquanto condições constitucionais de proteger a natureza e o meio ambiente, e de
estabelecer políticas públicas ativas de proteção do mesmo.

1
A grande crise do petróleo dos anos 70 veio chamar a atenção para um bem sobre o qual era construído o
modelo de sociedade, que é um bem perecível e suscetível de ser controlado pelos produtores, que foi o que
fizeram nos anos 70 - agiram em quartel, e isso teve consequências no plano da economia mundial. Hoje o
petróleo ainda é um bem cujo custo tem consequências em termos económicos.

15
Transcrições das Aulas Teóricas TB; 2021/2022
Prof. Vasco Pereira da Silva

Houve, também, uma grande crise universitária, a crise de maio de 1968, na França, e,
efetivamente, aquilo que os estudantes universitários procuravam era uma alternativa, quer ao
modelo capitalista, quer ao modelo comunista de organização da sociedade.
Todas estas crises vão originar uma tentativa de resposta, que corresponde ao atual
estado pós-social.

Bases do Estado Pós-Social


Este, por um lado, continua a lógica de Estado de direito e a componente social que
existia no modelo anterior, mas entende que essa dimensão social não se realiza apenas
através da ação dos poderes públicos. Ela resulta da colaboração entre administração e
privado, no exercício da função administrativa.
O que significa que agora temos um novo modelo de administração. Tivemos a
administração agressiva, no Estado Liberal; tivemos a administração prestadora de bens e
serviços, do Estado social e temos agora a administração de infraestruturas, como o modelo
em que se vai procurar conciliar a atuação de entidades públicas e privadas no exercício da
função administrativa.
O prof. Vasco Pereira da Silva considera que este modelo trouxe consequências de
natureza política e que levou ao aparecimento de novos direitos fundamentais devido à
presença de novas ameaças à dignidade da pessoa humana que vêm da internet.

Participação dos Particulares


A ideia da participação dos particulares na tomada de decisões públicas é fundamental
neste modelo de Estado Social em que vivemos, tal como é fundamental a ideia de que não é
a Administração que tem de fazer tudo sozinha através das despesas públicas, mas que ela
deve criar infraestruturas e mecanismos de comunicação entre entidades públicas e privadas,
para que elas desempenhem em conjunto a função administrativa. Portanto, aquilo que cabe
ao Estado é uma função mais reguladora, reguladora dos conflitos entre entidades públicas e
privadas.

Novos Direitos
Surgem nos anos 70, no quadro do Estado Social, no âmbito daquilo que podemos
dizer que é a terceira geração dos direitos dos Homem.
Há várias gerações dos direitos do Homem, que ligam os direitos do Homem aos
modelos de Estado, porque, efetivamente, em cada um destes há um conjunto de direitos que

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Prof. Vasco Pereira da Silva

se integram naquele ambiente jurídico-político correspondente a esse modelo e, portanto,


esses direitos, e as suas gerações, correspondem às gerações dos modelos de Estado de
direito.

Direito de Participação
Os cidadãos têm o direito de ser ouvidos relativamente a qualquer decisão
administrativa ou política, seja a decisão de construir um aeroporto, uma estrada ou até
mesmo uma autoestrada. Vai, então, existir um direito de participação enquanto direito
fundamental.
Portanto, estamos perante novos direitos de natureza procedimental e processual, por
exemplo, o direito de ir a tribunal, em última análise, para a tutela de uma ação administrativa
que lesou os particulares, ou o direito de o particular usar os meios judiciais, para ver
reconhecidos os seus direitos fundamentais no quadro de uma relação jurídica.

Direito de autodeterminação informativa e administrativa


Surge, também, um direito de autodeterminação informativa e o direito da
autodeterminação administrativa: não é apenas o direito de conhecer o que dizem os media e,
neste caso, os meios de comunicação audiovisuais, é a possibilidade de reagir, a possibilidade
de intervir ativamente no âmbito de uma sociedade informática que tem de ser aberta a todos
e que tem de dar direitos iguais a todos.

Características
Transformações introduzidas pela administração reguladora/infraestrutural
Estas transformações têm, em primeiro lugar, que ver com a estrutura organizativa.
Por um lado, a administração pública transforma-se, não apenas no sentido tradicional da
centralização e da concentração, não apenas no sentido de criar outras pessoas coletivas
públicas, ou realidades do género, mas também no sentido de que as entidades
administrativas adquirem natureza privada e atuam segundo o direito privado.
No entanto, continuam a exercer a função administrativa, mas nos mesmos termos que
qualquer particular e, portanto, uma empresa pública, por exemplo, é uma entidade que, em
Portugal, tem natureza jurídica privada, embora com capitais públicos e atuando para
prosseguir fins de natureza pública.
Assim, o que caracteriza o Direito Administrativo moderno não pode ser, como tinha
sucedido nos tempos da infância difícil, a ideia do poder administrativo, do poder que se opõe

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Transcrições das Aulas Teóricas TB; 2021/2022
Prof. Vasco Pereira da Silva

a todos, que determina a executoriedade das decisões, mas sim os fins que estão a ser
realizados e a atividade que está em causa. E, portanto, esta é uma grande transformação.
As entidades que exercem a administração são, em sua maioria, de natureza privada
ou mista, com capitais públicos e privados. E, mesmo se só têm capitais públicos, podem
organizar-se como entidades privadas, como realidades que atuam segundo o direito privado.
Esta transformação decorre da aproximação do modelo anglo-saxónico e continental,
uma vez que a ideia de pessoa coletiva pública é uma ideia francesa, é uma ideia do
continente.
Por outro lado, há cada vez mais entidades reguladoras a todos os níveis. Estas
estabelecem as regras e verificam se estas estão a ser cumpridas e acodem aqueles que não as
cumprem, ou seja, em vez de ser a administração diretamente a realizar toda aquela atividade,
ela é realizada pelos particulares, que se submetem a regras, a um controle, à punição, à
fiscalização que as autoridades privadas exercem. Isto também é uma transformação do modo
de exercício da função administrativa

Dimensão multilateral
Há uma outra realidade que também salta aos olhos nos nossos dias: o facto de todas
as relações terem passado a ter uma dimensão multilateral2, afetando, simultaneamente, uma
multiplicidade de sujeitos. Ou seja, qualquer decisão administrativa tem efeitos para além dos
seus imediatos destinatários3.
E, portanto, aquilo que nos dias de hoje sucede é o facto de todas as atuações
administrativas terem, em regra, uma multiplicidade de destinatários, terem uma natureza
multilateral. E é por isso, também que, quando avançarmos um bocadinho mais na nossa
matéria, vamos ver que o modo de explicar a maior parte da realidade jurídica de hoje, é usar
o mecanismo da relação jurídica, a relações entre sujeitos. Mas esta relação jurídica dos
nossos dias é multilateral, tem uma multiplicidade de sujeitos, já não é uma relação bilateral
como tinha sido no passado. E, portanto, não apenas do ponto vista organizativo, mas

2
Por exemplo, relativamente a uma bolsa de estudo, a atribuição desta a um estudante significa que há dois,
cinco, vinte, mil, cinco mil que não a receberam e, portanto, os critérios de atribuição das bolsas têm de ser
adequados, legais, proporcionais, porque tudo, mesmo aquilo que se dá, é suscetível de causar lesões a outros.
3
Por exemplo, se eu tiver uma fábrica e pedir uma licença de funcionamento da mesma, essa licença será
passada em meu nome, em nome da minha sociedade. Mas, este ato, que é individual e concreto, que me atinge
a mim diretamente, afeta todos os vizinhos dessa fábrica, que são afetados pela produção da fábrica, afeta todos
os concorrentes deste ramo de atividade e, portanto tem uma eficácia que não se limita àquele nicho (que era o
nicho originário de um ato que afetava apenas os seus destinatários). Esse ato afeta, em simultâneo, toda a gente
e tem uma eficácia de natureza multilateral.

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também do ponto de vista do funcionamento da administração, há transformações e essas


transformações obrigam a repensar o Direito Administrativo.
No Estado Social foi preciso repensar o ato favorável, o ato que atribuía efeitos
benéficos aos particulares, porque aquilo que os liberais tinham pensado era apenas o ato
político, o ato que agride os direitos dos particulares. Agora, no âmbito da administração
multilateral, temos de repensar o ato com eficácia múltipla, o ato que afeta em simultâneo
uma multiplicidade de sujeitos que intervêm no quadro da relação jurídica multilateral.

Movimento de reforma do contencioso administrativo


Do ponto de vista do contencioso, as consequências são a necessidade de repensar
todo o contencioso administrativo e também, nesta fase do Estado pós-social, há um
movimento de transformação, um movimento de reforma do contencioso administrativo que
vai procurar superar aqueles traumas iniciais do início da justiça administrativa, os mais
importantes no quadro da evolução do séc. XVIII e do séc. XIX.

Superação dos Traumas


Em primeiro lugar foi o trauma da promiscuidade entre administração e justiça e da
ligação dos tribunais à administração, o pecado original da justiça administrativa que veio
quase até aos nossos dias e depois a ideia do direito administrativo, do poder, do direito
administrativo, de uma administração toda poderosa que atuava sempre através da força
física e impondo-se, de forma autoritária, aos cidadãos.
Ora, estes dois turmas que vão originar, por um lado, um controlo da administração
limitada e, em segundo lugar, um controlo da administração para proteger a administração,
são superados primeiro com a lei fundamental de Bona, a seguir à segunda guerra, e depois
com as constituições e os tribunais constitucionais dos anos 70.
Este terceiro momento da história da justiça administrativa, que o Professor Vasco
Pereira da Silva designa como o “momento da confirmação” ou “momento do crisma”,
porque, por um lado, confirma a natureza jurisdicional do contencioso administrativo, mas
vai além disso e retira todas as consequências da jurisdicionalização, dizendo que o juiz goza
de plenos poderes para a tutela dos direitos dos particulares, e porque o contencioso passa a
ter como objetivos a tutela dos direitos dos particulares - o que está em causa são os direitos
dos particulares nas relações jurídicas multilaterais, isto é uma transformação no quadro do
contencioso administrativo.

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Transcrições das Aulas Teóricas TB; 2021/2022
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Disposições constitucionais em Portugal que tratam do contencioso administrativo


São bem sintomáticas as duas disposições constitucionais que em Portugal tratam do
contencioso administrativo e introduzem esta nova dimensão que a constituição atribui a
partir de 1997, pela revisão constitucional de 1997, ao processo administrativo.
Diz-se no art. 212º, nº3 que “os tribunais têm por missão dirimir os litígios
emergentes de relações jurídicas administrativas” e, portanto, os tribunais existem para
resolver litígios no quadro de relações jurídicas e, portanto, o particular e a administração
estão em posições de igualdade, estabelecem uma relação jurídica e são os direitos dessa
relação jurídica que estão a ser discutidos no quadro do tribunal e, depois, os artigos 268º/4 e
268º/5 estabelecem direitos fundamentais de acesso à justiça administrativa, que começam
por dizer que os meios processuais existem para a proteção dos direitos, e com a afirmação
dos direitos dos particulares.
Particularmente, e como mencionado anteriormente, o Professor não aprecia a
expressão inicial do art. 268º nº4 que fala em “direitos dos administrados”, afirmando que
este se trata de um problema de psicanálise, já que o particular não é administrado, mas sim
um sujeito de direito. O administrado é, portanto, um resquício dos traumas da infância
difícil, quando o particular era objeto de direito. Mas, independentemente da expressão, o que
aqui está é uma revolução copernicana, o novo centro do processo administrativo são os
direitos dos particulares. O processo existe para a tutela dos direitos, o processo é um
processo de partes, e é na apreciação dos direitos e deveres das partes e da administração que
o juiz vai decidir, nos termos da lei, aquela relação jurídica, dizer quem tem razão no quadro
daquela relação jurídica administrativa, ou seja, termos uma lógica radicalmente diferente de
entendimento da justiça administrativa.

Momentos do Estado Pós-Social


1º Momento - Momento da constitucionalização
Esta realidade corresponde ao primeiro momento do estado pós-social, o momento da
constitucionalização. Foi assim, primeiro, com a constituição alemã4 que os particulares

4
Os alemães tinham tido o eclipse do estado de direito durante o nazismo e, portanto, não podiam deixar que
isso voltasse a acontecer, e queriam um controle integral da administração e uma tutela de poderes efetiva dos
direitos dos particulares. Assim, o art.19º/4 da Constituição alemã, é aquilo que os alemães chamam a “norma
perfeita da Constituição alemã”, estabelece esse controlo integral da Administração dos tribunais e estabelece o
princípio que a cada direito corresponde uma ação. Este art.19º/4 depois vai dar origem a artigos da Constituição
portuguesa (como o art.268º/4 e 5), a artigos de outras constituições europeias

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adquiram direito a uma tutela plena e efetiva dos seus direitos fundamentais nas suas relações
com a administração.
O primeiro momento é o momento da constitucionalização5. As Constituições pegam
nos traumas da infância difícil e apresentam um modelo constitucional, um modelo de
administração e um modelo de justiça administrativa que impõe a superação dos traumas
iniciais. Mas, para além das Constituições, também os tribunais constitucionais têm, aqui, um
papel decisivo.
Em França, como não há revisões constitucionais há muito tempo, foi o Tribunal
Constitucional que, nos anos 80, estabeleceu que o serviço jurisdicional, a secção
jurisdicional do Conselho de Estado era um verdadeiro tribunal, e não um órgão da
administração, que gozava de todas as características e realidades típicas de uma entidade do
poder judicial - era autónomo, independente, imparcial, tinha todas as características típicas
de um tribunal. Por sua vez, uma outra sentença, também do Tribunal Constitucional, do
Conselho Constitucional, veio dizer que havia um direito fundamental de acesso à justiça
para a tutela dos direitos particulares. Portanto, a ideia da tutela efetiva dos direitos dos
particulares do quadro das relações jurídicas administrativas.
E, portanto, há um primeiro momento que surge com o estado social e que
corresponde a esta realidade, mas, a partir dos anos 80, de uma forma muito mais evidente, de
seguida ao deambular do séc. XX, temos uma outra realidade no processo administrativo que
é a da "europeização".

2º Momento - Momento da Europeização


A União Europeia vai estabelecer regras, não apenas para as formas de atuação
administrativa, mas também para os tribunais, por exemplo, nos contratos públicos do direito
administrativo tradicional, havia uma distinção esquizofrênica entre os contratos ditos
administrativos e os contratos ditos privados da administração pública. Os contratos ditos
administrativos eram regulados por direitos administrativos e da competência dos tribunais
administrativos e, por sua vez, os contratos ditos privados, celebrados pela administração,
eram regulados pelo direito civil e da competência dos tribunais judiciais6.

5
Também tem uma explicação de natureza psicanalítica, porque, nesta altura, na psicanálise, a influência das
ideias de Jacques Lacan, designadamente em França, vão introduzir a ideia que o começo da cura passa pela
verbalização dos factos e a sua redução a escrito. Ou seja, o paciente deve reduzir os factos a escrito para os
entender e para mudar a sua relação perante eles. Ora, é isso que fazem as as Constituições.
6
Foi defendido em Portugal, por uma tendência doutrinária que teve como primeira precursora a Prof. Maria
João Estorninho, que fez uma tese de mestrado que se chamava “Requiem pelo Contrato Administrativo”. E,
este Requiem foi apoiado por numerosos autores, desde o Prof. Marcelo Rebelo de Sousa, ao Prof. João

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O que é que fez a União Europeia relativamente a esta situação? Estabeleceu os


contratos públicos, que abrangem quer os antigos contratos de direito administrativo, quer os
antigos contratos ditos privados da administração, e submete-os aos regime comum, que tem
diferença em relação a diferentes espécies de contratos, mas é sempre um regime de direito
público, tal como esses contratos são sempre apreciados pelos tribunais administrativos.
Esta alteração substantiva teve alterações processuais, por causa da União Europeia -
os Estados membros da União criaram mecanismos cautelares em matéria de contratos
administrativos, porque aquilo que a União Europeia vem dizer, e bem, é que se o contrato é
celebrado e se há problemas quanto à legalidade do mesmo, esses problemas vão significar
que o Estado e as autoridades administrativas vão ter de pagar indemnizações às entidades
contratadas. E, portanto, aumenta-se o défice público e não existe obra.
A União Europeia afirmou que antes de contratar verifica-se a legalidade dos
contratos e, por isso, criou, um mecanismo de natureza pré-contratual, o “ efeito stand still”.
Com este efeito deve-se pensar primeiro nas possíveis consequências e prever os danos, e só
depois assinar qualquer contrato, de forma a evitar indemnizações desnecessárias.
Estabeleceu, também, regras comuns que afastam quer a lógica continental quer a lógica
anglo-saxónica e que também têm consequências em termos de contencioso administrativo e,
portanto, há um fenômeno de europeização que chega até aos nossos dias.

(13.10.2021) - AULA 5 de 4ª feira

Direitos de natureza procedimental e processual


Estes direitos são de natureza procedimental, pois estão relacionados com o
funcionamento da administração pública, com as decisões que dizem respeito aos
particulares, o direito da audiência, o direito de serem ouvidos antes de ser tomada uma
decisão que possa afetar os seus direitos, o direito à fundamentação das decisões.
Todos estes são novos direitos fundamentais que nasceram no quadro do direito
europeu. Está em causa o exercício da função administrativa e este exerce-se no respeito dos
direitos do particulares. De resto, a Constituição Portuguesa é lapidar a este propósito

Caupers, ao próprio Prof. Vasco Pereira da Silva. O professor concorda com a ideia de que não faz sentido esta
lógica esquizofrénica de distinguir duas modalidades de contrato com regras jurídicas.

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quando, a propósito dos fins da Administração Pública, se diz que esta realiza o interesse
público no respeito dos direitos dos particulares.
Isto é uma nova forma da Administração atual e tal corresponde, também, a novos
direitos dos particulares no quadro dessas relações jurídicas administrativas. Com os direitos
de ir a tribunal, o particular pode fazê-lo para se defender de uma lesão dos seus direitos,
causada pela administração pública. E, portanto, há direitos de natureza procedimental e esses
aparecem nos art.266º e seguintes da Constituição, dedicados ao funcionamento da
administração, e há depois os direitos fundamentais em matéria de processo administrativo,
que estão nos art.268º/4 e 5. E, portanto, também é uma transformação que deve ser tida em
conta quando falamos do nosso estado pós-social, mas do ponto de vista específico da
administração pública.

Mudanças no quadro da própria administração


Contudo, para além destes novos direitos fundamentais, há mudanças no quadro da
própria administração. Em primeiro lugar, a administração passa a ser infraestrutural - esta
ideia de infraestrutura relaciona-se com a de que é a administração que cria as estruturas para
o exercício da função administrativa de novo no quadro daquela lógica reguladora e daquela
lógica de colaboração entre os particulares e as autoridades públicas. E, portanto, isso
também implica uma transformação da atuação da administração, no quadro da
transformação, numa realidade de serviço, que presta um serviço público, e um serviço
público que é realizado em colaboração com os particulares.
Isto tem, depois, consequências no quadro da organização administrativa. As
entidades da administração, nos dias de hoje, têm, na maior parte dos casos, forma de direito
privado e não forma de direito público e atuam no mercado como um privado. E, portanto, o
que distingue a administração dos particulares já não é o exercício de poderes de autoridade,
já não é comum poder que ela exerça no caso concreto, aquilo que as distingue é a
prossecução dos interesses públicos no exercício da função administrativa.

Poderes de autoridade
Isto também é uma alteração fundamental. Tão fundamental que, em Portugal, há
muitos administrativistas que não se aperceberam desta distinção e continuam a definir o
Direito Administrativo em função dos poderes de autoridade, o que já não faz sentido. Os
poderes de autoridade só existem nas funções tradicionais, nas forças armadas e da polícia.

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De resto, a administração, em regra, não tem poderes de execução das decisões, como não
tem poderes de autoridade. E, portanto, é também uma transformação, porque tem a ver com
esta lógica da administração infraestrutural.
Do ponto de vista da atuação, a maior parte dos atos administrativos e da atuação
administrativa passa a ser multilateral, passa a ter uma multiplicidade de sujeitos, não só
porque cada vez mais há regulamentos, planos, formas de atuação desse género, como
também porque os próprios atos individuais e concretos, como a ordem de demolição de uma
casa, uma autorização de construção de uma casa, uma autorização de funcionamento de uma
fábrica. Para além dos destinatários que são referidos no ato administrativo, são também
afetados aqueles que estão próximos, aqueles que são atingidos nos seus direitos por aquela
norma. Portanto, o âmbito da eficácia do direito administrativo passa a alargar-se, também,
aos vizinhos, aqueles que têm um interesse que é lesado pela atuação administrativa.

A tutela plena e efetiva dos direitos particulares


Por último, em termos de tribunais, dá-se aqui uma terceira fase, uma fase que
corresponde à tutela plena, efetiva dos direitos particulares através do direito administrativo.
Isto é superação daquela realidade traumática que foi a de que a administração e a justiça
estavam ligadas e que o poder judicial dependia do poder administrativo. Hoje em dia, não é,
nem pode ser, nada assim. A administração e a justiça são entidades distintas, poderes
constitucionais distintos, e não há nenhuma relação entre uma coisa e outra.
A justiça administrativa é uma modalidade do poder judicial, como menciona o
art.211º/3 da Constituição e, não só existe a confirmação desta realidade, como se passa a
dizer que os juízes têm a plenitude dos poderes face à administração - não têm apenas
poderes anulatórios, portanto os juízes podem condenar a administração e dar-lhe ordens,
tudo para a realização do princípio da tutela plena e efetiva dos direitos. Portanto, agora a
função do tribunal já não é de proteger a administração, como tinha sido pela lógica do
Estado liberal, mas sim proteger os particulares. É por isso que o art. 268º/4 da Constituição
começa por garantir os direitos plenos efetivos dos direitos dos particulares. Depois, fala dos
poderes dos livres para garantir esses direitos.

Dois Momentos Anteriores


Há um momento que surgiu com a lei fundamental, a Grundgesetz alemã, a lei
fundamental de Bona, logo a seguir à guerra e, depois, continuou com as Constituições dos

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diferentes Estados Europeus, nos anos 70 a consagrar precisamente estas duas coisas: que
estamos perante um verdadeiro tribunal, a tirarem consequências disso, o juiz não está
limitado a todos os poderes que vêm da administração, e, em segundo lugar, a ideia de que o
contencioso serve para tutela dos direitos dos particulares. O contencioso é uma entidade
subjetiva destinada à tutela dos direitos dos particulares.
Este primeiro momento decorre da constitucionalização, no segundo momento
decorre da europeização porque, a partir dos anos 80, vai ser a União Europeia, a estabelecer
regras comuns ao direito processual a todos os estados membros através das diretivas. Por
exemplo, em matéria de diretivas de contratação pública, a União Europeia não só criou o
contrato público, que substitui em Portugal aquela distinção esquizofrênica, que não fazia
sentido algum termos os contratos ditos administrativos e os contratos ditos privados da
administração, agora todos são contratos públicos. Portanto, são regulados da mesma maneira
no código dos contratos públicos e, todos eles são da competência dos tribunais
administrativos.
Portanto, a União Europeia é fonte de direito, não só em questões processuais, mas
também em questões administrativas. O conceito de contrato público é um dos conceitos que
tem regras que são aplicáveis a todos os contratos celebrados pela administração, pondo
termo àquela distinção esquizofrênica que não fazia sentido e que existia no direito português
- dizia-se que o contrato administrativo é que é direito público e, portanto, é fiscalizado nos
tribunais administrativos, e o contrato dito de direito privado era, supostamente de direito
privado e era julgado pelos tribunais públicos.
Ora, nem o contrato público corresponde a nada de exorbitante que mereça um
tratamento especial, nem o contrato de direito privado é inteiramente privado, porque o que
está em causa é o exercício de poderes públicos, através de um serviço público, no âmbito de
uma função que é uma função pública e, portanto, está sujeita a regras que não são as de
direito de privado, são as de direito público que agora se alargaram também a estas atuações
privadas.

Importância da transformação do direito administrativo


Isto é uma transformação importante que alguns administrativistas nem sempre vêem,
porque não olham para a realidade, ou não têm a psicanálise em dia. O direito administrativo
é o direito da função administrativa - função administrativa que pode ser desempenhada por
entidades iguais aos particulares, com natureza privada, e exercendo poderes privados.

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Portanto, não tem nada a ver com a noção tradicional do Dr. Maia, a noção de Marcello
Caetano do direito administrativo.
Essa realidade, nos dias de hoje não faz qualquer sentido e, a Europa introduziu, a
muitos níveis, a muitos títulos, alterações no quadro Direito Administrativo, criando sistemas
que valem como o contrato público, conceitos e realidades que valem, tanto no quadro nos
sistemas de tipo de francês, como nos de Direito Administrativo anglosaxónico. Há um
conjunto de alterações que decorrem dessa realidade.

Distinção entre o modelo franco-germânico e anglosaxónico


Estes modelos correspondem a realidades que nasceram nos antípodas, com
construções jurídicas e realidades jurídicas muito diferentes, e portanto, tiveram uma história
diferente até, nos nossos dias, se encontrarem. Portanto, é preciso, primeiro, analisar quais as
principais semelhanças e diferenças destes modelos, a data do seu nascimento (no séc. XVIII
e XIX), e, depois, analisar o modo como eles evoluíram até aos nossos dias.
O Prof. Freitas do Amaral, que trata desta questão, em termos que não são exatamente
os defendidos pelo Prof. Vasco Pereira da Silva, mas que, efetivamente introduzem distinção
no quadro do direito administrativo, diz que há quatro elementos fundamentais no quadro
desta distinção - quanto a este aspecto, o Professor diria que não são quatro elementos, mas
três, pois, na sua visão, o quarto elemento não é importante, e o modo como ele formula esses
elementos importantes não é exatamente igual.
Esses aspectos principais de distinção são, entre o modelo franco-germânico e o
modelo anglosaxónico, em primeiro lugar, a existência, ou a não existência de Direito
Administrativo, um corpo de normas autónomo, regulador da atividade administrativa. São,
em segundo lugar, a questão da existência, ou da inexistência de tribunais administrativos,
tribunais encarregados de julgar a administração. E, em terceiro lugar, a questão da
existência, ou da inexistência, de poderes especiais de natureza executiva para a
administração, a questão de saber se há autotutela.
Veja-se o seguinte exemplo: A administração dá uma ordem de demolição. Se tal não
for cumprida dentro de 30 dias, a administração pode, à partida, mandar o A deitar abaixo o
prédio. Portanto, isto significa que a administração não apenas ordena mas também executa,
ela própria, a decisão quando a lei assim o permite. E, portanto, esta é uma distinção
essencial. - Não é, hoje em dia, tão importante como foi no passado, mas é um elemento
distintivo do sistema francês em relação ao sistema britânico.

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E, da perspetiva do Professor, a questão que está em causa é saber a autotutela (a


administração decide executar ela própria), ou heterotutela (os poderes da administração
devem passar pelo crivo do tribunal e, portanto, a administração pode ir a tribunal para
solicitar a execução daquele ato que ela quis).
O Prof. Freitas do Amaral usa a expressão “sistema de administração executiva/
sistema de administração judiciária", com a qual o Prof. Vasco P. da Silva não está de acordo,
pois, nos dias de hoje, a administração só tem poderes de execução quando a lei, diretamente,
lhe atribui esses poderes e apenas na medida da atribuição desses poderes. E, em segundo
lugar, porque o sistema de adminstração anglosaxónnica não é um sistema de administração
judiciária.
Contrariamente ao que diz o Prof. Freitas do Amaral, a administração não tem de ir a
tribunal para executar as suas decisões, e não tem de ir a tribunal porque, em regra, essas
decisões são voluntariamente executadas pelos tribunais. Só irá a tribunal se houver um
litígio, se um particular se recusar a cumprir. Portanto, é errado dizer que o sistema é de
administração judiciária, pois tal implica a ideia de que a administração não pode executar
nada se não for pedido diretamente ao tribunal.
Para além destes três elementos de distinção, que para o Professor são os principais
(direito administrativo, tribunais administrativos, autotutela vs. heterotutela), o Prof. Freitas
do Amaral acrescenta um, que é o argumento da organização administrativa, uma vez que
este professor considera como fator de distinção o modo de organização administrativa:
diferenciada, concentrada e centralizada no caso francês, desconcentrada e descentralizada no
caso inglês.
Em termos muitos simples, poderíamos dizer que no séc. XVIII e no séc. XIX, entre o
modelo francês, ou franco-germânico, e o modelo britânico, existiam algumas diferenças.
Primeiro, quanto ao direito, havia um direito administrativo, que resultava da atuação do
Conselho de Estado e que ganhou a sua autonomia, como já vimos, no acórdão Blanco. No
Reino Unido não havia Direito Administrativo, porque se considerava que a administração
era igual aos particulares, exercendo os seus poderes nos mesmos termos que qualquer
particular. E, portanto, não era preciso criar um direito especial para a administração. O
direito comum era aquele que se aplicava tanto às relações privadas como às relações
administrativas.
Em segundo lugar, em França, havia tribunais administrativos, aliás, como nós
aprendemos, no século XVIII e XIX, estes não eram verdadeiros tribunais, mas sim órgãos

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administrativos funcionais. Enquanto que, no Reino Unido, não havia tribunais


administrativos.
Em terceiro lugar, em França, a administração goza de poderes de tutela, ou gozava
sempre de poderes de autotutela, podendo executar as suas decisões. No Reino Unido, tal não
se verificava e, portanto, das duas uma, ou o particular realizava, por sua vontade, ou, se isso
não acontecesse, ele precisava de ir a um tribunal para executar a decisão.
A outra distinção tem a ver com concentração e centralização, no sistema francês, e
descentralização e desconcentração, no sistema britânico.
Relativamente ao direito anglo-saxónico, este começou por ser inglês, tendo-se,
posteriormente, generalizado a outros países do continente europeu. Tanto os países nórdicos,
como os de leste, nos nossos dias, adotaram um sistema anglosaxonico e, antes disso, as
colônias britânicas, os Estados Unidos da América e o Canadá também o fizeram.
Portanto, o professor diria que, em termos geográficos, os sistemas estão espalhados
pelo mundo, não fazendo sentido falar de um sistema dominante, de um sistema que se
imponha, porque, efetivamente eles convivem. Aliás, a realidade da União Europeia, é uma
realidade em que há praticamente o mesmo número de Estados a adotar o sistema francês ou
franco-germânico, e o sistema anglosaxónico. E, por isso, as normas europeias, para se
aplicarem em todos os modelos, são feitas sem as distinções tradicionais.

(18.10.2021) - AULA 6 de 2ª feira

Há que analisar a realidade de hoje, que já não é totalmente coincidente com a


dimensão inicial. Portanto, nos primórdios do liberalismo havia basicamente dois modelos,
claramente antagônicos: um modelo francês (franco-germânico, “continental”) e um modelo
anglo-saxónico; este depois vai dar origem ao sistema norte-americano e, no quadro da
Europa, “entra” pelos países nórdicos e pelos países de leste, que atualmente também adotam
o sistema anglo-saxónico.
Enunciada a oposição entre os sistemas, é funcional fazer uso da grelha de
comparação (termo que provém do direito comparado). Neste caso, faremos uso de quatro
grelhas de comparação, isto é, teremos quatro elementos a comparar. Essas grelhas dizem
respeito a:
● saber se há ou não direito administrativo (i);

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● se há ou não poderes especiais da administração (ii); se há ou não tribunais


administrativos (iii);
● se há concentração/centralização, desconcentração/descentralização (iv).
O quarto elemento desta grelha é acrescentado, como faz o Prof. Freitas do Amaral,
com o intuito de introduzir a organização administrativa. Isto porque os outros são
indispensáveis para caracterizar o modelo, enquanto que o elemento da organização
administrativa é conjuntural, não existindo nos mesmos termos em todos os países.

Vejamos então o que se passava a propósito destes três ou destes quatro


elementos:

i. Nos primórdios do liberalismo, havia direito administrativo em França. O direito


administrativo foi criado no quadro da atuação do Conselho de Estado que, como estudado no
célebre acórdão da Agnes Blanco, marcava uma espécie de registo de nascimento do Direito
Administrativo e, como trauma da infância difícil, nasceu para proteger a administração, que
seria a sua função essencial. Enquanto que, no Reino Unido, se dizia que a administração
estava submetida ao mesmo direito comum dos cidadãos. Esta diferença da existência ou
ausência de leis administrativas está também ligada a outro momento que é o dos poderes da
administração; saber se a administração goza de autotutela ou de heterotutela.

ii. No quadro francês, construiu-se uma noção de ato administrativo assente na ideia
de auto execução: a administração não apenas toma as decisões, como também as executa,
aplicando-as ao caso concreto. Ou seja, não é necessário recorrer ao tribunal para executar as
suas decisões. Esta realidade não existia no Reino Unido, porque não havia Direito
Administrativo e, sendo assim, a administração, que era uma ou várias entidades, estava
submetida ao mesmo direito de qualquer dos privados – o direito comum – na lógica
descentralizada britânica. Portanto, não havendo direito administrativo, também não havia
nenhum estatuto especial para a administração. E, não havendo esse estatuto especial, a
administração não podia executar as suas decisões. Pode-se dizer que no caso do sistema
Francês havia autotutela e, no caso do sistema britânico, havia heterotutela, porque o poder
de executar não estava nas mãos da administração.
iii. É sabido que, em França, o Tribunal Administrativo foi criado pelos
revolucionários franceses, que proibiram os tribunais de julgar a administração. A priori, este
não era um tribunal, mas um órgão especial que fiscalizava o funcionamento da
administração; portanto, a lógica francesa era da existência de uma justiça administrativa. No

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caso do Reino Unido a lógica era contrária: não havia direito, não havia poder de autoridade
perante a administração e também não havia nenhum tribunal especial. A administração era
julgada como qualquer cidadão no quadro dos tribunais comuns. Esta realidade era marcante
e durou entre os finais do século XIX e princípio do século XX. Entretanto, nessa altura,
muda radicalmente e é preciso ter essa noção para evitar inverdades.
Houve uma discussão no início do século XX que, por um lado, colocava Maurice
Hauriou da perspetiva francesa e, por outro, Dyce do lado inglês, em que cada um dos dois
discutia com o outro, com argumentos que já não eram corretos, porque já não existiam no
tempo em que falavam.

O que é que se passou com a transição do século XIX para o século XX?

Surgiu o modelo do Estado social. O Estado passou a chamar para si novas funções da
vida económica, social e cultural; tais funções tornaram-se tarefas fundamentais constantes da
Constituição. Nesse sentido, se as tarefas são realizadas pela administração, a Administração
Pública – o direito administrativo – tornou-se o modo de realização da principal função
prestadora.
Ora, o surgimento destas novas tarefas vai levar ao surgimento do Direito
Administrativo no Reino Unido. Uma vez que estas tarefas eram novas, a administração não
estava habituada a desempenhá-las: não cabiam no costume, nem tampouco no direito
jurisprudencial e, portanto, vão ter uma dimensão estatutária, vão corresponder a leis escritas
que regulam o funcionamento da Administração Pública no quadro das suas tarefas
quotidianas de gestão da função administrativa; tarefas de regulação da relação do trabalho,
tarefas da segurança e da previdência social, tarefas ao nível da economia e da vida social –
ou seja, as tarefas que correspondem à lógica do Estado Social. Por conseguinte, houve uma
aproximação imediata dos dois sistemas.
No sistema francês, desde o início, haviam leis especiais para a administração. Já no
Reino Unido, elas vão surgir no quadro da realidade da transformação em Estado Social, do
ponto de vista dos poderes que se vão alterar com este novo modelo.
Os britânicos perceberam que estavam a desempenhar novas funções, todavia não
estavam apetrechados para tal e, então, entenderam que a França é que estava certa, porque
tinha poder de execução. Isto levou a que no século XX, no Reino Unido, começassem a
surgir órgãos administrativos especiais, os Administrative Tribunals; é importante salientar
que os tribunals não são courts, não são tribunais, são órgãos administrativos. E estes

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tribunals, para além de terem limitado os poderes de julgamento – que tem a ver com a tal
promiscuidade entre a administração e a justiça que surge no Reino Unido, tardiamente,
quando ela já estava a desaparecer em França – têm poderes de execução nas suas decisões,
têm poderes de autotutela, nos termos em que a lei que constituía os Tribunals assim o
estabelecia. Sendo assim, passou a haver, também no Reino Unido, entidades administrativas
especiais com poderes executivos e este surgimento dos tribunals corresponde a um passo à
retaguarda do sistema britânico, que até aí tinha vivido sem sombra de pecado e que agora vai
buscar a lógica do pecado original do sistema Francês. Portanto, há aqui uma realidade que
surge fora do tempo, mas que aproxima ambos os sistemas e isto vai-se, depois, tornando
mais evidente, à medida que o século avança.
Neste século XX, de acordo com a teoria de Otto Mayer e Maurice Hauriou, em
França afirmava-se anteriormente um poder administrativo que se sobrepunha a todas as
coisas e que permitia a execução automática de todas as decisões e ligava-se o ato
administrativo aos poderes executivos. Mas, à medida que avança o século XX, começam a
surgir limitações a esse poder de execução e, hoje em dia, diz-se que tal poder só existe
quando a lei expressamente o estabelece. Assim, deixa de ser um poder que pertence à
administração e que ela pode exercer quando assim o entender e passa a ser um poder
atribuído nos termos da lei, por uma concreta lei que atribui esse poder de execução das
decisões.
No Reino Unido, em que não havia essa autotutela, esta surge atribuída por lei
especial aos tais tribunals. Consequentemente, também aqui este poder de autotutela está
limitado pelo Princípio da Legalidade. (Isto introduz mais uma aproximação entre os dois
sistemas porque efetivamente, nos nossos dias, estas realidades aproximaram-se muito e isto
já era assim em meados do século XX.) Nos dias atuais, tornou-se manifestamente evidente,
porque há entidades administrativas no Reino Unido que exercem os poderes nos termos da
lei, enquanto que em França, em Portugal, em Espanha e na Alemanha se diz que a
administração tem poderes de executórios apenas na medida, e na estrita medida, em que a lei
efetivamente os atribui.
A título de exemplo do explicitado acima, houve uma notícia sobre um inquérito
disciplinar em relação a forças de segurança, porque foram disparados tiros para o ar num
jogo de futebol. Ora, o uso da pistola é um poder de execução, de autotutela; não é por acaso
que os bobbies, os polícias do Estado, tradicionalmente usavam o cassetete, em vez de armas;
embora usem agora. No quadro francês, usam a pistola, só que esta tem condições para ser
exercida e o que está em causa é saber se a polícia exerceu corretamente ou se abusou do seu

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poder, por violar o princípio da proporcionalidade; ou seja, se a agressão é adequada e


proporcional ao uso da pistola.
Este é um caso típico de um poder de autotutela por parte da administração: a
administração tem poderes para impor as suas decisões, dentre esses poderes, no quadro da
polícia, cabe o poder de uso da arma que é um poder de execução de uma decisão. Uma coisa
é dizer “pare imediatamente”, coisa diversa é dizer “pare ou leva um tiro”, porque ameaçar
um tiro é algo que só é permitido se for proporcionado. Se assim não for, viola as regras de
exercício do poder coativo. Logo, é a lógica da limitação do poder que hoje existe em
qualquer dos países, em qualquer dos modelos, mas que tradicionalmente distinguia uns dos
outros.
Quanto à questão dos tribunais, conduziu-se também à aproximação dos dois modelos
porque, se em França existiu uma justiça administrativa desde os primórdios do liberalismo,
mais tarde, com a passagem do século, esses órgãos administrativos transformaram-se em
verdadeiros tribunais. Já no Reino Unido, havia uma única jurisdição que julgava tanto os
litígios administrativos, como os litígios comuns e os demais. Contudo, a aproximação que
decorreu primeiro do Estado Social e depois do Estado Pós-Social, vai fazer com que as
questões administrativas se tornem tão complexas, que também no Reino Unido surgem
tribunais administrativos. Atualmente, no Reino Unido há um administrative court (tribunal
administrativo), que é a primeira instância do poder judicial especializado em matéria da
competência do governo e este fiscaliza, basicamente, aquilo que, na linguagem tradicional
inglesa, se chama “os poderes de sua majestade”; os quais correspondem ao controle do
governo, porque os poderes não são exercidos por sua majestade.
Esta realidade, no quadro do modelo britânico, vai hoje aproximar-se do modelo
Francês. O Prof. Diogo Freitas do Amaral desconhece a existência do administrative court. O
professor e político diz que a existência ou não de tribunais é, hoje em dia, a principal
diferença dos dois modelos; o professor regente, que não concorda inteiramente com o modo
como ele coloca a questão, dá-lhe alguma razão porque, efetivamente, há uma diferença entre
a justiça especial francesa (franco-germânica) e a justiça especial do Reino Unido. Não é que
não exista, e neste ponto o professor Freitas do Amaral não tem razão, mas ela tem uma
dimensão especial.
Onde se encontra essa especialidade? No Reino Unido, os tribunais especializados em
matéria administrativa são ao nível da primeira instância e apenas desta: quando se recorre da
decisão do tribunal, vai-se parar a tribunais comuns e, portanto, a especialização existe só no
primeiro nível de fiscalização. Por outro lado, em países como França, Alemanha e em

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Portugal há uma administração autónoma que corresponde à justiça administrativa. E, como


se vê se pegar na Constituição, a justiça administrativa tem no topo o Supremo Tribunal
Administrativo, no meio os Tribunais Federais Administrativos e na base os tribunais
administrativos específicos; ou seja, há uma jurisdição que vai da base até ao topo. No Reino
Unido, essa especialização só existe na base. Quanto aos Estados Unidos, estes adotaram o
sistema britânico, mas não criaram um Tribunal Administrativo enquanto tal: têm órgãos
especializados de natureza administrativa, mas não há verdadeiramente uma jurisdição
administrativa. O que não significa que não faça sentido falar em justiça administrativa nos
Estados Unidos, tal como no Brasil. Sucede que, nos Estados Unidos, o Tribunal Federal – a
jurisdição federal – é a jurisdição administrativa, porque aquilo que ela trata são de litígios
entre entidades públicas e, portanto, ao nível de topo, nos Estados Unidos temos também
especialização jurisdicional.
Decorrente disso, o Prof. diz que a pergunta tradicional que se colocava à doutrina
portuguesa, como ainda hoje se coloca, e como se coloca na doutrina francesa, da questão de
saber se num país existe unidade ou dualidade de jurisdições, não é a questão mais adequada
do ponto de vista do direito comparado. A questão correta a fazer do ponto de vista do direito
comparado é a de saber se há ou não especialização dos tribunais do controle da
administração e, se fizermos esta pergunta, a resposta seria afirmativa em todos os países. O
que releva, entretanto, é saber qual é o nível dessa fiscalização; se é só a primeira instância ou
se é em todas as instâncias.
Ora, há vários modelos que resultam da diferente história do Direito Administrativo
em cada um dos países que conduzem a modelos de justiça administrativa diferentes. E,
portanto, não faz sentido hoje repetir os argumentos do passado e afirmar, como dito por
Dyce, no século XX, que na Inglaterra não há direito administrativo; ou como dito por
Hauriou que na Inglaterra, antes de apagar o fogo, era necessário que os bombeiros fossem à
tribunal e, por isso, chegavam e já o fogo tinha ardido. Isso é um disparate dos dois lados
porque o senhor Dyce não percebeu que no seu tempo já existia direito administrativo no
Reino Unido (i), e o senhor Hauriou não percebeu que os poderes da administração agir em
caso de estado de emergência, quer seja um privado, quer seja uma entidade pública,
permitem a invasão de propriedade e a atuação para a defesa dessa propriedade (ii).
Indubitavelmente, a evolução dos sistemas conduziu a uma grande aproximação dos
sistemas administrativos, que nos dias de hoje, então no quadro da União Europeia, continua
a ser prático: não foi o Brexit que conseguiu afastar esta lógica unitária que continua a existir
no sistema britânico relativamente ao continente europeu. A ideia é que, do ponto de vista

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político, o governo e outras entidades do Reino Unido pretendem acabar com ela, mas a
lógica unitária neste momento é mais efetiva do que a atual. O Reino Unido encontra-se no
processo de nacionalização do direito europeu em relação às decisões de maior relevância, o
meio ambiente, a intervenção na vida social, na vida económica; se não nacionalizar o direito
europeu, fica sem normas. Depois pode-se afastar delas, obviamente, uma vez que o Reino
Unido saiu da União Europeia, mas neste momento o modelo ainda é o comum. Nos Estados
Unidos da América há também as agencys, que correspondem aos tribunals, as quais são
realidades independentes com alguns poderes de julgamento e, sobretudo, com poderes de
autotutela; contudo, na primeira instância não há tribunais especiais, há apenas ao nível do
tribunal federal.
Retomando o caráter histórico e a realidade da evolução, nota-se que haviam dois
modelos diferentes no início e no decorrer da sua história até os dias atuais. Ao mesmo
tempo, percebe-se que nos diferentes países há problemas idênticos que são sentidos e
resolvidos de forma distinta. Como assegurado anteriormente, há três diferenças essenciais ao
nível do direito, dos poderes e dos tribunais, que marcam modelos completamente
antagónicos no início e que, gradualmente, foram se aproximando com o Estado Social e, a
posteriori, com o Estado Pós-Social; diferenças essas que marcam uma evolução que hoje em
dia se hibridizou.

A título de exemplo, em Portugal há muitas agências e os órgãos administrativos


independentes que aqui existem, como em França e noutros países, existem de acordo com o
modelo britânico. Por conseguinte, a análise da história e do direito comparado não deve ser
simplista, há de se procurar a realidade que está em causa e se efetivamente é possível
afirmar que, apesar das semelhanças, é ao nível dos tribunais que continua a haver diferenças.
Essas diferenças, no entanto, não são aquelas que o Prof. Freitas do Amaral indica: são
menores e têm a ver apenas com o nível da jurisdição em que se exerce um controle
especializado da administração. E assim é, porque concluímos que todos os países chegaram
à necessidade de criar tribunais especializados para julgar os litígios administrativos.

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Grelha comparativa dos elementos nos primórdios

Modelo Anglo-Saxônico Modelo


Romano-Germânico

Existência de direito Ausência, a administração Existia, criado no quadro


administrativo estava submetida ao da atuação do Conselho
mesmo direito comum dos de Estado
cidadãos

Coercitividade Heterotutela Autotutela

Tribunais Tribunais civis Tribunais administrativos

Descentralização Descentralizado Centralizado

O direito administrativo sem fronteiras


O direito administrativo sem fronteiras implica uma tripla dimensão comparativa. O
questionamento que se coloca é: o que aqui está em causa e quais são as transformações que é
preciso ter em conta ao falar desta realidade?
Em primeiro lugar, o direito administrativo que nasceu ligado ao Estado e com uma
dimensão nacional, nos nossos dias, torna-se uma realidade internacional. Para ilustrar,
debrucemo-nos sobre a Organização Mundial da Saúde (OMS), que exerce a função
administrativa em escala global. Esta entidade internacional dá indicações técnicas para o
exercício da função administrativa, que são seguidas, não apenas por países europeus, mas
por todos os países do mundo. Isso deve-se ao facto de esta ser uma entidade técnica que
exerce a função administrativa, dando indicações corretas que, como tal, devem ser seguidas
pelos diferentes Estados. É, também, um bom exemplo de entidades que nasceram das
instituições internacionais, mas que deixaram de funcionar no quadro da dimensão política
internacional e se transformaram em entidades de natureza administrativa, o direito do mar.
Este é praticamente todo dominado por comissões administrativas internacionais que
estabelecem a regulação das pescas e não há quem se afaste dessas indicações que são
consideradas como diretamente aplicáveis no quadro da realidade jurídica. Portanto, há um
conjunto de fenómenos que são novos e começam a ser estudados agora pela doutrina, que
introduzem esta dimensão internacional do direito administrativo; ou esta realidade
administrativa no direito internacional.

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Como explicitado acima, há 3 vertentes que são relevantes no quadro do direito


administrativo sem fronteiras: a vertente do direito comparado (i), a do direito europeu (ii) e a
do direito global (iii).
Atentemo-nos à vertente do direito comparado. É curioso que, nos primórdios do
direito administrativo, se tenha feito algum direito comparado. A ideia era de que era preciso
criar o direito novo e para assim o fazer, era necessário “ir beber à fonte”. Otto Mayer, o pai
do Direito Administrativo alemão, antes de escrever a sua obra “O direito administrativo
alemão” (Deutsches Verwaltungsrecht), escreve sobre o Direito Administrativo francês e
dedica o seu estudo, durante anos, ao Direito Administrativo francês. O jurista alemão
afirmava ser absolutamente essencial, porque foi em França que nasceu o Direito
Administrativo e, sem perceber essa evolução, ele não seria capaz de criar o Direito
Administrativo alemão. Esta análise implica uma lógica algo comparatista, de procurar
entender o direito do vizinho para entender qual era o seu direito. Neste sentido, pensemos
em Édouard La Ferriere, outro pai fundador do direito administrativo francês, na sua “Traité
de la juridiction administrative et des recours contentieux”. O autor disserta, na primeira
parte da obra, sobre as noções gerais e legislação comparada, na qual estuda a Espanha,
Alemanha, Prússia, Áustria, Hungria, Suíça, Bélgica, Itália, Inglaterra e Estados Unidos da
América; é um verdadeiro manual de direito comparado, antes de construir o direito francês.
O mesmo se diz de outro pai do direito administrativo francês, Roger Bonnard, que no seu
“Le contrôle juridictionnel de l'administration: étude de droit administratif comparé”, estuda
o direito da Inglaterra e dos Estados Unidos, da França, Jugoslávia, Bélgica, Itália, Grécia,
Roménia, Alemanha, Suíça, Áustria e Polónia.
Inquestionavelmente, nos primórdios há uma preocupação com o direito comparado
que, entretanto, morre logo a seguir. Um dos pais fundadores do direito administrativo
francês, Maurice Hauriou, no seu manual de Direito Administrativo e Direito Público,
sustenta que o direito francês é o melhor e o direito comparado serve como comprovação;
esta manifestação de xenofobia jurídica do senhor Maurice Hauriou vai-se generalizar ao
longo do século XIX e do século XX em todos os países. Tal xenofobia assenta na ideia de
que o Direito Administrativo é exclusivamente nacional e, por isso, não se faz necessário
saber acerca do direito do vizinho, porque não há necessidade de fazer direito comparado.
Ora, nos dias de hoje, a declaração de Hauriou não faz sentido, desde logo porque os
problemas jurídico-administrativos em todos os Estados são idênticos e a forma como eles o
resolvem diz muito das características do país e permite também a tal lógica comparativa de
procurar fazer igual ou melhor, evitar os problemas no quadro desta realidade; mas só

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recentemente é que isto aconteceu. No quadro do direito francês, o autor Fabrice Villaret vem
dizer que houve o tempo da justificação quando se usava o direito comparado para justificar a
qualidade do direito francês – era o que fazia Maurice Hauriou.
Esta realidade também atravessou Portugal. É costume dizer que a Universidade de
Coimbra depende do direito alemão e que a Universidade de Lisboa depende do direito
francês; isto foi assim no início do século, realidade que já não se verifica mais.
Presentemente, o que é facto é que a doutrina portuguesa não só conhece o direito italiano, o
francês, o alemão, o espanhol, como se gaba de conhecer e fazer os possíveis para que assim
seja. A prática e a jurisprudência não são tão cosmopolitas, mas, efetivamente, a realidade
global obriga a esta dimensão do direito comparado, porque só se conhece verdadeiramente o
direito próprio ao conhecer o direito alheio; quem só conhece o seu direito, não conhece
verdadeiramente o seu direito.
É certo, todavia, que uma outra realidade surgiu dos nossos dias: o direito não serve
apenas como elemento de ciência, mas também como fonte, porque à escala internacional,
quando um tribunal arbitral ou constituído nos termos do direito internacional tem que tomar
uma decisão para a qual não há norma aplicável, se faz uso do direito comparado dos países
que estão envolvidos para encontrar a melhor solução. Isto corresponde à filosofia do
Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) assente na ideia de que: o tribunal, na ausência
de norma, usa o direito comparado dos países envolvidos para encontrar a norma aplicável
àquela situação. Significa que o direito comparado se torna fonte de direito e, se passarmos
da dimensão europeia para a dimensão internacional, se pensarmos nas decisões tomadas
pelos tribunais arbitrais à escala internacional em matéria de comércio externo, de ambiente,
de saúde e de aviação, veremos que essa regra se generalizou e que o juiz internacional, tendo
condições para julgar e sendo chamado a julgar, não havendo norma jurídica aplicável, vai
construir essa norma a partir da norma de direito comparado do Estados que estão
envolvidos. Portanto, na escala global, isto introduziu uma dimensão criadora de direito
comparado: não apenas é a dimensão do conhecimento, é também a dimensão da criação.

(25.10.2021) - AULA 7 de 2ª feira

Neste sentido, importa referir que o fenómeno em questão surgiu nos anos 70, quando
foram apresentadas duas sentenças no âmbito do Direito do Mar, sentenças essas que são

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consideradas as fundadoras do Direito Global ou do Direito da União Europeia e que


constituem uma realidade diferente no domínio em que hoje em dia se inseria este Direito
Administrativo sem fronteiras. Falamos, pois, do domínio das pescas, devendo, por isso
mesmo, ser tidos em conta os dois casos supra referidos: “O caso das gambas e das
tartarugas” e “O caso do atum azul” (ou Tuna fish blue).
Contudo, e antes de abordar os casos, importa explicitar que pressupostos é que se
conjugaram para que os mesmos pudessem existir. De facto, há 30 anos, os pressupostos
tradicionais do Direito Internacional Público, do Direito Administrativo e, neste caso, do
Direito das Pescas, não permitiram a existência de uma situação deste género. Assim sendo, o
que é que alterou esta realidade?
Em primeiro lugar, muda a perceção, característica da época no Direito Internacional
Público, de que só os Estados eram sujeitos de direito, passando, progressivamente, a serem
consideradas identidades ao lado de outros sujeitos, igualmente válidos, tais como os
indivíduos (que possuem direitos em face do seu próprio Estado e que podem ser tutelados
perante Tribunais Internacionais) e, ainda, identidades muito diversas (nas quais se incluem
as tão conhecidas organizações não governamentais). Deste modo, e como prova do último
aspeto referido, se assistirmos a uma reunião da Assembleia Geral da ONU, encontramos
cerca de 800 ou 900 participantes dos quais apenas 200 aparecem sob a figura de Estados.
Verifica-se, portanto, que esta realidade vem transformar o Direito Internacional na
medida em que as suas normas se tornam em normas diretamente aplicáveis às relações
jurídicas (outrora afirma-se que as normas de Direito Internacional apenas se aplicavam aos
Estados, sendo que eram estes que respondiam pela sua aplicação – o Estado negoceia ou
adere a um tratado internacional e esse processo passa pela Assembleia da República que
incorpora essas normas na ordem jurídica interna e, no caso de existir algum problema de
aplicação, é o Estado que responde perante os outros. Deste modo, e nestes termos, o Direito
Internacional Público é uma realidade de difícil aplicação e, portanto, uma realidade que vai
cada vez mais perdendo terreno para este Direito Administrativo Global de que agora nos
ocupamos. Atualmente, diz-se que as normas são diretamente aplicáveis, isto é, não são
aplicáveis apenas por vontade dos Estados, nem dependem da intermediação dos mesmos.
Consequentemente, surge assim no quadro dos Direitos Humanos a ideia de que os
indivíduos possuem direitos contra o próprio Estado e que esses mesmos direitos podem,
como anteriormente mencionado, ser tutelados por um Tribunal Internacional. Contudo, e
para além desta realidade dos Direitos Humanos, também se começou a afirmar que em
determinados domínios económicos, no quadro das convenções internacionais, as normas

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jurídicas podiam ser diretamente aplicáveis e originar relações jurídicas internacionais. Esta
realidade constata-se em diversas áreas, tais como na aviação, no domínio do ambiente, no
domínio da saúde, no domínio das pescas e por aí adiante.
Assim sendo, para além do Direito Internacional Público, conclui-se que há
igualmente um conjunto de regras que se considera ser diretamente aplicáveis, o que pode
gerar litígios de natureza administrativa, uma vez que o que está em causa é a aplicação do
Direito Administrativo.
Em norma, os professores de Direito Internacional Público defendem que as normas
internacionais têm primazia sobre as nacionais, enquanto os professores de Direito
Constitucional tendem a defender que essa primazia não é superior à Constituição. Há,
portanto, uma discussão entre constitucionalistas e internacionalistas. Relativamente ao
quadro do Direito Administrativo global as normas (globais) prevalecem sobre as internas,
razão pela qual temos atualmente este fenómeno de Direito Administrativo global.
Em 1997, os Estados Unidos resolveram boicotar a importação de gambas com o
argumento de que os países asiáticos que as exportavam (tais como o Japão, a Coreia do Sul
ou o Taiwan) não protegiam as tartarugas e que, enquanto não o fizessem, não poderiam ser
importadas gambas desses países. Note-se, que esta atuação unilateral dos Estados Unidos
violava as regras internacionais do GET (um acordo internacional que regula as tarifas do
comércio internacional) e que nem mesmo a administração Trump, por muito que se
afirmasse como nacionalista, alguma vez as pôs em causa, pois as normas do tratado eram, de
facto, obrigatórias. No seguimento disto, surge um tribunal arbitral composto por juízes
norte-americanos que, ao julgarem o caso, consideram a decisão dos Estados Unidos ilegal,
isto é, violadora das regras de Direito Administrativo global. Efetivamente, a decisão era
ilegal devido a duas grandes razões: primeiramente, porque a decisão tinha sido tomada
abruptamente sem a consideração de um “process of law” (do devido processo legal), sendo
que a falta do mesmo era nefasta, pois não tinha existido uma audiência dos principais países
afetados por esta decisão. Ora, os advogados dos pescadores norte-americanos protestaram,
afirmando que não era possível chamar a juízo os pescadores dos países asiáticos. A isto o
tribunal responde da seguinte forma: primeiro, afirma ter sido possível chamá-los, uma vez
que é sempre concretizável colocar em jornais internacionais um apelo para que as pessoas
prestem e recebam declarações por escrito. Em segundo lugar, não só era possível como
havia cidadãos norte-americanos que tinham o mesmo interesse que os exportadores de
gambas (todos aqueles cidadãos e empresas norte-americanas que importavam gambas) e
que, pelo menos esses, deveriam ter sido ouvidos. No entanto, o tribunal acrescenta ainda

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outro ponto relevante relacionado com o nosso Direito Administrativo: o tribunal explicita
que as normas que existiam para proteger as tartarugas não poderiam ser utilizadas para
proibir a importação de gambas, dado que não é pelo facto de os americanos não importarem
gambas que os asiáticos passam a proteger as tartarugas. Não há, por isso, entre uma coisa e
outra o mesmo fim (é aquilo a que os juristas chamam de um desvio do poder, que acontece
quando ocorre uma dissociação entre o fim da norma e o fim que efetivamente foi
prosseguido). Neste caso, proteger as tartarugas é um fim jurídico aceitável, mas aceitável
apenas se estiverem em causa realidades relacionadas com as tartarugas. Não faz sentido
utilizar para a proibição de importação de gambas um argumento relacionado com as
tartarugas, pois não se protege as segundas através da proibição do consumo das primeiras.
Conclui-se, assim, que estes juízes norte-americanos consideram a decisão da administração
portuária dos Estados Unidos da América como sendo “arbitrary and capricious”, ou seja,
algo que corresponde à violação dos fins, pois não prossegue o objetivo legalmente
estabelecido, mas sim outro objetivo que não está contemplado na lei. A este fenómeno
podemos também chamar de “violação do princípio da proporcionalidade”.
Repare-se que este caso foi um caso pioneiro, não sendo, contudo, o primeiro, pois
antes dele já ocorrera o caso do “Tuna fish blue”, que tem como ponto central uma Comissão
Mista. Refira-se, antes de mais, que esta Comissão Mista corresponde a um organismo
internacional que nasceu dos acórdãos feitos entre os Estados na sequência do acórdão das
Nações Unidas sobre o Direito do Mar. É, assim, uma identidade composta não só por
membros administrativos dos Estados que assinaram o tratado, como também por pescadores
que se encontram em igualdade de posições na tomada de decisões administrativas. Assim se
compreende que esta Comissão Mista (ou, como encontramos nos textos, esta “expanded
comission”, comissão extensa ou comissão com poderes amplos) é o órgão administrativo
que determina as quotas pesqueiras em todos os países-membros do tratado, quotas essas que
são estabelecidas por identidades administrativas de natureza portuária dos Estados-
membros, e por pescadores. Aquando da sua violação, são julgadas pela própria
administração, evidenciando-se, novamente, um resquício do trauma da “infância difícil do
Direito Administrativo”: o trauma da confusão entre administração e justiça, uma vez que
esta comissão se transforma em tribunal e esse tribunal é que decide quem tem razão.
No caso “Tuna fish blue” (que era um caso que envolvia países como o Japão, os
Estados Unidos, a Austrália, o Canadá e outras identidades supremas) estamos perante um
conflito entre vários Estados que, se fosse resolvido pela via do Direito Internacional, seria
irresolúvel, pois dois países grandes protestam e não concordam sabendo que não há norma

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Transcrições das Aulas Teóricas TB; 2021/2022
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de Direito Internacional Público que resolva o litígio em questão. Atente-se, que os litígios
internacionais são óbvios- resolvem sempre os problemas, porque eliminam sempre um fator
perturbador. Tal como se costuma dizer, quando há um conflito entre um país pequeno e um
país grande, desaparece o primeiro; quando é entre um país grande e um país médio,
desaparece o segundo, e quando é entre dois países pequenos “desaparece o conflito”. Esta
realidade demonstra, assim, a falta de eficácia do Direito Internacional Público, com exceção
da área dos direitos humanos e destas áreas de direito privado, pois aqui aplicam-se as
normas como se de Direito Administrativo se tratasse, e as autoridades administrativas
respeitam-nas, pois tal é condição desta lógica global e ninguém põe em causa esta realidade
nos domínios em que ela hoje é dominante. Destacam-se neste campo as áreas da aviação (os
países têm direito de sobrevoo sobre o seu próprio território, mas as regras das companhias de
aviação são feitas por uma autoridade internacional composta pelas próprias companhias de
aviação, que inicialmente estavam sozinhas, mas que hoje admitem a presença de
representantes de alguns Estados. Mencione-se que não há nenhuma legislação inteiramente
nacional, em nenhum país do mundo, neste domínio, nem no da saúde. Relativamente a este
último campo, quando presenciamos, por exemplo, a Organização Mundial de Saúde a tomar
decisões sobre que vacinas podem ser recebidas, quais as normas a seguir ou quais os
critérios a ter em conta, estamos perante Direito Administrativo Global, não por estar em
causa a ONU, mas sim porque aquele organismo estabelece relações em rede com todas as
instituições públicas do mundo e toma as decisões depois de as ouvir e consultar. Não se
estranha, pois, que a OMS oiça e contacte diariamente com a Direção Geral de Saúde
portuguesa e com as suas semelhantes espanholas, americanas, francesas ou sul africanas
(entre outras), determinando orientações que são seguidas por todas essas administrações.
Note-se que não estamos perante um problema de Estado, não há nenhum ministro na OMS,
não há nenhuma identidade administrativa a mandar. Existe, sim, uma Comissão Técnica que
estabelece relações diretas com as demais administrações médicas e que colabora em rede.
Esta realidade é, como anteriormente mencionado, uma realidade novíssima e que se
encontra em vias de expansão (o próprio Presidente da República afirmou há pouco tempo na
Organização das Nações Unidas que o futuro das relações internacionais passa, cada vez
mais, por um Direito Administrativo em rede). Um exemplo disto é o acordo de gestão da
Amazónia existente entre o Brasil e todos os países que têm esta floresta incluída no seu
território. Tal acordo começou por ser uma fonte de Direito Internacional Público que
estabelecia direitos e obrigações para os Estados. Contudo, por volta dos anos 80, quando foi
revisto, houve uma cláusula que permitiu alguma aplicação global daquelas regras, dado que

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se estabeleceu que as administrações responsáveis pela gestão da Amazónia passariam a


estabelecer contactos diários sem a necessidade de intermediação dos respetivos governos
(eram as associações que entravam em contacto umas com as outras para, por exemplo,
prevenir desastres ecológicos). Assim, esta única cláusula banal e que não tinha produzido
qualquer tipo de efeitos, após a revisão do tratado, permite criar um funcionamento de
administração em rede que introduziu novas medidas de atuação global, medidas estas que
tomaram o lugar das medidas puramente egoístas dos Estados.
Conclui-se, portanto, que esta é uma realidade cada vez mais importante que vai
existindo sem se dar por isso, podendo referir-se, como último exemplo, a Convenção de
Glasgow que agora decorre. Esta Convenção, cujo principal foco é o ambiente, irá
naturalmente produzir tratados internacionais. Contudo, este tipo de convenções são
importantes, não tanto por permitirem a produção desses tratados, mas antes porque desses
tratados decorrem obrigações de ordem global que vinculam os países a tomarem medidas
que dependem da sua vontade, mas que são diretamente aplicáveis, o que resulta de todos os
acordos que têm vindo a ser celebrados até agora, sendo o último o Acordo de Paris.
Espera-se igualmente que em Glasgow possam ser tomadas medidas mais adequadas à
proteção do meio ambiente e à prevenção das alterações climáticas.
Ora, este fenómeno iniciou-se nos anos 80, e os dois casos de Salirmo Casese
caracterizam-se pelas alterações da realidade internacional, pela globalização, e ainda por
várias alterações jurídicas – no modo como se constrói a relação entre Direito Internacional
Público e Direito Constitucional, no modo como se consideram os sujeitos de Direito
Administrativo e no modo como se consideram as normas do Direito Internacional que
podem ou não ser diretamente aplicáveis. Mas para além desta dimensão, mais recente, há
duas outras dimensões absolutamente essenciais no quadro das modernas realidades. Uma
delas é o direito comparado, realidade que, durante muito tempo, era “privativa do direito
privado”: só os privatistas se dedicavam ao direito comparado. Os publicistas
consideravam-no desnecessário, argumentando que os ramos do direito aos quais se
dedicavam eram nacionais, e não beneficiariam de tal análise. Se remontarmos aos
primórdios, a configuração era significativamente diferente, porque Otto Mayer, antes de
constituir o Direito Administrativo alemão, do qual é considerado o “pai”, passou quinze a
vinte anos a estudar o Direito Administrativo francês. A sua obra de referência anterior ao
Deutches Verwaltungsrecht é o Französisches Verwaltungsrecht, Direito Administrativo
francês. No prefácio à primeira edição do manual alemão, escreve Mayer: “estou cheio de
dúvidas, se calhar devia estudar um pouco mais o Direito francês”. Isto é a prova da

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importância do direito comparado: ninguém conhece o seu próprio Direito se conhecer


apenas o seu Direito, desconhecendo outras realidades jurídicas. Do ponto de vista da Ciência
Jurídica, é absolutamente essencial manter-se atualizado quanto ao que se passa lá fora.
Curiosamente, este momento inicial que encontramos em autores como Mayer,
desaparece brevemente e, pouco mais tarde, Maurice Hauriou, grande administrativista
francês, dedica duas páginas do seu livro ao direito comparado, afirmando não ter dúvidas
sobre a superioridade do Direito francês, enquanto os autores anteriores tinham por hábito
dedicar-lhe centenas. Foi aqui que se iniciou a lógica egoística de um Direito que se recusa a
olhar para os vizinhos, achando que só ele vale.
Não obstante, no quadro da evolução francesa, da fase da auto satisfação de quem
estava convencido de que não precisava de saber mais nada, passou-se para uma fase de
dúvida, quando, no quadro da União Europeia, as instituições francesas foram colocadas ao
lado das alemãs, das portuguesas, das britânicas, e das demais. Ocorreu aí um estímulo a essa
comparação, começando os administrativistas a perguntar-se sobre quais eram, efetivamente,
as melhores soluções.

Noções como a de pessoa coletiva pública, a de ato administrativo, ou a de contrato


administrativo, são noções francesas, mas que não existem no Reino Unido, e, no quadro do
Direito da União Europeia, foi preciso criar um direito que estivesse acima das divergências
nacionais e que se aplicasse facilmente no quadro das diferentes realidades nacionais.

Em Portugal, por exemplo, tomando como exemplo a “noção esquizofrénica” de


contratos públicos: há uma dualidade essencial, pois os contratos celebrados com a
administração podiam ser de direito público ou de privado, sendo que se pertencessem à
primeira opção, aplicar-se-ia o Direito Administrativo, e seriam competentes os tribunais
administrativos; já se se tratasse de contratos de direito privado, aplicar-se-ia o
correspondente direito, e seriam competentes os tribunais comuns. Trata-se, no entanto, de
uma situação relacionada com o exercício da função administrativa, sendo todos os contratos
celebrados com a Administração e estando todos submetidos aos mesmos fins, pelo que não
existem diferenças, na prática, entre eles. Esta conclusão acabou por se generalizar,
adotando-se uma lógica igualitária e simplificadora, segundo a qual as normas jurídicas não
deveriam ser diferentes, dadas as semelhanças entre os dois tipos de contratos – tratava-se de
uma realidade única.

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Os autores clássicos, como o Prof. Freitas do Amaral, contra-argumentavam,


afirmando que assim não podia ser, uma vez que, no caso de se tratar de um contrato
administrativo, estariam em questão “poderes exorbitantes”, porque a administração poderia,
por exemplo, punir o cocontratante, acabando com o contrato.
No entanto, este argumento é facilmente destrutível, uma vez que no direito privado,
poderia fazê-lo igualmente. Os poderes supostamente exorbitantes da administração eram
poderes idênticos aos do particular, que se encontrava numa posição idêntica.
Perante esta “distinção esquizofrénica”, a União Europeia limitou-se a desconsiderar a
diferenciação, porque a mesma só existia nalguns países, entre os quais o nosso, e os vizinhos
Espanha, Itália e França. Assim, a União estabeleceu um conjunto de diretivas europeias que
criaram a noção de contratos públicos, que seriam todos os contratos no exercício da função
administrativa - o que, em Portugal, abrangeu tanto os contratos administrativos como os
contratos de direito privado, unindo-os num só, sob as mesmas regras e sob a competência do
mesmo tribunal. Toda a contratação ficou, assim, submetida a um regime comum.
Conclui-se, assim, que o direito comparado é importante para perceber a evolução das
instituições, bem como para a tomada das mais adequadas decisões.
Nos dias que correm, o direito comparado adquiriu ainda uma outra fonte de
relevância: mais que um instrumento para a ciência jurídica, passou a ser fonte de direito,
porque pode servir como elemento determinador do direito aplicável. A União Europeia, no
célebre acórdão Brasserie du pêcheur, vem dizer que, quando haja dúvidas quanto ao direito
aplicável, e não haja nenhuma norma jurídica da União Europeia que possa ser utilizada para
resolver diretamente aquele problema, o juiz deve construir uma norma de acordo com o
espírito do direito comparado de cada um dos países que estão envolvidos no litígio e de
acordo com as normas europeias. Assim, o direito comparado pode ser útil à construção de
uma norma jurídica, valendo esta regra igualmente para todos os tribunais globais. Nos casos
supramencionados, nasceram duas normas jurídicas que decorrem do direito comparado, e
diz-se também que o “due process of law” é algo que corresponde ao direito comparado à
realidade jurídica dos principais países do mundo. E se assim é, este direito de audiência,
“due process of law”, passou a ser um direito global que tem origem no direito comparado -
tal como o princípio da proporcionalidade, que deixou de ser um mero princípio
constitucional e nacional, da ordem internacional, passando a ser também princípio do Direito
Administrativo Global. É desta forma que o direito comparado se transforma em fonte de
direito.

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Passando para o direito europeu, encontramos uma realidade que vai contribuir ainda
mais para esta dimensão global deste tipo de fenómenos– é que a União Europeia, se nasce de
um Tribunal Internacional, não é uma organização internacional como as outras – é uma
realidade diferente de um Estado federal, mas tem algo que muitos Estados federais não têm:
um direito próprio, um direito comum. É que, no quadro dos tratados europeus, se instituiu
que os Estados podiam, para o futuro, fazer as leis que entendessem, desde que não
contrariassem o ideário europeu; em contrapartida, ao aderir à União, o novo Estado-membro
adere a todo o direito vigente na mesma, mesmo que anterior à adesão.
O Tratado de Lisboa é, neste momento, a Constituição material da União Europeia, e
estabelece claramente o princípio da primazia do Direito Europeu. Não existe, na União, uma
Constituição formal, nem há normas formalmente constitucionais, mas há Direito
Constitucional material, composto por regras que tratam de separação de poderes (não apenas
entre os órgãos da União, mas entre estes e cada um dos Estados-membros – princípio geral
de subsidiariedade) e da garantia dos direitos individuais (decorrentes da Carta dos Direitos
Fundamentais europeia).

(27.10.2021) - AULA 8 de 4ª feira

O Direito Europeu constitui uma realidade nova do ponto de vista da lógica sem
fronteiras. A União Europeia trata-se de uma Organização de Estados que se fundou segundo
o Direito Internacional, mas que funciona em termos que não são os típicos de uma
Organização Internacional, mas de uma realidade com uma dimensão interna; existe uma
realidade única que não existe em qualquer outra organização internacional- há um direito
comum da UE, o que faz com que a EU tenha uma dimensão interna, tenha efeitos na ordem
jurídica interna. Este direito comum tem, de acordo com as regras constitucionais europeias,
uma função de primazia sobre o Direito interno e é de aplicabilidade direta, o que significa
que este direito entra imediatamente em vigor7 e é diretamente aplicável às forças jurídicas e
adquire um efeito de primazia sobre o direito interno.
A lógica do quadro da UE é a de que os Estados participam na criação do Direito, mas
ao abrigo da UE aceitam todo o sistema jurídico, e não apenas o Direito no qual participaram
– uma lógica inovadora. Através destes mecanismos criados ao abrigo da UE, a lógica

7
Transposição através de diretivas;

45
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começou por ser a de um mercado único e, depois, uma união económica e monetária que,
nos dias de hoje, corresponde à EU.
Criou também mecanismos de direito constitucional, no entanto, não há ao nível
europeu uma Constituição Europeia. Não existe direito formalmente constitucional, mas a UE
tem normas materialmente constitucionais, e porquê:

1. Normas relativas à separação de poderes;


2. Normas relativas aos direitos fundamentais8

A UE tem regras que estabelecem não apenas a competência dos órgãos da união
como estabelece mecanismos de divisão e repartição de poderes entre todos os órgãos por
exemplo- princípio da subsidiariedade9: se não se trata de matéria exclusiva da EU, se não se
trata de matéria que seja regulada pelos tratados, a competência é dos Estados. Esta realidade
faz com exista uma organização política baseada na lógica constitucional democrática de
Estado de Direito da divisão de poderes. A Carta dos Direitos Fundamentais da UE, acaba
por ter valor constitucional, é uma realidade com valor jurídico-constitucional.
Concluímos que há, do ponto de vista material, uma Constituição material que se
formalizou. O Tratado de Lisboa representa a formalização de normas da Constituição
Europeia, algumas não são constitucionais, mas as que dizem respeito ao poder político e aos
direitos são normas constitucionais; assim, no quadro da União Europeia, há constituição
material europeia.

Esta é uma nova realidade constitucional que integra também o Direito Constitucional
de todos os Estados membros desta união de Estados. É uma dimensão que obriga a usar o
Direito Comparado, o Direito Constitucional Europeu, ou seja, numa lógica de Direito
Comum a todos os Estados membros.

O poder constituinte que deu origem ao Tratado de Lisboa é um poder constituinte


difuso; o poder constituinte material10 é uma realidade fluida e, o facto de este poder não estar
estabilizado, significa que há permanentemente conflitos de natureza constitucional no
quadro da UE11 - conflito de poderes constituintes materiais12. O Tratado de Lisboa diz que o

8
Desde a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do cidadão (1798) que o Estado tem Constituição
quando tem divisão de poderes e consagração de Direitos fundamentais
9
Mecanismo de repartição de poderes entre órgãos da União e órgãos Nacionais
10
Jorge Miranda
11
Como exemplo, os dois acórdãos do TC Alemanha
12
Polónia condenada pelo Tribunal de Justiça Europeu a pagar um montante monetário a título de infração-
ideia de criar no sujeito faltoso uma lógica de alteração de comportamento

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princípio do primado e o princípio da eficácia direta são princípios constitucionais da UE.


Recentemente, o Tribunal Constitucional polaco vem dizer que esta primazia não se aplica à
Polónia. Temos de analisar numa perspetiva de fenómeno constitucional: a Polónia
argumenta que é efetivamente uma interferência no poder executivo e judicial, mas isso é
legítimo nos termos das Constituições13 dos Estados- membros. O professor diz ser
necessário destacar a diferença material14, pois enquanto as constituições previam essa
possibilidade de interligação dos órgãos de poder, esta possibilidade de interligação não
significa uma tentativa de controle e esses poderes deixaram de ser poderes relevantes no
quadro da interferência do poder judicial- essas realidades, contrariamente à Polónia não são
formas de controle.

Esta é uma discussão constitucional relativa a um princípio constitucional da UE -


princípio do primado do Direito Europeu. É este princípio que permite que exista um direito
comum que estabeleça regras relativamente a adoção e aplicabilidade deste direito comum,
mas que simultaneamente também integra o Direito dos Estados Membros - lógica de
reciprocidade assente no diálogo jurídico15, que é o segredo da União Europeia.

Concluindo, isto é uma discussão constitucional ao nível da União Europeia. Estamos


a assistir a uma tentativa de exercício do poder constituinte material16;

Dimensão administrativa do Direito Europeu (“o Direito Europeu é basicamente


direito administrativo”)

Esta estabelece as políticas públicas em vários domínios - aquelas que se encontram


no quadro do Direito Administrativo, correspondem à competência do direito Europeu. Por
exemplo, as regras relativas à concorrência, à criação de mercados; Desde início que se
afirma esta questão do Direito Administrativo Europeu, que a lógica da União Europeia é
uma lógica administrativa. O Direito Europeu estabelece todas as políticas públicas no
domínio da pesca, do ambiente, regras administrativas relacionadas com uma política pública
de natureza agrícola, uma política pública de comercialização e regras e competência - é para
isto que serve a UE, políticas que se vão conjugar com as políticas nacionais.

13
Antigas, de momento anterior justificadas por realidades históricas
14
Polónia invoca a Constituição dos Estados Unidos
15
Esperança que seja possível a Polónia voltar atrás
16
Pode ser usado a todo o tempo em razão da alteração das Políticas circunstâncias políticas e económicas

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No quadro da UE, por um lado, o Direito Europeu prevalece sobre o Direito dos
Estados-membros, numa ideia de hierarquia, mas, por outro lado, também se mistura,
gerando mecanismos diferentes em cada país que podem corresponder a realidades diferentes
dentro do direito que é comum.

Dois principais atos legislativos da União Europeia:17

● Regulamentos: imediatamente aplicáveis e produzem efeitos diretamente.


● Diretivas: forma normal de exercício, dependem de transposição- Estados podem
adaptar desde que não contrariem o conteúdo; cada Estado pode adaptar conteúdo das
normas comuns, que não deixam de ser comuns - se não o fizer dentro do prazo18 (2
anos), passam a ter eficácia direta e entram em vigor;

O Direito Administrativo português, alemão, francês (…)19 é parte integrante do


Direito Administrativo Europeu, lógica que faz com que o Tribunal Constitucional diga que,
na ausência de norma aplicável, se usa o direito comparado - lógica integradora da União
Europeia;

Para além da necessidade do Direito Administrativo de determinado país estar


subordinado à Constituição e depender do Direito Constitucional20. Hoje há a ideia de que o
Direito Administrativo é Direito Constitucional concretizado, dupla dependência - O Direito
Administrativo depende do Direito Constitucional, porque consagra as regras e os princípios
essenciais deste último. O Direito Constitucional depende do Direito Administrativo, porque,
se o Direito Constitucional não for aplicado ao nível da Administração Pública e dos tribunais
administrativos, “morre enquanto realidade jurídica”.
A lógica anteriormente mencionada vale igualmente para a relação entre o Direito
Europeu e o Direito Administrativo - há uma dupla dependência - o Direito Administrativo
nacional depende do Europeu, porque tem que concretizar as grandes opções do Direito
Administrativo Europeu, adaptando-o e aplicando-o no quadro do ordenamento jurídico, mas,
simultaneamente, há uma dependência europeia, pois a UE não tem órgãos, nem um aparelho
administrativo, ou seja, é a Administração Pública que vai aplicar o Direito Administrativo

17
Não há distinção de poderes
18
Componente da lógica de querer coordenar direito Estados membros com o da União europeia
19
Direito administrativo dos Estados-Membros
20
“O direito constitucional passa, é uma coisa política, o direito administrativo fica”- expressão
histórica: DC está no topo da hierarquia, sistema regras fiscalização e DC tem regras sobre a
organização da administração, tribunais administrativas

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europeu, é a Administração Pública Portuguesa21 que, ao aplicar ao Direito Europeu, é a


própria Administração Pública europeia. O mesmo acontece em todos países, ou seja, o
Direito Europeu não se concretiza se não existir esta aplicação por parte da Administração
Pública dos Estados membros. O mesmo acontece ao nível dos tribunais europeus, que ao
aplicarem direito europeu devem tornar-se tribunais de 1ª instância - tribunais
administrativos, que ao aplicarem direito europeu, por um lado estão a criar direito europeu,
mas também estão a funcionar como órgãos judiciais da UE.
A relação entre Direito europeu e os direitos Nacionais hoje em dia reflete esta
realidade, que faz o presente e futuro da UE22 - lógica de interligação entre todos os Estados.

O nexo que se estabelece entre o Direito Europeu e o Direito Administrativo nos


Estados-membros é um nexo de uma conexão muito íntima, que, por um lado, origina um
Direito Comum e, simultaneamente, faz Europeus os direitos nacionais, criando uma unidade
muito difícil de dissociar. Atualmente, há uma dimensão administrativa fundamental no
quadro da União Europeia;
A realidade mais moderna ao nível de Direito Administrativo: PRR23. Corresponde a
um conjunto de fundos nunca antes obtidos a nível Europeu, que resultam de empréstimos
feitos pela UE à disposição dos Estados Membros, com o objetivo de relançar a economia,
sendo esta uma oportunidade de relançamento da UE e da economia de todos países
membros. Estabelecem regras comuns, novos domínios de atuação administrativa e recentram
princípios fundamentais do estado pós-social- regras devem em primeiro lugar recuperar
dimensão económica e devem corresponder a três valores constitucionais realizados pelo
PRR e, que neste momento são valores Europeus:

1. proteção meio ambiente: recuperação do verde no quadro das políticas públicas


administrativas
2. direito digital: contribuição para digitalização funcionamento da AP
3. saúde: consequência do COVID-19 - tarefa pública que tem que ser pensada e
reavaliada e que tem que continuar a ser protegida no âmbito do Estado pós-social.

21
(Exemplo)
22
Brexit- UK vai ter que nacionalizar/ ou afirmar um direito costumeiro as normas de direito europeu
para não ficar sem normas para as relações jurídicas administrativas – direito europeu regulava
praticamente tudo no quadro das relações jurídicas administrativas
23
Plano de recuperação e resiliência

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Este PRR trouxe consigo:

i. novos valores fundamentais Europeus que se conjugam com os valores


fundamentais dos países. Portugal já tinha esses valores na CRP, mas agora assumem uma
função de primazia no quadro da aplicabilidade do PRR;
ii. políticas administrativas que vão ser feitas a cada país destinadas a realizar estes
princípios;

Volta-se a afirmar a mescla de valores constitucionais com administrativos e há uma


mescla do Direito Constitucional e Administrativo com o Direito Europeu e os direitos dos
Estados membros. - Uma lógica de um direito comum que vai introduzir transformações
importantes. O Prof. Vasco P. da Silva pensa que é importante não desaproveitar esta
oportunidade, nomeadamente no aspeto do plano de resiliência24.

Há ainda alguns conceitos que é importante definir.

AP: Conjunto de entidades de natureza muito diversificada, que podem ser públicas,
privadas, públicas sob forma privada, etc. São entidades administrativas de forma muito
diversa e assumem configurações muito diversas, contrariando a realidade tradicional do
Direito Administrativo clássico. A Administração como Administração de polícia que exercia
poderes no quadro da segurança e saúde já não faz sentido nos dias de hoje, a realidade das
entidades administrativas é muito diversificada;

Atuação administrativa: atividade de prossecução contínua, duradoura e permanente


de satisfação de necessidades públicas - em vários domínios; atuação realizada por todas as
entidades que correspondem à Administração - todas elas exercem a função administrativa. É
também uma atividade muito diferenciada, porquê? Porque o direito que rege esta AP, já não
é o Direito do Poder25 (séc. XIX), e utiliza cada vez mais normas de Direito público e privado
- ambos os direitos, norteados por um fim de interesse público correspondem a forma de
atuação administrativa;

O que caracteriza o DA nos dias de hoje é o facto de regular o exercício da função


administrativa que pode ser feita por realidades públicas ou privadas através de direito

24
Conjunto de metas avulsas sem nenhuma ligação. VPS critica o PRR português na parte da
recuperação muitas realidades que não jogam com as outras
25
Posição de privilégios

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público ou privado, mas sempre tendo em conta os fins constitucionais, e que se trata de uma
atividade de natureza pública, mesmo quando utiliza direito privado. Esta tarefa contínua de
satisfação das necessidades coletivas que resultam da CRP é o que responde ao DA.
Durante muito tempo as definições de Direito Administrativo eram de natureza
autoritária. Otto Mayer26 caracterizava a AP em razão de poder administrativo, que consistia
em definir a situação jurídica dos súbditos no caso concreto- particulares eram administrados,
objeto do poder. Hoje em dia, ainda há quem defenda que as AP assentam nesta ideia de
poder - construções do poder de autoridade. Todavia, o Professor critica tal ideia, dizendo que
a AP só exerce estes poderes de autoridade quando a lei o estabelece, e em condições muito
limitadas. Ora, se restringíssemos o Direito Administrativo a esta realidade de poderes de
autoridade, ficávamos só com polícia, e a AP é muito mais que isso, nos dias de hoje
(conceção autoritária).
Sérvulo Correia tinha uma ideia estatutária: aquilo que caracteriza a AP é a existência
de um estatuto especial para AP. O professor diz que isto só existe nos termos da lei e de
forma limitada.
Concluindo, aquilo que é essencial, nos dias de hoje, para unificar o universo da AP, é
a ideia da função administrativa - atividade dos estados de satisfação continuada, regular e
permanente das necessidades coletivas definidas pela CRP, e que cabe à AP realizar no caso
concreto.

(03.11.2021) - AULA 9 de 4ª feira

A função administrativa corresponde à satisfação das necessidades públicas/ sociais,


tratando-se de uma das funções estaduais que têm vindo a ser abordadas desde os primórdios.
Surgiu, pela primeira vez, no tempo dos Gregos (por referências de Aristóteles), mas
tem vindo a assumir diferentes facetas no quadro das variadas sociedades, dado que a
organização de uma própria sociedade implica consequências no exercício desta função, no
quadro da lógica liberal. Ora, é a observar as opções políticas assumidas por um Estado na
sua própria Constituição ou atuação (na falta da mesma) que somos capazes de definir
Administração e o Direito Administrativo no contexto que queremos abordar.
Com o surgimento da Democracia no Estado de Direito, a Administração Pública
limitava a sua atividade à garantia da segurança, da liberdade e da propriedade. De facto, os
Liberais entendiam que a função legislativa, cujo papel passava por definir os direitos dos
26
Século XIX

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cidadãos enquanto liberdades contra o próprio poder do Estado, correspondia à função


essencial do Estado. Nestes termos, a função da administração encontrava-se limitada à
garantia, tanto externa como interna, da segurança, da liberdade e da propriedade dos
cidadãos.
Por conseguinte, não é de admirar que tal conceito de administrar origine um modelo
de administração que Otto Bachof designou de “administração agressiva”
(“Eingriffsverwaltun”), administração que, quando atuava, era com o objetivo de colocar em
causa os direitos dos particulares. Assim, vai surgir também o conceito de ato administrativo,
enquanto ato de polícia, isto é, um ato que correspondia ao exercício máximo dos poderes
públicos. É relevante ter presente a nova mentalidade que, o que era suscetível de execução,
se encontrava associado à ideia do privilégio da administração, o privilégio da execução
pública.
Ora bem, na lógica liberal, a Administração Pública tinha um papel quase
insignificante e muito pouco desenvolvido, tratava-se de administração bastante centralizada
e concentrada na figura do Estado, com alguma dimensão autárquica na vertente da garantia
da segurança da sociedade.
Mais tarde, com o surgimento do modelo de Estado Social, a realidade modificou-se,
dado ao alargamento no quadro constitucional de novas tarefas e finalidades, no âmbito da
responsabilidade Estadual. Estas modificações vieram alargar sobretudo a ótica do fins
Estado. Efetivamente, este órgão passou a intervir em diferentes fatores da vida social,
fomentando substancialmente a noção de Administração Pública e o conceito de função
administrativa. As necessidades coletivas que, a partir desta altura, se dizem respeitantes ao
Estado iam desde a vertente económica, à social e cultural, passando por todas as
manifestações societárias em que o Estado entendia que tinha um papel a desempenhar. Papel
este que, na lógica dos Estados Sociais, sucessores da experiência liberal, se tratava de um
papel de permanente correção das disfunções entre a oferta e a procura (via económica).
Este Estado Social revelou a importância preponderante da função administrativa, que
constitui a dimensão principal do Estado no sentido em que era ela a responsável por prestar
bens e serviços, auxiliar as novas tarefas estaduais e regular o funcionamento da “mão
invisível” (ideia proveniente do Estado Liberal). O conceito de Estado Providência ( “Welfare
State”), como também era denominado o Estado Social, remete-nos à aplicação humana da
“Divina Providência”, ou seja, a uma lógica de atribuição ao Estado de uma função essencial
na vida, não só da comunidade, mas também dos indivíduos.

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Transcrições das Aulas Teóricas TB; 2021/2022
Prof. Vasco Pereira da Silva

Atualmente vivemos num Estado Pós-Social, onde há uma diferenciação mais flexível
de funções, que procura evitar uma confusão entre as mesmas. A expressão utilizada pela
Constituição da República Portuguesa é “divisão e interdependência dos diferentes poderes
do Estado”. E esta ideia de divisão, por um lado da separação de funções, e por outro lado da
interdependência, explica que haja um fenômeno de interações entre os diferentes poderes e
funções da lei, que haja aquilo a que Montesquieu tinha chamado os poderes de decidir.
No entendimento do Senhor Professor, a Administração Pública entende-se por uma
tarefa continuada, permanente, de realização da tarefa da satisfação das necessidades
coletivas- necessidades estas que são definidas pela Constituição dos diferentes países,
dependendo do modelo de Estado adotado. Por estar intimamente relacionado com o modelo
de Administração Pública que existe num determinado país/lugar, o Direito Administrativo é
o direito que se encarrega de regular o exercício da função pública.

Esta concepção de Direito Administrativo e de Administração Pública é mais adotada


por autores do Direito Administrativo, curiosamente não portugueses - não é, nem de perto,
nem de longe a conceção dominante em Portugal, não obstante que seja, no ponto de vista do
Senhor Professor a mais adequada tanto para explicar a realidade administrativa, como para
rejeitar outro tipo de explicações inadequadas, insuficientes e insuscetíveis de explicar o que
é realmente o Direito Administrativo.

Em termos de categorização, há um conjunto de teorizações que assentam na ideia de


poder - a Administração Pública é um poder público, e, enquanto poder público, a
Administração Pública adota posições, que correspondem a privilégios, privilégios de
execução prévia do modelo; a Administração Pública atua através de poderes de autoridade; a
Administração Pública é uma realidade que corresponde à lógica agressiva de funcionamento
da administração. Ora, nos dias de hoje, essas explicações são insuficientes. Existe uma
reduzida parte da tarefa administrativa que corresponde, efetivamente, ao exercício de
funções policiais. Mas tal parte não reflete, nem à maioria, nem à totalidade das relações
jurídicas e administrativas. É-nos suficiente, então, olharmos, por exemplo, para qualquer
Governo: há um Ministério da Administração Interna, e há uma série de outros Ministérios
que se ocupam de setores da administração, que naquele momento, e naquelas circunstâncias
políticas foram consideradas como essenciais, e que, por essa razão, têm de ser realizadas.
Assim, a lógica do poder corresponde à fase do pecado original do Direito Administrativo,

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Transcrições das Aulas Teóricas TB; 2021/2022
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mas atualmente, não corresponde à realidade total da Administração Pública, sendo por isso
insuficiente para a explicar.
No quadro da Filosofia Portuguesa, encontramos diferentes provações, algumas delas
estudadas noutras disciplinas, por exemplo, a ideia do Direito Administrativo como o Direito
dos poderes de autoridade da prestação pública é o critério normalmente escolhido pelos
autores do Direito privado, nas disciplinas de Introdução ao Direito e Teoria Geral do Direito.
A Administração Pública é um poder e, portanto, há uma posição de poder. Mas o
problema é que, na maior parte dos casos, esta posição de poder hoje não existe. E, aquilo
que corresponde à função administrativa é realizado através de formas de cooperação entre os
particulares da administração, de forma que passam pela mistura entre regras de Direito
Público, e regras de Direito Privado.
A função Administrativa corresponde aos fins que são realizados por toda a
Administração Pública, e esta Administração Pública, na maior partes dos casos, tem
natureza privada - as empresas públicas são entidades privadas, organizam-se segundo o
Direito Privado - a maior parte da Administração utiliza meios e normas do Direito Privado, e
portanto, esta ideia de uma atuação dotada de poder não serve para explicar o que é o Direito
Administrativo. Nos dias de hoje, os privatistas indicam a Administração como critério de
diferenciação, mas também há publicistas, numa outra construção que é muito seguida em
Portugal que, na sequela do Professor Sérvulo Correia, veio dizer que o Direito
Administrativo é um direito estatutário - consagra um estatuto especial da administração. Só
que esse estatuto só existe quando a Administração goza de poderes de autoridade, quando
atua no domínio do direito policial, porque sempre que a administração está a satisfazer
necessidades públicas está a atuar no domínio do ambiente, está a atuar no domínio da saúde,
está a atuar no domínio do consumo - estamos perante atuações que não correspondem a um
estatuto de autoridade, a noção de direito estatutário, mesmo sendo capaz de ser a dominante
aqui em Portugal, neste momento, pelo menos na maior parte dos manuais publicados, é uma
noção que é totalmente insatisfatória.
Uma outra alternativa que, de resto, foi sugerida pelo Professor Marcello Caetano,
não tanto para falar do Direito Administrativo, porque ali usava a Teoria do Poder, mas para
distinguir o Direito Público do Direito Privado, era a ideia da finalidade - a finalidade ser
pública, ou a finalidade ser privada. E esta ideia é adotada, por exemplo, pelo Professor
Marcelo Rebelo de Sousa nas suas lições, escrita com o Doutor André Salgado de Matos; é
utilizada para explicar o Direito Administrativo. O Direito Administrativo seria um conjunto
de atuações que tinham por finalidade a satisfação primária, a satisfação imediata do interesse

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coletivo. A introdução do termo “imediato” ou “primário” tem a ver com uma das limitações
desta teoria, porque finalidades públicas também podem ter uma atuação privada.
Exemplo: um padeiro, que exerce uma tarefa privada, também desempenha uma
atividade de natureza pública porque alimenta a comunidade e, portanto, embora a sua tarefa
seja primacialmente privada, indiretamente também realiza um fim de interesse público. E o
termos que dizer isto, o termos que usar um qualificativo para caracterizar a prossecução do
interesse público, já diminui esta teoria, porque, se estamos a dizer que é mais ou menos
público, mais ou menos privado, ficamos sem critério de distinção. E, portanto, se
perguntarem ao Prof. Vasco P. da Silva, este prefiro uma concepção autoritária, ou uma
concepção finalista - apesar de tudo a ideia da finalidade é melhor para explicar aquilo que é
o Direito Administrativo, porque aquelas entidades privadas que exercem a administração e
cruzam meios jurídicos privados e meios jurídicos públicos, a ideia da finalidade ajuda a
perceber se são ou não administrativas e ajuda a caracterizar o Direito Administrativo.
No entanto, da sua perspetiva, o critério mais adequado para identificar a
administração pública e o Direito Administrativo corresponde ao critério da função, que no
Direito Administrativo é o direito da função administrativa. E a função administrativa tem a
ver com a satisfação das necessidades sociais de uma forma continuada, regular e
permanente, através de meios muito diferentes. A administração realiza funções de gestão, a
administração cuida da limpeza das ruas, a administração cuida de evitar os incêndios que são
atuações/operações materiais e não atos jurídicos. Mas a administração pública também atua
através de meios do direito privado. A administração pública compra bens e serviços como
qualquer particular, a administração pública contrata com particulares para a colaboração dos
exercícios e das funções. A administração pública organiza-se segundo o direito privado, e
tem uma realidade que mescla o direito público com o direito privado e há um autor italiano
(Mario…), que, a este propósito, usa uma expressão: “o direito administrativo é o direito
mestiço” - o direito misturado, que mistura realidades diferentes e as integra e as combina.
Portanto, não é uma realidade nova, não é nem pública nem privada, não prossegue apenas o
interesse público, prossegue também o interesse privado e, assenta basicamente nesta ideia da
função jurídica.
É necessário reconstruir todo o direito administrativo porque o direito administrativo
já não serve para explicar a realidade - é preciso entender os novos fenómenos
jurídico-administrativos, é preciso reconstruir o ato, é preciso reconstruir o contrato, é preciso
reconstruir o processo administrativo. E, tudo o que o Professor tem escrito tem sido neste
sentido de reconstruir, transformar, o direito administrativo à realidade da função

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administrativa pública. - A ideia de que o cientista tem de começar por olhar para a realidade,
tal como ela existe e, procurar explicar essa realidade. Não fazer uma construção com base
no passado, não uma construção com base no futuro, mas um cientista tem que partir da
realidade, olhar para a realidade e, em função dela, construir o direito administrativo
adequado aos nossos dias.
Hoje em dia já há vários autores a seguir esta posição de direito da função, mas ela
ainda não é uma posição dominante em Portugal.

Novo Capítulo - Sujeitos Administrativos


Em Portugal, como em todos os países Europeus, a realidade dos tempos difíceis da
infância do Direito Administrativo traduzia-se no facto de o particular não possuir direitos
perante a administração. O particular era um objeto, era, como ainda hoje dizem os autores
que não têm a psicanálise em dia, um administrado. O particular era alguém sobre o qual era
exercido o poder público e, a única coisa que fazia era submeter-se e ficar satisfeito.
A este propósito, vamos começar por estudar as doutrinas negacionistas, que foram as
primeiras a surgir acerca dos direitos dos sujeitos públicos, dos direitos dos particulares em
face da administração. Como, mesmo quando nos dias de hoje, a noção do direito subjetivo
público é aceite, ela continua a ser aceite com algumas limitações. Neste momento, os
defensores da teoria da norma de proteção, já tendem a estar, na sua maioria, em Portugal,
mas até há bem pouco tempo as concepções trinitárias ou binárias preferiam falar em direitos
subjetivos e interesses jurídicos ou em direitos subjetivos e interesses jurídicos difusos.
Ora, se isso é assim, porque carga d' água é que no direito administrativo só direitos a
uma conduta de outrem é que seriam direitos subjetivos e todos os outros seriam direitos de
segunda ou direitos difusos ou outras realidades dessas? Trauma de uma infância difícil, é um
problema psicanalítico, que ainda não fosse prazo porque, também no direito administrativo,
existem todas as espécies de direito que existem no direito privado e todas elas correspondem
a uma categoria comum, que é a categoria de administrativo. E portanto é preciso dizer isto, é
preciso dizer que o particular que não é o sujeito das relações jurídicas administrativas,
também não se falava de relações jurídicas administrativas. É preciso dizer que o particular
tem direitos e, que por causa desses direitos estabelece uma relação jurídica com a
administração e tudo o que se passa no quadro dessa relação é regulado pelo direito, não
responde a poderes arbitrários, não corresponde a nenhuma realidade e que estas relações
jurídicas são a base do moderno direito administrativo, são a base da Constituição e a

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Constituição fala numa relação jurídica administrativa nos artigos iniciais, a propósito dos
direitos fundamentais, dos princípios da administração, no Artigo 212º, nº3, a propósito do
controle da administração.
Ou seja, a ideia de que o particular e a administração são sujeitos em posições de
igualdade, e que esta posição de igualdade no quadro de uma relação jurídica que assume
diferentes matrizes e, que é de natureza duradoura, vai apresentando direitos e deveres
diferentes, em razão da posição em que o particular se encontra no quadro das relações
jurídicas. Portanto, nós vamos partir de uma ótica que é a lógica entre o particular e a
administração pública. - O que é certo é que a administração tem sempre de realizar o
interesse público. Essa é uma finalidade essencial, mas o interesse público não é incompatível
com os direitos dos particulares e, como muito bem diz a Constituição da República
Portuguesa, é preciso realizar sempre o interesse público no respeito dos direitos dos
particulares. Uma coisa não pode andar sem a outra, não se pode realizar unilateralmente o
interesse público, pondo em causa os direitos dos particulares, nem se pode realizar apenas os
direitos dos particulares, esquecendo o interesse público. A lógica da comunidade obriga à
conjugação dessas duas realidades.

Portanto, é por causa desta história traumática do direito administrativo, que o


Professor assume, aqui, também no quadro desta disciplina, uma função reconstrutiva do
Direito Administrativo. É preciso equilibrar este desequilíbrio histórico e a melhor forma de o
fazer é começar por estudar o particular como sujeito de direito e depois analisar as outras
dimensões que correspondem ao funcionamento da administração aos diferentes órgãos, às
diferentes pessoas coletivas, às realidades que compõem a administração pública. É por isso
que, se virem no programa, este capítulo tem até um título programático, chama-se “Todos
Diferentes, Todos Iguais - Os Direitos Das Relações Jurídicas Administrativas”. Estamos a
falar de direitos que são todos diferentes e são todos iguais, correspondem todos à mesma
categoria jurídica. São posições de vantagem garantidas pelo ordenamento, que atribuem ao
particular uma posição de vantagem em face da administração. E, estes direitos são direitos
que integram uma relação jurídica em que há direitos equivalentes.
A própria ideia de poder administrativo é algo que corresponde a um direito subjetivo.
No direito privado, quando um particular exerce o poder que permite obter um determinado
resultado, uma determinada conduta, fala-se em direito potestativo. Ora, direito potestativo é
algo que tem a ver com o poder, a administração do povo quando exerce um poder que lhe é
atribuído pela lei, está a exercer um direito potestativo também ela. Tanto o particular como a

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administração têm posições de vantagem e posições de desvantagem, têm um leque de


posições jurídicas que determinam relações jurídicas que são influenciáveis. De resto, o que
em Portugal parece disfarçado, noutros países é mais evidente. Nos outros países, a palavra
que designa direito potestativo e poder potestativo é a mesma, é a potesta italiana, as potestas
do direito espanhol. São nomes que tanto servem para falar de direitos potestativos no quadro
do direito privado, como do poder da administração no direito administrativo.
Ela tem um poder, o de atuar, e esse poder corresponde a uma posição de vantagem de
natureza potestativa. Portanto, há que, enquanto jurista, olhar para estas realidades tal como
elas se apresentam hoje, percebendo o que vem de traumas e como é que isso conduziu a
configurações especiais, mas sendo capaz de analisar o modo como as coisas evoluíram e,
chegar aos nossos dias e construir um conceito de relação jurídica administrativa, que é o
conceito que está na base do nosso atual ordenamento jurídico. E a base essencial para a
construção desta noção de relação jurídica é a titularidade de direitos subjetivos.

No início do século XIX, estávamos perante teorias negacionistas, teorias que diziam
que o particular não podia ter nenhum direito face à administração. Otto Mayer diz que era
manifestamente inconcebível que o particular possa ter um direito a que a administração faça
qualquer coisa. Dizia Otto Mayer que ter um poder de vontade sobre a administração é
qualquer coisa inadmissível. A administração persegue o interesse público, a administração
tem privilégios de execução prévia, um particular não pode ter um poder perante a
administração. E esta lógica, que foi uma lógica tradicional do direito administrativo, hoje em
dia não faz mais qualquer sentido. A administração tem poderes como o particular tem
direitos, os poderes administrativos devem ser realizados como regras do interesse público e,
o particular, em última análise, tem direitos fundamentais que obrigam todos os poderes do
Estado.
Estamos numa posição de equilíbrio relativo e, cai naquela relação uma posição de
natureza positiva que tem direito a um comportamento de outrem e vice-versa. A
administração também tem, e isso é diferente do direito privado, um grande dobro de poderes
que nós diríamos que correspondem a direitos potestativos. Ou seja, na maior parte dos
casos, quando falamos de atos administrativos e regulamentos, estamos a falar em atuações
administrativas que produzem diretamente efeito nas esferas dos particulares, exatamente
como o direito potestativo. Agora, do ponto de vista jurídico, a realidade é exatamente igual
e, ao lado desses direitos potestativos, há mil e um deveres da administração que
correspondem a direitos dos particulares.

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(08.11.2021) - AULA 10 de 2ª feira


A noção de direitos subjetivos públicos no quadro do Direito Administrativo não se
trata apenas de uma novidade do ponto de vista do ordenamento jurídico, corresponde
também a uma transformação do Direito Público em geral e do Direito Administrativo em
particular. Aqui se encontra um fecho de realidades interligadas, em que, por um lado, a
afirmação da natureza de sujeito do particular, ainda se encontra associada à titularidade de
direitos dos particulares - são estes sujeitos que integram o conteúdo de relações jurídicas, em
que há deveres, posições de caráter positivo e negativo, em que há direitos subjetivos,
poderes do lado da Administração e outras manifestações de natureza positiva-, por outro,
existem deveres e sujeições de outras entidades que correspondem ao ato passivo da nossa
Administração. No quadro da ordem jurídica portuguesa, tal resulta da Constituição de 76,
sobretudo depois das revisões de 89 e 97, cujas versões originais apontavam para esse
caminho, e correspondem, em regra, ao nosso ordenamento jurídico, como o Código de
Procedimento Administrativo e o Código Contencioso Administrativo, que têm como base a
ideia das relações jurídicas-administrativas. O artigo 212º/3 da CRP estabelece que o objeto
do Contencioso Administrativo e o objeto da justiça administrativa são as relações jurídicas,
administrativas e fiscais. Essa ideia, de que há uma relação jurídica, decorre, desde logo, das
normas sobre direitos fundamentais: a CRP consagra direitos fundamentais que vinculam
entidades públicas e a ideia de que há dois lados e que se a Administração tem de realizar o
interesse público, o particular é protegido através de direitos fundamentais. Para além disso, o
próprio artigo 1º, que fala da organização do poder como objetivo da CRP, também diz que a
base da organização política é a dignidade da pessoa humana. Esta lógica, de por um lado
reconhecer uma dimensão personalista do particular que goza de direitos face à
Administração e que depois se vai manifestar a todos os títulos: no quadro do funcionamento
da Administração Pública, os artigos que regulam a atuação administrativa dizem
expressamente que há uma necessidade de realizar o interesse público no respeito pelos
direitos e interesses dos particulares. Portanto, a atuação administrativa não pode ser feita
sem consideração dessa realidade que é essencial no âmbito de uma moderna organização
administrativa.
Por último, no quadro dos tribunais, o artigo 212º/2 vem falar em relações jurídicas,
administrativas e fiscais. Esta norma processual completa-se com o que está estabelecido no

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artigo 268, nº 4 e 5 da Constituição, tendo consagrado, em Portugal, um direito fundamental


de acesso à justiça para a tutela dos direitos dos particulares. Esta é uma realidade que
corresponde ao Estado Moderno Pós-Social onde vivemos, estando, todavia, ao “arrepio”
daquilo que foi a tradição do Direito Administrativo e a lógica do direito administrativo
clássico. Procurando dar uma noção conceitual do direito subjetivo, podemos dividir as
teorias em duas famílias: as teorias negacionistas, que correspondem à evolução histórica e
que negam a possibilidade de o particular ser titular de direitos face Administração (desde os
séculos XVIII, XIX, XX, temos várias manifestações desta lógica negacionista); e as teorias
que consagraram a ideia de que o particular é titular de posições potestativas em relação à
Administração. Nesta segunda família, podemos distinguir as categorias trinitárias, que
defendem os direitos subjetivos, interesses legítimos e interesses difusos e as categorias
unitárias que falam num único direito subjetivo, que pode ser reativo ou o direito de acordo
com a teoria da norma de proteção que é reconhecido pela ordem jurídica sempre que há um
dever de atuação da administração ou sempre que há uma posição garantida pela ordem
jurídica.
As doutrinas negativistas, correspondem à fase da infância traumática do Direito
Administrativo. Havia uma realidade comum, a todos os países da família do Direito
Administrativo na lógica francesa, de não reconhecer aos particulares posições de vantagem
em face à Administração. A primeira teorização vem do Direito Francês e do Contencioso
Administrativo. A ideia de que o que estava em juízo era, diziam os autores clássicos, a de
que o particular ia a tribunal apenas para colaborar com a justiça e a Administração. O
particular não tinha direitos, não era parte, nem em sentido substantivo, nem em sentido
processual e estava apenas para “ajudar” a Administração a descobrir a verdade e a justiça,
quase que sendo um “bom escuteiro”, que cumpria a sua boa ação indo a tribunal para ajudar
o juiz, o que é uma coisa estranha, pois ninguém vai a tribunal se não for afetado pelo direito.
Ninguém vai a tribunal se não for prejudicado pela Administração. Ninguém vai a tribunal se
não for demitido da função pública, se não lhe retirarem um subsídio a que tinha direito, se
perdeu um concurso quando tinha coisas para ganhar e por aí adiante. O Particular quando vai
a tribunal é para tutelar um direito. Nesta lógica, o contencioso totalmente objetivo está
aberto aos titulares que têm um benefício fático; são beneficiados de facto. E, portanto, a
primeira explicação para a posição do particular é que ganharia alguma coisa com a atuação
administrativa, mas não tinha nenhum direito a essa atuação.
Depois, há uma construção germânica, que encontra a sua máxima expressão em Otto
Mayer, que vem dizer que o que aparentemente se assemelha à posição do particular é apenas

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um reflexo do direito. A ideia é de que o particular não pode prosseguir qualquer direito
perante a Administração. A Administração pode tudo. Tem o direito de decidir em última
análise a vida e morte de todos e, como tal, se a Administração Pública pode tudo, não é
possível conceber a existência de um qualquer direito.
O particular é beneficiado, no entanto, de uma forma indireta. Reflexamente, se a
Administração cumprir a lei, o particular ganha um benefício de facto. É uma teorização mais
elaborada da lógica francesa. O particular é beneficiado pelo cumprimento da lei, mas não
tem nenhum direito a exigir o cumprimento da lei, não tem nenhuma posição substantiva de
vantagem. Não tem um direito subjetivo; tem um reflexo do direito objetivo na sua esfera
jurídica.
Ainda no quadro destas construções, embora afirmando-se como subjetivista – esta
doutrina é claramente objetivista, devido ao facto de negar a existência de direitos. Esta
construção doutrinária surgiu em França e foi adotada em Portugal pelo Professor Marcello
Caetano, tendo constituído durante bastante tempo a consciência social dominante nesta
temática. Tratava-se da ideia de que o particular tinha um direito objetivo e abstrato. Um
direito à legalidade, mas que não era direito nenhum em concreto- não estava na esfera de
ninguém e não se podia exigir o seu cumprimento. Era um direito a que a lei funcionasse, era
um direito à legalidade objetiva. Era um direito como uma espécie de “pombinhas da
Catrina”, que andam de mão em mão e são de quem as apanhar. O particular, em nome deste
direito à legalidade, podia ir a tribunal, sem ter propriamente um direito subjetivo e dizer que
havia uma violação da legalidade. Era um direito geral e abstrato. Era um direito que não
existia na esfera jurídica dos particulares. Era a negação da ideia de direito subjetivo. Era
uma afirmação do direito objetivo, sendo mais uma variante da construção de Otto Mayer a
ideia de que o que estava em causa era uma ordem jurídica que funcionava de acordo com a
lei e que, se funcionasse de acordo com a lei, o particular era protegido. Há um direito à
legalidade que não era de ninguém mas era de todos. Ao ser de todos não é suscetível de
apropriação; ninguém o possui, e como tal é algo que corresponde à negação de um direito.
Estas construções, que são consideradas clássicas, correspondendo aos traumas da
infância difícil do Direito Administrativo, sendo hoje incompatíveis com a nossa Constituição
e Ordem Jurídica. Hoje não é possível repeti-las como uma construção jurídica de Portugal,
um Estado de Direito do séc. XXI. O mesmo vale relativamente a todos os outros Estados
Europeus. Desde o artigo 1º que fala em dignidade da pessoa humana, aos direitos
fundamentais que vinculam as entidades públicas e privadas, ao princípio da prossecução do
interesse público no respeito pelos particulares, ao objeto do Contencioso Administrativo

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Transcrições das Aulas Teóricas TB; 2021/2022
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relativo aos litígios nas relações jurídicas administrativas, a um direito fundamental de acesso
à justiça, tudo isto, contraria esta lógica negativista/negacionista da existência de direitos
subjetivos para a Administração. No quadro Europeu e no quadro Nacional, é manifestamente
indiscutível que as outras concepções não são admissíveis e que estas são sim, embora com
conteúdos diferenciados.
Em Portugal há uma construção, que teve grande influência do direito italiano, que
vai dar origem a concepções trinitárias. A ideia de “trindade” é defendida pelo Prof. Freitas
do Amaral, mas também pelos Professores Rui Machete e Sérvulo Correia. Durante muito
tempo esta era a conceção dominante, mas hoje em dia, ela tende a perder essa posição em
face das outras, portanto, é sinal que houve uma evolução no quadro do pensamento.
Insere-se nesta ideia de concepção trinitária a concepção binária. Enquanto que o Professor
Marcelo Rebelo de Sousa se fica pelas 2 modalidades de direito subjetivo, a construção
trinitária acrescenta ao direito subjetivo e ao interesse legítimo, também um interesse difuso.
A construção trinitária defende a ideia de que existem três tipos de direitos
caracterizados por um menor grau de proteção em termos relativos. Há um direito subjetivo –
que corresponde a um direito integrado e protegido; um interesse difuso – que seria um
direito “sombra”, e ainda um interesse difuso que seria um direito 3º - um direito que não
corresponderia a uma proteção muito efetiva. Esta construção vem do direito italiano e é
incompreensível que tenha tido uma influência tão grande na doutrina portuguesa. O que está
por detrás desta distinção do direito italiano é uma distinção de natureza processual. Na Itália
há tribunais administrativos e a divisão de competências entre os tribunais administrativos e
os tribunais judiciais, tem a ver com a diferença entre os direitos subjetivos e direitos
objetivos. Se estamos a tratar de interesses objetivos, cabe designar os tribunais
administrativos competentes, se por outro lado abordamos os direitos subjetivos, tal papel
cabe aos tribunais judiciais. É uma construção histórica. Na altura da implantação do
Contencioso Administrativo recebeu cabimento institucional e curiosamente nunca se deu em
Portugal.
Em Portugal, no quadro da função administrativa, os tribunais decidem tanto em
matéria de direitos, como de interesses. Nunca foi uma distinção que significasse um tribunal
diferenciado, ao contrário do que se passou em Itália.
Desde os finais do Séc. XX, desde 98, a legislação do Contencioso Administrativo e a
própria lógica constitucional ultrapassou essa distinção, criando áreas a que chamou de
“jurisdição exclusiva”, que são áreas como a saúde, consumo, ambiente, urbanismo e
realidades de natureza social, que estão identificadas na Constituição e nas leis, e no quadro

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destas situações de jurisdição exclusiva, é irrelevante a distinção. No quadro da realidade


italiana são da competência dos tribunais administrativos.
Curiosamente, em Portugal, esta distinção quanto aos tribunais nunca existiu, mas foi
adotada como construção teórica. Em que é que ela se baseia? Diz-se que nalguns casos, o
legislador outorga diretamente uma posição de vantagem e aí não há dúvidas que estamos
perante um direito subjetivo. O legislador diz que ao fim de 40 anos de trabalho pode haver
direito à reforma, fala no direito à reforma, esse é um direito subjetivo. O direito subjetivo
corresponde, segundo Zanobini, a uma proteção direta e imediata por parte da ordem jurídica.
Pelo contrário, o legislador pode estabelecer apenas um dever para a administração. Pode
dizer que a Administração tem de atuar daquela maneira. De acordo com esta construção, esta
norma jurídica está feita a pensar no funcionamento da administração, não nos direitos dos
particulares, e só protege indiretamente o particular. É uma norma que foi feita para a lógica
da organização administrativa e do seu modo de funcionamento, mas dela resulta uma
proteção indireta do particular.
Apesar desta distinção, concebida nesses termos, em Portugal, por um lado, o
legislador nunca distingue o direito subjetivo do interesse supostamente legítimo – nunca usa
a expressão “interesse legítimo” – fala em direitos subjetivos e interesses legalmente
protegidos e trata os dois por igual e, do ponto de vista jurídico, o interesse legalmente
protegido é um direito subjetivo. O legislador quando usa essa expressão dupla está a querer
reforçar a ideia de que está a falar de todos os direitos, mas não só não estabelece um regime
para os direitos ditos legítimos, mas também, reconhece o Professor Marcelo Rebelo de
Sousa, não há nenhum regime jurídico distinto. O regime jurídico dos direitos fundamentais é
exatamente igual ao dos interesses legítimos: direitos subjetivos e interesses legítimos têm o
mesmo regime jurídico. E bastaria isso para pensar qual razão de ser desta construção, porque
se, por um lado, não é usada pelo legislador e se não tem nenhuma diferença de regime
jurídico, porquê então falar em direito primeiro e em direito segundo, como seria o interesse
legalmente protegido? Uma explicação dada por estes autores, nomeadamente Freitas do
Amaral e Marcelo Rebelo de Sousa, é de que seria “o amor à verdade”, uma vez que, na sua
perspetiva, no caso, há uma proteção direta por parte do ordenamento jurídico, que será o
direito subjetivo, no 2º caso. No caso do interesse legítimo, há uma proteção meramente
indireta. Esta afirmação é a vários títulos refutável; estranha. Desde logo pode-se fazer uma
ironia: Como é que uma norma feita a pensar na administração protege o particular ainda de
forma indireta? É um engano da norma? É uma distração? É algo estranho.

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Transcrições das Aulas Teóricas TB; 2021/2022
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Esta ironia foi feita no direito italiano, onde se referia que não faz sentido esta
distinção: estamos perante uma proteção jurídica num caso e no outro. E depois esta ideia de
que um caso é uma proteção direta ou indireta, em rigor, não faz sentido absolutamente
nenhum. Não é a mesma coisa dizer que “fulano tal” tem um direito ou que “fulano tal” tem
um dever de atuar que corresponde a um direito de quem atua? Havendo um dever da
Administração, este dever da Administração está estabelecido no interesse do particular e não
há uma realidade diferente por a norma que está em causa ser uma norma de dever ou ser
uma norma que fala em direito subjetivo. É um argumento falacioso que não faz qualquer
sentido.
O único sentido, podem ser os traumas da infância difícil. É difícil falar em direitos
subjetivos. É difícil alargá-los a um ângulo muito grande e, portanto, ficam direitos de
primeira e direitos de segunda. O que até é, no ponto de vista da ciência do direito, uma
realidade ilógica. No quadro da relação jurídica, como existe no Direito Administrativo, uma
regulação da atuação da Administração corresponde a um direito do particular àquela
atuação. O direito tem o conteúdo, o dever, que se insere no quadro daquela relação jurídica.
É por isso que o Prof. Vasco Pereira da Silva costuma dizer que a única forma de
diferenciação que parece existir entre o direito subjetivo e o interesse legítimo, é o modo
como a norma atribui a posição de vantagem. Mas, num caso e noutro são posições de
vantagem, são iguais e, como diz, e bem, o Professor Marcelo Rebelo de Sousa, têm o mesmo
regime jurídico -e não há razões para fazer qualquer diferença – e o modo como a norma
protege também é idêntico. Tanto faz dizer que “fulano tal” tem um direito, como dizer que
“fulano tal tem um direito que corresponde a um dever de outrem”. Ao regular um direito no
interesse de outrem está-se a atribuir um direito ao outro titular da relação jurídica. Portanto,
tudo isto corresponde aos traumas da infância difícil e é algo que deve ser superado no
quadro da moderna teoria do Direito Administrativo.
Existe um tipo de interesses difusos, cujo o Professor Marcelo Rebelo de Sousa
rejeita, embora se encontrem bastante difundidos no nosso país, os direitos de terceiro. Os
direitos de terceiro entendem-se, em primeiro lugar, por direitos não criados pelo legislador
ordinário, mas que resultam de normas constitucionais, eram direitos fundamentais. Surge
então a questão de saber como é que podem estes direitos não ser criados pelo legislador, se
se tratam de direitos fundamentais. Porque é que são interesses legítimos? A resposta a estas
questões remete-nos à infância difícil do Direito Administrativo. Na lógica clássica o Direito
Constitucional tinha pouca importância e o Direito Administrativo é que era “o” Direito, que
criava posições jurídicas de vantagem e implicava que o legislador constituinte fosse

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Transcrições das Aulas Teóricas TB; 2021/2022
Prof. Vasco Pereira da Silva

desvalorizado. Era a lógica do séc. XIX, lógica de Otto Mayer sobre a qual o Direito
Administrativo ficava.
Desde logo, isto é algo estranho. Mas há um outro argumento, defendido pelo Prof.
Freitas do Amaral, e retomado por alguns ambientalistas, que quer dizer que esses direitos ao
ambiente e à qualidade de vida, correspondem a realidades objetivas em que há uma
proteção objetivas do bem e que o bem não é apropriável. É indiscutível que o ambiente não é
apropriável. Ninguém se pode apropriar do Direito. O direito não é de uma única pessoa e
corresponde a uma realidade objetiva, tutelada independentemente das pessoas e corresponde
a princípios jurídicos.
O facto de corresponderem a uma tutela objetiva de um bem não significa que esse
bem não possa ser utilizado também em proveito dos particulares. Não é por haver uma tutela
objetiva, que torna impossível um aproveitamento subjetivo desse bem. No quadro das
relações que envolvem o meio ambiente, desde a produção de batatas à produção de
eletrodoméstico, há condições normativas de aproveitamento de um bem. É isto que se passa
no quadro do Direito ao ambiente, que é um direito fundamental, na nossa ordem jurídica,
constituído no artigo 66º.
No Direito administrativo também há uma realidade que todos conhecem: as praias.
As praias, em Portugal ou nos outros países europeus, são públicas. Ninguém pode ser
impedido de ir a uma praia, a praia é um bem público, mas sendo um bem público, os
banheiros têm uma relação contratual com as autoridades portuárias para explorarem as
sombras que colocam lá durante o verão. Portanto, se ninguém pode ser impedido de ir à
praia, só pode usar sombras, que são utilizadas para efeito pessoal; o concessionário que
colocou lá aquelas sombras e as pessoas que querem utilizá-las têm de pagar. Se não
pagarem, podem ir à praia, mas têm de ficar ao sol ou trazer uma sombrinha de casa. O bem,
por ser público, não impede o aproveitamento individual. Há uma relação de interesse
público, que resulta do contrato, em que o banheiro se compromete a tomar conta da praia, a
garantir minimamente a segurança e chamar as autoridades marítimas se houver algum
problema, a limpar a praia, se compromete a ter um Nadador Salvador, e tudo isso está a
cargo de quem assume aquela tarefa, mas, em contrapartida, pode explorar as sombras - a
praia não deixa de ser pública -, havendo um aproveitamento subjetivo no interesse de todos.
Portanto, não é por haver uma proteção jurídica objetiva, que isso põe em causa a posição
jurídica subjetiva.
Outros exemplos são os concessionários que têm postos de gasolina numa
autoestrada, que embora estejam num sítio público, têm um contrato que permite a

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Transcrições das Aulas Teóricas TB; 2021/2022
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exploração da venda de gasolina num quadro de uma propriedade que é pública. O café que
tem uma esplanada e, portanto, coloca umas cadeiras na rua, está a usar a via pública e para
tal tem que ter um contrato – uma autorização do Município. Alguém que tem um café não
tem o direito a ocupar o passeio envolvente; só tem se, no quadro da lógica da conciliação do
interesse público com o interesse privado, a autoridade municipal disser que não existe
problema e estabelece condições. No quadro dessa realidade é possível realizar a título
individual o bem público.
O argumento de que o bem não é apropriável, é um argumento que vale para a
totalidade do Direito, mas não é isso que está em causa. Não é o ambiente objetivo que dá
origem a um direito subjetivo. Agora a proteção objetiva do meio ambiente permite a
existência de mecanismos de utilização subjetiva desse bem, como aquilo que resulta de uma
licença de exploração de uma fábrica, que está sujeita a limites (limites que agora têm que ver
com as alterações climáticas), da mesma maneira que quem compra uma propriedade privada
que pode estar condicionada no seu uso de restrições de natureza administrativa, que têm que
ver com o modo de utilização daquele terreno.
É, assim, um argumento um pouco estranho que implica confundir o “meu direito”,
que me permite usar, em meu benefício o meio ambiente, que me garante a Constituição, e o
direito objetivo, que existe independentemente de “mim”.
A ideia de que há uma tripartição ou uma repartição de direitos subjetivos e interesses
difusos – direitos de primeira, de segunda ou terceira – é algo que não tem qualquer
justificação, seja teórica: o que está em causa é o modo de atribuição do direito pela norma e
em qualquer dos casos estamos perante um direito. Há uma permissão normativa de
aproveitamento, independentemente de se tratar de um bem público. Há um verdadeiro
direito subjetivo. Não há razões teóricas para isso, também não há razões jurídicas, já que a
ordem jurídica não estabelece regimes jurídicos diferentes e trata todas essas categorias da
mesma maneira e ela está num trauma da infância difícil do Direito Administrativo que
continua a existir nos dias de hoje. A ideia do direito reativo corresponde a uma lógica
unificada, em vez de dizer que há várias espécies de posições jurídicas subjetivas, umas que
são direitos e outras que não, a ideia do direito reativo que foi teorizada pelo Prof. espanhol
chamado García de Enterría, que teve uma grande influência em Portugal e no Direito
Português, que apresenta uma teoria do “Direito reativo” que, segundo ele, seria a teoria
correspondente à orientação alemã. A doutrina alemã não tem nada a ver com esta teoria e
García de Enterría não precisava sequer de ir buscar uma influência alemã, porque a

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construção dele era original e interessante, mas era uma construção que acabava por não
corresponder a nada.
A lógica do direito reativo, é uma lógica unificada e significa o olhar para o poder de
ir a tribunal, para o direito de reagir contenciosamente, e considerar esse o único direito em
causa no Direito Administrativo. Ninguém põe em causa que o direito de ir a juízo seja um
direito subjetivo, agora é um direito com uma função instrumental. Serve para proteger os
outros direitos. Os direitos resultam da ordem jurídica que atribui essas posições de
vantagem, que cria deveres no interesse de outrem, e a lógica do direito reativo é introduzir a
confusão entre as partes 2. Tinha uma vantagem, que era parecer unificado.

(10.11.2021) - AULA 11 de 4ª feira

Afastadas as concepções históricas clássicas do direito subjetivo público e do direito


administrativo e afastadas, quer a ideia do reflexo do direito de Otto Mayer, quer a ideia da
posição do particular, como simplesmente interessado, do Maurice Hauriou, ou a posição de
Halligan e Bonarte, acerca da teoria subjetivista, que também foi defendida pelo professor
Marcello Caetano, bem como a ideia de um direito à legalidade que era de todos e não era de
ninguém, passaremos a analisar as concepções adequadas ao atual modelo de Estado de
direito democrático e Pós-Social em que vivemos hoje.
Vimos a doutrina trinitária e binária, juntámos as duas – o Professor Freitas do
Amaral na trinitária e o Professor Marcelo Rebelo de Sousa na binária – a ideia de que há
direitos diferentes, de primeira, de segunda e de terceira, sendo que os de primeira são
aqueles em que a lei expressamente os designa dessa forma, os segundos quando está em
causa um dever e os de terceira quando é o legislador constituinte a proteger uma posição
pessoal em simultâneo com uma proteção objetiva. Em qualquer dos casos há uma proteção
direta e imediata dos indivíduos e em qualquer dos casos estamos perante direitos com uma
estrutura e conteúdo diferente, mas que correspondem a direitos subjetivos.
Passou-se para a noção de direito reativo e para a sua teoria. A teoria do direito
reativo é uma teoria unitária – e que à partida tem essa mais valia -, tal como os diferentes
domínios do Direito, entende que há só um direito subjetivo, que pode ter várias
modalidades/manifestações (pode ser um direito de natureza pessoal, real, com conteúdo
amplo ou conteúdo estrito). Esta doutrina, uma vez que valoriza, sobretudo, a reação jurídica,

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acaba por se restringir a um conceito mais restrito de direito enquanto direito de reagir, que,
no fundo, se consome no direito de ir a tribunal para ir pedir a tutela de um direito lesado e,
portanto, um direito de agir em juízo.
É uma construção de origem espanhola, construída por Garcia de Enterría, nos anos
60. Este apresenta-a como sendo a noção alemã, mas isso não é verdade, é muito diferente da
construção alemã (apesar de algumas semelhanças). Nos anos 60, a teoria significou um
progresso, porque foi uma tentativa de unificação dos vários direitos subjetivos através de
uma explicação que tinha uma dimensão “nobre”.
O Professor Vasco P. Silva, nos anos 80, no seu primeiro trabalho publicado, aderiu a
esta realidade. Porém, aproximou-se depois da doutrina alemã. O que está em causa é que o
particular, no quadro do Direito Administrativo, está protegido pela lei, que tanto pode
atribuir diretamente um direito, como estabelecer um dever à Administração e, portanto, há
uma proteção da lei, mas essa proteção só se manifesta – e aqui a doutrina diverge - ou no
momento em que surge a lesão, em que a Administração lesa o direito do particular, ou no
momento em que o particular reage por ter sido lesado (a última explicação é a mais seguida,
porque está em causa uma reação).

O professor Rui Medeiros, no modo como constrói esta posição, por exemplo, está
mais próximo da ideia da lesão, porque parte da explicação do direito à indemnização, que é
comum quer Direito Administrativo, quer ao Direito Civil, quer à Teoria Geral do Direito, ou
seja, a ideia de que, quando alguém viola a lei e causa um dano, é no momento da lesão que
surge um direito (à indemnização). Segundo o professor, esta última explicação faz mais
sentido do que a de “direito reativo”, embora também signifique limitar esses direitos a
direitos de natureza absoluta que decorrem da lesão da ordem jurídica e da provocação de um
dano a um particular.

Já o professor Mário Aroso de Almeida, apresenta esta tese de uma perspetiva do


contencioso administrativo, ou seja, diz que há uma pretensão normativa (direito subjetivo)
que significa a possibilidade de afastamento das ilegalidades que atinjam um particular: o
particular tem uma pretensão de natureza negativa, através do qual vai a tribunal para afastar
as lesões que possa ter tido. Nesta perspetiva, o momento decisivo é o momento de agir,
porque é o momento em que o particular constitui o direito na sua esfera jurídica.
A grande vantagem desta teoria é o facto de se tratar de um direito dos indivíduos que
decorre da norma e decorre de uma situação que a cria, que decorre da lesão, na lógica do

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Transcrições das Aulas Teóricas TB; 2021/2022
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professor Rui Medeiros ou decorre da introdução da ação em juízo, segundo o professor


Mário Aroso de Almeida. Assim, esta construção, permite uma construção unitária da figura
de direito subjetivo e permite não desvalorizar a posição do particular em relação à
Administração Pública, porque não existem direitos de primeira, segunda ou terceira – têm
todos o mesmo regime jurídico, como decorre da nossa ordem jurídica.
O problema está, na perspetiva do Professor Vasco Pereira da Silva, na visão redutora
desta teoria. O que aqui se faz é a valorização do direito a reagir, seja a reação contra lesão ou
a reação jurisdicional. Olhando para o que se passa na realidade, concentrar tudo no direito a
reagir, apesar de ter vantagens em termos de construção jurídica, simultaneamente significa
esquecer tudo o que está para trás, porque o direito de reagir, sobretudo o de ir a tribunal, é
um direito subjetivo que resulta de ter havido uma lesão dos direitos substantivos que foram
conferidos pela ordem jurídica.
O que está em causa, verdadeiramente, é um direito que é instrumental de outros
direitos e, portanto, não se coloca em questão que o direito de reagir seja um direito
subjetivo, consagrado no artigo 268.º/4 e 5 da CRP, que consagra um direito de ir a juízo, e
no CPA, quando diz que qualquer titular de um direito goza de um meio processual para o pôr
em ação, está a garantir um direito, o direito de ir a juízo. A questão é que se vai a juízo para
tutelar uma relação jurídica substantiva composta por direitos e deveres que foram violados.
O direito de agir é o direito instrumental dos direitos subjetivos que foram violados.
Outra desvantagem desta teoria é do ponto de vista processual, já que confunde a
relação jurídica processual com a relação jurídica substantiva, porque se o direito se constitui
no momento da lesão, há uma relação processual que decorre de ser ter usado o direito de
ação e essa relação processual é igual à relação substantiva, porque a substituí – introduz uma
distorção.

Ainda tem outra consequência, já que o professor Mário Aroso de Almeida pretende
tirar como consequência deste direito negativo a que a Administração não viole a legalidade o
facto de, num tribunal, o juiz ter de alegar factos para além das partes, o que é algo estranho,
porque o juiz é imparcial e neutro, sendo as partes que levam a juízo os factos que querem
ver julgados. Seria, por isso, inconstitucional, porque a justiça está associada à imparcialidade
e à neutralidade.

Qual é para o Professor Vasco Pereira da Silva a construção mais adequada do direito
subjetivo público no quadro do Direito Administrativo? Na doutrina alemã, desde finais do

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séc. XIX, se fala da “Teoria da Norma de Proteção”, no sentido de haver uma situação
protegida pela norma – e é daí que vem o seu nome - que é uma situação individual e que,
como tal, gera um direito subjetivo do particular.
Esta teoria surgiu com Buehler, que, pela primeira vez, falou da existência de direitos
subjetivos públicos, numa altura em que Otto Mayer negava a existência destes direitos.
Falava-se em 3 condições para a existência de um direito subjetivo: haver uma norma jurídica
vinculativa, quer essa norma se abstivesse ou implicasse uma ação, e, portanto, só havia
direito na medida dessa norma jurídica vinculativa; essa norma deveria estar estabelecida no
interesse do particular, era criada com esse fim de proteger o particular; por fim, a existência
dessas duas condições atribuiria o direito de ir a juízo (o tal direito reativo), que seria algo
que acrescentaria ao que resultava das primeiras duas condições.
A vantagem é que já não se fala apenas do direito a ir a juízo, mas sim numa noção
mais ampla de direitos subjetivos.
À época, tinha um âmbito de aplicação algo limitado. O modelo de Estado ainda era o
modelo liberal, pelo que era discutido quem possuía direitos ou não – na altura dizia-se que
só se aplicava aos cidadãos nacionais e, como tal, os outros não eram titulares de direitos
(apátridas, estrangeiros, refugiados). Também ficavam de fora os direitos de natureza
económica, social e cultural, já que o contexto era o da Administração agressiva e não
prestadora, pelo que a teoria incidia, sobretudo, sobre as omissões administrativas.
Assim, esta construção era muito moderna, porque permitia falar de uma ampla noção
de direitos subjetivos públicos, mas simultaneamente muito arcaica, porque limitava os
direitos pela via dos sujeitos e pela via dos próprios direitos, já que eram colocados de fora os
de natureza económica, social e cultural. Não era, em suma, adequada.
Nos anos 50/60, a teoria foi transformada por influência de Otto Mayer. Em primeiro
lugar, vem dizer que falar em norma vinculativa é um excesso, afirmando que as normas
jurídicas tanto podem ter elementos vinculativos como elementos discricionários e que,
relativamente a todos os aspectos de vinculação, mesmo no quadro dos poderes
discricionários, há um direito.
A distinção entre discricionariedade e vinculação não se coloca entre atos
administrativos, porque os atos têm sempre aspetos vinculativos e aspectos discricionários;
existe sempre a conjugação das duas vertentes quando falamos do Direito Administrativo – o
primeiro a dizê-lo, em Portugal, foi o Professor Freitas do Amaral.
Otto Mayer, diz: se estamos num Estado de Direito e numa democracia, os cidadãos
são sempre protegidos pela norma. A norma constitucional garante aos particulares uma

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posição de vantagem perante a Administração Pública, ao garantir-lhe posições jurídicas que


correspondem a direitos substantivos. Quando a CRP e outras dizem que o particular tem
direitos fundamentais que vinculam a Administração Pública, isso significa dizer que, na
nossa ordem jurídica, todas as normas são feitas no interesse do particular. Aqui, a teoria da
norma de proteção adquire uma maior importância, já que Otto Barros vem dizer que tem de
se considerar que há uma presunção de que qualquer norma jurídica no quadro do Estado
social de direito existe para proteger os cidadãos e não apenas a Administração – protege a
Administração, mas protege também os particulares. Esta é uma dimensão moderna, que
alarga o âmbito da noção dos direitos subjetivos a todas as situações e a todas as pessoas,
cidadãos ou não.
Este autor acrescenta, nos anos 60, que o direito reativo não é um elemento do direito,
mas sim uma consequência da existência do direito subjetivo, pelo que vale são as condições
1 e 2 (os pressupostos da teoria), que alargam a noção de direito subjetivo, e porque há esse
direito subjetivo, o particular pode ir a tribunal tutelar a sua posição jurídica – o direito
reativo é uma consequência e não um elemento integrativo a noção de direito subjetivo. Isto
explica o facto de as Constituições terem consagrado um direito fundamental de acesso à
justiça aos particulares, como consequência do Estado de direito e não condição da existência
de Direito. Em suma, a teoria do direito reativo é reduzida a uma consequência de uma
proteção subjetiva que é atribuída através da norma de proteção.
Se isto já alargou a noção de direito subjetivo público, nos anos 60/70,
Schmidt-Asmann e Bauer introduziram ainda uma atualização. Vieram dizer que esta teoria
estava relacionada com todas as situações do particular com a Administração Pública, pelo
que incluía, de forma direta, tanto as situações da Administração agressiva como situações da
Administração prestadora, e que os direitos dos particulares no âmbito desta última podiam
ser direitos relativos a uma conduta por parte da Administração (acentua a dimensão positiva
do conteúdo de direito).
Adotar esta perspetiva permite, não apenas explicar todos os direitos no quadro do
Direito Administrativo, mas também no quadro do Direito Constitucional, porque a teoria da
norma de proteção aplica-se a todo o Direito Público, porque no quadro do Direito Público
existem aspetos vinculativos de normas jurídicas que criam direitos, que são atribuídos nos
interesses dos particulares e permitem ao particular ir ao tribunal para tutelar essas posições.
Nos dias de hoje, é ainda uma explicação genérica também para o Direito Privado, já que os
privatistas, por outros caminhos, chegaram a uma conclusão idêntica – quando se diz que o
direito subjetivo é uma permissão normativa de aproveitamento de um bem, o que se está a

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dizer é que é algo protegido por uma norma que atribui a permissão de aproveitamento do
bem. Esta perspetiva resolve os traumas de infância, ou seja, todos os direitos subjetivos são
da mesma categoria, aplicados a todos.
A última discussão acerca da teoria da norma de proteção, com relevo para esta ideia
introduzida nos anos 60/70, relacionada com o direito à atuação da Administração (por
exemplo o direito à atuação da polícia), é o facto de esta ideia se estender ao Direito
Constitucional, em que ainda se tende a olhar para o direito subjetivo com a sua dimensão
meramente negativa. Esta é, segundo o Professor Vasco P. da Silva, a quarta fase da teoria da
norma de proteção, que deve ser alargada ao Direito Constitucional. Esta explicação de
ordem conceptual é válida para toda a ordem jurídica – a noção “direito subjetivo não tem
apelido”, significa que os direitos são todos iguais, não é público ou privado, pelo que
implica sempre uma tutela do particular perante os poderes públicos que resulta da
Constituição e das leis, e que origina direitos subjetivos na esfera dos indivíduos e que caem
no âmbito de aplicação dessas normas, como acontece no quadro dos diferentes domínios da
ordem jurídica.
A única coisa que podia distinguir figuras diferentes, admitindo que estas fossem
distinguíveis, seria o modo como a ordem jurídica atribui esses direitos. Mas esse modo é
sempre idêntico: tanto existe um direito perante uma norma que imediatamente outorga algo
a um particular, como uma norma que atribui um dever de atuar à Administração, que
corresponde a um direito subjetivo do particular. Assim, não faz sentido distinguir direito
subjetivo de interesse legalmente protegido ou ainda falar de interesses difusos, que são
direitos de terceiro.
De forma a melhor entendermos as consequências disto, adotamos o exemplo que é
dado pelo Professor Freitas do Amaral, para concluir que esta posição não é a correta e que
deve ser adotada outra. Dá o exemplo de distinção entre direito subjetivo e interesse
protegido: o direito à reforma de um funcionário público, é um direito subjetivo, porque a lei
diz que X pessoa tem direito à reforma ao fim de uma quantidade de anos de serviço. Por
outro lado, o exemplo de interesse legítimo é o de um concurso público para o lugar de
professor catedrático numa faculdade, em que havia 4 candidatos – o Professor diz que os
candidatos, desde que se apresentam a concurso, estão submetidos a um tratamento de acordo
com normas jurídicas objetivas, ou seja, são normas que protegem o particular, mas apenas
indiretamente; depois, relativamente ao que ganha ao concurso, tem o direito a ser provido do
cargo, que é um direito mais amplo.

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Segundo o professor Vasco Pereira da Silva, o que está errado aqui é que todas as
normas protegem os particulares – que protegem tanto a Administração como os particulares
- e, na medida em que atribuem deveres, também atribuem direitos aos particulares (o
particular que participe no concurso tem direito a participar, a ser tratado em condições de
igualdade, em condições proporcionais, direito à verificação da sua capacidade e, se ganhar, o
direito de ter o cargo). Não há apenas um direito máximo, que corresponde à integralidade da
posição do particular, mas há um conjunto de direitos que vão desde o momento em que
entrega os papéis até ao momento em que toma posse – isto é importante, porque dá direito
de reação aos particulares, no caso da não observância desses direitos.
A propósito de qualquer norma que regula a relação jurídica entre administração e particular,
o particular tem direitos, que correspondem aos aspectos vinculados dessa atuação, e não tem
apenas um direito final. O direito ao cargo, utilizado no exemplo, é a consequência de ter
havido, no quadro daquela relação jurídica, o respeito por todos os direitos dos diferentes
candidatos.
A noção de direitos subjetivos públicos implica um alargamento formidável da noção
de direito no quadro de uma lógica da proteção de particulares, porque qualquer norma
administrativa, no quadro de uma relação jurídica, protege simultaneamente a Administração
Pública e o particular.

(15.11.2021) - AULA 12 de 2ª feira

Os direitos subjetivos públicos, de acordo com a teoria da norma de proteção, no


direito administrativo, tal como direito privado, são reconduzidos a diversos tipos, diversas
categorias.

Estas categorias podem ir desde direitos à conduta de outrem, a direitos de natureza real,
podem ser direitos obrigacionais ou direitos potestativos, podem ser direitos com conteúdo
amplo ou conteúdo restrito.
Estes direitos, se têm esta realidade comum, é em razão do modo como a ordem
jurídica os regula, e também do facto de não haver na ordem jurídica portuguesa diferenças
de regime jurídico entre figuras diferentes, entre direitos de primeira, segunda ou terceira, ou
direitos de primeira e direitos de segunda. Na nossa ordem jurídica todos os direitos são

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tratados por igual e tanto assim é que o legislador fala, quando usa a noção ampla de direito
subjetivo público, em direito de interesse legalmente protegido.
A expressão “interesse legalmente protegido” corresponde à dimensão que é o direito,
e, portanto, recordando o exemplo de direitos no quadro de uma relação jurídica, a relação
jurídica que se estabelece entre os candidatos a concurso para professor catedrático e os
órgãos administrativos, vemos que estes direitos podem ter conteúdos muito diretos.
Além do direito de quem ganha o concurso de ocupar o cargo, o único que
tradicionalmente é considerado como direito subjetivo, (o Professor Freitas do Amaral só
admite esse direito no quadro da lógica comunitária, dizendo que o que há antes disso são
direitos de segunda, os interesses legalmente protegidos), de acordo com a lógica da norma
de proteção em todas essas situações em que há um dever de uma entidade pública são
consideradas como direitos, quer esse dever tenha sido criado pela lei ou por uma norma
jurídica qualquer.
Esta realidade normativa que acontece no quadro do direito público cria verdadeiros
direitos que correspondem aos deveres da administração, deveres esses que tem como
correlato a posição substantiva. Portanto, é preciso mostrar que esta noção ampla de direito
subjetivo público, por um lado é uma noção similar de direitos subjetivo privado, mas é esta
noção que permite que as relações jurídicas sejam o centro da nossa ordem jurídica.

Relações Jurídicas

Se tivermos em conta a Constituição, veremos diferentes referências à ideia da relação


jurídica, desde logo porque a própria organização do poder político se baseia na vontade das
pessoas e na dignidade da pessoa humana, mas também porque há direitos fundamentais e
estes vinculam diretamente a Administração Pública.
Vinculam entidades públicas e privadas, e, portanto, estabelecem uma relação de
paridade entre o particular e a administração, e depois porque quando se fala dos princípios
de atuação administrativa, se estabelece o princípio da prossecução do interesse público no
respeito pelos particulares, porque se fala em relações jurídicas administrativas a propósito do
contencioso, nos artigos 211º nº3, 268º nº4 e nº 5, ou seja, são numerosos os exemplos de
relações jurídicas.
Contudo o mesmo acontece se olharmos para o Código de Procedimento
Administrativo, porque logo no início estabelece o âmbito de aplicação deste, no artigo 2º,
em razão das relações administrativas, e, portanto, há um conjunto de normas que regulam o

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Transcrições das Aulas Teóricas TB; 2021/2022
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relacionamento entre os particulares e a administração. Há uma relação jurídica


procedimental que aparece regulada na Constituição, e se tivermos em conta o Código de
Processo vemos que no contencioso administrativo há duas partes e essas partes têm deveres
e poderes idênticos, atuam fornecendo aos juízes os factos e as qualificações jurídicas dos
factos de modo a que o juiz possa decidir, desde de 2004 que existe uma lógica de partes em
que os particulares e a administração estão em posições equiparadas.
É esta a grande transformação do direito administrativo, em momento anterior era um
direito da administração autoritário, da administração toda poderosa que definia as posições
jurídicas dos particulares, de forma unilateral e autoritária, agora existe o direito das relações
jurídicas o direito em que há poderes e deveres diferentes de cada um dos lados da relação
jurídica, essa vai mudando e vai conduzindo a posições diferenciadas, mas estamos perante
uma posição de igual dignidade entre os particulares e a administração.
A dignidade não é afetada pela prossecução do interesse público, porque essa
prossecução existe e tem de existir sempre, a administração não pode nunca deixar de
prosseguir o interesse público. O interesse público deve ser realizado com o respeito pelos
direitos dos particulares, não há, na lógica constitucional a ideia da oposição entre direitos do
particular e prossecução do interesse público, as duas coisas devem estar correlacionadas e
em qualquer atuação administrativa estes diferentes vetores tem de ser tidos em conta. Esta
lógica faz com que haja diferentes relações jurídicas, vamos distinguir três modalidades.
Em primeiro lugar as relações jurídicas substantivas, aquelas que decorrem do
ordenamento jurídico, ou seja, da norma jurídica resulta posições de vantagem atribuídas aos
cidadãos que se colocam no âmbito de aplicação da norma, sejam particulares, sejam
entidades administrativas a realidade é a mesma. E, portanto, há um conjunto de regras que
regulam as posições de cada uma das partes no quadro da evolução das relações jurídicas.
De seguida temos também relações jurídicas procedimentais, essa é nova dimensão do
direito administrativo também nascida só a partir dos 60 do Século XX. A ideia de que as
decisões administrativas são resultado de um procedimentos, são reguladas não apenas, para,
materialmente serem as mais corretas na lógica jurídica substantiva, mas também, para que o
modo de chegar a essas decisões sejam o mais correto, não basta apenas que a decisão seja a
mais correta é preciso que o mecanismo de tomada de decisões seja o mais adequado.
Os primeiros a chamar à atenção para este facto foram os autores italianos dos anos
60, dizendo que o procedimento é uma modalidade de organização da administração. A
administração organiza-se para estabelecer relações com os particulares, para formar a sua

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vontade num quadro relacional e para tomar decisões que sejam as mais corretas, e isto
porque o modo de chegar a essas decisões é o mais correto.
Alguns autores americanos falam também no decision making process, a ideia de que
não há apenas a decisão em si, a decisão tem um conteúdo material, que é o direito
substantivo que obriga as decisões a ser justas ponderadas equitativas, para chegar a essas
decisões é preciso que as regras procedimentais sejam adequadas a administração. A título de
exemplo, a Administração, antes de decidir se concede ou não uma autorização de construção
tem que averiguar vários aspetos, como, o terreno em questão, os planos para essa
construção, analisando se esses são ou não adequados e se são compatíveis com as regras de
planeamento municipal. Tal implica que a administração tenha de fazer uma
investigação/instrução do procedimento tem que ver o que está em causa.
A administração realiza vistorias, de forma a perceber se as regras e os planos
apresentados num plano inicial forma ou não respeitado, tudo isto corresponde a uma decisão
administrativa, tem que haver um procedimento em que é preciso também ouvir as pessoas,
uma das regras essenciais do procedimento administrativo é a regra de audiência prévia.
Antes de a decisão ser tomada é preciso os particulares, que são por ela afetados,
apresentarem a sua opinião para que possam defender os seus direitos. De uma forma
preventiva, surge a ideia de que há um princípio da audiência prévia que é uma regra
fundamental do procedimento administrativo, um direito fundamental dos particulares.
Da mesma forma como depois de decidir, a Administração tem de justificar as razões
dos seus atos, tem de fundamentar as suas decisões. Existe um dever de fundamentar, que
corresponde a um direito à fundamentação das decisões da Administração, tendo esta que
explicar os argumentos de facto e direito que a levaram a encontrar aquela decisão, não basta
que a decisão em si seja boa ou má, é preciso que o modo de atingir essa decisão também seja
o mais correto, esta é a relação jurídica procedimental.
A relação que se estabelece desde o momento que o particular pede à Administração
alguma coisa é a relação procedimental (exemplos: construir uma casa; receber uma bolsa de
estudos; instalar uma fábrica), o procedimento tanto se inicia a pedido dos particulares como
por vontade da Administração que decide no quadro da satisfação das necessidades públicas
tomar uma decisão e abrir um procedimento, este é uma realidade essencial.
As decisões não vem de uma realidade material, são construídas no procedimento. As
relações jurídicas procedimentais são uma realidade do dia a dia. O governo faz um concurso
público para obter pareceres acerca da melhor forma de resolver aquele problema e depois vai

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tomar a decisão com base nos argumentos dos pareceres apresentados, este procedimento é
tão ou mais importante que a decisão.
Desde que nos anos 60, os autores italianos chamaram à atenção para o procedimento,
dizendo que ele era a forma da função administrativa, cada função tem um procedimento
adequado à sua tarefa, assim, a função legislativa tem regras diferentes da função
administrativa e da função judicial.
Entre os anos 80 e os nossos dias, a Teoria do procedimento teve alguma evolução, no
sentido de que, hoje em dia as Constituições consagram esses direitos de natureza
procedimental, existem por isso novos direitos fundamentais que dão origem a uma nova
figura, o status activus processualis. O cidadão tem uma posição ativa de intervir na tomada
de decisões administrativas e isto traduz-se em poderes e deveres no quadro de uma relação
jurídica que não é apenas a que resulta da realidade material, é a que resulta no modo da
tomada de decisão mais adequada para aquele caso concreto.
Se considerarmos a Constituição Portuguesa veremos muitos destes direitos
fundamentais de natureza processual, logo, primeiramente encontramos o direito de acesso à
justiça no artigo 268º da Constituição.

A Constituição impõe a existência de um Código de Procedimento Administrativo,


que era essencial num estado de direito, numa democracia, não apenas para que as decisões
fossem boas do ponto de vista substantivo, material, mas que também fossem igualmente
boas, do ponto de vista procedimental.
O procedimento é uma realidade absolutamente essencial, não só para que as decisões
possam ser melhores, mas para que sejam mais participadas. Esta participação também é um
elemento essencial de qualquer democracia, e em Portugal existe, como a maior parte dos
países civilizados, um Código de Procedimento que regula todo o item da formação da
vontade da administração, desde que a administração decide atuar, por sua iniciativa ou a
pedido de um particular, até à decisão final.
Existe uma sequência, um conjunto de momentos que tem sempre de suceder, assim,
iniciando-se o processo com a abertura, seguidamente deve haver uma instrução, depois um
procedimento e por fim a decisão - esta é uma realidade que se relaciona com a lógica do
funcionamento da Administração. Assim, se o particular não fica satisfeito ou se há outros
particulares que têm outros interesses diferentes daquele particular que viu o seu interesses
satisfeitos e se há alguma invalidade, é possível ir a tribunal para tutelar os respetivos
direitos, esta é a terceira forma de relação jurídica, a relação jurídica processual.

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Existindo a relação jurídica substantiva, procedimental e processual, se há um


equívoco, se há um conflito de direitos, se há posições que são satisfeitas e há outras que são
insatisfeitas, os tribunais vão olhar para a lei e ver quem tem razão e decidir qual a melhor
decisão para aquele caso concreto.
Nesta relação jurídica processual também há uma posição de igualdade entre todos os
particulares e Administração. - Todos intervém nos mesmos momentos do procedimento, nas
mesmas fases com os mesmo poderes, com os mesmo deveres, ou seja, a uma lógica também
processual que resulta das normas constitucionais (artigos 212º nº3, 268º nº4 e 5º), mas
resulta também do Código de Processo dos Tribunais Administrativos, que regula todos os
meios processuais, todos os poderes do juiz, tudo aquilo que as partes podem pedir, todos os
conteúdos que as sentenças podem ter, ou seja a relação do processo é a terceira modalidade
de relação jurídica que existe nos nossos dias.
A teoria do procedimento desenvolveu-se muito desde os anos 80 até aos nossos dias.
As Constituições passaram a consagrar direitos de natureza procedimental, dando origem a
novos direitos fundamentais, detendo o cidadão uma posição ativa de intervir na tomada de
decisões administrativas, o que se traduz em poderes e deveres no quadro de uma relação
jurídica que resulta do modo de tomada de decisão mais adequado para aquele caso concreto.
Na Constituição Portuguesa existem muitos direitos fundamentais de natureza processual:
artigo 268º - direito ao acesso à justiça, artigo 267º - o direito à fundamentação das decisões
administrativas – o que simboliza a imposição da Constituição Portuguesa para a existência
de um Código de Procedimento Administrativo.
Um Código de Procedimento Administrativo é essencial no Estado de Direito, numa
democracia, não apenas para que as decisões fossem boas do ponto de vista substantivo, do
ponto de vista material, mas que elas também fossem boas do ponto de vista procedimental.
Este procedimento existe a todos os níveis, por exemplo, as autarquias de Lisboa (à
semelhança do que está a acontecer noutros países, como na Alemanha), seguem um
mecanismo a nível do seu orçamento anual de perguntar aos munícipes o que é que eles
gostariam que fosse feito na sua freguesia ou município.
Assim, o procedimento é essencial não só para que as decisões possam ser as
melhores, mas também para que as mesmas sejam alvo de participação, algo essencial numa
democracia.
Desta forma, o Código Processual Administrativo regula todo o intérprete da
formação da vontade na Administração, desde que ela decide atuar, por sua iniciativa ou a
pedido de um particular, até à decisão final - há uma sequência na lógica de funcionamento

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da administração. Caso o particular não fique satisfeito ou caso existam particulares que têm
interesses diferentes ao do particular que viu o seu interesse satisfeito, em situação de
ilegalidade é sempre possível recorrer a tribunal para tutelar os direitos respectivos. Por
exemplo, alguém que concorreu a um concurso e achou que deveria ter sido classificado
perante a existência de uma ilegalidade que o afastou do concurso – o particular pode, assim,
recorrer a um tribunal para pôr em causa essa atuação administrativa para ela ser afastada e
para a administração tomar uma outra decisão.
Daqui surge uma terceira forma de relação jurídica – a relação jurídica processual.
Uma situação de igualdade entre todos (particulares e administração), na medida que todos
intervêm nos mesmos momentos do procedimento, nas mesmas fases com os mesmos
poderes e deveres. Surge nas situações em que há conflitos de direitos, de posições que não
são satisfeitas e de litígios, cabendo aos tribunais olhar para a lei e ver quem tem razão e
decidir qual a melhor solução para o caso concreto.
Esta lógica processual também resulta das normas constitucionais – artigo 203º nº4 e
ss, e artigo 221º nº3. Simultaneamente, no CPA temos os Tribunais Administrativos, onde são
regulados os meios processuais, os poderes do juiz, tudo aquilo que as partes podem pedir e
todos os conteúdos que as sentenças podem ter.
Contudo, é de notar, que isto é uma transformação recente, não só em Portugal como
em outros países tendo em conta a superação da lógica autoritária da administração do Estado
liberal e a sua substituição pela Administração prestadora do Estado Social e a infraestrutural
do Estado pós-social, através das transformações que as modernas sociedades foram
introduzindo e que obrigam a considerar todas as realidades no quadro do Direito
Administrativo.
Uma outra realidade mais recente é a superação de olhar para as relações jurídicas,
tendo em conta um mecanismo de Direito Privado, como sendo relações bilaterais – a
administração de um lado e o particular do outro. Hoje em dia descobriu-se que a maior parte
das relações jurídicas são multilaterais, tem uma multiplicidade de sujeitos num lado e noutro
a relação jurídica.
Por exemplo, se a Administração quer construir um aeroporto no local X, haverá
aqueles que acham que aquele local é mau porque põe em causa regras de planeamento,
espécies, entre outros; mas por outro lado, haverá outras pessoas que consideram que aquele é
o sítio ideal porque vai desenvolver uma comunidade, a indústria ou o comércio, ou qualquer
outra coisa que exista naquela zona. Portanto há interesses contraditórios, e no quadro destes

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interesses contraditórios, há vários lados da relação jurídica – logo, as relações jurídicas são
multilaterais, afetam uma multiplicidade de pessoas.
Um dos novos ramos do Direito Administrativo nasceu assim, sendo um excelente
exemplo disso o Direito do Ambiente. O Direito do Ambiente é uma realidade que tem uma
dimensão administrativa muito importante e que foi cultivada pelo direito administrativo.
O Direito do Ambiente nasceu na Alemanha com o caso do pescador de chalupa. De
uma forma muito resumida, havia um pescador que tinha o costume de pescar num rio na
Alemanha, mas que um dia se deparou com os peixes todos mortos devido aos despejos de
resíduos tóxicos de uma fábrica para o rio. O pescador decidiu ir a tribunal afirmando que
aquela fábrica estava a funcionar ilegalmente e que estava, também, a pôr em causa o seu
direito ao trabalho, o seu direito a ter uma relação equilibrada com o meio ambiente e a
qualidade de vida dele, bem como de todos os pescadores daquele rio. A primeira coisa que o
tribunal decidiu fazer foi perguntar o porquê de o pescador impugnar isto em tribunal. Isto
porque ele não era um dos sujeitos da relação jurídica bilateral, a mesma somente
correspondia à autorização dada ao dono da fábrica pela autoridade do Estado no norte da
Alemanha.
Desta forma, a primeira coisa que o tribunal fez de inovador foi reconhecer
legitimidade ao pescador e, para além disso, reconheceu o direito do ambiente decorrente do
seu direito ao livre desenvolvimento da personalidade, considerando o direito ao ambiente
como sendo também um direito fundamental que tem que ser compatibilizado com todos os
outros direitos.
Assim, ficamos perante uma lógica de compatibilização de interesses antagônicos,
porque por um lado tínhamos o direito do pescador ao ambiente e à sua qualidade de vida, e
do outro tínhamos o direito de propriedade do dono da fábrica e o direito ao trabalho dos
trabalhadores da mesma. Nestes termos, a solução não é acabar com a fábrica, mas obrigá-la
a produzir de forma mais ecológica, o que resulta num mecanismo que permite a
consolidação do direito de propriedade, do direito de iniciativa económica, o direito dos
trabalhadores com o direito dos habitantes daquela zona e que exercem as suas atividades
econômicas naquele local.
Portanto esta relação jurídica, é uma relação jurídica multilateral que tem uma
multiplicidade de sujeitos e são todos eles antagônicos – por isso é que são precisos estes
mecanismos administrativos para permitirem a tomada de decisões corretas, justas e que
resolvam a situação de todos da forma mais equilibrada possível.

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No quadro do Direito Administrativo é, então, necessário enquadrar esta dimensão


multilateral nos seus diferentes níveis. No nível substantivo, há direitos de pessoas em
posições diferentes, que são protegidas no quadro daquela mesma atuação e, de um ponto de
vista procedimental, todas estas entidades têm que se pronunciar no procedimento para
tomarem a decisão mais adequada, mesmo em caso de litígio, conflito de interesses e direitos,
quanto à solução tomada no processo. Estamos perante dois pólos: de um lado estão os
particulares e do outro lado está a administração pública, a entidade que exerce a função
administrativa.
Numa primeira abordagem e segundo a trilogia clássica, que vem do direito francês,
podemos falar na administração como sendo composta por pessoas coletivas, órgãos e
serviços. As pessoas coletivas são as entidades criadas pelo direito, com natureza pública que
atuam no quadro do exercício da função administrativa (Governo, Ministros, Autarquias
Locais, Institutos Públicos, entre outros), mas estas não tomam as decisões sozinhas,
necessitando das pessoas que nelas trabalham para assumirem o “chapéu” – expressão
norte-americana (“chapéu da pessoa coletiva”), ou seja, exercem as competências que a lei
atribui aos órgãos da pessoa coletiva.
Daí surgir o Órgão, o conjunto de poderes jurídicos que atuando por essa pessoa cria
uma vontade que é imputável à pessoa coletiva. Ou seja, os órgãos tomam as decisões em
nome das pessoas coletivas. Há, assim, uma lógica da ligação das competências do fecho de
poderes funcionais que permitem a tomada de decisões públicas com as pessoas que exercem
essas funções e que tomam as decisões que são imputáveis às pessoas coletivas.
Em termos da teoria geral do direito, poderíamos dizer que as pessoas coletivas têm
personalidade jurídica e que os órgãos têm capacidade – são os que atuam no quadro da
pessoa coletiva e é a ele que se pode imputar uma vontade que é atribuível à pessoa colectiva
em causa.
Por fim, os serviços são o conjunto de meios que estão ao serviço dos órgãos e que
ajudam os órgãos a tomar decisões, preparando-as e executando-as.

As atribuições, por sua vez, são as finalidades que devem ser prosseguidas, são as
tarefas que cabem aos órgãos do poder administrativo. Já as competências são os poderes
funcionais, poderes que permitem a tomada de decisões - são as realidades que permitem que
os órgãos manifestem a sua vontade imputável à pessoa coletiva.
Esta é a lógica tradicional e que é fácil de perceber, contudo a realidade complicou-se,
e as pessoas coletivas que eram essencialmente públicas, agora são privadas. Desempenham a

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função administrativa, usam o dinheiro administrativo, estão sujeitas às regras do direito


administrativo, mas organizam-se segundo o direito privado - todas as empresas públicas
neste momento tem uma estrutura jurídico-privada, mas, no entanto, são públicas e exercem a
função administrativa.
Para além disso há também formas de exercício privado nas funções administrativas,
ou porque se negoceia com os particulares chamando-os a desempenhar determinadas tarefas,
como por exemplo, as autoestradas – são construídas por particulares que ganham um
concurso permitindo a construção da autoestrada e a sua gestão futura. O mesmo acontece em
relação às concessões dos hospitais, que consiste num contrato através do qual um particular
vai desempenhar uma tarefa em nome da administração pública, sendo a tarefa regulada pelo
direito administrativo, mesmo sendo um particular detentor de uma empresa e que é
concessionária de um serviço público.
Portanto, há uma realidade que foi alvo de transformações, passando a administração
atual a misturar entidades públicas e privadas, o que tornou o conceito de pessoa coletiva
pública, nas palavras de Sabino Cassese, um conceito meramente funcional. De resto, as
pessoas coletivas também vieram a perder importância face aos órgãos, o que tendo em conta
a doutrina alemã, as pessoas coletivas são figuras artísticas, e o que interessa é a capacidade
exercida pelos órgãos.
Também a nível das atribuições e competências houve transformações, porque antes
era fácil distinguir que as atribuições eram das pessoas coletivas e que as competências eram
dos órgãos. Contudo, pensando na realidade atual, no Governo, são os Ministros que têm
funções, atribuições respetivas para a prossecução de uma dada finalidade – uma atribuição
para prosseguir as finanças, a defesa, etc; isto tendo em conta a organização do Governo, que
é matéria da sua competência. Portanto as atribuições também passaram a ser dos órgãos,
porque cada Ministro é um órgão do Governo e o Governo é um órgão do Estado.
Por outro lado, também surgiram órgãos sem qualquer pessoa coletiva – as entidades
reguladoras, as entidades independentes – são órgãos independentes que não estão ligados a
nenhuma pessoa coletiva e que exercem a função administrativa.
É, então, necessário ressaltar que aquelas três realidades ajudam a perceber (pessoas
coletivas, órgãos e serviços) mas a realidade complexificou-se de tal maneira que elas não são
suficientes e, portanto, precisamos de ter em conta o seu domínio.

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(17.11.2021) - AULA 13 de 4ª feira:

No que toca à Administração Pública portuguesa, importa distinguir 3 elementos


fundamentais: as pessoas coletivas, o órgão administrativo competente e o conselho de
serviço.

Em primeiro lugar,a pessoa coletiva é a entidade que está em jogo. A priori, no


contencioso administrativo, essas entidades eram todas públicas, criadas por lei e gozavam,
quando a lei assim estabelecia, de poderes públicos não apenas de decisão, mas também de
execução de autotutela das suas decisões. Tal que o conceito de Administração correspondia a
um poder genérico, mas hoje tem um poder menor porque só existe nos termos em que a lei
expressamente estabelece que tal pode acontecer.
Facto é que, às pessoas coletivas, são imputadas as decisões dos seus órgãos. Nota-se
que este conceito foi usado durante muito tempo como fundamental mas, no quadro do
direito público administrativo, perde a devida relevância, tendo importância menor,
contrariamente ao que acontece no Direito Privado. Ora, enquanto no Direito Privado os
sujeitos agem horizontalmente, uns em relação aos outros, no direito administrativo as regras
assentam num princípio de legalidade e de competência; tudo o que se passa no seio das
pessoas coletivas está regulado por lei e é juridicamente relevante.
Veja-se a diferença: se em uma sociedade ou associação, as regras são internas e se
age como uma pessoa coletiva que cultiva relações exteriores com outras pessoas coletivas, já
no seio da administração pública os órgãos têm uma relação com outros órgãos regulada por
lei. São assim, simultaneamente, elementos internos com dimensão externa, uma vez que
resultam do fecho de competências de cada um dos órgãos.
Por outro lado, havia aquilo que, num determinado momento, se designava relações
especiais de poder: similar ao direito privado, não havia legalidade nem tampouco direitos
fundamentais. A título exemplificativo, suscitam as relações entre superiores hierárquicos e
subalternos, como médicos e doentes, professores e alunos e assim por diante. Mas a
interpretação dessa dimensão inicial, conforme afirma Otto Mayer ( século XIX), não fazia
qualquer sentido, pois no seio das pessoas coletivas há relações jurídicas. Portanto, as
relações não são apenas entre as pessoas, mas sobretudo entre os órgãos.
Os órgãos são fechos de poder que permitem atuação ao designar um indivíduo ao
exercício daquele órgão. De acordo com o modelo anglo saxónico, seria o colocar do chapéu
da pessoa coletiva, atuando um determinado sujeito como órgão da pessoa coletiva. Assim,

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de certa forma, os órgãos tomam decisões que são imputadas à pessoa coletiva e essas
decisões não obrigam esta, mas outros órgãos da mesma ou de outras pessoas coletivas
porque há relações intra-orgânicas (da mesma pessoa coletiva) e interorgânicas (de pessoas
coletivas distintas). Assim, ao interpretar a atuação das pessoas colectivas, no nosso
entendimento, há uma certa tendência de considerar que os órgãos são os verdadeiros sujeitos
das relações jurídicas administrativas, não as pessoas.

No quadro da lógica alemã, costuma-se afirmar que a noção de Pessoa Coletiva não é
jurídica, mas artística. Tal ideia traduz-se no facto de que o que verdadeiramente faz mover as
relações jurídicas públicas é a capacidade dos órgãos, não a personalidade da pessoa coletiva;
é a possibilidade que os órgãos têm e seus poderes para tomar decisões e não a personalidade
jurídica da pessoa coletiva em si.
Ao lado dos órgãos, há serviços que são entidades organizadas, as quais preparam e
executam as decisões dos órgãos. Com o intuito de aproximar da realidade, utilizemos como
exemplo a Divisão Académica, que é um serviço da Faculdade de Direito da Universidade de
Lisboa. A priori, há órgãos que tomam decisões e atuam em nome da faculdade27, a quem são
imputadas as atuações dos órgãos. Por sua vez, a faculdade integra-se numa universidade que,
no caso do direito, também é uma pessoa coletiva28. Normalmente, nas outras instituições
universitárias, ou as faculdades são órgãos e não há uma instituição também como órgão de
natureza superior, ou então as faculdades não têm personalidade coletiva e integram-se na
universidade, entidade superior. Na época em que elaborou os estatutos quer da reitoria, quer
da Faculdade de Direito, o Professor Marcelo Caetano entendeu que podia haver duas pessoas
coletivas: uma maior e outra menor, e ambas integravam o quadro da mesma lógica.
Entretanto, não é uma questão que cause frisson, porque, mais importante que as pessoas
coletivas, são os órgãos.
Contrariamente aos alemães, que relativizam29, os italianos entendem não fazer
sentido manter a distinção entre pessoas coletivas e órgãos e pretendem acabar com ela.
Nessa lógica, o que releva é quem atua, mas quem atua deve ter o nome de serviços; os
servizzi, como entidades orgânicas que tomam decisões no quadro da Administração Pública.
À partida, a construção de Massimo Severo Giannini, na década de 70, é boa, mas acarreta
um problema: intensifica a confusão ao chamar serviços aos órgãos. Isto porque, de alguma
27
Tais quais os conselhos científicos, o presidente do conselho, a diretora e o conselho pedagógico
que atuam em nome da faculdade.
28
Lógica advinda do professor Marcelo Caetano.
29
A que parece ser a solução mais adequada.

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maneira, reduz estas três dimensões em apenas uma e, portanto, introduz um elemento de
alguma perturbação.
Tais conceitos foram alterados, e hoje encontram-se relativizados, pois, em relação às
pessoas, não temos apenas pessoas coletivas públicas, mas também privadas; fenómeno que
se relaciona com a privatização da administração que pode corresponder à criação de órgãos e
entidades administrativas criadas e reguladas segundo o direito privado. São exemplos:

a) Empresas Públicas: entidades que integram a administração pública, as quais podem


inclusive não ser de capitais exclusiva ou maioritariamente públicos;
b) Parcerias público-privadas: mecanismo de cooperação entre entidades privadas e
públicas;
c) Transferências de atividades: não obstante terem regulação pública, encaixam-se no
setor privado.

Daqui se retira um conjunto de transformações, maiores ou menores, em que há


privatização. Transformações essas que, tanto podem continuar a suceder no seio da
administração com entidades de natureza pública, capitais exclusivamente públicos e gestão
pública, como podem significar a transferência do exercício de determinadas atividades para
um privado, que levam a que o estado ainda controle a entidade através das entidades
reguladoras.

Privatização: porque deve ser assim?

Porque os particulares fazem contratos com o Estado e, alguns desses, significam a


transferência para um particular do dever de realizar uma obra ou prestar um serviço público:
sem deixar de ser privado, exerce uma função pública, que é administrativa. Dessa maneira,
integra-se na administração pública e pratica actos administrativos que são da competência
dos tribunais administrativos. Há ainda os casos30 em que se realiza uma obra como nos
concessionários das auto-estradas, as quais alguém se obriga, por via de um contrato, a
construí-las e, em seguida, as explora por via da concessão daquele serviço público.
Em suma, é possível haver sujeitos privados que integram a administração e praticam
atos administrativos. Tal é evidenciado pelo artigo 51° do Código do Processo

30
Normalmente, nesses casos há um risco de empreitada em conjunto com a concessão, mas pode
haver a concessão de um serviço público a privados, como o que acontece nos hospitais

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Administrativo, com a referência a actos administrativos impugnáveis, no qual o legislador


disserta acerca dos sujeitos destes atos adotando, precisamente, a noção ampla que
corresponde à realidade atual: estão em causa os atos de entidades públicas, tanto proferidos
por autoridades não integradas na administração pública, quanto por entidades privadas que
atuem no exercício do poder jurídico-administrativo.
Temos uma realidade que se acentuou com a União Europeia e que resultou da
aproximação dos sistemas francês e anglo-saxônico: as entidades privadas que exercem a
função administrativa são típicas do sistema anglo saxónico, que não conhecem a noção de
pessoa coletiva pública – há pessoas coletivas e ponto final. Portanto, esta lógica dos
particulares colaborarem com a administração pública no exercício da função administrativa
resulta da miscigenação entre o sistema francês e o anglo-saxônico; realidades que antes eram
simples, tornam-se muito complexas.

Quanto aos modos de organização da administração

A administração pública está regulada, em relação aos seus aspetos fundamentais, na


CRP, e esta tem regras relativamente ao governo. Curiosamente, o órgão do Governo
apresenta uma realidade tão ampla, que não se sabe exatamente quais as suas funções e
competências; inclusive pela competência delegada que pode ter. Sendo esta uma realidade
complexa, é possível dizer que a natureza esquizofrênica do governo, órgão político e
legislativo e órgão da função administrativa, está regulada de forma a conseguir uma
separação entre as duas competências. Não é possível convergirem estas duas realidades e a
prova é que o próprio legislador constituinte, ao falar dos actos do governo controláveis pelo
Tribunal Administrativo à luz do artigo 268°/4 CRP, fala nos atos materiais,
independentemente da sua forma.

Se um ato administrativo estiver contido em um regulamento ou mesmo em uma lei, o


que poderia pôr em causa a separação destas funções, a CRP elucida que este ato contínuo é
ainda um ato administrativo controlável pelo tribunal administrativo e pode ser anulado por
ele; enquanto que as leis são fiscalizadas pelo tribunal constitucional que as pode afastar.
Apesar da esquizofrenia, espécie de pecado original, o legislador separou estas duas
competências inconfundíveis, passando elas a ter um duplo controlo: do Tribunal
Administrativo, porque materialmente são atos administrativos, e do Tribunal Constitucional
sobre as leis.

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Onde se encontra a competência do governo?

● Competência política: artigo 197° CRP;


● Competência legislativa: artigo 198° CRP;
● Competência administrativa: artigo 199° CRP.

O Governo é o principal órgão do Estado-Administração, conceito defendido pelo


Professor Freitas do Amaral e pelo Professor Jorge Miranda. Este órgão tem uma função
superior no quadro administrativo, o que não significa que ele possa dar ordens a todas as
entidades, depende do tipo de administração na qual a entidade se insere.
De forma contrária ao que acontecia antigamente, hoje o processo de se atribuir
poderes é mais criterioso. Há diferentes órgãos detentores de poder, que concentram um ou
vários poderes de decisão, o que implica haver vários poderes decisórios no quadro da pessoa
coletiva. A complexidade da administração também levou à formação de várias pessoas
coletivas, o que resultou num processo de descentralização.

O que é a descentralização?

Partimos do princípio que o binômio centralização/descentralização pode ser entendido


tanto sob o prisma jurídico, quanto sob o prisma político-administrativo. O Professor Diogo
Freitas do Amaral afirma que, do ponto de vista jurídico, o sistema descentralizado é o que
permite que a Administração seja feita não só pelo estado, como também por outras pessoas
colectivas públicas, territoriais, as autarquias locais. Por outro lado, a descentralização, do
ponto de vista político-administrativo, "coincide com o conceito de auto-administração31”;
isto é, cabe à população eleger os órgãos das suas autarquias locais, há certa independência
no que toca a designação de competências e a tutela administrativa for branda32.
Esta posição do Governo significa que tem, face às diferentes modalidades da administração,
diferentes poderes, consoante consta do artigo 199° da Constituição da República Portuguesa:

Administração direta: A Administração direta do Estado está sob o seu poder de


coordenação. Tal significa que há um conjunto de relações no qual o Governo encontra-se no
topo enquanto órgão máximo de coordenação, detentor de poderes que garantam a

31
Curso de Direito Administrativo, vol. 1, 2015, 4ª edição, pg. 723 e 724, Diogo Freitas do Amaral
32
Limitada, entretanto, pelo controlo de legalidade.

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possibilidade de sobrepor-se aos órgãos que dele dependem; poder de direção, ao qual cabe a
capacidade de dar ordens aos órgãos de administração direta.

Administração indireta: Realizada por pessoas coletivas distintas do Estado ou da


pessoa colectiva em causa, as quais, todavia, prosseguem fins do estado. Neste caso já não há
poder de direção, mas outro que advém de expressão constitucional feliz de
“superintendência” que corresponde a três poderes. O primeiro é o de dar orientações
genéricas (o que se deve fazer, que objectivos se devem atingir – não são ordens diretas), o
segundo é o poder de legalidade e, por fim, o mérito (poder de caso a mérito). Existe neste
tipo que está umbilicalmente afeto ao Estado por prosseguir os seus interesses.

Administração autónoma: Prossegue fins próprios e o Estado só pode intervir com


as entidades que aqui se encaixam mediante tutela. Ele pode, por exemplo, em relação às
autarquias locais, fiscalizar o cumprimento da legalidade e, se entender que há uma
ilegalidade, pode comunicá-la ao Ministério Público para que o órgão seja afastado.

O artigo foi elaborado há muito tempo e, por isso, faz-se necessário pôr luz sobre
outras duas modalidades:

Administração sob forma privada: Feita por meio do direito privado; há uma lógica
de exercício privado de funções públicas. Isto é, quando o Estado cria sociedades comerciais
para desempenhar determinadas funções públicas com estatuto muito diferenciado33, atua
como acionista que intervém na gestão da administração pública.

Administração independente: o Estado atua através da lei, mas do ponto de vista


jurídico-administrativo apenas coordena a sua atuação com outras entidades independentes.

Dada a exposição das diferentes manifestações da administração, verificamos a


complexidade das modalidades. Então questiona-se: em última análise, a atividade do
Governo poderia ser dispensada? Ele introduz a harmonia entre diferentes níveis de setores
nos termos da lei, é uma função que tem mais a ver com a coordenação do que com a direção
efetiva.

33
Exemplos: Banco de Portugal e TAP.

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O que constitui o Governo?

Na Constituição da República Portuguesa encontra-se explicitado que o Governo se


constitui pelo Primeiro Ministro (órgão individual), pelos Ministros34 e pelo Secretários de
Estado, podendo, no entanto, existir Subsecretários de Estado e Vice-Primeiros Ministros.
Todos estes órgãos encontram-se no topo, não havendo qualquer relação de hierarquia entre
eles. Há, todavia, uma posição de supremacia política; a exemplo do Primeiro Ministro, que
exerce grande influência, mas não dá ordens e não pode substituir o Ministro.

Realidades portuguesas destacadas a partir da década de 80

Houve uma tradição portuguesa que teve início nos anos 50 e fim na década de 80:
uma organização especial na qual o Secretário de Estado tinha competência própria.
Entretanto, a competência e a organização de cada governo era matéria exclusiva do governo
que logo que se forma, se organiza em um lugar através de regras sobre a organização e
competência. A partir da década de 80, generalizou-se a tendência de não atribuir aos
Secretários de Estado senão competência delegada e tal significa que entre Secretários e
Subsecretários deixa de haver diferença, tendo em comum a delegação de poderes. Dessa
realidade, resulta a existência quase nula de Subsecretários de Estado e, quando há, detêm
função muito secundarizada.
Outro facto português relevante que depende da realidade do governo, mas que se tem
generalizado, é a inexistência de vice-ministro. Isto porque o Primeiro Ministro poderia
entender ser visto como concorrente, designando alguma intriga. Assim, desde os anos 80,
não há vice-primeiro ministro nem Conselho de Ministros especializado; são normalmente
genéricos, embora possam ser os primeiros a existir. Tal regra geral desapareceu.

Têm, os ministros, a mesma competência política?

Não, este Governo adotou uma técnica para saber quem pertence a cada domínio do
Estado. Os termos Ministros de Estado não são encontrados na CRP, todavia o Governo pode
designar os membros como entender. Estes desempenham funções de Primeiro Ministro,
substituem-no em caso de impedimento e coordenam a atuação de outros ministros, podendo
inclusive resolver uma questão ad hoc.

34
O Conselho de Ministros apresenta competência residual, isto é, só existe quando a lei a dita.

89
Transcrições das Aulas Teóricas TB; 2021/2022
Prof. Vasco Pereira da Silva

Para equilibrar, em contexto de matéria do Governo, pode até haver mais de um


Ministro de Estado35, mas a prevalência continua a ser o Ministro da Economia; decorrente de
uma hierarquia natural

(22.11.2021) - AULA 14 de 2ª feira

Na aula passada, falou-se em Governo como órgão administrativo de topo da


Administração Direta e vimos que tanto podemos falar de Governo enquanto órgão colegial
(Conselho de Ministros) como de Governo enquanto órgão individual (composto por
diferentes Ministros ou Secretários de Estado). A tradição portuguesa é a de que, para além
dos casos em que haja uma competência específica do Conselho de Ministros, nos restantes
ela é exercida a nível individual. Houve várias sentenças dos tribunais que corroboram esta
ideia, que foi sendo gradualmente aceite – hoje, na dúvida, não se põe em causa que a
competência seja do Ministro (isto não significa que o Conselho de Ministros não tenha
outras funções). Vimos também o facto dos secretários de Estado deixarem de ter
competência própria, o que teve uma consequência que foi o desaparecimento dos
subsecretários de Estado. Também se viu que, embora a CRP preveja a existência de
vice-primeiros-ministros, estes não existem para não se criar uma função de posição superior
à dos ministros.
O Primeiro Ministro tem tarefas de coordenação e controle das atividades do membro
do Governo, do ponto de vista jurídico. No quadro das políticas que são definidas, estabelece
orientações genéricas para o que está em causa.

Há a tradição, também, de que o Primeiro Ministro tenha um ministério próprio, que,


em Portugal, se trata da Presidência do Conselho de Ministros – é o ministério mais
importante por ser o do Primeiro Ministro. Em relação a este, têm existido duas orientações
diversas: há uma certa tradição de que ir a despacho com o Primeiro Ministro é algo que
atribui importância maior às medidas e políticas que estão a ser apreciadas, o que levou a que,
durante muitos anos, a Presidência do Conselho de Ministros se transformasse num grande
ministério na qual havia dezenas de secretários de Estado com funções delegadas pelo
Primeiro Ministro e despachavam estas decisões; esta realidade ainda hoje subsiste, embora,
segundo o professor VPS, não faça sentido, o que levou a outra prática, mais atual, que é a da

35
De finanças, economia, etc.

90
Transcrições das Aulas Teóricas TB; 2021/2022
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existência de outros ministros no quadro da Presidência do Conselho de Ministros, a quem o


Primeiro Ministro delega funções de gestão – existe o Ministro da Presidência, secretários de
Estado da Presidência. Esta última prática consolida a ideia de que o Primeiro Ministro acaba
por já não ter intervenção nas decisões que são tomadas, não intervém no processo de análise.

Competências do Governo - 199.º da Constituição

O artigo 199.º da CRP estabelece a competência administrativa do Governo, função


que é realizada de forma direta pelo Estado. O que distingue os vários ministros são terem
competências diferentes, já que as funções do Estado são múltiplas. A pergunta que o
professor Freitas do Amaral fazia era a seguinte: em que lei estão as atribuições do Governo?
Em lei nenhuma, pelo menos de forma completa, já que só existem algumas atribuições na
Lei Orgânica do Governo.

As competências administrativas do Governo, plasmadas no 199.º, são:

a) Elaborar os planos, com base nas leis das respetivas grandes opções, e fazê-los
executar – a tarefa de planeamento (económica, cultural, etc.) é uma função típica do
Governo, embora conte com a repartição de competências ao nível regional e local. Por
exemplo, as autarquias têm competências ao nível do ordenamento do território, embora seja
o Governo que, de forma central, que elabora estes planos - até se pode dizer que Portugal é
um país bastante descentralizado, por este motivo. O Governo, através dos planos, fixa
grandes objetivos, estabelece os meios de os atingir e depois vai procurar executá-los, o que
está relacionado com a transformação administrativa de Estado social para Estado pós-social,
em que o Estado não necessita de prestar tudo, mas sim regular todos os aspetos e depois
verificar o cumprimento dessas planificações.

b) Fazer executar o Orçamento do Estado – é um instrumento em que há colaboração


da AR, mas que pertence ao Governo (prepara o OE, apresenta-o à AR, a AR tem de o
aprovar – é essencial). É uma tarefa que tem a interferência decisiva da AR, porque é a esta
que cabe a aprovação e alteração das propostas do Governo – como se observou, a não
aprovação da proposta do Orçamento do Estado para 2021 levou à dissolução da AR, que o
Presidente da República entendeu ser a melhor solução. A alínea em questão do 199.º
refere-se ao momento a seguir a este: a execução do Orçamento do Estado, que tem a duração

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Transcrições das Aulas Teóricas TB; 2021/2022
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de um ano, pelo Governo (ou, como ocorrerá em 2021, a execução em duodécimos do


Orçamento anterior, porque um novo diploma não foi aprovado, o que limita o Governo a
tarefas de gestão).

c) Fazer os regulamentos necessários à boa execução das leis – os regulamentos são


atos da função normativa, são normas jurídicas (gerais e abstratas) que pode ser feito para a
boa execução das leis. Os regulamentos de que aqui se fala são os chamados “regulamentos
de execução”, porque tem uma relação com a lei, ou seja, a lei estabelece o regime jurídico,
mas é o regulamento que diz tudo, que a complementa.

g) Praticar todos os atos e tomar todas as providências necessárias à promoção do


desenvolvimento económico-social e à satisfação das necessidades coletivas - para além dos
“regulamentos de execução”, também cabe ao Governo a feitura de “regulamentos
autónomos ou independentes”, que são os que, tendo uma base legal, não complementam
uma determina lei – há uma hipótese de inovação por parte do Governo. Nesta alínea, cabem
duas coisas: atos administrativos (individuais e concretos); regulamentos (gerais ou abstratos
– o CPA diz que são gerais e abstratos, mas o professor VPS entende que na nossa ordem
jurídica devem ser gerais ou abstratos, porque basta uma destas para haver uma norma – por
exemplo, uma norma da CML que determine que todos os comerciantes têm de colocar um
cravo no dia 25 de abril como celebração é uma norma, apesar de ser concreta; uma norma
que se aplique apenas ao Presidente da República, ou seja, a apenas um órgão, em todas as
situações possíveis, é uma norma individual e abstrata). Esta alínea gerou uma discussão
entre o professor Freitas do Amaral e o professor Sérvulo Correia: o primeiro entende (e o
professor Vasco Pereira da Silva concorda) que esta previsão para fazer regulamentos
autónomos não se substitui à lei de habilitação, ou seja, é necessário que exista uma lei, para
além da CRP, que defina a competência objetiva e subjetiva deste regulamento; pelo
contrário, o segundo entendia que bastava ao Governo invocar a CRP para ter competência
genérica para exercer regulamentos autónomos. Segundo o professor Vasco Pereira da Silva,
o legislador, pelo artigo 112.º da CRP, teve como intenção limitar a competência de
regulamentação autónoma do Governo, pelo que concorda mais com a interpretação do
professor Freitas do Amaral.

d) Dirigir os serviços e a atividade da administração direta do Estado, civil e militar,


superintender na administração indireta e exercer a tutela sobre esta e sobre a administração
autónoma – fala acerca das várias modalidades de Administração;

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e) Praticar todos os atos exigidos pela lei respeitantes aos funcionários e agentes do
Estado e de outras pessoas coletivas públicas – no fundo, há uma competência genérica da
prática de atos administrativos, típicos da função legislativa;

f) Defender a legalidade democrática – cabe a todas as instituições. Todos os atos e


providências do Governo são tomados de acordo com a legitimidade democrática, que está
relacionada com a realidade governamental.

Voltando à alínea d) do 199.º, é necessário analisar esta norma e também completá-la:


para além da Administração direta, indireta e autónoma, falta-lhe a Administração Pública
sob a forma privada e a Administração independente.

Administração Direta

Em relação à Administração Direta, há órgãos e serviços de natureza central, porque


estão situados na dependência do Governo, como os Ministérios, que são compostos por
Direções Gerais, que em regra correspondem às atribuições desses departamentos
ministeriais. Ainda no quadro da estrutura de cada Ministério, existe: um Secretário Geral, a
“dona da casa”, ou seja, quem toma todas as decisões sobre despesas e manutenção; os
Diretores de Serviço de cada Direção Geral; as repartições no quadro da organização do
Ministério; serviços jurídicos e de consultadoria.
Também há órgãos da Administração desconcentrada do Estado, espalhados pelo
território – cada Ministério tem órgãos nos municípios ou nas zonas correspondentes às
províncias (porque em Portugal não existe nenhum órgão de natureza regional, apesar de
previsto na Constituição). Todos os órgãos que existem são de natureza estadual ou local –
existem depois órgãos de natureza regional nas chamadas “províncias” ou em organizações
similares, isto é, circunscrições administrativas que não têm qualquer valor jurídico, o que
levanta um problema relacionado com o facto de cada Ministério, por falta de regulação,
escolher planificações diferentes: os ministérios económicos introduzem uma classificação
relacionada com as regiões-plano; o Ministério da Justiça com as comarcas; etc. No plano da
União Europeia, é também problemático, porque esta se encontra organizada com uma
vertente regional administrativa, pelo que há uma realidade que é um défice de
funcionamento em Portugal. Há, sobretudo, órgãos desconcentrados ao nível local, como são
exemplos Repartições das Finanças e Tesourarias da Fazenda Pública.

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Transcrições das Aulas Teóricas TB; 2021/2022
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Também há órgãos no exterior do país, como os Consulados e as Embaixadas, que


funcionam noutro país e que exercem competências estaduais. Começou a suceder que estes
órgãos de natureza externa, para além de terem serviços que correspondem aos existentes no
território nacional (sobretudo, representações dos Ministérios), passassem a ter também
atuações de representantes de Institutos Públicos – ao lado da Administração direta, no
quadro da Administração externa do Estado, começou a usar-se a expressão, utilizada pelo
Professor João Caupers, de “administração periférica do Estado”, porque estes órgãos, para
além dos representantes do Estado, também passou a haver representação de institutos
públicos, que são entidades da Administração indireta do Estado, mas que também atuam
junto das Embaixadas e Consulados. Diz-se, por isso, que, ao lado da Administração externa,
existe a Administração periférica externa.
O Professor João Caupers também fala, no plano interno, em Administração periférica
interna, juntando a Administração Indireta e Direta. O Professor Vasco P. da Silva não
concorda com este conceito, porque como estamos no quadro da desconcentração, não há
qualquer ligação entre órgãos estaduais e órgãos da administração indireta (não se encontram
no mesmo lugar, ao contrário do que acontece nos órgãos externos).
O que é que a distingue a Administração Direta da Administração Indireta do Estado?
O que aconteceu foi que, por razões de eficiência na persecução das suas funções, o Estado,
que é uma realidade enorme, decidiu autonomizar outras pessoas coletivas públicas para o
auxiliarem, cuja função destas é exercer as funções do Estado.

Administração Indireta

Pensando na Administração Indireta em Portugal, existem as categorias tradicionais


de que fala o Professor Freitas do Amaral, que, em geral, correspondem à lógica clássica da
Administração portuguesa. Existem, porém, pequenas variantes e pontos de fuga, porque,
atualmente, há uma realidade que já não se encaixa nesta designação.

O Professor Freitas do Amaral falava em Institutos Públicos, Estabelecimentos


Públicos, Fundações Públicas e em Empresas Públicas. Esta realidade entendida assim
correspondeu a um modelo dos anos 80, mas, se pensarmos no que diz o Professor Marcelo
Rebelo de Sousa, com o qual concorda o Professor Vasco Pereira da Silva, deixa de fora uma
realidade caracterizada como os “entes ou organismos personalizados do Estado”.
Os entes ou organismos personalizados do Estado são institutos públicos que estão
intimamente ligados ao Estado e esta realidade faz com que funcionem como uma Direção

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Transcrições das Aulas Teóricas TB; 2021/2022
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Geral, embora com uma ligeira autonomia administrativa e financeira. Por exemplo, o
Instituto ou Agência da Juventude corresponde a um instituto integrado no Ministério, que
entendeu que para a realização dessas funções são necessários montantes que devem estar
disponíveis no imediato (isto porque ao nível central a contabilidade é muito mais lenta), pelo
que achou melhor ter funções da Direção Geral que fossem exercidas por um Instituto
Público – ora, não é um verdadeiro instituto público.
Outro exemplo é a Agência Nacional do Ambiente, que a ordem jurídica europeia
impõe que seja independente e que em Portugal funciona como uma Secretaria de Estado. É
uma entidade que, na lógica da União Europeia, é a responsável pelas avaliações e
declarações de impacto ambiental, pelo que necessita de independência. Em Portugal, o
Ministério do Ambiente libertou-se dos seus serviços de Direção Geral, delegando-os à
Agência em questão – criou uma realidade que funciona como uma Direção-Geral, que
depende do Ministério, mas que, ao mesmo tempo, tem o nome de “agência”. Assim,
percebe-se o porquê de quase todas as decisões de impacto ambiental relacionadas com o
Governo serem benéficas para o mesmo – houve um aprisionamento desta entidade. Este tipo
de estrutura está mais próximo de um “organismo personalizado do Estado” do que de um IP.
Para o Professor Vasco P. da Silva, seria benéfico para o Governo que alterasse esta realidade.
Uma situação concreta relacionada com esta falta de independência é a escolha do
local de construção do novo aeroporto. O Ministro, ao afirmar que o aeroporto vai ser
construído em determinado local, condiciona a atuação da ANA, porque, à partida, o local só
poderia ser escolhido após a avaliação de impacto ambiental.
Outra situação que espelha este problema, foi a da assinatura dos contratos de lítio
pelo Governo, sem previamente existir uma declaração da ANA, relativamente ao impacto
ambiental. Isto é, do ponto de vista técnico e procedimental, inaceitável, porque, caso a
avaliação seja negativa, o Estado terá de indemnizar todos os particulares com quem celebrou
os contratos.

Os Institutos Públicos, por sua vez, têm uma maior autonomia e independência,
regulados pela LQIP. Estes têm muitas fórmulas, modelos de organização administrativa, que,
inicialmente, estavam muito organizadas, mas que necessitam de ser subvertidos por
realidades paralelas que põem em causa estes mecanismos. - Estes institutos existem para
prosseguir, de forma própria, fins do Estado.

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Transcrições das Aulas Teóricas TB; 2021/2022
Prof. Vasco Pereira da Silva

As Fundações Públicas são fundos monetários afetados a uma determinada realidade,


correspondendo a uma pessoa coletiva própria. Um dos exemplos em Portugal é a ADSE,
entidade que está destinada ao apoio dos servidores do Estado em matéria do Direito à Saúde.
Existe também a deturpação do termo “fundação”, que ocorre, por exemplo, com as
universidades, já que a base universitária não é um fundo monetário, mas sim a relações entre
docentes e discentes.

(24.11.2021) - AULA 15 de 4ª feira:

Caracterização da Administração Pública Portuguesa

Administração pública indireta (continuação)

A Administração indireta mostra a ligação umbilical deste modelo de Administração


ao Estado ou à pessoa coletiva que fundou aquela entidade pública. Embora exista
personalidade de direito público, património próprio, autonomia administrativa e financeira,
estas entidades existem para a realização das funções do Estado ou da entidade pública que as
criou, ou seja, é uma lógica que tem este cordão umbilical diretamente ao Estado e à entidade
criadora.

Existem diferentes entidades que compõem a Administração indireta (os Institutos


Públicos e as Empresas Públicas).

Institutos públicos

Serviços Personalizados:

Dentro dos Institutos Públicos, aderimos, em primeiro lugar, à distinção introduzida pelo
Professor Marcelo Rebelo de Sousa, que falara em Serviços Personalizados do Estado, que
consistem em entidades de tal maneira intimamente ligadas à pessoa coletiva criadora que
podiam funcionar como uma Direção Geral, que, no entanto, por razões de eficácia ou de
eficiência o funcionamento da máquina administrativa se resolve autonomizar, e temos vários
exemplos como:

- A lógica do Instituto da Juventude, que poderia ser a Direção Geral da Secretaria de


Estado da Juventude e do Desporto;

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- A Agência Nacional do Ambiente, que em parte é a Direção Geral do Ambiente e


exerce funções de apoio ao Ministério do Ambiente (porém tem o nome de “Agência” para
demonstrar que é independente e que cumpre as regras da União Europeia, em matéria de
separação entre aquilo a que a União Europeia chama “A entidade da AIA” - uma autoridade
especial na matéria da AIA – e, portanto, não poderia ser Direção Geral, embora o Governo
goste de ter o seu controlo).

Portanto, isto corresponde a uma realidade de Institutos Públicos, enquanto Serviços


Personalizados que tem uma obrigação íntima com a entidade criadora.

Fundações Públicas

Os institutos públicos podem ter um substrato de natureza fundacional, as Fundações


Públicas. Estas são um conjunto de ativos financeiros com um património público que é
colocado ao serviço de uma determinada tarefa administrativa que era do Estado, mas que
este transferiu para esta entidade, temos como exemplo:

- A ADSE, Instituto Público de Gestão Participada, é um conjunto patrimonial que


decorre das contribuições das pessoas que estão ao serviço do Estado (funcionários públicos,
mas também outro tipo de servidores públicos, sendo que atualmente o estatuto de
funcionário público está reservado apenas para a Polícia e as Forças Armadas). Este montante
monetário é atribuído, ou é afetado, a uma tarefa que é a do auxílio do Estado no âmbito da
função da saúde e que os cidadãos podem, através da ADSE, ter regimes especiais de
utilização dos serviços de saúde, mecanismos de não pagamento de certas prestações de
natureza médica, entre outros. É uma típica fundação pública.
Esta ideia da fundação pública não é aplicável a realidades que não sejam ativos
financeiros, e, portanto, é completamente desadequado classificar Universidades como
fundações públicas, continuam a ser entidades da Administração autónoma. A lei das
Universidades que fala em “Universidades fundacionais” é descabida, porque não é o
dinheiro que faz uma universidade, independentemente da riqueza que esta tenha, são os
grupos de professores qualificados e de estudantes que fazem uma universidade.

Empresas públicas

São entidades que se enquadram neste esquema da Administração Indireta.

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No quadro das Empresas públicas temos algumas empresas, aquelas que o Estado
entende que estão mais ligadas ao exercício da respetiva função, que são as empresas de
capitais públicos, e que têm uma entidade administrativa de natureza pública, são pessoas
coletivas de direito público – EPE (entidades públicas empresariais), têm capital estatutário,
só pode ser detido pelo Estado. Depois há aquelas que são pessoas coletivas de direito
privado – EP (empresas públicas em sentido estrito), e que são a maioria, sendo que têm
capital social divisível, público ou privado, podem ser detidas pelo Estado ou pelo Estado e
privados. Atualmente uma das questões que se coloca é a de saber qual é a distinção entre
ambas, pois os regimes jurídicos das EPE (entidades públicas empresariais) e das EP
(empresas públicas, mas que são privadas), é praticamente igual, e, portanto, muitas vezes
não há mais do que uma mera distinção de natureza substantiva. Porém, se observarmos a
Lei-Quadro das Empresas Públicas o critério deveria ser aquele que desempenham funções
administrativas tradicionais (funções no quadro da defesa, da administração interna), as
funções essenciais do Estado que vêm do tempo do liberalismo político, e que aí se justifica a
distinção. Contudo, em relação ao que é a atividade normal de uma empresa pública que é
uma atividade de natureza económica, aí pelo contrário, as razões da lógica do
funcionamento e de mercado apontam para a necessidade de ser uma empresa de natureza
privada.
Estas entidades que têm uma natureza especial, visto sendo entidades públicas, ou
seja, estamos a falar de empresas de capitais públicos, e que são geridas de forma a satisfazer
as necessidades coletivas, sendo reguladas pelo Estado e pelas instituições criadoras e são
criadas para a realização de operativos de raiz público, no entanto, organizam-se e funcionam
de acordo com regras de direito privado. As EP são entidades públicas, mas como produzem
para o mercado atuam sob o direito privado, as empresas públicas também se organizam pelo
direito privado, ou seja, são privadas no quadro da atuação e da organização.
Há um conjunto de outras empresas que integram o chamado Setor Empresarial do
Estado e que já não se podem considerar como entidades da administração indireta, porque
são entidades da administração pública sob forma privada, porque o Estado não tem a
totalidade do capital, são sociedades de capitais públicos sem que o Estado tem um poder que
corresponde à respetiva intervenção no quadro do mercado, e estas entidades ainda que
diferentes das outras embora se enquadrem no quadro do exercício da função administrativa
já não têm uma gestão predominantemente pública, logo vão procurar conciliar os interesses
públicos com privados.

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Uma questão que era muito discutida antigamente, era se as empresas públicas
deveriam ter lucro. No entanto, este pensamento não tem lógica, pois elas têm natureza
económica, existem efetivamente para prosseguir interesses que são públicos, mas
precisamente para que esses interesses sejam bem prosseguidos é necessário haver lucro.
Caso não haja lucro elas acabam por ser extintas ou integralmente privatizadas e o Estado
deixa de realizar aquelas tarefas que são essenciais. Logo, os encarregados da gestão das
empresas públicas, que têm natureza privada, como atuam no mercado exercendo funções de
interesse público, esses gestores devem garantir que haja lucro nessa atividade sob pena
dessas tarefas de interesse público deixarem de ser realizadas.
É uma realidade que tem a ver com a natureza destas situações que decorrem do
Estado ter invocado, para si, funções de intervenção na vida económica e social democrática,
no quadro das quais atua como entidade privada, mas realiza tarefas de direito público. E,
precisamente por isto, há uma lógica que faz com que as empresas públicas sejam
simultaneamente públicas e privadas, sendo uma realidade esquizofrénica do ponto de vista
de como são concebidas, pois, por um lado, estão sujeitas à gestão pública e podem ser
controlados os objetivos que prosseguem, de acordo com os princípios do Código do
Procedimento Administrativo, e estão submetidas, por exemplo, à fiscalização do Tribunal de
Contas, mas, simultaneamente, elas têm uma margem de atuação de acordo com as regras de
mercado e com o direito privado que lhes dá uma quase total autonomia no exercício das
funções de natureza económica, não deixando de ser públicas.

Administração autónoma

Temos, para além de pessoa coletiva de autonomia administrativa e financeira, algo


mais, que é a ideia de autorregulação. Estas entidades são autoadministradas e prosseguem
fins próprios de forma própria, e, portanto, a realidade que acresce às outras modalidades de
administração, é que estamos perante fins que são próprios. - Já não são fins do Estado ou de
outras entidades públicas, são fins daquela pessoa coletiva que está em causa e que é
autoadministrada.

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Autarquias locais

As Autarquias locais são pessoas coletivas de natureza territorial, habitantes de uma


determinada autarquia, que têm o poder de eleger os respectivos representantes para os
órgãos. (A autarquia dominante é o município.)

As autarquias locais são, mesmo em Estados como o português, que é antigo


comparando com os Estados vizinhos, pré-existentes aos Estados que prosseguiram os seus
fins de natureza local. E as autarquias locais, de natureza municipal, são as primeiras a surgir
na nossa ordem jurídica, tendo um papel preponderante em termos históricos e até na
atualidade.

Municípios

Os municípios possuem diversos poderes e competências, em certos casos até


rivalizam com as competências estaduais, quando estas são competências comuns, por
exemplo, apesar de não ser o caso de Portugal, as escolas dependem integralmente do poder
administrativo municipal. Entretanto, mesmo em Portugal com sua estrutura historicamente
centralizada, a nomeação dos professores é competência do Estado através dos Ministério da
Educação, mas cabe aos municípios o financiamento das escolas, limpeza, segurança e outras
diversas funções administrativas, ou seja, demonstra que apesar de Portugal possuir uma
estrutura centralizada ainda assim os municípios possuem um elevado grau de
discricionariedade administrativa.
Uma determinada visão da ciência política diz que as regiões administrativas não
foram criadas por causa da interferência dos municípios, que com sua força política barraram
o processo de formação dessas entidades, as quais poderiam acabar por mitigar os poderes
dos municípios.

Os órgãos componentes dos municípios

Presidente da Câmara Municipal: eleito conjuntamente com outro órgão, a Câmara


Municipal. É o executivo da autarquia presidido pelo Presidente da Câmara e a sua
composição é autónoma do poder legislativo, por exemplo, como é o caso de Lisboa, em
2021, onde na Câmara municipal temos o Presidente Carlos Moedas que é filiado ao partido
PSD e a maioria da Assembleia municipal é dos partidos de esquerda (PS, PCP, BE, PAN e

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PEV), diferentemente do que acontece com o Governo que é dependente da composição da


Assembleia da República.

Câmara Municipal: os lugares da Câmara Municipal são determinados através do


sistema de Hondt. Logo, há distinção dos vereadores com pelouro e sem pelouro, em outras
palavras, aqueles que são os que ganharam maioria na Câmara e são responsáveis pelos
ramos da administração municipal, por exemplo, saúde, educação e meio ambiente.
Nos anos 1980 e 1990 houve um certo consenso para a mudança da lei das autarquias
locais, para que o órgão da assembleia municipal o executivo municipal, com a possibilidade
de criar executivos homogêneos (mesmo partido político). Entretanto, esta mudança não foi
posta em prática e o sistema atual se mostra estável e de difícil mudança.

Freguesias

Autarquias locais próprias que se integram nos municípios e que tem uma importância
muito reduzida, pois possuem serviços de urbanização, por exemplo, manutenção de jardins e
cemitérios. Todavia, as suas funções podem aumentar por meio da delegação de poderes do
município e, assim, possuem maior importância. - Isso é evidenciado nos grandes municípios,
como Lisboa e Porto, onde os órgãos municipais transferem poderes às freguesias.

Além disso, podemos notar uma diferença entre as freguesias urbanas e as rurais, onde
estas possuem maior relevância, porque devido a se tratarem de territórios afastados, são o
único elemento de contato com a Administração pública para aqueles habitantes.
Os órgãos componentes das freguesias são os seguintes: Presidente da Junta de
Freguesia, Junta de Freguesia e Regiões Administrativas
A não existência desse tipo de administração regional é um problema em Portugal, porque
existem necessidades no plano regional que seriam melhor administradas por uma
administração equivalente e também por causa da integração de Portugal na União Europeia
(esta possui uma organização regionalizada e até possui órgãos de caráter regional). Assim,
Portugal, para ser representado nas reuniões da União Europeia com as regiões, somente pode
levar os representantes das Regiões Autónomas, que possuem uma realidade própria diferente
das regiões administrativas e, como substituição, a Comissão de Coordenação e
Desenvolvimento (CCDR).
Logo, apesar de termos a possibilidade de existência de regiões Administrativas na
Constituição da República Portuguesa (art. 255º) e um fator orgânico dessa organização
regional, possuímos poucos órgãos regionais, que atuam sobretudo no setor do urbanismo,

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planificação econômica e turismo. Além disso, há um grave problema: os Ministérios


exercem as suas funções regionais de acordo com critérios próprios, por exemplo, o
Ministério de Justiça usa as comarcas, o Ministério da Administração Interna utiliza o critério
dos distritos, mesmo que esses nem existam mais, desse modo, não há uma uniformização da
administração.

Problemática da criação das regiões Administrativas


Para que estas existam no procedimento legislativo, é necessário uma lei geral que
cria em simultâneo todas as regiões administrativas e, sendo lei orgânica, possui maioria
agravada para a aprovação. Após esta lei, é preciso que cada uma das regiões tenha que ser
criada por lei autônoma, a qual deve ser referendada. O referendo ainda pode possuir duas
questões: se a população é a favor do processo de regionalização e, também, se são
favoráveis à criação da região administrativa determinada. Este processo foi feito de modo a
que, na prática, fosse quase impossível a sua criação, pois o legislador não quis tomar posição
sobre a disputa entre regionalistas e não regionalistas.
Por medo da autonomia excessiva, os municípios opuseram-se às regiões
administrativas, criando as uniões de autarquias (falso mecanismo regional), pois são
municípios limítrofes, não correspondem a uma região e não possuem fins próprios de modo
próprio.

(29.11.2021) - AULA 16 de 2ª feira

As associações públicas são também entidades da Administração Autónoma, e não


entidades da Administração Indireta, porque elas prosseguem fins próprios, de forma própria,
através de órgãos e leis. Elas não são entidades de natureza territorial, como são as autarquias
locais. São entidades autoadministradas. O conceito de autoadministração, de que já falámos
em momentos passados, é a chave para a caracterização dessas nossas ordens profissionais.
Há aqui uma realidade que vem desde o tempo da Idade Média, uma realidade que se impôs
aos diferentes Estados, que procuraram negociar com as ordens profissionais. Hoje em dia, a
lógica é um pouco a oposta. O Estado atribuiu funções de gestão a determinadas atividades
profissionais, nomeadamente as atividades liberais. Há aqui uma lógica em que o Estado

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espera que estas associações públicas colaborem com ele, no exercício da função
administrativas.
A realidade portuguesa a esse nível ainda está numa situação de transição, porque o
anterior regime de natureza autoritária afirmava-se corporativo. Não era um Estado
corporativo, à maneira do sistema italiano, mas dizia que o era, e tinha uma estrutura
organizada, de natureza corporativa e as ordens profissionais correspondiam à manifestação
dessa realidade corporativa. Há resquícios, no atual regime, que vêm desses tempos passados.
Uma questão crónica com que todas as gerações de recém-licenciados se preocupam é a
questão da inscrição obrigatória, que vem desses tempos. É verdade que o que aqui está em
causa não é uma realidade sindical, uma vez que não é a defesa dos interesses económicos e
financeiros que está em causa, mas sim a profissão e o modo de exercício da profissão.
Também por causa disto se pode justificar que não haja uma lógica de adesão
voluntária, como se verifica no âmbito dos sindicatos.
Estas eleições antecipadas fizeram com que o problema esteja em letargia durante
alguns tempos, alguns meses: é o problema de haver algum controle e alguma dependência
das atividades das ordens profissionais. Se são auto-organizadas, elas então devem ter
autonomia e independência. Deve haver um órgão autónomo, composto pelos próprios
membros, resultantes da votação, mas que não seja apenas o espelho dos dirigentes, daqueles
que ganharam as últimas eleições. Há que procurar novos equilíbrios, porque se estas
associações públicas podem ser uma realidade muito moderna, o âmbito do Estado pós-social
e independente, elas também podem ter alguns toques de arcaísmo, como acontece em parte
em Portugal, por causa dessa tradição que vem do regime autoritário. Geram-se alguns
conflitos entre as associações públicas (entidades da Administração) e os outros órgãos
administrativos, designadamente o Governo, enquadrado no exercício da função.

As Universidades
Na perspetiva do Prof. Vasco P. da Silva, as Universidades são também entidades que
integram a Administração. Não são Administração Indireta, porque os fins não são fins
estaduais. Os fins da Universidade são fins próprios, que ela prossegue também de forma
própria. As Universidades existem desde sempre, com uma posição de autonomia científica e
académica, a qual é reconhecida e gerou, também, todas as outras realidades no âmbito da
autoadministração.

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Transcrições das Aulas Teóricas TB; 2021/2022
Prof. Vasco Pereira da Silva

Aquilo que caracteriza a Universidade é o facto de esta não ser uma Associação
comum. O Professor Marcelo Rebelo de Sousa diz que é uma espécie de Associação Pública,
porque está entre a Administração Indireta e a Administração Autóctone. É uma espécie de
uma Associação, mas não é uma associação idêntica às ordens profissionais, porque a
Associação depende da posição que se ocupa na Universidade. A Universidade é feita para
aprender e ensinar e há uma realidade que implica que haja uma repartição de conhecimento
entre as pessoas que investigam e ensinam, e aqueles que aprendem. Há aqui uma lógica de
uma ligação, determinada pela relação pedagógica.
Nas ordens profissionais, há uma lógica de funcionamento de uma atividade privada,
ao contrário do que acontece nas Universidades. Estas são instituições de natureza científica e
pedagógica, em que professores e alunos estão unidos para aprender e ensinar, mas têm
funções diferentes. Essas funções têm a ver com a lógica do ensino universitário.
Em 1975, havia na Faculdade a ideia de que os professores que não sabem nada têm
de ser substituídos, pelo menos pelos assistentes. O que aconteceu foi que nessa altura, foram
postos de fora muitos Professores desta casa e primeiro que a Universidade se reorganizasse,
foi preciso esperar uns anos. Tanto que, nos anos 80, foi por causa desses problemas que
surgiu a Universidade Católica. A maior parte dos professores do ensino público foram
expulsos.
Havia uma ideia de que não estávamos numa realidade universitária, porque os
professores não ensinavam. Eram os alunos que se ensinavam uns aos outros. Quanto muito,
havia uns assistentes que, no quadro de uma lógica dialética marxista aplicada à
Universidade, eram aqueles que substituíram os Professores. Foi a crise total do ensino
universitário.
Portanto, a Universidade tem funções distintas, e tem regras, as quais também geram a
mudança. Os Professores já foram alunos, aprenderam a estudar e a investigar e tiveram uma
carreira sempre feita na base de concurso e, no final, ensinam e os outros aprendem. Há aqui
uma lógica que não é a lógica unitária de uma profissão, mas que é uma lógica assente na
partilha. É por isso que, diferentemente do ensino secundário e do ensino primário, os
programas são feitos pelos Professores. Não são programas que estejam sujeitos a apreciação
do Ministério. É função do Professor catedrático fazer o programa da respetiva disciplina. É
função do Professor assistente auxiliá-lo no exercício dessa tarefa e acompanhar a atividade
letiva do Professor.

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A Faculdade de Direito de Lisboa é uma pessoa colectiva, autónoma, que se integra


numa outra pessoa coletiva, que é a Universidade (composta pelos seus órgãos próprios), pelo
que estamos perante uma realidade autoadministrada. Prossegue fins próprios, de forma
própria, através de órgãos livremente eleitos pela estrutura da Universidade.
Portanto, da perspetiva do Professor, não há nenhuma dúvida de que estamos perante
uma realidade de Administração Autónoma, sendo uma realidade especial, que resulta de
uma agregação de pessoas (elemento associativo), mas essa associação tem a ver com uma
relação de ensino e uma relação de investigação. É no quadro dessa relação que a
Universidade se organiza.
Então, aquela dicotomia que aparece na lei, de haver algumas Universidades que
podem ser Fundações Públicas, não faz sentido. A Universidade faz-se desta ligação de
Professores e alunos. Quando o legislador fala das Universidades que são Fundações
Públicas, está a pensar no modelo de Universidade, algo diferente do modelo tradicional, que
está mais virado para o mercado, que tem uma lógica de interação com a sociedade, que tem
ainda mais autonomia pedagógica e científica. Isso pode fazer sentido que exista, mas
existindo, é outra forma de associação. É outra modalidade de relacionamento entre os
sujeitos principais, que compõem a Universidade, e que são os professores e alunos.
No entanto, para além da Administração Autónoma, há outra forma de Administração, a
Administração Pública sob forma privada.

Administração Pública sob forma privada

Nos nossos dias, há um outro fenómeno, que só desde os anos 80 é que começou a
surgir e só a partir dos anos 90 é que começou a ser estudado, na sua dimensão mais
importante. Resulta de uma tentativa de reestruturação da Administração, da lógica da
Administração infra-estadual, que vai repartir o exercício da função administrativa com os
particulares e com outras entidades de natureza privada e, portanto, faz com que o Estado
intervenha de uma forma que é muito mais flexível e que não cabe nos quadros tradicionais.
Quando falámos no setor empresarial do Estado, dissemos que era um setor largamente
esquizofrénico, porque nesse setor, existem empresas públicas (as EPE`s), com um estatuto
de pessoa coletiva pública. A maioria das empresas públicas existentes são organizadas e
criadas por Direito Público, atuando sobre o Direito Privado.
Mas, agora, temos de considerar que existem associações e fundações, que são
privadas de raiz, uma vez que se constituíram de acordo com o Direito Privado. Têm capitais

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públicos, mas o Estado não tem a maioria do capital. O Estado tem funções de gestão, em
razão das ações que tenha nessa sociedade, ou nessa realidade institucional que aqui aparece.
Estamos perante uma outra dimensão da Administração Pública, em que o Estado vai ter de
gerir.
Nós, com o estigma do poder e com os traumas da infância difícil do Direito
Administrativo, ocupámos tanto tempo a estudar o ato administrativo, os poderes de
autoridade, entre outros, que nos esquecemos que administrar é gerir e que administrar é algo
que é feito, também, por uma empresa ou entidade privada, e que aquilo que distingue a
gestão pública da gestão privada são apenas os fins (fins públicos, que têm a ver com a lógica
da satisfação das necessidades coletivas, e os fins do lucro privado, que têm os respetivos
acionistas, ou os membros de uma determinada organização). Portanto, se olharmos à nossa
volta, temos uma série de realidades que oscilam.
Por exemplo, a TAP tem oscilado entre ser uma sociedade de capitais públicos, como
é hoje, ou uma sociedade de capitais mistos, em que o Estado está em posição minoritária.
Umas vezes, está em posição minoritária. Outras vezes, tem a maioria do capital, como tem
agora, mas nunca é um acionista maioritário. Enquanto estamos no quadro de uma realidade
construída e regulada de acordo com o Direito Privado, estamos perante uma nova realidade,
que é a Administração Pública sob forma privada. E no quadro desta administração, os
poderes de intervenção das entidades públicas são diferentes dos da Administração
tradicional, porque o Estado toma decisões, em função do respetivo capital. Se o Estado tem
10% das ações, ele influencia a empresa, através de uma lógica puramente administrativa, a
usar 10 % do respetivo capital.
Se, pelo contrário, tem mais de 40% de uma empresa, é o sócio maioritário dessa
empresa. O Estado, consoante o capital, tem, ou não, uma posição de domínio. Em última
análise, até se poderia dizer que a autonomia destas entidades privadas varia consoante a
titularidade do capital.

O Estado até poderá dar ordens. - Não dá ordens do mesmo modo que um superior
hierárquico dá ao subalterno, mas são as ordens que dá enquanto acionista maioritário, em
relação a uma empresa que é integralmente sua. Há esta relação de dependência em relação às
cotas que cada um dos membros tem, mas esta dependência pode ser maior ou menor,
consoante a titularidade de capital do Estado.
Por exemplo, o Centro Cultural de Belém é uma associação que reúne capitais
públicos e privados, de entidades muito diferentes. Também as Fundações integralmente

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privadas, como é a Fundação Calouste Gulbenkian, colabora com o Estado, no exercício da


função administrativa, pelo que está sujeita a regras de Direito Público. Mas é integralmente
privada. O Estado não manda nada, não tem nenhuma interferência do capital. É uma
Fundação totalmente privada. Enquanto desempenha esta função, também se integra nesta
lógica de Administração Pública sob forma privada.
Podemos, assim, ver a diversidade de figuras que existem no quadro da
Administração, e que vão desde as sociedades comerciais (em que a Administração Pública
tem cotas e ações), até às associações que desempenham fins de natureza cultural, desportiva.
A Fundação Portuguesa de Futebol é uma entidade administrativa, mesmo a Liga recebe os
seus poderes disciplinares sobre o futebol da fundação (que resultam da mesma) também é
uma entidade administrativa.
Aqui o controle e a intervenção do Estado é uma intervenção que se faz por via
legislativa – o Estado estabelece a lei e regula o funcionamento destas instituições, mas
depois faz-se pela gestão dela porque em todas estas entidades da Administração Pública sob
a forma privada, existe um ou vários representantes que, em função do peso que o Estado ou
a Administração Pública tenha no respetivo capital, pode ir desde a simples informação até à
gestão se o Estado possui a maioria do capital.
A reação dos juristas no início era a de que isto é só a Administração Privada e que
isso nada têm a haver com a Administração Pública. Mas como não tem a haver? Os capitais
são públicos, as entidades que intervêm são públicas, os fins que estão a ser prosseguidos são
fins de interesse público, logo isto é uma entidade administrativa. E a grande luta dos juristas,
a partir dos anos 80, foi a da reintegração destas entidades no seio da Administração Pública,
porque isto é a Administração Pública é uma nova forma de administração, não é privado, o
Estado tem a haver com isso.
Logo, há aqui uma dimensão que, no quadro dos anos 80, se foi construído, sendo que
grande parte desta orientação vem do direito italiano, afirmando que isto era Administração e,
portanto, a fuga para o direito privado, não poderia ser uma fuga ao direito, não poderia ser
uma fuga ao direito público. Desta forma era preciso reintegrar estas entidades no seio da
administração pública.
Esta luta em Portugal foi feita pela Professora Maria João Estorninho que esteve à
frente desta guerra, no quadro da sua tese de doutoramento que se chama “A fuga para o
Direito Privado”, aderindo mais tarde, a esta posição, o Professor João Caldas, o Professor
Marcelo Rebelo de Sousa (e eu próprio) – na medida que entendem que isto é uma realidade
administrativa que tem que ser regulada e organizada.

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No artigo 3º do CPA, quando se delimita o âmbito da proteção das normas, não é por
acaso que lá se diz que toda a atuação administrativa, incluindo a meramente técnica e a
gestão privada está regulada no direito administrativo e se submetem aos princípios gerais do
CPA. Desta forma, estamos perante uma realidade mista, em que há normas de Direito
Privado que respondem ao modo normal de atuação, mas os princípios, os fins, o modo de
gestão, o dinheiro que está em causa, os capitais – tudo isto é de natureza pública e, portanto,
tudo isto tem que ser regulado pelo Direito Administrativo.
Hoje, Portugal tem um regime que integra a Administração Pública sob a forma
privada no seio da administração. Portanto, é preciso acrescentar à norma constitucional que
o Estado gere a Administração Pública sob a forma privada, tem uma função de gestão, uma
função de administração em sentido próprio que também é uma realidade administrativa.

Administração Independente

A administração é denominada independente, uma vez que nos dias de hoje surgiram
órgãos autónomos do Estado que não são pessoas coletivas e que regulam uma determinada
entidade. Cabe, assim, distinguir as entidades tradicionais das novas que nasceram com a
miscigenação entre o direito administrativo francês e o direito administrativo anglo-saxónico,
porque estas realidades foram quase todas imputadas do direito anglo-saxónico e foram
colocadas na nossa realidade portuguesa.

Entidades Tradicionais

No quadro das tradicionais temos, por exemplo, a Procuradoria-Geral da República


que é um órgão superior que não se integra em nenhuma pessoa coletiva, não é do Estado e
não depende de orientações do Governo, e que regula a intervenção do ministério público no
quadro do poder judicial. Deste modo é uma entidade administrativa independente – os
procuradores gerais da república são entidades independentes, que com base nas suas
convicções defendem o interesse público, garante a intervenção do Estado no funcionamento
judicial, exercem funções públicas, mas de uma forma integralmente independente (do
Estado e do Ministro da Justiça).
São uma entidade subgénero, uma entidade que está à margem da administração
tradicional, mas que também se integra na função administrativa.
O mesmo se poderia dizer, em parte, do Tribunal de Contas, embora o mesmo seja
diferente porque é esquizofrénico, tem uma parte que é tribunal, portanto não é administração

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independente, mas tem uma parte que faz controle da atividade administrativa e nestes termos
também pode ser considerada uma entidade de administração independente.

As Novas Entidades

Há também as entidades chamadas Entidades Reguladoras Independentes, que advém


das diferentes atividades económicas e sociais: ANACOM e o Banco de Portugal (poder
decisivo na gestão económica do país), por exemplo.
Estas entidades reguladoras têm funções diferentes das tradicionais, vem de um
sistema anglo-saxónico e isto explica que elas, nalguns casos, estejam limitadas no nosso
sistema, mas que estejam quase à beira de uma separação de poderes, porque olhando para
estas realidades na lógica anglo-saxónica, são realidades que exercem simultaneamente
poderes legislativos (a regulação do exercício daquela atividade em termos administrativos é
feita por estas entidades), poderes administrativos (porque gerem e administram aquele setor
de atividade económica) e depois tem poderes judiciais (em que algumas situações julgam
antes dos tribunais) mas a última palavra é dos tribunais, contudo caso os particulares se
conformaram com a decisão daquela entidade pública, esta entidade pode mesmo decidir
questões de natureza judicial.
Isto é típico nos países anglo-saxónicos, onde a ideia da separação de poderes nunca
existiu e nunca criou esta realidade continental. É certo que a integração destas realidades
nascidas dos sistemas anglo-saxónicos no quadro dos sistemas continentais obrigou à sua
transformação, na medida em que, quando se diz que são entidades reguladoras elas fazem
regulamentos, não podem fazer leis. Contudo é certo que muitos dos regulamentos
independentes feitos por estas entidades, se calhar, materialmente aproximam-se do poder
legislativo, mas há um limite que não podem ultrapassar porque aqui estamos perante um
poder regulamentar independente.
O mesmo se pode dizer quando falamos no poder judicial. Em Portugal não podem
julgar, não têm poderes de julgamento, mas têm poderes de sancionamento, multas de
milhões de euros pagos porque violam as regras da concorrência, as regras de funcionamento
do mercado – estas sanções já estão a paredes meias com o exercício da função judicial.
Desta forma, para além da função administrativa, elas gerem e coordenam o modo de
exercício daquele setor económico.
A regulação destas entidades vai desde a simples atividade administrativa normal, o
poder regulador (poder regulamentar autónomo) e atos sancionatórios. Portanto estas

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entidades têm uma capacidade de intervenção da vida económica, social e cultural, que é
muito maior que as entidades normais e até mais que o próprio Governo.
Logo, o legislador constituinte também deveria acrescentar na norma constitucional
os poderes do Governo sobre a Administração, na medida que o Governo tem o poder de
coordenar a Administração Independente.

Hierarquia

A hierarquia corresponde a uma lógica em que os poderes se concentram no topo e as


decisões são tomadas do topo para a base, portanto assenta na ideia de, por um lado, o poder
de direção e, por outro, o dever de obediência.
Mas se isto é assim é também preciso ver que em muitos outros domínios as
hierarquias não existem e a lógica horizontal é uma realidade do funcionamento da
administração. Por exemplo, na Universidades há uma hierarquia universitária, mas a mesma
tem a haver com os títulos e com os concursos, mas não existe um poder de dar ordens a
ninguém (um Professor não tem o poder de dar ordens). Isto porque a lógica das
Universidades é mais uma lógica horizontal do que vertical, portanto a hierarquia não tem
importância (no organismo técnico, científico, universitário) – a hierarquia existe, mas
esbatida.

As funções é que determinam o modo de atuação e, portanto, a lógica não é a da


ordem sem mais, mas uma ordem que se impõe por corresponder à melhor solução, por
corresponder à competência técnica, a realidades que não cabem na lógica da hierarquia
tradicional. E, mesmo a hierarquia tradicional já não faz sentido, na medida em que ninguém
manda, o poder é todo legitimado em função das regras jurídicas, nessa medida todo o poder
tem limites.
Tradicionalmente, falava-se em relações especiais no seio do poder da Administração.
A relação especial de poder que ainda fala Otto Mayer no século XIX, e o próprio Professor
Marcello Caetano, no século XX, embora o Professor numa certa altura se tenha afastado
desta realidade mediática.
Esta ideia era a de que no seio da administração quem mandava fazia o que queria,
podendo tomar as decisões que queria, eram as relações especiais de poder num quadro de
uma relação entre o superior hierárquico e o subalterno, na medida em que era possível dar

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ordens que tinham que ser cumpridas sem qualquer discussão, porque no seio da
Administração Pública não há princípio da legalidade, nem direitos fundamentais.
Assim esta realidade nos dias de hoje já não faz sentido, tudo o que corresponde ao
interior da administração é regulado pelo Direito – não somente o exterior como também o
interior – tudo o que corresponde a regras jurídicas. Se isso é assim, a hierarquia tem como
proibido o abuso do seu direito. É por isso que a Constituição diz, e bem, que se há um crime
não há dever de obediência e segundo o Professor Freitas do Amaral, (com o qual o Professor
concorda) quando estamos perante uma ilegalidade de tal maneira grave, que corresponda a
uma nulidade, esse ato nulo também não está submetido ao dever de obediência. Por isso
deixa de haver o dever de obediência, no quadro da relação de superior hierárquico e
subalterno quando há um crime ou estamos perante uma ilegalidade de tal maneira grave que
põe em causa o próprio poder disciplinar e o poder de direção.
Assim, a hierarquia, nos dias de hoje, tem que ser entendida de uma forma diferente,
sobretudo quando o próprio regime jurídico da relação da fonte se transformou num contrato
administrativo para um contrato de realização de uma função pública, sob a forma de contrato
privado. Há então hierarquia, mas não com a importância que teve no passado.

Superintendência

Corresponde à lógica da Administração Indireta, consistindo no poder de nomear e


demitir os órgãos gerentes, de dar orientações genéricas e de controlo, o que corresponde a
uma lógica de tutela.

Tutela

Relativamente às Regiões Autónomas, temos os poderes de natureza tutelar.


A tutela pode ter dimensões e características muito diferentes: integrativa, inspetiva,
sancionatória, revogatória e substitutiva - estando isto regulado na Lei dos Institutos Públicos.
A tutela é um poder de controlar atos específicos e relativamente a estes atos específicos,
nuns caos, caso estejamos perante uma tutela integrativa, pode o ato estar sujeito a aprovação
ou a retificação; se for tutela efetiva está sujeito a controlo; na sancionatória está submetida a
uma sanção, caso haja um incumprimento da lei; na revogatória temos o poder de revogar as
decisões e por fim a substitutiva como o poder de substituir ao órgão.
Isto desaparece na Administração Pública sob a forma privada em que o Estado atua
como da entidade ou como acionista e desaparece do quadro dos órgãos independentes em

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que o Estado se limita a coordenar a relação destas entidades independentes que de acordo
com a lei exercem a função administrativa.

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Lista de Participantes

AFONSO CALHAU - 64665 (Subturma 15)


ANA SOFIA BRITO GARCIA- 65003 (Subturma 12)
BEATRIZ LEITÃO - 64477 (Subturma 17)
BEATRIZ SIMÕES - 64600 (Subturma 14)
CAROLINA PEQUENO - 64737 (Subturma 13)
CATARINA MEDEIROS - 64229 (Subturma 13)
JOANA MADEIRA- 64801 (Subturma 10)
LUÍSA BRAZ TEIXEIRA - 64486 (Subturma 17)
LUÍSA PIMENTEL - 64462 (Subturma 13)
MADALENA BRITO - 64481 (Subturma 16)
MARIA LUÍZA COELHO - 61728 (Subturma 16)
MARIA PEREIRA - 64636 (Subturma 12)
MARIANA CARVALHO - 64817 (Subturma 16)
MARIANA SANTOS - 64479 (Subturma 17)
MATILDE LABORINHO - 64476 (Subturma 13)
PEDRO REZENDE - 63595 (Subturma 17)
RAQUEL OLIVEIRA - 65025 (Subturma 13)
RITA TRABULO - 64586 (Subturma 15)
SÉRGIO LUZ - 64493 (Subturma 14)
SOFIA SAPINA- 64603 (Subturma 16)

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